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TRÓPICO
DOS
PECADOS
Moral, Sexualidade e lnquisi~áo no Brasil
EL COLEGIO DE MEXICO
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COLE(AO HISTORIAS DO BRASIL
PRóXIMOS u.N<;AMENTOS:
TRÓPICO
DOS
PECADOS
Moral, Sexualidade e lnquisi~ao no Brasil
3" IMPRESSÁO
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EDITORA
NOVA
FRONTEIRA
Ü horizonte de seus inreresses era bem esrreiro: limi-
rava-se 3. satisfaijáo das necessidades de sobrevivencia
- as do estómago, para manter a vida, as do sexo,
para continuar a espécie. Os apdos espiriruais eram
nulos: iam a igreja por rorina e por medo de náo sabi-
am que, acrediravam em Deus, rezavam, mas em rudo
isso a fé confundia-se com a crendice e a rdigiá.o era
mais u m meio de procurar pOr o Eterno ao serviljo dos
inreresses pessoais, de estar bem com Deus e com os
homens. Entendi entáo que falar em pecado a pessoas
como elas náo rinha qualquer ra.záo de ser.
INTRODU<;:ÁO 13
PARTE 1
OS DOIS MUNDOS NA ENCRUZILHADA DO PECADO 17
CAPITULO 1
A CONTRA-RErüRMA E O AL~M-MAR 19
Tempo de Reforma 19
A Igreja e a Missáo 25
Acultura~áo no trópico 28
VIcios do trópico, pecados do mundo 36
Outras faces do pecado 39
A intimida~áo da Colonia 43
PARTE2
MORALIDADES DO TRÚPICO 57
CAPITULO 2
NORMAS DA FORNICAy\0 59
O desejo dos homens 59
Escrúpulos e culpas 62
Mulheres degradadas, fornica~áo lícita 69
CAPITULO 3
CONCUBINATO E MATRIMÓNO 77
Cosrumes e leis 78
Práticas do concubinato 83
Importancia do casamento 99
CAPITULO 4
PATRIARCALISMO E MISOGINIA 115
Familia e ordem patriarcal 115
Casamento e misoginia: saberes eruditos 121
Casamento e misoginia: costumes populares 127
Rebeldias e cumplicidades: o mundo "=minino 139
CAPtrULO 5
0 NEFANDO E A COLÓNIA 151
Sodomía e homossexualidade 152
Somitigos e fanchonos 166
Mulhercs nefandas 182
PARTE3
A TElA DO INQUISIDOR 193
CAPtruL06
0 SANTO OFICIO NOS DOMINIOS DA MORAL 195
lnquisi~iio, Reformas e Justi~as 195
Moralidades e desejos heréticos 199
0.PITUL07
INQUISiy\.0, MORAUDADES E SOCIEDADE COLONIAL 221
A~áo inquisitorial na Colonia: instirui~óes 221
Cumplicidades, pinicos: confessar e delatar 229
lnquisi~iio e sociedade: espdho das hierarquias 237
CAPITULO 8
Do PECADO A HERESIA 245
Fornicários e casadouros: ignorancia das faJas, equivocas do poder 251
A má-fé dos bigamos: afirm~iio do núcleo dogmático 256
Os sodomitas: entre o erro dos sentidos e o sentido do erro 261
Nefandos imperfeitos: a hercsia dissolvida 271
Sodomía feminina, triunfo da misoginia 276
C\Ptruw 9
A ENGRENAGEM PUNITIVA 287
Processos e impunidades 287
Justi~a e misericórdia 299
Castigos da Coltmia: privilégios e discrimina~óes 323
CONCLUSÁO 339
GRÁFICOS 343
FONTES E BIBUOGRAFIA 347
INTRODU<;:ÁO
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20 TJH)PJCO Dns PECADos
das possibilidades que ofcreciam para vigiar e educar a massa de fiéis".'" Foi por-
tanto comum as duas Reformas o projeto de domestica~iío dos individuos via
célula familiar. De igual modo o foi, como veremos a seu tempo, a repressáo mais
violenta das rcla~óes sexuais e das unióes ilícitas, tanto as que transgrediam o
a
casamcnto como as que vicejavam sua margem.
Vigilancia e repressáo variaram consideravclmente segundo os países e, ainda,
conforme a natuteza do delito praticado, de modo que tanto a Justi~a Civil como
a eclesiástica ou a inquisitorial tiveram al(jada sobre os desvíos morais entre os
séculas XVI e XVlll. Mas, nos países católicos, o mecanismo elementar de con-
trole das consciencias e dos comportamenros residiria no sacramento da penirCn-
cia, na confissáo auricular. Generalizada pelo IV Concilio de Latráo ( 1215), esrendida
obrigatoriamente a todos os fiéis na época da Quaresma, a confissao sacramental
tornar-se-ia, diz-nos Foucault, matriz da produc;áo discursiva sobre o sexo no
Ocidente." Datam do século XIII os modelos de sumas e manuais de contlssáo
que se multiplicariam por toda a Europa a partir do século XV, os quais, elimi-
nando a superficialidade dos amigos penitenciais da Alta Idade Média -limita-
dos a enumerar pecados e respectivos castigos - , habilirariam os confessores a
decifrac;áo minuciosa de atas e intcnc;óes, sentimentos e desejos. A argüic;áo dos
penitentes e o atic;ar de memórias individuais no rastreamento das culpas basear-
se-iam, desde entáo, nos dez mandamentos da lei divina, nos cinco da lgreja e,
campo privilegiado do confessor, nos sete pecados capitais. 12 E, entre estes, a lu-
xúria assumiria o lugar de maior destaque, assimilada em cenos casos ao crime de
heresia, ofensa ao primeiro e fundamental mandamento da lei de Deus. Adulté-
rios, fornica~es, incestos, violac;óes, bestialidades, sodomía, masturbat;:óes, so-
nhos eróticos, toques íntimos, polu~es noturnas: nenhum ato, parceiro ou cir-
cunsti.ncia deveria escapar a fala do penitente, ao ouvido do confessor.
Combatida pela Reforma Protestante que a julgava charlatanice- pois só
Deus, pregavam os reformadores, tinha o poder de salvar ou condenar-, a con-
fissio sacramental foi pecra-chave na estratégia da Contra-Reforma: valorizada
enquanto sacramento e renovada em sua técnica. O moderno confessionário, se-
parando confessor e penitente por meio de telas ou grades, e pasto a vista do
público no interior das igrejas, foi urna das invent;:óes do Concilio de Tremo,
abolindo-se as confissóes privadas e intimas que, aproximando sacerdotes e filhas
(ou filhos) espirituais, mais íncitavam que coibiam os pecados da carne. 13
E, ponto central da nova estrati:gia católica, se m o que nem a moral nem a
religiosidade popular tornar-se-iam genuinamente cristás, cumpria rcmodelar 0
carpo eclesiástico: profissionaliú-lo, sobrctudo com a criat;:io de seminários; esti-
A CoNTMA-RFI'OIIMA t-: o AU'M·MAII
21
A JGRE)A E A MISSAO
27
ACULTURA<;:AO NO TRÓPICO
nao restava dúvidas de que a luz divina tocara o trópico sem que os Indios deixas-
sem de pecar. Pecaminosa era, aliás, a origem do gentio, dizia Nuno Marques
Pereira, para quem era indubitável descenderemos Indios de urna das famílias que
haviam migrado de Babel, "por serem homens soberbos, teimosos e nao querere 111
conhecer o poder de Deus" .39 Repetiu~se 3. exaustáo que os nativos n5o pronun-
ciavam as letras F, Le R por náo rerem fé, lei e rei, o que, as vezes, significa va ve-
los como pobres inocentes em estado de anomia, mas para os jesuíras era claro
sinal da anarquia diabólica em que viviam. O !ni migo estava em toda a parte e,
aos soldados de Cristo, escreveu Baeta Neves, cabia "ler essas marcas" e saber até
que ponto o demonio conseguira embaralhá-las."
Mas a demoniza~áo dos Indios niio se baseou tanto na aparente falta de
governo ou na presunc¡:áo de qualquer pacto colerivo com o demOnio. Cardim os
vira "pouco endemoniados", e Anchieta s6 lhes atribuíra a venerac;5.o dos rrovóes,
negando que tivessem "comunicac¡:áo como demónio". 41 Usavam de feiric¡:os, to-
dos admiliam, e ouviam feiticeiros náo por neles acreditarem, disse Cardim, mas
porque eles ajudavam nas enfermidades ..u Afinal, se náo conheciam a Deus, como
poderiam crer no diabo? - era o que pensavam os jesuftas. Em matéria de fé,
portanto, parece ter predominado a constatac;:áo de certa anomia, urna ingenua
irreligiosidade, mais do que adorac;:áo sad.nica. 4 ·~ Os indícios de que a máo do
demOnio agia por detrás dessa aparente inocencia recolheram os ponugueses so·
bremdo da licenciosidade em que julgavam viveros índios e, particularmente, da
rela~áo que mantinham com o próprio carpo. Repugnava-lhes, antes de tudo, o
"canibalismo", prática ininteligível ao europeu (e assustadora para os missioná·
rios), fato que corroborava a visáo do ameríndio como ser animalesco, selvagem e
monstruoso. Mas inquietava-os, em grande medida, o que consideravam falta de
lei, auséncia de imerdic;:óes quanto a exibic;:áo do carpo e as relac;:óes sexuais.
Leigos ou religiosos, todos sem exce11áo ressaltaram a nudez dos índios,
embora muiws a registrassem com naturalidade. Caminha, ao dizer que náo esti-
mavam "nenhuma coisa cobrir", julgou-os naturalmente inocemes. Gandavo li-
mimu-se a constatar que nada cobriam no carpo, e rraziam "deseo be no quamo a
natureza lhes deu".~~ Foram os jesuítas, em sua maioria, que viram na nudez
indígena urna prava de esd.ndalo, ocasiáo de torpezas e de ofensa a Dcus. Dcci·
frando a genealogía de tal despudor, Nóbrega \ocalizou·a no pecado de Cam, que
escarnecera da nudez de seu pai, Noé, senda por isso exilado e condenado ;l servi-
dáo.4~ O pecado de Cam renderia, aliás, outros frutos aos jesuítas no sé<..:u\ 0 se-
guinre, e alguns nele veriam a origem legítima da escravid5.o no mundo.~ 1 '
O horror que manifestavam os jesuítas face a nudez dos índios, especial~
mente a das partes genitais, parece mesmo antecipar wdo o rigor de urna época-
tempo de Reformas-, obcecada pela ocultac;:áo dos carpos: na Europa, ainda no
século XVI, comec;:ariam as inrerdic;óes aos que eventualmente exibissem seu
carpo em banhos públicos, termas, rios ou em qualquer lugar e ocasiáo. Inaugu~
rar-se-ia, lembra-nos Jean-Claude Bologne, a moderna era do pudor, e no sé-
culo XVIII algumas congregac;óes chegariam até, por aversáo a nudez, a proibir os
religiosos de se banharem, salvo por escritas razóes de ordem médicaY
Os habitantes nus do Brasil quinhentista causaram profundo desalento aos
jesuíras, a comec;ar por Nóbrega, que rudo fez para vesti-los desde que chegou a
Bahia: quis dar a roupa sobressalenre dos padres para os índios barizados; pediu
roupas ao padre Simáo Rodrigues; considerou a possibilidade de os próprios ín-
dios fiarem o algodáo de seus vestidos; e incluiu essa medida no plano geral de
aldeamento de 1558. Julgava imperioso cobrir o carpo dos índios, alegando varia~
das razóes: o esd.ndalo que dariam nus aos padres vindouros; a ofensa a Deus,
sobrerudo ao assistirem a ofícios divinos com as vergonhas a mostra; a excitac;io
que índias nuas causariam nos cristáos. 48 Era preciso ocultar~lhes o carpo, urna
vez batizados: pela nudez em si, descabida em gente crisrá, e pelo que essa nudez
poderia incitar.
Despudor na exibic;áo do carpo, acrescido de licenciosidade e apego a vida
promíscua, rudo isso comprovava, aos olhos dos primeiros cronistas, a vassalagem
que nossos índios prestavam ao demOnio. Fernáo Cardim, que chegara a \'er ino-
cencia na nudez do índio, compararia o interior das ocas a u m labirinto infernal.
ande o fogo, aceso dia e naire, veráo e inverno, era a única roupa de que se
urilizavam os aborígenes. O que mais o aturdiría, no encanto, seria a promiscui-
dade em que viviam cem ou duzentas pessoas num só lugar, reunidas "sem
repartimento algum o u divisáo", cada casal em seu rancho e "wdos J \'isca uns dos
outros", fazendo o que !hes aprazia, enquanro a casa ardia e m dumas. Mas .tssim
era, expóe de início o jesuíta, antes de serem convenidos pelos padres. ,. 1
Nudez e promiscuidade combinavam-se como mais absoluto desrep;r.tmento
nas relac;óes sexuais- foi o que viram (ou deduziram) os obserY:tdores dos pri-
meiros tempos. Escrevendo :1 Lorenzo dei Mcdici, Vespücio diri.l qw.· o:-; índio:-;
tinham tantas mulheres quanras queriam, o tilho se un indo ._·om a mJ. ...·. "o irm.lo
com a irma, o primo com a prima, e o encontrado com a que cnlomr.l'.'''
Fornicac;ao, poligamia e incesw em todos os ~raus tOi o que t.unbém Yiu ') jesuit.l
JerOnimo Rodrigues, visitando os c:trijós cm 1602: "sujissimos no vkio d.t L·.unc",
diria, os pais se uniam i\s filhas, os dos ~s sobrinh.ts, os an)s J.s nc.·t.ls: os homens
TROI'Jcu Do:. I'I·LAOo~
com várias mulheres e até mulheres com "dois maridos"." Gabriel Soares de Sou-
za chegou a no mear u m dos capítulos de se u memorial como título "Que trata da
luxúria d(stes bárbaros", 51 escrevendo, de fato, o mais completo resumo das tor-
pezas ameríndias: luxuriosos ao extremo, náo havia pecado da carne que os
tupinambás náo cometessem em matéria de incesw, poligamia e ourros mais; as
velhas, observou, granjeavam os meninos ensinando-lhes o que náo sabiam,'>~ e
todos só conversavam "sujidades" que cometiam "a cada hora". Aos apetites libi-
dinosos, certamente, atribuiu o hábiw que muiws tinham de engrossar o pénis:
"costumam por nele o pelo de um bicho táo pe~onhenro que lho faz logo inchar,
com o que se lhe faz o seu cano táo disforme de grosso, que os náo podem as
mulheres esperar, nem sofrer". 54 E, tratando do que pouquíssimos ousavam fa.lar,
comentou serem "muito afeic;:oados ao pecado nefando", do qual náo se envcrgo-
nhavam, e o que "servia de macho" dele se vangloriava, tomando essa "bcstialida-
de por proeza", ao passo que alguns efeminados armavam ten das e se faziam dt
"mulheres públicas". O jesuíta Pero Correia insinuaría, aliás, que também algu-
mas indias afei<;oavam-se a sodomia, guerreando como os homens, casando-se
com mulheres, e ficando mesmo injuriadas se as náo tomassem por machos. 55 Os
pecados indígenas pareciam náo ter limite, era o que pensavam nossos cronistas.
E, assim, o jesuita AntOnio de Araújo recomendaria aos confessores inquirir aos
indios sobre cada ato luxurioso em panicular, em vez de perguntar-lhes gene rica-
mente sobre o sexto e o nono mandamentos, preocupado como fato de a "língua
geral" náo possuir vocábulos que exprimissem números além de dez. 56
Da mais extremada luxúria que se costumava atribuir aos indígenas passa-
va-se, as vezes no mesmo texto, a admissáo de que entre eles havia casamentos ou
inimo de alguma relac;áo conjugal. Predominava, no en tanto, a idéia de que tais
matrimOnios eram falsos ou duvidosos, urna vez que a poligamia, o desrespeito as
regras de parentesco cristás e a instabilidade das unióes invalidavam-nos ou difi-
culrava aos observadores saber quais eram, de fato, os casados. Anchieta, nosso
primeiro "etnólogo", foi o mais empenhado em decifrar a lógica matrimonial
indlgena, buscando demarcar a "verdadeira regra'' das unióes por meio de analo-
gías com os preceitos cristáos. 57 Reconheceu assim que os índios se casavam in ltge
naturtU, idcmificou o matrimOnio preferencial entre o tia materno e sobrinha e a
interdi'iáo que havia de casamentos com mulheres descendentes "pela linha dos
machos" - descobrindo, com isso, a primazia do matrimOnio avuncular e o
parrilinearismo que regia o parentesco tupinambá. 511 Confundí u-o, porém, como
a todos os jesu(cas, a variedadc de mulheres que "coabitavam" ou tratavam sexual-
mente com os homens. Seriam as temiricO mancebas de um só homem, prisionei-
A CoN 11u-R~Hlii.MA ~.o Al fM-MMt
3S
Fosse pela Íntolerincia moral que ostentavam por princípio, fosse pelo que
observaram no início da coloniza'fáO, os jesuítas cedo perceberam que o mal náo
campeava só entre o gentío. O "excesso de liberdades", a "falta de lei" moral com
que o ameríndio ofendía a Oeus, viram-nas também na condura dos porrugueses
recém-chegados do Reino.
Principal porra-voz da lamúria inaciana no século XVI, Nóbrega náo pou-
paria críticas aos primeiros colonos que, táo logo desembarcavam, rratavam de
amancebar-se com as índias da terra, e náo contentes com esse já monstruoso
pecado, muitos se uniam a várias mulheres de urna só vez, prontos a copiar o
estilo dos caciques e dos principais do gentío. Quase rodas, dizia, tinham suas
escravas "por mancebas" e o u tras livres que pediam aos índios por mulheres, quando
náo as arrebaravam diretamente. Cultivar o pecado e dar esd.ndalos, comprome-
tendo com isso a base moral de roda a obra missionária, eis o que parecía ser o
principal objerivo desses colonos ao migrarem para o Brasil- repetiría Nóbrega
em várias de suas cartas. E, se ousavam admoesrá-los, instando para que se casas-
sem com urna só índia, os padres eram lago amea¡yados, ofendidos e aré perseguí·
dos- relatava Leonardo Nunes, que pretendera desfazer "o grande estrago feíto
pelo demónio" na capitanía de Sáo Vicente, aparrando amancebados do lugar.
Escrevendo em junho de 1553, Nóbrega veria no célebre Joao Ramalho o
exemplo perfeito do que faziam os portugueses no Brasil: sua vida corria J. moda
dos indios, rodeado de mulheres que lhe davam copioso número de tllhos, os
quais, mal atingiam a puberdade, seguiam o exemplo do pai, un indo-se .1 várias
mulheres sem cuidarem se eram irmás o u parenr~ts. Assim, indign.l\'.l·se Nóbreg.1,
perpetuava-se a linhagem do pecado de Jo:io Ramalho, vcrdadcira p(!m Sümdd!i
para os inacianos, "principal esrorvo" que rinham pela frente sendo homcm "mui-
.
"'conhecído e :oparmado com os indios" de Siío VICellte. Homcm dificiL prosse.
p;., poío te recuuva a qualquer emmda e vivia oromungado por niío querer confe,.
• ..,. aoo padra. Mal Joáo Rama1ho era 10111C111C o maíor cxemplo da qualu:lade dos
cu1oooo e de como te openva o povoamento da Colónia: "(. .. ) a es u terra, diría
daalauado, niío vieram teniío clarenados da mais vil e perversa geme do Reí no"''
- Í1112f:em q~ marcaría profundamenre nouos historiadores da coloniza,áo.
Ot queixuma do provincial dirigir-te-iam, ainda, comra os clérigos se-
cuiala que chcgavam ao Brasil após a i~ do bispado da Bahía ( 1551 ), actl.l>-
dos de iguais pecadot e de conivóncia com os amancebamenros dos leigos: "além
de seu mau exrmplo e conuma", diziam "ter lícito esrar e m pecado com as ne-
gras, ~endo elas JuaJ escravas", e absolvíam quantos os procuravam e m confissao,
fazendo-lha muí largo o emrito caminho do céu. "A evitar pecados, [esse clero]
náo vrio, ncm se cvirario nunca ( ... ). Outras coisas veio fazer que V. R. e eu
devcrlamos chorar"- escrcvia ao padrt Simio Rodrigues em 1553." Passados
seis anos, Nóbrcga náo mudaría de opiniáo, em carla a Tomé de Souza, denun-
ciando padres qu< insistiam cm manter-se eles próprios amancebados com suas
escravas, "qu< para cssc cfrito acolhiam as mdhores e de mais pre,o". Estenderia,
assim, ao clero colonial o julgamcnro qur fizcra dos desterrados que cá se lan,a·
vam: "cscória" de padres qur dcsuuia quanto se cdificava no Brasil; melhor que
náo vicsaem, que náo se cmbarcassc sacerdote "'sem ser sua vida muito aprovada"
- rcperiria, incand.vcl, o jcsu(ta-mor. 7S
O juizo dr Nóbrcga rcoaria nos séculas scguinres, e náo poucos bispos e
prelados rcpetíríam idénticas criticas aos sacerdotes seculares da ColOnia até 0 fim
do século XVIII. E boa panc de nossos historiadores assumiria, aliás, a crírica
moraliata dos inacíanos - com exce~áo de Gilbeno Freyre, adversário mordaz
dos jesuitas, que mal disfarc;ou sua benevolencia com 0 que denominou
"abrasileíramento" do clero colonial. 76 Mas a soltura de nossos padres náo desroa-
va, ao mrnos no s~culo XVI, do conjunto de párocos da lgreja Católica, conforme
já salientamos. O dcsprcparo dos curas levara Roma a incentivar missóes na Euro-
pa ao longo dos séculas XVI e XVII, e muito antes do Concilio, em 1522, 0
papado outorgaria privilégíos na esfera paroquial as ordcns religiosas amantes no
ultramar, visando suprir a falta e a dcsqualifica~áo dos quadros seculares. n No
Brasil •. porém, a forma~áo de u m "clero profissional" parece ter malogrado desde
o infcto, o que, sornado a fragilidade da cstrutura eclesiástica colonial, muito
compromcteu a cfid.cia das resolu~ócs tridentinas.
" A_ co~batc~ cuas ..e outras dificuldades scmpre estivcram os jesuitas,
donulocs muan.ugemcs nas palavras de Gilbcrro Frcyre, o que muitas vezes
41
A INTIMIDA<;:ÁO DA COLÓNIA
l. Bossy, John. Tht! Countcr Rcformation and thc People of Catholic Europe. Pmt and
Pment. 47. 1970. p. 53.
2. Delumeau, J. El catolicilmo de Lutero a Voltaire. Barcelona, Labor, 1973, p. 199·210.
3. Id. ibid., p. 193.
4. Ladurie, E. Le Roy. Montaillou, villnge aceitan (de 1294 a 1324). l. ed. Paris, Gallimard,
1982, p. 124-147; p. 190-192.
S. Mullct, Michael. A Contra-Reforma. Lisboa, Gradiva, 1984, p. 14.
6. Bérard, Pierrc. Le Sexe entre tradition ct modernité (XVlc.-XVIIIc. sit:dcs). Cahius
internationaux de sociologie. vol. 76, 1984, p. 136.
7. Flandrin, )can-Louis. La Docuine chrétienne du mariagc. In Le Sexe etl'Occidwt. Paris,
Seuil, 1982, p. 103; Métral, Maric-Odilc. Le Mariage: In hésitatiom de /'Occidmt.
Paris, Aubicr, 1977, p. 40-45; Duby, Georgcs. Le Cheva/ia, laftmme et le prhre. Paris,
Hacheue, 1981. p. 189-197.
8. Entre os impedimentos dirimentes (que anulavam o casamento), destacaríamos os liga·
dos ao parentesco: natural (consangüinidade até o quano grau); espiritual (contraído no
batismo, entre o que batiza e o batizado, se u pai e su a máe); legal (proveniente da ado~io
e contraído entre perfilhanrc, perfilhado e filhos da que perfilha, bem como entre a
mulher do adorado e a adorante, e a mulher do adorante e o adotado). Importante tam-
bém é o impedimento de afinidade contraída pelo marido com wdos os patentes consan-
güíneos da esposa até o quano grau e vice-versa e, ainda, entre o homem e todos os
parentes de urna mulher com quem tivesse cópula ilícüa (e vice-versa). A lisra de impedi-
mentos incluía, porém, várias o u tras situa~óes, como rapto, impotencia, fa ha de testcmu-
nhas, ausencia de pároco e disparidade de religiáo. V. rol completo cm Sil\'a, Maria Beatriz B.
