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TRÓPICO
DOS
PECADOS
Moral, Sexualidade e lnquisi~áo no Brasil

EL COLEGIO DE MEXICO

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COLE(AO HISTORIAS DO BRASIL

A col~o HISTÓRIAS DO BRASIL busca divulgar resuhados


expresslvos da pesquisa histórica produzida no pa's nos últimos
anos. Indui, assim, conuibuic;óes valiosas e indicativas da
rcnovac;áo de nossa historiografaa. Renovac;áo vigorosa, vale dizcr,
porque ancorada na pesquisa sistemática de fomes primárias, na
dcscoberta de novas problemas de investigac;áo e na explorac;.Jo
de terrltórios durante muim tempo eclipsados pelos csmdiosos.
Tuda isso scm abrir máo do diálogo critico comas interprctac;óes
clá.ssicas da história do Brasil, em simonía com os debates e
polCmicas da his[Oriografaa internacional.

PRóXIMOS u.N<;AMENTOS:

0AS CORE.S DO Sll!.NCIO: OS SIGNifiCADOS DA UBERDADE NO SUDESTE


ESCilAVISTA- BRASIL SOCULO XIX.
Hcbc Maria Manos.

A COLONlA EM MOVIMENTO: FORTUNA E FAM(LlA NO COTIDIANO


COLONIAL.
Sheila de Castro Faria.

A HISTÓRIA CONTADA: CAPITuLOS DE HISTORIA SOCIAL DA UTERAWRA


NO BRASIL.
Sidney Challoub e
Leonardo Affonso de Miranda Pereira {org.).
RUNi\UlO V i\INI'i\S

TRÓPICO
DOS
PECADOS
Moral, Sexualidade e lnquisi~ao no Brasil

3" IMPRESSÁO

.
-
EDITORA
NOVA
FRONTEIRA
Ü horizonte de seus inreresses era bem esrreiro: limi-
rava-se 3. satisfaijáo das necessidades de sobrevivencia
- as do estómago, para manter a vida, as do sexo,
para continuar a espécie. Os apdos espiriruais eram
nulos: iam a igreja por rorina e por medo de náo sabi-
am que, acrediravam em Deus, rezavam, mas em rudo
isso a fé confundia-se com a crendice e a rdigiá.o era
mais u m meio de procurar pOr o Eterno ao serviljo dos
inreresses pessoais, de estar bem com Deus e com os
homens. Entendi entáo que falar em pecado a pessoas
como elas náo rinha qualquer ra.záo de ser.

f,..¡ Pamaleáo de Aveiro - ou


Fernando Campos, A Casa do Pó
ABREVIATURAS

ABN Anais da Biblioteca Nacional


AMP Anais do Museu Paulista
ANTI Atquivo Nacional da Torre do Tombo
BNL Biblioteca Nacional de Lisboa
HAHR Hispanic Amtrican Historical Rtvitw
IL Inquisi~áo de Lisboa
RIHGB Rtvista do Instituto Histórico t Gtogrdfico Brasiltiro
Este livro resulta da pesquisa de douroramento que realizei na U SP. entre 1984 e
1988. Sou grato a CAPES pelas bolsas que me concedeu no período, incluindo o
auxílio para a consulta dos arquivos de Lisboa.
Agrade~o profundamente ao professor Eduardo d'Oiiveira Fran~a. orientador
do trabalho, pelo apoio decisivo nos momentos cruciais de sua elabora¡;:áo.
Diversos professores e colegas da USP me apoiaram decisivamente, pelo
que !hes sou muito grato: Anira Novinsky, grande mestra, Aurélio Delgado, Eni
de Mesquita Samara, Fernando Londoño, Lina Gorenstein, Ida Lewcowicz, Mary
Del Priore, Renaro Venáncio, Ronald Raminelli. Sou especialmente grato a
Fernando Novais, que sempre me esümulou desde o início.
Os amigos portugueses me ajudaram muitíssimo e lhes renovo meu agra-
decimento: a Fátima Coelho, a José Manuel Zaluar, a Francisco Berhencourt e,
sobretudo, a Robert Rowland, cujas luminosas indicar;óes wrnaram viável a pes-
quisa que realizei no Arquivo Nacional da Torre do Tambo.
Diversos colegas e amigos da UFF me apoiaram de diferentes maneiras,
mas alguns de forma muito especial: Ciro Cardoso, como sempre (e náo obstante
nossas diferenc;as teóricas); Jorge Luiz Ferreira, Lana Lage, Magali Engel, Rogério
Ribas, Rache! Soiher e Vánia Fróes.
Agradec;o, enfim, aos que me acompanharam mais de peno, trocando idéias
e dando estÍmulo valioso nos anos da pesquisa. A Daniela Calainho devo sincero
apoio naqueles tempos. Com Caio Boschi comparcilhei dilemas e percursos em
Lisboa. Luiz Mott indicou-me, generosamente, textos e documentos importantes,
além de me brindar com sua crítica minuciosa em assunros inquisiroriais. Laur~1.
de Mello e Souza foi calvez a minha principal interlocutora nesre trabalho, a quem
devo inúmeras sugesróes, apoio valioso, inspira~áo.
SuMARio

INTRODU<;:ÁO 13
PARTE 1
OS DOIS MUNDOS NA ENCRUZILHADA DO PECADO 17
CAPITULO 1
A CONTRA-RErüRMA E O AL~M-MAR 19
Tempo de Reforma 19
A Igreja e a Missáo 25
Acultura~áo no trópico 28
VIcios do trópico, pecados do mundo 36
Outras faces do pecado 39
A intimida~áo da Colonia 43

PARTE2
MORALIDADES DO TRÚPICO 57
CAPITULO 2
NORMAS DA FORNICAy\0 59
O desejo dos homens 59
Escrúpulos e culpas 62
Mulheres degradadas, fornica~áo lícita 69
CAPITULO 3
CONCUBINATO E MATRIMÓNO 77
Cosrumes e leis 78
Práticas do concubinato 83
Importancia do casamento 99

CAPITULO 4
PATRIARCALISMO E MISOGINIA 115
Familia e ordem patriarcal 115
Casamento e misoginia: saberes eruditos 121
Casamento e misoginia: costumes populares 127
Rebeldias e cumplicidades: o mundo "=minino 139
CAPtrULO 5
0 NEFANDO E A COLÓNIA 151
Sodomía e homossexualidade 152
Somitigos e fanchonos 166
Mulhercs nefandas 182

PARTE3
A TElA DO INQUISIDOR 193
CAPtruL06
0 SANTO OFICIO NOS DOMINIOS DA MORAL 195
lnquisi~iio, Reformas e Justi~as 195
Moralidades e desejos heréticos 199

0.PITUL07
INQUISiy\.0, MORAUDADES E SOCIEDADE COLONIAL 221
A~áo inquisitorial na Colonia: instirui~óes 221
Cumplicidades, pinicos: confessar e delatar 229
lnquisi~iio e sociedade: espdho das hierarquias 237
CAPITULO 8
Do PECADO A HERESIA 245
Fornicários e casadouros: ignorancia das faJas, equivocas do poder 251
A má-fé dos bigamos: afirm~iio do núcleo dogmático 256
Os sodomitas: entre o erro dos sentidos e o sentido do erro 261
Nefandos imperfeitos: a hercsia dissolvida 271
Sodomía feminina, triunfo da misoginia 276
C\Ptruw 9
A ENGRENAGEM PUNITIVA 287
Processos e impunidades 287
Justi~a e misericórdia 299
Castigos da Coltmia: privilégios e discrimina~óes 323

CONCLUSÁO 339
GRÁFICOS 343
FONTES E BIBUOGRAFIA 347
INTRODU<;:ÁO

A história que ora apresento, dedicada as moralidades e as sexualidades no Brasil


entre os séculas XVI e XVIII, ocorreu-me quando estava para concluir meu uaba-
lho de mestrado, ldeologia e escravidáo: os letrados e a sociedade escravúta no BrasiL
colonial Preocupava-me, enráo, coma possível genese de um projero escravocrara
no seio da cultura escrita de nossa ColOnia, especialmente entre os !errados da
Companhia de Jesus, prinéipais inteleccuais daquele tempo. Preocupava-me com
o sentido ideológico da pregas:áo inaciana conrra os abusos da escravidáo negra,
nocadamente a partir do século XVII, que procurei inrerpretar como um amplo
programa de reformas capazes de amortecer as conrradir;óes sociais e, ao mesmo
rempo, cristianizar o Brasil escravista, rerra cáo avessa ao catolicismo que os
inacianos buscavam difundir no ulrramar ibérico.
Notara, porém, a par das admoesta<;óes daqueles letrados contra a sem-
razáo dos senhores no tratamento dos escravos- as violencias físicas, a tolerincia
dos calundus - , ambi<;óes mais amplas do que a reforma conservadora da ordem
escravocrata; notara a forte reprova<;áo dos hábiros sexuais e desregramentos mo-
rais que, no entender dos jesuítas, marcavam o cotidiano das casas-grandes, sen-
zalas e mais recanros da imensa colOnia portuguesa. O discurso escravista de ins-
pira<;áo religiosa parecia ser, assim, mais pretensioso, e náo apenas preocupado em
impedir a rebeliáo escrava, racionalizar a produ<;áo dos engenhos ou persuadir os
senhores a catequizarem os negros para a glória de Deus. Parecía, antes de tuda,
vincular-se a pasroral implementada pela Contra-Reforma na Europa e no além-
mar, cristianizando fiéis imperfeitos do Vdho Mundo, evangelizando pagios do
mundo descoberto, uns e outros estigmatizados por seu apego a luxúria, pecado
mortal e capital.
Dedico-me, portante, a esquadrinhar os valores e os métodos de tal projeto
moralizante, veiculado no trópico náo apenas pela lgreja, pelos jesuitas e por
outras ordens religiosas, mas também pelo Santo Oficio da lnquisi\áo, tribunal
que, após o Concilio de Tremo, trouxe a si o dirciw de julgar diversas condutas
sexuais assimiláveis, cm seu juízo, a heresias- ni mes de tC. Estudar semelhante
projeto e confrontá-lo, na medida do possívd, com ólS moralidades de nosso cotl-
diano passado, examinando ainda os caminhos rrilhados pelo poder a flm de
transformar pecados da carne em erras heréticos, eis os objetivos essenciais do
rrabalho em questiio.
A diferen~a da dissena~áo de mestrado - trabalho preocupado corn as
ideologias, e realizado com base nas conccp~óes de Lucien Goldmann sobro a
consciencia de classe - , o atual se inscreve no que se convencionou chamar de
história das mentalidades, voltada para o vasto campo dos senrimentos, desejos,
crenc¡:as, costumes e de outras atitudes situadas na fronreira entre o individual e 0
coletivo, entre o movimento e a inércia das épocas passadas: hisrória das "visóes de
mundo", diria Mandrou; da dialética entre as condi~óes objetivas da vida dos
homens e a maneira como eles a narram e mesmo como a vivem, diría Vovclle.
Inspira-se, mais particularmente, nos estudos sobre o catolicismo e as moralidades
na época das Reformas, sobre os dispositivos de controle utilizados pela lgreja
Católica ou Protestante e m matéria sexual e moral durante os séculos XVI. XVII
e XVIII. Refiro-me, especialmente, aos trabalhos de Phillipe Aries, Jean Delumeau,
]ean-Louis Flandrin, Pierre Bérard e tantos oucros que se dedicaram a estudar o
a
mesmo fenómeno em rela<;áo Europa. Inspira-se, ainda, em autores que exami-
naram o assunco a partir da Inquisi<;5.o ou das fontes inquisitoriais, a exemplo de
Le Roy Ladurie, Banolomé Bennassar, Jean-Pierre Dedieu, Cario Ginzburg e, na
historiografia brasileira recente, Luiz Mon e Laura de Mello e Souza- pesquisa-
dores que diversificaram o esrudo da lnquisi~áo no Brasil. E meu rrabalho se
inscrc:ve também na recente bibliografia que, entre nós, busca repensar o proble-
ma da família e da moral nos tempos coloniais, da qua! destaco os estudos de
Maria Beatriz Nizza da Silva e Eni de Mesquita Samara e as recentes pesquisas de
Mary del Priore, Renato Venincio, Lana Lage, Fernando Londoño e outros cole-
gas da Universidade de Sao Paulo.
Mas, convém repetir, trata-se de um estudo teoricamente aberro, flexivel a
ponto de adorar cenas preocupa<;óes de Foucault na História da sexua/idi1deou e m
Vigiar e punir, e as do grande marxista Mikail Bakhtin, autor de A cu/t¡¡ra popular
na /dad~ Mldia e no Renascimento- livro-chave para a compreensáo do conflito
instaurado na época moderna entre as mentalidades populares e os saberes erudi-
tos no Ocidente numa perspectiva de classe - , o que, por si só, talvez dilua a
rfgida oposic;áo que muitos estabelecem entre ideologías e mentalidades. Arrisco-
me, ponanto, a deslizar eventualmente para o terreno movediijo da ambigüidade
teórica, minorada, em parte, pelo tom descritivo que conduz a narrativa. Seja
como for, preferi seguir essc caminho do que correr os também perigosos riscos do
dogmatismo e do anacronismo, a que podem levar a insistencia obstinada no uso
de conceitos inflexiveis. Mas longe estou _ d
. , . ou, ao menos, preren o estar - de
urna h1scona que preconiza a "absoluta a r
. . . , . .
· d !" d' · -
u onom1a o mema , a lluu;:ao dos
suJeUos histoncos coleuvos. Quer-me parecer
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- e Jsso sera· o ¡eHor
· a comprova-
· ¡o
~que n_áo ~e~ a m~u es rudo "sobre camadas de ar", recusando-me a correlacionar
autudes mdlvJduaJs, ou modos colerivos de pensar e sentir, com a roralidade his-
tórica. e m questáo: as transformac;óes da época moderna, 0 colonialismo, 0
escrav1smo.
Embora náo lhe siga nas ídéias ou na concepc;áo da história, meu rrabalho
esposa o roteiro sugerido por Foucault em "O uso dos prazeres" para urna história
da moral- o qua! comporta trés possibilidades: 1) os sistemas de regras, leis e
valores que vigoram socialmente, bem como as instáncias de poder que !hes dáo
vigencia (história dos códigos); 2) a condma das pessoas, mais ou menos ajusta-
das as regras vigentes (história das moralidades); e 3) os modelos propostos para a
instaurar;áo e o desenvolvimenro da relar;áo de cada indivíduo consigo mesmo
(história da ética e da ascética). NeS[e Trópico dos pecados procurei colocar-me,
com efeiw, a partir desses tres pomos de observar;áo: as regras éticas da lgreja e as
agencias de poder empenhadas em difundi-las, mormenre a Inquisir;áo; as condu-
tas morais e sexuais do "viver em colOnias"; os modelos ideais de comportamenro
que, entre as normas oficiais e as regras do cotidiano, buscavam aproximar os
indivíduos e as verdades absolutas da Contra-Reforma.
Urilizei, para tanw, documenrar;áo variada e numericamente razoável: cor-
respondencia jesuítica, tratados morais, crónicas e hisrórias coevas, legisla<;áo ré-
gia, constiruir;óes eclesiásticas e, sobretudo, fonres inquisiroriais - confissóes,
denúncias e processos relativos as clássicas visitar;óes a Bahia, a Pernambuco e ao
Pará, bem como a outras regióes e períodos, para o que trabalhei em arquivos
brasileiros e portugueses entre 1984 e 1988. Quanto as fonres inquisitoriais, pro-
curei aproveitá-las de modo duplo, seguindo os passos de Le Roy Ladurie, Ginzburg
e Laura de Mello e Souza. Li-as, pois, no sentido tradicional. enquanto fomes
judiciárias empenhadas na decifrar;áo de heresias, mas li-as também na conrra-
máo, nas enrrelinhas, em busca de senrimenros e moralidades que outra coisa
podiam significar além dos erras que, a prion~ !hes imputavam os inquisidores.
A dupla leitura a que submeri as fontes, muiw inspirada na que lhes deu a
aurora de O diabo r a Urra dt Santa Cruz, espelha-se na própria esrrurura do
trabalho. A primeira parte, "Os dais mundos na encruzilhada do pecado'', corn-
póe-se de apenas um capítulo geral. ande procuro conrcxtualizar a colonizar;áo do
a
Brasil nos quadros da Contra-Reforma, especialmeme no wcante estigmatiza\áo
dos híibiros sexuais do Novo Mundo, relacionando essa última coma degrada\ao
do homem e da vida temporal pdos di retores de consciencia da Europa moderna.
A segunda paree, "Moralidades do trópico", ~edi~a-se a reconstituir 0 cotidiano
da Colónia com respeiro ao casamenro, aconJugahdade, ao amor, aos dese jos, aos
usos do carpo, ere., e ncla utilizo a documenta~áo do Santo Ofício menos como
fonte judiciária do que como manancial de informa~óes acerca das mentalidades
coloniais. "Normas da fornica41áo", "Concubinato e matrimOnio", "Parriarcalismo
e misoginia", "O nefando e a Colónia", eis os capitulas dessa parte que, debrw;an-
do-se sobre as moralidad .. de nossa antiga sociedade, buscam desvendar regras
populares ande, para muitos autores, imperava o mais absoluto caos sexual _
rcgras que, sem dispensar o preconceiro racial, náo poupavam a mulher, os ho-
mossexuais, os concubinários, e prezavam o casamenm, a fidelidade e ourros valo-
res cristáos, embora muiras vezes colidissem com os dogmas da lgreja Tridenüna.
Na cerceira e derradeira paree, "A teia do inquisidor", dedico-me a exami-
nar o embace emre as moralidades do cotidiano e as normas oficiais, o esfacelar de
solidariedades afecivas e comunitárias, o afluir de preconceitos incitados pela
Inquisi~áo, analisando processos do Santo Oficio contra os que, no entender da-
queJes jufzes, eram náo só pecadores mas hereges, gente suspeita de hostilizar a
"verdadeira fé" por opc¡:áo consciente. Reconstituo, pois, a sin a dos que suposra~
mente davam loas a liberdade sexual dos blgamos, dos que questionavam a pri-
mazia da castidade clerical, dos fanchonos, das lésbicas. Examino-lhes os proces-
sos, as senten~as; analiso os métodos de culpabilizar e punir do Santo Ofício;
narro as desgrac¡:as que se abareram sobre muiros transgressores da moral em nosso
passado. Siío esses os conteúdos dos capitulas "O Santo Ofício nos dominios da
moral", "Inquisi~iío, moralidades e sociedade colonial", "Do pecado a heresia" e
"A engrenagem punitiva".
E, no conjunto do trabalho, analisando as condutas sexuais na Colónia ou
sua decifra~iío e culpabiliza~iío no Palácio dos Estaos ou nas visita~óes inquisiro-
riais, procuro inserir o cenário brasileiro no quadro mais amplo posslvel da Amé-
rica, da Penlnsula Ibérica e da Europa, efetuando as possíveis compara~óes em
vários dominios. Trata-se, pois, menos de um estudo sobre a lnquisi~áo no Brasil,
embora rambém o seja em numerosos aspectos, do que sobre o confronto entre os
códigos morais oficiais e populares na situa~áo colonial entre os séculas XVI e
XVIII: tempo de Reformas, tempo de coloca~iío do sexo em discurso.
ÜS DOIS MUNDOS
NA ENCRUZILHADA DO PECADO

(..) Dam !'lJistoiremropünne, la mmtaliti obsidionak


úst accompagnü d'une culpabilisation massÚ.Je, d'une
promotion sans prtcldmt dr /'intiriori.Jation rt de Lz
comcimu mora/e.

lean Ddumeau
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20 TJH)PJCO Dns PECADos

principal obra do Condlio repousou menos na renova<;áo legislativa da Igrcja do


que na mudan<;a de atitude em rela<;iio aos velhos códigos: nova disciplina c0111
respeito a hierarquia eclesiástica; homogeneiza<;áo da pastoral e da prática sacra-
mental junto a massa dos fiéis; refor<;o da autoridade episcopal.' Mas já nesse
ponto, em meio asimples reafirma<;iio da tradi<;áo eclesiástica romana, percebe-se
0 movimento de avan<;o do catolicismo e da lgreja, fruto da profunda autocrítica
de tempos idos, e que marcaría decisivamente o conjunto das sociedades euro-
péias e niio européias nos tempos modernos.
Resguardando seu meio contra a difusáo lU[erana ou calvinista, insinuan-
do avanc;os em novas terrirórios, a ConrrapReforma náo se esgomu, entretanto,
no episódio do Condlio, nem se limitou a reagir, acuada contra a onda protestan-
te. Foi, antes, a reforma de urna lgreja inquieta, sobretudo após o século XIV,
coma distancia que aseparava dos fiéis, para o que muito contribuíam o despreparo,
o absente[smo e a ineficácia do clero, desde a alta hierarquia aos curas paroquiais.
O que levou os reformadores do século XVI a questionarem o estado clerical e o
sacramento da ordena<;iio já era percebido no seio da lgreja pré-Tridentina- da
qua! salram, aliás, Lutero, Calvino, Zwinglio e tantos outros dissidentcs. No pla-
no institucional, a reordena<;iio dos bispados, pedra angular do Concílio de Trento,
fora jádesenvolvida e m várias dioceses no século XV e no inicio do XVI: Guillaume
Bri<;onnet, em Fran<;a (1472-1534), pretendera transformar a diocese de Meaux
em sé-modelo, do mesmo modo que Gian Matteo Giberti, em Vera na (1527) e
Francisco Ximenéz de Cisneros (1435-1517), cardeal primaz de Toledo. Todos
procuraram estimular a devocráo ao Evangelho entre os clérigos, prepará-los para o
excrdcio da pastoral, disciplinar as ordens regulares, criar condicróes, enfim, para
urna aproxima~ mais ampla e profkua entre a lgrcja e os leigos. Foram todos
precursores do Concilio de Trente e da obra de um Carlos Borromeu, e m Miláo,
ou de um frei Bartolomeu dos Mártires, em Braga, empenhados em igual tarefa
após meados do st:culo XVI. Pertenceram a Devotio Moderna, nascida em fins do
século XIV a partir da prega~áo de Ruysbroeck, "o admirável", o u de Geraldo
Groote e os lrmáos da Vida Comum, que acemuavam a importáncia da medira-
<jáo pessoal, da introspcccráo da fé e da difusáo do cristianismo pelo pavo- idéias
que marcariam Lmero, Calvino, Erasmo, lnkio de Loyola e muitos outros, cató-
licos ou prOlestamcs do século XVI.
Sobrctudo no século XV, a lgreja parece ter despertado para o que o prin-
cipal historiador du Reformas denominou "lenda da ldade Média Cristá"¡ 1 des-
cobriu-se que o cmidiano da Rtpublica Christiana (;orria alheiu a lei de Dcus a
piedade colorida pelo paganismo, os grandes momentos da vida, como o b;uisn;o,
o casamento e a própria morte sofrendo pouquíssima intervenc¡:áo do clero e re u-
lados, antes de tudo, pelas culturas e trad' - 1 · • · . g
. . u;:oes oca1s as qua1s a lgre1a devia se
adaptar. Descobnram-se, maJS do que nunca 1· ·- e 1 1 · d .
. . , • urna re 1g1ao 10 e onza a, moralidades
1mpud1cas a luz dos mandamemos, e u m clero paroqu,·al _ d d
. , . . nao so mente es prepara o,
mas Integrado a v1da da comumdade CUJ·o dia-a d' · d · · d' · e
.. . ' - 1a so po ena m 1car o rnun1o
absoluto do demento. ~a Terra. A que atribuir ramas epidemias, como 3 Peste
Negra, as guerrasfrat~tcidas em solo crisráo, as resistencias e 05 avanc¡:os dos infiéis
e tanta~ outras calamidades, senáo a fragilidade da Igreja ante 05 pecados dessa
humamdade apóstata governada por Lúcifer?
A situac;:áo do clero era panicularmeme dramática ao iniciar-se o século XVI,
a comeljar pela freqüente ausencia de vocac¡:áo sacerdotal e qualificac;:áo profissio-
nal dos curas paroquiais: entre as profissóes autorizadas aos padres pelos esta[Uws
de um bispado alemáo figuravam, entre ourros ofícios, os de jardineiro, vaqueiro,
agricultor, boticário e pescador, proibindo-se os de prestamista, comerciante,
taverneiro, traficante e advogado- o que bem nos mostra quem eram ou podi-
am ser os encarregados da fé nas paróquias da cristandade.·' Exemplo notável de
cura medieval dá-nos o impetuoso Pierre Clergue, padre de Montaillou no sécu-
lo XIV: sedutor de várias mulheres, para o que utilizava seu poder na comunida-
de, chegou a recomendar a urna de suas amantes, que dele engravidara, o uso de
certa erva peculiar, contraceptiva para ambos os sexos. 4 Concubinário e um pou-
co mago, assim o qualifica Le Roy Ladurie, e assim parece ter sido boa parte dos
párocos na Europa medieval.
Os intelectuais de inicios do século XVI mostravam-se sobremodo inquie-
tos com a decadencia da cristandade, e desejavam com ardor aproximar a huma-
nidade de Deus, qualquer que fosse a luta a ser travada como demónio. Tal foi a
substancia do humanismo cristá.o e, conseqüc:ntemente, a da Reforma e da
Contra-Reforma, do que resuhou um vasto e ambicioso programa de evangeliz.a.;.io
de massas em todos os domínios da vida social e religiosa. Náo sem raz.lo amo-
derna historiografia prefere falar e m RdOrmas, pois ambas as vertentes, protestan-
te e católica, partilharam motivos comuns: nas palavr~ts de um hiswriador bricini~,._-o,
"a renovac;áo da piedade cristá dos dois séculos anteriores a l ~00"," depurando-a
do que julgavam ser superstic;3o herética ou demoniaca, extirpando sua pmpen-
sáo ao pecado. As Reformas divergiram, é ceno. em pontos fi.mdamenrais de
ordem teológica, política ou tárica: os protestantes. radicalizando a crítiCa a esrru-
rura eclcsi4stica, negaram a autoridade apostólica do papa. 1..'"0ntestaram o valor Ja
maioria dos sacramentos, questionaram o celib;aw deri~,._·al llutC'm chami-lo-ia
hipócrita) e, sobretudo, negaram a importinci3 das obras terrC"n.tS como mC"io
possível de salva~ao eterna. A marca do pecado original sobre a humanidade _
frisa-nos sempre Delumeau- afigurava-se para os protestantes muiro mais arer-
radora, indelével e irremissível. Mas as duas Reformas caminharam juntas no
mais extraordinário processo de aculturac;áo pasto em prática no Ocideme. Pierre
Bérard localiza nessa convergencia de propósitos o núcleo da moderniza~ao do
Ocidente, expresso no confllto entáo instaurado entre urna menralidade rural,
popular, relativamente ligada a sacralidades pagas, e urna "ideo logia proselitista",
cristá e moderna, veiculada por urna elite baseada na cultura escrita.(' Processo
comum as duas Reformas e articulado, em diversos aspectos, a concentrac;áo dos
poderes estatais, ao absolutismo, aos novas enquadramentos das populac;óes pela~
monarquías e pelos Estados europeus.
O exiro do processo pressupunha, assim, ampla reordena~ao da sociedade á
luz dos valores cristaos, implicando profunda reforma dos costumes e das
moralidades vigentes. Na versao católica da Reforma, procurou-se já antes de
Tremo, mas sobretudo após 1563, defender o matrimonio enquanro sacramento
e institui~ao. Era assunro delicado, já que a postura da lgreja em face do matrimo-
nio sempre foca problemárica, e durante séculas permanecera o casamenro como
uniáo profana, o "menor dos males", remédio para os que náo conseguiam viver
castos- era o que pregava Sáo Paulo na Epístola aos Coríntios (1 Cor 7,8). Até
o século XII foram poucos, como Santo Agostinho, os que viram o casamento
como sagrado, mas mesmo o insigne teólogo associava sacramenm matrimonial
com fidelidade e procria~áo, considerando impura a cópula conjuga! em si. Lon-
gos debates e muita hesitac;:áo precederam a inclusáo do matrimOnio entre os sete
sacramentos da lgreja - o que definitivamente ocorreu com as Sentenc;:as de
Pedro Lombardo e m 1150. A partir de entao a despomatio conveneu-se no símbo-
lo da uniáo espiritual entre Cristo e a lgreja, e o enlace dos carpos e m signo de sua
uniáo corporal. A cópula conjugal, profana em Santo Agostinho, assimilava-se ao
mistério da encarnac;:áo, verdadeiro sacramento, desde que o matrimOnio se ba-
snsse no mútuo consentimemo dos nubentes. O essencial dos ritos consistía na
aceitac¡:áo recíproca e pública dos parceiros pelas "palavras de presente" diame do
sacerdme, a quem cabia abenc;oar a uniáo.
As decisóes dos séculas XII e XIII náo anularam, con rudo, as normas co-
munitárias e os ritos tradicionais que, de alto a baixo da escala social, regulavam
casamentos e unióes conjugais no Ocidente cristáo. Variando regionalmente se-
gundo as tradic;óes e as culturas dos pavos europeus, os ritos matrimoniais
~pclhavam sempre urna alianc;:a entre familias, e os próprios casamentos aten-
d•am antes de tuda a interesses ligados ?a transmissáo do património, disuibuic;áo
A CoNTM.A-RF.FUkMA f. o AI.~M-MAII
23

de poder, conserva~áo de linhagens reforro d ¡·d . d d . .


• ... • T e so 1 ane a es comuna1s. Ma1s
Importantes do que a ben~áo sacerdotal as unióes er " d
"re· 1h . ..
to Itas pe o omem a fam1ha da noiva _os cham d
amas promessas e casamen-
· d . ·
a os esponsa1s ou esposor1os:
comem_orados com ~randes festas e troca de presentes, autorizavam aos olhos da
comumdade

envolv1da a coabiraráo
T
dos futuros e·DnJuges.
· - ec1eslas-
A·mterven~ao ••
nca nesse processo tornou-se crescente a partir do século XIII, mas se adapto u, em
. . de cada lugar. O verdadeiro casamenro nao
geral, aos cosrumes - era, po1s,
· o sacra-
mento marnmomal dos dourores da lgreja, formalizado no recebimemo mútuo
dos nubentes diante do sacerdote, mas sim os contratos firmados no plano social
comunitário e familiar. 7 '

Assim, em meados do século XVI havia, do lado católico, duas frentes de


combate a propósito do casamento: reafirmá-lo como sacramento diante da nega-
~áo protestante, pois Lutero o julgava apenas urna "necessidade física", e con verte-
lo em institui~áo basilar da chancela eclesiástica sobre a vida dos fiéis: eliminar os
ritos "populares" de casamento ou, ao menos, subordiná-los a cerimOnia oficial,
sobrepondo-se o sacramento ao aspecto contratual das unióes; uniformizar a liturgia
dos recebimentos "a pana da igreja", condicionando-se ao proferimemo das "pa-
lavras de presente" diante do pároco e de duas tesremunhas; zelar pela obediencia
e regular as dispensas dos amigos impedimentos de parentesco que o direim
canOnico julgava prejudiciais ao matrim0nio, 8 impedir a coabitafiáo dos noivos
antes do recebimento in focie ecclesiae-, reforfiar a indissolubilidade matrimonial,
só admitida cm casos excepcionais. 9 Próximo, no mais das vezes, do "modelo
gregoriano'' de casamento, o matrimOnio tridentino acrescentou-lhe porém urna
nova disciplina, homogCnea o suficiente para fazer da cerim6nia eclesiástica o
único, perfeito e verdadciro casamento cristáo.
No afá de controlar de perto a vida dos fiéis, a Reforma Católica náo se
limitou a reafirmar dogmas e regras sobre o casamento a fim de difundí-los como
norma geral. Foi além e preocupou-se, como jamais o fizera, com a vida das
famílias, as rel~óes entre país e filhos, maridos e esposas, os semimemos domés-
ticos, a convivCncia diária nos mais variados aspectos. Emboca o Concilio náo
tenha explicitado qualquer decisáo acerca da família, o movimento da Contra-
Reforma revclar-se-ia muitíssimo cioso dessa importante estCra da vida social,
multiplicando regras e consclhos para o bem-viver dom<!srico por meio de catecis-
mos, sumas e manuais de confissáo impressos cm escala cada vtz maior a partir do
s<culo XVI. Tudo parece indicar, diz-nos Flandrin, qu< a lgreja Tridentina vis-
lumbrou na família um dos lugares privilegiados da vida cristá <, "talv<z, porque
a Rcformalhe havia ajudado a tomar conscioncia da for~a dos la~os dom<!sticos <
24

das possibilidades que ofcreciam para vigiar e educar a massa de fiéis".'" Foi por-
tanto comum as duas Reformas o projeto de domestica~iío dos individuos via
célula familiar. De igual modo o foi, como veremos a seu tempo, a repressáo mais
violenta das rcla~óes sexuais e das unióes ilícitas, tanto as que transgrediam o
a
casamcnto como as que vicejavam sua margem.
Vigilancia e repressáo variaram consideravclmente segundo os países e, ainda,
conforme a natuteza do delito praticado, de modo que tanto a Justi~a Civil como
a eclesiástica ou a inquisitorial tiveram al(jada sobre os desvíos morais entre os
séculas XVI e XVlll. Mas, nos países católicos, o mecanismo elementar de con-
trole das consciencias e dos comportamenros residiria no sacramento da penirCn-
cia, na confissáo auricular. Generalizada pelo IV Concilio de Latráo ( 1215), esrendida
obrigatoriamente a todos os fiéis na época da Quaresma, a confissao sacramental
tornar-se-ia, diz-nos Foucault, matriz da produc;áo discursiva sobre o sexo no
Ocidente." Datam do século XIII os modelos de sumas e manuais de contlssáo
que se multiplicariam por toda a Europa a partir do século XV, os quais, elimi-
nando a superficialidade dos amigos penitenciais da Alta Idade Média -limita-
dos a enumerar pecados e respectivos castigos - , habilirariam os confessores a
decifrac;áo minuciosa de atas e intcnc;óes, sentimentos e desejos. A argüic;áo dos
penitentes e o atic;ar de memórias individuais no rastreamento das culpas basear-
se-iam, desde entáo, nos dez mandamentos da lei divina, nos cinco da lgreja e,
campo privilegiado do confessor, nos sete pecados capitais. 12 E, entre estes, a lu-
xúria assumiria o lugar de maior destaque, assimilada em cenos casos ao crime de
heresia, ofensa ao primeiro e fundamental mandamento da lei de Deus. Adulté-
rios, fornica~es, incestos, violac;óes, bestialidades, sodomía, masturbat;:óes, so-
nhos eróticos, toques íntimos, polu~es noturnas: nenhum ato, parceiro ou cir-
cunsti.ncia deveria escapar a fala do penitente, ao ouvido do confessor.
Combatida pela Reforma Protestante que a julgava charlatanice- pois só
Deus, pregavam os reformadores, tinha o poder de salvar ou condenar-, a con-
fissio sacramental foi pecra-chave na estratégia da Contra-Reforma: valorizada
enquanto sacramento e renovada em sua técnica. O moderno confessionário, se-
parando confessor e penitente por meio de telas ou grades, e pasto a vista do
público no interior das igrejas, foi urna das invent;:óes do Concilio de Tremo,
abolindo-se as confissóes privadas e intimas que, aproximando sacerdotes e filhas
(ou filhos) espirituais, mais íncitavam que coibiam os pecados da carne. 13
E, ponto central da nova estrati:gia católica, se m o que nem a moral nem a
religiosidade popular tornar-se-iam genuinamente cristás, cumpria rcmodelar 0
carpo eclesiástico: profissionaliú-lo, sobrctudo com a criat;:io de seminários; esti-
A CoNTMA-RFI'OIIMA t-: o AU'M·MAII

21

mul_ar a ~oca~áo sacerdot_al, protegendo~a das imposi~óes familiares e valorizando


a pnmaz1a do est~~o clencal sobre os demais estados; zelar, enfim, pela austerida~
d~ moral dos_ c_Iengos, seculares o u regulares, sistematizando-se as inspec;óes
diocesanas ~ V1g1ando-se, na medida do possível, as ordens religiosas.
Os ditames do Concílio de Tremo e a política global da Reforma Católica
espalharam-se pela Europa desde o século XVI, embora a sistemática aplica~áo de
suas decisóes e estratégias seja cípica do século XVII. Em Fran~a. as resoluc;óes
tridentinas sofreram alguma resisténcia por parte da monarquía, mas na Europa
Meridional foram imediatamenre acolhidas. Na Espanha, Felipe II as recebeu
triunfalmente em julho de 1564, ainda que sob reserva das prerrogativas reais.
Em Portugal, aro continuo, o Alvará de 12 de setembro de 1564 recomendou a
pronta observancia das determina~óes conciliares, e numerosos sínodos encarre~
garam-se de adaptar as constitui~óes da lgreja lusitana as resoluc;óes de Tremo. l-í
Na menoridade de D. Sebastiáo, Portugal era governado pelo cardeal infante
D. Henrique, irmáo de D. Joáo III e inquisidor-geral. Adotada oficialmente no
Reino, a Contra-Reforma náo tardaría a se expandir para o Brasil, se lá já náo
estivesse desde os primeiros anos do Concílio. Afinal, já o dissemos de início,
pouco antes de a peste ter afugenrado os prelados de Tremo, chegavam a Bahia os
padres da Companhia de Jesus, ordem-modelo desse novo tempo da cristandade.

A JGRE)A E A MISSAO

Entre as resolu~óes do Concílio de Tremo, nenhum destaque fora dado a


expansáo católica no além-mar. Charles Boxer considera esse descaso u m reflexo
acidental da polícica pomifícia no século XVI. especialmente preocupada com o
avanc;o protestante na Europa e com a ameac;a turca no Mediterd.neo. 1' Além
disso, a posi~áo defensiva assumida pelo Concílio, bem como a composi<;J.o majo-
ritariamente italiana dos conciliares, dificilmeme o levariam a fOrmular, em mc:a-
dos daquele século, um?- política global para o Novo Mundo. Eram ouuas as
prioridades, ourros os objetivos a alcan<;ar: ddCsa dos sacramentos e do dirt.>iro
canónico em face dos ataques protestantes e modifica<;J.o da disciplina e da quali-
dade do corpo eclesiástico, a fim de capacitá-lo ao ex~rcício d~t nova pastoral. Mas
ná.o subestimemos as pretensóes da lgreja: já no próprio sCculo XVI. escreve
Mullet, 16 o esp{riro de defesa cedeu lugar ao de atJ.que e de missio, e a partir do
século XVII a perspectiva mundial da Contra-Reforma adquiriu contornos insti-
tucionais com a cria~áo da Sagrada Congrega~áo da Propaganda da Fé (162 2),
que, sobo impulso de monsenhor Francesco lngoli, busco u supervisionar, orien-
tar e financiar a obra missionária no mundo descobeno.
No ultramar ibérico, por ouuo lado, a expansáo do catolicismo esteve presen-
te desde os come~os da coloniza~áo, estimulada náo por Roma, mas pelos reis,
que através do padroado exerciam absoluto controle sobre as lgrejas es pan hola e
portuguesa. Na América hispanica, os reis católicos e Carlos 1 cedo providencia-
raro o envlo de franciscanos, dominicanos, agostinianos e mercedários - para
desenvolverem a catequese dos nativos, lago seguidos pelos jesuítas, e m 1568 -
além de outras ordens. Nos dominios portugueses foram sempre os jesuítas que,
desde os primórdios da expansáo, lograram obter a primazia no campo missioná-
rio, a come~ar pela India, ande, dirigidos por Francisco Xavier, estiveram antes
mesmo do Concílio de Trento. O Brasil náo foi exce~áo a esse quadro, e desde
1500 salientaram-se os objetivos missionários da coloniza~áo: Pero Vaz de Cami-
nha, nosso primeiro cronista, escrevera a D. Manoel exalrando o "acrescenramen-
to de nossa Santa Fé" como a principal obra a ser feira na rerra deseo berta e, meio
século depois, lembraria D. Joáo 111 a Tomé de Souza: "a principal coisa que me
moveu a povoar as ditas tetras do Brasil foi para que a gente dela se convenesse a
nossa santa fé católica" Y No século seguinte, seria Vieira a exprimir se m lugar a
dúvidas o sentido missionário da colonizac;áo: "os outros cristáos tem obrigac;áo
de crer a fé; o portugues tem obriga~áo de a crer e, mais, de a propagar ( ... ).
Todos os reis sáo de Deus feitos pelos homens; o rei de Portugal é de Deus e feiro
por Deus ( ... )"." Apesar das divergencias entre o Estado e a lgreja- e nao foram
poucas - , e dos conflitos que opuseram colonialismo e ac;áo missionária no
Brasil, estartamos de acordo com Charles Boxer: "a alianc;a estreita e indisso-
lúvel entre a Cruz e a Ca roa'', o trono e o altar, a fé e o império, era urna das
principais preocupac;óes comuns aos monarcas ibéricos, ministros e missionários
em geral"I'
Foram muitas, no entanto, as diferenc;as entre as Américas espanhola e
portuguesa no tocante a organizac;áo eclesiástica secular. Na primeira, ande a
adminisuac¡:áo metropolitana se fez notar desde cedo, a Igreja acompanhou pari
passu o avan~o da conquista, de modo que até 1565 já havia quatro arcebispados
instalados em Sáo Domingos, México, Lima e Bogotá. No Brasil, pelo contrário,
o progresso da instituic;áo eclesiástica parece ter sido lento e arrascado, a seguir
com atraso notável o processo colonizat6rio, mesmo se considerarmos o quanto a
ocupa~áo momou-se apegada ao litoral. Criado em 1551, obispado da Bahia foi
A CuN"fltA-RI'.HlRMA 1' o Au:.M·MAII

27

por muito tempo a única diocese colonial, cabendo-lhe admin"


gócios eclesiásticos na imensa colOnia portu C 1' ~str.ar todos os ne·
... . . . , guesa. entra 1za~ao moperante in
cum b eneJa mvJavel, somenre atenuada p 1 . _ d l . . • -
6 e a cna~ao a pre az•a do RIO de Janeiro
em 157 , transformada em diocese cem anos · d 20 S . -
. d' ., . maJs tar e. o enrao, ao que rudo
m Jea, a estrutura ecleSJasuca ganhou impulso B . b d
_ . . . . no ras• 1• uscan o adequar-se a
ex~ans~o ternto~Ial e a maiOr densidade do processo colonizatório: ainda em 1676
sena cnado o bJSpado de Pernambuco· no ano se · d M h"
. • gumte o o aran ao¡ e no
século XVIII~ dJocese~.do Pará (1719), Mariana (1745) e Sáo Paulo (1745),
além das ,prelazJas de Go~as
. e Cuiabá • ambas em 1745 ."Apesar d as d"" mcu Id ades,
desde
. o seculo
. XVI os. bJSpos coloniais se empenharam na mg · 1ona
• · tare1a
e d
e orga-
nizar algre¡a no BraSil. D. Pedro Leitáo chegou a realizar um sínodo na Bahia, do
qual resultaram algumas constitui~óes, embora, informa-nos Anchieta, nenhum
de seus clérigos fosse letrado ... 22 Somente no início do século XVIII teria a lgreja
colomal suas próprias constitui~óes, decretadas no sínodo de 1707 pelo entáo
arcebispo da Bahia, D. Sebastiáo Monreiro da Vide.
Comentando a organiza~áo eclesiástica na Colónia, Gilberco Freyre afir-
mou: "( ... ) a igreja que age na forma~áo brasileira, articulando-a, náo é a catedral
com seu bispo a que se váo queixar os desenganados da Jusci~a secular nem a
igreja isolada e só, o u do mosreiro ou abadia (... ) [mas] a capela do engenho"."
Clero subserviente ao privatismo dos senhores, religiáo circunscrita a esfera das
familias poderosas, igreja descentralizada, a esrrutura eclesiástica colonial em nada
parecia concorrer para o C:xito tridentino no Brasil. A sólida organiza~áo de paró-
quias atreladas aos poderes episcopais, meta essencial da reforma preconizada em
Trento, esbarraria aqui na lenta e tardia cria~áo de dioceses, na freqüente e prolon-
gada vad.ncia dos bispados, na escassez e na desqualifica~áo do clero secular.
Mas foi sobretudo por meio das missóes que o espirito da Contra-Reforma
penetrou nas colOnias ibéricas antes que Tremo encerrasse suas atividades. Ao
Brasil chegou pela voz dos jesuitas liderados por Nóbrega, ansiosos para iniciar a
conversáo das gentes do trópico. Boxer concebeu a missáo como institui~áo de
fronteira, típica da coloniza~áo ibérica no ulcramar, 14 mas náo convém esquecer-
mos ter sido, antes, urna tática essencial da Contra-Reforma como um todo, uti-
lizada na Polonia, Tchecoslováquia, Suí~a. Países Baixos, Fran~a. em quase roda a
Europa, enfim, desde que Roma julgasse viável a reconversáo de cercas regióes ao
catolicismo, ou tencionasse consolidá-lo em áreas fiéis, compensando as deficien-
cias do clero paroquial. 15 A missáo integrava já urna estratégia ofensiva da lgreja,
reunindo o que de mais caro havia no projeto tridentino: a aculturac;ao massiva,
popular e rural, e náo mais a prega~áo limÍtada aos centros urbanos, como fu.ziam
28

os franciscanos nos s¡<culos XIV e XV. "Dccultura<;áo" e catequese das massas,


d~moniu~áo e acultura~áo dos campos, nisso residiu, cm grande medida, 0 essen.
cial da Reforma Católica cm sua ambi<;áo mundial. Baeta Neves percebe u muíto
a
bcm o caráter globalizante da missáo articulado Contra-Reforma: "a míssao
qucr alterar algumas das caractcrlsticas centrais da superfícíe sobre a <¡ual quer
dcixar sua marca( ... ). Este projeto se instaura permanentemente: é u m processo,
um conjunto de poHticas".'"
A isso se propuscram os jesuitas desde a funda<;áo da Companhia: "procu-
rar inccssantcmcntc ajudar a salva<;áo e pcrfcic;áo dos próximos", e náo apenas
zclar pelas próprias almas. Tridentinos avantiA /,llr., náo por acaso viríam a gozar
a
de enorme: prestigio junto Cúria- romana, cxcrccndo cxtraordinária influéncia
nas dccisóes do Condlio por intermédio de Diogo Laiñcz, geral da Companhía.
Pois foi cssa "milicia papal", como a chamou Herculano, que trouxe a Contra-
Reforma ao Brasil; uouxc-a antes de Trc:nto, antes mc:smo de instalar-se: o prirnei-
ro bispado na Colónia.

ACULTURA<;:AO NO TRÓPICO

Dc:monizac;:áo da vida cotidiana das popula<;óes, aculturac;áo cristá, missáo


salvacionisra, os tra<;os fundamentais da Reforma Católica na Europa esríveram
simultanc:amcntc presentes nos dominios ibéricos do ultramar. Mas se nos volca-
mos agora para o trópico, outra devc ser a perspectiva: há que considerar o espe-
cifico, o que se vincula adescoberta de um mundo novo, gentes desconhecidas,
tc:rras cstranhas, sc:m perder de vista o fenómeno maior do colonialismo.
Sérgio Buarque de Holanda já detectara, em seu clássico Visáo do para/so,
quáo pouco imaginases foram os portugueses do século XVI na retratac;áo dos
trópicos americanos. Ao contrário dos espanhóis- a comec;ar pelo gen oves que o
descobriu - , encantados e maravilhados com a paisagem e o mistérío do Novo
Mundo, os portugueses revelar-se-iam sobretudo prátícos; elogiosos, é certo, no
relato da imensidáo e da abundancia das novas terras, mas se m a fantasía edenizadora
que marcara os navegames de Castela. A atmosfera mágica que envolvía o Descobri-
~ento parecía "rarefazer-se a medida que penetramos na América lusítana". 27 Cale-
Jades pela aventura marftima africana e asiática, os portugueses náo edenizaram
seu descobrlmento ou, no máximo, fizeram-no desencantados, mais propagand!s-
ticos no elogiar do que sonhadores no descrever, anestesiados em face dos antigos
mitos e lendas sobre o paraíso rerreal que · · ·
. ' muHos Jmagmaram ao su! do E uador
Para os lumanos dos 1500, entre os quai · · e · q .
. 5 0 propno ammha, o paraíso náo
ficava no Brasd - e os poucos que afirmar , · .
, am 0 conrrano, como S1máo de Vas-
conceJos no seculo XVII, ou Rocha Pira no XVIll • 1 ¿·
.1 • parecem te- o Jto por recurso
de esu o, mal revelando o porque de um Brasil paradisíaco.
Em seu belo ~ diabo < a ]erra d< Santa Cruz, Laura de Mello e Souza
rero~ou. a edenJZa~a~ portuguesa do trópico, redescobrindo-a limitada,
parc1momosa e. condJCJonal. Edeniza\=áo restrita a narureza, 30 elogio de terras,
matas, frutos, nos. Louvor J.s potencialidades da nov
. . .
e ¡· · - d.
a o oma que nao Jspensa-
va o que1xume 1rnrado conrra o desconforto do viver nos trópicos, ande 0 elogio
aos bons ares e climas convivía com o horror dos calores e dos inseros, das pulgas
e baratas que enxameavam por roda a pane. Nao esteve um jesuíta -lembra-nos
a aurora- a contar 45 grilos e 450 pulgas entre a "grandíssima multidáo" de
inseros que perturba va a missa, o sano, a mesa e tuda o mais? Elogio a natureza
resrrito, mitigado e ainda condicional: as maravilhas da natureza brasílica só ad-
quiriam sentido se exploradas pela efetiva colonizas:áo da terra. Pero de Magalhies
Gandavo, em 1576, e Ambrósio Fernandes Brandáo, no início do século XVll,
foram os "expoentes da verrente edenizadora", e também os mais insistentes em
condicionar o "paraíso brasileiro" a vinda de colonos, ao rrabalho escravo, a difu-
sáo dos engenhos e trapiches. 28
Afastando-se, porém, dessa esfera quase edénica que prevaleceu no retrato
da natureza, Laura de Mello e Souza descobriu o sentido infernal da colonizas:áo;
descobriu-o na descri¡¡:áo dos ameríndios, das gentes esrranhas aos olhos do euro-
a
peu, cujo tipo físico, cor, hábitos e costumes se associaram animalidade, a hu-
manidades inferiores, decaídas, diabólicas. Laura nos mosrrou com brilho a
recorrencia de crens:as antigas sobre o homem selvagem, seu parentesco com os
monstros medievais e a sutil rransposis:áo desse imaginário para a figura do indí-
gena: monstro por seu afastamenro geográfico, selvagem por sua nudez, sua vida
e seus hábitos, dos quais o mais repulsivo consisria na antropofagia- que m u iros
julgaram derivar de hediondo gosro pela carne humana. 2')
Mas a rejei¡¡:áo dos ameríndios pelos porrugueses náo era nova; acomp.l-
nhava ou reedirava imagens e discursos veiculados no cenário hispano-americ.mo
dos séculas XV e XVI. Nas ditas fndias de Casrda, n;\o obstante fosse mais fone
a miragem paradisíaca do primeiro enconrro, rambém os índios for~un derrarados
3. medida que avan¡¡:ava a conquista e que das ilhas caribenhas se passav.t ao con-
tinente e aos grandes impérios do México e do Pcru. No enramo. o imaginá.rio
castelhano foi ali muirlssimo variado e a repulsa hostil pOde conviver com visóes
30 TRÚPICO Llo!. PECADo;.,

complacentes e respei[Osas, para o que concorreu, em cena medida, o exuaordi-


nário porte das civlliza(jóes asteca e incaica. As oscila¡;:óes se fazem notar no pró-
prio Diário de Colombo: inebriado pela maravilha do Éden antilhano, elogiaría
os arawaks, "gente muito bonita" que de boa vontade acolhia os marujos recém-
chegados: mas já na segunda viagem deplorava o número dos "ferozes canibais",
propendo ao rei enviá~los como escravos em troca de manrimentos e armas. 10 No
México, o impiedoso Hernán Cortés, sempre pronto a ressaltar, para grandeza de
seus feitos, a ferocidade da resistencia local, admitía ser aquela gente "melhor que
a da África", pois vivía em cidades com ordem e policiamento, usa va vestidos,
cal~ados, e ornava-se com preciosas jóias de ouro e prata. Em carta de 15 19 a
Carlos 1, admirava~se de ver o quanto tinham e como viviam os índios, "conside-
rando ser gente bárbara e tao apartada do conhecimento de Deus"." A o célebre
conquistador nao falto u a imagem de nobles salvajes, que Sérgio Buarque de Holanda
percebeu freqüente na crónica castelhana.
Animalesco ou nobre, o (ndio visto pelos espanhóis seria, ainda, o infiel e o
mauro. Embevecidos pela saga da Reconquisra cantada em prosa e verso numa
Espanha que recém concluíra sua vitória peninsular, os espanhóis na América
julgavam-se herdeiros dos cruzados: Cortés chamou mesquitas aos templos de
Tenochtidán, e Berna! Diaz del Castillo compararía o triunfo castelhano sobre os
astecas a batalha de Granada, exigindo do rei iguais benefícios com que se viram
contemplados os cavaleiros de 1492. 32 A principal oscila~ao do imaginário espa-
nhol. que seria próxima ado ponugues, residiu, porém, na oposi<;áo entre o ani-
mal selvagem e o índio homem; entre a conhecida execra<;áo de Sepúlveda, para
quem os amerindios náo passavam de bárbaros idólatras, incapazes de vida Civil,
ou de um Oviedo, que os via animalescos e rúscicos, e a radical defesa de Banolomé
de las Casas, que os considerava táo humanos a ponto de admitir como legítima
devo<;áo a venera<;áo que dedicavam a seus ídolos. Em rela<;áo a espanhola, a
primeira grande singularidade da visáo portuguesa acerca do índio repousa no
fato de terem sido os jesuítas os que mais produziram discursos a esse respeito
no Brasil. E a oscila<;áo ideológica dos inacianos foi também mais simples: como
observou Baeta Neves, ou bem os índios seriam inocentes que pecavam por igno-
rancia da verdade cristá, ou bem teriam feíto urna op<;áo consciente pelo pecado,
rejeitando a Deus em favor do demónio. u O u as possibilidades, duas alternativas
a reproduzír o dilema entre o céu e o inferno, que Laura de Mello e Souza consi-
derou extensivo a pr6pria Colónia.
Embora escassas, náo faltaram impressóes complacentes em rela~áo aos
ameríndios. Fernáo Cardim viu na nudez em que todos andavam urna prova do
A CoN fiiA-RH-OJIMA F. o AII~M-MAII
ll

"estado de inocencia, honestidade e modéstia" que enue si guardavam, além de


achá-los "pouco endemoniados" e pacíficos.·H Nóbrega, em raro instante de pa-
ciencia, julgou-os aptos a carequese, pois tudo neles era "papel branco" em que se
podia "escrever a vontade". E foi ainda comum, entre os relatórios jesuíticos en-
viados a Lisboa e Roma, elogiar-se o progresso da catequese e a recepüvidade
piedosa que os índios devotavam aos padres da Companhia. A apologia da obra
missionária era, porém, exercício de perseveran(ja e recurso político dos inacianos;
parecía obedecer aos conselhos de Francisco Xavier, que, antes de viajar ao Japáo,
em 1549, recomendou aos padres das Malucas como se devia escrever aos supe-
riores da Europa: "(. .. ) que seja sobre assuntos edificantes; e cuidado, náo escre-
vam sobre assuntos que náo o sejam (... ). Lembrem-se que muira gente vai ler
essas cartas e, assim, devem ser escritas de forma a que todos fiquem edificados".J 5
No dia-a-dia da catequese, na correspondencia interna em que se aborda-
varo os problemas específicos da missáo e sobretudo nos discursos voltados para
os índios, predominaram, sem dúvida, a detra(jáO, a hostiliza(jáo dos costumes, a
má vontade que Laura de Mello e Souza observou nos jesuíras em face das gentes
do trópico. Vt!mo-la em quase todos os padres, inclusive enrre os que mais se
empenharam em defender os índios contra a escraviza(jáO. Anchieta considerou-
os "de tal forma bárbaros e indómiws" que pareciam "aproximar-se mais a natu-
reza das fe ras que a dos homens". Nóbrega, e m seus Apontamentos de 1558, reco-
menda va castigo e sujei(já.O dos aborígenes como único remédio para cessar o
sofrimento da na(jáO portuguesa no Brasil e, escrevendo da Bahia um ano antes,
confessara que, excew dais ou trt!s padres, os demais tinham "pouco gosro pelo
gentio". 36 Nosso primeiro provincial jesuíta parece ter sido o maior derraror dos
índios no século XVI, mesmo porque era o que mais escrevia sobre o tema.
E pregando no século XVII a missionários de panida para o Amazonas, Vieira
lhes diria que Deus enviara Tomé, o Apóstolo, para evangelizar o Brasil, a tlm de
castigá-lo por sua incredulidade: "( ... )porque a gente destas rerras é a mais bruta,
a mais ingrata, a mais inconstante, a mais avessa, a mais rrabalhosa de ensin.u de
quantas há no mundo". H
Animaliz:1<;áo e demoniza<;áo andaram de bra<;os dados nesse discurso, que,
essencialmente jesuítico, espalhar-se-ia entre outros religiosos e leigos aré bem
avan¡¡:ado o século XVIII. Nas dihculdades da catequese, no rardio descobrimento
do trópico pelos cristáos, na origem dos índios, em quase tuda se via o demOnio,
o Inimigo, o "lobo infernal". O único mito edenizador genuinamenre portugues
concorria para demonizar os índios: 38 se fora verdade que o apóstolo Tomé dcixara
a
pegadas nas pedras e nos caminhos do Brasil (e os jesuftas as rasucaram farra),
32 TRÓPICO no~ PECADos

nao restava dúvidas de que a luz divina tocara o trópico sem que os Indios deixas-
sem de pecar. Pecaminosa era, aliás, a origem do gentio, dizia Nuno Marques
Pereira, para quem era indubitável descenderemos Indios de urna das famílias que
haviam migrado de Babel, "por serem homens soberbos, teimosos e nao querere 111
conhecer o poder de Deus" .39 Repetiu~se 3. exaustáo que os nativos n5o pronun-
ciavam as letras F, Le R por náo rerem fé, lei e rei, o que, as vezes, significa va ve-
los como pobres inocentes em estado de anomia, mas para os jesuíras era claro
sinal da anarquia diabólica em que viviam. O !ni migo estava em toda a parte e,
aos soldados de Cristo, escreveu Baeta Neves, cabia "ler essas marcas" e saber até
que ponto o demonio conseguira embaralhá-las."
Mas a demoniza~áo dos Indios niio se baseou tanto na aparente falta de
governo ou na presunc¡:áo de qualquer pacto colerivo com o demOnio. Cardim os
vira "pouco endemoniados", e Anchieta s6 lhes atribuíra a venerac;5.o dos rrovóes,
negando que tivessem "comunicac¡:áo como demónio". 41 Usavam de feiric¡:os, to-
dos admiliam, e ouviam feiticeiros náo por neles acreditarem, disse Cardim, mas
porque eles ajudavam nas enfermidades ..u Afinal, se náo conheciam a Deus, como
poderiam crer no diabo? - era o que pensavam os jesuftas. Em matéria de fé,
portanto, parece ter predominado a constatac;:áo de certa anomia, urna ingenua
irreligiosidade, mais do que adorac;:áo sad.nica. 4 ·~ Os indícios de que a máo do
demOnio agia por detrás dessa aparente inocencia recolheram os ponugueses so·
bremdo da licenciosidade em que julgavam viveros índios e, particularmente, da
rela~áo que mantinham com o próprio carpo. Repugnava-lhes, antes de tudo, o
"canibalismo", prática ininteligível ao europeu (e assustadora para os missioná·
rios), fato que corroborava a visáo do ameríndio como ser animalesco, selvagem e
monstruoso. Mas inquietava-os, em grande medida, o que consideravam falta de
lei, auséncia de imerdic;:óes quanto a exibic;:áo do carpo e as relac;:óes sexuais.
Leigos ou religiosos, todos sem exce11áo ressaltaram a nudez dos índios,
embora muiws a registrassem com naturalidade. Caminha, ao dizer que náo esti-
mavam "nenhuma coisa cobrir", julgou-os naturalmente inocemes. Gandavo li-
mimu-se a constatar que nada cobriam no carpo, e rraziam "deseo be no quamo a
natureza lhes deu".~~ Foram os jesuítas, em sua maioria, que viram na nudez
indígena urna prava de esd.ndalo, ocasiáo de torpezas e de ofensa a Dcus. Dcci·
frando a genealogía de tal despudor, Nóbrega \ocalizou·a no pecado de Cam, que
escarnecera da nudez de seu pai, Noé, senda por isso exilado e condenado ;l servi-
dáo.4~ O pecado de Cam renderia, aliás, outros frutos aos jesuítas no sé<..:u\ 0 se-
guinre, e alguns nele veriam a origem legítima da escravid5.o no mundo.~ 1 '
O horror que manifestavam os jesuítas face a nudez dos índios, especial~
mente a das partes genitais, parece mesmo antecipar wdo o rigor de urna época-
tempo de Reformas-, obcecada pela ocultac;:áo dos carpos: na Europa, ainda no
século XVI, comec;:ariam as inrerdic;óes aos que eventualmente exibissem seu
carpo em banhos públicos, termas, rios ou em qualquer lugar e ocasiáo. Inaugu~
rar-se-ia, lembra-nos Jean-Claude Bologne, a moderna era do pudor, e no sé-
culo XVIII algumas congregac;óes chegariam até, por aversáo a nudez, a proibir os
religiosos de se banharem, salvo por escritas razóes de ordem médicaY
Os habitantes nus do Brasil quinhentista causaram profundo desalento aos
jesuíras, a comec;ar por Nóbrega, que rudo fez para vesti-los desde que chegou a
Bahia: quis dar a roupa sobressalenre dos padres para os índios barizados; pediu
roupas ao padre Simáo Rodrigues; considerou a possibilidade de os próprios ín-
dios fiarem o algodáo de seus vestidos; e incluiu essa medida no plano geral de
aldeamento de 1558. Julgava imperioso cobrir o carpo dos índios, alegando varia~
das razóes: o esd.ndalo que dariam nus aos padres vindouros; a ofensa a Deus,
sobrerudo ao assistirem a ofícios divinos com as vergonhas a mostra; a excitac;io
que índias nuas causariam nos cristáos. 48 Era preciso ocultar~lhes o carpo, urna
vez batizados: pela nudez em si, descabida em gente crisrá, e pelo que essa nudez
poderia incitar.
Despudor na exibic;áo do carpo, acrescido de licenciosidade e apego a vida
promíscua, rudo isso comprovava, aos olhos dos primeiros cronistas, a vassalagem
que nossos índios prestavam ao demOnio. Fernáo Cardim, que chegara a \'er ino-
cencia na nudez do índio, compararia o interior das ocas a u m labirinto infernal.
ande o fogo, aceso dia e naire, veráo e inverno, era a única roupa de que se
urilizavam os aborígenes. O que mais o aturdiría, no encanto, seria a promiscui-
dade em que viviam cem ou duzentas pessoas num só lugar, reunidas "sem
repartimento algum o u divisáo", cada casal em seu rancho e "wdos J \'isca uns dos
outros", fazendo o que !hes aprazia, enquanro a casa ardia e m dumas. Mas .tssim
era, expóe de início o jesuíta, antes de serem convenidos pelos padres. ,. 1
Nudez e promiscuidade combinavam-se como mais absoluto desrep;r.tmento
nas relac;óes sexuais- foi o que viram (ou deduziram) os obserY:tdores dos pri-
meiros tempos. Escrevendo :1 Lorenzo dei Mcdici, Vespücio diri.l qw.· o:-; índio:-;
tinham tantas mulheres quanras queriam, o tilho se un indo ._·om a mJ. ...·. "o irm.lo
com a irma, o primo com a prima, e o encontrado com a que cnlomr.l'.'''
Fornicac;ao, poligamia e incesw em todos os ~raus tOi o que t.unbém Yiu ') jesuit.l
JerOnimo Rodrigues, visitando os c:trijós cm 1602: "sujissimos no vkio d.t L·.unc",
diria, os pais se uniam i\s filhas, os dos ~s sobrinh.ts, os an)s J.s nc.·t.ls: os homens
TROI'Jcu Do:. I'I·LAOo~

com várias mulheres e até mulheres com "dois maridos"." Gabriel Soares de Sou-
za chegou a no mear u m dos capítulos de se u memorial como título "Que trata da
luxúria d(stes bárbaros", 51 escrevendo, de fato, o mais completo resumo das tor-
pezas ameríndias: luxuriosos ao extremo, náo havia pecado da carne que os
tupinambás náo cometessem em matéria de incesw, poligamia e ourros mais; as
velhas, observou, granjeavam os meninos ensinando-lhes o que náo sabiam,'>~ e
todos só conversavam "sujidades" que cometiam "a cada hora". Aos apetites libi-
dinosos, certamente, atribuiu o hábiw que muiws tinham de engrossar o pénis:
"costumam por nele o pelo de um bicho táo pe~onhenro que lho faz logo inchar,
com o que se lhe faz o seu cano táo disforme de grosso, que os náo podem as
mulheres esperar, nem sofrer". 54 E, tratando do que pouquíssimos ousavam fa.lar,
comentou serem "muito afeic;:oados ao pecado nefando", do qual náo se envcrgo-
nhavam, e o que "servia de macho" dele se vangloriava, tomando essa "bcstialida-
de por proeza", ao passo que alguns efeminados armavam ten das e se faziam dt
"mulheres públicas". O jesuíta Pero Correia insinuaría, aliás, que também algu-
mas indias afei<;oavam-se a sodomia, guerreando como os homens, casando-se
com mulheres, e ficando mesmo injuriadas se as náo tomassem por machos. 55 Os
pecados indígenas pareciam náo ter limite, era o que pensavam nossos cronistas.
E, assim, o jesuita AntOnio de Araújo recomendaria aos confessores inquirir aos
indios sobre cada ato luxurioso em panicular, em vez de perguntar-lhes gene rica-
mente sobre o sexto e o nono mandamentos, preocupado como fato de a "língua
geral" náo possuir vocábulos que exprimissem números além de dez. 56
Da mais extremada luxúria que se costumava atribuir aos indígenas passa-
va-se, as vezes no mesmo texto, a admissáo de que entre eles havia casamentos ou
inimo de alguma relac;áo conjugal. Predominava, no en tanto, a idéia de que tais
matrimOnios eram falsos ou duvidosos, urna vez que a poligamia, o desrespeito as
regras de parentesco cristás e a instabilidade das unióes invalidavam-nos ou difi-
culrava aos observadores saber quais eram, de fato, os casados. Anchieta, nosso
primeiro "etnólogo", foi o mais empenhado em decifrar a lógica matrimonial
indlgena, buscando demarcar a "verdadeira regra'' das unióes por meio de analo-
gías com os preceitos cristáos. 57 Reconheceu assim que os índios se casavam in ltge
naturtU, idcmificou o matrimOnio preferencial entre o tia materno e sobrinha e a
interdi'iáo que havia de casamentos com mulheres descendentes "pela linha dos
machos" - descobrindo, com isso, a primazia do matrimOnio avuncular e o
parrilinearismo que regia o parentesco tupinambá. 511 Confundí u-o, porém, como
a todos os jesu(cas, a variedadc de mulheres que "coabitavam" ou tratavam sexual-
mente com os homens. Seriam as temiricO mancebas de um só homem, prisionei-
A CoN 11u-R~Hlii.MA ~.o Al fM-MMt
3S

ras de guerra ou mulheres em geraH Seria agoa(á o nome dado a "barregá ou


manceba comum a qualquer homem ou mulher?" - indagava-se. Arordoaram-
no, ainda, a frágil exiS[Cncia de fidelidade conjugal. a colerincia quamo ao adulcé-
río: como permiciam muiros maridos que suas mulheres andassem com homens
pelos maros? Ou seriam concubinas e náo esposas?
Fosse pela poligamia, pela instabilidade das unióes, pelos incestos ou infi-
delidades, os jesuíras julgavam que, se casamemos havia, eram falsos. O único
remédio para os indios era casá-los, uni-los na forma e na regra da lgreja- o que
pressupunha muira inscruc;:áo moral ao lado da sistemática demonizac;:áo das prá-
cicas locais. Foram eles incansáveis em condenar os gemios ao inferno se persiscis-
sem no pecado morral da fornicac;:áo, e o reatro foi, sem dúvida, dos meios mais
engenhosos de fazC-los ver e sentir quáo aparrados viviam de Deus em suas incre-
dulidades e libidinagens. Demonizac;:áo e acuhurac;:áo pela via do drama religioso,
norável rárica da Reforma Carólica, principalmente acionada no Velho Mundo.
No crópico usaram-na com freqüCncia, como no famoso Auto de Sáo Lourenfo,
escrico pelo mesmo Anchiera cerca de 1587: os principais diabos apareciam ali na
figura de dais imponames che fes indígenas que haviam IU[ado ao lado dos france-
ses no Rio de Janeiro, Guaixará e Aimbire, os quais exalcavam como obra sua a
vida desregrada dos ameríndios. Danc;:ar, pintar-se de vermelho, beber cauim aré
vomirar, marar e comer prisioneiros, fazer falsas confissóes, viver amancebado,
comerer adulrério, os bailes, os cantos e os prazeres, rudo enfim era impucado ao
demo e objero de vanglória para Guaixará, diabo-mor. "Quem no mundo como
e u ao próprio Deus desafia?"- exclamava, soberbo, o sacá tropical dos inacianos. 5')
Mas a base da aculturac;:áo pracicada sobre os índios no Brasil consistía em
faze-los casar, urna vez pacificados, verdadeira obsessáo dos padres a julgar pela
correspondencia do século XVI. O ideal, nesse pomo, era casi-los na observancia
das regras que o Concílio de Tremo nao rardaria a homologar, e nos vários catecis-
mos vertidos em "línguas brasílicas" encontramos regisrrada a preocupa~io com
impedimentos, proclamas, palavras de presente, restemunhas, e rudo o mais.''0 Os
inacianos eram, porém, realistas, e o dia-a-dia da carequese fez-lhes ver que a
missáo deveria adaprar-se ao Novo Mundo, recuar raricamenre frenre J.s peculiari-
dades do rrópico. Foi esse o percurso em rela~áo ao c~tsamenw. em que ~1 impres-
sáo de licenciosidade absolU[a cedeu lugar ao reconhecimemo de que os índios
conrraíam marrimOnio e, ainda, de que havia normas ;t regC:-lo. E da conJena,·lo
geral dos índios ao inferno, homens como Nóbrega pass:uam a suplicu que Ronu
arenuasse o rigor dos impedimenros: que Sua Sanridade tivcssc "tugue7.J destes
di reíros positivos", e deixasse os padres celebrarem ctsamcntos entre parcnrcs por
TRÓPICO nm PECADOs
36

afinidade e mesmo consangüíneos até o segundo grau, pois o matrimonio de "tio


coro sobrinha da parte da irmá era cá o seu verdadeiro casame.n~o". 61 Era preciso
casá-los com urna só mulher, ainda que a custa das regras ofictats.
Os jesuftas cederam no casamento, e cederiam no~~ ros t,errenos. Que n5.o
' ao índ'1 0 so' porque lhe faltava a roupa, d!Zia No brega: afinal, por
se negasse o ceu
"tantos mil anos" náo anclara sempre nu? 62 Nosso primeiro provincial da Compa-
nhia autorizaría ainda confissóes de fndios por meio de intérpretes e estimularia a
missiio na linguagem dos brasis, a despeito das críticas do hispo Sardinha. ~.Si­
miio de Vasconcelos elogiaria o padre Navarro por pregar ao esnlo da terra, ba-
tendo 0 pé, espalmando as miios e fazendo as mesmas pausas, quebras e espantos
costumados entre seus pregadores":" imita~áo das "gatimonhas dos pajés", obser-
vou Gilberto Freyre, prova da flexibilidade da catequese, e também do animo
jesuítico, disposto a tudo para levar a Reforma Católica aos confins do ultramar.