Nizza da. Sistema de casamento no Brasil Colonial Sáo Paulo, Edusp. 1984, p. 129-131.
9. Segundo o direito canónico, os casos em que mais cabia o pedido de separa~io eram:
adulrério, heresia, inclina~áo para o mal (roubar, matar, cometer atas sexuais contra natunt),
maus-tratos, vomade de matar ou assassinar o cónjugc e loucura. V. Tarczrlo, Thc.·odon:.
Sexe et libertt au sitrle des lumitm. Paris. Prcssc de la Rcnaissancc, 1983, p. 242. ~t.B.
Nizza da Silva t:sdarcce que o "divórcio" nada mais era do que a separ.a\áo, pois os etinju-
ges só podiam vohar a casar se fosse dada sentcn~a de mauim6nio nulo. Op. cit.. p. 210.
10. Flandrin, J.-L. Famil/e;, Paris, Scuil, 1984, p. 120.
11. Foucauh. Mi che l. Hi!tória da sexualidade: a vontade de Jaher. Rio de.· _laneiro. l;ra.tl.
1977, p. 62.
12. Mandamentos da lei de Dcus: 1) Amarás a um só Deus; 2) Náo tomarás o Scu nomc t'lll
váo: 3) Guardarás domingos e fcstas; 4) Honruás a teu pai e tu.l mic; 5) Náo matarJ.s; 6)
Náo fornicarás; 7) Náo funarás; 8) Nao levamarás falso tenemunho; lJ) Náo desejarás a
mulhcr do próximo; 10) Niio cnbi\'ar;is ots coisas alhci.ts. M.tndamcntos J.1 lgrcja:
TROPICO uo~ HCAllo~
jO
56. Ar26jo, Padre Anllmio de. C.ucismo na 1/ngua bw/lica (1618). Rio de Janeiro, PUC,
1952, p. 102-103.
57· Anchicla, JoK de. lnformil'jiio dos c:uamcmos do1 Indios do Brasil. RIHGB, Tomo 8,
1846, p. 254-261.
S8. "A deacc~~ncia real era contada na huc: dos parentescos consangülncos, atravé1 da linha
parerna. ~crnandca, ~·· op. cic., P· 170. "O cuamento prcferc:ncial do üo materno com
• filh~ da ·~1 rencua-le na terminología de: parentesco" senda a Jobrinha dcsi nada
1
seja, pela subserviencia aos grandes scnhores, pelos amano.:bamcntos e pda flexibilid;~_dt
ou negligencia no exerdcio do sacerdócio.
77. Boxer, C. Op. ci[., p. 86·87. Tais privilégios, que aurorinvam as ordcns cm reh~;-¡ 0 all
episcopado. iriam colidir como refor~o dos poderes d~occ.s;mos csrabdccidos cm T~cnto.
No século XVI, os jesuitas relutaram em entregar paroqUiaS ao clero secular colmua\.
MORALIDADES 00 TRóPICO
GilhC'rco Frcyrc
jamais o fora.
, .
Boa panc do. que
.
alardeara m os 1nac1anos
· · d' ·
e seus ISC1pulos resulta-
Y~,- sem ~uvJda, da es.pecdlcJdade colonial, mas OU[ra parte se inscrevia numa
v1sao mals ampla e anriga: o ideal ascético, genuinamente crisrao, que a partir dos
sécul_os XV e XVI :r~pós-se como norma geral para roda a humanidade. A per-
cep¡yao de urna colonia sexualmenre intoxicada inseria-se nessa nova visibilidade
que o sexo adquiriu nos rempos modernos: visibilidade peranre a leí, diz-nos
Pierre Bér~rd,~ a~s~gurada pela mulriplica~áo de falas sobre desejos, prazeres e
carpos en tao VlabJI¡zada pela pastoral católica. A primeira grande regra do aparen-
te caos sexual da Colónia parece resultar, portan ro, do inimo com que a descreve-
ram os observadores daquele rempo- e que tanto impregnou, em vários senti-
dos, as narrativas posteriores da nossa hisroriografia.
Admitamos, no en tanto, que ao menos nos primeiros tempos, ou ao ini-
ciar-se a ocupac;áo de novas espac;os, o processo colonizatório concorria efetiva-
mente para o afrouxamento das regras morais que a lgreja se esfon¡:ava em difun-
dir. Já salientamos que nisso residiu um dos grandes paradoxos da colonizac;áo
ibérica: de um lado, ampliava consideravelmente as possibilidades de expansáo
para o catolicismo proselitista do século XVI; de outro, motivada pela explorac;áo
de riquezas a qualquer prec;o e operada a base da miscigenac;áo, comprometía
decisivamente o hito da Contra-Reforma no ultramar. Desse modo, mais do que
ao gasto portugués por mulher exótica, seu apego aos prazeres carnais ou sua falta
de preconceitos, a fornicaljáO generalizada que teve lugar na ColOnia deveu-se as
injunc;óes da situac;áo colonial ibérica- muitas delas anotadas pelos histo-
riadores, inclusive Gil berro Freyre: a falta de mulheres brancas, típica de urna
transmigrac;áo aventureira e exploratória, a empurrar os colonos para as ín-
dias e negras; a inoped.ncia dos poderes civis e eclesiásticos na vigilincia das
transgressóes, característica das áreas de fronteira como eram o litoral no século
XVI e vastas regióes do interior nos séculas seguintes; o confronto e amálgama
cultural propício a diluic;áo dos padróes morais que os ponugueses evemual-
mente traziam do Reino.
A poligamia dos Ramalhos e Caramurus, por exemplo, rcvelava tanto urna
heranc;a maura, como quer Gilberro Freyre, quanto a adcquac;áo portuguesa as
moralidades indfgcnas, típica de urna acuhurac;áo ao inverso que os íesuit~1.s nio
rardaram a denunciar. E, colOnia escravista, desde o inicio cnnfundir-se-iam no
Brasil a explorac;áo de ameríndios e africanos e o ahuso sexu.tl. consentido ou
forc;ado, de fndias, negras ou mulat;ts, a despeiw dt) que fizer.un os missionJ.rios
para obstar semelhantes práticas. A crenc;a popular de ~iliC a mclhor ntra para ~1.
s(filis consistia na "cópula com ncgrinha vir~cm''" hem nos rnostr.\ o ~rtC.ito
62
EsCRÚPULOS E CULPAS
64
1973. p. 101.
3. Id. ibid., p. 92.
4. Abreu,J.C. de. Czpltufmdthist1Jriocolonio/(J500-18(}(/). 6. ed. Rio de Janeiro, Civiliza-
~ Brasileira, 1976. p. 28-29.
5. Freyre, G. Op. ci<.. p. 92-102: 189-200: 220.
6. Bérard, P. Le Scxc cnue nadirion et modernité (XVIe.-XVIIIe. siecles). Cnhitrs
inr.rn~~tion~~uxdtsorio"'fit. Vol. 76, 1984, p.146.
7. Frey,., G. Op. cil .. p. 137.
8. Foucauh, M. Vigior t punir. Pe<rópolis, Vozes, 1977, p. 56.
9. Boxc:r, C. A mulh<r NI txponsio uilrrzmorino iblri<a (1415-1815). Lisboa, Livros Hori-
zon<e, 1977.
10. Primtirtl visitii(ÁO Jo Santo Oficio as JHITltl Jo Brasil Confissóts dt Ptrnambuco (1594-
1595). Recife, Universidad< Federal de Pernambuco, 1970, p. 55-56:76-77: 132-133.
11. Primtirtl visiiii(ÁO Jo Stlnto Oficio as pt¡rtts Jo 8rRSil DtnuncillfÓtJ dt Ptrnambuco (1 593-
1595). Sáo P.aulo, Eduaroo Prado, 1929, p. 396-397.
12. Delumeau, J. Lt Pkbl tr bz ptur. Lo tulpobiliution tn Occident (Xll!t.-XVI/k sitcltS).
P.aris, Fayaro, 1983, p. 331.
13. Id. ibid., p. 350-353.
14. Cznfissóts tk Pmwmb.,., p. 219-220.
15. ANTT/IL., proccsso 6341.
16. DmuociorófJdtPrrn•mbUtO, p. 157-159; 145-146:199-200.
17. ANTT/IL., proccsso 17065.
18. l'rj""i"' •uilll(io ,¡, S.nto Of/tio M porm ,¡, BrtUil O.nunri•rón J. Bohio (1 591-1 593).
Sao P.aulo, Edua<do Prado, 1925, p. 494-SOO.
19" ~;.:~;;:itof(ia .. Confisskr J. &rhio 0591-1592). Rio de )aneiro, F. Brigue<, 1935,
20. Apud. Ladurie, E. Le Roy. op. rit, 1982 266 p . . .
F.o h do-'- 1 XV 'P· · rovérb1o PII<Cido era amda corren« na
pan 1 . . .u 0 ll: "A t. •hiud.. mollrrtbz k ·t./t. · 14 · . ·14"
V. Redondo, A. Leo Empfcbemenu au . 1 ~ 1 ; r • m•drrno, srn m•kr ·
A,.,, llfitimtJ, .,.,,, i/Jiriti,, 111 F.,mar~age et. cur transgression dans I'E.spagnc. In
"""''· P.ano, Puloe de la Sorbonc, 1985. p. 50.
21. A fornica~ao qualificada incluía, no direim canOnice o inc .
violar;áo de virgens ou freiras rap d . ' esm, o adulrér1o, o estupro ou
toca so Offila Aforni~áosi 1 r .
0
•
cópu 1a genica1 entre homens e mulheres soheiros. · mp es tmltava~se a
22. Redondo, A. Op. cit., p. 52-53.
23. Dmun<iaróts dr: l'r:rnambuco, p. 339-340.
24. ANlT/IL .. processo 7955.
25. E~unciado excraído: aguisa de exemplo, do Dimt~ur pacifiqu~ áts conscitncn, do ca u-
chmho jean-Fran~oiS
.
de Reims (século XVI) · Ap ud Delumeau, J., op. en.,
. p. 353. P
26. LJ_~nunClllfÓts J~ Ptrnambuco, p. 396-397. A iconografia dos séculos XVI e XVll 5 re
~has,_ es.s~ formcac;óes sarinicas, presentes nas descric;óes do inferno e, ccrtamen-:;cn~
1magmano popular. '
27. Id. ibid .. p. 326-329.
28. ANlT/IL., processo 11209.
29. lbid.. processo 11112.
30. O réu deve ter usado o verbo foátr, que já Fcrnáo Lopcs ulilizara na Crónic• fk
D. Ftrnanáo como sinónimo de fornicac;áo.
31. Freyre, G. Op. cit., p. 250-251. V. tb. Bakhtin, M. A cuJt.,.. popuÚir na [IÚik MIJU, no
Remudmento. Sáo Paulo, HucitcdUNB. 1987, p. 125 e scgs.
32. ANTI/IL.. processo 13167.
33. Para urna análisc mais profunda das blasfemias, remero ao itcm .. Dogmas e símbolos:
incenezas e irrcvclincias" in Souza, L. de M. c. O Ji11bo e • TnTII * s.,.,.
O.. Sio
Paulo, Companhia das Leu2s, 1986, p. 100-136.
34. Sobre o assunro ver Mon, Luiz R.B. Maria Virgcm: ou nio? Quatro séculos de conresta-
~io no Brasil. ComunicafYio aprc:scn~ada na 15• Rcuniáo da Assoc:i~o Bnsilcira de An·
uopologia. Curitiba, 1986, 25 p.
35. ANlT/IL., processo 12527.
36. Dedieu, Jean-Pierre. Le modele sexud: la défcnse du mariage ebn!tien. In Bc:nrwsar, B.
(org.) L1nquisition Espagnok (XVr.-X/XI. si«ln). Pari.s, Marobout, p. 322.
37. M. B. Nizza da Silva afirma que os moralisw ponuguesa utaizavam com sc:ntidoc dife-
rentes as palavras cclibaclrio e sohciro: a primcira signifiava casro. continente, e a secun-
da, homcm ou mulhcr scxualmcntc dcsrq:rados. V. SismrM tÑ ~ • IIMsiJ ,_.
nilll Slo Paulo, Edusp. 1984, p. 80.
38. Pé,.., joseph. La Fcmme e< l'amour dans I'Espacnc du XVIc. siedc. In Redondo. A.
Op.cit., p. 28.
39. Cruz. Francisco l. doa SantOI. 1M~ .. citlttM ,¡, ÜIÑ& Lisboo. Dorn Quimot.
1984, p. 312.
40. Flandrin, j.-L. Conmoeption, mariap ct n:lationo amo- dansi'Oa:idcnc dioolticn.
In ú Srx~ , I'Om.lnu. Paril. s.ua. 1981. p. 119.
TROPICO Dos PECADos
76
-41. Aries, Philippe. 0 amor no casamenco. In Béjin, A. ~org.) ~~xuali~adn oádentaú. Lis.
boa, Comexro, 1983, P· 183. Jerónimo só fizera rcpem o estoiCO Seneca. quando escre-
veu a célebre frase.
42. Expressio cradicionalmente usada no Aho M~nho para designar as "mJ.cs sohciras".
V. Cabral, Joáo de Pina. As mulheres. a maternJdadc e a posse da terca no Alto Minho.
AnJ/iu rocial vol. 20 (80), 1984, p. 97-1 12.
43. Rossiaud. Jacques. Pronirui~áo, sexualidade, sociedadc nas cidades francesas do sécu-
lo XV. In Aries, P.< Béjin, A. (org.) Op. cit., p. 189.
44. Aguiar, Asdrúbal A. de. Crimes e dcliws sexuais em Ponugal na época das ordenac¡:óes.
Separara dos números 1 e 2 do Archivo dt Mtdicina Lfga~ vol. 3, 1930, p. 50.
45. Rossiaud, J. O p. cit., p. 186.
46. Graullera, Vicente. Mujer, amor y moraJidad en la Valencia de los siglos XVI y XVII. In
Redondo, A. (org.). Op.ci<., p. 93.
47. Olivieri,Archillo. Erotismo e grupos sociais na Veneza do século XVI: a corrcsá. In Aries,
P. e Béjin, A. Op.ci<., p. 93.
48. Marques, H. de Oliveira. A socitdadt mtdiroal portugutsa. 4. ed. Lisboa, Sá da Cosca,
1981, p. 126-127.
49. Bologne, Jean-Ciaude. Hirtoirt dt lA pudtur. Paris, Olivier Orban, 1986, p. 32.
50. Dedieu, J.-P. Op. ci<., p. 322.
51. ANITIIL., processo 17807.
52. Confirrótr d4 Bahia, p. 76-81.
53. ANITIIL., processo 11860.
54. !bid., proccsso 10423.
55. Dmunáa¡ótrrkPtrnambuco, p. 189-191; 244-245.
56. ANTIIIL., processo 17065.
57. Dtnuncia¡ótr da Bahia, p. 375-376.
58. V excelente análise de Koshiba Luiz A ¿· . . .
littratura. Dissenaráo de m 'd . wma coloma: contribuiríio a história social da
..._ . " csua o apresenrada ao O d . .
~ UniVersidade de Sáo Paul 1982 epartamento e Hut6na da FFLCH
o, 'esp. 0 caphulo IV, "Corpo e alma", p. 87-123.
CONCUBINATO E MATRIMONIO
COSTUMF.~ P. I.P.IS
a
Referindo-se Europa, Jean-Louis Fla d .
. . .
, l _
n rm escreveu: em re ac;ao ao casa-
ment.o, que era urna msutu1c;áo social pela qual se aliavam as famílias de mesma
condu;:á.o a fim de se perpetuarem, o concubinato era urna uniáo pessoal, um caso
de amor, ao menos da parte do homem." Insticuic;áo social auelada a interesses
famili~~es, a c~rimOnia de casamemo era importante rito de passagem na cultura
europe1a medieval e moderna, fosse ou náo sancionada pela bCnc;áo eclesiástica.
O próprio casamenm era, ames de rudo, um contrato extensivo a vida conjugal.
emboca pudesse ser rambém um sacramento- o que, por si só, diferenciava-o do
concubinam, espacro de amores impossíveis, vomades individuais, paixóes mal
vistas na comunidade. Envolvidos em concubinaros, diz-nos Flandrin, eram os
amantes adúlteros, homens ou mulheres insatisfeicos com seus cOnjuges "arranja-
dos"; os miseráveis, gente que náo possuía recursos ou estabilidade social para
contrair matrimOnio; os que, sendo ricos, ou gozando de importante status, ja-
mais esposariam amásias de condi~áo inferior; os padres e clérigos que, a seme-
lhant;a do cura de Montaillou, recusavam a castidade inerente ao estado religioso. 2<4
Na Europa do século XVII, o concubinato enttou em franco declínio,
espelhado no recuo das taxas de ilegitimidade entre crian~as batizadas- o que se
deveu, em boa medida, a propaganda moralista das Reformas Católica e Protes-
r tante. Na ColOnia, pelo contrário, cresceu desde o século XVI, tornando-se o
espat;o por excelencia das rela~óes sexuais e da procria~áo, tantos eram os obstácu-
los que a situa~áo colonial impunha ao casamento legítimo. Mas, pelo menos no
plano das motiva~óes e situa~óes de amancebamento, o concubinato colonial náo
esteve muito afastado do descrito por Flandrin, salvo pelo caráter plurirracial que
lhe marcou o ttópico.
O mundo dos concubinários, vemo-lo na correspondencia jesuítica do sé-
culo XVI, entre os amores de fndias e colonos, que tanto inquierararn os jesuitas;
vemo-lo, um pouco, entre os personagens da primeira visita~áo inquisitorial a~
Nordeste; e, ainda, nos ttatados morais dos Sl!culos XVII e XVIII, entre os queo-
xumes e as intimida~óes de um Nuno Marques Percira ou de um )org<' lknci.
Mas~ sobrerudo na documenta~o das visitas diocesanas, ou "devassas ~rais", que
o concubinato aparece de maneira mais completa - incl~i..., arra~ de Sl!ries - ,
pms· era competenCia
• · d os b"ospos , ou da )usti•a
,. Eclesoisnca, o chamado
. . crome de
.
amancebamento, incluido no monitório (rol de culpas) fixado ~lo v1sotador epos-
copa1 no 1ugar d a ·onquoro~ao.
· · - " Desde o skulo XVI, como ""remos, os bospos
84
Práticas como as de Manuel Lobo náo devtam ser raras na Colo m a, mesmo
entre senhores de posses; quando náo alcovitavam suas negras, induziam-nas a
prostituic;áo, falrando-lhes com o sustenro, as roupas e, no caso das mubras ~a
casa-grande, negando-lhes os trajes engalanados que apreciavam usar no. cortejo
das sinhás. Já o incansável Benci insrava para que senhores e senhoras vesussem as
escravas que, de curro modo, o fariam na "oficina do pecado". De que valeria se
uajarem as escravas como librés tia várias "nas sedas e nas cores" como nas "máos
de que m as receberam"?- admoesrava o jesuíra. ·15
E, prosriruic¡:áo de escravas 3. parte, o concubinaro de brancos com negras
ou mularas era sobrerudo urna faceta da explorat;:áo escravisra, extensiva aliás 3.
opressáo da míséria. Senhores, mercaderes e burocratas náo só abusavam sexual-
mente das cacivas, como de mulheres que, pobres ou desamparadas, lhes serviam
de aman res. Na história da Colonia nao faltaram exemplos de autoridades, juízes
< governadores pródigos <m conceder favores ou dinheiro a mulheres humildes,
"tirando-as da miséría", protegendo-as da Justic¡:a, convidando-as para saraus e
comédias palacianas em uoca de prazeres sexuais. Assim come~avam, assim pros-
seguiam, diversos concubinatos no passado colonial.
. " Buscar-se-ia cm váo, na maioria dcssas rclac¡:óes, qualquer espécie de "uniáo
l1vre • análoga e alternativa ao casamento oficial. Esscs homcns mais ou menos
poderosos que 1< uniam a escrav., r · d b · ·
. . • rorras, cr1a as ou rancas pobres, JamaiS o
faz1am com 1mmo con¡· ugal e me 1· · ·
. ' smo que so teJros e apa1xonados, náo podenam
despod-la. Impunemente Nao fa J b
. . · 11< pe a po reza ou reputa~áo que infamavam
tall concubma., se-lo-ia ""la cor t p • . r d"
r~ rogcn1e n 1a, mesti4fa ou negra, igualmente
H7
·-
dos senhores em curvar-se i&:l eis · . ~ ,
prestigio publicamenre amancebados, podiam náo escapar as murmur~c;oes e as
• · d 'd d as pelo visto sabiam resguardar os concubmatos de
denuncias a comum a e, m . ,
Ó • Ao menos no mcanre aos grandes senhores, eram mocuas
~~~=-
as decisóes eclesiásdcas abrigando-os a casar os escravos sob pena de pnsao e
de redo dos cativos amancebados, sem qualquer indeniza~áo. 51 Nem os senhores
g d ... ,.. ..
casavam 05 escravos, nem rampouco os aparravam o 1 ICitO trato , a menos que
o quisessem fazer.
De qualquer modo, a incidencia do concubinato entre individuos legal-
mente solreiros, sem recursos e racialmeme discriminados, tem levado nossa
hisroriografia recente a pensá-lo como op~áo amorosa e conjuga! dos deserdados
da Colonia, pobres e desclassificados que, marginal izados e incapazes de contrair
matrimonio, teriam assumido a condi~áo de amancebados. "Em Minas Gerais
como cm aunas rcgióes coloniais, a concubinagem constituiu-se na organizac;áo
familiar típica entre as camadas populares da sociedade" - afirma Luciano
Figueiredo, resumindo a idéia por muitos partilhada de que o concubinato subs-
timiu o casamemo, e o modelo familiar cristáo no cotidiano amoroso, da popula-
t;áo colonial pobre. 52 Hipótese tentadora, a sugerir-nos, ao menos entre os miserá-
veis da ColOnia, um casamento alternativo e urna conjugalidade ''popular", em
oposic;áo i tradicional visio do concubinato como indício de anomia sexual.
. A que atribuir semelhante tendencia da popula~áo pobre e m náo contrair o
marnmón1o rndcmmo, expando-se com isso a advertencias, multas, prisóes e
degredos que a lei eclesiás1ica reservava aos concubinários?" Nossos historiadores
tlm alegado variadas razóes para a generaliza~áo do concubinato entre as camadas
populares, mas lados parecem vinculá ¡ · . ¡
. - a pnnc1pa mente ao alto custo do sacra-
mento e aos compl1cados tramite b á·
. . s urocr ucos que a disciplina matrimonial pas-
sou a eXIgir no pós-Tremo " Ludan F . d
no ,¿culo XVIII Co . o •gue~re o, por exemplo, constatando que
a roa cmpcnhava-sc cm . · .. ·
e combater os concubinatos no Bras'l aumentar o numero de mammomos
du "desordens" ue se lb 'b 1 - temetosa do crescimento dos mesti~os e
q es am ula - chegou fi " .
agia em sentido contr~rio d'fi l d ' mesmo a a 1rmar que a lgre¡a
' 1 1cu tan 0 0 casam .. .
onerosas, só ace11 fveis hlice e l . l 11 Es ento com a 1mposi~áo de taxas
0 0011
• radamos, ponanto, a seguir semclhante
91
A par das relac;:óes que até aqui examinamos, houve urna vasta gama de
concubinatos assimiláveis, em cenos casos, a casamemos informais. Referimo-
nos 3.queles em que as pessoas viviam jumas por anos afio, rinham filhos e agiam
como casados; casais que, emboca náo rivessem a bén~áo sacerdotal, arendiam ao
ritualismo social exigido pelos costumes ao estado matrimonial. "Viver de portas
adentro", "ter mulher na cama e a mesa", "viver como se fossem casados", a lin-
guagem popular possuía mesmo expressóes alusivas a vida dos casados. ~ cerro
que, ao rotular os casais irregulares mas estáveis como indivíduos que "viviam
como se fossem casados", a sociedade colonial parecia valorizar muito a cerimónia
da Igreja enquanto rito matrimoniaL Masé-nos possívd, de outro lado, imaginá-
los a viver como qualquer casal legicimo, urna vez que a própria comunidade
esrabelecia, nesses casos, analogías enne coabita~áo, prole e casamenro.
As siruac;:óes eram, conrudo, muiro diferenciadas. Em cerros casos, o
"concubinato" náo passava de um estágio provisório, anterior ao casamento, a
reproduzir os esponsais típicos do "casamento popular" do p~ado portuguls. No
século XVI, Diogo Lopes Jlhoa, rico mercador de ongem cnsta·nova, ¡;,,acusado
96
VtSIBIL/DADE E ESTIGMA
iMPORTANCIA DO CASAMENTO
MENTALIDADES CASAIJOURAS
de mot;as para tomar háb 'ato no Reino • exceto com autoriza~áo real após minucia-
. .. . .
· •· b a vocara·o religiosa das candadatas a ser dalagencaado pelo vace-
so mquento so re ,. . . . , . .. . , . ..
· ¡ d s Por 1·ronia do destmo caberaa JUS!O ao celebre rea frearauco
re1 e pe os governa ore . •
o onus de semelhante decisáo.
Empenhada em povoar a terra "com gente principal e honrada", a monar-
quía lusitana preocupar-se-ia, ainda no século XVIII, coma prolifera7ao dos. mes-
ti~os, resultado das unióes irregulares e, aos olhos da Coroa, fonre de mstabaladade
edesordem social. O mesmo D.Joiio V escreveriaem 1721 ao conde de Assumar,
governador de Minas, recomendando-lhe difundir os casamentos: "procureis com
toda a diligencia possível, para que as pessoas principais, e ainda quaisquer ourras,
tornero o estado de casados, e se eS!abel~am com suas famílias regulares", para
sossego da Colonia e conveniencia da autoridade metropolitana. No enranro, como
náo sustavam as restri~es e estigmas que pesavam sobre os casamentos mistos, os
estímulos da monarquía se prejudicavam por princípio, limitando-se, de fato, a
incentivar o casamenro de brancos ou, no máximo, de mestic-;:os perfil hados. 92
O quadro só mudaría alguns anos mais tarde, em 1775. com o famoso decreto de
Pombal suspendendo as barreitaS que obstavam unióes legais entre brancos e índios
-medida que, de resto, só lentamente lograría algum exito.
A política matrimonial da Coroa parece ter se guiado, com efeito, por
razóes de Estado, imeresse no povoamento, manutenc;áo da seguranc;a e do con-
trole mais do que por fidelidade a ética da Contra-Reforma. Os matrimonios
inter-raciais, os casamentos que eventualmente ocorreram no Brasil entre gentes
a
de cor, pobres e indigentes deveram-se, pois, a~iio da Igreja, sempre pronta a
exahar a ~xceléncia do sacramento, perseguir os amancebados, ameac-;:ar os senho-
res q~e nao casavam os escravos, ex.comungar, intimidar e punir, indócil, as trans-
gressoes
. da moral. E nisso convém l•mb · aux1·¡·1ad a por parcela sJgm-
... rar, fo'1 muno · ·
ficanva d~ popula~iio, gente apegada família, ao casamenro e vida conjugal.
a a
Se¡ a como for • pesquisas rece n tes nos tcm
• m . d'1cad o que o casamenlO esceve
long; d~ ser um privilégio dos brancos abastados. lraci Del Nero por exemplo,
estu an o a popula~iio de Vila Rica no século XVIII . f, • b
menos freqüentes que o casamento . ' m orma-nos que, em ora
mOnios env 1 d l'b entre brancos l•vres, náo foram raros os matri-
o ven o 1 erros escravos e rd ¡·
dos entre m lh r ' pa os avres, particularmente os realiza-
u eres rorras e escravos u 11 d d . .
- rerra onde 0 vaivé d · . ratan o-se e Val a Raca no século XVIII
m as pessoas era mcenso d . . .
atingiram enormes _ • on e a prostJtlllt;áo e o concubmato
propor~oes -,o exemplo é d' 'd
mos rcr cautela nas gen 1. _ . 'sem UVI a, relevante. Mas deve-
era 1zac;:oes, pOJs, como . d' • .
taxas de legitimidade e P . nos m aca Renato Venancao, as
' or consegumte, 0 fndice de casamentos variavam muito
105
·
casando-se novamente, garanur a rran
smissáo do parnmomo e do poder aos her-
N orAS
21. Almt:ida, c:.M. de. Código hlipino.... l.ivro V, dtulos XXVII, XXVIII, XXIX, XXX.
22. id., ibid., tÍtulo XXVIII. Crifo nossn.
110
CONTROVI!RSIAS
Q LE/70 CON]UGAL
a ordem, divina
.
e alheia a procriac;áo que d
b,
. .
evena anJmar os casais A d
conrroversJas, ram em permaneceram inr d' d d . · pesar as
er Ita as as emaJs posi - . .
ora contrárias J. natureza humana e J. divina . d' .. , c;oes genJtaJS,
· • ora preJu ICJJJS a reten - d A
A MONARQUIA DOMF.STICA
um roreiro completo de como 0 marido poderia suportar a carga que lhe, represen-
rava a esposa, submerendo-a denl!o da casa e resguardando-a, ao max1mo, do
mundo exterior.
A adminisrra~iio doméstica, a escolha dos criados, a eventual presen~a dos
agregados, rudo deveria ser competencia do marido, embora fosse plausível ~ opi-
niiio da esposa. E, sendo mulher indócil e reimosa, que o esposo evltasse diScus-
sóes, pois isso "seria conceder-lhe urna igualdade no juíw e império", riio descabi-
da quanro indesejável. "Fa~a-se-lhe cerro que a sua conta nao está o entender,
senáo 0 obedecer e fazer executar", recomendava o inflexível moralista. No mais,
evirando~se as influencias externas que desviassem a esposa do conuole domésti-
co, estariam preenchidas as condif1óes para um bom e duradouro matrimOnio.
Bastaría ao marido impedí~ la de ler- advertía - , sobre[Udo romances e comé-
dias, pois o melhor livro da esposa era "a almofada e o bastidor"; proibi-la com
suavidade de receber adivinhas, gentes exrravagantes, músicos, poetas e "professo-
res de navidades"; evitar a constante presen~a de frades dentro da casa, homens
sempre duvidosos¡ determinar o confessor certo, escolhendo pessoa grave, conhe-
cida e de boa religiáo; limitar as saídas e as visitas da esposa; evitar mosrrá-la aos
amigos; corrigir-lhe os hábitos indiscretos, o falar demasiado, os suspiros, a gesti-
cula~áo e até os risos em público, especialmente se fosse graciosa, rivesse bons
dentes, covinha na face, ecc. 3'>
J:. ceno que muicos, n:io c:io ciranicos, amenizavam as imperfeil):óes femini-
nas, ressalrando as virtudes da boa esposa, como o companheirismo, as habilida-
des domésticas, o zelo pelos filhos e mesmo a fidelidade conjuga!- se bem trata-
da no lar, e respeitada foro dele. Mas, via de regra, quando pregavam as mulheres,
quase todos aconselhavam-nas a obedecer, fugindo de conversa~óes suspeitas, evi-
tando parenres e mulheres desonestas, vestindo-se com discri~áo, recusando dádi-
vas de homens e rudo o mais que viesse de encontro ao poder marital. As mulhe-
res casadas, dizia um moralista colonial, deviam ser forres, discretas e prudentes:
em su;u c;uas, zelosas; fora delas, recatadas; e em codas as ocasióes, exemplares,
"mais prezadas de sofridas, que de agastadas (.. .)". 4"
Obedié'ncia, conformismo, medo, eis o que recomendavam os arautos da
família, nao só as esposas, mas também aos filhos e aos demais habitantes da casa.
Marrim Afonso de Miranda nao deixaria dúvidas a respeiro do poder monárquico
meren re ao pata familias. "Todo o pai de família que rem súditos a que m governe,
filhos a ~uem dourrine (... ),e mulhtr a qutm como tal tmtt (... ), deve-lhes minis-
trar Jusu~a de tal maneira que assim cumpram e guardem o que pelos rais lhcs for
mandado como s fo · · ·
' e sse um JUIZ rigoroso, sob pena de que, quando o nao fizercm
referida conformidade, fiquem obrigados a roda a ira t d e
na J . . • emor e esravor que 0
tal Ministro, Senhor, lm ou mando com efe usar."~l
Os "novas monarcas" devcriam, porém _todos ¡11 · ·
. SJSUam - atemar para
Se us deveres de soberano: guardar as obnga~óes de esposos epa· d "lh
. . 1, e ucar os 11 os,
·,nstruí-los na doutnna e tudo o maiS que cabia ao legír,·mo d .
. po er pamarca1.
Convencidos de que a fidel1dade dos homens era, além de urna obriga~ao dos
casados, a principal garanna contra o adulrério feminino, 05 defensores da família
condenaram com veemencia as liberdades sexuais masculinas. Que 0 marido evi~
rasse as "mulheres da vida" ou, pelo menos, que as procurasse sem escándalo ... Em
último caso, dizia o autor da Carta, se viesse a público a rrai~á.o do esposo, 0
melhor remédio seria desmentir os rumores, "curando-se o marido da levianda-
de", e a mulher, dos ciúmes-" Mas, caso o marido !he fosse fiel, e a pérfida esposa
ainda assim o rraísse, náo lhe restaria opc;á.o senáo matá-la, diria Diogo Paiva de
Andrade em seu famoso opúsculo ... Casamento perfeito.~3
Portugal wrnar-se-ia, pois, urna nas:áo misógina, ao menos no plano da
cultura erudita, a partilhar um movimento de idéias enrio universal, inspirado no
Direiw anrigo, nos escritos de Plaráo ou Aristóteles e na forre rradi~áo misógina
da escolástica: tradi~áo renovada na modernidade, que desde os primórdios conta-
racom a colabora~áo lusitana. Afina!, era portugués o autor do famoso De Planetu
Ecc/esiae, livro que, escrito em 1332, dedicava-se em boa parte a relatar nada
menos que os "102 vícios e delitos da mulher" ... "
IMAGINARIO MISOG!NO
·
As mentalidades populares náo fiICaram 1munes a
essa aurenrica campanha
·e · ¡
anuremlnina veiculada pelos letrados e pe os re 'gwso
¡· · s modernos. Pelo con-
. d d
tr áno, vi ram-se cada vez mais impregna as e va ore
1 s misóginos,. expressos
. d
. d de franca hosuhda e em
em ad ágios, cantigas, versos e mesmo em auru es .
1 no século XVI. e ;\s ,ezes
re 1a~áo as mulheres. Encontramo-los, porém, ogo .
a óes europtlas. o que nos
antes, tanto nos países ibéricos como em ourras 0 <; · d
. b " sobrt' os preconce1tos a
permite relativizar a dererminancia dos "novos sa eres , ¡ XIV
. .11 correnre no sccu o •
cu1tura popular. U m antigo provtrbw de Monta! ou,
128
. . "
. 1 smente doZia Qut at sa rm
.b fi me avec un coussin/croit fui jflire mal et ne fui
1 . b ¡·
somp e d L Roy Ladurie, da re a11va ruta odade dos
foit rün" _ resremunho segun ° e " , , . l
maridos no Languedoc. E Guillaume Bélibasre, o santo cataro, JU gava que
as almas femininas jamais iriam ao paraíso, excero se ant~s reenca.rnasse~ nurn
. . d · · vinham de longe, e nao obstante vanassern
corpo vinf. .. 4S ArHu es ffiiS 6 gmas e d
·~ , · gnavam residual ou prorun amente, a cultura
segundo a reg¡ao ou pals, tmpre '
popular européia. .
No limiar do século XVI. estaríamos, portanro, do ante de u m complexo
· ~ r e anrigos costumes misóginos, pulvenzados em roda
processo de mrerac;:ao en r 05 . . .. . , .
.
a Europa. e o d 1scurs0 de cunho antifeminino, herdeoro da An11guodade classoca e
· mora1en·srá, vulgarizado em escala crescente desde o final da Idade
d a reo 1ogta
Média. Quer nos vol remos para a culmra escrita dos tempos modernos, quer
nos voleemos para 0 universo popular, o que percebe mas acorrer a partir do
século XVI é um movimenro de convergencias e descompassos entre os preceitos
oficiais e as crent;as do cotidiano, tanto em relas:áo a figura feminina como no
tocante afamília, ao casamenro, a religiosidade, aos sen timen tos e as demais esfe~
ras do imaginário e da vida sociais.
Diversas manifesra¡;óes da cultura popular ibérica indicam~nos a existencia
de rra¡;os misóginos náo táo distantes do receiruário oficial. Maria Regina T da
Silva verilicou-os, por exemplo, nas imagens femininas veiculadas nos "folhetos
volantes" - diálogos, estórias e moralidades que circulavam nas cidades portu-
guesas desde o século XVI'' Nesses folheros, "expressóes vivas de urna cultura
popular e tradicional", era freqüente tratar-se da mulher, seus papéis e qualidades,
fun¡;óes e defeiros, mas ora "enalrecendo" a figura feminina, ora aviltando~a, o
rom predominante era sempre misógino. Objeto de tros:a. escárnio e crítica era o
que a aurora denomina .. mulher real"- a mulher sem virtudes, desonesta, peri-
gosa, distante do modelo que deveria guiar a conduta feminina, mulher com
quem os homens jamais deveriam se casar. Amulher "real", mulher do cotidiano,
os folhetos opunham a imagem da "mulher ideal", esposa fiel, máe zelosa e, por
1sso mesmo, valorizada e respeirada socialmente.
Já os títulos desses folhetos dáo-nos bem a medida dos contrastes: encon-
tramos, de um lado, A mulher atrevida e descarada, Malícia das mulheres, Verda-
drira malícia e maldadr
.
· da m u l''ner casada, que teve as ¿·zsptt·
dm mll l''-neres, Despzque
tas com sru mando pelo niio que rer tevar1 · ' · Disputa ¿·zvertl·,¡,a J,•¡
a ver as ¡ttmmartas, "
grandrs.
bu/has
,
qur trve um hom em com sua mul''-ner, por /he niio querer d eJtar · "'1!
fund,fhos n um calrórs velhos' et c.,. de curro, vemos Casamentoperftito, quase uma
. .
r~ploca do lovrete de Dio o p · S d d
g aJVa, egun a carta apologétiaz em fovor e defesa as
129
mais dura tirania dos pais _ depois substituída pela tirania dos maridos". Mo~oil.,
ou sinhás~donas passavam os dias enfastiadas, enclausur~das c~m- suas mucarnas
num autentico "isolamenm árabe'\ abrigadas a urna subm1ssao mw;ulmana
diante de maridos a quem remiam e chamavam 'senhor' :..¡ 7 . ,
tu
gués. E. quanto aos lwmcn.<.,
_ .
únicos que podiam e lh ..
seo er ou reJeltar o casamen-
parcclanl ttr o cora<¡:ao seco ao tratare m de matri • · E .
ro, • . . .. . . . . monlos. sranam a cumprir :a
dverrcnoa dos mor.d1st.1s, dos que v1am no amor 0 úlr· d
a , . liTio os sennmenros~ Ou
eramos !errados que, pelo contrariO, apenas davam eco aos cosrumes sociais~
DA RFCJJ/.\Á!J A V/U/.[NOA
*
-- •
bem, tcndo do pMpriO
11m " " - · 1
1--
~ 0 Jtmcn do homcrn d.do 1 beber "faía querer pode
,_.... .., •
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uc .._ que, da.jando muriD ,
o aJIIOl'
llllllher dcvcría "t~~~ír-tc 1 ele catnalmcnll", retirar o .tnwn de
14l
NoTA~
z. Prado Jr., ( ~aio. FormllfÍÍtJ du llraúl conumpordnto. 17. ed. Sio Paulo, Bruílitonse, 1981 ,
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!fouuhold and Family in l'art 'lime. London Cambridge Univcnioy Pre~o, 1972. A
!elle da fa mUía cxccn&a como rfpica do Antigo Rtgíme foí defendida tobrctudo por
frédcric Le Play, para qucm, antcl da índu1uialíz.a~áo, era comum a exí.&clncía de
larcJ cxtcnma, incluíndo o cual principal, o ca.ul chdiado pelo primoglníto e 1eUJ
filhcJI, além de ourma írmáoa e parcnccaaolceíroa o u deapoaaufdoa. V. Flandrín, Jean~
l.ouí1. Fami!I~J: partntí, mailon, uxualítí áam l'anfitnnt Jodltl. 2. cd. Pari1, Seuil,
19H4, p. 54-57.
8. V., por cxcmplo, Samara, Eni de M. Op. cir .. oobrctudo o ircm ·o miro da mulher
oubmi11a e do marido dominador", p. 57-66, e Corrb, M. Op. cir.. P· 29 • I<P·
9. Frcyrc, Gilbcrro. CAra-granda rtiiZIJin. 16. cd. Río dt j.nciro, )01<! Olympio. 1973, P· 65.
1O. A cxprmáo <de Mariza Corrb, op. cir., p. 36, cmpcnhada cm valorizar." conduw
ahernatívaJ b que uiunfaram hilroricamencc. No cocance ao wamcnro e 1 vida conJupl
nu pauado, vimo1. como parccem Kr fr.lgeU u n~a dale gcnlro, mamo K rd'eridas M
menralidadeJ populara d'ouuora.
., lh'l'
11 . ArJ~:J, · · JOflll
' 1 1ppc. H111druz · 1'- · '·fim'/u 2 cd • Riodt)anciro,z.lw.I98L
1111 ffllln(il t 1111 '11 1' • • da famd'
Arih en mina o longo prouuo, "concluido" no oiculo XVlll. de ~de~
, d , d' 'd 1' , da
burgucJa, pnva a, 1n JVI ua 111a e, aJn • a r,~ .dnCIC do moderno I<OIImcl110
riel Jet . dr la 'fic
V. rb. flandrin, J.-L., op. cir. oobr<rudo o ircm "Le Cadr< malt ft nra
domc11iquc", p. 91-110.
12. Plandrin,J.-1.. Op. cío .. p. 170. oikloo) e;.¡,¡
13. B~rard, l'icrrc. l.c Sexo cnrr< rrodioion ft mndornio! (XVIc.-XVIIIe. ' '"
int.rnatlonaux tlt~orio/st.ít. Vol. 76, 198~. P· 1~9.
!46
33. Essc "privilégio" foi cS[abc~ecido. por Alberto Magno no século XIII. V. Flandrin
Hommc e( femme dans le In con¡ugal. In Le Sexe et 1'0 ·¿ p . . . J-L.
. . . m ent. ans, SeUII, 1981, p. 128.
34. Bolognc. Hutotre de la pudeur. Pans, Olivier Orban, 1986, p. lj,
35. Ddumeau, Jean. Le Péché et la peur. Paris, Fayard, 1983, p. 242 e segs.
36. flandrin, J~l. A vida sexual dos_ casais na amiga sociedade: da douuina da lgreja realida-
de dos componamemos. In Anb, l~ et alii (org.). Sexualidades ociduJtais. Lisboa, Con-
rcx[o;, 1~83, p. ~ 1?,-118. ~s _man~ais ponu~ueses dos séculas XV e XVI. emboca julgas-
sem. su¡as e fc1as as p~slt¡:ocs na~. narura1s, consideravam-nas apenas pecado venial.
V. L1ma, Lana Langc da Gama. Apns1onando o desejo: confissáo e sexualidade. In Vainfas,
R. (org.) Hútória e sexua/idade no Brasil. Rio de Janeiro, Graal, 1986, p. 81.
37. Refcrimo~nos ao Prontuário de Teologia Mora~ obra publicada em Coimbra (1749), apud
Silva, M.B.N. da, op. ciL, p. 161-162. Tradicionalmente, o coito imerrompido era mais
tolerado pelos teólogos nas relac;óes ilícitas do que no casamento.
38. Vieira, A. O p. cit., vol. 9, p. 255.
39. Melo, F. M. de. Op. cit., p. 37: 44-45: 67: 73-79.
40. Pcreira, N uno Marques. Comp2ndio narrativo do Peregrino da Amirica. 6. ed. Rio de
Janciro, ABL, 1939, vol. 1, p. 292-293. (l'edi,áo: 1728.)
41. Apud Vel oso, C.j.R. de. A imagcm e condic;áo da mulher na obra de autores portugueses
da primeira metade do século XVII. In A mulher na socitdadt portuguesa... , p. 263.
42. Melo, F. M. de. Op. cit., p. 35.
43. Apud Veloso. C.J.R. de A. Op. cit., p. 266.
44. Trata-se de frei ÁJvaro Pais, franciscano doutorado em Bolonha, discípulo de Duns Scm
cm Paris, posteriormente bispo de Silves. Sua obra veio a ser impressa em Ulm (1474),
Lyon (1517) e Veneza (1560). V. Veloso, C.J.R de A. Op. cit., P· 261.
45. Ladurie E. Le Roy. MonliliU/ou Vi/lage OccitAn. 2.ed. Paris, Gallimard, 1982, p. 279,282.
46. Silva, Maria Regina N.X.A.T. da. O tema mulher em folhetos volantes portugueses. 1n
A mulher na socittÚtde portuguesa ... , p. 38-54.
47. Freyre, G. Op. cit., p. 338-339: 421.
48. Já os homens eram considerados velhos após os se~enta anos. Y. Ru~d-Wood. A.J.R.
Women and Society in Colonial Brazil. JourntJI of Lttin Amm"ciln StuJin, 9, l, 1977 ·
p. 16. . '
. l l p 1 1 Ibérica (siglos XVI-XIX): una
49. Rowland, Roben. Sistemas matrimoma es en a en nsu a . . d 'd d b
d d D mogr<'f/- Hutónc.. Ma n , =m ro
perspectiva regionaL Actas de las 1}orntJ as e e .. d
1983 - exemplar mimeografado, p. 18~20. Sobre o "padrio europeu e casamentos
tardios, V. Flandrin, J-L. FamiUes ... , p. 184.
50. ANTI/IL., processo 1334. . . ,u&},;. (1591-
Sl · Primeira viJittJfiO do Santo Oficio Al parttJ Jo 81'11Jtl- [)na,,cupn
1593). Sao Paulu, Ed. Eduardo Prado, 1925. P· 309 -310 ·
148
71. Cons~ltamos alguns processos em que salram punidos os maridos por molestarem ou
~asslnarc:",' c.sposas ~a Lisboa do século XVIII. Sc~áo de Reservados da Biblioteca Na·
ctonal de LISboa, códtee 867, n. 1 e códice 853, n•. 160-162.
72. V. Graullc:ra Vicc:me M · · 11
1 R<d d 'A . · u¡er, amor Y motaltdad en la Valencia de los siglos XVI y XV '
n on o, ugwun (otg) Amo 11 · · '"'il
·~ ¡, ) p . p bl' . ·· urs 'gltlm~s. nmotm 11/tgitim~s tn Espagne (XV/e.·A r J t.
SI e es . am, u ICatlons de la Sorbonnc, 1985, p. 111, 114.
149
73. Barros, Joáo ~c. Op. cit. A. 45. Após citar vários códi os ami
Barros conclum que cm Ponugal era "mais á g gos e modernos, jo!io de
" . . . spera a pena e os maridos eram mais duros'".
74. Flandnn, J-L., famdles .. ., p. 40, 124.
75. Braga. 'ICófilu. O povo portuguts nos srus costumrs ,,., J.
Dom Quixotc, p. 20 l. ' rnras r tra irón. Lisboa. Publica.¡:óes
SODOMIA E HOMOSSEXUALIDADE
DA JVLE!IANCIA A HOSTILIDADE
fixando penas infamantes e capirais que seriam a base jurídica das persegui~Oes
lipicamente modernas. . . ..