VICIOS DO TRÓPICO, PECADOS DO MUNDO

A má vontade con\ que os jesuítas viram os índios, a demoniza<¡:áo de seus


costumes, a violencia da catequese, tuda isso pertence a história do moderno
colonialismo, a sujeic;áo dos pavos encontrados no além-mar, a escravidáo e a
explora~iio do Novo Mundo pelos europeus. Integra, por ouno lado, como indi-
camos de inicio, o processo mais amplo da Reforma Católica. O olhar que defor-
mou o amerfndio foi o do colonialismo eurocenrrico, mas seria ainda o olhar
uidemino da Contra-Reforma, o mesmo que simultaneamente deplorava as con-
dic;óes em que viviam os fiéis da velha cristandade, afastados de Deus, próximos
do inferno.
As diferenc;as que separavam o Velho e o Novo Mundo no limiar da época
moderna eram em tuda exuaordinárias: em termos de religiáo, costumes, vida
material, gentes, dimensóes geográfiCas e, cerramente, na posi¡;:áo que os dais
passariam a dc:sempenhar no moderno sistema de tracas impulsionado pela ex-
pansáo ultramarina. Os contemporáneos perceberam, nos dais lados do Atlinti-
co, esse notável elenco de diferenc;as, inscrito numa dirnensáo já planetária da
Terca. Mas, ao mesmo tempo, concebcram as novas populac¡óes a luz da tradicio-
nal anrropologia cristá, que desde fins da ldade Média rompera as paredes dos
mosteiros e das universidades e aspirava a tornar-se modelo de ética para a crisran-
dade em geral. Antropologia táo amiga quanto o cristianismo dos apóstolos ou da
patrística, que pressupunha o desprez.o pelo mundo terreno e pela própria criatura
humana, deca(da desde o erro de Adáo. A difusáo da Drootio Moderna, modelo
ascético de vida que buscava aproximar o homem de Deus, resgatando-o das
trevas em que vivia, náo estaria afastada do chamada Renascimento. Tratar-se-ia,
no fundo - escreve Delumeau - , do mesmo humanismo que, por múltiplos
caminhos e verrentes, buscava redimir urna humanidade injusta, obscurecida e
decadente. O apego a cultura clássica, o sonho de resgatar urna Idade do Ouro
perdida, a própria valoriza~áo do saber experimental, táo característicos do
Quattrocento, partiriam da mesma visáo pessimista do mundo, que seria ainda a
dos reformadores do século XVI.Got Humanismo contraditório, simultaneamente
criador e pessimista, aberro aos mais variados campos do saber, porém melancóli-
co e por isso ligado a difusáo da mais rigorosa ascética já inventada no Ocidenre;
capaz de produzir homens táo diferentes como Leonardo da Vinci e Lutero, Erasmo
e Calvino, Giordano Bruno e lnácio de Loyola.
O impacto dos descobrimentos nesse movimento intelectual do Ocidenre
náo é fácil de avaliar. Ruggiero Romano considerou-o decisivo nos rumos que
tomou o humanismo europeu no século XVI: mais individualista, possessivo e
universalista, menos aberro 3.s diversidades do que parecía ser no século anterior. 6 ~
Humanismo mais claramente pessimista, diríamos, estreitamente vinculado a in-
quietat;:áo das Reformas, e que, além de empenhar-se na depurac;áo da cultura e
religiosidade populares nos países europeus, voltou-se contra as próprias manifes-
tat;:óes da cultura erudita que transbordavam os limites de urna arde m crisrá reno-
vada. As descobertas podem ter provocado, como sugere Romano, um acirramen-
to da melancolia entre os "diretores de consciencia" do Ocideme, desencantados
com o mundo conhecido e aterrados ante a constata'1iio de que vasta por\áo do
globo possuía humanidades que jamais haviam conhecido a \'crdadc- aistJ..
A simultaneidade dos processos foi de qualquer modo not:ivd: o No\"0 Mundo .t
estimular o desencanto na velha cristandade e sofren.do. em e-scala ampliJda, o
impacto dessa mesma ética detratora do homem -colorida no nópico por u m
racismo de diferentes matizes. Curiosamente. a derr;t~·:io d~t lumunid;uh· p.uc..·..:ü
ecoar nos dais lados do Arlintico.
Baera Neves observou com brilho o t:uo de- o\ dc..·s~.:oht·n;t n.lo ca si~nitl ...-.tlio
"o achamento de uma alreridade tot;tl", mas anres. ··um n:encontrtl úllll rc~illc:s de-
si que se teriam af.1Stado ffsica e espiritualmenre (. .. ),u m úlnhc:...-imL'nto d.ts p;u-
tes até enráo dobradas, ocultas de um mesnto mapa".N• O Novo ~{undl' .Kah.ui.t.
assim, hostilizado pelo que aprescntava de difercnre e pelo que 1\ltlStr.\\':t de ig.u.tl:
38 TROP1co Dos PECADos

duplamente animalesco e monstruoso, a exibir humanidades selvagens e a corn.


provar quáo deca(da podia ser a humanidade ignorante de Deus. Parece rer sido
essa a conexáo predominan re entre os descobrimentos e o humanismo pessimista
e triunfante do século XVI, mas nao foi a única possibilidade de leirura aos olhos
dos conremporaneos. Frei Vicente do Salvador, que bem conhecia o trópico, jul.
gou que perdendo o demonio o controle sobre os homens com o advemo do
cristianismo, migrara para as Américas e ali construíra o seu reino. 67 Nosso pri-
meiro historiador idealizava, pois, a crisrandade européia e demonizava o mundo
descobeno - como fariam, aliás, ourros cronistas de Portugal e de Espanha na
mesma ~poca. Houve, por~m. os que no hemisfério Norte fizeram o oposto: ins·
pirados no mundo novo e desalentados com o lempo em que viviam, projetaram
sociedades genuinamente crisrás (era o que diziam), justas e tolerantes. A Cidadt
do So~ de Tomaso Campanella, quase um para(so rerreal, situava-se peno de Sri
Lanka, ao sul do Equador, e a ilha do legendário Utopus, do ingles Thomas
Morus, exemplo de eqüidade, remperan~a e tolerancia crisrás, ficava nos confins
da América: de suas maravilhas falara um ceno Rafael Hidodeu, ponugues de
origem grega que vivera anos na ilha da utopia após navegar com Américo
Vespúcio. 61 Houve, pois, outras mediac;:óes, outras conexóes entre Velho e Novo
Mundo após o impacto dos descobrimentos sobre o imaginário do Ocidente. Mas
nenhuma delas pode sobrepujar o tradicional desprezo do mundo que, irradian-
do-se através das Reformas, imprimiría sua marca aos tempos modernos.
A demoniza~áo rriunfaria em toda a parte, a agressividade se abareria sobre
todas as gentes, fossem do além-mar, fossem da velha crisrandade. Lutero, prefa-
ciando seu Primtiro cattcismo, animalizaría os alemáes: "mdos se denominam cris-
tios, sáo batizados e recebem o Santo Sacramento, e náo sabem nem o Pai-Nosso,
nema Fé, nem os Dez Mandamentos (... ). Vivem como um rebanho inconscien-
te, como suinosdesprovidos de razáo".69 Seguindo-lhe o exemplo, alguns pregado-
res e moralistas do século XVII, católicos ou protestantes, chegariam mesmo a
"indianizar" a cultura popular européia irredudvel a nova pastoral: os jesuitas de
Huelva, a oeste de Sevilha, considerariam seus habitantes 11 mais parecidos aos
Indios do que aos espanhóis", e Sir Benjamin Rudyerd, discursando na Camara
dos Comuns em 1628, diria que havia panes na Inglaterra e no Pals de Gales
ande o cristianismo era escasso, ande Deus era sóligeiramente "melhor conhecido
do que entre os índios" .70 Pensavam, pois, como o célebre AntOnio Vieira que,
pregando na Catedral de Lisboa, sentcnciou: "Dizeis que sois Cristáos? Assim é,
[mas} somos cristáos de meias, ternos parte da Fé e faltamos ouua ( ... ), católicos
do credo e hercgcs dos mandamentos (... ).Este é o mundo cm que vi vemos. Ames
e dcpois de Noé, sempre foi o Dilúvio"."
A CoNntA·RI·.Hlii.MA ~-o AII~.M·MAII.
39

O ~undo tornar-se-ia, como jamais o fora, um grande vale de lágrimas. E,


na mo~~sua d~ u m relato de viagem escrito no Brasil, o jesuíta António Rodrigues
resu~ma a éuca dos novos rempos: "ainda que até agora com muítos perigos
ande1 navegando por este mar do su!, onde há tantas tormentas que poucos navíos
escapam, contudo confesso, caríssimos irmáos, até agora ter navegado por outro
mar mais perigoso, que é o deste mundo e suas vaidades, onde tantos se perdem". 72

ÜUTRAS FACES DO PECADO

Fosse pela Íntolerincia moral que ostentavam por princípio, fosse pelo que
observaram no início da coloniza'fáO, os jesuítas cedo perceberam que o mal náo
campeava só entre o gentío. O "excesso de liberdades", a "falta de lei" moral com
que o ameríndio ofendía a Oeus, viram-nas também na condura dos porrugueses
recém-chegados do Reino.
Principal porra-voz da lamúria inaciana no século XVI, Nóbrega náo pou-
paria críticas aos primeiros colonos que, táo logo desembarcavam, rratavam de
amancebar-se com as índias da terra, e náo contentes com esse já monstruoso
pecado, muitos se uniam a várias mulheres de urna só vez, prontos a copiar o
estilo dos caciques e dos principais do gentío. Quase rodas, dizia, tinham suas
escravas "por mancebas" e o u tras livres que pediam aos índios por mulheres, quando
náo as arrebaravam diretamente. Cultivar o pecado e dar esd.ndalos, comprome-
tendo com isso a base moral de roda a obra missionária, eis o que parecía ser o
principal objerivo desses colonos ao migrarem para o Brasil- repetiría Nóbrega
em várias de suas cartas. E, se ousavam admoesrá-los, instando para que se casas-
sem com urna só índia, os padres eram lago amea¡yados, ofendidos e aré perseguí·
dos- relatava Leonardo Nunes, que pretendera desfazer "o grande estrago feíto
pelo demónio" na capitanía de Sáo Vicente, aparrando amancebados do lugar.
Escrevendo em junho de 1553, Nóbrega veria no célebre Joao Ramalho o
exemplo perfeito do que faziam os portugueses no Brasil: sua vida corria J. moda
dos indios, rodeado de mulheres que lhe davam copioso número de tllhos, os
quais, mal atingiam a puberdade, seguiam o exemplo do pai, un indo-se .1 várias
mulheres sem cuidarem se eram irmás o u parenr~ts. Assim, indign.l\'.l·se Nóbreg.1,
perpetuava-se a linhagem do pecado de Jo:io Ramalho, vcrdadcira p(!m Sümdd!i
para os inacianos, "principal esrorvo" que rinham pela frente sendo homcm "mui-
.
"'conhecído e :oparmado com os indios" de Siío VICellte. Homcm dificiL prosse.
p;., poío te recuuva a qualquer emmda e vivia oromungado por niío querer confe,.
• ..,. aoo padra. Mal Joáo Rama1ho era 10111C111C o maíor cxemplo da qualu:lade dos
cu1oooo e de como te openva o povoamento da Colónia: "(. .. ) a es u terra, diría
daalauado, niío vieram teniío clarenados da mais vil e perversa geme do Reí no"''
- Í1112f:em q~ marcaría profundamenre nouos historiadores da coloniza,áo.
Ot queixuma do provincial dirigir-te-iam, ainda, comra os clérigos se-
cuiala que chcgavam ao Brasil após a i~ do bispado da Bahía ( 1551 ), actl.l>-
dos de iguais pecadot e de conivóncia com os amancebamenros dos leigos: "além
de seu mau exrmplo e conuma", diziam "ter lícito esrar e m pecado com as ne-
gras, ~endo elas JuaJ escravas", e absolvíam quantos os procuravam e m confissao,
fazendo-lha muí largo o emrito caminho do céu. "A evitar pecados, [esse clero]
náo vrio, ncm se cvirario nunca ( ... ). Outras coisas veio fazer que V. R. e eu
devcrlamos chorar"- escrcvia ao padrt Simio Rodrigues em 1553." Passados
seis anos, Nóbrcga náo mudaría de opiniáo, em carla a Tomé de Souza, denun-
ciando padres qu< insistiam cm manter-se eles próprios amancebados com suas
escravas, "qu< para cssc cfrito acolhiam as mdhores e de mais pre,o". Estenderia,
assim, ao clero colonial o julgamcnro qur fizcra dos desterrados que cá se lan,a·
vam: "cscória" de padres qur dcsuuia quanto se cdificava no Brasil; melhor que
náo vicsaem, que náo se cmbarcassc sacerdote "'sem ser sua vida muito aprovada"
- rcperiria, incand.vcl, o jcsu(ta-mor. 7S
O juizo dr Nóbrcga rcoaria nos séculas scguinres, e náo poucos bispos e
prelados rcpetíríam idénticas criticas aos sacerdotes seculares da ColOnia até 0 fim
do século XVIII. E boa panc de nossos historiadores assumiria, aliás, a crírica
moraliata dos inacíanos - com exce~áo de Gilbeno Freyre, adversário mordaz
dos jesuitas, que mal disfarc;ou sua benevolencia com 0 que denominou
"abrasileíramento" do clero colonial. 76 Mas a soltura de nossos padres náo desroa-
va, ao mrnos no s~culo XVI, do conjunto de párocos da lgreja Católica, conforme
já salientamos. O dcsprcparo dos curas levara Roma a incentivar missóes na Euro-
pa ao longo dos séculas XVI e XVII, e muito antes do Concilio, em 1522, 0
papado outorgaria privilégíos na esfera paroquial as ordcns religiosas amantes no
ultramar, visando suprir a falta e a dcsqualifica~áo dos quadros seculares. n No
Brasil •. porém, a forma~áo de u m "clero profissional" parece ter malogrado desde
o infcto, o que, sornado a fragilidade da cstrutura eclesiástica colonial, muito
compromcteu a cfid.cia das resolu~ócs tridentinas.
" A_ co~batc~ cuas ..e outras dificuldades scmpre estivcram os jesuitas,
donulocs muan.ugemcs nas palavras de Gilbcrro Frcyre, o que muitas vezes
41

levou a Co~panhia a chocar-se com a política colonizadora da monarquía e com


poderosos mreresses escravistas já esboc¡:ados no século XVI. É conhecida a oposi-
¡¡:áo que fizeram a escravidáo do ameríndio batizado, e ráo grave quanro essa foi a
contestas;áo que, através da inroledncia moral, fizeram a política oficial de povoa-
menw da ColOnia. Povoar a qualquer prec¡:o ainda que por inrermédio de pecados,
essa foi sabidamence a diretriz da política colonizadora, e Gil berro Freyre foi dos
que mais insistiram nesse ponto, relacionando a escassez da populac¡:áo portugue-
sa, sua limitada capacidade migrarória, com a frouxidáo da ortodoxia moral na
coloniza<;áo do Brasil. 78 Náo falraram de faro vozes oficiais a incenrivarem
veladamente as solruras" que tamo incomodavam os jesuíras: Pero Borges, ouvidor
na Babia, lembraria ao monarca, em 1550, quáo necessário era "náo se guardan~·m
em algumas coisas" as leis do Reino no Brasil; Duane da Costa diría em 1555
que, senda o Brasil "terca táo nova (. .. ) e ráo minguada", náo se poderia povoar
sem muiros perdóes; Mem de Sá, cinco anos depois, tornaría a dizer que, se o rei
náo fosse "fácil em perdoar", náo teria "gente no Brasil"; e nosso primeiro bispo,
táo rigoroso em várias matérias, afirmaría que muitas coisas se haveriam de "dis-
simular", mormenre e m terca ráo nova. 79 M u iros foram os que lembraram ao rei o
imperioso objetivo colonizador, buscando provavelmenre neutralizar o furor
rigorista dos inacianos.
E no afá de povoar a ColOnia, Portugal utilizou-se sisrematicamente do
degredo, importante mecanismo colonizador e, ainda, depurador da própri:1 Me-
trópole. Denrre os vários crimes que o direiro régio penalizava com o degredo
para o Brasil, as transgressóes morais náo foram as menos noráveis: condenados a
viver algum rempo ou perpetuamente no Brasil eram os freiráricos que invadiam
mosteiros para arrebatar as esposas de Cristo; os que desonestassem virgens ou
viúvas honestas; os que fornicassem com tias, primas e curras patentas; os que
violentassem órfás ou menores sob tutela; os que, vivendo da hospedagem alheia,
dormissem com patentas, criadas ou escravas brancas do anfiuiáo; os que dormis-
sem com mulheres casadas, e as próprias adúlteras, em cenas circunsrinci.ts; .1s
amantes de clérigos; os alcoviteiros de freiras, virgens, viúv.ls e parentas demro do
quarto grau; os maridos que matassem esposas adúlteras, caso nJ.o pnw.tSscm o
casamento com as mulheres assassinadas ... HO Além desscs . .t legisl.l\.io prc\"Í.l o
degredo para feiticeiros, homicidas e outros que a prática judici.lri.t .tl.'rescem.ui.t
como passar do tempo: hereges, bigamos, sodomitas, jw.biz.UHl'S ... P.1.r.1. desespe-
ro dos jesuhas, náo poucas daquelas penalidades for;uu de Luo .tpli~.-.td.ts ~- ..::onw
veremos oportunamcnle. A política de povo.tmcnto d., Coro.t pllrtugues.t p.ttt:'I.'C,
assim, confirmar a fun\áO e a imagem que Ltur.l de Mcllll e Souu .urihui J.
Colónia: "lugar de purga\áo", "purgatório d;t Mecrópolc.·" desde o st~.-ulo XVI." 1
TRÚPICO nos PECADOS
42

'd d · 1 os¡· esuíras rentaram diminuir a vinda dos indesejá-


Na med t a o posstve , " , ..
. d R · Colonia· que viesse melhor gente , que mandassem ho-
vets 0 emo para a · "
" · 1 ente pessoas casadas no lugar dos degredados que cá
mens d e bem , especta m
· 1"" · a Nóbrega desde 1549. Mas, colonia de explora~ao, o
fazem muuo ma , retterav ,. . .
·¡ - e ·¡· ·
Brast nao ract ttana, pe o
1 menos no cornero a vinda de familias do Remo, esti-
,. ' .
mulando antes os aventureiros desejosos de enriquecimento. rápido, além dos de-
gredad os quevm · h ama'eror..,ra , homens errantes em sua maiona, temerosos de viver
em terra estranha, ansiosos por volrarem a Portugal. Cienres do que animava a
Coroa a colonizar 0 Brasil- a extra~iio de riquezas e a ocupa~ao liroranea a todo
custo - , 05 jesuítas rrataram de ao menos atenuar as conseqü€:ncias morais da
imigra~ao predominante. Alegando que os homens se recusavam a casar com su as
escravas concubinas por nao quererem libertá-las, solicitaram a D. Joáo 111 provi-
sáo declarando que rais matrimOnios náo forrariam as esposas índias. Constatan-
do que muitos amancebados eram já casados no Reino, obrigavam-nos a voltar
para as esposas ou a buscá-las em Portugal, usando todos os meios de que dispu-
nham: amea~as de dana~iio eterna, excomunhóes e, sobretudo, recusa de absolvi-
c;áo nas conftssóes- o que as vezes conduzia adesejada emenda. No en tanto, o
que mais suplicaram os inacianos as aumridades metropolitanas foi o envio de
mulheres brancas, base para a constru~iio de urna ordem familiar portuguesa na
Colonia e garantia de que as Indias ficariam a salvo dos pecados. É já clássica a
obsessáo de N6brega a esse respeito, clamando inúmeras vezes pela vinda de órfás,
mo~as que dificilmente se casariam em Portugal, meretrizes, mulheres erradas,
rodas enfim, desde que brancas e casadouras'' E, com efeito, Nóbrega foi um
grande casamemeiro no século XVI: andou "escogitando maridos e alcovitando
namoros", táo lago vislumbrava a possibilidade de mauimónios.M
Empenhados em difundir casamentos e concorrer para o povoamento da
terra sem prejuizo de Deus, os jesuitas acabaram cedendo no rigor das regras
oficiaís. Como nos matrimOnios indfgenas- ande pediram dispensa para casar
tíos maternos e sobrinhas, contrariando o impedimento consangüfneo de segun-
do grau - , solicitaram o afrouxamemo das normas que impediam portugueses
de casarem com indias, espccialmc:me a ctuc proibia os homens de esposarem
mulherc:s se tivc:ssem dormido com irmás ou parentas da cónjugc, prática habitual
nas rclac:¡:ócs scxuais dos primciros colonos. Em agosto de 1553, na mesma cana
cm que solícitava esse relaxamcmo da disciplina mauimonial, N6brcga pedia ao
padre Luiz Gonc;:alves da _camar_a que confirmasse a mane da prime ira esposa de
Joáo Ramalho e que obuvcsse llccnc;:a para casá-lo com cena india, mác de 3c:us
fllhos, "náo obstante houvcssc 'conhccido' mura sua irmá e «..¡uaisquc:r parc:ntes
43

dela". Dois meses


. depois
, .. considerá-lope-:asr•ndalz"d
de "'' ...... e s-ao y·1cenre, perce be ra
o quanto pod1a usa-lo na conversáo desres genrios". Domesticar o pecado de mil
faces e converté-lo em instrumento da fé, assim pretendiam os jesuíras levar a
Reforma Católica ao ultramar.

A INTIMIDA<;:ÁO DA COLÓNIA

Organizar as massas com base na família crisrá, fazé-las crer na verdade


divina segundo as regras da lgreja, o amplo programa da moderna Reforma Cató-
lica carecía de ourros meios além dos arranjos insrirucionais e da disciplina ecle-
siástica homologados e m Trenro. A viabiliza<;áo da nova pastoral- o u a moderna
difusáo do andgo cristianismo- pressupunha sistemática inrimidac;:áo dos fiéis,
permanente ameac;:a com os horrores que Deus reservava aos que ousassem des-
viar-se de si. A irradiac;:áo dessa "pastoral do medo", conforme a chamou Delumeau,
náo esreve ausente do Brasil - colOnia formada de variadas culturas, gentes e
religióes, somente ocupada para fornecer riquezas a Merrópole, e que por isso
imporia muiros entraves ao catolicismo.
Jesuítas a frente, o discurso arerrorizanre da cruzada tridentina dispós-se a
combater todo e qualquer obstáculo, e a intimida<;ao dos índios no século )..'V1
anicular-se-ia logo com a dos colonos, uns e ourros, cada qual a seu modo, mer-
gulhados no pecado e governados pelo demonio. )á vimos, no Auto d, Sáo Lourm-
fO, o destino que Deus rrac;:ara para os índios que, incrédulos por origem, ainda
auxiliaram o herege francC:s: Guaixará e Aimbire. demonizados depois de monos,
consumiriam seus días na condenac;:áo eterna do inferno, após se vangloriarem
dos "pecados indígenas" ousando obstar a divina obra dos padres. O sentido da
mensagem era claro e generalizanre: os que manrivessem "costumes de gentio"
teriam destino semelhante ao de Guaixará, inglório rival de Deus. E também
nesse drama pedagógico combinaram-se os dois tipos de amea~as que a pastoral
do medo apreciava vincular: o perigo da danac;:áo eterna e o castlgo di,·ino na
Terra. Os índios-diabos de Anchieta haviam de faro marrido no combate a cruz,
e morreriam eternamente por desafian:m a lei de Deus.
Aos colonos dos primeiros rempos aplicar-se·ia a mesma prt:gac;áo, adapta-
da naturalmente ao verniz da cristandade que rraziam de Portugal. Excomunhóes
e amcac;:as, eis o que os jesuhas mais despejaram nos colonos ponugueses do
TltÚJIICO Wl~ l'ECADos
••
. . 1 · d ecialmente suas ambi~óes escravistas, que tanto afcta.
pnmelro sécu o, v&san o esp .
S U. dese¡· 05 libidinosos, que compromeuam toda a obra
vam a catcquese, e e . • . . .
missionária no além-mar. A obsessiio moralista da prega~ao 1~ac1ana no se-
culo XVI, sugerida fartamente na correspondencia dos padres, sena amda ampli-
ada nos séculos seguintes, espelhando a temática privilegiada pelo sermonário
católico dos tempos modernos." . . . • .
Estigmatiu~áo dos desejos e das transgressóes sexuaiS,_mmten~la no
·
casugo ·1merna
e 1o u terreno , nada disso faltou em nossos sermoes dos seculos
XVII e XVlll. Escrevendo em 1699, o padre Manuel Bernardes relataria e m se u
Armas da castiJadt o destino de dois amancebados, um homem e sua comadre,
habitantes do Brasil no século XVI: depois de monos, dizia, vinham rodas as
noites a cavalo, como dois vultos ou estátuas de fogo, "elogo paniam um contra
0 outro", saldos do inferno a penar e amedrantar a popula~áo, que, segundo o
pregador, apelaria a José de Anchiera para esconjurar a terrível visáo. "Bem clara-
mente se mostrou nene caso proporcionada a pena com a culpa- conduiria - ,
pois a Escritura compara a luxúria ao fogo.""
Mais convincente e aterrador que Bcrnardes parece ter sido N uno Marques
Pereira, o "Peregrino da América", que andou pcrcorrendo o Brasil no início do
século XVlll. Pregando contra o adultério, atribuiria morres terrlveis a famosos
pecadores de quem ouvira falar. U m deles, morador em llhéus, morreria degolado
ao subir numa árvore e prender, por obra divina, o pcscoc;o emre os galhos mais
altos: "e para que morresse solcnememe com algoz e testemunha de vista em táo
atroz suplicio, chamou pelo irmiio, o qual brevemente lhe acudiu, e vendo-o na-
qucle horr(vd estado, sem saber dcterminar·sc, se resolveu a subir pela árvore
cortada, levando um machado na mio: e quamo mais subia, mais 0 apenava,
oprimido com o peso do pau, até que chegando junto do padecenre, se determi-
nou a cortar um dos galhos que o prendiam: e foi tal o golpe que, errando 0 pau,
lhe acertou no pesco¡;o e ah o acabou de matar, e assim veio a morrer miseravel-
mente este soberbo adúltero, senda ele mesmo o motor e cxecutor do seu casti
por haver ofend.ido a ~eus e a seu próxi~o". Assim tcrminavam sempre os pe!:
dores do Peregnno: amando-se de altas ¡anelas, lan<;ados em abismos, soterrados
por explosóes, aoque se acrescentava a purgac¡:áo eterna de suas almas pecadoras."
Para livrar os fil!is de rio terrlvcl destino nossos pregadores acenavam
a confissáo, único meio de: reconcili:i-los com Dcus, desde que confessasse C:Om
. . m~
fcata _e verdade.uame~te todos os pecados, s_em exce~áo. E que 0 fizesscrn
connnamenr_e. asto ~.· com dor, pesar, de.resrac¡:~o dos ~ccados e propósito firrnc
de nunca m a as pecar , por amor a Deus. C..onfissoes om1ssas o u sorne me fcitas por
45

medo das trevas náo teriam, assim 0 mesmo valo


• ·
r - repeuam a· rana
e
os co·¿·tgos
~urnas e manuais católicos. 88 Já dizia Vieira no seu indefeccível estilo amea<¡:ador;
~ ... ) O pecado ~em muitas porras para enrrar, e urna só para sair que é a Confis-
sao. Pecar é abnr as porras ao DemOnio [mas] pecar e emudecer é abrir-lhe as
portas para que entre e cerrar-lhe a porra para que náo possa sair (... )";e mudos
era o que mais havia no confessionário, prosseguia o jesuíta: mudos que silencia-
vam, negavam, omiciam, dissimulavam, fazendo de suas falas imperfeüas a mais
completa homenagem ao Anjo das Trevas. 89 A exigencia da comri<yáo perfeita náo
dispensava, pois, a atemoriza<¡:áo generalizada de codos os penitentes.
Nos séculas XVII e XVIII o sermonário barroco da Contra-Reforma de-
a
senvolvería ao máximo sua récnica de pregac;áo base de imagens sensíveis, emo-
cionan res, poderosas o suficieme para subjugar a meme dos ouvimes e caüvá-la
para as verdades da lgreja. 90 Um padre francés recomendaría aré o uso de um
"cerceiro mm", grave e socurno, nos sermóes sobre a m orce dirigidos a massa.
Vieira, mescre da pregac;áo barroca em língua portuguesa, discordaria do esrilo
demasiado "violemo e tiránico" que enrio se usa va- embora fosse inigualável na
arte de intimidar. "O esrilo", dizia, "há de ser muim fácil e muí m natural" e as
palavras deviam buscar os comrasres, cadenciadas, claras como as escrelas: ''as
estrelas sáo muim distintas, muim claras e alríssimas. O esrilo pode ser muiro
claro e muiro alro; ráo claro que o emendam os que náo sabem, e ráo alro que
tenham muiro que encender os que sabem". 91
Estilos de prega<;áo a pane, a pasroral do medo acabaría na Colónia por
adorar eres referéncias básicas em sua prárica imimidarória: a religiosidade, a
explorac;áo social e as transgressóes morais- as mesmas, calvez, que simultanea-
mente norceavam a pregac;áo no Velho Mundo. Aplicada a realidade do trópico
percebemos, já no século XVI, a recorréncia desses temas na pregac;áo inaciana:
no campo da fé, a preocupac;áo com a incredulidade dos índios e sua resistencia
em assimilar a carequese; no campo social, a imimidac;áo dos colonos por sua
avidez em escravizar a populac;áo autóctone; em maréria moral, a ameac;a contra
todos - aos indios por perseverarem em poligamias, adulrérios, incestos e
ounas libidinagens narurais, e aos colonos porque lhes seguiam o exemplo,
amancebando~se com várias mulheres cm prejuízo de suas almas e da própria
atuac;áo missionária no conjunro. Lentamente, no transcurso do século XVII,
a articula<;áo desses remas iria se fazer mais consisrcme, e novas conteúdos seriam
agregados:\ pregac;áo: de um lado, descobrir-sc-ia o negro africano como alvo de
culpabilizac;áo e objero de explorac;áo social e, de ourro, a dcmonizac;áo inicial-
mente centrada nos cosrumes ameríndios iria espalhar-sc pelo conjunto da sacie-
TRÚI'ICO Do) l'l:C:Ano~
16

dade colonial atingindo, no limite, a própria escravidiío, fundamento da colon¡.


za~áo portuguesa no BrasiL
Se Cardim julgara pouco endemoniados os índios do século XVI, se vir,
em seus pajés mais curandeiros do que bruxos, o Peregrino da América, no inicio
do século xvm. nao duvidaria em ver no ameríndio exemplos de idolatría, su-
persti~óes e feiti~arias. A suspei~áo do pacto demoníaco na religiosidade indígena
rornar-se-ia mais n{tida, superando as hesita~óes dos primeiros rempos.'> 2 Mas a
religiosidade negra seria doravante o principal campo de demoniza~áo no campo
da fé: N uno Marques Pereira vería no estrondo de tabaques, pandeiros, canzás,
botijas e castanhetas, ti pico dos calundus, a verdadeira "confusáo do infCrno",
relacionando-a também com a conivfncia dos senhores de escravos. Pcrccberia,
assim, a exemplo dos jesuítas dos séculas XVII e XVIII, o quanto interessados
mostravam-se os senhores em deixar seus negros amargem da catequese, os cultos
da senzala funcionando como lenitivo das rensóes geradas pela escravidáo.
A crítica demonizadora a religiosidade das gentes de cor, dos índios e SO·
bretudo dos africanos, acabaria por confundir-se com os ataques a religiosidade
popular vivida na ColOnia- portuguesa, no século XVI, e cada vez mais sincrética
no transcurso da coloniz.ac;:áo pela contínua agregac;:áo e justaposic;áo de elementos
ameríndios e africanos. 93 Contradic;:áo insolúvel da Reforma Católica no Brasil, o
processo coloniz.atório fornecia a lgreja a oportunidade de expandir-se no ultra-
a
mar, ao ~es~o .t~mpo q~e,_o~erando-se base da escravidáo e da miscigena~áo
cultural. m~Jabli1z.ava a cnsuaniz.ac;:áo das massas" levada a efeito na Europa.
Nada parecJa refrear, no entamo, o ímpeto de nossos seguidores de Trento; como
na Europa, condenaram os espetáculos profanos a 1· • • d e ¡
. . . • rreverenCia as restas popu a-
res, os d1verumentos, a m1stura da piedade criscá com · - _
.d.
1ad o alegre d o con 1ano, enfim, que marcava a vida d superstt~oes e cren~as pagas, o
1
· · · d. · as popu a~óes." Afinal Cristo
JamaJs nra. ma Bossuet no século XVII; "ser risível" d . . . ", ' . .
. dad d . al . . • concor ana VJeua, e a pnmeJ-
ra propne e o rac1on e a ma10r 1mpropriedade da razáo" 'l~
Mas a condenac;:áo da vivencia profana da religiáo .' ·¡ . .
cultos negros, e mais intimidados do que os escrav . pnvt egJ.ana no Brasil os
os senam por tsso h
acusados de tolerantes e conivemes com a prática d l d os sen ores,
. . os ca un us Os . '
nar-se-1am os ma1s ferrenhos adversários dos métod d · Jesunas tor-
• . . . ,. os e controle s h · ·
Coloma, muluphcando crmcas, nos séculas XVII e XVIII a en ona1s na
escravos, a cruddade das punic;:óes, as más condic;:óes e ' su~~rexplorac;:áo dos
. • . h m que VIVJarn o . ,
reststenc&a que os sen ores opunham a catcquese dos n S 5 cauvos, a
. . . egros. e corn r .
tnd1o contcstaram a própna escrav1zac;:áo, limharam-se n d cspc&to ao
o caso 05 af.
censurar os métodos utiliz.ados pelos senhores no "govern d ncanos a
o os cscravos". Fize-
ram-.n~, porém, com extremo rigor e, ao estilo da pastoral, ameac;:avam-nos coma
p~rdlc;:ao et~r~a ou ca~ a vinganc;:a divina na Terra. Atic;:avam, pois,
nos senhores
lelgos, o pan1co que tmham da rebeliáo - medo que também os jesuíras náo
conseguiam dissimular.?r.
. . D.onos de escravos e cruzados da Reforma Católica no ultramar, os jesuítas
1deailzanam urna colónia escravista, porém cristá, ande as relac;:óes entre senhores
e cativos se baseariam em direitos e deveres recíprocos, a reproduzir o modelo
monárquico e paHiarcal de família que se buscava difundir no Velho Mundo.
Articulando o propósito missionário com a realidade escravista da colonizac;:áo,
demonizariam a religiosidade negra por ser ofensiva a Deus, mas também por
aglutinar os escravos, solidarizá-los, empalidecendo o conformismo genuinamen-
te cristáo que deveriam cultivar.
o a
modelo patriarcal de família, perfeitamente ajustado pastoral dos no-
VOS tempos, exrrapolaria na Colónia os limites que devia guardar: o triunfo do
"privatismo", da forc;:a dos proprietários rurais sobre os frágeis poderes do Estado
levaria, nesse campo, a derrota da rnissáo. Ficaram, pois, os jesuíras a atormentar
os senhores pela onipotencia arrogante e pecaminosa, enquanro pregavarn aos
escravos para que suporrassem o seu miserável estado. Vieira, urna vez mais, assu-
miria com máximo brilho esse duplo papel: aos senhores ameac;:ava como inferno
e a rebeliáo se conrinuassem a supliciar os escravos e a impedi-los de abrac;:ar o
cristianismo; aos escravos, que sofressem piamenre os piares castigos e horrores
pois, imitadores do manírio de Cristo, deles seria o Reino dos Céus.'n Nosso
principal jesuíra náo diria ourra coisa, pregando aos pobres de Lisboa: que náo
lamentassem por falrar-lhes a comida, pois quanro mais esquálidos fossem, menos
devorados seriam na sepultura; já os carpos dos ricos, "estando cheios e carnu-
dos", que banquetes náo dariam para os vermes? "Oh! triste destino" reriam os
ricos: "comer para serem comidos".?S A lógica do desprezo pelo mundo, lembra-
nos Delumeau, implicava a "recusa de toda sedic;:áo e, com mais razáo, de roda
revoluc;:áo". ??
Junto adesaprovac;:áo da religiosidade sincrérica e acrítica conservadora da
escravidáo, a ac;:áo tridentina na Colónia alinharia a permanente ofensiva contra
as transgressóes do sexto mandamento- ofensiva generalizada, que desde o sécu-
lo XVI visaría tanto a licensiosidade natural do índio como J. dos colonos ponu-
gueses, e privilegiaría, entre os pecados da carne:, os que mais dirc:lamc:nle pare-
ciam comprometer a constrw;áo de: urna ordem familiar no Brasil: amanceba-
mentas, concubinaros, incesws, poligamias, adultérios. Ofensiva que: náo poupa·
ria leigos ou clérigos dcsrc:grados, índios ou conversos, homens ou mulhc:rcs, aos
quais se somariam, no século XVII - e com grande ~es_raque_ -: os africanos.
Jo e Benci 05 veria como os maiores pecadores da Colonta, arnbumdo-lhes pro.
rg natural aos "vicios da desonestl"d ade.. ; nen h urna "na~ao
cnsáo - era ma1s
. .mdinada
~entregue aos vlcios que a dos preros", dizia, sendo "impossível achar-se urn
africano que nao fosse desonesro", como inviável era achar-se u m africano que
nao fosse africano. Os negros excediam na lasdvia aos "brutos mais libidinosos" e,
ao conuário dos brancos, náo careciam de mestre que lhes ensinasse a arte dos
pecados - pois nela eram já dourores. '"" Benci foi, ralvez, o que mais insistiu
nessa inclina~áo dos negros para a fornica~áo, mas tanto ele como os jesuítas de
seu rempo vinculariam as libidinagens africanas ao desregramento da escravidáo.
Vieira, Antonil, Benci, todos acusaram os senhores de n5.o combaterem a
licenciosidade dos negros, permirindo-lhes cultivar os prazeres do ócio, impedin·
do-os de aprender os mandamentos da lgreja, recusando-se a casá-los na forma
tridentina e, sobrerudo, dando-lhes o melhor exemplo de como viver em pecado.
De que maneira poderiam os negros viver castamente- indagava-se Benci -se
viam senhores "casados com mulheres doradas assim de honra como de formosu-
ri' deixartm·nas por urna cscrava enorme, monstruosa e vil?" 10 1 Aponrando o
desregramento dos cscravos, os jesuítas denunciavam os adultérios dos senhores e
das sinhás, condenavam a promiscuidacle sexual da casa-grande e a miscigena~áo
que dela resuhava e se irradiava por toda a Colonia. Anronil niio deixaria de ver
soberba e vicio na cas1a dos mulatos, gente ingovernável, "salvo quando por algu-
ma dcsconfianc;a ou ciúme o amor se muda em ódio e sai armado de todo genero
de crueldade e rigor". ' 02
Amerindios luxuriosos, colonos insaciáveis, negros lascivos, mulatas
desinquieras, senhores desregrados, sinhás enciumadas, o pecado estava em rodas
as gentes e lugares. A todos, sem excec;áo, cabia portante intimidar, ameac;:ar,
castigar - foi o que pensaram os seguidores de Tremo no ultramar portuguf:s.
~ten~n~o a tantas lamúrias e apelas, já no primeiro século nossos bispos envia~
nam. v1s~tadores a rastrear os pecados de todos e a puni-los com 0 rigor da leí
e~leSiástoca. Niio rardaria, ainda, para que o já célebre Santo Oficio lisboeta en-
VIasse: tamb~m ele.' o ~eu próprio visitador, acrescentando ~ intimidac;:áo jesuítica
o pi.mco da fogueua mquisitorial.
NOTAS

l. Bossy, John. Tht! Countcr Rcformation and thc People of Catholic Europe. Pmt and
Pment. 47. 1970. p. 53.
2. Delumeau, J. El catolicilmo de Lutero a Voltaire. Barcelona, Labor, 1973, p. 199·210.
3. Id. ibid., p. 193.
4. Ladurie, E. Le Roy. Montaillou, villnge aceitan (de 1294 a 1324). l. ed. Paris, Gallimard,
1982, p. 124-147; p. 190-192.
S. Mullct, Michael. A Contra-Reforma. Lisboa, Gradiva, 1984, p. 14.
6. Bérard, Pierrc. Le Sexe entre tradition ct modernité (XVlc.-XVIIIc. sit:dcs). Cahius
internationaux de sociologie. vol. 76, 1984, p. 136.
7. Flandrin, )can-Louis. La Docuine chrétienne du mariagc. In Le Sexe etl'Occidwt. Paris,
Seuil, 1982, p. 103; Métral, Maric-Odilc. Le Mariage: In hésitatiom de /'Occidmt.
Paris, Aubicr, 1977, p. 40-45; Duby, Georgcs. Le Cheva/ia, laftmme et le prhre. Paris,
Hacheue, 1981. p. 189-197.
8. Entre os impedimentos dirimentes (que anulavam o casamento), destacaríamos os liga·
dos ao parentesco: natural (consangüinidade até o quano grau); espiritual (contraído no
batismo, entre o que batiza e o batizado, se u pai e su a máe); legal (proveniente da ado~io
e contraído entre perfilhanrc, perfilhado e filhos da que perfilha, bem como entre a
mulher do adorado e a adorante, e a mulher do adorante e o adotado). Importante tam-
bém é o impedimento de afinidade contraída pelo marido com wdos os patentes consan-
güíneos da esposa até o quano grau e vice-versa e, ainda, entre o homem e todos os
parentes de urna mulher com quem tivesse cópula ilícüa (e vice-versa). A lisra de impedi-
mentos incluía, porém, várias o u tras situa~óes, como rapto, impotencia, fa ha de testcmu-
nhas, ausencia de pároco e disparidade de religiáo. V. rol completo cm Sil\'a, Maria Beatriz B.
Nizza da. Sistema de casamento no Brasil Colonial Sáo Paulo, Edusp. 1984, p. 129-131.
9. Segundo o direito canónico, os casos em que mais cabia o pedido de separa~io eram:
adulrério, heresia, inclina~áo para o mal (roubar, matar, cometer atas sexuais contra natunt),
maus-tratos, vomade de matar ou assassinar o cónjugc e loucura. V. Tarczrlo, Thc.·odon:.
Sexe et libertt au sitrle des lumitm. Paris. Prcssc de la Rcnaissancc, 1983, p. 242. ~t.B.
Nizza da Silva t:sdarcce que o "divórcio" nada mais era do que a separ.a\áo, pois os etinju-
ges só podiam vohar a casar se fosse dada sentcn~a de mauim6nio nulo. Op. cit.. p. 210.
10. Flandrin, J.-L. Famil/e;, Paris, Scuil, 1984, p. 120.
11. Foucauh. Mi che l. Hi!tória da sexualidade: a vontade de Jaher. Rio de.· _laneiro. l;ra.tl.
1977, p. 62.
12. Mandamentos da lei de Dcus: 1) Amarás a um só Deus; 2) Náo tomarás o Scu nomc t'lll
váo: 3) Guardarás domingos e fcstas; 4) Honruás a teu pai e tu.l mic; 5) Náo matarJ.s; 6)
Náo fornicarás; 7) Náo funarás; 8) Nao levamarás falso tenemunho; lJ) Náo desejarás a
mulhcr do próximo; 10) Niio cnbi\'ar;is ots coisas alhci.ts. M.tndamcntos J.1 lgrcja:
TROPICO uo~ HCAllo~
jO

. . domin os e cm di as santificados; 2) Confcssar ao mt:nos uma VC:lao


1) Ouvtr mtssa aos 1 p·g daR ssurci~áo· 4} Jcjuar quando manda a lgrt:ja; 5) Pagar
ano; 3) Comunga~ pe a ascoa p ~ C i:ais· 1) Soberba; 2} Avan:za; 3} Luxúria;
díz.imos e primícJas. Os scte cea os. ap .
ó) Cólera; 5) Gula; 6) lnveja; 7) Prcgu•l•·
. Hl Un sondeo m Ja historia de la sexualidad wbre fuent(s
13 Sanchez Ortega Mana e ena. l M d 'd s· 1 XXI
. inquisitorialts. ln ViUanucva, J.P. (org.} La lnquiJición espagno "· a n , Jg o ,
1980, p. 926. . ..
14. Herculano, Alexandre. Estuelos sobre o casammto Civil. 2. cd. LJsbo~, Iav~rt:s Cardlo~o e
lrmáo, 1892, p. 187 e segs.; Almeida. Fortunato de. HiJtórin da Igre¡tl em 1 ortugal. l orto,
Livraria Civiliza~áo Editora, 1968, vol. 2, p. 511 e scgs.
lS. Boxer, Charles. A lgreja e a expansáo ibhica (1440-177(]). Lisboa, Edi~ócs 70, 1981,
p. 101; Delumeau, }. El catoliásmo ... , p. 10.
16. Mullet. Op.eit., p. 21.
17. Caminha, Pero Va:z. de. Carta a El-Rei D. Manoel. Em 1 de maio de 1500. Lisboa,~·
Borsoi Impressor, 1939, p. 53. Carta a D. }oáo /11. Apud Tapajós, Vicente. Hútóna
administrativa do Braúl 2. ed. Rio de ]aneiro, Dasp, 1966, vol. 2, p. 261.
18. Apud Hoornaert, Eduardo. A lgreja no Brasil colónia (1 500- 180(]). Sáo Paulo, Brasiliense,
1982 (Col. Tudo é História, 45), p. 40.
19. Boxer, C. A fg,rja... , p. 98.
20. Em fms do século XVlll a América espanhola comava com oito arcebispados e 31 bispa-
dos. Já no Brasil, até 1551, a lgreja esteve subordinada ao arcebispado do Funchal, cuja
diocese, criada em 1514, exerccra poderes meuopolíticos entre 1532 e 1550. Obispado
de Salvador, táo lago criado, foi subordinado ao arcebispado de Lisboa (1551 ). V. Almeida,
F. de, op. cit., p. 23, 33-34. A1ém da prelazia doRio de }aneiro, criou-se a de Pernambu-
co, em 1614, extinta lago em 1624.
21. Allí, Riolando. A institui¡;áo eclesiástica durante a primeira época colonial. In Hoonaerc;
E. et alii. Hútória dtl lgrtja no Brasil2. ed. Petrópolis, Vous, p. 175-176.
22. Id. ibid., p. 176. Tais constitui¡;óes jamais Foram impressas e observadas, continuando a
vígorar as de Lisboa, segundo inForma¡;áo de Anchieta.
23. Freyre, Gílbeno. Casa-Grandt t stnz.ala. 16 ed. Río de Janeiro, José Olympio, 19 73,
p. 195.
24. Boxc:r, C. A lgrtja... , p. 93-95.
25. Mulle!. Op.cit., p. 36-37; 63.
26. N~s, Luis Felipe Saeta. O combatt dossoldado1 de CriJto n11 terra d01 papagaios. Río de
Janclro, Foreme, 1978, p. 35.
27. Holanda, Sérgio Buarque de. Vísáo do par41Jo. 3. ed. Sáo Paulo, Companhia Editora
Nacional, p. 1-12.
28. Souza, Laura de Mello e. O dillbo 'a Jrmt tÚ Sanhl CrUL Sio Paulo, Companhia das
Letras, p. 32-48.
SI

29. Id. ibid., p. 49 e segs.


30. Colombo, Cristóvá~. Didrios ú descobma Ja Ambica. 2. cd. Pono Alegre, LPM, 1984,
p. 45 e 123. respecnvamente.
31. Cortés, Hernán. A conquista do Mlxico. Porto AJegre, LPM. 1986, p. 35, 47.
32. Romano, Ruggiero. Mecanismos da conquista colonial Sáo Paulo, Perspectiva, 1973,
p. 12-26; 73-74.
33. Neves, L.F.B. Op.cir., p. 60.
34. Cardim, Fernáo. Tratlldos da temz e gente do Brasil Belo Horizontc/Sáo Paulo, Irariaia/
USP. 1980, p. 87-90.
35. Apud Boxer, C. A lgr.ja ... , p. 118.
36. Leite, Serafim {org.). Novas cartas jesuíticas. Sáo Paulo, Companhia Editora Nacional,
1940, p. 73. 77.
37. Cidade, Hernani (org.). Padn Anrónio Vieira (stnnóes). Lisboa, Agencia Geral das ColO-
nias, 1940, vol. 2, p. 321; Souza, L. de M. e. Op. cir., p. 49-71; Jaboario, F"'i Anronio
de Santa María. Novo orbe serdfico brasílico. Rio de janeiro. lipografaa Brasilicnsc de
M. Gomes Ribeiro, 1858, vol. 2, p. 13.
38. Traca-se da "lenda de Sumé". V. Holanda, S. B. de, op. cir., p. 104-125.
39. Pereira, Nuno Marques. Compindio n11m1tivo do Pnrt;rino J. Ambica. 6. ed. Río de
Janeiro, ABL, 1939, vol. 2, p. 26-27. A origem hebréia dos indios foi cfucurida por Di<&<>
André5 Rocha cm scu Tratatlo unico y singrd¡zr tkl aril'" tÚ ÚJs i.Jios, 1681. Ver Holanda,
Sérgio Buarque de, op. cir., p. 287-288.
40. Neves, L.F.B. Op.cir., p. 44.
41. Anchiera, José de. lnfomrariks t.{rtlgm.ntos histtJriros (1584-1586). Rio de )aneiro,lm-
prensa Nacional, 1886, p. 28.
42. Cardim, F. Op. cir .. p. 87.
43. No enramo, desde Tomás de Aquino a lg..ja admiria a rcalidade dos faros má¡iaJo e plaU-
mia pacEos entre os feiticeiros e o dcm6nio. Em seu M••lllli tÚ i~ ( 1376), Nicolau
Emc!rico forneceria os indkios que se dcviam buscu do paao demoniaco, r vúios traradm
demonol6gicos fo!llm escritos nosaéeulos XVI e XVII. V. Souza. L. de M. e. Afi"ipN u
lpora TTIIJtÚrna. Sáo Paulo, Arica, 1987 (Col. Prindpios, 116), p. 21-22; 38 e sep.
44. Gandavo, Pero de Magalháes. T,.,.,¡. J.,., J. llNsiL Bdo Horimnte!Sio Paulo, ltariaio/
USP. 1980, p. 52.
45. Assim o disse Ma1cus Noguein., pcrsona~m do ·oillloco d1 convenio do Frnto•.
V. Marrins, Wilson. Histórill ú inrtliti•<UI 6rrui!.i... Sio Paulo, Cultrix, 1978, ...J. 1
(1550-1794), p. 44.
46. Foi o que dilse Benci, l"'F· A ,..,.,.;. mstl ,¡., ,rJsom .. r - , ¡ . , - Sio
Paulo, Grijolbo, 1977.
47. Bolosne, jean-Ciaude. Histoir< tlt l.'""'"'·
Paris. Olivier Orban, 1986, p. 18; 34
e1cp.
!2

d> (A do Brasil' maÍJ <~<ritos (1549-1560). Rio de Janeiro, lm-


48. Nóbrega. Manud · ""'
mua Nacional. 1886, p. 49-59. . . . _
p . 152 Luis Felipe Baeta Neves frisou bem essa pnmclfa med•ac;ao
49. Cardim. E Op. Q[., ~- • . • .J. . - !'rica do gcmio pauou-se a distinljáO entre
. 1_ no dílcuno JCSumco: w vtsao mono 1 , .
a&p'KY . . . · D'abo e 05 segundos, a Dcus . Op. Cit., p. 63.
indios e convell05. "os pnmeuos sujc:HOS ao 1 •
. . América Novo Mundo. Parlo Alegre, LPM, 1984, p. 94. Florestan
50. VcspuCJO, . · )' . . díg na com 0 fundamenro geronrocrático do
Fcrnandc.s relacJOnou a po •gam•a m e . ~ . . .
siJrema cuhural tupinambá, que privilegiava os grandes _guerreH~S.' CIUCetros ou
chefet de extensas parentelas com a oponunidade de se umrcm a_ vanas esp~sas -_o
uc, alíás, era proibido para as mulhercs. V. Organizarño soCia~ do_s tupm~mba_s.
i. c:d. Sáo Paulo, Difel, 1963, p. 153. Também Gilbcno Freyre.alf.Ihuiu a poligamia
mascuJina menos ao dc.scjo sexual do que ao "interesse economiCO .de cercar-se o
ca~dor, 0 pescador ou 0 gucrreiro dos valores económicos vivos, cnadores, que as
mulhcrcs rc:prcscntam". O p. cit., p. 116.
51. No""' <arii/J••• , p. 232.
52. Souz.a, Gabriel Soan:s de. Tratado d'"ritivo Jo Bwil •m 1587. 4. cd. Sao Paulo, Compa-
nhi2 Edil01"2 Nacional, 1971, p. 308-309.
53. Em vinude da falu. de parccír.u jovens- já que o homem s6 podería se casar quando
fizc:uc: um prísioneiro, além de ouuas resui9)es - , os mancebos [Upinambás "contenta-
vam'IC comas vclhas, apesar de as saberem estércis". Fernandes, F., o p. cit., p. 158.
54. Já cm 1503 América Vcspúdo observara algo semelhante, também animado por um
c:splrico de rcprov~áo. "PoiJ que as suas mulheres, senda libidinosas, fazem inchar os
mcmbros dos seus maridos a urna cal grossura que disformes parecem e brutais, e isso com
um aeu c.cno artificio e a mordida de animais venenosos; e por causa dessa coisa muiros
deles o pcrdcm e: ficam eunucos." Op. cit., p. 94.
S5. NOIIAJ CIITflll... , p. 97. O me.smo disscra Gandavo sobre essas mulhercs. Op. cir., p. 57.
Aoratan Fc:mandes afirma que: a sodomía reccbia o bc:ncpláciro social enrre os tupinambás,
cmbora o upapcl pauivo" cxercido por homens fosse sujcito a insuhos (utilizando-se a
palavra utivira"). Quanto a. mulhcre1 que ae ucasavam" entre si, adquiriam "toda espécie
de parcmcaco admivo e de obripljóes as1umidas pelos homens cm seus casamentos". Op.
CÍl., p. 160-161.

56. Ar26jo, Padre Anllmio de. C.ucismo na 1/ngua bw/lica (1618). Rio de Janeiro, PUC,
1952, p. 102-103.
57· Anchicla, JoK de. lnformil'jiio dos c:uamcmos do1 Indios do Brasil. RIHGB, Tomo 8,
1846, p. 254-261.
S8. "A deacc~~ncia real era contada na huc: dos parentescos consangülncos, atravé1 da linha
parerna. ~crnandca, ~·· op. cic., P· 170. "O cuamento prcferc:ncial do üo materno com
• filh~ da ·~1 rencua-le na terminología de: parentesco" senda a Jobrinha dcsi nada
1

pdo uo de fulUia ctpOia". Id. ibid .. p. 203. g


59. 1i•lrotÚAnthitt•. Slo Paulo, l.oyob, p.l45-158.
53

60. Vários catecismos e manuais de confissáo foram impressos em lin uas" . . ..


por jcsuítas como por ouuos religiosos (ver b'bl" fi ) g _brasliJcas , tanto
d A . . d 1 •ogra •a . Dentre os mau deralhados en-
comra-sc o e monJa e Araújo, já citado. A propósito da perspectiva mundial da Con
tra-Reforma, Charles Boxcr nos informa sobre · · b d · · · - . -
, l vanas 0 ras e ap01o a m1ssao publicadas
no secu o XVI cm tagalo, chinCs, japonés (romajl), náuade, etc. Op. cit., p. 57 _62 _
61. Ca~tas do BrasiL., p. 1?9-110. (Grifo nosso.) A decisáo final do Concilio de Tremo na
ser;ao XXI:, ~ap. V, fo1 a de que somenre se dispensasse no segundo grau em casos de
grandes pnnc1pes e causa pública. Ver Silva, M.B.N. de, op. ci[., p. 131.
62. Carta; do Brmil.., p. 141-142. Neves, L.EB., op. ci1., p. 38-39; 75.
63. Vasconcelos, Simáo de. Crónica da Companhia de ]tJUS. Pelrópolis, Voze.s, 1977, p. 221.
64. Delumeau, J. Ü Péché... , p. 30-41; 138 esegs. V. 1b. Holanda, S.B. de, op. ci1., p. 181-
182, e Souza, L. de M. e, O diabo... , p. 44.
65. R. Romano afirma que o humanismo se oriemou conforme dais eixos: "dássico (e gasro)
do conhecimenro histórico que quer rrazer o passado ao presente e alimemar o úhimo
como primeiro, e o outro, de acordo como conhecimento do espat;o que se abre coma
explorac;áo do mundo" (determinante e preponderante). E prossegue: "Nao é por acaso
que o primeiro humanismo- o que se alimema unicamente do patrimOnio clássico-
é mais aberto e mais liberal", e nele "enconuamos ensaios de sincreüsmo entre mundo
clássico e criscianismo." Já o segundo momento, "se deu lugar ao exato sentido do
relacivismo de um Momaigne (. .. ),por outco lado, levou as grossas fileiras do humanismo
a estabelecerem urna unicidade agressiva, voraz, esmagadora". V. "ConquiS[a, geografia e
humanismo" in op. cü., p. 97-100.
66. Neves, L. F. B. Op. cil., p. 32.
67. Salvador, Freí Viceme do. Hútória do BraJil (1500-1627). Sao Paulo, Mdhoramentos,
1975, p. 57.
68. Campanella, Tommaso. A CidAde do Sol Lisboa, Guimaráes. Edilores .. l980, P·. 13.
O no me original da ilha era Taprobana. Morus, Thomas. A utopul. 6. ed. Luboa, Gulma-
raes Ediwres, 1085, p. 27-28.
69. Apud Souza, L. de M. e. Op. ci1., p. 90.
70. Apud Burke, Peter. Popular Culturr in &rly Motiern Europe. London, Temple Smith,
1978, p. 208.
71. Vieira, AntOnio. Sermóes. Lisboa, Typografia de Miguel Deslandes. 1679-1689, voL l.
p. 224-245. . . d 1 s
72. Leite, S. AmOnio Rodrigues, soldado, viajante e jesuha portucues na Aménca o u .
ABN, 49, 1927, p. 63 (grifo nosso).
73. Novas cartas.... p. 46; 60.
74. C4rttls do Brruil.., p. 84; NoV4J c•rw.... P· 35.
75. C.rtiiS Jo 81'dJil... p. 77; 193-194. d
. , 95· N so clero. "se nio primou nunca. 11 nlo ser so~ •. ~~~a e
76. ~reyrc, G. Op.cu.: P· 1 , os doxia. scmprt se dininguiu pdo hruiiC'lnsntO , ou
JC'suha, pdo asceusmo ou pela orco
l"Rl H'ICO llO\ I'ECA\)G~

seja, pela subserviencia aos grandes scnhores, pelos amano.:bamcntos e pda flexibilid;~_dt
ou negligencia no exerdcio do sacerdócio.
77. Boxer, C. Op. ci[., p. 86·87. Tais privilégios, que aurorinvam as ordcns cm reh~;-¡ 0 all
episcopado. iriam colidir como refor~o dos poderes d~occ.s;mos csrabdccidos cm T~cnto.
No século XVI, os jesuitas relutaram em entregar paroqUiaS ao clero secular colmua\.

78. Freyre. G. Op. cir .. p. 245 e segs.


79. Apud Pinho, Wanderley. Aspectos da hiltória social da cidmle dt· Salvador (1 549-1650).
Salvador, Prefeirura Municipal. 1968, p. 239-240.
80. Almeida, C3.ndido Mendes de (org.). Código filipino ott onlellllfiies e leis do Heino de l'or-
tugal. Rio de ]aneiro, Tipografia do lnstimw Philomáüco, 1870, Livro V, Tirulos '1\V,
XV\, XVlll. XX!, XXIV. XXVI, XXX, XXX\\, XXXV\\ l.
81. Souu, L. de M. e. Op. cit., p. 82 e segs.
82. Novas cartas... , p. 60. Cartas do BrasiL.., p. 59.
83. Cartas do BrasiL... p. 54-55; 79; 83-92; 98.
84. Pinho, W. Op. cit., p. 533. V. tb. Costa, Afonso. As órfos da rain ha (base da fornlllfiio dll
familia brasilrira}. Rio de Janeiro, 1950.
85. Analisando sermóes franceses do século XVI ao XVlll. Dclumeau consrawu a forre
recorrf:ncia de temas como a luxúria, a beleza física, 0 traje feminino. a cascid<1dc, 0
casamento e a viuvez, com os quais s6 rivalizaram as preg;ujócs sobre roubo, dinheiro,
avareza e ambi(jáO. V. Lr Picht. .. , p. 477.
86. Bernardes, Manuel. Armm da castidadr. Lisboa, 1699, p. 198.
87. Pereira, N.M. Op. cir .. vol.\, p. 49,288-290.
88. Constituirórs Primrirasdo arubispado da Babia (1707). Sao Paulo, 1853, Livro l, XXXIV,
parags. 131-132. Sobre manuais de conf1ssáo portugueses: V. Lima, Lana Lage da Gama.
Aprisionando o desejo: conf1ssáo e sexualidade. In Vainfas, Ronaldo (org.). História t
srxualitÚldt no Brasil Rio de ]aneiro, Graal, 1986.
89. Yie;ra, A. Op. cir., vol. 2, p. 373-374.
90. Deyon, Pierre. Sur cenaines formes de la propagande religieusc a u XVIe. siCde. Annalrs
E.S.C., 1,1981, p. 16-22.
91. Cidad<, H. (org.) Op. ci1., vol. 2, p. 248-249.
92. Pmira, N.M. Op. ór., vol. 1, p. 277-288. Nas ú\r;mas décadas do sóculo XVlll, a
imagem do lndi~ iria. desdobrar-sc cm dois sentidos apostas: su a dcsvaloriza(jáo en-
q~anw homcm mfcnor e rude, incapaz de abra(jar o cristianismo mais por ignurin·
Cla do que. P_ur "inocCncia" ou apego ao diaho, e sua glorifica(jáo pela primeira lite·
ratura nauviSia. Ver, sobre o último pon lo, Souza, AmOnio Cindido de Mello c.
Ler~as t idéias no Brasil Colonial. In Holanda, S. B. de (org.). História gtral da
cilnl~za~áo braliltira, Tomo l. vol. 2, p. 9K-99. Dois caminhos, duas possibilidades
cxpnm1am, na figura do Indio, os confliros de um colonialismo cm crisc.
93. Souza, l. de M.'· Op. cir., p. 155-156.
55

94. Dclumcau, J. Le Péché... , p. 85, 144-145, 473-477,487-488. O "Peregrino da América"


rcprovava "comédias, passos, bailes, cntrctczcs, toques de viola e músicas desonesras".
Op. cÍ(., vol. l. p. 100-116.
95. Vieira, A. Op. cit., vol. 14, p. 216.
96. Examinamos o assumo cm ldeologia t tJcrnvidiio: os lrtrados t a Jociedadt tsmrvista no
BrnJi/ colonial Pctrópolis, Vozes, 1986, p. 149-159.
97. Ciclad<, H. (org.) Op. ci1., vol. 2, p. 78-114.
98. Vieira, A. Op. cit., vol. 7, p. 402-403.
99. Delumcau, J. Le Pichi... , p. 513.
100. Benci. J. Op. cit., p. 178 e scgs.
1Ol. Id. ibid., p. 103.
102. Andreoni, Joáo AntOnio. Cult~tra t opu/(ncia do BrmiL Sáo Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1967, p. 160.
PAKrJ!2

MORALIDADES 00 TRóPICO

TINIM " - ¿, " ' - l.o ltíMri. -.líll 11 " " -


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Fnn;w l.upl·~. Crllnir.1 dl· n. Ft'rnantln

A llltiÚJI' drlifitt dtJ brruilrlrt~ 1 rtmvrrsar


Jt~/iult'r.~l.

GilhC'rco Frcyrc

0 LJESEJO LJOS llllMF.NS

De Nóbrcga ;\ Anwnil, de Anchiera a Jorge Benci, a crítica inaciana aos cosrumcs


da Col6nia sugcre·cws u m quadro lle ahsoluro desregramenm em mar~ria sexual.
E tnmbém nossa historio~rafla, aplaudindo ou reprovando • soltur• dos portu-
gueses no Bc·asil, sempre rendeu a endossnr essa inuagem gtral da Col6nia, rern
ande nada valiarn as regras da morill, onde :m! os prcconceitos raciais sucumbiam
nos apetites da carne, insuflados, ali:ls, pelo calor libidinoso do trópico. Os pio-
nciros da colonizac;áo, diz~nos Charles Boxer, "baseavam·se na teoria dt que nlo
existiam os dez mandamentos au sul do Equador" 1 e, A lasdvió\ dos lusiranos,
escreve Pnulo Prado, juntou-se a sc:nsualidade das (ndias. especialmcnre movidas
por razOes prid.picas.J A justificar ess:t prdCTe-ncin lhu sC"nsuais amC"dndias pc"los
curopcus, Gilbcrto Freyrc aletlou a pn\pria ins:nisfa~lo demonstrada pelos ho-
mens da rc:rrn com n prup01·c;n.o llc: ~c:us mc:mhrus ~enitais, :m que: atribuiu o
costume que tinham de: cn~ross4.-lns com a aplica~lo de: p~los Jlf'\"'nhcnros.'
Raz()cs prid.piclls ~ parle:, jli mc:strc Capisrrano dt Abrtu At.'tntuava, a csus-
sez de mulhercs brancas como principal tsl(mulo dn dtscjo lusitano pdu Indias,"
mas foi sem dl\vid1t Gilhc:rw frcyre quc:m trA\"(''U R mai1 t.'Omplc:ta narrariva do
60 1 RO PICO llo~ i'E.CA.Do~

encontro amoroso enue portugueses e índias sequiosos de prazer. Das páginas de


Casa-Grandt t smzalasaham nossos primeiros colonos entrelac;ados comas indias
pelos matos, vivendo sem crises de consciencia com duas, rrc?s ou mais mulheres.
Aescasse• quase total de mulheres brancas, Freyre acrescenta a natural propensáo
lusitana ao convívio com outras etnias, o hábito polig5.mico herdado dos mauros
o roto preconceito que marcara a formac;:áo histórico-cultural da Península'.
A mourisca provocanre reaparecia, assim, na índia nua abe ira do rio, risonha e
doce como as frutas do trópico, adensando o já irrefreável ardor portugues e 0
clima de "intoxicac;áo sexual" que envolveu a ColOnia desde o primeiro século.
Falta de preconceitos e de mulheres broncas, fragilidad e e subserviencia do clero,
interesse metropolitano em povoar o Brasil e, principalmente, narural pendor
lusitano para os prazeres carnais e "para o contato voluptuoso com mulher exóti-
ca·' tudo isso estaria na base de nossa miscigenac;:áo, un indo os portugueses as
Indias, depois as negras, mulatas, cafu•as. quase sempre a margem da familia
legitima.s Freyre salienta, pois, como a maioria dos historiadores, a clássica frou-
~idáo moral da ColOnia, recompondo o mesmo quadro que nos legaram os mora-
liStas da Contra-Reforma, embora o fa~a com sentido oposto: 0 que para aqueles
era condenávcl se lhe apresenta como nobre prova de tolerancia racial, saudável
despojamento de interdi~óes sexuais.
Mas esse retrato do Brasil talvez esteja a merecer urna nova leitura: seria a
ColOnia tio desregrada) Seriam ~ · ·
· os portugueses tao 1semos de preconcenos como
sugerem ~s amores de um ]eremimo de Albuquerque, a prole de um Caramuru ou
as lfreverenc¡as de um ]oiio Ramalho, pttra scanda/i da missiio vicentina? ~ fon-
tcs que nos comam sobre a vida amo ld
· . d" rosa e scxua a ColOnia parecem, a primeira
VIsta, m 1car o retrato e1ássico assim co l
sabidamcnte fu d ' mo 0 argo processo de miscigena~iio que
n amentou o povoament0 d B .1
· ·- d" 0 ,.,. · Apesar de tudo somos de
oplmao que urna re lscussá.o da natureza des f¡ '
nial nos poderá conduzir a outra ordem d sas 0 ~~ 5 e da própria situac;:áo colo~
regras onde aparentemente ·1m e propos•~es e, quem sabe, a desvendar
perava o caos.
Consideremos, em primeiro lugar u d .
séculos XVI XVII e XVIII sobr 'q e 0 epotmento dos observadores dos
• • e os qua•s multo se basca . .
res, pertencia ao esplri[O de missáo . ram nossos h1stonado~
. que VImos marcar a d . .
trÓpiCO. Pertencia, pois, a"coloca«;áo do S d' cruza a tndentma no
Michel Foucauh a proliferacáo de discursoexo em . •scurso" • conforme qualificou
~ • T s mora1s no Ocide d
provat;ao dos desejos que missionários e cron' e . me mo erno. A rc-
lstas raz1am no B ·¡ e
também os moralistas na Europa, emronizand ras¡ • raziam-na
"b' . o o sexo no palco d d"
sens1 d1zando o olhar sobre suas manifeS[ac¡óes t d os •scursos,
• ornan o-o obsceno, enfim, como
61

jamais o fora.
, .
Boa panc do. que
.
alardeara m os 1nac1anos
· · d' ·
e seus ISC1pulos resulta-
Y~,- sem ~uvJda, da es.pecdlcJdade colonial, mas OU[ra parte se inscrevia numa
v1sao mals ampla e anriga: o ideal ascético, genuinamente crisrao, que a partir dos
sécul_os XV e XVI :r~pós-se como norma geral para roda a humanidade. A per-
cep¡yao de urna colonia sexualmenre intoxicada inseria-se nessa nova visibilidade
que o sexo adquiriu nos rempos modernos: visibilidade peranre a leí, diz-nos
Pierre Bér~rd,~ a~s~gurada pela mulriplica~áo de falas sobre desejos, prazeres e
carpos en tao VlabJI¡zada pela pastoral católica. A primeira grande regra do aparen-
te caos sexual da Colónia parece resultar, portan ro, do inimo com que a descreve-
ram os observadores daquele rempo- e que tanto impregnou, em vários senti-
dos, as narrativas posteriores da nossa hisroriografia.
Admitamos, no en tanto, que ao menos nos primeiros tempos, ou ao ini-
ciar-se a ocupac;áo de novas espac;os, o processo colonizatório concorria efetiva-
mente para o afrouxamento das regras morais que a lgreja se esfon¡:ava em difun-
dir. Já salientamos que nisso residiu um dos grandes paradoxos da colonizac;áo
ibérica: de um lado, ampliava consideravelmente as possibilidades de expansáo
para o catolicismo proselitista do século XVI; de outro, motivada pela explorac;áo
de riquezas a qualquer prec;o e operada a base da miscigenac;áo, comprometía
decisivamente o hito da Contra-Reforma no ultramar. Desse modo, mais do que
ao gasto portugués por mulher exótica, seu apego aos prazeres carnais ou sua falta
de preconceitos, a fornicaljáO generalizada que teve lugar na ColOnia deveu-se as
injunc;óes da situac;áo colonial ibérica- muitas delas anotadas pelos histo-
riadores, inclusive Gil berro Freyre: a falta de mulheres brancas, típica de urna
transmigrac;áo aventureira e exploratória, a empurrar os colonos para as ín-
dias e negras; a inoped.ncia dos poderes civis e eclesiásticos na vigilincia das
transgressóes, característica das áreas de fronteira como eram o litoral no século
XVI e vastas regióes do interior nos séculas seguintes; o confronto e amálgama
cultural propício a diluic;áo dos padróes morais que os ponugueses evemual-
mente traziam do Reino.
A poligamia dos Ramalhos e Caramurus, por exemplo, rcvelava tanto urna
heranc;a maura, como quer Gilberro Freyre, quanto a adcquac;áo portuguesa as
moralidades indfgcnas, típica de urna acuhurac;áo ao inverso que os íesuit~1.s nio
rardaram a denunciar. E, colOnia escravista, desde o inicio cnnfundir-se-iam no
Brasil a explorac;áo de ameríndios e africanos e o ahuso sexu.tl. consentido ou
forc;ado, de fndias, negras ou mulat;ts, a despeiw dt) que fizer.un os missionJ.rios
para obstar semelhantes práticas. A crenc;a popular de ~iliC a mclhor ntra para ~1.
s(filis consistia na "cópula com ncgrinha vir~cm''" hem nos rnostr.\ o ~rtC.ito
62

l romovido pela colonizas:áo. E ji men-


toentreescravidáoeabusosexua p 'dades coloniais do século XVI,
casamen revelaram as auron .
. amos quáo tolerantes se . d l 05 desmandas dos colomzado-
cion erdóes e m u tos para . . _
. cansáveis em recomendar P . tan te para EI-Re1. Colomza¡yao
m . - ( 1 d ente e tmpot "
tes' senda o BtaSII tao
.
ato e g d d d suposta "libetdade sexual dos
. oor ena as a
explorarória e escravista, eis as e
séculas passados. . e se undo Foucault, marcava a vida das camadas
Dava-se no Brasil 0 qu ' ~ " • licaráo da regra", a inobservancia
d A tigo Regtme: a nao ap '
populares na Europa 0 0 l s da América náo tinham privilé-
. p b s da Eutopa ou co ano
tácita dos preceaos. o re lh . h as leis e costumes, de margens de
. " m no que es Impun a
g¡os, ~as gozav.a ' ~ o u el a obstina~áo". 8 Assim, corria salto o des-
tole tineta conqutstadas pelad olt'a . p d. -a-dia da Colonia e no plano moral. o
res ei[O as leis do Estado e a greJa no ta , .
p d mento sexual dos portugueses funciona va, na prauca, como con-
aparente esregra 1 . , . A segunda regra da lascívia tropical resi-
di áo inerente ao processo co onJzatono.
di~. pois, na paradoxal tolerancia mal disfar,ada pelos pode tes empenhados na
coloniza~JáO- tolerincia que nem mesmo os jesuítas puderam evttar.