Em Fran¡¡a, a compila¡¡áo de Tourraine-AnJoU diSpos, em 1246, que todas
os suspeitos de sodomia deveriam ser presos, julgados pelo biSpo e con~enadas a
a
fogueira, semelhanc;:a. dos heréticos, urna vez comprovadas as acusac;:oes. Os li-
vros de "Jostice et Plet", datados de 1260-1270, também chamados de "código de
Orléans", fixavam para 05 homens culpados de sodomia a casrrac;:áo, murih;óes
de ourros membros e, no caso de rerceiro lapso, a marte na fogueira. 20 Na Penín-
sula Ibérica, 0 Código de Afonso, o Sábio, estabeleceu no século XIII que os
culpados de sodomia seriam condenados a morte, salvo se menores de 14 anos
violados por outrem, estendendo-se o castigo aos praticantes de bestialismo, in-
clusive ao animal com que se eferuara o hediondo aro. Também na Inglaterra,
na¡¡áo das mais tolerantes no castigo dos nefandos, urna lei do século XVI fixou a
pena de morte por meio do "sepulramemo vivo" para wdos os que manrivessem
rdac;:óes sexuais com judeus, animais o u pessoas do mesmo sexo. No mesmo sécu·
lo, até mesmo na Irália, cuja "rradic;:áo sodomítica'' ficaria famosa em roda a Euro-
pa, várias cidades estabeleceram leis persecurórias contra os homossexuais, a exemplo
de Bolonha, Floren<;a e Perugia. Suplícios, enforcamentos, afogamentos e foguei-
ra, eis o destino que a crisrandade passou a reservar aos sodomitas em quase todas
as na¡¡óes no ocaso da Idade Média.
No en tanto, o rigor da legisla¡¡áo dos séculos XIII e XIV nao parece ter sido
acompanhado por urna sistemática perseguic;:áo ames dos tempos modernos, em·
bora haja registros de algumas execu¡¡óes naquele período, envolvendo geralmente
homens acusados de outros delitos além da sodomia. 11 Igreja e monarquia dispu-
nham, a rigor, de parcos instrumentos de vigil:incia, com excec;:áo da confissáo
obrigatória estabelecida em Latráo, e dependiam imensamente da aquiescencia
das comunidades em denunciar os culpadas. Mas a reprova~áo popular dos "ho-
mens efeminados" ou das "mulheres-machos" náo parece ter sido, durante muiro
tempo, hostil o suficiente para fornecer copioso número de réus as agencias de
poder. Diversas leis, inclusive as portuguesas de D. Afonso e D. Manoel em ple-
nos stculos XV e XVI, acenavam com premios e gratificac;:óes para os delatores de
sodomitas, 21 .possível sinal de que, sem incentivos, a engrenagem punitiva ficaria
sem réus. Seja como for, a partir do século XV, e sobretudo no século XVI. os
Estados europeos renovaram sua hostilidade jurídica contra os culpados de sodomia
e, insuflados pela propaganda moralista das Reformas, as popula~óes de quase
toda a Europa, católica ou protestante, comec;:aram a despejar, por compulsáo ou
· ·¡ ou d a 1nqu&su;:ao.
vontade, centenas de réus nos cárceres da)u s t"u;:a ctv1 · · - D a [ngla-
161
50MfTIGOS E FANCHONOS
Do século XVI ao XVIII, pelo menos 165 homens, moradores nas mais
diversas regióes coloniais, foram acusados ao Sama Ofício lisboeta de pracicarem
a sodomia homossexual. Referimo-nos a wdos os implicados nas visitac¡:óes
inquisiwriais a Bahia, a Pernambuco e ao Pará, acorridas episodicamente do final
do século XVI a segunda metade do XVIII, e a todos os que sofreram processos
por esse crime ora delatados nas devassas edesiásricas, ora direramente acwados
aos comissários e aos familiares do Santo Ofício espalhados pelo Brasil. E entre
esses casos, mais de 80°/o apresenram dados sobre posic;:áo social, cor, estado civil
e idade, infotmac;:óes suficientes para esboc;:armos, com efeiro, urna sociología do
nefando em rerras coloniais. 44
Somítigos o u fanchonos, havia-os de alto a baixo na hierarquia social, insc-
ridos nas mais diversas ocupac;:óes, desde governadores e senhores de engenho aré
forros, escravos e desclassificados. O grupo majoritário compunha-se da gente
mais oprimida da sociedade colonial, incluindo índios dos aldeamentos jesuíticos,
forros, soldados, marinheiros, vagabundos e, principalmente, criados, uabalha-
dores dependen res e escravos, senda que os rres últimos atingiam, sornados, cerca
de 43% dos nefandos coloniais. Vulnerabilidade, sujei~áo a homens poderosos,
absoluta indigencia, eis as prováveis razóes do predomínio desses homens enuc os
' •
Sommgos co1omats,
· · especta· ¡mente porque, na maaor · par re dos casos envolvendo
escravos e criados, a sodomia era urna conseqüencia di reta da servidáo e da pobre-
za. )á em Portugal era corrente dizer-se que "náo há galinha que náo ponha _ovos,
'd d . , · ldequeapn:sra.¡>ode
nem cna o que náo fosse para cometer so omaa • sana . .
· . . . .d · ., Náo sena d1fen:nn:
servtc;:os sexua1s era obrigac;:áo corrtqueua de cna os e paJcns.
na e 1• . . . d . menos a dos esctavos ...
o oma a sttuac;:áo desses ind1v( uos, ncm multo d h
ca camada e omens
Cerca de 22% dos nefandos penenciam a hererogen
A
. d d
rIVtes dorados de algum oficio, as vezes com forma~ao - rior incluiD o. voga-
supe ' rttSlos e
dos . . -- ~ . varo nesse grupo osa
'Ctrurg1óes e religiosos. No cntanto, pn;uomma
os rrabalhadores livres (1 S%), alguns dos quais eram "nefandos incorrigíveis",
como diziam os inquisidores, que faziam de suas ofi~ina~ ver~adeiros alcouces
homossexuais. Em rudo surpreendente se afigura, a pnme¡ra VISta, o exíguo nú-
mero de padres_ guarro (3%). A que atri.buirm~~ tamanh.a .esc~ssez, senda 0
clero colonial famoso por seu "brasileirismo d1ssoluro , como d1zla Gil berro Freyre,
além de a sodomia ser considerada desde a Idade Média como o "vício dos cléri-
gos"? Com wda certeza, isso nio significava urna excepc~iOI~al ave~sáo dos padres
coloniais as priticas sodomíticas, mas táo-somente a ausenc1a ocas10nal de acusa-
.¡:óes nas visitas inquisiroriais e, fora delas, escassez de processos contra sacerdotes
por esse crime. Carente de clérigos, a lgreja colonial procurou, aoque rudo indi-
ca, resguardar seus quadros contra a Jusri¡;a inquisitorial, ao menos quanto ao
"pecado nefando", pois do contrário talvez ficasse sem ministros. Os famosos
Cadtrnos do nefondo- catálogo organizado pela lnquisi.¡:áo portuguesa contendo
dados sobre wdos os indivíduos citados como sodomitas no mundo lusitano-
deceno conrem copioso número de pirocos ou religiosos coloniais. Segundo nos
informa Luiz Mott, semente os acusados da ordem beneditina no Brasil, nenhum
dos quais processado, aringiram o mesmo número de quatro sacerdotes que apu-
ramos em todo o período colonial. Sem dúvida, rudo nos leva a crer que os nefan-
dos da Igreja eram em número bem superior ao revelado por nossa amosrragem.~ 6
Enfim, perfazendo cerca de 22% dos somítigos, encontramos a grei de
autoridades, grandes mercadores, donos de engenho e fazenda, lavradores,
mineradores ou, ainda, seus jovens filhos e parenres próximos. Eram todos, como
veremos, grandes protagonistas do nefando colonial e, no mais das vezes, fossem
jovens ou homens maduros, apareciam "sodomizando" seus criados e escravos,
ora com a do.¡:ura de amantes, ora com a violencia de senhores.
As informa.¡:óes relativas a cor e a composi.¡:áo étnica dos sodomitas em
parte confirmam, em parte matizam, as impressóes apuradas na análise da posi.¡:áo
social. Os brancos, perfazendo 46% do total, predominavam sobre negros (25%),
Indios {14%) e mestic;os, mulatos ou mamelucos (14%), talvez porque fossem
individualmente mais reconhecidos e observados pelos vizinhos. Ricos ou pobres,
prestigiosos ou miúdos, nao faltava quem os delatasse quando surpreendidos em
atos nefandos. Por out ro lado, o expressivo lndice de negros e Indios compunha-
se menos de homens visados pela populac;ao, do que de individuos citados a pro-
pósito de sodomias.cometidas com brancos, sen do raro, aliás, 0 registro de nefandices
enrre cno~los, afncanos ou nativos. Conclusáo idenrica foi 3 que chegou Luiz
Mott analuando u.m elenco de 46 somltigos de cor em seu artigo "Relac;óes raciais
entre homossexuau no Brasol Colonia": a imensa maioria desses nefandos apare-
17]
morais e sociais acabariam por arruinar as "imunidades" que homens ricos corno
Delgado gozavam na ColOnia lusitana. Acus~do em Lisboa por um ~~-amante
arrependido, seu caso passaria a interes.sar .mals de perro ao. Sant~, Qf¡c~o, resul-
tando na prisáo e no processo do ex-viO!etro em 1689. Belrava pos cmqüenra
anos quando, encarcerado em Lisboa, teve que defronrar-se urna vez mais com a
torrura e a puni.;áo inquisitoriais.
Comamos, assim, com numerosos exemplos de homens maduros que,
fanchonos ou somítigos, solteiros ou casados, J.s vezes experimentados na vida
nefanda dos "guetos" europeus, estiveram a cultivar seus prazeres eróticos no tró-
pico. Se náo chegaram a construir um "mundo de fanchonos" comparável ao de
Lisboa foi porque faltavam a Colónia as condi.;óes objetivas e, quem sabe, a ne-
cessidade para tanto. Mas nosso retrato dos personagens ficaria incompleto, qui~á
tendencioso, se excluíssemos a "plfiade" de jovens fanchonos que, a exernplo dos
amantes de Luiz Delgado, gravitavam em torno de somítigos mais ou menos
poderosos: esrudanres, criados, mo.;os, pajens que, longe de serem coagidos ao
"abominável pecado", mal disfan;avam sua alegria de vivero que alhures era cha-
mada de "belo vício". Mas náo tenhamos ilusóes a esse respeiro: o mais das vezes,
o cotidiano da sodomía era menos alegre do que próximo a opressáo e a pobreza
que sempre marcou o Brasil colonial.
uns aos ouuos, ora na oficina do sapateiro, ora na casa de um cerro AntOnio
Bezerra, a quem servia o "Pereira'\ um dos amantes de Lcssa. A camarilha do
sapateiro afigura-se-nos, assim, como um dpico grupelho de fanchonos unidos e
contuma':es na práuc~ do nefando, e useiros a requestar moleques e rapazolas de
qualquer 1dade e cond1~iío tiío lago vislumbravam a possibilidade de, no mínimo,
urna masturba~áo a dois.M
179
nháo, Francisco Serráo de Castro seria, ainda, um ríp1co scnhor colonial: abusava
sexualmeme dos escravos e impedia-lhcs de "freqücntar missas, rezar o rer~o e
aprender a Dourrina", conforme acrescentou o aloxicongo Joáo "Voltciro", teste-
munha convocada pelo visitador Geraldo José de Abranches cm 1767.''"
0 abuso de poder em maréria sexual e sodomítica náo se restringía, porém,
a casa-grande e a senzala. Praricavam-no todos, desde u m simples sapareiro em
sua modesta oficina ao próprio governador, a excmplo do célebre Diogo Botelho
no inicio do século XVII. Conta-nos frei Vicente que, táo logo chegou a Bahia,
Diogo Botdho mandou remover o pelourinho da prac;a, cm frente ao palácio do
governo, alegando que aquilo lhe recordava um episódio dcsagradável, quando
esteve abeira de ser degolado por traic;ao, só escapando da morte por ter esposado
a irma de um secretário da corte. Da vida pública de Diogo Botelho constam,
ainda, a repressao de um quilombo no rio ltapicuru, para o que se valeu dos
Indios chefiados por Zorobabé, e o apoio aobra missionária dos jesuitas, segundo
informa~óes do mesmo frei Vicente." já Sebastiáo da Rocha Pita, costumeiro em
louvar aumridades, náo viu na administrac;áo de Borelho "norícias de que fazer
particular mc:mória", tc:ndo em vista a "rranqüilidade" entáo vigente no Brasil. 70
Eis, portanto, alguns tra~os da vida pública do governador: seu horror ao
pdourinho, combinado a repressáo dos quilombolas e ao "espirito missionário".
Ficarlamos, pois, com esse retrato oficial, náo fosse a confissáo de Fernáo Rodrigues
de Souza, ex-pajem do governador, ao visitador Marcos Teixeira em 1618. Fanchono
e libertino, Diogo Botelho promovia verdadeiras orgias nas "casas d'el Reí", co·
mc:r~n.do nc:fandicc:s, "ora como agente, ora como paciente", Dessas orgías palacianas
partlclpavam desde funcionários da administra~áo pública até criados, pajens e
filhos de guardas. ' uns por vantade: pr6 pna,· arendendo aos convttes· d o governa·
dar,. outros obngados pelo hom em maJS· po deroso da Col6nia. Somftigo ·mveterad0 •
D10go Botdho era ainda um • · .
.. autentico voytur, abrigando homens a de1tarem em
sua cama para se provocar e incitar" ao nefando, o que: de faro fazia com dais ou
trl:s fanchonos ao mc:smo tc:m 11 A · . · · ..
.
de D 10go B lh h po. SSiffi transcorna a "tranqüila" admmiStra~ao
ate o, omc:m qu • h .
e nao c:snou cm converter sc:u palácio governa·
181
· d
apa1XOI13 O,
l'ICOU taO
- d CSl:O
. nsohdo
'
ao ver~sc abandonado
' . .
por" Jos~ Con-;alvcs
_
qu C
se recusou a lavar a roupa da cama em que donllla, diZCIH_fo que a nao mandaria
lavar enquanro o náo tornassc a ver". Exccpcionais porql~c, ;\ ~Himdra vista, as
relac;óes entre homossexuais pareciam paurar-sc na busca ~mediata de prazcr, na
rotatividade de parceiros, numa circulac¡:áo de corpus ma1s accnruada do <-lUC a
vigenre nas relac¡:óes hererossexuais. Quasc idc?ntica fOi a cor.Klusáo de Rafael Car-
rasco sobre os sométicos valencianos: "pareccm pcssoas unJcamcJHc preocupadas
com sexo ... "7~ Mas náo seria essa imprcssáo, ao menos cm parte, u m resultado dos
processos inquisitoriais, montados náo para desvendar "a fetos nefandos", senáo
atas, cópulas anais e poluc;ócs? 7(o
Seja como for, nossos amigos nefandos jamais dcmonstraram grande Jo/i-
darirdadr defensiva em face da terrfvd amca<;a que pairava sobre todos. f-iéis as
rfgidas hierarquias da ColOnia, longe estiveram de csboc;ar qualqucr "conscil:ncia
grupal". Aferivos ou secos, prcpotcnrcs ou frágeis, assim se comporravam os
fanchonos, dependendo da posi<;ao que ocupavam na sociedadc. Nada os distin-
guia do restante dos homens, cada qua! no seu dcvido lugar, senhor o u escravo,
governadorou pajem, branco ou mulato, exceto a prática da sodomia, que repitamo-
lo, tornava-os inimigos capitais da Contra-Reforma no rrópico.
MULHERES NEFANDAS
veludo" - resolveu sair com cerco homcm, o que lcvaria sua amante a inrcrpclá-
1a na porta de casa ao gritos de "vcl haca.1 (... )· Quan tos beijos dás a seu .ooxo
] doe
abra~os nao me dás u m?! (... ) Niio sabes que quero mais a um cono [vagl¡na c.
. L. ....gando-a p< os ca~><·
que quantos caralhos aqui há?!" Disse rudo ISSO aos ocrros, •· . . h A b · a
1 · boc. • avista dos Vllln OS. ng
os, trazcndo-a porta adentro com a~01tcs e "'roes d · ·
~ . . O m o des~erro a capnama
01 parar no }uízo Eclesiástico, que as pum u em l5S co .. . do un•
. F ncisca lol viSta passan
- sentcn~a aliás nunca cumprida. Pouco depOis. ra d fa · ""'" ri-la de
recado para Isabel a modo de reconcilia~iio, dizcndo quc ru 0 na r-
11\Ul'll U lJ\)~ l'lCAOos
186
volra. O caso náo prosseguiu, porém, e Isabel Anrónia morrena ames da chegada
do visitador.'!!~
Mas a grande fanchona da Bahia, se assim podemos chamá-la, loi a tal
. d e Souza, aman 1e da ousada Paula de Siquwa. feltpa
Fel1pa . era mulher
. . simples ,
que "ganhava sua vida pela agulha", fora viúva de u m pedretro e VJVJa casada com
um modesto lavrador. Apesar de duas vezes casada, adora va mulheres e sempre a.s
procurava, conforme dizia, "pelo grande amor e afei~áo carnal ~ue semi a" quando
as via. E, com efeiro, náo perdia oponunidade alguma de corteJar, agarrar e deilar
com todas as que lhe atravessavam o caminho. Foi assim com f\1aria Peralta,
jovem donzela de 18 anos, com quem se abrigou cena vez na casa de um tal
Gaspar da Vila Costa; com Paula de Siqueira, a que m cortejou de todas as manei-
ras; com Ana Fernandes, casada com um ferreiro, a quem agarrou e beijou nos
muros do mosreiro de Sáo Bemo, convidando-a para dormirem jumas; com Ma-
ria Louren\O, casada com um caldeireiro, a quem abrigou cena noite, ao tempo
em que os ingleses saquearam Salvador. Nes[e úl[imo caso, conforme o re !aro de
Maria, logo depois do jamar, Felipa come~ou a falar "amores e palavras lascivas
melhor do que se fosse um rufiáo asua barregá, e lhe deu muiros beijos e abra-
~os", antes de levá-la para a cama. Na noite seguinre, Felipa chegou a fazer-se de
"doente da madre" para que Maria fosse a sua cama e romasse, para "curá-la", o
lugar do marido ... Pelo que confessaram suas parceiras, Felipa "se gabava" muito
de ter mulheres e sempre diiia 3.s amanees que "namorava e tinha damas" e, na
descri\áo do visitador, era "useira e m cometer e namorar mulheres". Se m dúvida,
Felipa de Souza era, de longe, a grande nefanda da Bahia e receberia, entre as
acusadas, a mais dura pena do visitador: a~oites e degredo perpétuo para fora da
capitania. 86
O universo feminino da Colonia também incluía, portanto, o nefando.
Praticavarn-no as mocinhas em meio aos risos e as
brincadeiras infanris, bem
como as raparigas cheias de desejo, mas que nao queriam ou' nao podiam perder
a honra de virgens. Praricavam-no, ainda, algumas mulheres casadas, ralvez em
busca do prazer que seus maridos nao davam. E praticavam-no, enfim, algumas
mulher~ por op~áo homoerótica: "por afei~iío carnal", como Felipa de Souza, o u
por pa1xao, como Francisca Luiz.
Fanchonos ou mulheres nefandas, os indivíduos que vimos transgredir 0
uso natural do corpo cairiam, a partir do século XVI, na al~ada do Santo Oficio
em todos os domíntos do tmpério lusitano. E, assim como eles, também os que se
casassem
. maJS
.. de urna .vez na igre¡· a sen d o vtvo
· o prtmetro
· · conJuge,
• . os d e1enso
< res
da forntc~ao, os questlonadores da primazia do celibato eclesiástico o u da virgin·
. 05 confessores mal afeitos ao sacramento da penitencia, os aman-
d de M arta.
da e l encantadas, os blasfemos, as feiticeiras, muitos cairiam na teia do
de pa avras
«' , 'd No rempo da Contra-Reforma, ainda que no trópico, a imoralidade
· qu!SI d'or. · com a descrem;:a ou, ma1s
10 · precasamente,
· com a heresta:
· escolh a
confun ¡r-se-ta . .
. de um cammho pengoso.
consctente
TRÓPICO oos PECADos
188
NOTAS
ConSh.NÚ(Óts Primtir4l do Arctbispado da &hia. Sáo Paulo. 1853. Livro V, título XVI,
l.
parágs. 958-959. . .
Foucauh, Michel. HiJtória da stxUillidadt. I. A vontadt dt saber. R1o de jane1ro, Graal,
2.
1977. p. 43.
3. Boswell, John. ChriJtianity. Social Toltranet and Homosrxuality. Chicago and London,
The Universiry ofChicago Press. 1981. p. 96~97. Teólogos como Orígenes e Ambrósio
fizeram idemica leitura "náo sexual izada" da destruit;áo de Sodoma.
4. V. 1 Cor 6,9 e 1Tin 1.10, e ainda, Aries, Philíppe. Sáo Paulo e a carne. In Béjin, A. (org.)
Scnuzüdmks ondmtais. Lisboa, Contexto, p. 48-49.
5. Aries, P. Reflexóes sobre a história da homossexuaJidade. In Béjin, A. (org.) Op. cit., p.
77.
6. Gilbcn, Arthur N. Concepcions ofHomosexuaJiry and Sodomy in Western History.In
Licara, Salva[Ore J. e Petersen, Roben (org.). Historical Perspectives on Homouxuality.
New York, Hawonh Press lnc. and Srein and Day Publishers, 1981, p. 64-65.
7. Boswell, J. Op. ci1., p. 137-138:316.
B. Gilben, AN. Op. cir., p. 62.
9. Foucault, M. Hiltórill dA saua/itlade. II. O uso dos praures. Rio de Janeiro, Graal. 1984,
p. 187.
10. Embora os autores tratem do assunto em outro contexto, exuaímos essa no~jáO de Fry.
Peter e MacRae, Edward. O que i homosuxualidade? Sáo Paulo, Brasiliense, 1983 (Cole-
~áo Primeiros Pass os), p. 44 e segs.
11. Carrasco, Rafael. Inquisición y represión sexual en Va/incia. História de los sodomitas (1565-
1785). Barcelona, Laenes Ediciones, 1986, p. 48.
12. Apud Lever, Maurice. Le1 Búchen dt Sodome. Histoires des "inf:lmes". Paris, Fayard. 1985,
p. 85.
13. Cllncionriro geral de Garcia de &unde. Nova edi~jáO preparada por A. J. Gonplves Gui-
marács. Coimbra, lmprensa da Universidade, tomo IV. p. 158.
14. Apud Mon, Luiz R. B. Da fogueira ao fogo do inforno: a alfo"ia do lesbianismo em Portu-
gal, 1646. Comunica~o aprescntada a lntcrnational Conference on Lesbian and Gay
History. Toronto, 1985, p. 2.
15. Carruco, R. Op. cit p. 103-105.
16. Silva, AntOnio de Morais. Dicionárioáa Llngua Portugutsa. Lisboa, Typografia Lacérdina,
1813, lomo 11, p. 10.
l7. ~arr~co, R. Op. cit., P· 27. A palavra puto era wada nessc sentido cm vários lugares.
mclw1vc cm Ponugal.
18, Boswell, J. Op. cir., p. 283 e sep.
189
52. ~enunciafót~ da Bahia, p. 407-408. ]imbanda era o termo do Congo e da Guiné cquiva-
e.ntc .ao qurmban~~ dcscriw por Cardoncga: ambos aludiam, no mlnimo, a homens
cremmados que se vcstiam de mulhcres".
53. MoH. L.R.B. Pag~H.k pon_ugul:s .. ., p. 129-130. O travcS(ismo nunca foi
ma prática dr.: ong~:m afncana. Mou fala-nos de vári ' no entamo,
u XVII 1 . . os portugueses que o praticav
nos sé~ulos ~V.l e assu~ como V•ccme Graullera, que arrolou alguns casos::
,
VaiCncl_a. Mu¡c•. amor y ~(~r-ahdad en la ~al~~ cía de los siglos XVI y XVII. In Redondo
Augusun_ (o~g.) Arnotm !eg1tntw, nmozm t!legaimes en Eipngne (XV/r.-XVI/r. sihlrs). Pa:
ris. Pubhcau_c~ns d~ la Sorbonn,e,_ 198~, p. ~ 15-116. Também Gruzinski informa-nos
sobre uavcsm mcxJClnos no McxJco scJscenusta, inclusive Indios. Op. cit., p. lGS.