EsCRÚPULOS E CULPAS

A soltura de nossos colonos, percepdvel nas atimdes poligámicas e


concubinárias que reimavam em manrer, possuía regras e condicionantes gerais,
cnsejada pela sirua~jáo colonial e funcionando em seu proveito. No en tanto, por
mais "libertinos" que fossem os portugueses recém-chegados, nem por isso se
mostraram absolutamente desdenhosos em face das interdi¡;óes eclesiásticas e da
no4jáo do pecado. Se agiam com irreverencia, se desde o século XVI cuidavam
lago de amancebar-se com quanras índias !hes topassem o caminho, náo o faziam
sem crises de consciencia, portadores do senrimento de culpa que a lgreja insistia
cm difundir entre a massa de fiéis.
O mergulho na consciencia dos colonos, a possibilidade de auscultarmos o
que pcnsavam sobre o uso do carpo e as rda'fóes sexuais, nos sáo dados pela
documcnta'fáo inquisitorial de finais do século XVI, produzida na visita'fáo que o
Tribunal de Lisboa cnviou a Bahia e a Pernambuco entre 1591 e 1595. E.m meio
a. denúncias, as confissóes e aos processos ativados naquela visita<¡:áo, encontra-
moa dez.cnas de indivlduos incriminados por conuari:ucm 0 sexto mandamento,
ou seja, por negar~m haver pecado na fornica~áo. Opinióes desse genero, convém
lago esclare~er, nao foram exclusivas do Brasil ColOnia, e muiros a emiüam de
vári~s- ma,neJr_a~ ~m várias na'tóes o u colOnias, da Inglarerra aos países ibéricos, da
Amenca ~s F1l1pmas. Crenc;a popular, opiniáo difundida em todo 0 mundo cris-
táo, a idé1a de que náo havia pecado na fornicac;áo, senda emitida fundamemal-
mente por homens, poderia indicar um poderoso rrac;:o de memalidade misógina
ocidemal,
• .
e sobrerudo
_ ,
ibérica- como sugere
.
Charles Boxer, em seu M.ary and
9
Muogmy. A questao e, no enramo, ma1s complexa, pois 0 simples faro de ser
aquela urna opiniáo difundida e perseguida sugere-nos, de um lado, que a prárica
do sexo forado casamemo era- o u passou a ser- maréria de discussáo popular
e, de oucro, que mecanismos de poder foram ativados no Ocideme para incitar e
erradicar semelhame convicc.;:áo, tornando·a visível, estigmatizando-a e punindo
os que assim pensassem.
O Brasil colonial, rerra ande suposrameme imperava a mais completa li-
berdade sexual, náo esteve auseme desse cenário, e a visira~áo de Heiror Furtado
de Mendons:a arrolou 38 indivíduos acusados de quesrionarem as inrerdi~Oes se-
xuais da lei de Deus. Os que o fizeram eram homens, na roralidade, e a imensa
maioria compunha-se de brancos, crisráos velhos, portugueses e, ainda, solreiros,
embora muiros casados tenham dito que "fornicar náo era pecado". Pertenciam a
mais variada gama de estratos sociais da ColOnia e, com efeiro, encomramo-los
emre senhores de engenho, mercadores,lavradores de variada condit;ao, artesáos e
pequenos comerciames, burocraras, mesrres-de-as:úcar, feimrcs, marinheiros, sol-
dados, gente desdassificada e aré padres. Entre os que discU[iam o assunro predo-
minavam indivíduos do esrreiro círculo de colonos portugueses ou scus descen-
dentes, ocupantes de posi~ócs dominantes o u imermediárias nas sociedades baiana
e pernambucana do século XVI. Alguns criados, é cerro, mas poucos tOrras, ne-
nhum escravo negro, nenhum {ndio. A polCmica social sobre se a fOrnic.a~o era
ou náo pecado expressava urna moralidadc masculina, branca e ibérica.
Se era lícito ou pecaminoso que os homcns manrivcssem rcla4jÓCS scxuais
com mulheres, náo senda com das casados, eis urna prcocup* que norrcava as
conversas diárias de nossos colonos no século XVI. por mais garanhón que ~
lassem ser na prática cotidiana. Discuria·sc o assunto cm todas as horu, lugara e
circunstancias, conversando·sc com amigos ou parcntC'S a mcu, no alpendR d.
casas, na scsta, antes o u depois da missa dominical, no trabalho, nas IUcndu. nos
cngenhos, nos caminhos. Ou bem se discutia o assunro cm F'ral e por prin~,
ou be m 0 rema afluía a propósiro de cena aventura ou t-nconuo amoroso. fnncis.
co Barbosa da Silva, jovcm cstudantc de 25 anos< tilho de pt< amponontc da
TRÚPICO nos PECADOS

64

. o ecado quando ia ao encontro de urna prostituta


ilha de Sáo M1guel. defendeu P d p . !dado castelhano, defendeu seu
" p d esta" Joáo e ans, so .
para conversac;ao eson · . . d lérico ao ser repreend1do por estar
ulheres, Jrrtta o e co '
direito ao prazer com m filh do principal garanháo pernambucano
d Sal d de Albuquerque, 1 0 .
amanceba o. va or .d ma prostituta para com ele dorm1r,
d , ¿· apenas conv1 ara u
com urna e suas 10 tas, , • haveria qualquer pecado naquilo. 10
dizendo-lhe, "para fazer grla,Fa ' q~e naoor sua vez náo resistí u beleza de urna
a
. · h · Gonc;a o ranc1sco, p •
O ¡ovem marm eno . d lrar do barco para "pegá-la"' disse a u m
í d' a a beua do no e, antes e sa .
n 1a nu p • e . '-la 11 E assim, entre essas e outras Sltua-
com anheiro que nao pecarta em JOrnJca . . . ,
c;óes Pdo condtano
. . amoroso, os h ome ns da Colonia proclamavam seu dJCeJto a
a
fornica,áo, ao prazer, liberdade sexual. . -
Vários homens julgavam, pois, que náo havta qualquer mal nas rela¡;oes
· que b uscavam ter com mulheres • náo se imporrando em proclamar
sexuats , . .suas
,
· ·- M··
opmtoes. cu
conve'm náo tirarmos conclusóes enganosas:

ora, em

raptdos dtalo-

gos, ora em conversas mal·, longas , afirmava-se o l1vre exerctcJo da sexualtdade


masculina tomando-se por paradigma a noriio de pecado e, mesmo entre os ousa-
dos "desafiadores" do sexto mandamento, pecado e sexo eram idéias associadas.
Ainda que no trópico, estamos diante do que Delumeau chamou de "neurose
coletiva de culpabilizac;:áo", profundamente ligada aos prazeres carnais, e cada vez
mais difundida pela pastoral católica dos tempos modernos. 11 Em fins do sécu-
lo XVI, os homens da ColOnia já pareciam devidamente contaminados por esse
senrimento de culpa, e nos mínimos gestos de sua vida amorosa pareciam lem-
brar-se das ameac;:as que a lgreja lan~ava contra os pecadores da carne. Sen timento
de culpa freqüenremente associado com a "mania de escrúpulos" popularizada
entre os fitis do catolicismo na mes m a época: 13 ve mo-la entre os próprios defenso-
res da fornicac;áo, mas sobre[Udo nas ati[Udes de parentes, amigos ou companhei-
ros que ouviam a errónea apologia do "sexo livre". Para cada homem que negava
haver pecado na fornica~o, vários diziam o contrário, advertindo o suposto here-
ge e náo raro denunciando-o Inquisi~áo, como de faro ocorreu na visita\áo do
a
primeiro século. Em arirudes desse género, indicativas de como as mentalidades
populares já se achavam impregnadas pela moral tridentina, ternos mais do que
escrúpulos~~ simples afli¡;:áo por medo de pecar; erara-se de sincera adoc;:áo dos
valores ofic1au por homens que, no uópico, pareciam náo [er grilhOes em maréria
sexual. Escrúp~l~, a rigor, demonsuou um certo Francisco Camello, jovem de 17
ano~, frlho do JUIZ de lguarac;:u: .procurou o visitador para acusar u m homem que
hana negado o pecado da formca¡;:áo entre homens e mulheres, salvo se fossem
parent;u, e pergumado sobre como agira ao ouv·,, Ji f d
serne lante rase, respon eu
65

que o repreendera ca~. fir.meza, dizendo sempre haver pecado em "dormirem 05


homens. com mulheres , amda que náo fossem parentes . '' 0 oeme d e escrupu
, 1os,
nosso JOVem carola afirmou o extremo apasto a pomo¿ b' ·
excesso de zelo, a doucrina oficial. ' e ram em contranar, por

Volremo-nos, porém, para os defensores da fornicac¡:áo, homens que, cae-


rentes com as solturas da vida colonial e ciosos da sua virilidade, náo viam mal
grave em "andar ca m mulheres". Será que nossos colonos, ao negarem 0 pecado
da carne, estavam a defender o livre uso do sexo, contrariando 0 matrimOnio e as
demais interdi~óes da lei divina e eclesiástica? Dentre os "fornicários" coloniais,
alguns ao menos parecem ter afrontado altos valores da doucrina oficial, embora
muitas vezes o tenham feiro por acideme. Foi o que ocorreu com Cristóváo Manins,
cristáo-novo, casado, alfaiate: conversando em O linda com seu amigo Fabiáo Lopes.
vi u passar o carreiro Joáo AmOnio, e comentou rancoroso, o quamo era endinhei-
rado "aquele velho", homem de muitas casas, mulher amesa, e que levava vida má
- referindo-se talvez a riqueza do carreiro, talvez asoltura de seus cosmmes; seja
como for, acrescentou que, por isso, "era servic;o de Deus amancebar-se com a
mulher" do tal Joáo. 15 Cristóváo estava, quem sabe, reprovando a conduta moral
e o dinheiro de Joáo AmOnio, e mais do que defender o adultério, procurava táo-
somente ofender a seu desafero, cuidando que honrava a Deus ao faze-lo. De
igual modo vemos a fala do padre Francisco Pimo Doutel, vigário em Pernambuco,
que conversando na rua, exdamou: "vós outros homens náo querem senáo fazer
adultério a vossas mulheres; pois desenganai-vos que elas na mesma moeda vo-lo
pagam." Feita a admoestac;áo, acrescentou, no entamo, que melhor fariam os que
se amancebassem com mulheres bonitas, e náo feias, assim como deviam beber
vinho bom, e náo vinagre. Entre a exona~áo pouco ortodoxa afidelidade mascu-
lina e a galhofeira comparac;áo entre mulheres e vinho, nosso padre acabou de-
nunciado por defender a fornica~o adúltera. Já Xistro Vaz, lavrador pernambuC2llo,
mostrar-se-ia ames um crítico do relaxamenlO da lgreja do que propriamen-
te um defensor da fornicac;áo, ao dizer que o adultério das mulheres náo devia ser
um pecado mortal, urna vez que os confessores absolviam dele facilmemc. E Si-
máo Franco, fe icor de cena fazenda, ao saber que chegavam os jesuíras para minis-
trar sacramento aos escravos do lugar, bradou que n.io os qucria ali, ncm quería
casamentos, confissóes ou batismos em sua casa - excmpl.u tfpiro das atitudes
senhoriais na ColOnia, semprc hoscis acatcquese de indios ou atficanos. •eo
Al~m dos que por acidente dcfendcram o aduh~rio ou ~o."'ntr::uiaram o ma-
trimOnio outros tantos defcndcram a fornic:u;áo mostrando pouco caso pdos
· d" ' 1 d· pa-ntcsco oticiais como r"Crnio Cabral de Au.fde.
1m pe 1mcnros e pe as rcgras ... ,... ·
rico senhor de engenho na Bahia que, remando seduzir sua comadre na ca.pela da
fazenda, disse-lhe que "compadre náo era parentesco algum. ·: e rudo ma1s eram
caranconhas que se punham"} 7 Luís Rodrigues, ~avrador ba•~.no. p~r~ce :er-lhe
seguido 0 exemplo e, desejando a cunhada, conv1dou-a para dormir ~ dJZendo
que náo iriam ao inferno por fazerem ral coisa. 18 E náo menos noráv~l fo1 a fal~ de
Domingos Fernandes, de alcunha Tomacaúna, mameluco e serranista, que sJm-
plesmcnte confessou rer pemado que tanto fazia dormir com afilhadas ou o u tras
mulheres, pois sempre haveria pecado náo fossem elas suas esposas. Tomacaúna
náo duvidara, é cerro, do sexto mandamenro mas, de qualquer modo, havia 22
anos dormita com duas afilhadas de barismo. 1? Homens como Fernáo Cabra! ou
Tomacaúna pensavam como muiros ourros que náo viam pecado nas relac¡:óes
scxuais com parenras afins, espiriruais ou mesmo consangüíneas forado primeiro
grau. Afinal, os ca.samentos e namoros no interior das parentelas era faro comum
em Portugal, Espanha e curras partes da Europa, senda recenre a ofensiva da
lgreja contra a burla dos impedimentos. Todos ainda pareciam seguir provérbios
como o de Montaillou no remo ro século XIV: "a cousine du second degré, enfonce-
lui tout. "20
Foram poucos, no enramo, os que defenderam a "fornicac¡:áo qualifica-
da" no Brasil colonial. limitados, no caso, a "conresrar" o pecado das rela<;óes
adúlteras e incestuosas 21 - mane ira habitual, rambém na Península, de de-
fender-se o tipo mais_grave de fornicac¡:áo. E, além de poucos, os que negaram
haver pecado na formca~áo qualificada fizeram-no de modo acidental, pálido
e smgelo, se comparados a cerros transgressores da Europa: na Espanha do
século X~I, por exemplo, houve quem afirmasse náo ser pecado dormir com
a filha, a lrmá, e aré coma máe, enquanro que no país basca a Inquisi<;áo de
Calahorra chegou a detectar vários "incestos gravíssimos"
. _ .
- . 1
, e nao s1mp es-
mente prop_osJ<;oes, _enue Jrmáos e primos de primeiro grau.22 Na ColOnia,
pelo conrráno, as maJS graves defesas d f¡ · -
. a ormcac¡:ao sempre manriveram esse nível
quasc puenl e, náo raro mirigava se . -
1 _ . ' - a propoSI~ao negando-se apenas o pecado
morta,., mas nao o vema~ nas rela<;óes se . h
· d . . xua¡s entre omens e mulheres que náo
Vlvesscm casa os. O carpmteJro Gabriel F d
como scu compadre h . "d .d ernan es, ao constatar que tanto ele
avJam orm1 o com "
te "sere pecados daqucl f . a mesma negra • afirmou que sornen-
e az¡am um pecado mortal" 2l B C b al filh d
senhores pernambucanos d. · enro a r , 1 o e
' lsse por su a vez que dorm. 1 . 1
somenre pecado venial scnd l d .' lf so reno com so reira era
d , o mona el(ar se e .
as.H E. como eles, muitos outros procurava~ om vJrgens ~u mulheres casa-
moralidades e scus dese¡" os :U r l' • • 'em conversas dtárias, adaptar suas
f: cgras oncJaJs malgrad h d
.U-los "discernir o pecado morral do venial"." o o empen o a lgreja em
67

. A dinimica do processo aculcurador era porém tortuosa, errática, e rendia


a misturar crenc;:as populares e dogmas oficiais cada vez mais difundidos. Até
mesmo a sistemática ameac:;:a de dana<;:áo eterna para 05 pecadores corria 0 risco de
diswrcer-se, submetendo-se as convicc;:óes populares sobre 0 uso do sexo. Náo
falraram, pois, entre os "fornicários" da ColOnia homens que relacionaram
fornicac;:áo, diabos, paraíso e inferno, fazendo-o com a irreveréncia característica
da cultura popular. "Quem náo darme com mulher nesre mundo, dormem com
ele os diabos no outro", afirmou ceno marinheiro ceceoso do falo sar3nico. 2G Náo
bastava dormir com negras para se ir ao inferno, "porque a misericórdia de Oeus
era grande", exclamo u u m jovem mercader, seguro da complacencia divina. 27
"Que m cá náo se farra de fornicar náo pode ir ao paraíso", assegurou ceno trafi-
cante de escravos, numa completa inversáo do sexto mandamenro. 28 "Fornicar,
fornicar, que fane, [pois] que del Rey é a terca que ninguém foi ao inferno por
fornicar!" - exclamou o carpimeiro Pero Gonplves, convencido de que "nin-
guém ia ao inferno por amor de mulheres". 29 Este úhimo parece ter defendido a
fornicac;áo e m grande estilo, a base de palavróes, pois em sua confissáo o visitador
mandou anotar que "ao invés da palavra fornicar que aqui se escreveu, disse {o
réu) a palavra [em] portugues que isso significa, desoneS[a, que por honestidade
se náo escreveu". 30
Frases como a de Pero Gonc;alves náo devem ter sido raras, no encanto,
especialmente em conversas masculinas sobre mulheres, a seguirmos a observac;áo
de Gil berro Freyre sobre "a opulencia de palavróes e gestos obscenos", sobre o
"domínio do erotismo grosso" característicos da cultura popular portuguesa. 31
Muitas das conversas que surpreendemos enne os homens da ColOnia do sécu-
lo XVI parecem indicar essa atmosfera de galhofa, escárnio e folganc;a. típica das
moralidades masculinas da Península, mais do que obstinac;áo em pecar. O me-
lhor exemplo dessa excita~áo verbal de nossos colonos dá-nos a faJa de Gaspar da
Costa, homem simples, definido por seu denunciante como useiro em dizer lascí-
vias, que justificou seus hábitos sexuais alegando problemas de saúde: co~rava aos
amigos que "era mal disposro", pois náo urinava be m, s~vo se dorm~sse com
mulher, único remédio para sua doen~a; "e que como ass1m era, se de1xasse de
dormir com mulher pecaria ... e se iria ao infcrno", pois era abrigado "a conservar
sua saúde e sua vida, e amparar mulher e filhos'' que dcixara cm Portugal.-'~ Ho-
mcm chegado a gracejos, deceno arrancou gargalhadas dos circunstantes ao de-
fender a fornica~áo para o bem de sua familia. . . . _
Afirma~áo de virilidadc, vanglória de machos, as deksas do~ tormca.;ao tam-
.
bé m se aprox1mavam da variada
• ~•ama de blasRmias que, na Metrópole ou na
68

.. ..e,., d l"cismo Bem-humoradas ou coléricas, as bias-


ColOnia emmam os neis o cato I . . . .
' . - de urna religiosidade popular msausfe1ra
fC:mias eram munas vezes a expressao . . . , . .
. • . f. d d gmas ou ritos ofic 1a1s; agred1am-se simbo los dtvJ-
com a dmancta e a neza e o . . . .
"d "d por vonrade de aproximar Cnsro do cotidiano,
nos menos por escren.;a o que
· - · h · ndo-o ou simplesmente como desabafos, acessos
das afl 1 ~oes pessoa1s, umamza • . .
de raiva contra 05 problemas do dia-a-dia. "Boro a Cnsto muna rnerda, e pela
hósria muita merda", bradou um licenciado da Bahia, descontente com alguma
coisa; "brodito ua ti carajo de mi señor Jesu Christo", exclamou a cigana Apol6nia,
30 caminhar sob a chuva intensa nos lodat;ais de Salvador; "pelo pentelho da
Virgem", jurou certa vez o irreverente Benro Teixeira, useiro e m falar da máe de
Jesus. Erotizac;áo de Cristo ou de Maria, mistura do profano com o sagrado, dos
sentidos e fluxos do carpo com as coisas do espíriro, eis o terreno em que se
moviam, por vezes, as defesas da fornicac;áo no uópico. 33
Com alguma irreverencia, muicos escrúpulos e pouquíssima inten.:;:áo "he-
rética", assim os homens da ColOnia cosrumavam faJar do sexo e das mulheres.
Na grande maioria dos casos, limitavam-se a defender a chamada fornicaráo sim-
ples, o direiro de homens solceiros fazerem sexo com mulheres solteiras sem incor-
rerem em pecado, mas jamais afirmaram, ao menos na ColOnia, a licirude da
fornicac;áo com virgens ou donzelas, apesar de muicos blasfemarem contra apure-
za da própria Maria. 34 Dormir com virgem era pecado morral, eis o que a imensa
maioria dos colonos pensava o u dizia ao conversar sobre o assunro. Também pou-
cos, já o dissemos, foram os que defenderam as relac;óes incestuosas ou adúlteras,
e náo raro os mesmos homens que julgavam náo ser a fornica.:;:áo um pecado
mortal abriam explícita excec;áo para mulheres casadas ou parentas. Exemplo no-
rávd de comedimenro vemos no sapareiro AntOnio Fernandes, viúvo, que julgava
"menos pecado" um homem dormir com solteiras do que ter "ajunramento" com
mulheres sem rencionar esposá-las. 35 AntOnio admitía, pois, a cópula com mulhe-
re~ "liv~es", e até com noivas, contrariando o sexto mandamento e a proibi¡¡:áo
tndenuna asrelac;óes entre esponsais, mas julgava erróneo desonrar jovens
casadoiras, leal aos cosrumes populares do casamenro, fiel ao matrimOnio.
A lascívia dos portugueses no Brasil náo era, assim, ráo desregrada como
sugerem as apartncias. Nenhum deles eS[eve a defender qualquer espécie de "li-
berdade sexual", como fe-L cerro espanhol de Toledo par" " - d
f: ' •• quem nao era peca o
az~r amor com u~a mulher, fosse ela celib;¡tária, virgem ou casada, sem !he
P~~~r~' sem ~he rn_enu~ sern nada !he prometer, desde que da o consinta livremen-
rc , Na CoiOma, nao ~bsrantc as "liberdades" do rrópico e a bazófia dos ho-
mens, prcvaleceu a valonza.;áo da famrlia de d
' cenas regras e parentesco, da cas[i-
69

dade e do. marrimónio.


. .
Ao falarem sobre mulh eres, nossos co 1anos mal disfarc;a-
va~. a, ~tsogm¡a ~erdada da Península, vangloriando-se com irreveréncia de seus
pnvtleg10s masculinos. Mas. já náo podiam evir aras cu 1pase os escrupulos
, que a
pascoral moderna buscava Inculcar nas consciéncias.

MULHERES DEGRADADAS, FORNICA<;:ÁO LfCITA

Habituados a conversar sobre sexo, mulheres e aventuras amorosas, 05 por-


tugueses da ColOnia julgavam errado, no entamo, deirar-se com virgens e faziam
resrric;:óes as mulheres casadas, casadouras e algumas parenras. De que mulheres
falavam, entáo, quando diziam náo ser a fornicac;:áo um pecado mortal? Referiam-
se, em primeiro lugar, a mulher so/teira que, convém esclarecer, náo possuía na
época o significado que hoje lhe atribuímos de mulher náo casada. Solteira era
mulher desimpedida, livre, sem protec;:áo de família ou marido, passível de envol-
ver-se em quaisquer relac;:óes amorosas ou sexuais. O Peregrino da América uti-
lizaría o termo no século XVIII para aludir a "gente mundana que vive cheia de
vícios", mas desde o século XV a palavra já possuía essa conorac;:áo depreciativa no
vocabulário popular e erudiro da Península Ibérica. 37 Na Espanha, sollml era a mu-
lher suspeira de viver desregradamenre" e, em Porrugal, um alvará de D. Joáo III
sobre as prostitutas de Lisboa se lhes referia claramente como ''mulheres solteiras". 3"
Com sentido muito diferente da celibatária- mulher que aspirava a casar-se o u
que optara pela castidade sem ingressar em religiáo - , solteira era, como se dizia,
a "mulher que nunca casou", "mulher que náo tem marido", "mulher pública",
quase um sinónimo de meretriz, ainda que sem conotac;:áo profissionaJ.
Náo é de estranhar, aliás, a conotac;:áo fluida da "solreira" entre a mulher d~s­
sa e a meretriz de oficio, já que mesmo a palavra prostitutA nem sempre se usava pan
aludir as "profissionais do sexo". Lembra-nos Jean-Louis Flandrin que a palavra purmn.
largamenre u<ilizada na Fran~a do século XVI, embora rambém aludiSS< as "profissio-
nais da luxúria", aplicava-se sobrerudo as mulheres que buscassem o prazer nas rela-
c;:óes sexuais. 4o E 0 ardor sexual experimentado por mulhercs f.aia delas prostitutas ou
amantes, já escrevera Sáo Jerónimo em scu antigo Atlvmus Jovinidnum. _a P.~pósiro
do comedimento que devia reger 0 sexo conjugal. 41 Por "náo tcrem m~ndo ou ~r
"venderem o carpo", as mulheres solrciras eram logo associad~ as p~nru~, SUSJ~I­
tas de culrivarem a sensualidade, fossem ou náo "putanheir:as profisstonals. 41
·rutas ou "mulheres sem marido", as solteiras da
De qu al quer mod o, pros (J , •
· h d s da miséria filhas ou viúvas de gente pobre, Vltlmas de
Europa provm am ro a • , .
abandonos, estupros ou viola~óes. Infamadas, acabavam no meretncJo, por vezes
combinado a outras ocupac;óes evenruais e precáriasY E~ Ponugal.' paree~ que a
'nho nacural para as mulheres vwladas, po1s a leg¡sJac;áo
prosmuu;:ao era o cam1
• • p
. _
Civil dispunha que, em caso de defloramento, só havena re_para<;ao (casamento)
se 3 mulher gritasse "Foáo me fez isto", apontasse no pró~no lugar o c_ulpad_o, e
mosrrasse as "panes corruptas"; achando-se o sedutor no d1ro local, ficana en tao o
crime provado, salvo "se o acusado desse pravas de inocCncia". 44 Na prárica social
dos séculas XV e XVl, mostra-nos Jacques Rossiaud para o caso francc?s, nem
sempre era fácil distinguir entre bordéis e simples casos de alcouce, o u entre mere-
rrizcs profissionais e prostitutas de ocasiáo, "vagabundas atraídas pelos grandes
rrabalhos agrícolas saz.onais, as feiras, as passagens dos príncipes o u as fes ras". 45
Fosse pela viada alcovitagem, fosse pelo tradicional borde!, o fenómeno da
prostirui~¡:áo seguiu o processo de urbaniza~áo medieval e, no limiar dos tempos
modernos, florescia pujame em toda a Europa. Em Franc;a, qualquer aglomerac;io
de certa imporráncia possuía o seu prostibulum, além de casas de banho e curros
lugares ande celibatários, padres e homens casados iam buscar os deleites do sexo
com prosti[Utas o u mulheres disponíveis. Na Espanha, bordéis se alrernavam com
a prárica da akahu~taía (alcovirice), na quallucravam as celestinas- feiriceiras,
alcovireiras e rufionas a um só tempo. 46 Na Veneza do século XVI erigiu-se urna
verdadeira cívilita puttanesca, pelo prestígio e pela abundancia de suas corresás,
apreciadas em toda a Europa." E também em Portugal, ainda na Idade Média, a
prosritui~iáo "gozava de alto valor, merecendo a tolerincia e a complacéncia de
toda urna sociedade". É Oliveira Marques que m nos diz: "meretrizes, soldadeiras,
mancebas, mulheres de segre, mulheres que fazem pelos homens, rudo eram sinó-
nimos, mais ou menos perfeitos, das prostitutas de hoje."48
. Em todas as partes ande florescia, a prostiruit;áo gozava da chancela oficial
~ Vla de regra, da proret;áo municipal-, náo obstante a existéncia de leis resrri-
uv~ .. Afinal, náo era o mererrício o principal meio de proteger as donzelas de
famdl~, as esposas e as religiosas contra os desejos masculinos? Náo dissera Santo
Ago.mnho que a proscitui~¡:áo era um "mal necessário"' Com eft . - b
verter a famflia ou a ordem con· . . el ro, por nao su -
· .. . Jugal e, amda, por fornecer ao homem casado a
poulbllldade de saCiar seus desejos sem corrom ~
d J · . ._ pera esposa, conrorme recomen-
ara er6mmo, a prosmulc;ao s6 episodicament f¡ . b. d . -
cidades européias, ora em razáo de al u m e Ol o Jeto e perseguu;:ao nas
da ordem pública O~ 1" gd esdndalo, ora por eventual perrurba~ao
. uror mora Uta o Condlio de Tremo incomodou, é cerro, a
livre circular;áo de meretrizes e a quase eran • · d b "
d. . _ , . sparencJa os orde1s, mas o fez menos
do que a Jssemmac;ao
,
da slfil!s, esta sim responsave
' 1 pe1o erec hamemo de m unos
.
49
lupa~ar~s _no sec~l~ XVI. E~ Portugal, náo faltaram leis objetivando adestrar a
prosutuJC;:ao, pro1bmdo meremzes de andarem " h "
. enrre gente onesta ou expulsan-
do de Ltsboa as soldadeiras mais acinwsas mas h ¿·¿ f¡ · ·
rada para sua exrinc;áo. ' nen urna me ' a OJ sequer cogJ-