54. ANTI'/IL., prowso 6702.
55 _ Conflssóes da Bahia, p. 354-356. A palavra umualera rambém usada no sentido de "im-
pudico, lascivo, carnal", além de "atraen te", ele. V. Silva, A. de Morais. Dicionário... , vol.
2, p. 687.
56. ANTf/IL., processo 4307.
57. Id., processos 1151 9 (Salvador Romeiro) e 12937 (Pero Marinho Lobera).
58. Mon, L. R. B. Desventuras de um sodomira portuguts no Brasil seiscemisra. Comunica·
~áo apresentada ao l Congrcsso Luso·Brasileiro sobre a Inquisi~áo. Sáo Paulo, 1987,
ANTI/IL.. processo 4769.
59. Flandrin, J-1., Le Sexe et /'Occident. Paris, Seuil, 1981, p. 237.
60. Primeira viJitaráo... Confissóes de Pernambuco (1594·1595). Recife, Universidade Federal
de Pernambuco, 1970, p. 136-1 37.
61. ANTI/IL., processos 6358 (Antonio de Aguiar) e 11080 (MarcosTavares) além da con-
fissáo de Bastiáo de Aguiar em Confissóes da Bahia, p. 88·90.
62. ANTI/IL., processo 14326.
63. Flandrin, J-L. Op. cit., p. 256-257.
64. Vários deles foram processados e punidos por Heitor Funado de Mendon~a. o que nos
permitiu a reconstitui~áo de seus ligames. V. ANTI/IL., processos 8473. 2552, 11208,
6349 e 2557.
65. Id., processos 11061 e 7467.
66. Srgunda visitaráo... , Confissórs r Ratificarórs, p. 444-446.
67. ANTI/IL., processo 10426.
68. Livro da visitaráo do Santo Oficio da lnquisiráo ao Estado do Grio-Partl (1763-1769)
Petr6polis, Vozes, 1978, P· 261·265. ANTI/IL.. processo 12894.
69· Salvador, Frei Vicente do. História do Brasil (1500-/627). 6. ed. Sio Paulo, Mdhora-
mentos/!NL, 1975, p. 287 -288; 297. . ·.wus~
70 · Pita, Sebastiáo da Rocha. História da Amíric11 portupt'SII. Bdo Hortz.onte, ltau '
1976, p. 1OO.
71. Srgunda visitaráo... , Confissórs r Ratificafárs, P· 38°-3 84 · . . N · ¡
72 H . Paulo Companhoa Ednora _... '
· olanda, Sérgio B. de. Visáo do p,,./so. 3. ed. Sáo '
p. 323.
192 TROPJCO "'" PEI:.\Do¡
Michd Foucaulr
¡;A f' 1 TU l. IJ 6
, ·e
.
d a 1greJa.
- d
as mannesra~oes a cu u
· s que exrrapolavam os preceiros do catolicismo e perseguir
barer os sab eres eru d J1o . , .
Ir rae da religiosidade populares medutiveJS aos dogmas
. . . . ,.
'al nte as práticas mágicas, a feaH;ana e as !deJas ou palavras
espeCI me , .
"erróneas".2 Exemplo norável de sua aruac;áo nesre ulumo ponto, vemo-lo no
admirávellivro de Cario Ginzburg, O queijo e os vermes, ande se descreve o triste
destino de Menocchio, simples moleiro friuliano processado por suas idéias sobre
a Criac;:áo, 3 Igreja e os sacramentos, mistura original de crenc;as populares e valo-
res eruditos característica da religiosidade camponesa. 3
E, ainda como tribunal religioso, porém submetida a auroridade dos reis, a
lnquisi~áo ressurgiria na Espanha, em 1478 - onde havia o importante prece-
deme do tribunal aragones no século XIV- e, por extensáo, em Portugal, ins-
taurada por D. Joiio III no ano de 1536. Duas grandes distin~óes marcariam, em
princípio, as lnquisic;óes ibéricas em relaijáO a congCnere medieval e a Inquisic;ao
papal: a primeira, já mencionada, reside em que o Santo Ofício ibérico se organi-
zou como tribunal eclesiáscico diretamente subordinado 1t monarquia; e a segunda
repousa em sua conhecida obsessiio anti~semita, razáo ou pretexto da própria insta-
la~áo dos rribunais em Espanha e Portugal'
A sistemática persegui~áo dos chamados cristáos-novos - judeus conver·
tidos ao cristianismo e suspeiws de "judaizar" em segredo - foi, sem dúvida, o
rra~o distintivo e peculiar das lnquisi~óes ibéricas, respondendo pela grande maioria
dos réus processados e executados entre o último quartel do século XV e a segun-
da metade do XVIII.' Mas, como já indicamos em ourros capítulos, os ecos da
Contra-Reforma também se fizeram ouvir em centenas de condenacróes
inquisitoriais espanholas e portuguesas a partir de meados do século XVI, lindo o
Concilio de Tremo. Herdeiro das decisóes tridentinas, o Santo Ofício voltar-se-ia,
de um lado, contra o avan~o do "luteranismo" na Península, fosse ele real ou
quimérico, conforme a regiiío; de outro lado, aderindo ao pro jeto aculrurador e a
onda persecurória que, esbo~ados nos séculos XIV e XV, varreram o conjunto da
Europa moderna, empenhar-se-ia na depura~áo das mentalidades populares, na
demonizacráo dos sincretismos religiosos, na persegui¡;:áo as "ofensas morais" a
família e aos "abomináveis dese jos heréticos".
As tarefas desse genero, inscritas na estratégia de acultura~áo popular, se
dedicariam os poderes do Ocidente tanto nos países católicos como nos proresran·
tes, ocupando a aten~áo de inquisidores- onde os havia - , jufzes eclesiásticos
ou magiStrados civis. Na Fran~a, milhares de feiticeiras seriam julgadas e conde-
nada. pelos "p ar 1amemos" reg10na1s
· · (rribunais mistos)/' enquanro a Inren d'ncia
e
de Lula XIV aprisionaria centenas de bougm utilizando agentes especiais - a.s
mou •
ches homens de físico
.
atraen te infiltrados no bas-fond · .
pans1ense com 0 fito de
vocar homossexuaJs. Na mesma Fran~a de 1630 - f ¡ .
pro . . , . . ~ nao a rana urna tal
"CompagnJe du Samr-Sacrement , tnclumdo nobres • burgueses, magiS[ra . d ¿._
05 1
plomaras e ourros segmentos da elite decididos a comer heresias e indecen~ias·
usava "os pi ores méwdos da Inquisi\áo", nas palavras de Maurice Lever, introdu~
ll.ndo~se nas famílias, espreitando, denunciando ' violando correspon d"enctas,
. per-
seguindo, atua~do na ~ombr.a "p~r~ resrau:ar urna ordem católica" no país.7 Na
Inglaterra anglicana, rnbuna1s rellgwsos e JUÍzes civis se alrernariam na rarefa de
vigiar os costumes e a religiáo popular8 e, se foram complacemes coma sodomía,
agiriam com algum rigor em relac;áo :ls feiticeiras, queimando-as em apreciável
escala na época de Cromwell.' E o que fazia o Santo Ofício espanhol ou porru-
guCs em rela~áo a sodomitas e bruxas- processando vários, queimando algumas
- fá-lo-ia muito mais o temível Consisrório, verdadeira "inquisi1¡:áo" calvinista
organizada na Suíc;a dos seiscenros. 10
As atitudes policiais e repressivas da moderna lnquisir;áo, ibérica ou roma-
na, imegravam o vasto painel da violenta pedagogía cristá posta em prática no
Ocidente. E quanto aos chamados métodos inquisitoriais de inquirir e processar,
longe esriveram de ser u m privilégio do Santo Ofício. O cerirnonial do segredo na
formac;áo dos autos, o acolhimento de rumores ou denúncias imprecisas, o anoni-
mato das testemunhas, a prática da cortura na obrenc;áo de confissóes, e a própria
confissáo como máxima prava de Justic;a, eis os mecanismos utilizados afarra por
inquisidores e juízes seculares em toda a parte, embora a natureza variável dos
crirnes conduzisse a importantes diferen~as no método de julgar.
O emprego da tortura, em particular, utilizada em réus negativos ou "vaci-
lantes" contra os quais havia muitas acusa~óes, era um ptocedimento judiciário
previsto nos códigos de roda a Europa. Na legisla~áo francesa do século XVII.
regulamentava-se o momenw de aplicá-la, a durac;:áo, os usos, os instrumentos, o
comprimen ro das cordas, o peso dos chumbos, o número de cunhas, as inrerven-
~óes do magistrado e outros detalhes. 11 O mesmo ocorria em Portugal pelo menos
de5de as 0 rd enayóes Manuelmas . - antes, portan r°• do wabelecimento
.. , . da
In · · - .. ova¡· udaoana era tal que
qu1su;:ao. A preocupa¡yá.o de uuhzar a tortura como pr
•e ¡· "d s sessóes de tormento ao
recomendava naquelas ordenac;:óes náo ap acar segua a .
rnesmo réu, de modo a evitar-se a ratificac;:áo de urna falsa confiss;io umcamente
rnovida por " d d d " 11
me o a or . n ercebida como injusta,
lnfqua aos olhos de hoje, e já no século XVI P . d
dos . . Antigo RegJme o que urna
umana e meficaz 13 a tortura nada maas era 00 . ó ·
ca . ' . s ecial de mterrogat no.
racrerfsnca burocrática das Jusri¡;as e urna récmca e P
TROP!Cü Dos PECADos
198
205
BIGAMIA
SODOMIA E MOLICIES
211
. b, . d"
cumenros se segmram aqueles textos astcos, ora 1spon do sobre deralhes
, . da nova
"missao" anri-sodomftica- a quesrao da prisao e do julgamenro de dengos .. por
exemplo - , ora examinando dúvidas gerais sobre como proceder nessc cn~e.
Qua1s, sodomitas deveriam merecer a rogue1ra.
e . ' S . . usro condená-los em pnmu
ena 1 . . )'16
la d · s com os r<tncodenr<s.
'Psu o u, a semelhan~a dos hereges, usar e ngor apena fa lh ·
. . "d fa« da tan: que es tn-
Muiras seriam as dúvidas dos mqu1s1 ores c:m . ·~
. , .. fandos Slgnmcava proc<-
cum b 1ra o papa. De um lado, descobrir e mqUJnr os ne . ~
d ¡fi nem~io anal com emossao
er contra os culpados de u m aro sexualespec leo: a pe lh res
de semen, fosse entre homens (sodomia perfeita), h>SS< entr< homens. mu •
. . e . ) D outro lado, descobri-los também significava, canfor~
(sodomoa omperreota . e . d. 'd ..,,
. A ·1· decifrar pecados entre m JVI uos do mesmo se
·á dizJa 0 Doumr nge te0 • . , xo,
J . l achos _ idéia que perpassava m umeros textos alusivo ,
parncu armente entre m . ~ . . . sa
. le'sria soctal subversao e heres1a. Da leltura do Regomen
sodomta enquanco mo ' . . . ro
de 1640 fica-nos a clara impressáo de que o alvo pnvolegoado do Santo Ofício
eram 05 homossexuais contumazes, escandalosos e irre_verenres e m face do poder,
tolerando-se 05 que só eventualmente rivessem comendo o nefando, os menores
de 25 anos, 05 que confessassem voluntariamente, ere. Variada casuística foi ali
estabelecida para vasculhar a vida sexual do indivíduo incriminado por sodomia,
examinar 3 publicidade de suas atitudes, seu drama de consciéncia, sua disposis;áo
em colaborar com os inquisidores, sua convicc;:áo no erro, seu arrependimento,
seu medo." Mas nem por isso o Regimento explicito u qualquer diferen~a de trata-
memo entre as sodomías horno e heterossexual. Sodomía, crime herético de
"fanchonos"; sodomía, cópula anal consumada entre quaisquer indivíduos: entre
essas duas concept;óes oscilava a visáo inquisitorial do nefando.
Oscilante entre a perseguic;áo empírica aos homossexuais e a condenat;áo
teológica do coim anal, o Santo Ofício recorrería, por vezes, a noc;:áo de molícieno
dia a dia de sua prática judiciária. Molície era o nome dado pela teologia moral a
va.uo elenco de pecados contra natura que náo implicassem coito anal o u vaginal,
a exemplo da masturba~áo solitária o u a dois, da fela~áo e da cunilíngua. Theodore
Tarczylo se lhe referiu como sinónimo de sensualidade, "indício de um perigo
próximo as piores torpezas" no entender dos teólogos, em particular a polu~áo
volunrária. 58 A molície aludía, portante, a urna ampla gama de atas homossexuais
ou heterossexuais relacionados com a poluc;:áo sine coitu, a maioria dos quais
desinteressante para a lnquisi~áo, que preferia deixá-los a cargo de confessores e
curros juízes. Recusando~se a julgar carícias conjugais ou masturbac;:óes juvenis, o
Santo Ofício excluiria a molície de sua jurisdi~áo no Regimento de !613, reco-
mendando aos inquisidores que de modo algum recebessem denuncia~óes de se·
melhante pecado. Mas, prova sintomática de sua hesita<;áo, o Santo Ofício náo a
excluiria [O[almence: que os inquisidores concinuassem a uatar de molícies se,
julgando casos de sodomia, viesse abaila a ocorrencia daqueles aros e polu~óes."
A quais molicies se referia o Regimento? Molicies que preludiavam o coito anal
homossexual e heterossexual? Molicies que substituíam e adiavam a sodomia con·
•umada entre homens? Aros impuros entre mulheres? A incerteza teórica dos
inquisidores iria espelhar-se, doravante, em vários de seus julgamentos. .
Se já revelavam dúvidas sobre como processar os nefandos masculinos, se ¡á
hc.itavam entre 0 acusado da cópula anal e os fanchonos. ficariam compleramen·
113
42 . As vezcs era chamada de molinismo na própria documc:nt;u;áo Ím]UÍSÍ[Orial (!?). Mas con-
vém lembrar que molinismo era a doutrina do também jcsu~ta L11iz Mo/ina ( 1535-1 GOO),
expocnre da Baixa Escolástica cspanhola, ~ue a~r~ava a hbcrd.adc .d~ homem frente a
gra~a e apresciCncia divinas. Ele cscrcvcu amda.v:mos tcx.[Os s~brc a cuca da coloniza~áo,
Cf. Hoffner, J. Colo1liznf'ÍO<r1Hlllg<ihu. 2. eJ. Rto de Janmo, 1rcscn\'a, 1977, p. 240-24 1.
43. Andrés, Melquíades. Alumbrados, crasmisms, luteranos y místicos, y su común denomi-
nador: el riesgo de una espiritualidad más intimista. In Alcahi, A. ct alii. Op. cit., p. 373_
409.
44. Molinos, Miguel de. Guia tspiritlln.l... (1675). Madrid, Nacional. 1977. foi nove vezes
reeditado cm várias linguas no século XVIII.
45. Edita! censurando 0 2. tomo do livro Máximm tspirituais de frci Afonso dos Ptazercs,
impn:sso pela l. vezem 1737. e pela 2. cm 1740. BNL. Se~áo de Resctvados, códice 853,
fls. 70-73. Censurado por "inuoduzir o molinismo e o quietismo tantas vezes proscrito e
condenado pela mesma lgreja". ANTT/Inquisi~áo de Coimbra, proccsso 957. Agrade~o
a Luiz Mon pelos dados desse processo, além de outras informa¡;óes sobre o assumo.
46. Examinamos em detalhe o extraordinário processo de madre Joana Maria de jesus, freira
portuguesa condenada em 1720. ANITIIL., proccsso 8290. Nao encontramos nenhum
caso de molinosismo para o Brasil nas listas de autos-de-fé lisboetas.
47. Apud Silva, Maria Beatriz N. da. Sisttma dr casamrnto no Brasil colonial Sao Paulo,
Edusp, 1984, p. 123.
48. Dcdieu, j-P. Le Modele sexuel ... In Bennassar, B. (org.) Op. cit., p. 311-312.
49. V., por cxemplo, Alega~áo de direito em que se mostra penencer o conhecimento do
crime de bigamia privativamente aos inquisidores. BNL. Se~áo de Reservados, códice
730, ns. 184-224.
50. 1/qimrnto... (1640), Liv, lll, titulo XN, parág. l.
51. Cdt/igo Filipino... , Liv. V, titulo XIX.
52. Percira, Nuno Marques. Compindio nílmzlivo Jo Ptrtgrino Ja Amlrica. 6. ed. Rio de
Janeiro, ABL, 1939. vol. 1, p. 132, referindo-se apenas as transgressóes contra o sexto
mandamento cm geral.
53. Carrasco, Rafael. lnquisiddn y rtprtsidn stxual tn V./rncia. Barcelona, Laertes Ediciones,
1986, p. 42-43.
54. "lribunale Pcrfectum (sive) Comenraria de Regimcn Sancti Officii Regni Portugal. ANTfi
Consclho Geral do Santo Oficio, quota 123.
55. Coletório de Bulu e Brev<s Apostólicos ... BNL. Se~ao de Reservados, códice 105 A.
n•. 75-77.
56. Carta ~ cardeal Milino (... ) para o hispo dom Fernáo Martins Mascan:nhu sobre o
enrcnd•mento do Breve de Pio IV. Colctório... , fl. 80, verso.
57. 1/qim<nto... (/640), Livro lll, tirulo XXV.
58 · Tarczylo, Thcodorc, Sru" libmi•u Sih:lr drs Lumi~rrt. Paris, Presses de la Renaillancc.
1983, p. 103.
O SANTil ÜI'/Citl NOS DoMINIO~ IIA MORAl.
219
dos crimes que deviam ser notificados ao Sama Ofício, o u mesmo os indícios de
rais crimes, a exemplo ~.o~ costu.~es suspeiros de cripwjudaísmo: escusar-se de
comer carn~ de por~o,, JCJUar o J~JU~ da .r~inha Esther", rezar ora~óes judaicas,
gua rd:~.r
•
0 sabado ... A epoca da pnme1ra V!Sltará.o utilizava-se 0 mon·t, ·
. . . T ' . 1 OCIO orga-
nizado porO, Dwgo Sdva em 1536, acresc1do das mcumbencias assumidas pelo
Sanco OfíCio nas decadas segumtes, e nele náo fahava nenhum dos delitos morais
a
e sexuais que vimos penencer Inquisi~áo, inclusive a besrialidade e a molície,
posteriormente excluídas da jurisdi~áo inquisitorial. 13 Fixava-se, pois, um extenso
roreiro de "pecados heréticos", mecanismo essencial para provocar 0 auro-exame
da comunidade, atemorizando-a e estimulando sua colabora~áo com o poder.
Enfim, fe itas as admoesta<yóes, o visüador anunciava o tempo da Grara, período de
até trinta dias em que os confirentes espontaneamente apresenrados ficariam Ii-
vres de penas corporais e do confisco de bens desde que fizessem plena e verdadei-
ra confissáo de seus erras. Assim agiu Heitor Furrado de Mendon~a. assim agi-
riam os visitadores inquisiroriais. Por meio de coa~óes, censuras e roteiros de
culpas, proporcionavam urna "forre experiencia visual e auditiva as popula~óes" e
avivavam a memória coletiva de acordo com as verdades da lgreja. 14
a
Outras visita<;:óes inquisiroriais seriam enviadas ColOnia no decurso do
século XVII, embora só conhes:amos a documentas:áo da acorrida em 1618-1621,
efetuada pelo licenciado Marcos Teixeira na Bahia, José Gons:alves Salvador faJa-
nos de duas visitas enviadas a Pernambuco e as
capitanías do Sul, ambas em
1627, 15 e Anita Novinsky examino u denúncias e processos da "grande inquiri~áo"
realizada na Bahia, em 1646, sob encomenda do Santo Ofício e ordens do b1spo
D. Pedro da Silva. 1G Mas a partir de meados dos sciscemos, rudo nos indic~ que a
Inquisi¡;áo portuguesa deixou de enviar visitadores especiais para o Brastl. com
exce<yáo da extempor.inea visita~áo do Pará, Maranháo e Rio Negro, con.fiada a
G Id J ' d Ab h 1763 e 1769 17 O quase rotal desaparec¡menro
era. ~ o.se ~ . r~~c es, ent~e . 'culo XVII náo si nifi~
das VISitas mquiSitonaiS ao Brastl na segunda metade do se .. . g .
cou, conrudo, decréscimo das atividades do Santo Ofício na Coloma, nem fol
e .. . e
renomeno exclusivamente colomal. lnrorma-nos rancl
F 'seo Berhencoun. .que . d
tam~
,
b em . definitivamente as VJSitJS esse
em Portugal e nas ilhas se mterromperam d d J
genero após 1637 o que segundo o auwr, resulwu parcialmente 0 estJ 0 e
. . ' . ' .. .. . áo até 1660 e dos encargos
guerra VIvido pelo Remo na sequencta da Restaura~ e: .. d·¡¡.·¡ 1 ~ E
onjunmra nnancc1ra 1 h.l . ~
crescentes que tais visitas represenravam numa e d , . l X\'11 en ·on~
1cmbra~nos ainda Bcthencourr que, na segun da· mctadc o se~..: u o · · ~,
. .. .. J S· Ofici l cm
. á . e tamJiaares uo ~;uno "
trava~sc já consolidada "a rede de comJss nos . d mais
. . . . . 'ais rornar~sc~Jam ca a vez
todo o país, de sorte que as vtsuas mquunon dh óllli-
dispens~veis. Além disso, também a lgreja portuguesa apres<ntava m or org
TROI'ICO Dos PECADos
226
ceme
rosa de ambos, verga va-se as
vomades do poder É .. -
· na.s VISHat;oes do Sanco
Ofício que melhor obs<:rvamos essa confusáo popular entre 05 .... . d .. al
. . .. _ ..... pectos JU ICI e
expiaróno das m:ulflc;oes, so~rerudo porque nelas se abria a oponunidade de
confissóes espontaneas, envolvJdas numa falsa magia sacramemal: confissóes em
cudo disrinras do sacramenw da peniréncia, pois, como vimos, náo eram falas de
reconciliac;áo com Deus, senáo provas judiciárias transcritas nos autos. Se feítas
00 "período da grac;a": plenas e verdadeiras, lívrariam de penas mais rigorosas 0
réu pecador; mas se feaas com atraso, ou se colidissem com evenruais denúncias
de ourrem, poderiam levá-lo ao desrerro, aos a¡;:oires, as galés e a cueros castigos.
Embora mui[Q distintas da confissáo sacramental. :ts tais confissóes de cul-
pas exigidas pelo visitador lembravam a muitos a tradiu, ~.d expia~j:áo da Quares-
ma, forjando-se urna atmosfera de "alívio da consciéncia" onde só havia pesquisa
inquisitorial de heresias. Náo é de admirar que muitos procurassem o visitador
para confessar pecadilhos, tolices que mal interessavam ao Santo Ofício, vendo-se
no juiz da lnquisi~áo um simples confessor de almas pecadoras. Os hábeis
inquisidores também náo se faziam de rogados, e diame da confissáo de miude-
zas, e mesmo de faltas graves externadas com sincero arrependimemo, apllcavam
peniténcias espirituais aos pobres pecadores, assumindo a imagem que deles fa-
ziam os incautos. Muitos colonos agiam com essa candura apavorada em face dos
visitadores, emboca quase todos soubessem, no fundo, que a lnquisi~j:áo era um
tribunal de fé.
Contudo, o que mais provocavam as visitas, fossem do Santo Ofício, fos-
sem da lgreja, era o panico generalizado. A simples chegada dos visitadores, as
solenidades da convocatória ao povo, os monitórios e os pregóes logo geravam
urna atmosfera de vigilancia, um atilj:ar de memórias, sentimentos de culpa e
acessos de culpabiliza~áo. Surpreendemos, por vezes, noráveis mecanismos de de-
fesa individuais ou coletivos: fugas, pactos de siléncio, reinvenlj:áo de histórias a
serem contadas ... Bígamos a convencer amigas - e falsas - testemunhas dos
segundos casamentos de que nada havia a temer se confirmassem a mone da
primeira mulher· homossexuais a relembrarem o número de cópulas passadas, a
fitm d e acertarem' as confissóes; m
. d.avíd uos a d esd.tiere m 0 que haviam dito
. sobre
os prazeres do sexo em conversas pregui~j:osas, insisrindo com os amagos - e
. . . . fe d
possfvels denunciantes- que Jamals de n eram a rmc • ·
¡¡, · ariio· eis atirudes defcn-
· . pula~es devassadas. Mas,
Slvas, qu1~á solidárias, que verificamos ocorrerem nas P0 . . .
antes de estimular cumplicidades o u resisténcias, as inquirilj:áes e ~tsaw mmavam
as solidariedades, arruinando lealdades familiares, desfucndo amlz.ades. rompen-
do la~os de vizinhan~a. afetos, paix6es. Despcrtavam rancores, rcavavavam mama-
zades, ati\avam velhas desaven\as. Agu\avam, enfi~n, antigos ~reconceitos Inorais
que, traduzidos na linguagem do poder, se convernam em pengosas ameac;as para
cada individuo e para a sociedade em geral.
É-nos possível reconstituir um pouco dessa massa de sentimentos contra-
ditórios que a todos assolava, examinando cenas motiva<;:óes do confessar e do
acusar na visita\áo dos quinhentos. Os que atendiam a convoca\áo do visitador,
apressando-se a delatar erras alheios ou confessar os próprios, eram movidos por
algumas espécies de medo. Antes de tudo pelo medo de ser acusado, o que levava
muitos a se anteciparem as denúncias, apresentando-se ao visitado, ou a delata-
rem os outros para "mostrar servi\o" a lnquisi<;:áo. U m dos raros escravos a fazer
denúncias a Furtado de Mendonya foi o angola Duarte, rapaz de vinte anos que
mal falava o ponugufs e teve de acusar por meio de um intérprete. Morador na
Bahia, ande servía aos jesuítas, contou que era perseguido por Joane, escravo
Guiné, para com ele cometer o nefando, usando Duarte o "papel de macho", o
que de modo algum consentía, segundo disse, cien te de que o nefando "era caso
para os queimarem". E aproveitou o ensejo para também acusar de sodomía a
Francisco Manicongo, jimbanda que vimos infamado por travestir-se nas ruas de
Salvador. Duarte mentía ao eximir-se de culpa? Dificilmente poderíamos assegu-
rar qualquer coisa em tal situa<;:áo: o que disse Duarte e m su a língua fora traduzi-
do por um portugues que bem conhecia os jimbandas da Guiné e deles náo gos-
tava ... Saberia realmente o escravo boyal recém-chegado de Angola que o Santo
Ofício portugues queimava os fanchonos? Seja como for, Duarte sempre andava
como tal Joane no tempo em que ambos serviam aCompanhia, sendo fama geral
que os jesuhas tinham vendido o segundo para evitarem nefandices no Colégio; e
mais, até os indios do lugar chamavam os dois de tibiras - sinal de que seus
hábitos sexuais eram claramente identificados a moda nativa. E náo seria impos-
sível, ainda, que Duarte tivesse andado com o próprio Manicongo, homem que
facilmente cedía a quanms negros lho requestassem ... Mas deixemos de lado as
conjecmras: temeroso de ser denunciado- 0 que viria a acorrer no dia seguinte
- , Du~rte resolveu acusar os possíveis amantes e parceiros de infortúnio, escra-
vos da Africa como ele, para escapar a fogueira do Santo Oficio.-"
Também por recearem dela~jóes, Banolomeu de Vasconcelos e AntOnio
Gomes compareceram no mesmo dia a mesa inquisitorial para confessar seus
erras e acusar os alheios. Bartolomeu era homem de 32 anos, cónego da Sé de
Salvador e amante de Violan te Carneira, a quem engravidara sete ou airo meses
ames. O romance com Violame bem podia trazer problemas para 0 cónego, náo
pdo amancebamento em si, que disso náo rratava a lnquisic;áo, mas pelo faro de
jr.JQUI.II(AO. ,\H>ItAIIl>Al>l 1 1 \OCII DAI>l ( OIONI,\I
233
queimá-los - o que Anwmo Gomes confessou ter feiro antes que 0 processo
fosse despachado pelo vigário da Vara. Eram dez cruzados urna soma elevada? Em
moedas de prara portuguesas, chegavam a cerca de 4.800 réis, quamia que nao
dava, por exemplo, para comprar um escravo, que valia no mínimo 12 a 13 mil-
réis naque la época. 38 Mas rambém náo era urna soma desprezível ... Barrolomeu e
AntOnio confessaram sua parricipas;áo no caso e pediram perdáo ao visitador por
rerem obstruído o julgamento de "táo abominável crime", senda que o cónego
aproveirou a oporrunidade para acusar de somícigo o feitor que anteriormente
livrara da Justis;a. Mas nossos antigos corruptos temeram mais que o necessário: o
visitador ouviu suas confissóes e mandou-os seguir em paz. 39 Quamo ao acusado
Gaspar Rodrigues, acabaria vírima de um longo processo, entao inquisitorial, do
qua! seria, enfim, absolvido! Somente Violante Carneira sairia chamuscada dessa
hisrória: acusada de usar palavras sagradas para "suas torpezas e luxúrias", termi-
naria condenada a ouvir sua pena na igreja e degredada quatro anos para fora da
Bahia.
Escravos, clérigos, funcionários, muitos ourros confessariam e delatariam
com medo de acusas;óes, mostrando-se subservienres e arrependidos em face do
inquisidor. Entre os praticantes da sodomia isso foi absolutamente corriqueiro,
pois, sendo vários deles useiros em trocar de amantes em curdssimo espa~o de
lempo, dificilmente poderiam assegurar-se do absoluto silencio de parceiros que,
as vezes, mal conheciam pelo no me. Mesmo que nao fossem vistos na princa do
nefando, ou dela niio fossem infamados, era-lhes impossívd garantir que algum
- rosse
rapaza 1a nao e · 1os d e perre1tas
a mesa para denunc1á- e · sodomias
. ' a exemplo do
ocorrido com o fanchono André de Freiras Lessa." E trisre drstmo era reservado
aos que, acusados de sodomia, rivessem deixado de confessar no período da gra~a
ou omitido deralhes em suas confissóes... . .
Por ourro lado nao falraram indivíduos que, ráo logo ouviam 0 monnórto
ou ass1st1am
· · a qua 1quer
' pemtenc1a
· • · pu'bl"1ca cm Salvadore Olinda, se apreS5aV11lla
2.14
ros, desclassificados, índios, escravos, criados- foi muiro acusada de faltas mo-
rais e sexuais, perfazendo 41% dos denunciados; em comrapartida, sornen re lS%
dos acusados penenciam J grei dos senhores de engenho, altos funcionários da
governan~a
local , 1·uízes • autoridades eclesiásticas, mercado res e fazendeiros • un·I-
dos em regra por hu;:os de parentesco. Eram esses, no en tanto, os que mais delata-
vam (48%) e confessavam na gra~a (37%), juntamente com os seto res interme-
diários de advogados, pequenos funcionários, clérigos, religiosos e trabalhadores
livres assalariados: 35% dos delatores e 40% dos confiten tes. Por remerem mais 0
Santo Ofício, por julgarem que rinham muito a perder, eramos bem-aquinhoados
que preferencialmente davam mosuas de aquiescencia e arrependimemo em face
do visitador. Já os pobres da Colónia, oprimidos no cotidiano, mal ousavam fazer
denúncias (17%) ou confissóes (20%), temerosos de que houvesse represálias vin-
das de cima ou de que a engrenagem do Santo Ofício viesse ajuntar-se aopressáo
que !hes moviam seus algozes do dia-a-dia.
Os miseráveis da Bahia e de Pernambuco foram acusados especialmente
pela prática do nefando, ulrrapassando 50% dos delatados por esse crime, mas o
foram sobretudo por suas relac;:óes sexuais com gente poderosa. O elevado índice
de nefandos pobres e subalternos da primeira visitac;:áo compunha-se, a rigor, de
numerosos criados, escravos e forros sodomizados por amos e senhores, mais que
de indivíduos precipuamente visados pelos denunciantes. Náo por acaso, os prin-
cipais grupos sociais de nefandos arralados na visita foram os servidores (20%) e
os carivos (13%), su jeitos as vontades sexuais dos que sobre eles tinham domínio.
Por outro lado, também a sodomia foi o grande crime a envolver os principais da
terca: dos 29 individuos da elite colonial que confessaram desvios morais ao
visitador, 48% o fizeram por sodomias; e, dos 32 acusados da mesma grei, 50% o
foram por idC:ncica razáo. Afina!, já o dissemos, a sodomia foi entre esses crimes o
mais denunciado e o mais confessado em toda a visitac;:áo do século XVI.
No extremo oposro das culpas, nenhum potentado colonial confessou bi-
gamias, e apenas 9% dos bígamos acusados eram gente da governan~a ou do
grande comércio. Escusavam-se os ricos de admitir segundos casamentos? Evirava
a populac;:áo de acusá-los desse crime? Deceno que náo. Nesse caso, convém mais
urna vez salientar, o jogo das confissóes e denúncias exprimia fielmente a realida-
de social: individuos de posses e slatusdificilmenre expunham os interesses envol-
vidos no casamento a semelhante transgressáo, preferindo amancebar-se se m maio-
res riscos. Já no século XVI, portanro, a bigamia era um crime popular, praticado
sobretudo por pc:quenos comercian ces, rrabalhadores livres, artc:sáos ou funcioná-
rios menores da administra~iío pública; 75% dos confiten tes e 48% dos acusados
de se casarem pela segunda vez senda vivo 0 prim · • . .
' . . ClfO COnJuge pertenc¡am as
onadas medo as da socoedade, e nada menos do que 25•A d d l . .
ca . . o os e aros por b1gam 1a
ram mannhe1ros, soldados, homens sem ofício e até escr pl . .,
e . . avos. e o v1sro, Ja nessa
época o casamenro _na 1grep esrava bem mais difundid o enrre o pavo d0 que
normalmenre se supoe.
No rocanre a cor ou a etnia dos personagens da visita, os resulrados de
nossa avalia¡¡:áo em parte confirmam o que vimos sobre a posi¡¡:á.o social. Por reme-
rem mais que os curros a devassa inquisitorial, os brancos perfizeram 89% dos
delatores e 78o/o dos confiten res em matéria moral e sexual, e possivelmenre nou-
rros domínios do monirório inquisicorial. Mas, por serem mais identificados pela
populac;ao em geral, foram eles os mais acusados (57%). Com respeiro á natura-
lidade, os originários de Ponugal eram ampla maioria entre os delatores (68%) e
alternavam com seus descendentes "mazombos" a primazia enue acusados e
confitentes. Menos visados pelos colonos, que duvidavam mesmo de sua humani·
dade, índios e negros náo chegaram, sornados, a 20o/o dos acusados, prova da
escassa aten<;áo que se lhes dava em assunros morais e sexuais, excero quando
sodomizados por brancos. É fon;:oso reconhecer, no enramo, que índios e negros
jamais cometeriam cenas infra<;:óes contidas no monirório, a exemplo das propo-
si<;óes erróneas sobre o sexo, o casamenro e o celibato, a menos que fossem criou-
los extensamente aculturados amoda popular. Na maioria dos casos, se desconhe-
ciam a no<;:áo cristá de pecado e sequer falavam porrugues, como iriam defender a
fornicac;ao o u duvidar da casridade sacerdotal?
A margem da religiosidade e da cultura colonizadora, índios e negros náo
confessaram nenhum crime moral ao visitador, e semente poucos ousaram delatar
os desvios de outrem, como fez o angola Ouarre, acusador de dois escravos nefan·
dos, o u a índia Mónica, delatora das fanchonices de Maria de Lucen a. No decurso
dos séculas XVII e XVIII, surpreenderíamos curros nativos ou africanos a expo·
rem seus amos a lnquisi<;áo, como no caso de Joaquim AntOnio, corajoso angola
que denunciou Francisco Serrao de Castro, cruel nefando do Pará, no final dos
serecentos. Mas seriam poucos, a bem da verdade, os que assumiriam atit~de t.lo
. . bé S oclco·o duvidaria, na pr:ltoca. da
pertgosa para suas vtdas. E tam m o anto 11 , .
243
da que rcpresentava a conflssáo e punia sempre com maior ri~~r.~s nefandos que irnpe-
diam seus parceiros de confessarem na sacramemal. V. lnquumo1z y repmión stxu,J tn
l{r/mci.. Barcelona, Lacrtes Ediciones, 1986, p. 17.
31 . Dcvo esta informa~áo a Lana Lage da Gama Lima, que obs~rvou a recorrc!ncia daqudas
atitudes nos processos de solicita.,-áo incluídos em sua pesqu1sa sobre o clero colonial.
32 _ Sobre 0 assunto, V. Azcvcdo, Joáo Lúcio de. Os jesuícas e a lnquisic¡áo em conflito no
século XVII. Lisboa, Boletim de Segunda Classe da Academia de Sciencias dt Lisboa. vol.
10. p. 1-9.
33. Salvador, J.G. Op. cit., p. 149-150.
34. Novinsky, A. Cristiios-noi/OI.. ., p. 130.
35. Bcnnassar, Banolomé. Modelos de la memalidad inquisirorial: mé[Odos de su pedagogia
del miedo. In Alcalá, Ángel et alii. Inquisición Espanola y mmtalidad inquisitorial Barce-
lona, Asid, 1984, p. 174-185.
36. Nomc pelo qual ficou conhccido o palácio dos Estaos, ondc funcionava o tribunallisboe-
u, situado na p~a do Rocio. Atualmeme é o Teatro D. Maria l.
37. Primtirtt visitAriio... Denuneiaróa da Babia (/591·1593). Siio Paulo, Eduardo Prado,
1925, p. 406-408; 420-421.
38. Para os p~os de cscravos cm 1572 e moedas ver Manoso, Káda. Str tscravo no Brasil
Sio Paulo, Brasiliense, p. 90; 252.
39. O wo completo acha-se em ANTI/IL., processo 11061.
40. O sapatciro Lcssa confcssaria cm Pernambuco (período da gra~a, a 23 de novcmbro de
1593) várias rela~s nefandas. Continuaria amante-las, porém, e a 27 de maio de 1594
tornaría a ser acusado por um rapaz a qucm sodomizara no dia anterior- o que lhe
rcndcu um longo proccsso e grave condcna~áo. ANTI/IL., proccsso 8473.
41. Denunci•róts da Pmramburo, p. 73-74; 107-108.
42. Idem, p. 52·53; 70·72.
43. Dtnunci•róts da s.h;., p. 453-455.
44. l'rimril'll visitario... ronfiuóes de Pernamburo (/594-1595). Recife, Universidade Federal
de Pernambuco, 1970, p. 99-102.
45. Dmun<i•róts da Bahill, p. 238.
46. l'rimtil'tl visit•riio. .. Confiuóts da Babia (/591-1593). Rio de Janeiro, F. Briguet, 1935,
p. 109-110.
47. ANIT/IL., proccuo 17807.
48. Dmunei•róts da Bah;., p. 365-366.
49. Idem, p. 309-310.
50. ANIT/IL, prOCCIIO 2525.
51. Idem, livro 7 (lisra de au1o.s-de-fé cclebndos em Lisboa) _ informa~óes sobre o auto de
27 de maio de 1645.
cAPITULO 8
Do PECADO AHERESIA
cial dos inquisidores, os aws náo passavam, a rigor, de indícios, pistas de que 0
indivíduo poderia "sentir mal da fé católica'. Assim como o "guardar 0 sábado",
por exemplo, náo fazia do suspeiro um judaizante consumado, o defender a
fornicac;áo, 0 cometer um ato sodomítico, o proferir uma "orac;áo diabólica" náo
conveniam os responsiveis em hereges convicws, embora fossem gestos altamen-
te suspeitos de erro consciente. Aos inquisidores, juízes de fé, sempre cabia inqui-
rir sobre as intenc;óes do réu, seu pensar e seu sentir; adiferenc;a do delito comum,
a heresia já implicava o julgamento simultaneo e articulado do crime e do próprio
indivíduo criminoso. Crime gravíssimo, a heresia so mente se construía- e náo
apenas se provava- na mesa da lnquisi~á.o, haja vista a extraordinária importan-
cia assumida pela consciencia do réu na forma¡¡áo da culpa. O Santo Ofício limi-
tava-se, com rela11áo aos atas, a recolher indícios, fragmentos mais o u menos con-
sistentes de inten11áo herética, com base na suspei11áo apriorística que lan11ava
sobre algumas condutas. Em meio a inquiri11á.o do acusado, aí sim, tratava de
averiguá-las em profundidade, confrontá-las com a vida do réu, remontá-las aluz
dos critérios inquisitoriais e construir, se possível, a substancia da heresia. Tratava-
se ainda de urna pesquisa arcaica, bem ao estilo cristá.o, voltada para a decifra11á.o
das vontades que levavam o indivíduo a perpetrar tal ou qual ato; mas já se esbo-
\ava na mesa do Santo Ofício o esquadrinhamento do próprio infrator, seu modo
de pensar, sua vida, sua natureza e seu passado. 1
Por outro lado, deslocando-se o problema para a esfera dos desvios
morais, as atitudes assimiladas as
heresias afastavam-se tanto dos pecados
quanto dos crimes afetos aJusti\a Eclesiástica, conforme vimos e m capítulo
anterior, apesar de pertencerem todos ao vasto campo de trangressóes religio-
sas. Mais do que arriscar a própria alma, e qui11á as alhcias, como no caso dos
pecadores; mais do que perturbar a ordem familiar da cristandade, a exemplo
dos raptores ou adúlteros, os "hereges da moral" amea¡¡avam a pureza da fé e
a pr6pria lgreja, ;ustificando-se por isso a competencia inquisitorial. Cerros
atos, a bem da verdade, eram já suspeitos de semelhante ofensa, mas depen-
dendo das circunstancias e intenc;óes do culpado se poderiam caracterizar ou
náo seus nac;os hereticais. O rasueamento das inten\Óes, comum a confesso-
res sacramentais e inquisidores, assumia portanto sentidos diferentes nos dais
casos: ~~ confessor interessava decifrar a consciencia do penitente a fim de
reconctllá-lo com Deus, reeducá-lo, salvar-lhe a alma; para 0 inquisidor, no
entanto, a pesquisa das intenc;óes era parte de urna investiga\áo sobre a vida
e a pessoa do criminoso, investigac;áo capaz de desmascará-lo como ousado
dissidente da lgreja e de extirp:l-lo da sociedade. Se 0 pecado resulta va, antes
247
de rudo • da falta de
.
doutrina que tornava 0 cristá
. .
1 , l
o vu nerave ao demónio a
l1eresia era u m crnne especud, del no dc fé apasto a v d d . .
er a etra re 1tgtao.
'P '
.
Embora se onentassem segundo critérios gerais acle d · · l .
. , . , . . . . . • qua os a smgu andade
de crunes hereucos, as praucas da Justu;:a mqutstcorial na 0 f¡ h •
" . . , . oram omogeneas.
Via de regra, os ~n.mes morats ~nseJavam processos rnais curros que 05 deliras
marcadamen_r~ rel~gtosos, e~n. paruc~lar o judaísmo; tambérn 05 processos despa-
chados na~ vtsH~c;:oes col.omats tendtam a ser sumários, comparando-se aos julga-
dos nos rnbunats do Remo; e, finalmente, amando duranre quase rres séculas, a
Inquisic;:áo foi mais ou menos rigorosa em relac;:áo a vários crimes, conforme sua
con juntura particular e o contexto geral da história ibérica e européia nos rempos
modernos.
A exaustiva análise que fizemos dos processos lisboetas entre os sécu-
las XVII e XVIII, ainda que concentrada nos desviantes da moral, permite-nos
generalizar sobre os passos do processo inquisirorial no tribunal d(: Lisboa. Pro-
longando-se por vários meses ou até anos, os autos se abriam com documentos
preliminares relativos as primeiras denúncias, ou com a apresenta~Jáo voluntária
dos acusados feita ao visitador eclesiástico- caso exclusivo das dela~Jóes - , aos
comissários do Santo Ofício e as demais autoridades da lgreja. Seguiam-se as
diligéncias executadas para averigua~Jáo das culpas, as investiga¡yóes sobre a opor-
tunidade de enviar o suspeito ao tribunal, a correspondéncia entre comissários e
inquisidores de Lisboa e a ordem de prisáo encaminhada a familiares do Santo
Ofício na ColOnia. Salvo se rivesse confessado esponraneamente, o suspeiro quase
nunca sabia que se lhe movia urna devassa secreta nessa fase do processo, aré que
lhe viesse um familiar da Inquisi~áo para, "em nome do Santo Ofício", levá-lo
preso e embarcá-lo na primeira nau para o Reino, após seqüestrar-lhe os b(:ns
(casos de judaísmo, sodomia e outros). ..
Feiro o inventário dos bens nos casos pertinentes, iniciava-se a fase decasava
do processo. O primeiro grande documento era a chamada confis.ráo,_lon~."ar_ra
. e · . 1 -
uva que raz1a o réu de sua v1da em re a~Jao ao suposto en
·me de foro mquiSitoroal.
, á tos dos Estaos. Era praxe.
as vezes no mesmo dia em que adentrara os e rcc:res secre . . _ 1.
.á 1 ·nquos1dor mas rao logo a 1
a
al1 s, evar o réu mesa para iniciar o contara com 0 1
.
' d
. mado a acusar-se o que
e h egava sugeria-se-lhe que viera por vontad e prÓproa. am ¡;,
teoricamente náo sabia: "Tomava muito bom consdho de querer con ss~r suas
1 " ·. . . , . h · ~las todas em memóna para
cu pas , d1z1a o mquiSidor, e lhe convm a mutto t ni de" ca alivio
deias fazer uma inteira e verdadeira confissáo, declarando toda 1 "" 1 . pa d
d e sua consciencia e bom despacho de sua causa. 10 timidado e e~enr< .
o s<u
va
erro, emboca se lhe náo declarassem os motivos da acusa~io e da proslo, p.-
248
TROPICO no~ PECADos
0 réu a discorrer sobre suas culpas, cuidando de minorá-las aqui e ali ou de negá-
las na vá cspcram;:a de com isso livrar-se do casngo. Ao langa dessa narrativa, os
componentes da mesa pouco imervinham, deixando que o réu falasse "a venta-
de", exceto nos casos de teimosos negativos. Ao fim do relato, se lhe admoestavam
ara que mrnasse a refletir no cárcere, reexaminasse sua consciencia e completasse
~ponunamenre a confissáo exigida. Os inquisidores sempre diziam isso, fosse 0
réu medroso e confesso, fosse omisso ou negacivo; era um procedimemo habitual,
desrinado no mínimo a minar a confianc;a do acusado, intimidá-lo e dar-lhe a
impressáo de que nada podia escapar aos ouvidos do inquisidor.
Passados alguns dias, os inquisidores requisiravam o réu para a sessáo de
gtnlalogia. Deixavam de lado as acusac;:óes e argüíam sobre o lugar de nascimenro,
a idade, o ofício e demais informac;:óes sobre os país, avós e rodas os parentes de
que se lembrava o acusado, especialmente se haviam sido out rora penitenciados
pela lnquisic;:áo. Argüic;:áo possivelmente montada para a devassa dos cristáos-
novos e de seus antecedentes, o inquérito genealógico acabaría vulgarizado para
todos os réus, recompondo-se a história do indivíduo em linhas gerais, sempre a
cata de algum fato que lhe pudesse incriminar no passado ou na vida dos paren-
tes. Para melhor averiguar a consciencia do réu, faziam os inquisidores um breve
exame de doutrina cristá, limitado a requisitar o Pai-Nosso, a Ave·Maria e, por
vezes, os mandamentos de Deus e da Igreja- coisa que m u iros náo sabiam dizer.
Afina!, se o queriam acusar de heresia, de ofensa consciente averdade do catolicis-
mo, era preciso investigar sobre o quanro de doutrina conhecia o infeliz.