Fenómeno social perfeitamenre adaptado as sociedades modernas e, num


falso p_aradoxo, rolerado pela própria Igreja, a proscicuic;:áo era, em suas diversas
modabdades,
_ . um faro comum na vida .dos homens . N"ao e,· p01s,· d e ad mnar
· que
nao Julgassem pecado morral o dormir com prostitutas, mulheres solreiras ou
públicas - enAu~ciado freqüeme emre os defensores da fornicar;áo em Espanha,
Port~gal e colo mas. Na Espanha, chegaram alguns a dizer que "era Deus quem
deseJava que houvesse ali tais mulheres (públicas] para evitar males mais graves",
o u "era o rei que m autorizava os bordéis", e "quem guardasse a leido rei guardaria
a lei de Deus". 50 Estavam esses táo-someme a repetir, num escilo simples, 0 que
pensavam as autoridades civis e eclesiásticas em matéria de prostituir;áo. Desde
que se pagasse as rais mulheres, a fornica¡¡:áo náo era pecado- eis o que diziam,
de várias maneiras, portugueses e espanhóis da Península o u da América, sen do a
"prosdtuir;áo" táo integrada asociedade, além de tolerada pelos poderes públicos,
como soía ocorrer no século XVI.
Procuraríamos em váo, portanto, qualquer originalidade "colonial" nos
lusitanos o u mazombos da Bahia o u de Pernambuco, quando diziam náo ser peca-
do morral "topar com urna mulher na rua, negociar para dormir com da carnal-
mente e, com efeito, dormir aquela vez", conforme afirmou em Salvador o sirgueiro
Francisco Luís - embora também esse hornero se tenha revelado escrupuloso,
negando haver pecado na fornicar;áo episódica com mulher de rua. mas admidn-
do-a em caso de "amancebamenro". 51 A exemplo de Francisco Luís, muitos outros
diziam a mesma coisa no Brasil, terra onde apesar da conhecida "liben:lade sexual",
náo faltaram meretrizes de ofício ou semiprofissionais, mulheres que vinham do
Reino degredadas o u voluntariamente, a tentar mdhor sorte nos dom,nios ameri-
canos de Portugal. A documentar;áo inquisitorial da visita4táo quinhentisra en-
contra-se povoada de personagens como Maria Gon4talves, de alcunha "Arde-
1he-o-Rabo"; Antonia Femandes, a Nóbrega; Isabel Rodrigues, a "Boca-Tona", e
outras mulheres de "mil vida", especialistas cm feiü4taria erótica e, a semelhan4ta
das ct!~stinas valencianas, também envolvidas com prosritui4tio e alcovitice.
AntOnia Fernandes, por exemplo, viera ao Brasil degredad: por ~lrovitar a
própria filha, e vivia a cnsinar feiti4tos amorosos as mulhe~s da Colóma, práuca
0 oficio de rufiona Sua filha, Joana Nóbrega, parece ter-lhe
que al rernava com · .. h
·d 1 e adorava um diabinho famrlJar a quem e amava Baul, o qual
segu1 o o exemp o . ,
rraz.ia no anel. e "dormia com os esrrangetros por derras (... ) porque lhe pagavam
bem"'' Como Joana Nóbrega, também urna tal Maria Machada se especializara
na prosricui~áo sodomítica e, presa pelo rribunallisboera. no início do século XVII,
acabaria degredada para o Brasil. 53 Mererrizes porruguesas náo falraram na ColO-
as
nia, senda aí ráo apreciadas que vezes recebiam sonetos, como o dedicado pelo
Jicenciado Banolomeu Fragoso a Beatriz Correa, a Baldaya, famosa meretriz de
Salvador. "Dama resplandescente e befa", "a quem igual náo há em ser formosa",
"ráo linda, ráo perfeira e graciosa", "fresca mais que cana" ... - eis alguns versos
apaixonados que valeram ao improvisado poeta um processo inquisitoriaJ.S 4 Me-
reuiz.es porruguesas a·incendiar ajá inflamada sensualidade tropical, e a ensejar,
como na Metrópole, inúmeras "defesas da fornica~áo simples" ... Nosso caro Manoel
da Nóbrega, que por pouco escapou de urna grave doen~a na década de 1550,
ccrramcnre morreria de desgosco se pudesse adivinhar no que resulraria seu apelo
d'ourrora, quando suplicara ao rei o envio de mererrizes brancas para se casarem
no.Brasil.
Al. moralidades masculinas da ColOnia, ibéricas por origem, nao se limira-
ram, porém, a reproduzir amigas crenc;as de que aos homens era lícito dormir
com mcrerrizes. Lanc;ando-se as mulheres da rerra ráo lago desembarcavam, os
ponuguescs náo rardariam a associar mulher solreira ou pública com a negra-
a a
r~rmo .q,~e..no século XVI .~udia menos africana do que "negra brasila", "negra
d aldcta , negra da rcrra , cm suma, 3. índia. Seduzindo-as e m rroca de meros
cacos de espelho, faquinhas ou panas coloridos - enquamo escravizavam ou
marav~ ~~ homens nativos-, nossos colonos acabariam converrendo as mu-
llieres
d mdrgenas em mererrizes de fat o. N-ao e, d e espantar, portanro, que a maioria
.os quclhnegava¡m· haver pecado na fornicac;áo simples, fizesse acompanhar a clás-
stca mu. der so
1 ~ re1ra
. da_ ntgr.~~urna e outra mulheres degradadas, desonradas e
pw veis e ormca~ao. O cnsráo-novo Oí N .
..,.rn b ogo unes, nco senhor de engenho
r- am ucano, cosrumava dizer que sem "b d.
mente ali com qualqu d' Id'. , pecar, em po ra ele dormir carnal-
er negra a cta se lhe d " .
coi1a" como rambém - ' esse urna camisa ou qualquer
• nao pecava em dormir "com lh l . lh
seu rrabalho". Afinal J. 1 , . d m u er soterra, pagando- e
' ac ava-se, rm o e zomband " 1 .
0 • so telras ou negras da terca
eram mulhercs do mundo" . .
no.uo conhccido sedutor da
que VJVaam daquilo " ~' F -
d _ .... ·
e b
ernao a ral, por su a vez,
coma re, nao hcsnou ~
pecados de u m falce ido viz· nh ¡ d e m con c:ssar que aprovara os
' o a egan o que o h "
m ulh eres branca., e honrada.. - omcm nunca os fizcra com
'JCnao com negras".% E o lavrador Gaspar Gonc;al-
ves, porr~Jgues ~e 60 anos, negou que fosse pecado dormir com negras, mesmo se
casadas, mclus1ve senda ele casado, defendendo assim a fornica¡yáo adúltera 57
Mas náo o disse, a nosso ver, por desprezar 0 cas amemo,. d'1sse-o por desprezar. a
ne~ra, ~es~nrada por narureza, e cenamenre para reafirmar seus "privilégios mas-
culinos , tao caros aos homens da Península.
Degradadas e desejadas ao mesmo rempo, as negras da terra seriam 0 mes-
me que as soldadeiras de Lisboa no imaginário de nossos colonos: mulheres aptas
a fornicac;:á.o em traca de alguma paga. E na falta de mulheres brancas, fossem
para casar, foss~m para for~icar - pois sempre escassearam as Nóbregas e as
Baldayas do Remo- cabena mesmo cls mulheres decoro papel de mererrizes de
ofício o u amantes solteiras e m toda a história da colonizac;:áo. Nos séculas vindou-
ros, adegradayáo das índias e asua reificayáo como objero sexual dos portugueses
somar-se-iam as das mulatas, das africanas, das ladinas e das caboclas - todas
elas inferiorizadas por sua condiyáo feminina, racial e servil no imaginário
colonial.
Mais desonradas que as solteiras do Reino, pois além de "putas" eram de
cor, nem por isso ficariam as cabrochas do trópico sem a "homenagem" do poeta.
No século XVII, Gregório de Matos dedicaría vários de seus poemas a cenas
mulatas da Bahia, em geral prostitutas: "córdula da minha vida, mulatinha de
minha alma", costumava folgar irónico o "Boca do Inferno" ao referir-se ls cabo-
das baianas de mil "tenrayóes". Tal vez expressando u m sentimenro geral, Gregório
de Matos louvava o corpo e os encantos da mulata, que, como a india no sécu-
lo XVI, virara objeto sexual dos portugueses, mulher ideal para os amores profa-
nos, especialmente se brancarona. Mas o mesmo poeta náo ousava brincar com a
honra das brancas as quais só escrevia em tom corres, ao passo que as negras
d'África ou as ladinas referia-se com especial desprezo: "anca de vaca", "peüo der-
ribado", "horrível odre", "vaso atroz", "puta canalha" ... 58
A fornica~áo tropical náo faltaram, pois, normas bem rígidas. Indias, ne-
a
gras e mulatas, reduzidas prostimi~áo velada ou expHcita, degradadas em graus
variáveis, assimiladas as "solteiras do mundo", tais eram as mulheres que "atenua-
vam" o pecado da fornicac;:áo na sociedade colonial. Por mais sexualmente int~~i­
cada que tenha sido a Colonia, como quer Gilberto Frryr<, os valon:s da fam1ha,
mescla da cultura popular e do discurso oficial, se fizeram presentes. E, d.esde o
século XVI, andaram a povoar a imaginayáo e as palavras dos colonos lusuanos,
a
articulados tradicional misoginia herdada de Pormgal. e ao pm:onceiro racial
que o colonialismo escravista náo tardaria a difundir.
NOTAS

- · · · ,,w1¡0 colonial portugr1is. Rio de Janciro, Tcmpo Bra-


l. Boxer, Charles. Rtlarots rrtctals no tmr
sileiro, 1967. p. 123. .
"lb úu -Grtmdt, stnza!A. 16. ed. Rio de Janwo, José Olympio,
2. Apud Freyre. G1 erro. íl

1973. p. 101.
3. Id. ibid., p. 92.
4. Abreu,J.C. de. Czpltufmdthist1Jriocolonio/(J500-18(}(/). 6. ed. Rio de Janeiro, Civiliza-
~ Brasileira, 1976. p. 28-29.
5. Freyre, G. Op. ci<.. p. 92-102: 189-200: 220.
6. Bérard, P. Le Scxc cnue nadirion et modernité (XVIe.-XVIIIe. siecles). Cnhitrs
inr.rn~~tion~~uxdtsorio"'fit. Vol. 76, 1984, p.146.
7. Frey,., G. Op. cil .. p. 137.
8. Foucauh, M. Vigior t punir. Pe<rópolis, Vozes, 1977, p. 56.
9. Boxc:r, C. A mulh<r NI txponsio uilrrzmorino iblri<a (1415-1815). Lisboa, Livros Hori-
zon<e, 1977.
10. Primtirtl visitii(ÁO Jo Santo Oficio as JHITltl Jo Brasil Confissóts dt Ptrnambuco (1594-
1595). Recife, Universidad< Federal de Pernambuco, 1970, p. 55-56:76-77: 132-133.
11. Primtirtl visiiii(ÁO Jo Stlnto Oficio as pt¡rtts Jo 8rRSil DtnuncillfÓtJ dt Ptrnambuco (1 593-
1595). Sáo P.aulo, Eduaroo Prado, 1929, p. 396-397.
12. Delumeau, J. Lt Pkbl tr bz ptur. Lo tulpobiliution tn Occident (Xll!t.-XVI/k sitcltS).
P.aris, Fayaro, 1983, p. 331.
13. Id. ibid., p. 350-353.
14. Cznfissóts tk Pmwmb.,., p. 219-220.
15. ANTT/IL., proccsso 6341.
16. DmuociorófJdtPrrn•mbUtO, p. 157-159; 145-146:199-200.
17. ANTT/IL., proccsso 17065.
18. l'rj""i"' •uilll(io ,¡, S.nto Of/tio M porm ,¡, BrtUil O.nunri•rón J. Bohio (1 591-1 593).
Sao P.aulo, Edua<do Prado, 1925, p. 494-SOO.
19" ~;.:~;;:itof(ia .. Confisskr J. &rhio 0591-1592). Rio de )aneiro, F. Brigue<, 1935,
20. Apud. Ladurie, E. Le Roy. op. rit, 1982 266 p . . .
F.o h do-'- 1 XV 'P· · rovérb1o PII<Cido era amda corren« na
pan 1 . . .u 0 ll: "A t. •hiud.. mollrrtbz k ·t./t. · 14 · . ·14"
V. Redondo, A. Leo Empfcbemenu au . 1 ~ 1 ; r • m•drrno, srn m•kr ·
A,.,, llfitimtJ, .,.,,, i/Jiriti,, 111 F.,mar~age et. cur transgression dans I'E.spagnc. In
"""''· P.ano, Puloe de la Sorbonc, 1985. p. 50.
21. A fornica~ao qualificada incluía, no direim canOnice o inc .
violar;áo de virgens ou freiras rap d . ' esm, o adulrér1o, o estupro ou
toca so Offila Aforni~áosi 1 r .
0

cópu 1a genica1 entre homens e mulheres soheiros. · mp es tmltava~se a
22. Redondo, A. Op. cit., p. 52-53.
23. Dmun<iaróts dr: l'r:rnambuco, p. 339-340.
24. ANlT/IL .. processo 7955.
25. E~unciado excraído: aguisa de exemplo, do Dimt~ur pacifiqu~ áts conscitncn, do ca u-
chmho jean-Fran~oiS
.
de Reims (século XVI) · Ap ud Delumeau, J., op. en.,
. p. 353. P
26. LJ_~nunClllfÓts J~ Ptrnambuco, p. 396-397. A iconografia dos séculos XVI e XVll 5 re
~has,_ es.s~ formcac;óes sarinicas, presentes nas descric;óes do inferno e, ccrtamen-:;cn~
1magmano popular. '
27. Id. ibid .. p. 326-329.
28. ANlT/IL., processo 11209.
29. lbid.. processo 11112.
30. O réu deve ter usado o verbo foátr, que já Fcrnáo Lopcs ulilizara na Crónic• fk
D. Ftrnanáo como sinónimo de fornicac;áo.
31. Freyre, G. Op. cit., p. 250-251. V. tb. Bakhtin, M. A cuJt.,.. popuÚir na [IÚik MIJU, no
Remudmento. Sáo Paulo, HucitcdUNB. 1987, p. 125 e scgs.
32. ANTI/IL.. processo 13167.
33. Para urna análisc mais profunda das blasfemias, remero ao itcm .. Dogmas e símbolos:
incenezas e irrcvclincias" in Souza, L. de M. c. O Ji11bo e • TnTII * s.,.,.
O.. Sio
Paulo, Companhia das Leu2s, 1986, p. 100-136.
34. Sobre o assunro ver Mon, Luiz R.B. Maria Virgcm: ou nio? Quatro séculos de conresta-
~io no Brasil. ComunicafYio aprc:scn~ada na 15• Rcuniáo da Assoc:i~o Bnsilcira de An·
uopologia. Curitiba, 1986, 25 p.
35. ANlT/IL., processo 12527.
36. Dedieu, Jean-Pierre. Le modele sexud: la défcnse du mariage ebn!tien. In Bc:nrwsar, B.
(org.) L1nquisition Espagnok (XVr.-X/XI. si«ln). Pari.s, Marobout, p. 322.
37. M. B. Nizza da Silva afirma que os moralisw ponuguesa utaizavam com sc:ntidoc dife-
rentes as palavras cclibaclrio e sohciro: a primcira signifiava casro. continente, e a secun-
da, homcm ou mulhcr scxualmcntc dcsrq:rados. V. SismrM tÑ ~ • IIMsiJ ,_.
nilll Slo Paulo, Edusp. 1984, p. 80.
38. Pé,.., joseph. La Fcmme e< l'amour dans I'Espacnc du XVIc. siedc. In Redondo. A.
Op.cit., p. 28.
39. Cruz. Francisco l. doa SantOI. 1M~ .. citlttM ,¡, ÜIÑ& Lisboo. Dorn Quimot.
1984, p. 312.
40. Flandrin, j.-L. Conmoeption, mariap ct n:lationo amo- dansi'Oa:idcnc dioolticn.
In ú Srx~ , I'Om.lnu. Paril. s.ua. 1981. p. 119.
TROPICO Dos PECADos
76

-41. Aries, Philippe. 0 amor no casamenco. In Béjin, A. ~org.) ~~xuali~adn oádentaú. Lis.
boa, Comexro, 1983, P· 183. Jerónimo só fizera rcpem o estoiCO Seneca. quando escre-
veu a célebre frase.
42. Expressio cradicionalmente usada no Aho M~nho para designar as "mJ.cs sohciras".
V. Cabral, Joáo de Pina. As mulheres. a maternJdadc e a posse da terca no Alto Minho.
AnJ/iu rocial vol. 20 (80), 1984, p. 97-1 12.
43. Rossiaud. Jacques. Pronirui~áo, sexualidade, sociedadc nas cidades francesas do sécu-
lo XV. In Aries, P.< Béjin, A. (org.) Op. cit., p. 189.
44. Aguiar, Asdrúbal A. de. Crimes e dcliws sexuais em Ponugal na época das ordenac¡:óes.
Separara dos números 1 e 2 do Archivo dt Mtdicina Lfga~ vol. 3, 1930, p. 50.
45. Rossiaud, J. O p. cit., p. 186.
46. Graullera, Vicente. Mujer, amor y moraJidad en la Valencia de los siglos XVI y XVII. In
Redondo, A. (org.). Op.ci<., p. 93.
47. Olivieri,Archillo. Erotismo e grupos sociais na Veneza do século XVI: a corrcsá. In Aries,
P. e Béjin, A. Op.ci<., p. 93.
48. Marques, H. de Oliveira. A socitdadt mtdiroal portugutsa. 4. ed. Lisboa, Sá da Cosca,
1981, p. 126-127.
49. Bologne, Jean-Ciaude. Hirtoirt dt lA pudtur. Paris, Olivier Orban, 1986, p. 32.
50. Dedieu, J.-P. Op. ci<., p. 322.
51. ANITIIL., processo 17807.
52. Confirrótr d4 Bahia, p. 76-81.
53. ANITIIL., processo 11860.
54. !bid., proccsso 10423.
55. Dmunáa¡ótrrkPtrnambuco, p. 189-191; 244-245.
56. ANTIIIL., processo 17065.
57. Dtnuncia¡ótr da Bahia, p. 375-376.
58. V excelente análise de Koshiba Luiz A ¿· . . .
littratura. Dissenaráo de m 'd . wma coloma: contribuiríio a história social da
..._ . " csua o apresenrada ao O d . .
~ UniVersidade de Sáo Paul 1982 epartamento e Hut6na da FFLCH
o, 'esp. 0 caphulo IV, "Corpo e alma", p. 87-123.
CONCUBINATO E MATRIMONIO

Diziam qu~ o ~stado do casado tra m~/hor qu~


o do religioso, e que a ordem que mais agrada-
va a Deus era a dos casados.
Confissáo de Manoel Pinro
Pernambuco, 1595

Tanto que uma pwoa estavo. nestas partts do


Brasil logo nelas podia casar snn nnbargo M
ser casado em outra partt.
Confissáo de Cararin.a. Morena
Bahia, 1593

Sequiosos de prazer sexual, convencidos de que a maioria das mulheres do trópico


eram "solteiras" passívels de fornicac;:áo, nossos colonos resistiriam ao casamcnto
desde o século XVI. "Nao gostavam de casar para toda a vida, mas de unir-se ou
de amasiar-se", afirma Gil heno Freyre, 1 frase que bem se poderia esrender a tota-
lidade de nossa historiografia, quase uninime e m considerar o matrimOnio legíti-
mo, contraído na observancia das regras oficiais, um falO raro na ColOnia, restrito
a a
elite branca ligada tcrra, ao comércio ou aos cargos públicos. f. ccrto que a
maioria de nossos autores nem sempre atribui ao tal "gos[Q por amasiar·sen o
fracasso o u limita~áo do casamcnto no Brasil, alegando, por ou<ro lado, as dificul-
as
dadcs encontradas pela maioria da popula~áo cm atender cxi~ncias burocráti-
cas e financeiras do mauim6nio eclesiástico, a instabilidade social e a mobihdade
espacial das camadas pobres da Colonia e, no caso dos cscm'Os, a uadicional
oposi«¡io dos senhores ao matrimOnio dos cativos. Admite·K, ainda - e nio
podcria ser de outro modo - , que muitos homens e mulhercs casados. oltm de
padres seculares e religiosos, frcqüentememe se amanccbavam. Mas t qua.sc
consensual. dirfamos, a idtia de que o casamcnto era urna o~io das "'dasscs
78

. · patrimoniais ou de stfltUS, rest:mdo o con-


d minanres"' mouvada por mteresses . 1 , 1' .
0 . ¡ n¡· Ul'al para os dcmaJs estratos l a Co 0111a.
binato como alternativa sexua e ca t' •
cu . e era relativamente cscasso. Os dcpouncntos de
SeJa como zor, o casamento . . 1 f' . 1
. 'd d · · ainda ljUC' guJJdos pela moJa o ICJa e ponan-
)'esufras, bJspos e auton a es
CIVJS, • ·~ ~
. )assidáo cm qualqucr umao nao sacramentada,
to tendenczosos, pronws a ver . . .. ~
confirmam 05 obsdculos concretos que a sirua¡;:áo colon.Jallmp~nha ao matnmo-
nio católico. Conflrmam-no, ainda, as informac;óes d1spo~1ÍV~J~ s~brc os fllhos
·1 1· · . variável no rempo e no espac;o, a J!egnunJdadc chcgou
1eg urnas ou narura1s. . . . , .
mesmo ao exrraordinário índice de 90% das cnanc;as nasc1das cm M1nas C.cra1s,
entre 1719 e 1723' e, na Bahia da mesma época, inf(mna-nos Russd-Wood,
havia máes que "deixavam os filhos a noite nas ruas sujas", onde eram devorados
pelos caes ou morriam de fome- o que levaria a Santa Casa de Misericórdia a
instituir sua "roda de exposws" em 1726.-' Sirua~ócs extremas e pcculian.:s, scm
dúvida, mas indicativas de quáo afastadas podiam ser as r<:::la~ócs scxuais e o casa-
mento cm cenas regiócs e épocas coloniais.
Queixas dos religiosos, escassez de casamenws, alto índice de bastardos, tuda
parece indicar que as rela~óes sexuais ocorriam, predominantemente, na esfera do
concubinam. Termo genérico, a encubrir numerosas situa-róes amorosas e scxuais,
seria o concubinato a grande prava do desregramenro moral da ColOnia, do clima
de "imoxicac;:áo sexual" que Gilberw Freyre atribuiu ao passado brasileiro? Ou,
pelo contrário, como sugerem invesriga\ÓCS recentes, seria mera uniáo consensual,
livrc, por ve7.cs ráo escá.vel quanto o próprio matrimOnio, resquício do "casa mento
costumeiro" que vigia em Ponugal antes do Condlio de Trento? A questáo que se
nos aprcsenra é, porranw, de natureza dupla: consiste, de um lado, em averiguar
até .que ponro o matrimOnio oficial e o concubinato se opunham, jurídica e
mcaalmenre, enquanro nlttrnativas conjugnis e, de ourro, examinar e m que medi-
da 0 "c:uamenro na igreja" se limirava, de fato, ao estreito drculo da elite colonial.

COSTUMF.~ P. I.P.IS

)á mencionamoa o <tfor~o assumido 1 1 . . .


uniformizar 01 rito• mar · . . d . pr a grc::Ja Tndenuna no sentido de
rlmontats e t tmpor as re d
COIIUmrs 1ociai1 ou u drci .. . d' 'd . gras o sacramento sobre: os
lues tn lVI uats Subord' .
etleaiá51ica implicava ular p 1 . d' · loar o casamento ~ autondadc
e os ampe tmentos oHciais; regular as dispensas nos
casos cabívcis; proibir a coabira~5.o de 110 · b
. . . ' Jvos; asscgurar a énifáo do pároco como
reqUlsHo .SI:Ie r!ua non para o matrimOnio; garantir a publicidade da cerimónia
com a exJgcncJa de duas tcstemunhas Os d · · · d ·
~ . . " · gran es mlmJgos a omest1car eram
e_nrao, aos olh~s .da lgrcp, ~s casamentos cosrumeiros"- ande a chancela eclesiás-
uca cr~, no maxu,~o, u m nto entre vários- e os "casamenros clandestinos"' feiws
a reveha das famd1as dos nubenres e, conseqüenremenre, sem a publicidade ou as
regras do modelo oficial.
A tradi~áo oral e o direito escrito informam-nos muito sobre esses casa-
men~os "irregulares" que cominuaram a vigir em Portugal e nos demais países
católicos pelo ~e nos até o século XVII- embora a Reforma Tridentina da Igreja
tenha comnbuJdo decJslvamenre para sua gradual exrin)áo. Em Portugal, deno-
minava-se recabedo o casamento costumeiro, vigente na Baixa Idade Média, e
que, segundo Teófilo Braga, já incluía algum tipo de ben,áo sacerdotal.' Oliveira
Marques o descreve como "casamento de ben)5.o" realizado na igreja ou a porra
desea, embora raramente se efetuassem os banhos e proclamas decretados pelo IV
Condlio de Latráo- e confirmados porTrento. 5 As cerimónias variavam muito
conforme a regiáo, porém o que mais imporrava era a alian)a de famílias, expressa
no rito de origem visigótica em que o homem entregava anoiva o anel esponsalício,
símbolo do pretium puellae, ou repara,áo da virgindade devida a auroridade pa-
terna.6 Tratava-se, pois, de um "contrato de arras", que implicava a "compra" da
esposa pelo marido- e autorizava a coabita)áo dos noivos antes mesmo da ceri-
mónia eclesiástica-, o qual foi progressivamente substitufdo, após o século XVI,
pelo cosrume romano de dota)áO da noiva pelo pai. Ao lado desse matrimOnio,
concertado pelas familias e aben,oado pela lgreja, davam-se os "casamenros de
juras", quase u m sinónimo de rapto, chamada e m Espanha de casamentos a hurto.
Feitos sem a aurorizar;5.o paterna, sem os devidos pagamentos de arras ou dotes, as
vezes sem a benyáo do padre, eram urna "espécie de antecessor do casamenro
clandestino" da ~poca moderna. 7
Ainda em 1603, regulomentando as penas a serem aplicadas aos adúlreros,
0 Código Filipino explls urna classifica,ao de marrimllnios q~e espelhava, em
cerro sentido, os costumes do Reino em matéria de casamenros. Ah aparectam o
"casamento de direito", celebrado segundo o modelo oficial; o "easamento de
feiro", realizado sem as dispensas "por haver pa~ntesco ou c~nhadio im~itivo
do marrimllnio de direito"; 0 "casamento de pública fama • onde ~ cl>nJ~~s
coabitavam "em fama de marido e mulher" e assim eram ttdos pelos Vlltnh~. Os
dais últimos aludiam, em sima~es variáveis, aos antigos casamen~s ~e ruras,
presumidos o u realiudos sem a cor~ta observAncia das normas edestástiC&S, mas
"'
· u clandestinos, eram verdadeiros casamenros ao
mdos eles, fosscm costume•ros o . 1 .
1 1 · a Devidamente reconhee~dos pe a comun1dado
nívd da cultura popu ar usJtan . • . • . '
da família ou pelo ammo dos con¡uges de casar, ter
consumados pe1a vontade
filhos e partilhar a vida marital. .
Antes mesmo do Condlio de Trento, a lgre¡a portuguesa esfor~ou-sc por
b 1
coro arcr aque es ma r [ l·mo·n 1·0 s tidos como "irregulares", considerando escanda-
, . .. .
losas, malignas e perigosas as cerimónias reahza.das cscondid~me~te,. s~m os ba-
nhos e di tos oficiais"- 0 que foi obviamente reiterado pelas Consmu1~oes Extra-
vagantes do Arcebispado de Lisboa, em 1565, e pelos demais sínodos lusitanos do
pós-Trento. 10 Referindo-se a Portugal e ao Brasil, M. B. Nizza da Silva sugere que,
após 0 Concílio, a nova disciplina matrimonial tendeu a considerar os matrimO-
nios irregulares, sobretudo os clandestinos, como formas de concubinato, náo
obstante fossem legítimos casamentos aos olhos da comunidade, dos contraentes
e das próprias leis do Reino. 11 O mesmo afitmou James Casey em 1-ela~áo aEspanha,
frisando a dificuldadc de se distinguir o concubinato do casamento cosrumeiro no
século XVI, pois, cm várias regióes, os desposórios cominuaram a faculcar as
rel~óes sexuais e a coabirac;:áo dos noivos antes da benc;:áo nupcial. 12 Nessa pers~
pectiva, o "moderno concubinato", tiio hostilizado pela Reforma Católica, niio
passaria em muitos casos de urna conjugalidade socialmente aceita, embora ilegal
e pecaminosa aluz do direito canónico .
. _r,. out~o, no entanto, o enfoque que adotamos cm face dessa questáo. Já na
rracilc;:ao paga greco· romana disringuia~se claramente os matrimOnios válidos im~
plicando ~abita~iio, alian~as, zelo pela descendencia, partilha ou separa~áo de
bens, do Simples concubinatu assimilado as rel~óes entre amantes - embora
fossem os casamentos da An11gu1 ···d ade um contrato essencialmenre privado.
E tamb~m o .direito franco-germii meo · recon heCJa · profundas diferen~as entre a
muntrht, eqUivalente ao legftimo
_ ·- . . casamemo romano, e a fritd<l•h•, simples liga-
crao, umao prov1s6na destinada a "d" · 1" ..
¡- ~ 1 d fi · · ""P lnar a at1v1dade sexual dos jovens'' sem
'S . os e mmvamenre as mulheres u N h" . .
~ . , . · a JStóna oCJdemal, o concubinato sem-
pre Ol, ~;: cerro, ma&s do que urna rel . 1 . .
identificado com qu 1 , da~ao sexua epJSódJca, mas nao parece ter se
a quer rorma e casam A ~ . . .
definiu, em seu Diciond . . . enro. ntumo de Mora1s e S1lva o
r~o, como sm6mmo d b
concubina como amúia b ,, . e amanee amento, refcrindo-se 3
'manee a, amJga de u ó" lh " .
[Uta vulgar"." No plano d .d m S • mu er que nao é prosrJ-
h'- muno . as comun• adcs e da" d. - fa .1. . d
casamen1o e concub" a &crao m1 mr oc1dcnral, des e
mato eram form d. .
Em meados do O<!culo XVI e . as IStlntas de uniiio.
· .
com mau ngor do que 0 fizera a Reform ,
•0 oncíhodeTre ¡· .
. nto pena 1zou o concubmato
• GregotJana nos séculos XII e XJII, mas
••
náo por julgá-lo ahernariva matrimonial ao "casamento na. . " "P d
¡ · 1greJa . eca o grave
é q~e os so teaos tenham concubinas; porém muiro mais grave, e comecido com
notavel_ desprezo deste grande Sacramento do MatrimOnio, é que ramhém 05 ca-
sados VJvam em estado de condenac¡:áo e se atrevam
, . , . • a manre- 1as e conserva-
A , 1 ·
as, as
vezes em sua propna casa , pubhcamente _ eis 0 que dispunha 0 Concílio na
intr~duc;:_áo da matéria. 15 O concubinato era visto, pois, como simples variante da
formcas:ao: ofensa ao sexto mandamenro, senda solteiros 05 amancebados; ofensa
ao nono mandamento e :1 fidelidade conjuga), em se tratando de adulrério. Ne-
nhuma disposic¡:áo tridentina assimilou, ao que nos consta, concubinaco e casa-
mento clandestino ou irregular. E, fiéis ao espírito tridentino, as Consrüuic;óes do
sínodo baiano de 1707 definiram o concubinato como "ilícita conversac;áo
do hornero com mulher, continuada por tempo considerável", 16 acrescenrando a
durabilidade do amancebamento aos critérios de publicidade e eventual coabira-
~áo fixados em 1563.
Na perspectiva eclesiástica o concubinato aludía, porcanto, a urna relac;áo
inrermediária entre a simples fornicac;áo e o adulrério, ames definida pela durabi-
lidade e publicidade do que pela coabita~áo - só expressamente referida pelo
Concílio no caso de homens casados que mantivessem amames na própria casa.
t. cerro que as mesmas Constituic;óes baianas referiam-se afama do "viver porras
adentro" como prova suficiente de incrimina~áo mas, ainda nesse ponto, consi-
derava a possibilidade de ser a manceba urna criada do acusado 17 - o que bem
nos sugere urna concepc;áo "dássica" de concubinato, que tradicionalmeme as-
sociava "fornicac;áo" e servic;os domésticos, mais do que vida marital. ldéia
semelhante extraímos de urna decisáo do papa Alexandrc VI no século XVI,
quando proibiu obrigar-se o concubinário "a lan~ar fora a concubina" se tOsse
mulher "mui útil para a comodidade" do homem, e se na impossibilidade de
substituir a "criada", viessem a lhe causar "fasrfdio os manja~s feitos por ou-
trem".18 Mesmo no tocante ao concubinato de padres- mancebía que mais
preocupava a Igreja da Contra-Reforma-, o critério da coabita.¡io nao mere-
ceu grande destaquen .. Conscitui~óes de I707,limitadas a distinguir gcnerica-
mente os "fornicários vagos", culpados de eventual incontinencia, dos padres
amancebados, costumados a "andar" com alguma mulher. 1 ~ A leida lgreja jamais
confundiu concubinato e casamento costumeiro ou clandestino- os dois últi-
mos, verdadeiros "rivais" do modelo matrimonial rridenlino -,como tambtm o
nao idemificou a coabita~áo conjuga!. Fornica~io simples ou adúltel'll, rela,áo
entre amantes, escandalosa e contumaz, assim o direito eclesiástico parecia en-
quadrar os amancebamentos.
82

E buscaríamos em váo, rambém na legisla\áo.Civil portu~ue~sa .d~~ sécu-


los XVI e XVII, qualquer identificac;áo entre concubmaro ~ mammonJO de fei-
" "d 'bl. f " A notar primeiramente, que o Codrgo Frlrpmo utdrza-
ro ou e pu tea ama . ' , . d . d d -
ubinato 0 vocabulo barregwce, en va o e barregao
va, em vez da pal avra conc • . . '
~ ba reuuin no idioma vernáculo dos Ptreneus, termo que stgni-
em portugues, ou r b·- • , " . .. " , 20 .
ficava "mo\o solteiro", "bem disposro ' amtgo ou amanre ~ smal de que a
cultura popular ibérica possuía urna expressáo espe~í~ca para aludtr a esses amores.
E rambém as chamadas barregás apareciam no Codtgo como amantes, mulheres
"reúdas e mameúdas", esclarece Virerbo, ora de leigos, ora de padres. 21 Mas 0
maior indício da distin\áo esrabelecida pelo direito régio entre barreguice ou
concubinato e casamenm presumido, vemo·lo na disposic;:áo contra o concubinário
casado (adúltero): "para prova do casamento do que se diz ser barregueiro casado,
bastará provar-se que ele está em voz e fama de casado( ... ), e bem assim bastará,
para prava da barreguice, provar-se que estáo em voz e fama de barregueiros, e sáo
cosrumados e vistos entrar um em casa do outro"Y As Ordenac;:óes Filipinas, que
nessa maréria só fizeram repetir as Manuelinas de 1521, disringuiam claramente o
concubinato do casamento informal, sugerindo-nos ainda que também a popula-
c;áo do Reino o fazia, ao elegerem o rumor público como critério de qualifi-
cac;áo penal.
Ainda que no cotidiano da Península muitos amancebados do século XVI
s~ u~issem com ánimo conjugal, e assim fossem vistos pela populac;:áo - o que
d•ficJimente se poderia demonsrrar - , casamenro e concubinato eram siruac;:óes
cotalmente distímas no plano jurídico: o primeiro podia ser legítimo contrato e
sacramento desde que celebrado segundo as regras da Igreja, mas podia ser tam-
bém nulo, rrregular ou "inconveniente"" • no caso d e rra 1tarem as d.1spensas de
parentesco, resremunhas e ourros requisitos; já o segundo implicava, antes
d~ ~udNo, adrransgr_essáo do sexto ou do nono mandamemos e, ainda
dos códigos
CIVJS. o omímo da lei 0 b' - '
. . ' concu mato nao era urna "instiruic;:áo rival" do
casamento tndemmo· náo mais u
. · q e os casamemos presumidos, clandestinos
ou costumeJCos, emboca fosse urna . 1
e continente qu R ~ C _espec•a ameac;:a aordem familiar, austera
' e a e orma atólrca buscava difundir.
.,
PRATICAS DO CONCUBINATO

a
Referindo-se Europa, Jean-Louis Fla d .
. . .
, l _
n rm escreveu: em re ac;ao ao casa-
ment.o, que era urna msutu1c;áo social pela qual se aliavam as famílias de mesma
condu;:á.o a fim de se perpetuarem, o concubinato era urna uniáo pessoal, um caso
de amor, ao menos da parte do homem." Insticuic;áo social auelada a interesses
famili~~es, a c~rimOnia de casamemo era importante rito de passagem na cultura
europe1a medieval e moderna, fosse ou náo sancionada pela bCnc;áo eclesiástica.
O próprio casamenm era, ames de rudo, um contrato extensivo a vida conjugal.
emboca pudesse ser rambém um sacramento- o que, por si só, diferenciava-o do
concubinam, espacro de amores impossíveis, vomades individuais, paixóes mal
vistas na comunidade. Envolvidos em concubinaros, diz-nos Flandrin, eram os
amantes adúlteros, homens ou mulheres insatisfeicos com seus cOnjuges "arranja-
dos"; os miseráveis, gente que náo possuía recursos ou estabilidade social para
contrair matrimOnio; os que, sendo ricos, ou gozando de importante status, ja-
mais esposariam amásias de condi~áo inferior; os padres e clérigos que, a seme-
lhant;a do cura de Montaillou, recusavam a castidade inerente ao estado religioso. 2<4
Na Europa do século XVII, o concubinato enttou em franco declínio,
espelhado no recuo das taxas de ilegitimidade entre crian~as batizadas- o que se
deveu, em boa medida, a propaganda moralista das Reformas Católica e Protes-
r tante. Na ColOnia, pelo contrário, cresceu desde o século XVI, tornando-se o
espat;o por excelencia das rela~óes sexuais e da procria~áo, tantos eram os obstácu-
los que a situa~áo colonial impunha ao casamento legítimo. Mas, pelo menos no
plano das motiva~óes e situa~óes de amancebamento, o concubinato colonial náo
esteve muito afastado do descrito por Flandrin, salvo pelo caráter plurirracial que
lhe marcou o ttópico.
O mundo dos concubinários, vemo-lo na correspondencia jesuítica do sé-
culo XVI, entre os amores de fndias e colonos, que tanto inquierararn os jesuitas;
vemo-lo, um pouco, entre os personagens da primeira visita~áo inquisitorial a~
Nordeste; e, ainda, nos ttatados morais dos Sl!culos XVII e XVIII, entre os queo-
xumes e as intimida~óes de um Nuno Marques Percira ou de um )org<' lknci.
Mas~ sobrerudo na documenta~o das visitas diocesanas, ou "devassas ~rais", que
o concubinato aparece de maneira mais completa - incl~i..., arra~ de Sl!ries - ,
pms· era competenCia
• · d os b"ospos , ou da )usti•a
,. Eclesoisnca, o chamado
. . crome de
.
amancebamento, incluido no monitório (rol de culpas) fixado ~lo v1sotador epos-
copa1 no 1ugar d a ·onquoro~ao.
· · - " Desde o skulo XVI, como ""remos, os bospos
84

.. . 'ras oderoso mecan l


·smo de policiamenm dos costumes e
colonlals ordenaram vtsl 'P , l na ColOnia, mas sornen te algumas
. . "d d opulares na Merropo e e
das relogooso a es P . . d XIX foram descobertas por nossos histo-
d é 1 XVIII e do mícoo o
devassas os cu 0 d Bah" Minas Gerais e ao Maro Grosso: poucas
"ad 1 rivas ao sul a oa, a •· d b"
r1 ores, re a . . . f¡ rma~óes sobre a pranca o concu •nato
visitas, sem dúvida, porem ricas em m o
no Brasil.