A confissáo e: a gc:nc:alogia c:ram, como vimos, urna espécie de apresenta¡;áo
do acusado diame da mesa, quase um monólogo do réu sob os olhares austeros do
inquisidor. O cruzamento das falas e: a imbrica¡;áo dos discursos viriam nos passos
seguintes, e prolongavam-se por muito rempo, embora 0 despacho de Criminosos
11
quescionamenro
.
do crime em panicular, suas circunsrincias e
. , . . .
r ,
seus ratos especifi-
cas. Assu~ reconsrn_wam os mqu~s1dores a hisrória dos réus, faziam aflorar sua
consciéncJa e demol1am-na
. gradauvamenre ' ensinando-lhes a verd ad e e o b ngan-
.
do-os a vergar-se d1anre do poder, no mais das vezes com hito.
Por_ mais que o ré_u admitisse suas culpas, observamos ern quase todos 05
processos ¡ulgados em Ltsboa- fossem de reináis ou de moradores da Colonia
_ a lavratura do Libelo acusatório, sinal de que os inquisidores julgavam
insarisfarória a confissá.o por mais ampla que a fizesse o "suspeiro". Redigidos pelo
promowr com base em modelos correspondentes ao deliro, os libelos exigiam
como de hábiw a condenarráo as
piares penas do Direito, nQ[adamenre se 0 réu
reimasse iquela almra do processo em negar as acusarróes da mesa. E, nesses casos,
bem como nos réus diminutos que omitiam fatos sabidos pela lnquisi¡¡:áo, o pro-
motor anexa va a prava de justÍfa: "e que senda o Réu cristáo batizado e abrigado
a guardar os preceitos da Santa Fé Católica, o fez pelo contrário (... )"- eis como
se iniciava a derradeira acusac;áo, incluindo extensa lista de denúncias específicas
sem nomear o denunciante, o lugar do crime, os cúmplices, coisa alguma. Rol
impreciso e genérico, a prova de Justic;a era mais urna pressáo comra o réu a modo
de arrancar-lhe a confissáo; caso se lha resistisse, recebia um procurador indicado
pela mesa a fim de elaborar suas contraditas, o u seja, refutar denúncias e acusado-
res cujos nomes lhe náo revelavam os inquisidores, nem ao advogado. Náo lhe
restava saída, porranto, além de fazer novo exerdcio de memória, lembrar-se de
seus inimigos, imaginar possíveis acusa¡¡:óes contra o mais vasto elenco de pessoas
para, com isso, invalidar as "provas" ou, no mínimo, retardar o despacho final.
Ultrapassada essa fase, recebidas ou náo as contraditas do réu, feitas as
diligencias necessárias, a mesa inquisitorial se reunía e discutía a senten¡¡:a a execu-
tar, emitindo seu parecer quanto a pena, induindo as discordáncias entre
inquisidores e depurados. Apreciava-o o Conselho Geral, que geralmente optava
pelo castigo intermediário entre o mais e o menos rigoroso dos constantes ~o
parecer, lavrando-se a derradeira senten¡¡:a. Das primeiras denúncias acondenac;.ao
no auto público o u na sala do tribunaL assim transcorria a saga dos réus do Santo
O o¡ · · . . 1· b Vá · en~t:dos discursos e cons-
IICIO na amensa maaona dos autos as aetas. nos ' d
ciencias desfilavam na mesa inquisitorial entre as pressóes do poder e as ve~es .0
h omem comum, até que, como num passe d e m ágaca, · for¡'ava urna só h1Stóna
se
. · 'd
e urna só verd acle, urdidas tanto pe1o mqulSI orco
mo nt>lo réu acuado.
r-- . Em
Mas a processualfstica inquisitorial merece ainda alguns romentáraos. .
. .
pnmearo lugar, os processos despachados nas 0 mas.
e
16 . ¡'á o dissemos. eram maiS
d ·
simples que o descriro, e m se tratando de visira~6es especiais com praz.os eterma-
2\0 TR()l'ICO oo~ PECADos
nem se limiravam a exortar o réu a confessar, alegando que náo lhe resrava auno
remédio. Ao menos no caso de sodomitas - emboca ralvez náo em crimes de
judaísm~ - , s~rpreendemos ~otáveis defesas de advogados baseadas unicameme
na ciénc~a que tmham do funcwnamento do tribunal e dos cr1·1e· · d ¡ .. _
nos a nquas1¡;ao
para formar as culpas.
~inal~~nte, é preciso dizer que, na prárica, o célebre segredo inquisitorial
era muHo ltmnado em se tratando de crimes morais. É cerro que nossos réus
jamais viam os autos e desconheciam os denuncianres, a exemplo de rodas 05
acusados do Santo Ofício, mas sabiam perfeitameme do que eram infamados ao
chegarem na mesa inquisitorial. O mesmo náo devia acorrer, admitamo-lo, nos
casos de muitos cristáos-novos de terceira ou quarta gera'j-áo já "integrados" ao
catolicismo, salvo por sua origem judaica, que, por discrimina¡;áo racista- e náo
por aposrasia - , se viam subitamente presos e encarcerados como judaizantes.
Náo é de admirar que, nesses casos, desconhecessem o próprio crime ... Mas muí-
ro distinta era a situa¡;áo dos desviantes da moral; a imagem kafkiana do Santo
Ofício, onde réus perplexos eram acusados náo sabiam de qué, em rudo colide
comas centenas de processos que examinamos em Lisboa. Sabiam-no muito bem
e, mais do que isso, conheciam meios de livrar-se do pior, embora ignorassem por
vezes as sutilezas que os inquisidores desejavam ouvir em suas confissóes. Conhe-
ciam, porém, os atenuantes de seus erros e os agravames de seu delico, e buscavam
desembara(j:ar-se da ardilosa teia que lhes armava o inquisidor.
c;óes, carencias, rudo isso podía ser muiro bonito ou lamenrável, mas náo justifi-
cava, aos olhos do inquisidor, a terrível bigamia, crime de fé. E nem mesmo as
irregularidades da cerimónia poderiam, na maioria dos casos, apagar a "m á. tenc¡:áo"
do acusado ao contrair novas núpcias, como se o casamenw náo anulado pela
lgreja fosse mera conringéncia da vida.
Histórias díspares acabavam assimiladas por essa inrolerincia, coerente no
enranro com os objetivos do poder. Joiio Ferreira Matado, homem que e m 171 S
fora penitenciado em Coimbra por dizer singularmente que o matrimOnio náo
era sacramento(!), e que viria a casar-se trés vezes em Abrantes, Castela e Santos
(capitania de Siio Paulo), mudando de nome, apregoando-se solteiro e fazendo de
vários padres coadjuvanres de grandes farsas - acabaría rotulado de herege con-
vicm no crime de bigamia por semir mal do sacramento do matrimOnio e da
Santa Fé Car6lica. 21 O mesmo ocorreria com Urbano Cardoso, ex-carcereiro no
Vizcu, vendeiro na Bahía, que centava com sessenra anos em 1701. Quarenta
anos ames, esposara Maria Marques em Ponugal e, degredado para o Brasil por
dar fuga a presos, viria a se casar com Francisca de Barros em Pernambuco, ao
receber notfcias de que Maria falecera. Tornara pois a se casar, rivera oiro filhos, e
décadas depois, quando um deles se vi u barrado na pretensáo de ser padre, veio a
saber que sua primeira mulher ainda vivía. Urbano era, sem dúvida, um fiel cató-
lico que, ao se descobrir um b(gamo, procurou lago 0 comissário AntOnio de
Faria para delatar-se. Mas, assim como Joáo Matado, acabaría penitenciado como
diminuw e fingido cm sua confissáo por náo declarar que desprezava o matrim0-
nio ... 12 U m homem de sessema anos, pai de oito filhos e católico praticante acaba-
ría táo herege quanto o avemureiro Joáo Matado, individuo que desconfiava da
santidade do marrimOnio e, por isso, casava-sc e descasava-se a seu bel-prazer.
Nunca a lnquisic;áo foi táo inAex(vel diame de crimes morais. Obcecada
cm afirmar o núcleo dogmático do marrimónio tridentino, condenaría wdos os
que, náo obstante apegados ao estado dos casados e ao próprio rito eclesiástico,
usavam a lgreja conforme suas conveniencias pessoais. Os processos de bigamia se
26!
J
po pFOIJ() A 111· 111· ~JA
" e•·ra e rragilidade sua nio fazia a devida reflexáo no mal que ob
que por cegu r1 . , ~6 ~ rava,
levado semente de seu torpe apeure .· E o mularo Manod Fe mandes dos Santos
acusado de sodomizar vários negros na cadeia do Recife, onde se achava preso po~
homicídio, disse que carnerera o nefando por "fragilidade e miséria" da carne, e
" or entender que sabendo-se deste crime seria rrazido preso para esta Inquisi¡¡:ao
a:nde reria melhor livramento e sairia da dica cadeia em que se achava preso havia
22 anos" y Nosso curioso réu almejava encontrar na sodomía e nos cárceres secre-
tos do Santo Ofício o caminho seguro para a liberdade- sinal de que os aljubes
coloniais deviam ser aterradores. Fragilidade do carpo, tenta<fáo demoníaca, ce-
gueira, torpe apetite, perturba<;áo do juízo, os acusados qu~se sempre alegavam os
apenas da carne e a inconsciencia para justificar seus atos. E de su por que falavam
com sinceridade, ao vincularem seus "atos torpes" a dese jos sexuais, e náo a con-
viq:óes doutrinárias; mas náo deixavam, com isso, de eliminar qualquer suspeira
de que pecavam por desdenharem os mandamemos da fé.
A grande desculpa dos confitemes voluntários, medrosos e arrependidos,
era porém a de que jamais haviam consumado a cópula anal - prova inequívoca
de que bem conheciam as regras da Inquisi~áo a esse respeito. Sobretudo no caso
de réus fartamente infamados e acusados por "andar com homens", de pouca valia
seria negar suas relac;:óes homoeróticas; se o fizessem, passariam por negativos e
poderiam mesmo ir a tormento - o que a todos apavorava. Optavam assim por
relatar a mais variada sorte de atos sexuais em todas as circunsd.ncias possíveis,
exceto o famoso derramar de semen intra vas. Em pé ou deitados, na cama, no
cháo ou em esreiras, pendurados em escadas, no mato, atrás de muros, em codos
os lugares e horas admitiam os nefandos a prática de suas "molícies". Reconhe·
ciam "fazer as sacan as", penerrac;:óes se m ejaculac;:áo, gozo nas nádegas, "coxeras",
"punheras", "acessos no vaso traseiro", fela~óes, roc;:ar de membros e coda urna
plfiade de "torpezas" substitutivas da perfeita sodomia. Admitiam coro rais narra·
tivas, serem culpados de molícies, mas náo da abominável e perigosa sodomía que
poderia condená-los amorre. Num caso extremo, acorrido náo no Brasil mas na
"gaia Lisboa" em 1638, frei joiio Botelho negou obstinadamente ter consumado a
sodomia, fosse como agente, fosse como paciente, e s6 depois do libelo admiciu
culpas nefandas, inclusive beijos que tinha dado no "vaso uaseiro" de um moc;:o.
cheirando-o e lambendo-o, sem confessar no entamo a efetuac;:áo de sodomia
perfeira. 28
Muiros falavam a verdadc, alguns mcmiam, mas pouco importa avaliar a
veracidadc de suas narrativas, isto é, se haviam praticado 0 coito anal ou apenas as
mollcics confcssadas ao inquisidor. Scus relatos indicam-nos, de qualqucr forma,
265
juízes, se aqueles homens faziam tantas lubricidades se m qualquer pejo, por que
náo haveriam de perpetrar o "perfeim ato"? O que os impediria? Nao !hes bastava,
assim, que 0 indivíduo fosse "homossexual"; era preciso que praticasse a sodornia
perfeita.
Em 1689, no julgamenro de Doroteu Anrunes, um dos amantes do nosso
conhecido rabaqueiro Luiz Delgado, os inquisidores chegaram a se irritar corn a
obstina~áo do rapaz em negar a consuma'fáO dos aros. Provocando a toler5.ncia da
Inquisi~áo, Doroteu chegou a dizer que fora várias vezes penetrado pelo amante
sem consentir-lhe jamais o "derramar dentro de se u vaso traseiro", "por náo ver
naquilo nenhum gasto", e náo "por saber que era mais o u menos malícia" deixá-
lo ejacular no 3.nus. Em ourras palavras, Doroteu insinuou que náo pretendia
"enrolar" o Santo Ofício, minorando seus aros, mas que apenas náo lhe aprazia a
consuma~áo do nefando; do contrário, re~la-ia confessado ... Colérico, perguntou-
lhe o inquisidor: como nio fizeste mais coisas do que tens dito, se vivias de portas
adentro com Luiz em lugar ermo, a semelhan~a de "marido e mulher"? Náo era
"crível, nem verossímil" que nem ao menos algumas vezes deixasse derramar den~
no a semente- disse o juiz para o rapaz-, pois a "paixáo de semelhante luxú~
ria'' náo possuía limites, e seus praticantes sempre buscavam consumá-la por meio
da cópula anal. Diminuta e fingida, assim considerariam os inquisidores a confis~
sáo do réu, "pois senda sustentado pelo outro tanto tempo, e perdendo o pejo dos
primeiros atas, haveria de consentir no mais", isto é, na propríssima sodomia. Se
Doroteu era um fanchono amancebado haveria de ser também um sodomita, eis
a lógica inquisitorial na matéria, perdida e confusa entre os aros e o caráter. Mas,
nesse caso, os inquisidores náo se deixaram trair por seus critérios atomizadores
do sexo; recusaram~se a aceitar meras molícies no interior de um concubinaro
nefando, e qualificaram o réu como "cego, pertinaz e obstinado" na arte de men-
tir.32 Afinal, alguns inquisidores eram de opiniáo que 0 "crime de sodomía, por
ser oculto", podía ser suficientemente provado por "conjecturas e presun¡¡:óes" do
poder.
Havia porém réus mais ousados, sérios candidatos a acusa¡¡:óes de pertiná~
cia herética, os quais negavam totalmente seu envolvimento com 0 nefando, in~
cluindo as mais singelas molícies. A lnquisi¡¡:áo era nesses casos muito paciente,
pelo menos no início da argüi¡¡:áo. Perguntava~lhes se sabiam das causas perten~
centes ao ~anta Ofício; se acaso julgavam~se culpados em algumas delas; se ao
menos sab1am por que estavam presos; se sabiam que 0 sexto mandamento proi~
bia a cópula sodomftica cometida "quando um homem mete seu membro viril no
vaso traseiro de outro (. .. ) ou procura por atas próximos 0 cometer (... ) ou con~
267
re que outro homem lhe meta( ... )"." Noutras vezes . . ... _
sen . . . • a propna arguu;ao geral
de negacivos segUJa rumos esp~clals, como no caso de Gaspar Rodrigues, feiror
que molesrava es~ravos ~a Bah1a quinhemisra e ainda era infamado de aderir 30
nefando por ..
ter SJdo catlvo dos mouros em Argel. Sabedor des e
ses raros, pergun-
rou-lhe o viSitador: quantos anos anclara fora de Ponugal em terras mauras? Usa-
vam 05 infiéis de cosrumes nefandos? Acaso fora solicitado para cometer esse abo-
minável pecado por algum mouro?34 No juízo dos inquisidores persisriam, scm
dúvida, as idéias de um Jacques de Vitry, para quem Maomé _ inimigo da natu-
reza- havia disseminado o vício da sodomia entre seu pavo.
Mas, diante da aparente indiferen~a desses homens, que endossavam as
inrerdic;:óes doutrinárias sem assumirem nenhuma culpa, os inquisidores especifi-
cavam as perguntas e insinuavam acusac;:óes contra o réu: se cometeu ou tentou
cometer o nefando senda agente ou paciente, quantas vezes, em quais lugares e
circunstincias; se induziu alguma pessoa a faze~lo com ele a naco de dinheiro,
dádivas, promessas, etc. E, fracassando nas insinuac;:óes mais gerais, passavam a
questóes minuciosas, praticamente narrando as denúncias do processo sem no~
mear as testemunhas o u os paree iros: em quem penetrou e derramou o semen no
vaso traseiro, cerra ocasiáo? Por quem foi solicitado e consenriu na penetra~áo?
Com que companhia do sexo masculino, estando na cama, "o réu se chegava a ele
algumas vezes e lhe dava abra~os e beijos na boca e na cara, dizendo-lhe palavras
amorosas e colóquios como se fora um amante com sua mulher?"" Com que
pessoas e ande, nos últimos oiro anos, "estando ele réu e as ditas pessoas deitadas
na cama de noite, meteu ele réu seu membro viril na boca de urna das ditas
pessoas do sexo masculino?"36 Em todos esses casos, recusando~se os réw a confes·
sar, eram os inquisidores que produziam os variados discursos sobre 0 sexo, deta~
lhando aros, posi~óes, gozos e rudo o mais, embora no tom solene e formal qu<
lhes cabia utilizar
Tats..lfltetrogatonos
· , . eram cm tud o exrraord'mános. · ·longas e prolixas disser-
- .mqutsttonals
ta~oes .. .. sobre a pránca . d a sod omta,. en tremeadas de breves &las do.
réu negauvas. dos fatos ou da própna . val'd d - Alguns eram tio obsn-
1 ez as quesroes. .
.. mado 0 ato sodomlnco
nados em negar que nem sob tortura admmam ter consu .
. • . deu nos o f.amoso Lull
ou mesmo ourros. Exemplo raro de coragem e restsrencla ~
D1 b .¡¡,,¿. Aos 25 anos, <m
e gado, cuja história contamos no capitulo so "' 0 ,.,. · had' h
. . - eborense por sodom izar seu fututo cun •nlhe
1665 , quando preso pela InqlliSJ~ao °
d 12 . 1 d .rindo tio somenre que
e anos, Luiz negou com firmeza o cono ana • a ma ba ·
d amando apenas na rngo
rnetera o rnembro "na virilha entre as pernas (... ) en ·00•
(... ),e as vezes na mio do menino". Levado l poi~ para so~r "um trato corn '
268
271
' . " • ~ T
a
da mulher. E náo faltaram os que, semelhanra dos hom . d" . _
ossexuaJS, IZJam nao ter
"cumpndo mtm vas, senao :ora dele ou na própria vagina, rransferindo com isso
as suas culpas_ ~ara o d,~mímo ~a molície ou da fornicac;áo. Quamo as mulheres,
algumas admn1am rer. consentido nessas torpezas", ourras se disseram for\adas, e
rodas passavam cena tmagem de repugnancia em face dessas relac;óes.
Mas, via de regra, esses infelizes se apavoravam atoa, pois os visitadores se
limiravam a adverti-los do quanro pecavam, insravam-nos a náo cometer 0 nefan-
do e mandavam-nos confessar na sacramental. O caso mais severamente argüido
que vimos ocorrer na Metrópole deu-se e m 1621, envolvendo a prostituta Maria
Machada, mulher de 36 anos, denunciada por dois clientes- um tratante e um
religioso - como useira em praticar sodomias. Denúncias desse genero calvez
fossem comuns na Lisboa seiscenrista pois, segundo o promotor inquisicorial, a
prisáo de Maria Machada era um meio de levar as demais prostitutas "indiciadas
no dito crime ( ... ) a se emendarem ou virem confessar suas culpas" na lnquisic;áo.
Presa e apavorada, Maria pós-se a negar rodas as culpas a mesa e, pergunrada se
sabia quais eram as causas perrencenres ao Santo Ofício, repondeu: "judeus,
fanchonos e somítigos". Também para genre simples, claro está, sodomia era coisa
de fanchonos o u somírigos, isro é, de homossexuais -embora nossa ré certamen-
te soubesse do que era acusada. Apenada pelo inquisidor, admiriria conSlernada
que, "por fraqueza e pelo dinheiro que lhe davam", carnerera diversas nefandices
com alguns clientes. O processo de Maria Machada foi contudo exemplar, desti-
nado a "purificar" a prostituic;áo lisboeta, dela erradicando a sodomia; a ffi0\3
acabaria degredada para 0 Brasil(!) e, ao que nos consta, náo seriam processadas as
demais prostitutas "indiciadas" pelo Sanw Ofício.H .
E m terras coloniais, so mente dois homens foram seriamente argüJdos nes-
sa macéria, ambos na visita do sempre original Heiror Furtado. Do caso e~v~lven
do Pero Domingues já mencionamos alguns aspectos, especialmente 0 ódlo que
lhe devotava a mulher (e denunciante) Maria Grega. Mas o que deve ter chama~o
- d · · r · · ¡ · descnconuo das versocs
a atenc;ao o vtsl(ador para este caso rot, em pnnc P10 ' 0 • l
.
d e Pero e Mana, . .d fi lics de Ana SeiXas e ManO<
ao contráno do ocorn o nas con 155 fO.
Franco, igualmente casados na forma tridentina. Quem ddl.agrou 0 procc'SSO .1'
a rigor, a irmá de Maria, Francisca Grega, denunciando 0 cunhado por só poss~n
al amea~á-la de mone "' nao
a esposa pelo "vaso rraseiro", jamais pdo natur • e . M .
. · f, · a ..,1 de a própna ana
consenrisse na "dita torpeza". Quinze d1as depols 01 "d Ira
. d
G rega apresentar·se e acusar o esposo, d 1zen nunca scu man o a pos:su
o que ra1.
" d mamioporKuvason.aN •
naturalmente por diante; "muiras vez.es an ava co nd • _
. "lh 1 vaosptsmetc oscu mem
punha-a de costas e, "por cima da barnga e a cntl
!74
bro desoncsto por baixo do vaso uasciro". E ain~.a lhe dizia que náo pecavarn
naquilo, e que lhe "canaria 3 língua com urna fac_a se contassc o que faziam "na
cama, 00 cháo e sobre 3 rerra". Passados quarro d&as, sabedor do que dele diziarn
30 visitador, apressou-se Pero Domingues a confessar suas culpas sodomíticas.
Contou que havia dais anos era casado com Maria Grega e de fato nunca lhc
penetrara no vaso namral por ser "moc;a ~ui[O ásp_era de condic;.áo, e o náo querer
consentir" e que semente urna vez havta comeudo a sodomia com a mulher:
"cheio de vinho", cuidava que a penetrara na vagina, mas o fizera no 5.nus, derra-
mando intra vas.
Heiror Furtado nada fez sobre o caso até receber nova denúncia de Maria
Grcga, meses depois, renovando as queixas anteriores. Só entáo mandou prender
e processou Pero Domingues. Transformado em réu, Pero confirmou sua antiga
confissáo e acrescenmu que chegara a esboferear a esposa por náo re-lo advertido
de que a penetrara no vaso errado por ocasiáo da faddica cópula. E acrescentou,
rambém, que depois de sua confissáo na gra~a cuidara logo de possuir a mulher
pelo vaso natural, "levando-a de sua honra". Acusou, porém, o sogro, a cunhada
e a própria Maria de urdirem urna conspira~áo contra ele, réu, rentando mará-lo
e acusando-o falsamente no Santo Oficio. Negou, em suma, que desse preferencia
ao anus em suas cópulas com a mulher. Dianre da obsrina~áo do réu, o visirador
procc:deu as diligencias, apurou as inimizades da cunhada, do sogro e da esposa, e
absolveu Pero Domingues de rodas as culpas. Levou o caso as úlrimas conseqüen·
cias náo porque lhe interessassem as mazelas de simples casal da Bahia, que disso
tratavam os confessores ou vigários da Vara eclesiástica, senáo por suspeirar de
má-fé do réu. Talvcz fosse um viciado em cometer o nefando coma mulher, talvez
perperrasse mais atos do que o único admilido na gra~a. perjurando na mesa
inquisitorial. Mas, ao constatar que a esposa e os parentes adiavam o mo~o, deu-
lhe crédiro e mandou-o seguir em paz." Afina!, se mesmo em rela~áo aos fanchonos
o Santo Oficio náo se imponava muito com coims episódicos, ainda que proibi-
dos, por que haveria de se inquietar com nefandices conjugais?