CoNCUBINATO, ESCIIAVIDÁO E 1/ACISMO

Difundido cm rodas as camadas sociais, e generalizado em roda a Coló~a,


0
.
concu bmato resu 1rava, cm primeiro lugar• da sirua~áo
. colono
,, . al e, da.escravodao.
.
Já No"b rega d"ozoa,
· cm 1551 , que os homens da Colónoa unham ondoa de muoro
rempo. de que tinham filhos, e rinham po.: grande .~nfami~ casarem co~ das".~'
Casar-se com indias a quem viam como solteuas , prostitutas ou amasms, e1s
urna idéia jamais acalenrada pela maioria dos portugueses chegados ao Brasil no
século XVI. Verdadeira infamia, assim julgavam a mera hipó tese de tais casamen-
ros, s6 cogirados, provavelmente, pelos insistentes padres da Companhia.
As mancebas índias dos primeiros lusitanos somar-se-iam as negras, mula-
ras, mamelucas e mesmo as brancas pobres nos séculas XVII e XVIII. A falta de
mulheres "brancas e honradas"- para usarmos a expressiio de Fernáo Cabral em
1592 - e a convi~áo que rinham os portugueses de seus privilégios sexuais,
mesmo se casados, levá-los-iam cada vez mais para o mundo do concubinato.
Mas quasc nunca se casavam, ou sequer cogiravam fazS-lo, com essas mulheres
degradadas pelo colonialismo e pelos valores ibéricos de pureza racial, mesmo que
por clas se apaixonassem. Muitos solteiros viviam amancebados por anos a fio,
preferindo a morre avergonha de esposar mulheres infamadas pelo sangue, pela
cor ou pela condi~iio social. Exemplo dessa sirua~áo-limite deu-nos, com efeiro, o
governador de Goiás, Fernando Delgado de Castilho, que, apaixonado por urna
mulher pobre com quem vivia publicamenre no palácio, induindo a prole ilegíti-
ma, prefcriu suicidar-se~ leváAa casada para 0 Reino ... "27
11

Mas, se já no ~ircito canónico e nos cosrumes europeus a concubina osci~


lava entre a amante lovre e a criada, no Brasil colonial acabaria muidssimo identi-
ficada.~ esc~ava. Embora negue a existencia de preconceiros raciais na Colónia, o
próproo Golbeno Freyre admiti "d-
• 11 • u a escravo ao como fonre privilegiada de
contubonatos, po11 todos os que pos ¡
simples rrabalhad . 1 su ~m negras, fossem grandes senhores ou
ores, )U gavam-se no doreoro de ampliar SCU dom(nio a posse
sexual. É ceno que muiws amancebament ~ ·
os eram autenticas paixóes e casos de
amor entre senhores e escravas como no J d' ·
~ . • en ano romance emre o conrrarador
Joao Fernandes e a escrava XJca da Silva no disuiw Diamantino do século XVIII
a~ém de n~~~.ero~os amores menos célebres: Mareus Gon¡¡:alves, em Saba~
ra, que rraz1a multo asseada sua negra Páscoa"; Joáo Gomes, em Vila do Carmo
que clava saia de estofo e trazia a cavalo sua preta Maria Bonita; Amónio Vaz:
hornero casado em Ouro Preto que, enciumadíssimo, mandava vigiar sua escrava
na missa, e m u iros outros ... 29 E, na Bahia do século XVIII, u m rico proprierário
de escravos amava tanto a sua escrava-concubina que chegou a conceder-lhe em
testamento a liberdade, a propriedade da casa e tres escravos, "coma condic;:áo de
que ela permanecesse solceira". 30
A tendencia geral era, porém, a de confundir explorac;:áo social e sexual,
as
unindo-se os senhores, casados ou solreiros, negras e mulatas da casa-grande ou
da senzala, a despeiro do tour de force jesuítico inspirado por Tremo. Amonil e
sobretudo Jorge Benci, foram alguns dos que recriminaram os senhores por corre-
jarem as escravas, humilhando as legítimas esposas, presemeando as amanees, e
até mesmo alforriando-as em traca de favores sexuais - recriminac;:áo
comprobatória, sem dúvida, de urna prática corriqueira da escravidáo coloniaL
E assim como Alexandre VI tolerara a criada-concubina que fosse indispensável
ao servic;o do se u amo, também as Constituic;:óes de 1707 curvar-se-iam aos hábi-
tos coloniais, reconhecendo raciramente o direiro dos senhores de se amancebare m
com suas escravas. Reconheceram-no ao fixarem como prava de concubinato o
faro de um hornero mamer em casa alguma mulher que ali engravidasse, náo
senda com ela casado, fosse criada ou qualquer omra, dtsdt qut livrt.-11 Ao isemar
os senhores, a decisáo eclesiástica admitía, rambém veladameme, que ourros ho-
mens poderiam engravidar as escravas, mulheres reduzidas a objeto sexual na
ColOnia, vulneráveis a quaisquer "traros ilícitos". Mas a lgreja era perfeirameme
sabedora de que os senhores eram igualmeme suspeiros de tal paternidade, e ainda
assim os náo incriminou na lei, ciente de como seria inócua semelhame decis.lo.
A roleráncia do sínodo baiano náo constituiu, porém, nenhuma originalidJ.de
colonial, embora 05 cosrumes senhoriais do Brasil renham certamente pesado n.l-
quc:la isenc;áo. Já os Códigos Manuelino e Filipino haviam isemado con~ mJ.is
• · o pr ó pno
b e nevo 1eneJa · ele ro , só considerando prava de amancebamemo
. . . o, . t-.uo de
a escrava ter filhos balizados, e assim no meados ~lelo padre concubmano. • [)e~ e
" 1o XVI , ponanro, a p rópria monarquia n,.dava-sc scnsivd aos privil<¡:oos
o sccu
sc:nhoriais e concubinários do clero lusitano.
••
ó rias escravas náo era privilégio dos
cebar-se comas pr p "Id .
O cosrume de aman . bé faziam, como o hwm e pllHor
H ns simples tam m o
grandes senhores. ome d ntro" com a escrava Leonor ou o
. . .vi a "de su as panas a e
Jacinw Ribeuo, que vt lh bada com duas mulatas cm sua casa,
li . . d Carva o amanee
ferrador Joáo CIXC:Jra e ' r 05 dais casos acorridos em Minas
. d ropriedade e ourra rorra- . .
urna cauva e sua P . b menros corrique1ros cm Salvador,
. " é 1 do ouro" .u Tals amanee a '
Gera1s no s cu 0 · ~ diam com a prostituic;áo das escravas
·¡ R' lugares 3s vez.es se con un
V1 a tea e ourros ' . ¡ ue náo raro adquiriam negras e mu-
1 eralmente homens s1mp es q
pe os amantes, g d. • · Exemplo notável: Laura de
har rosriruindo-as, o susrenro tano.
latas para gan . ' P b t Manuel Lobo, rancheiro pobre que dor-
Mello e Souza mforma-nos so re cer o .
. · d a obrigava a faze-lo com desconhec1dos, de
mia com sua escrava Jultana, e am a . " ~ . ,
• · negros, d eseJOSO
preferc:ncta · que a mulher parisse crmulos.
" O que se quena .e que
as negras gc:rassem " - anrma
o Gilberro Freyre - , que as negras produZJSsem
muleques" ."1 . A •

Práticas como as de Manuel Lobo náo devtam ser raras na Colo m a, mesmo
entre senhores de posses; quando náo alcovitavam suas negras, induziam-nas a
prostituic;áo, falrando-lhes com o sustenro, as roupas e, no caso das mubras ~a
casa-grande, negando-lhes os trajes engalanados que apreciavam usar no. cortejo
das sinhás. Já o incansável Benci insrava para que senhores e senhoras vesussem as
escravas que, de curro modo, o fariam na "oficina do pecado". De que valeria se
uajarem as escravas como librés tia várias "nas sedas e nas cores" como nas "máos
de que m as receberam"?- admoesrava o jesuíra. ·15
E, prosriruic¡:áo de escravas 3. parte, o concubinaro de brancos com negras
ou mularas era sobrerudo urna faceta da explorat;:áo escravisra, extensiva aliás 3.
opressáo da míséria. Senhores, mercaderes e burocratas náo só abusavam sexual-
mente das cacivas, como de mulheres que, pobres ou desamparadas, lhes serviam
de aman res. Na história da Colonia nao faltaram exemplos de autoridades, juízes
< governadores pródigos <m conceder favores ou dinheiro a mulheres humildes,
"tirando-as da miséría", protegendo-as da Justic¡:a, convidando-as para saraus e
comédias palacianas em uoca de prazeres sexuais. Assim come~avam, assim pros-
seguiam, diversos concubinatos no passado colonial.
. " Buscar-se-ia cm váo, na maioria dcssas rclac¡:óes, qualquer espécie de "uniáo
l1vre • análoga e alternativa ao casamento oficial. Esscs homcns mais ou menos
poderosos que 1< uniam a escrav., r · d b · ·
. . • rorras, cr1a as ou rancas pobres, JamaiS o
faz1am com 1mmo con¡· ugal e me 1· · ·
. ' smo que so teJros e apa1xonados, náo podenam
despod-la. Impunemente Nao fa J b
. . · 11< pe a po reza ou reputa~áo que infamavam
tall concubma., se-lo-ia ""la cor t p • . r d"
r~ rogcn1e n 1a, mesti4fa ou negra, igualmente
H7

infamada no direito e nas tradir;óes ibéricas d é d


. a poca mo erna. Os que ousassem
casar com mulh~~es de cor ou cnsrás-novas ficariam impedidos de concorrer aos
quadros burocraucos da monarquia· ingress O d M·¡· .
. . . ' ar nas r ens 1 Jtares de Cnsto,
Av1z e Santiago; mtegrar o clero· obter verea A • • •

. .. .• . . nc;:as nas camaras mumc1pa1s; as-


saciar-se a cenas 1rmandades, mJsencórdJas, instituic;:óes de caridade e outras _
além de ~gualm~nre _bloquearem roda a su a descendencia. 3f· É ceno que muicos
brancarroes endmheuados conseguiam burlar os impedimentos "raciais", benefi-
ciando-se da venalidade de vários cargos, o u das "dispensas especiais"; e náo falta-
raro, ainda, clérigos mestic;:os em todo o império colonial ponugues.37 Mas 0
racismo ibérico era suficientemente poderoso para bloquear muitas aspirac;óes e,
com isso, relegar as unióes plurirraciais ao mundo insrável do concubinato. Anita
Novinsky nos informa sobre muitos candidaws a familiares do Santo Ofício-
func;:áo contemplada com prescígio e privilégios - que se viram efecivamente
rejeitados por famas de "mourisco", "mularice", ou aré por estarem amancebados
com mulheres de cor. 38 E, notável exemplo da hierarquia de preconceitos no sécu-
lo XVIII, o marques do Lavradio rebaixaria um índio do posw de capitáo-mor
por ter esposado urna negra, "manchando o seu sangue, e se mostrado indigno
do cargo". 39
Náo por acaso foram raros os casamenws misros no Brasil colonial, senda
as
tantos os entraves que o direiw e os coswmes impunham unióes inrer-raciais.-4°
Sobretudo nas relac;:óes entre brancos ou senhores, e mulheres de cor ou escravas,
o concubinato esreve longe de ser qualquer espécie de casamenro alternativo ao
modelo oficial. Parece ter sido, antes, urna imposic;áo do escravismo e do precon-
ceito racial - notável fusáo dos ideais ibéricos de "pureza de sangue" com as
exigencias do moderno colonialismo. Confundiu-se, em várias simac;óes, com
diversos graus de prosricuic;:áo, alcoviragem e explorac;áo da pobreza, mais do que
com casamenros, mesmo que aos olhos da sociedade colonial - e náo do poder.
Foi, especialmente, 0 campo privilegiado da miscigena~áo, que por meio dele,
concubinaw, "ficaria estabelecida de forma definiriva" .-4 1

CONCUBINA7D, ESCRAV!DÁO E !NTERESSES SENHORJAIS

Al~m de abarcar relac;óes mais ou menos duradouras enue amanta ~esi-


.al ' . d
guais na csuarificac;:áo soc1 e ~:mica a o
e lónia o concubinato indula .. umócs
• . . . ~
entre escravos. Usad .. sexualmente pelos senhores, ou compehdas l promtuu¡ao,
a maioria daJ escravas dificilmentc se casava nos moldes ofici&IS com seus parttl·
"'
ros de inforrúnio. Viviam rodas amancebados, como se d.iz.ia aépoca, para deses-
pero dos jesuhas e demais autoridades eclesiásticas colontats. .
Nossa hisroriografia é, aliás, unánime em reconhec~r a relattva ~scassez de
casamenros legais no seio da popula~áo escrava, fato ~orón~ desde o seculo XVI.
No tocante aos escravos de origem africana o reduztdo numero de casamenros
decorria, antes de rudo, das imposic;óes do tráfico, montado para abastecer de
bra~os forres a lavoura tropical e as minas, e por isso mesmo composto majorita-
riamenre de homens. Independentemente da reproduc;áo natural dos escravos,
aliás dificultada pelos rigores da c:xplorac;áo escravisra e pelos inreresses do comér-
cio negreiro, o desequilíbrio entre homens e mulheres tendeu a perpetuar-se nos
rrc!s séculas do escravísmo colonial. lmpossibilitados de se casar por falta de mu-
lhercs em iguaJ condi41áo social, os escravos ainda o seriam pela má vontade dos
senhores. J:í no século XVI vimos que os primeiros colonos relutavam muito em
casar seus escravos índios, ceceosos de que o matrimOnio os alforriasse. E, ao
longo dos séculos XVII e XVIII, já consolidada a escravidáo com base nos africa-
nos, nossos senhores ampliariam os motivos para náo casá-los, alegando princi-
palmente que os "bruros" africanos eram incapazes de vida conjuga!, pois, urna
vez casados, lago se desmandavam, quando náo se matavam, enfadados, com feitif10S
e pe41onhas. ~ 2
. Habicuados a ver os escravos como bens a comprar ou vender em qualquer
o~a~1áo; aconumados, ainda, a dispar sexualmenre das negras, os senhores colo-
~laiS foram sempre hosris a rais casamentos, do mesmo modo como resistiam a
mgcrCnci~ ~clesiá.srica no domínio das práricas escravistas em geral. Até mesmo
alguns rcl!g&osos, sempre prontos a evangelizar os cativos, andaram evitando o
c~a~enro dos negros, como fizeram os franciscanos em 1745, proibindo marri-
momos que envolvessem escravos dos convenros.H
e Osh'jesuítas,
e no encanto
• . ' além de casarem 0 cop10so . ,
numero de escravos da
ompan la, roram aurenucos cruzados n 1 .
las tolerado e · 11 · d l a uta contra o concubmato nas senza-
1 cenuva o pe os senhores "C · ..
. · asaJ-os, v6 s - apregoava Benci aos
'
scnhores _"que d . .
esta mane Ira satlsfarels a vossa 0 b . - E d
lados com 0 santo mar · • . e . . nga(jao. se epois de vincu-
rlmomo, rorem VICiosos 1 ,
a Deus dos pecados que e ,~~ ' a e es tocara, e náo a vós, dar conra
ometerem. Os ecos do d' . 1
em parte numa disposícáo d { d b . Jscurso maciano, vemo- os
'
podcm casar com out ras o s no o Olano em 1707 "( )
T\llun . ' : • • • os escravos e escravas
. d' r-as catlvas, ou livres h
1mpe 1r o marrimónio ncm d l ' e seus sen ores lhe náo podem
. ' o uso ee ( ) nem
p1or, nem vender para curro l ... ' por esse respeito os podem rearar
car' s ugares remoros pa d
IVo, ou por ourro ju.uo impedimento • ' ra on e o nutro, por ser
0 nao possa seguir ( ... ) "." Ecos da
'"
propaganda jesuítica, se m dúvida, retraco da oposi~j:áo senhorial ao casamen-
ro. dos escravos, a disposiifáo de .1707
. consisria , p orem,
· · - quase
numa repe(l(;:ao
ltteral do que rezaram as Consntuu;:óes Excravagantes do arcebispado de Lis-
boa •. ~m 1569,~G prova de que havia muiro a tradic;:áo senhorial portuguesa
hosnltzava semelhantes matrimónios.
Seja como for, a escassez de matrimónios emre escravos empurrou-os, na
maioria, para relas;óes precárias de concubinaw, em nada assimiláveis a casamen-
ws, muito menos a "unióes livres". Eramos próprios senhores,lembra-nos Antonil,
que amiúde promoviam os amancebamemos e dererminavam os parceiros, for-
mando e desfazendo unióes a seu bel-prazer, e conforme suas próprias convenién-
cias.<~7 E, se mesmo entre escravos legalmente casados, coscumavam interferir e
separar casais por meio de venda ou qualquer expediente, o que náo fariam com
simples amancebados? Escravos concubinados, escravos legalmente casados, ha-
veria pouca diferen<;a na prática social, entre o caráter informal e legal das unióes
envolvendo cativos. Suas rela<;óes amorosas eram, possivelmente, as mais instá-
veis, precárias e vulneráveis de quantas houve na Colónia, as mais difíceis de
firmar, com poucas exce<;óes, urna conjugalidade duradoura e socialmente reco-
nhecida, quer em relac;:áo ao modelo oficial de casamento, quer em relac;:áo aos
mauimónios costumeiros anteriores a Tremo. Náo seria, pois, com base na famí-
lia - lembra-nos Kátia Mattoso - que o negro reencontraría sua idenridade
social ao desembarcar, escravo, no Brasil Col0nia.~ 8

·.:0NCUBINATO E DESCLASSIFICA<;}.O SOCIAL

Analisando os dados da visita diocesana a Ilhéus, Luiz Mon verificou que,


entre os 291 indivíduos acusados de concubinato, 72% eram soheiros, e mais de
sGo;0 era m "gentes de cor", sobrecudo pardos, índios e negros; ~r~c~ dd N ero e
F. V. Luna, por sua vez, indicaram que das 306 rda<;óes c~ncubmanas .apuradas
na devassa mineira de 1738, 77% envolviam pessoas soltetras e, pelo menos cm
80o/o dos casos, as mulheres eram de cor sen do 53% o índice de forras. 4 ~ Embor.J.
· 1 bre o concubinato, os escudos sobre as
náo apresentem estatfsucas comp eras so
álogo ao descriw por aqudes autoi'C's:
demais visitas sugerem-nos um quad ro an . .
"" d l'b á · homens e mulheres de ¡;or msendos nos m.ais
rorte presenc;:a e ce 1 at nos, .
baixos estratos da sociedade colonial. Foram r;utsslmos. no en~ilnt_!,), U!~
. d d s envolvendo cativoli,"• ('11\hur.a n.lo t.ahem
concubmatos apura os nas evassa · b
. b d n senhorts. csa;avos úH1l torr.as. r.lth:l..n
exemplos de escravas amam:e a .lS cor
90

• ro Tuda parece indicar, ponanto, que a


b m escravas e ourras do gene . ..
po res co d , da de concubinato nas VJSI[aS compunha-se
. das "gentes e cor acusa
ma1or parte b . d' • social De outro lado, senda notória, por
de livres o u forros de •••• con ·~ao · ¡ ·¡· d .
•. d b' ato entre escravos da senza a, o pa 1 o reg 15_
curras fonres, a pratiCa o concu m . . ~ .
rro uc as devassas faziam desses casos nos confirma, urna vez ma~s, a resistencia
q '·1 · da lgre¡' a Muitos deles, como out ros homens de