O segundo "grande" procc:sso reve por vlrima o jovem mercader Rodrigo
Fídalgo, cristáo-novo morador em Pernambuco - acusado de sodomiz.ar urna
escrava de 15 anos que trouxera de Angola. O caso se tornou rumoroso depois
que a própria mo~a o rela~ou a urnas ••negras ladinas". 0 que, chegando aos ouvi-
dos de Maria d' Almeida, mulher dada a mexericos, acabaria virando denúncia
contra o jovem senhor. Convocada para depor, a escrava teve de faz.~-lo por meio
de int~rprete, e admitiu que dormira com Rodrigo urna só vez pelo vaso traseiro.
e ourra pelo narural; o único problema dessas cópulas foi-lhe aconreccr "náo rerer
as urinas" no di a seguinre, conforme como u - ela o u o imérprete?- na mesa da
visita~áo.
Preso por ordem de Heitor Fu nado em razáo de náo ter confessado esse ato
rara - e ralvez porgue era cristáo-novo e rico _ Rod · F.d 1 fi
na g .,. • . , ,. . . • ngo 1 a go tea u
apavorado. Pos-se a delatar mumeras praucas Juda 1zames da máe, da tia, dos
irmáos, de amigos da família e outros, a exernplo de jejuns, ora~óes e mais costu·
mes "judaicos" - emboca frisasse que jamais seus familiares riveram a imen\áO
de judaizar. Apenado pelo visitador, reperiu sua versáo, acrescemando náo ter
confessado na grac;a por motivo de viagem. Pois, entáo, deixando de lado 0 supos-
to judaísmo do réu, argüiu-lhe o visitador: sabia que dormir "homem com mu-
lher pelo vaso traseiro é o mesmo pecado contra natura nefando"? Pecou desse
modo com alguma pessoa? Como se chamava "urna moleca com quem lhe fazia 0
pecado nefando"? Quem poderia te· lo visw em tal aw? Rodrigo Fidalgo resisriu:
admitiu ter comprado a "moleca", mas negou wdos os ajunramentos carnais,
fossem o u ná.o nefandos, parecen do temer mais a culpa de sodomía que a de apostasía
judaica(!?). Mas remeu em váo; ná.o sofreu pena por sodomía nem por judaísmo;
semente por se ter omitido no período da gra.ya. 4?
Foram esses, porranro, os casos mais "sérios" de nefandos imperfeiros jul·
gados na ColOnia: dois homens processados por suspeira de má·fé ou omissáo,
mais que por culpas sodomíticas. No domínio da heterossexualidade, a suposta
heresia do nefando se dissolvia como por encanw; a sodomía perdía suas coces
abomináveis e lentamente escorregava, enquamo aro sexual, para o terreno dos
pecados afetos aos confessores sacramenrais. Náo por acaso, esriveram os
inquisidores de Lisboa a discutir se rambém no caso de "homem com mulher" era
o crime nefando matéria inquisitoriaPo E pouca coisa se alrerou ao decidiremos
inquisidores que, apesar de menos grave, competía ao Sanw Ofício casrigá-lo-
decisáo meramente teórica, coerente com a estigmatiza~áo do coiro anal, porém
desligada da prática judiciária do tribunal. Em matéria de sodomías, os inquisi~ores
só pareciam ter urna única certeza: a de que o abominávd nefando - hertsla ou
erro d e rré - só podia ser vascu lh ad o nas re 1a.yoes
- en rre homcns ' no mundo dos
somftigos e fanchonos "perfeitos".
SODOMIA FEMININA, TRIUNFO DA MISOGINIA
castigo inquisiroriaP E, ainda, até que ponto ná~ seria ~citor fu nado 0 respon-
sável pela uniformiza\áo de relatos que !he pareoam des~uHeressantes~ Seja corno
for, a sexualidade feminina vazada nesses documentos ahgura-se-nos lmperceptí-
vel, quase opaca.
Decerto que as mulheres daquela época eram mais criativas sexual mente
do que 0 registrado naqueles autos. Eram-no na própria ColOnia, a julgarmos
pelo uso de filtros, canas amatórias, e até pelos romances que incitavam urnas
com as omras. Eram-no em todos os lugares, inclusive no plano heterossexual e
conjuga!. Era delas a iniciativa do coi ro interrompido, sugere-nos Flandrin, usado
como técnica contraceptiva até no casamento; afmal, sen do pred.rias as condi~óes
dos amigos partos, sobravam razóes para as mulheres limirarem esses riscos, con-
vencendo os maridos a ejacularem extra vm. E no caso das relac¡:óes ilícitas, em
meio a adulrérios ou no seio da prostirui\5.0, n5.o seriam as mulheres as mais
lesadas com a indesejável gravidez? Náo seriam delas as op<;óes de cópula que as
preservassem da fecundac¡:áo? 51 As lúbricas cortesás de Aretino, as dames-galantes
de Brantóme, náo faham exemplos de quáo criativas podiam ser as mulheres no
uso do corpo e na valoriza~áo de seus órgáos genirais, contrariando a "falolatria"
dos amigos, dos renascentistas e dos próprios teólogos. Em Portugal, as mulheres
usavam várias palavras para aludir ao "vaso feminino", ciosas de se u prazer, de seu
corpo ou de seu "ofício": as freiras de Santa Ana o chamavam de passarinho, as de
Santa Mana, ca"isu, as do Salvador, clitário; as da Rosa, covinha; as de Santa
Clara, mont~zinho; as putas, ave de rapina (?!); as casrelhanas, correio; as melin-
drosas, cousinha; e assim por diante. Conhecimenro popular da anaromia femini-
na, valorizac;:áo de tal ou qua! sensa~áo ou prazer, eis o que nos indica semelhante
vocabulário. 52
Além do mais, nos raros casos de "lesbianismo" argüidos em detalhe pelo
poder em outros pafses, remos a exara medida do que podiam fazer as mulheres
no máximo de seu ardor, eliminando-se a obscuridade de nossa documentaljáO a
esse respeito. A célebre Benedetta Carlini, abadessa italiana estudada por Judith
Brown, pelo menos trC:s vezes por semana se rrancava na cela com sua amante
Ban~lomea, "e fica:a se mexendo em cima dela até que ambas se corrompiam".
M~ 1sso era o m'm~o que faziam: Benedetta ainda beijava os seios da compa-
nheua, e ambas praucavam a masrurbac;:áo "aré atingirem 0 orgasmo"; segundo
co~fessou Bar~olomea, a abadessa "agarrava sua máo a forlja e, colocando-a em-
batxo dela, fazta-a colocar o dedo em seus genitais ( ... ) e ficava se mexendo at~ se
corromper a si mes:~". Em dezenas de ocasióes, ambas chegaram a dcspir-se -
faro raro- e a se beJJarcm e lamberem nas panes genitais.H Exceto pela "privad-
279
42 . Para 0 caso cspanhol, só trc!s processados em VaJéncia (0,8% dos casos de sodomia), 1! nc-
nhum castigado; 00 tribunal de Barcelona náo houvc_ casos;~ e no de Zaragoza apenas d~:L,
contra cemenas de proccssos envolvendo homossexuaJS. V. Carrasco, R. O p. cit., p. 37. 38 _
43. Primára visitaráo... Dmuncia(óts da Bahia (1591-1593). Sáo Paulo, Eduardo Prado,
1925. p. 525-528.
44. Segunda vúitaráo do Santo Oficio... Confissóes t Ratificn(óes. Anais do Muscu Paulista,
romo XVII, 1963. p. 374-376; 461-462; 524-525.
45. Livro da Visita(áo dO Santo Oficio da lnquisitáo ao titado do Griío-Pará (1763-1769).
Pmópolis, Vozes, 1978, p. 147-150; 186-191.
46. ANIT/!L., processos 2694 e 2695.
47. Id., processo 11860.
48. Id., processo 2525.
49. Id., processo 12223. Foi condenado a sair em auto, "abjurar de leve" e pagar trima cru1.ados
ao Santo Ofício. Até o Conselho Geral discordaría da semen~a. avaJiando-a poS[eriormcme:
"Este réu merecía usar-se com ele de muita misericórdia por haver denunciado sua mae (. .. )."
50. Papel de direito sobre a queS[ao se o crime nefando cometido emre mulheres ou homem
com mulher perten~a ao Santo Oficio castigá-lo. BNL/Se~áo de Reservados, códice 1531,
fls. 306-308. A discussao nao vem datada, mas deve ter acorrido no século XVII, a pro-
pósito dos Regimentas de 1613 ou 1640, os primeiros a induírem a sodomía no rol das
culpas do tribunal.
Sl. Flandrin, Jean-Louis. Familits. 2. ed. París, Seuil, 1984, p. 213 e segs.
52. Assim nos informa o irrevereme dominicano(!?) freí Lucas de Santa Catarina (1660-
1740) em sua "Resposta da Freyra para o suplicante acerca {de) que couza seja Parrameiro".
BNL. Se~ao de Reservados, manuscrito 128, Cole~ao Pombalina, p. 96. AJém de nos
informar sobre o quamo as mulheres prezavam seu sexo, 0 dominicano bem conhecia os
segredos do prazer feminino - coisa rarfssima em seu tempo. Emre outras defini~óes,
diz.ia que o parramtiro era "amigo de folgar" e quando tinha "crescimentos e solu~os" só
depois de vomitar ficava "aliviado".
53. Brown, Judith. Atos impuros. Sao Paulo, Brasiliense, 1987, p. 169; 172-173.
54. Erilwon, Brigíue. A Lesbian Execution in Germany, 1721 - the Tría! Rccords. In Licata.
S. e Petersen, R. {org.) Historica/ Pmptctiws on Homostxuality. New York, Hawonh Press
lnc., and Stein and Day Publishers, 1981, p. 37.
55. Aguisa de exemplo, vária.s mulhercs foram punidas com a~oites pela justi~a civil castelhana
por usarem ínsnumentos "in forma dt naturt dt hombrt''. V. Cardaillac, Louis e Jammes,
Roben. Amours et Slrxualité a travers les mémoircs d'un inquisitcur du XVIlc. siedc. In
Amours ligitimts, amours illigitimts tn Espagnt. París, Publications de la Sorbonnc, 1985,
p. 188.
56. Em Herondas, VI, vinculava-se ()uso desses instrumentos a "falta de satisfai(ÓCS conju·
gaisn. V. Rouselle, Alinc. Porniia; uxualidadt t amor no Mundo Antigo. Sao Paulo,
Brasiliense, 1984, p. 82.
Do rf.CAL>O ALL~.Il~-~~A
285
PROCESSOS E IMPUNIDADES
Trópico dos pecados, o Brasil foi no entanto colonia das menos atingidas pela
repressáo tridentina no mundo ibérico, ao menos no tocante as moralidades e aos
desejos afetos a Jnquisi~o. Colonia imen5a onde OS podera Knhoriai5 sempre
lcvaram de vencida os débeis representantes da Métropole, Colonia cm que a
lgteja fota sempre desarticulada e fraca, a ex~ dos jesuitas, o Brasil acabarla
menos castigado pelo Santo Oficio que as metrópole5 ibéricas, Goa e a vizinha
América espanhola. Na segunda metade do •éculo XVIII, fortalecida a adminis-
""''áo colonial pelas reforma5 pombalinas, multiplicados os bupados e orpniaa-
da a esrrutura paroquial, a Inquisi~áo e51a.,. ji em franca decadencia na Penlrm~
la. Ainda nos anos 1740-1760, a miquina de su~o de hereses daria mosms de
alguma clici~ncia, recolhendo dezenas de infelizes de virias qióes bruileiras,
noradamenre das Minas do ouro¡ mas nas ú.lrimu d«adas dos seteceoros srriam
288 TROl'iCO Dos PECADos
rnida¡áo ali que e m Portugal, país em que a persegui10áo foi mais modesta. Quer-
nos parecer, contudo, que o principal motivo para o declínio das persegui¡;óes
residiu em que também os pretextos da incrimina¡yáo dos fornicários perderam
sua razáo de ser- o que se nos afigura igualmente válido para a "errónea compa-
ra~áo enrre o matrimónio e o celibato religioso". Náo emraram essas falas no rol
das heresias quando mais acirrada era a lutada Igreja comra o avan ¡yo protesrame?
Náo resultara do Concílio de Trento a suspei¡yáo de luteranos que recaiu sobre tais
dizeres' Ao longo do século XVII, demarcadas com nitidez as fronreiras do cato-
licismo e da Reforma, os que diziam náo pecar ao dormirem com prostitutas, os
que pensavam "ser mais fiel a Deus o bom casado que o mau padre", deixaram de
ser heteges aos olhos do inquisidor, e suas falas acabariam reduzidas a pecadilhos
ou "falta de doutrina", nunca má-fé. Se também animara aos inquisidores perse-
guir fornicários e casadoiros por razóes morais - defesa do casamemo crisráo e
do airo valor da casridade, respectivamente-, o fim dos "arrifícios" usados para
essa campanha moralizante acabaria por extinguí-la, ao menos nos moldes até
enráo adorados.
Em Portugal, só por inércia as duas proposi~óes permaneceram incluidas
nos monirórios inquisitoriais, especialmente a defesa da "fornica~áo simples". ex-
plícita no monitório de D. Francisco de Castro (1640), no regimento "pombalino"
0774) e no monitório de Goa (1780), embora se lhe náo referisse o vasto rol de
quarema delitos fixados no Regimento do Audirório Eclesiástico, roceiro de cul-
pas utilizado pelas visitas diocesanas no Brasil após 1707. 4 E na visirac¡:áo paraense
do século XVIII náo encontramos nenhuma confissáo o u denúncia daqudes erros
enrre os vários recenseados por Geraldo José de Abranches .• Seja como for, apó~
1650 foram raríssimos, mesmo e m Portugal, os culpados de 'defender os casados
ou a fornicat;áo; se houve denúncias náo o sabemos, mas processos ~ora~ re~·
mente poucos O último que vimos processado em Lisboa por confc:-nr pnmaz•a
ao casamento .foi um cal Simáo Dias, em 1656, que dc:-ve [é-lo feüo com ~ra~de
peninácia, senda dois anos degredado para Casrro·Marim. ~Qua~ ro a forn_•ca.;ao,
· dos em Losboa, doos ddes
de 1717 a 1723 encontramos quarro homens sentenCia d
. . . m 0 sexto mandamenro a par e
em circunsráncias muiro espec1a1s, pou contestara l h ''G h ...
0 30
erras rnais gravosos: o rrabalhador AntOnio Rodrigues, de a cun a an · '
l · h com cena mulher como se tos.se
que afirmava "ser lícito a cópula carna que nn a l do"· J ttph
. S h a Nossa lho rc:-rc:-m revc a • e o
com ela casado, por Deus e a V1rgc:-m en or . . L-· . rrs
d da luxúna JUnto a ·~·n~ e ar
Manreigas, cambém acusado d e negar o peca 0 . b . .111 •
. . 0 primelfo aca ,arra que• -
mágicas que usava para seduz.lf mulhercs mcautas. f .i . ~ 0
do por herege e vi.sionário pertinaz - nunca pelos dizert'.S ornK rro.s - .
segundo condenado iis galés pela culpa ~gravante de ora<;ócs rorpcs." A "defesa da
fornica(jáo" _se emáo podemos chama-la dessc modo - rransbordaria em do.
mínios semelhanres aos frcqüenrados pelo tal Manreigas, ou seja, no terreno da
magia erúlica, das ora(jóes e dos filtros amorosos que homens e mulheres adora-
varo usar cm busca de casamenros ou conquistas tanto em Porrugal como no
Brasil. Acusa<;óes de "magias fornicárias e casadouras", cssas si m náo faltariam a
nossa visita(jáO do Gráo-Pará, rastreadas por urna lnquisi¡yáo cambaleanre, porérn
ciosa da fé católica, mais que de sua moral sexual e familiar.
Mas é principalmente no rocanrc ao "abominável pecado nefando" que
constatamos a parcimónia com que o tribunal de Lisboa puniu nossos colonos,
para glória do diabo, em comparac;áo ao que fazia na Metrópole. Do século XVI
ao XVIII, 49 pessoas foram processadas por sodomia na Colonia, dos quais 73%
eram nossos conhecidos somítigos e fanchonos envolvidos em rela¡yóes homosse-
xuais. Na visita do século XVI foram-no 19; no século XVII, fora da visita, ape-
nas oito; e no XVIII, nove indivíduos. Comparada a persegui¡yáo inquisitorial nas
mctrópolcs ibéricas, a acorrida no Brasil foi modesríssima: 411 nefandos foram
punidos sornen te no tribunal de Lisboa, entre 1547 e 1768; 132 em Zaragoza,
apenas no século XVI; e 259 em Valéncia, de 1547 a 1775. 7 Especialmente no
século XVII, tempo em que mais foram perseguidos os sodomitas pelas lnquisi¡¡:óes
lusitana e aragonesa, os singelos oito nefandos coloniais sentenciados em Lisboa
se nos afiguram irrisórios. Em Ponugal, nada menos que 270 indivíduos foram
punidos por sodomia nos autos ou nas salas dos rribunais lisboeta, eborense e
coimbráo nos anos seiscemos (60% do tO[al), o mesmo ocorrendo coma imensa
maioria dos "soméricos" valencianos entre todos os punidos pelo Santo Ofício.
Igual intensidade persecutória, de longe superior a dos piores tempos medievais,
ocorreu cm países onde náo havia lnquisi\áo: na Fran¡ya católica, 90o/o dos 43
bougm condenados a várias penas pela justic;a civil foram-no nos séculas XVI e
XVJI;B na pequena Genebra calvinista, onde mais rigoroso que o Santo Ofício era
0 terrívd Consistório, a grande maioria dos sessenta sodomitas processados 0 foi
Jaime Conueras contabilizou 1.01 O relaciones de causas contra bígamos nos vários
rribunais aragoneses, além de 1.097 casrelhanos.l_l Quanto J América espanhola
embora também ali a intensidade da puni<;áo fosse inferior a metropolitana, 19~
bfgamos foram processados pelo tribunal do México até o final do século XVI!, e
241 pelo limenho de 1560 a 1750- números bem superiores aos de nossa Colo-
nia.l4 Algo de semelhante ocorreu também nos casos de solicita<;áo: em Lisboa
foram pelo menos cinqüenta os religiosos e os padres seculares processados enrre
1647 e 1750; em Aragao e Casrela foram 534 e 545, respectivamente, até 1700; e
nos ttibunais hispano-americanos foram 161 até fins do século XVII, além de 12,
no Peru, durante as primeiras décadas do século XVIII. Esses números indicam-
nos, urna vez mais, que o Brasil foi das áreas menos punidas no conjunto dos
domfnios ibéricos da América, mesmo no visadíssimo crime de bigamia- prava
da precariedade do aparelho de poder em nossa Colonia, mais que desdém, nesse
caso, pelos transgressores do matrimónio e da confissáo. IdCntica fragilidade náo
arriscarfamos estender a Portugal, apesar dos números inferiores aos de Espanha,
cm se tratando de um pequeno país ande funcionavam apenas rrCs rribunais con·
rra os 16 do vizinho peninsular- mais amigos, inclusive-, excetuando-se os da
Sidlia, das Canárias, de Lima, do México e de Carragena.
Por outro lado, a trajetória estatística da puni<;áo desses crimes revela·nos
muiro sobre a prática e eficácia da ac;áo inquisitorial. No caso portuguCs, o au·
mento dos processos de bigamia e solicitac;ao no século XVIII indica-nos que, se
os inquisidores deixaram de perseguir os .. fornicários", passaram a zelar mais pelo
próprio casamento, castigando os bígamos¡ e se deixaram de perseguir os que
duvidavam da primazia dos religiosos, passaram a vigiar 0 próprio clero, especial·
mente no sigilo do confessionário. Mas o crime dos solicitantes ainda apresenta
muiras !acunas para urna avalia<;áo de conjunto, extensiva aInquisic;:áo espanhola,
já que a perseguic;ao foi muito desigual nos diversos tribunais de Castela e Aragao:
e~ alguns deles, inclusive os hispano-americanos, o auge das puni<;óes foi ante·
nora 1614, ao passo que noutros se localizou na segunda metade do século XVII.
Já em Portugal parece indiscutfvel que cerca de 80% dos solicitantes processados
0 foram depois de 1700 - o que com certeza também ocorreu em relac;5.o ao
l~ra.~il, tcrra em c¡ue praricamenre só foram processados solicitantes no século XVIII.
f:.m rdac;áo a bigamia, o pico da repressáo espanhola deu-se enrrc meados do
século XVI e infcio• do XVII: de 1615 a 1700, o fndice dos bfgamossentenciados
declmou 67%, no conjunto da lnquisi~áo hispinica, e 69% no México e no Peru,
mantendo-se estável ou decrescendo ainda mais na primeira metade do século XVIII.
Tamb~m no Sanro Oficio lisboeta, o mais aruanre dos ponuguescs, a persegui~áo
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bígamos. caiu..53% no século XVIII,. e náo deve rer sido dif.erenr eo=~
mento dos ¡nqUisJdores de Évora e CO!mbra a esse respeito. Seria esse decréscimo
dos processos um resultado das violentas perseguic;:óes dos anos quinhemos, em
Espanha e América, e dos seiscemos, em Portugal - persegui~áo inibidora de
um crirne largamente difundido em pavos mareantes~ Ou seria 0 declínio dos
bígamos um reflexo da decadencia da lnquisic;áo ibérica na segunda merade do
século XVIII? Possivelmenre os dais fenómenos encomram-se na raiz desses nú-
meros. Mas, seja como for, no Brasil deu-se o connário, e o índice de bígamos
processados cresceu 236°/o naquele século, continuando a ocupar os inquisidores
lisboeras com um deliro já declinante no Reino. Sem dúvida, o trópico lusitano
deixou de ser o paraíso dos bígamos e dos solicitantes portugueses no transcurso
dos se recentas, e certamen te porque foi nessa época que a Igreja, as visitas diocesanas
e o aparelho inquisitorial passaram a funcionar melhor na vasta Colónia.
Em plena era das Luzes, rambém a bigamia acabaria "secularizada" na Pe-
nínsula Ibérica, sobrerudo em Espanha, onde a ascensáo de Carlos III ao trono
representaría o golpe final na jurisdi<;áo inquisitorial sobre esse crime. Nos anos
1770-1780, o julgamento de bígamos seria reralhado pelas várias jusric;as espa-
nholas: as Corres seculares caberia julgar o dano causado ao parceiro e aos filhos
pelo falso marido e pai (o u pela falsa esposa e máe); a Jusric;a Eclesiásrica incum-
biría cuidar da validez e da anula<;áo dos casamenros; e ao pobre Sanro Oficio
competiría averiguar a eventual ocorrfncia de heresia nas inten~óes do cri.mi~o
so... " Na prárica, porém, o julgamenro dos bígamos foi transferido para a l~sroc;a
civil, e a anulas:áo dos segundos casamenros confirmada na al~ada ede.sJ~n~a,
perdendo os inquisidores sua antiga jurisdit;:áo sobre os "hereges" do mammomo.
Nao se adoraría semelhante decisáo em Portugal. aoque nos consta, e os bígamos
continuariam afetos ao foro inquisitorial até a extin~áo do Santo Oficio, em 1821 ·
Em nosso atrasado trópico ficariam os comtss . .."nos
. do rribunal a cac;ar alguns
b¡gamos, .mclus1ve
. . > - d
no se 1o da populas:ao escrava, urante
1783 1799. 1804 <
' . b
oUtros anos "extravagantes " , mforma-nos
. Dav1.d H.1ggs, dedicado lo p<squlsadso "'·-
os estertores da lnquisis:áo porruguesa.l6 Enquanro se conspirava conrr: a oml
- . e 1' . Santo Oficio
nas:ao portuguesa em várias partes da annga 0 01113 • 0 .
<S!ol\'•v:I-S<
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ndo herrs1as no rróflll.""O ...
por compensar a relativa impunidade do passado rastrea ·
E · á io d< Sáo P.ulo • n:sp<'"'
m 1799, chegaria mesmo a enviar ordens ao comass r . d '<kr.i-
de que aritudes deveria tomar e m relas:áo abigamia, quem 53 ~ por 110 aronsl
la u m "crime de fé" ot<:nsivo ao carolicismo ... 17
TROP!CO Do~ PECADos
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