·-
dos senhores em curvar-se i&:l eis · . ~ ,
prestigio publicamenre amancebados, podiam náo escapar as murmur~c;oes e as
• · d 'd d as pelo visto sabiam resguardar os concubmatos de
denuncias a comum a e, m . ,
Ó • Ao menos no mcanre aos grandes senhores, eram mocuas
~~~=-
as decisóes eclesiásdcas abrigando-os a casar os escravos sob pena de pnsao e
de redo dos cativos amancebados, sem qualquer indeniza~áo. 51 Nem os senhores
g d ... ,.. ..
casavam 05 escravos, nem rampouco os aparravam o 1 ICitO trato , a menos que
o quisessem fazer.
De qualquer modo, a incidencia do concubinato entre individuos legal-
mente solreiros, sem recursos e racialmeme discriminados, tem levado nossa
hisroriografia recente a pensá-lo como op~áo amorosa e conjuga! dos deserdados
da Colonia, pobres e desclassificados que, marginal izados e incapazes de contrair
matrimonio, teriam assumido a condi~áo de amancebados. "Em Minas Gerais
como cm aunas rcgióes coloniais, a concubinagem constituiu-se na organizac;áo
familiar típica entre as camadas populares da sociedade" - afirma Luciano
Figueiredo, resumindo a idéia por muitos partilhada de que o concubinato subs-
timiu o casamemo, e o modelo familiar cristáo no cotidiano amoroso, da popula-
t;áo colonial pobre. 52 Hipótese tentadora, a sugerir-nos, ao menos entre os miserá-
veis da ColOnia, um casamento alternativo e urna conjugalidade ''popular", em
oposic;áo i tradicional visio do concubinato como indício de anomia sexual.
. A que atribuir semelhante tendencia da popula~áo pobre e m náo contrair o
marnmón1o rndcmmo, expando-se com isso a advertencias, multas, prisóes e
degredos que a lei eclesiás1ica reservava aos concubinários?" Nossos historiadores
tlm alegado variadas razóes para a generaliza~áo do concubinato entre as camadas
populares, mas lados parecem vinculá ¡ · . ¡
. - a pnnc1pa mente ao alto custo do sacra-
mento e aos compl1cados tramite b á·
. . s urocr ucos que a disciplina matrimonial pas-
sou a eXIgir no pós-Tremo " Ludan F . d
no ,¿culo XVIII Co . o •gue~re o, por exemplo, constatando que
a roa cmpcnhava-sc cm . · .. ·
e combater os concubinatos no Bras'l aumentar o numero de mammomos
du "desordens" ue se lb 'b 1 - temetosa do crescimento dos mesti~os e
q es am ula - chegou fi " .
agia em sentido contr~rio d'fi l d ' mesmo a a 1rmar que a lgre¡a
' 1 1cu tan 0 0 casam .. .
onerosas, só ace11 fveis hlice e l . l 11 Es ento com a 1mposi~áo de taxas
0 0011
• radamos, ponanto, a seguir semclhante
91

interpreta>áo, diante do quadro oposto aoque v1·g1· • 1 XVI •


. , a no secu o , epoca em que
os JeSuitas se esfor11avam em celebrar casamentos 'd d · ·
. . . , e as auton a es CIVJS em povoar
o lttoral a qualquer pre\'o. mclustve por meio de con b' · É
. , . . . cu matos e mesw;:agens.
dificil, no enramo, unagmar urna tal inversáo de papéis, sobrerudo no século
XVIII, quando a lgreja reuniu maiores recursos e adquiriu a estrurura organiza-
cional necessária para levar avante a Contra-Reforma no ulrramar.
Mas é no Sistema de casamento no Brasil colonial que encontramos a mais
completa exposi¡¡:áo das dif1culdades financeiras e burocráticas impostas pela Igre-
ja ao casamento legal. Segundo M. B.N. da Silva, o processo matrimonial era caro,
lento e complicado, exigindo dos nubentes variados documentos e grandes despe-
sas, incluindo certidóes de batismo - necessárias para a comprovaifáO de idade
núbil - , atestados de residencia - imponantes para o exame dos contraentes
que tivessem residido em outras paróquias - e certidóes de óbito do primeiro
cónjuge, no caso de viúvos- essenciais para evitar as freqüentes bigamias claque-
la época. Na falta de alguns desses papéis, prossegue a amara, os contraentes
poderiam recorrer a testemunhas idóneas, conforme o caso, o que de resto náo
agilizaría o processo, especialmente se o noivo fosse originário de Portugal, ou se
houvesse impedimentos canónicos só removíveis mediante o pagamento de eleva-
das "dispensas"''
Tais informaifóes, náo as recolhe a autora das Constituiifóes baianas de
1707, o u do texto conciliar do século XVI, já que ambos, embota recomendem a
máxima disciplina na celebtaifáO de casamentos, náo esclarecem sobre evemuais
documentos a serern exigidos dos conrraentes. Recolhe-as, sirn, dos processos
matrimoniais paulisras de finais do século XVIII e início do XIX. e de omras
fontes comprobatórias da m.aior burocrariza'fáo do casamento eclesiástico naquela
época. Refere-se, ainda, e m apoio a su a argumentaifáO, aquerela rravada e m 181?
entre 0 bispo de Sáo Paulo e as autoridades civis, o primeiro imeressado 'e~ ven-
ficar rigorosamente a vida pregressa dos nubemes e cobrar. as raxas n~cessanas~.,.e as
segundas, empenhadas em remover as exigencias financ~1ras do ep1scopado .. As
dificuldades que os pobres encontravam para casar em Sa~ Pa~lo em fin~ do secu-
lo XVIII, enconrravam-nas rambém os miseráveis de Mmas a mesma ~~~oc~, se-
. e S . Ht'laire· ráo oneroso era o casarnento que os md•gen-
gun d o nos mrorma amr- · . · d
" - d' . . d "arrasrados. peL.I t.~h~l de rrcursos, a nver e
tes o nao po 1am l:Ontrau, sen
. , _ , ..
°a conclusao
_
de Mana
.
Be.nnz.
. .. .
a ten
d' .·
enua
modo uregular .ss Nao e ourra, a1•as, -
. - d t nto ser encarada Jpen.ls l.'tlmo urna questao
para o concubmaw nao po e, por a , ltJnte de obSláculos et:onómioos a cele-
de libcrrinagcm, mas também como a resu
92

, , Es · 1 re¡' a num esrranho paradoxo, dificultando a


bra~iio do casamento . rana a g ' . . . d -
generali~áo dos casamentos na o.
e lonia e conduzmdo a maJOna a popula~ao
')
ara o rumo pecaminoso do concubmato.
P Somos de opm1ao· ·- que o problema deve ser poseo em outros _ termos.
.
. , 1
É .md•scutiVe 1 d _ levando-se em conta a argumenra~ao
, por um a o ,
de Mana
Beatriz e o testemunho de Saint-Hilaire- que em fins do seculo XVIII o proces-
. ·a1
50 matrtmonl parec1a m
· a·1s caro e burocratizado do que fora antenormente. É
haver impedimentos, sobretudo de parentesco, a
tam bé m ceno que nO Caso de . , .
Igceja tradicionalmente cobrava pelas dispensas que ¡ulgava cab1ve1S. M~s n.iio
exageremos essas dificuldades, pois mesmo em Siio Paulo, conforme nos md1ca
aquela autora, a cobran~a das "provisóes" pelo bispo ~· M~reus era rece~re,
inrroduzida por fcei Manoel da Ressurrei~iío, seu antecessor 1med1ato, e logo abohda
pela Junta da Coroa, que deccetou a gratuidade das provisóes necessárias aos casa-
mentas. E, entre as razóes que moveram obispo a rebelar-se contra aquela decisiio
régia figurava, explícitamente, o interesse financeiro da diocese - o que, conve-
nhamos, niio se poderia atender a cusra dos pobres e miseráveis, seniío da elite
local. Dirigida aos ricos, aos que podiam arcar com sobretaxas onerosas, a cobran-
~· das provisóes no fim do século XVIII se nos apresenra, no máximo, como
indício de urna postura mais "agressiva" da Igreja em face do Estado e das elites
coloniais, jamais como ua¡yo permanente do processo matrimonial eclesiástico.
Por outro lado, seria muiro difícil supor que a Igceja Tridentina, ciente da
pobreza que assolava a maior parte da ColOnia, reduzisse o sacramento do matri-
mónio a condi~Yio de mercadoria onerosa, e arruinasse, por excesso de zelo o u de
ambi~, urna das principais metas da Contra-Reforma: a difusiio do casamento
sob a chancela eclesiástica. Diflcil pretender, ainda, que a Igreja dos séculos XVI
e XVII, e mesmo do XVIII, tencionasse aferir com ramanho detalhe o passado de
homens vmdo~ de longe, as vezes do ptóprio Reino, e deles exigisse copioso nú-
mero de papéiS para o efeiro de casá-los. lmposslvel, mesmo, imaginá-los em
pleno século XVI requerendo "ce rr'd- d b · '" • ·
1 oes e attsmo as paroqUias do Remo para
·
se casarem no Brasil riio logo desembarcavam no trópico em busca de riquezas e
aventuras ...
Examinamos, com efeito mais d d . .. . .
• e urna cemena e processos mqmsuonats
contra bigamos, do século XVI ao XVIII .
. l . l
do Brast 1ca oma . E, como veremos • provcmenrcs dos mais variados recanros
.. 'd b a se u tempo, os réus eram minuciosamente
argu• os so re os casamenros eferuados . 1 . d
. • me um o o nome e a morada das reste~
mun has, O 1ugat da Cetlmonia cit a . d
que Pud , d ' cunst nclas os matrimOnios, e rudo o mais
esse .un amenrar a val'd d
1 ez os casamenros e, ponanto, a "má intem;io"
93

dos acusados ao se casarern diversas vezes infi · ' · N- ,


_ . _ acze eceteszae. a.o ha nesses proces-
sos nenhuma alusao a certJdoes de barismo ou d ..
, outros ocumentos exigidos pelo
pa.roc~ cel~b~anre dos casamentos, com a única exce~áo das cerridóes de óbito do
pnme1ro c~>nJuge, senda os comraenres viúvos _e mesmo esses sáo casos raríssimos.
Para o efe1co de se casarem na Merrópole ou na Col~ · · d d
. . oma, am a que segun a ou
rer~e1ra vez, muJtos homens e mulheres mudavam de nome, apregoavam-se solteiros,
forJ.avam ~estemunh~s de .se~ estado, e lago corria 0 processo. Via de regra, sequer
sab1am a 1dade prec1sa, ltmnando-se a esrimá-la "pouco mais ou menos", ainda
que diante da lnquisi~;;áo - sinal de que certidóes de barismo náo eram docu-
mentos usuais, pelo menos até fins do século XVIII.
Casar-se no Brasil parecía ser muito fácil, excero no caso de haver norório
impedimento canónico apurado nos pregóes. Pouco sabemos, de faro, com base
nos autos do Santo Ofício, sobre o eventual pagamento de raxas marrimoniais,
mas quanro ao processo burocrático em si, bastava ao conrraenre proclamar-se
solteiro e apresentar indivíduos que confirmassem seu nome e sua versáo, e logo
corriam os pregóes e celebrava-se o matrimOnio. O exemplo de Cararina Morena
- mulher que fugira do esposo, em Málaga, e tornara a se casar com um mestre-
de-ac;:úcar em Olinda- é um, entre vários, a ilustrar o que remos di ro. Inquirida
pelo visitador, em 1593, sobre se alguém lhe ensinara que podia casar segunda vez
senda vivo o primeiro marido, respondeu simplesmente que muiras pessoas lhe
haviam dito, em Pernambuco, "que tanto urna pessoa esrava nesras partes do
Brasil, lago nelas podia casar, sem embargo de ser casado em ourra pane". 60 Mais
de ce m anos depois, seria a vez de Joáo Ferreira Matado, ferrador porcugues, dizer
que "o matrimOnio náo era sacramento instituido por Cristo, mas um meio pelo
qual se permiriam mulheres aos homens, e que se fosse sacramento náo se poderia
desfazer, e ele via que muitos dtpois dt casados st dtscasavam". Disse-o em 1715, o
que lhe valeu um processo na lnquisi~áo de Coimbra e a condena~áo ao degredo
por afirmac;:óes heréticas. Mas Joáo náo ofendera o matrimOnio com "inrenc;io
hererical", o u por dele discordar, em princípio; ao contrário, casara-SC' muiras
vezes, até ser novamente prC'SO pelo Santo Ofício: C'm 1697. C'm Casrda.. un ira-se
J. viúva Teresa, vivendo com ela alguns mesC'S; C'ffi 1708. em Abranches. casara-se
com Isabel Miranda usando o falso nome de Joáo Ddgado; e. finalmente, em
1723 ou 1724, fora recebido com D, Leonor Siqueira. em Sio [';¡ulo. ande d1sse
chamar-se Joáo FC'rreira Maia. Trfgamo inveterado, mudar.t duas \"e.zes de nome
fi
para o efeiro de se casar, C' por rres vezes o 1zera
na forma do Condl1o de Trenro.
.
fraudando a verifica.¡:áo eclesiástica que, pelo visto. nio en n.,-.m~ st"qU('t tus
merrópoles ib~ricas, 61
. lo de Catarina Morena, homens modestos
Mulhe~ts paupérromas, a. exemp M do podiam facilmente se casar, sem gran-
. Joáo Ferreua a1a •
e aventureuos, como b ,. apesar da nova disciplina matrimonial
lica~es urocraucas, . . . .
de ónus ou comp . era 0 que imped•a a 1mensa ma•ona dos
b 1 .d m T~tnto Mas, se asSim '
esta e ec• a e . ' .. d . d' entes conforme os chamou Saint-Hilaire, de
ob~ts dos mlseraveiS e os m •g ' b . •
P ' . . o ·al' S ·a p~tferencia pelo amanee amento, remtencia
connair 0 matnm6n1o ouc1 · en , l , ¡·
. • . d I · staráo aberra ao sacramento e a mora cato tea que
ao mammomo a grcJa, conre T
se buscava difundir ent!t as massas?"' . . _
ob~ts de•xavam de se casar no Brasil nao por-
A nosso ver, os segmen tos P . , . . .
r · • 1en'rentar obstáculos finance1ros e burocrancos ex•g•dos
que lhes rosse ampossave r1 •
pe1o matnmomo· • · onc1o 'al , nem muito menos por terem escolhtdo qualquer_forma
de uniiio aposta ao sacramento católico. Amancebavam-se por falta de op~ao, por
viverem, cm sua grande maioria, num mundo insrávcl e precárjo, onde o estar
concubinado era contingencia da desclassifica~iio, resultado de niio ter bens ou
oflcio, da fome e da falra de recursos, niio para pagar a cerimónia de casamento,
mas para almejar urna vida conjuga! minimamente alicer~ada segundo os costu-
mes sociais e a écica oficial. Forros, brancos pobres, mesclc¡:os, pardos, gente que
vivia acata de alguma oportunidade que !hes amenizasse a miséria, do o uro das
Minas ou do Mato Grosso, de qualquer servi~o eventual, do banditismo -por
que haveriam de casar?" hinerames, inseguros, deserdados numa grande frontei-
ra como era o Brasil da época, esses homens niio tinham escolha senáo a de unir-
se a mulheres de igual condi~iio, mulheres que "nao tinham marido", como entiio
se dizia, e que dificilmente o teriam na sociedade colonial.
A espelhar a instabilidade de suas vidas, o concubinato dos desclassificados
cm nada se parccia como casamemo ou a uniáo conjugal, conforme as entendiam
niio só a moral católica, mas as tradi~óes familiares portuguesas enraizadas na
~olonia. C~mo bem nos lembra F. Londoño, os amancebados se "aquartelavam",
pousavam um na casa do outro, senda rara a coabita~iio." E analisando as 213
acus~óes de concubinato recolhidas na devassa de Ilhéus, Luiz Mott verificou
que so~ente 21% dos c~ais viviam juntos "de portas adentro", "como se fossem
cas~dos - embora ffiUitos amancebados tivessem filhos se m coabitar. 6> Os de-
mals, na Bah1a como em outras
~ parres, eram geme errante sem pauso fixo, ou
cntao se comprimiam "em casas . '
excess•vamente pequenas para os numerosos
moradores que nc1as conviviam deit d
dos"."' A pro · 'dad ' .. a os em poucas camas, repartindo os cómo-
mrscu¡ e em que Vlvram b
íncescuosos a rel ~ . 05 po res náo raro os levava a concubinacos
• ~oes scxuars e amorosas . _ . h
segundo nos conta La d M ll entre umaos, ou entre tio e sobr1n a,
ura e eocS
ouza em seu Dtsclassificados do ouro.
E rambém entre os miseráveis, como n 1 -
. as re a~oes enrre senhores , ·
concubmatos, e até casamenros m l d' . . e escravas, vanos
' a se JsrmguJam da pro . . - d
alcovitagem, solw;áo que muiros enconr srauJc;:ao e a
d . ¿· A • M lh ravam para atenuar a pobreza ou escapar
a m IgencJa.. u eres casadas que se enuegavam a homens por dinheiro ho-
mens que alcovuavam suas esposas e filhas lh . . '
h ' m u eres que VJVJam com dais aman-
tes, omens com duas rnulheres, nada disso f: ¡ , l XV 111 mmeJro
. .
a rou ao secu o e
cerramenre a ourros recamos da ColOnia desde 0 século XVI. '
Pon;áo náo familiar da sociedade, massa anónima de de d d ..
d 1 e .. gra a os, re¡eua-
os pe os_ grupos ••m•hares e criados fora deles • ass 1· m Anr·on10
· e·
an d'd e
1 o se re1ere,
com razao, aos ~eserdados da Col6nia.67 A maioria dos amancebamenros entre
pobres e desclaSSlficados era táo precária , fluida e ,·n st ave
· 1 como a vt'd a que 1eva-
vam e~ nosso passado. Com a exce¡;:áo de poucos que viviam "como se casados
fossem , faltava ~ esses concubinaros populares náo apenas a legirimidade sacra-
mental, mas a altan¡;:a de famílias, a coabita¡;:áo e a fixidez necessárias a imagem
pública de casados. Inútil vé-los, ponamo, como casamentos livres ou de "pública
fama", supondo-se haver conjugalidade informal, ou mesmo comesta~áo a moral
da Igreja, onde só havia miséria e inceneza.

"V!VER COMO OISADOS •: AMORES PROIBIDOS, ADULTÉRIOS

A par das relac;:óes que até aqui examinamos, houve urna vasta gama de
concubinatos assimiláveis, em cenos casos, a casamemos informais. Referimo-
nos 3.queles em que as pessoas viviam jumas por anos afio, rinham filhos e agiam
como casados; casais que, emboca náo rivessem a bén~áo sacerdotal, arendiam ao
ritualismo social exigido pelos costumes ao estado matrimonial. "Viver de portas
adentro", "ter mulher na cama e a mesa", "viver como se fossem casados", a lin-
guagem popular possuía mesmo expressóes alusivas a vida dos casados. ~ cerro
que, ao rotular os casais irregulares mas estáveis como indivíduos que "viviam
como se fossem casados", a sociedade colonial parecia valorizar muito a cerimónia
da Igreja enquanto rito matrimoniaL Masé-nos possívd, de outro lado, imaginá-
los a viver como qualquer casal legicimo, urna vez que a própria comunidade
esrabelecia, nesses casos, analogías enne coabita~áo, prole e casamenro.
As siruac;:óes eram, conrudo, muiro diferenciadas. Em cerros casos, o
"concubinato" náo passava de um estágio provisório, anterior ao casamento, a
reproduzir os esponsais típicos do "casamento popular" do p~ado portuguls. No
século XVI, Diogo Lopes Jlhoa, rico mercador de ongem cnsta·nova, ¡;,,acusado
96

. . s em casamenro, e de os lanc;:ar na cama juntos, "e só depois


de receber dms pnmoh " 'blica a sua gravidez "pediram dispensa~áo do
d 3 ora estar pren e e ser pu
e m ., e d 1 e¡' a" 68 Acusaram~no duas vezes ao visitador
parentesco e se casaram na rorma a gr .
d0 Santa O "' . - por incendvar concubinatos, mas por promover casamenros
nc1o nao d' ·
. . .. d alidade ráo~somente ree nara anngos costumes
"ao modo ¡uda~co ' quan o na re , ..
. . . 'b" · E · d3 na segunda metade do seculo XVIII, na vos 11a
mawmon1a1s 1 c:ncos. am . .
. M G d as pessoas se viram denunc~adas por voverem na
dtacesana ao ato rosso, u . ~ . "G'J fi

mesma casa, esperan o
d se receberem em marnmomo
.
-
. ..
o que con urna a
., .
sobrevivCncia da coabitat;áo enue esponsais, apesar da mrerdu¡:ao ecles1asuca. Mas
náo convém exagerarmos a imporr3ncia dessas sir.ua~óes, q~e ra~~mente impl~ca:
varo "concubinato" aos olhos da sociedade. A propna Igre¡a, aloas, curvar-se-oa a
for~a da tradi~ao popular e, embora condenasse a cópula entre noivos, esreve a
julgar mais casos de "promessas nao cumpridas" - as clássicas sedu~óes - do
que acusa~es de concubinato dirigidas a esponsais. 70 No Brasil, como na Europa
moderna, a coabir~áo de noivos, ou sua ruptura pela falsa promessa, continua-
ram integrando, respectivamente, os costumes familiares e a prática judiciária da
lgreja- e só raramente se viram associadas ao concubinato. 71
Em outras situ~óes, o concubinato parecia resultar de impedimentos que,
por alguma razáo, os contraenres náo logravam superar, embora náo lhes faltas-
sem animo conjuga!, coabita~ao e filhos, urna vez amancebados. Impedimentos
financeiros, admiramo-lo, poderiam realmente complicar o casamento de indiví-
duos que, parentes em graus proibidos, náo pudessem arcar coro as dispmsas ecle-
siásticas - o que náo significa dizer, claro está, que o matrimOnio fosse sempre
caro e inacessívd aos pobres da Colonia. Entraves sociais, por outro lado, talvez
nos expliquem os poucos casos de viúvos acusados de concubinato nas devassas,
sobretudo em senda pessoas de recursos: a oposi~áo dos filhos adultos ao segundo
casa~enro do pai ou da mií.e, por estarem interessados em nio dividir o patrimOnio
famoloar coro novas herdeiros, e a tradicional hosrilidade eclesiástica e popular contra
as segundas núpcias, 71 eis as possíveis razóes para aquel es amancebamentos. E obstá-
culos 1...,;,
-o-
de variada sorte se achavam na ratz · de munos· amores e umóes· que, de
. _ modo,. rornar-se-iam casamenros: d'ovorcoa
outro · dos que, embora separados pela lgre-
¡a, nao podoam se casar pela segunda vez coro evenruais amantes· homens e mulheres
que, abandonados pelo eón¡· uge p f, · b' ' 'al
' re enam concu tnar-se a expor-se afúria inquisitofl
contra os bfgamos· homens e m lh . d .
_ é . , ad . u eres apaoxona os por indivíduos de igual cando-
~. por; m ¡a~ os; padres onconformados coro o celibato clerical ...
Em vános desses casos ralvez . .
qualquer es¡x' · d ' . na maoona, o concubinato esteve longe de ser
coe e casamento onformal, a come~ar pela aus~ncia da coabita~iío.
No tocante aos clérigos, por exemplo, emboca muiros vivessem publicamenre
amancebado~ ·:de ~or~as adentro" com suas amantes, ourros tantos preferiam vi-
ver .como a"_las10s, hm~ra:do-~e a vi~i,ra~ o u re~eber as concubinas, evitando liga mes
ma1s ostensivos. A propna le1 eclesJastlca os mduzia a usar de caurela, tolerando,
de um lado, os fornicários ocasionais e punindo, de outro, os concubinários mais
afamados, ou que calvez coabirassem. 73 E no caso do adultério,largamenre regis-
trado em todas as visitas eclesiásticas da Colónia, menos nítida era ainda a confi-
gura¡¡:áo de matrimOnios informais. Clássica relar;áo de amantes, ora imiscuída
nos amores de senhores e escravas, ora envolvendo pessoas casadas da "mesma
igualha", ricos o u pobres, o adultério náo concorria com o marrimónio, emboca
os amantes certamen re enciumassem os cónjuges traídos. Na visitado Maro Grosso,
as rela¡¡:óes de adulrério foram das mais recorrentes entre os concubinatos levanta-
dos na devassa, e na de Ilhéus, 41,5% dos homens concubinários eram casados,
informa-nos Mott. Gravitando em torno do casamenro, sem necessariamente negá-
lo, o adulrério representava para a lgreja a rela¡¡:áo concubinária por excelencia, a
mais desonesta das "conversac;:óes" sexuais que podía travar um hornero e urna
mulher, a mais grave ofensa ao sacramento do matrimónio. 75 Nunca foi, porém,
urna "uniáo" análoga ou comparável ao tstado dos casados no horizonte popular.
Esponsais a espera de benc;:áo, seduc;:óes, viúvos amancebados, padres
concubinados, adultérios, eis alguns romances da ColOnia que, cm certas cir-
cunsd.ncias, poderiam assemelhar-se a casamentos, emboca ilegais. Mas eram
raros, como vimos, os que reuniam condic;:óes para tamo. E quase todos seriam,
por ourro lado, estigmatizados e denunciados, socialmente percebidos como rrans-
gressóes da ordem moral.

VtSIBIL/DADE E ESTIGMA

Ao conrrário do que enunciamos anteriormente, a maioria de nossos hi~to­


riadores ten de a ver nos concubinatos, generalizados e nansparemes des~e o secu-
. e recon hec1'd as, aposar.. de comba11das
lo XVI, relac;:óes socialmente ace1tas . pelos
.
. . Ass1m,
religiosos e visitadores eptscopats. · rcferindo-se aos casos de v1da cm ~.:o- ,
. afi ou ue "de .táo freqüentcs que cram .
mum extraconjugal", Ca10 Prado Jr. "m q • . _
.. . ._ 'blicaos admma sem o menor~onstran-
acabaram nem se notando, e a opmlao pu. d meio de pesquisaS, como
gimento". 76 Seguindo-lh< o <x<mplo e vwfican
.
°'por . . ·
d'versas n:gióes colomals, muuos o VIU.m
·
era disseminado o concubmaro cm 1 . l l.a.~áo Mas curio-
como um hábito socia.l consagrado pelo uso e aceito pe ;a popu . '
98

. fi maram náo raro admirem que o concubinato


05 mesmos que asstm o a tr . d. ,
samenre, . d de 30 menos quando os m tv1duos eram
rovocava certo mal-estar na saCie a '
p á 1 d" t do visitador episcopal. Laura de Mello e Souza, por
fon;ados a coment -o Ian e . " M" .
"d "relaráo corrique1ra nas mas setecenusras,
cxemplo embora o const ere urna T •
' . , _r " 0 diler das resremunhas, os amas1ados pravo-
" e como tal, aceHa • aruma que, n -
• dal 'bl" bre suas baixezas a popula¡;ao murmurava cons-
cavam escan o pu tea, e so . "
rernada ... "n E F. Londoño, náo obstante associe o con~ubmaro. or~. a an~an-
'bl' " "enconrros nocurnos ou semaclandesunos , constde-
cebamencos pu 1cos , ora a .. . . , .
ra-o "1egmma
· · do pe1o cos turne e cotidianidade, ' aceito
. como alternativa va!.da de
711
uniáo, tamo pela comunidade como pelos pr~pno~. amantes. . , , .
Trarar-se-ia do "duplo padráo de morahdade por tantos atnbmdo a soc•e-
dade colonial? Moralidade laxa e flexível em rela¡;áo aos amores irregulares do
cocidiano, mas rambém hostil e acusatória quando incitada a manifestar-se diante
dos visitadores? Náo estamos cerros sobre se a ambigüidade moral da ColOnia
atingia esse ponto, embora a relativa publicidade dos concubinatos e as pressóes
do poder eclesiástico provocassem oscilac;óes nos senrimenros e nas atitudes popu-
lares, ora no sentido da tolerincia, ora no caminho da denúncia. Considere-se,
em primeiro lugar, que a publicidade ou visibilidade de várias rela~óes de mancebia
náo significavam, nccessariamente, ausencia de reprovac;áo o u de preconceito moral.
Se muiros senhores relacionavam-se osrensivamenre com suas escravas, se muitos
se uniam irregularmente a índias ou mulheres pobres, faziam-no convictos da
infcrioridade dessas moc;as "solreiras", boas para amar, indignas para se casar...
E se, de ouuo lado, muiros náo "escondiam" seus adulrérios ou romances com
mulheres de igual status, talvezlhes faltassem as condi¡;óes objetivas para ramanha
proez.a, vivcndo cm comunidades pequenas, ande nada era secreto o u podia se-lo.
Afina!, mesmo na povoada Minas Gerais do século XVlll, a popula¡;áo inteira da
regiáo mal ulcrapassava o número de trezencas mil pessoas ... O que dizer de Jlhé-
us, Cu1abá e: ourras comarcas ou paróquias coloniais, se no início do século XJX
eram 8.864 os moradores de Vila Rica? Baixa densidade demográfica, vizinhan<;a
de parcdc-meJa, absoluta inexistencia de espac;os privados, inclusive- ou sobrem-
do- . nos parcos núcleos urbanos • a e1an desum
· "dade era pratlcamente
· ·matmg(ve
· 1para
quatsquer amantes da época colonial.
E, acima de tuda como tem 'd al d
"al e. ' os sugen o em gumas passagens, a socieda e
co1om era perrenameme capaz d d. . .
__ , · d l .. e JstmgUJr entre o casamcnto e o concubinato,
y¡uor•zan o e egmmando o primciro . .
· d • estigmatizando e reprovando o segundo -
un a que wa repro~ variassc: d fo
o· . . e grau, con rme a qualidade e o estado Civil dos
amantes. ISttnguoam-sc: claramente os d d ". . "·
casa os os que VIVIam como se o fosscm •
CoN<.:UIIINAH) ~ MA'IIIIM()Nio
99

diferenciavam-se, sem hesira~áo, os esposos dos que " d · " .. ,


.. , " an avant JUntos , powavaiTl
ou entravam um na casa do ourro . O estar ¡'une " b 1 b , .
os , em nos em ra o propno
Londoño, era claro sinal de culpa: um homem e u ulh - d .
. . ma m er nao casa os, porem
habituados a andar JUntos, seguranteme "usavant mal de si"_ senrenciava a comu-
nidade.79 Ficavam codos a observar a vida alheia, a espreitar 0 vizinho, a murmurar...
Murmura~áo talvez inofensiva, só convenida em denúncia pelas pressóes que fazia a
Igreja sobre a popula~ao. Mas, de um modo ou de outro, bastava que 0 visitador
a
afixasse o monitório de culpas para que o "rumor público" viesse tona, transforman-
do-se de simples mexerico em testemunho de acusa~áo.
O concubinaco colonial encabria, portanro, urna vasta e complexa gama de
relac¡:óes amorosas, oscilando na larga fronteira entre o casamento legal e sacramentado
e o caso de amor entre homens e mulheres solteiros. Represento u, aoque rudo indica,
a principal alternativa de vida amorosa e sexual para os "prmagonistas da miséria'',
escravos, forros e pobres, aos quais o casamento era "interditado" ou despropositado,
fosse pela condi~ao servil, fosse pela instabilidade que !hes marcava a existencia. Mas
constituiu, ainda, um hábico de toda a ColOnia: de mulheres e homens enfadados no
casamento; de padres mal afeitas ao celibato; de homens de prestigio que, na fulta de
as
mulheres "brancas e honradas". uniam-se informalmente de cor: de mulheres bran-
cas, negras, índias ou mestÍ\as que, "solteiras", náo podiam encontrar marido. Resul-
tou, em grande medida, do colonialismo, da escravidáo e do racismo, a estimularem
transitoriedade, pobreza, sujei~áo e múltiplas barreiras sociais impeditivas do casa-
mento ou, até mesmo, de unióes duradouras. Resistiu aos esfon;os da lg~ja e aprega-
~ao dos moralistas, homens isolados num mundo ande era frágil a estrutura clerial.
Mas, tanto no plano moral tridentino como nos horizontes populares da ColOnia, os
diversos concubinatos raramente se assemc:lharam a casamentos livres, costumc:iros,
ou unióes pretensamente contestatórias ao matrimOnio eclesiástico oficial.

iMPORTANCIA DO CASAMENTO

MENTALIDADES CASAIJOURAS

al . _ bl' .d d das rda~óes concubinárias, amores ilíciros. fi-


Gener IZa\ao e: p~ aca a e foi ouco valoriudo na sOI.:icdade colo-
lhos ilegítimos, nem por ISSO o casamento P bé
e: sc:us dc:sccndenles. mas ran1 m nos
nial. Especialmente entre os portugueses
100

.. permaneceu, como na Península, um ide-


d . entes socJais o casamenro
ema•s segm . ' . d res""itabilidade, seguran~a e ascensao a todos
al a ser persegutdo, urna garanria e r-
os que o atingissem. fi · 1 d ·
A importincia que se auibufa acerimOnia o JCia e casamento, VImo-la
. . - bre cerros amancebados, falos que, nas emrelinhas,
nas proprJas murmura¡yoes so . . .
diferenciavam 05 casais abenc;:oados dos que VIVIam JUntos s~m se receberem na
. · •y· como se fossem casados", ajuizava a populac;ao ao constatar que
~· casais
cenos - náo esravam unidos na forma do sacramenm, em b~ra coab1Cassem, .
tivessem filhos e parrilhassem a vida conjuga!. lmpossível determmarmos até que
ponro se valorizava exaramente a cerimOnia tridenrin~ ou apenas a benc;á.o ~o
pároco _vista como um rito, entre curros, na celebrac;ao do casamenro. Mas sep.
como for, mais valioso que a cerimOnia eclesiánica era o estado de casado em si,
condi~iio honrada e venerada nas rradi~óes ibéricas herdadas pela Colonia.
Examinamos já os dizeres e juízos de vários homens do século XVI que,
embora proclamasscm seu direito aos prazeres exrraconjugais, restringiam-no 3
cópula com mulheres "solteiras", niio faltando ainda os que expressamente admi-
tiram haver pecado cm dormir com virgens ou mulheres casadas. Houve exce~óes,
sem dúvida, mas a grande maioria só considerava lícitas as rela~óes episódicas
com prostitutas ou mulheres degradadas, niio chegando jamais a defender
amancebamentos ou rd~óes duradouras com tais mulheres. Ao contrário, o úni-
co que se refcriu ao concubinato fez absoluta questiio de diferenciá-lo da fornica~iio
com mulher pública, negando haver pecado na última, mas náo "em casos de
amancebamento". Pelo visto, até homens lascivos, que por alardearem seus privi-
li!gios sexuais acabaram na teia do Santo Oflcio, julgavam 0 concubinato urna
fornic~o gravosa para suas almas, náo ousando rerirar-lhe o caráter pecaminoso.
Consider.avam-no, sím, urna fornica~áo capaz de levá-los ao inferno, e muiro
longe emveram de associá-lo a qualquer forma de casamenro. A confirmar nossa
s~posu;áo. am~s m_encionada, concubinato e matrimOnio raramente se confun-
d•am no •magmát~o popular.
f. . E,_ se, muitos foram proces sados pe la 1nqUISI~iio .. por "defenderem a
ormcafiao 'aunas o foram por elag·
d lh . . b •arem 0 casamento além da medida con ferin-
o- e pnmazm so re todos os estad . 1 . . . '
1Jém entre os réus da pnmeira
. os, me us1ve o rel1g10so. Encontramo-los ram-
visita - . . . .
casar-se do que ord d ~ao, mcnmmados por discutirem se mais vaha
enar-se pa re Erarn . . .
U claucs abanadas . d · · ' maJontanamenrc, homens pertencenres
' ou am a pequenos bu d b
lhadore• especializados od b rocratas, a vogados, artesaos e rra •·
'quase t os rancos 11
Em geral eram caudo ·• • portugueses de origem cristá-ve Ja.
S OU VIUVOS que bem h .
con ec~am a vida marital, pori!m nao
101

poucos solreiros expressaram idenrica opiniá A d. - b


, . , 0· lscussao so re o valor dos esta-
dos nao se reduz1a, portante, a mera avaliac;iio d ·A • •

. . a expenenc1a conJuga) de cada


um, mas 1mpl!cava, como veremos a seu rempo · · b
, . , um 3JU!Zamenro so re o próprio
sacer~ociO, assunto candente no século XVI em fun.;:áo da Reforma Prmestanre.
Mas mteressa-nos, por ora, reals:ar o lado popular e pragmático das opinióes, já
que se alguns defenderam a primazia do casamemo por discordarem do sacerdó-
cio o~, mais fr~qüentemente, .por reprovarem a condura de padres que maculavam
o celibato clencal, houve m unos que o fizeram por simples apego ao macrimónio
e, as vezes, aos próprios casamentos.
O mais das vezes, dizia-se que o casamenro era superior ao estado dos
religiosos, ou pelo menos igual e semelhame, emboca muicos aresrassem a exce-
lencia de ambos os estados, enquamo omros, pelo comrário, exrernassem clara
reprovac;:áo aos padres. Deixando de lado as justificativas mais sofisticadas, típicas
dos que mais condenavam os clérigos do que defendiam o casamemo, a maio-
ria dos homens enaltecia o matrimOnio porque "Deus o fizera", "ordenara", "fize-
ra primeiro"- repetindo asua moda o que ouviam em sermóes apologéticos do
matrimónio. 80 Alguns iam além, e condicionavam a superioridade ou a semdhan-
c;:a do casamento em face do sacerdócio ao "bem-viver" dos casados, fazendo ecoar,
mais ainda, o receituário da Comra-Reforma. "Mdhor ou ráo bom quanro a
ordem dos religiosos era o estado dos casados" - dizia, emre outros, o lavrador
Oiogo Carneiro - , desde que marido e mulher vivessem "bem casados", e fizes-
sem "o que Deus mandava". 81 Os casados eram para Deus táo valiosos quanto os
religiosos, afirmou a esmo um cerro Amónio Pires: os primeiros o eram como a
roma, o marmelo e as frutas que abastavam "a casa de Deus", e os segundos, como
as manjeronas e os cravos que a perfumavam 82 - frase que ouvira de um
franciscano, em Lisboa, ráo sonhador como frei Panraleáo de Aveiro. E o pobre
viúvo Bastiáo Pires, fazendeiro em Santo Amaro, afirmara que o casamento era
cerramente melhor que 0 estado clerical, já que, antes de cnviuvar. "Deus lhe
fizera grandes mercC:s", e depois, só rivera problemas em sua vida. 8 '
A "defesa dos casados" configurava, assim. um "discurso" amalgamado.
estranha composic;:áo de senrimenws e idéias nem semprc convergentes. Nelc ~
. . r lt a o"bérica devotava ao casamenro. elementos
lffilSCU am o aprec;:o que a cu ur . da
.
· · "d · > o qucstionamento d;1 pnmaua
propaganda matnmomal tn cnuna e, 01S vcus. .
que o catolicismo atribura ao estado clerical -debate erudito. c:src: úl~lmo, quC"
as de homc:ns comuns. E tam~m
por caminhos intangfveis penetrara nas convers
. . fa T ridad< ,-,m [)rus tlo caracttrls-
náo lhe faltaria certa dose de Jtr<verincll. m• oa d d 0..
tica da cultura popular. Seja como for, hostiliundo padres ou a~ra «<R o a us
102

. d d homens bem nos indica que, mesmo 110


sados a anm e esses .
por esrarem ca • . _ ralvez aí 0 fosse ma1s, tantas eram as dificu[.
. amento era va1Jaso e
trÓpicO, 0 cas , é d de que nenhum dos defensores do matrimonio
dades para conrral-lo. E se ver a . d J .
. . mento náo ma1s que ao esta o aos casados. 1550
referiu-se exphcnamente ao sacra ' ,. ,
. " · de suas faJas - ousadas, a 1as, por afronrarem a
em nada ofusca a lmporrancJa . . .
. fi ·a1 A " d dos casados" era uadlciOnalmente valonzada, e social-
dournna o ICI • or em .
·d 1 h mens da Colonia, ibéricos no ultramar. JamaiS a com-
menre recon hec1 a, pe os 0 ., . . . .
. b menros em suas conversas d1anas, d1ficdmente a Jdenrifi-
paranam com amanee a
cariam ao concubinam.
No emamo, durante a visita do século XVI sornen te duas mulheres ousa-
ram discutir se mais valia ser casado ou religioso: Beatriz Marrins, casrelhana,
esposa de um carpimeiro, que disse ser o matrimOnio superior a todos os estados
porque fora criado por Deus, enquamo "frades e freiras eram feiws e ordenados
pelos sanros e sanras"; 84 e Ines de Briro, casada com imponante fazendeiro
pernambucano, que conversando após o jamar, disse, rindo e brincando, que a
ordem dos casados era melhor que a dos padres." Nenhuma mulher fora, pois,
incriminada por "defender a fornica~iio", e apenas duas o foram por elogiarem o
casamento além da medida. O silencio feminino em assuntos dessa natureza náo
implicava, porém, desimeresse pelo amor, sexo ou casamento. Longe disso; como
veremos mais tarde, as mulheres enconrrariam seus próprios caminhos na repre-
sentacráo desses temas, e protagonizariam mesmo, ao contrário do que muiros
supóem, variados enredos amorosos da ColOnia.
Vida conjuga! e casamemo, por exemplo, eram assuntos do maior interesse
para as mulheres, embora poucas, na verdade, pudessem decidir sobre o próprio
matrímónío. No imerior das elites baianas e pernambucanas, lembra-nos Russei-
Wood, 0 momento em que mais se prestava atencráo as mulheres era justamente a
"fas~ ~asadoura"' cm senda o casamemo imporrame meio de forralecer os lacras
fam1laares e viabilizar imeres A • 1
. ses economJcos e patrimoniais. 86 Manipuladas pe 0
poder masculmo sobretudo n 1 . b
d d h ' as e asses ma1s a astadas, nem por isso as mulheres
es en avam o casamento p · d . ..
13 15 · ressiOna as socialmente para "tomar estado lago
aos ou anos," as mulher d e 1' . d
es a o oma, como as da Merrópole desde ce 0
se apavoravam com a possibilidade d ~ ' .
risco de ficar soheironas e e nao se '.asarem: se bem-nascidas, cornam 0
• se modestas, ficanam " 1 · " da a
carga depreciativa . . mesmo so re1ras , com to
que 1mp1lcava ess E ·
social, as mulhcres 0 - . e termo. • de alto a baixo da hicrarqula
ao poupanam esforc 05 · . ém
lcmbrar, deviam ser "da . T para arranJar mandos que, conv
mesma Igual ha".
103

Her~ns:a ~or~uguesa que bem se adaprou a armosfera do trópico, a magia


amorosa f01 a pnnctpal arma utilizada pelas mulheres no campo do erotismo, do
afeto e, certamen te, do casamenro. Orac¡:óes amarórias, sorrilégios, canas de tocar,
nada disso faltou ao arsenal feminino nos embates amorosos da Colónia, inclusive
na difícil rarefa de arranjar marido - o que muito rendeu as "feiriceiras" que
Portugal degredava para o Brasil. 88 Maria Gon~alves, conhecida na Bahia por
"Arde-lhe-o-Rabo", era urna, entre curras, que atendía as casado u ras da Colónia,
ricas ou pobres, em traca de dinheiro e azeite. Punha-se a meia-noite no quintal
com a "cabec;a para o ar", nua da cintura para cima, e clamava pelos diabos; só
depois de com eles tratar, embrulhava uns pós que deviam ser jogados pelas clien-
tes no futuro marido ... 89 Domingas Brandoa, por sua vez, adivinhava casamencos
utilizando urna vassoura, que vestia "com saia e sainho", e invocando Barrabás,
satanás e ourros nomes.'J0 E, assim como essas, muitas omras faziam oras:óes em
favor de santos, da Virgem e dos diabos, atendendo ás mulheres- mas também
a homens- sempre dese josas de casar ou, pelo menos, conquistar amores.
Em terca táo avessa a família, náo faharam assim o reconhecimenro, o
elogio e a busca angustiada do casamenro - faros táo corriqueiros na ColOnia
quanto a generalizas:áo dos concubinatos. Estamos longe, também nesse terreno,
do absoluto desregramenro que supostamenre marcara nosso passado.

CASAMENTOS E BIGAMIAS: DIFUSÁO POPUUIR DO MATRIMONIO

Apesar das enormes dificuldades que o colonialismo e a escr~vid~o o~u­


nham ao matrimOnio, 0 faro é que 0 número de casamenros no Bras1l fo1 muna
superior ao normalmente suposto, ultrapassando, cm boa medida, o estreito cír-
culo das elites coloniais.
Além dos esfor~os da Igreja, sempre empenhada em promover casamemos
· ' · d o sécu10 XVI - • tamb<m o_ Estado
- a come~ar pela propagan d a Jesumca . _
ma
h "d d de pelo menos o século XVII: a~ao hmnada,
empen ar·se no mesmo senn o, es d . m ortu uesa, mas
sem dúvida rescrita aos casamentos entre brancos e onge p g . -
' l á 1 dessa posi\áo vemo-lo na n:s1st~nc1a
nem por isso irrelevante. Exemp 0 not ve: d ' . d fn:. no
. a insrala<;áo e mostelros e tras
demonstrada pela Coroa, ora c:m c:vnar ' .
. d d 1 ara os conventos portugueses - pr U-
Brasil ora cm obstar o cnv1o e onie as P . __1
' . d d ColOnia, as vezes p1cull$4U, outras wtes
ca habitual entre as familias abasta as a. . 6 ·0 por meio de dores
" s" e de frac•onar o patnm na .
ceceosas de maus casam~mo V roibiria ent detlnitivo o en \'lo
imobiliários." E. com efeno, em 17 32, D. Joáo p
TROPICO oos PECADOS
104

de mot;as para tomar háb 'ato no Reino • exceto com autoriza~áo real após minucia-
. .. . .
· •· b a vocara·o religiosa das candadatas a ser dalagencaado pelo vace-
so mquento so re ,. . . . , . .. . , . ..
· ¡ d s Por 1·ronia do destmo caberaa JUS!O ao celebre rea frearauco
re1 e pe os governa ore . •
o onus de semelhante decisáo.
Empenhada em povoar a terra "com gente principal e honrada", a monar-
quía lusitana preocupar-se-ia, ainda no século XVIII, coma prolifera7ao dos. mes-
ti~os, resultado das unióes irregulares e, aos olhos da Coroa, fonre de mstabaladade
edesordem social. O mesmo D.Joiio V escreveriaem 1721 ao conde de Assumar,
governador de Minas, recomendando-lhe difundir os casamentos: "procureis com
toda a diligencia possível, para que as pessoas principais, e ainda quaisquer ourras,
tornero o estado de casados, e se eS!abel~am com suas famílias regulares", para
sossego da Colonia e conveniencia da autoridade metropolitana. No enranro, como
náo sustavam as restri~es e estigmas que pesavam sobre os casamentos mistos, os
estímulos da monarquía se prejudicavam por princípio, limitando-se, de fato, a
incentivar o casamenro de brancos ou, no máximo, de mestic-;:os perfil hados. 92
O quadro só mudaría alguns anos mais tarde, em 1775. com o famoso decreto de
Pombal suspendendo as barreitaS que obstavam unióes legais entre brancos e índios
-medida que, de resto, só lentamente lograría algum exito.
A política matrimonial da Coroa parece ter se guiado, com efeito, por
razóes de Estado, imeresse no povoamento, manutenc;áo da seguranc;a e do con-
trole mais do que por fidelidade a ética da Contra-Reforma. Os matrimonios
inter-raciais, os casamentos que eventualmente ocorreram no Brasil entre gentes
a
de cor, pobres e indigentes deveram-se, pois, a~iio da Igreja, sempre pronta a
exahar a ~xceléncia do sacramento, perseguir os amancebados, ameac-;:ar os senho-
res q~e nao casavam os escravos, ex.comungar, intimidar e punir, indócil, as trans-
gressoes
. da moral. E nisso convém l•mb · aux1·¡·1ad a por parcela sJgm-
... rar, fo'1 muno · ·
ficanva d~ popula~iio, gente apegada família, ao casamenro e vida conjugal.
a a
Se¡ a como for • pesquisas rece n tes nos tcm
• m . d'1cad o que o casamenlO esceve
long; d~ ser um privilégio dos brancos abastados. lraci Del Nero por exemplo,
estu an o a popula~iio de Vila Rica no século XVIII . f, • b
menos freqüentes que o casamento . ' m orma-nos que, em ora
mOnios env 1 d l'b entre brancos l•vres, náo foram raros os matri-
o ven o 1 erros escravos e rd ¡·
dos entre m lh r ' pa os avres, particularmente os realiza-
u eres rorras e escravos u 11 d d . .
- rerra onde 0 vaivé d · . ratan o-se e Val a Raca no século XVIII
m as pessoas era mcenso d . . .
atingiram enormes _ • on e a prostJtlllt;áo e o concubmato
propor~oes -,o exemplo é d' 'd
mos rcr cautela nas gen 1. _ . 'sem UVI a, relevante. Mas deve-
era 1zac;:oes, pOJs, como . d' • .
taxas de legitimidade e P . nos m aca Renato Venancao, as
' or consegumte, 0 fndice de casamentos variavam muito
105

em cada regiáo: enquanto em áreas urbanas e po t , ·


. . . . . . .
s-
r uanas como ao José, no Rio de
jane1ro, a degltlmidade anng1u 24,7% durante 0 ' 1 XVIII ,
. ~ . secu 0 , em areas pobres
de ~ubs~st~ncta como San.to Amaro, em Sáo Paulo, náo ultrapassava S,So/o'"J4 _
índice II~eiramente s~pen_or ~o das paróquias européias na época moderna.
Otferenc;as
. reg10nats, u pos de ocuparáo ~ mu'1 up
,. • con¡' u n t uras, sao · 1as as va-
riáveis a constderar. quando avaliamos a freqüCncia dos casamenros coloniais.
E náo esquec;amos, amda, do empenho efetivo das Misericórdia.s em dotar donzelas
órfás ou carentes de recursos a fim de arranjar marido de boa cepa. A Sama Casa
da Bahia, por exemplo, logrou reunir, entre I710 e 1720, um volume suficiente
de dotes para casar centenas de mo¡;:as pobres, filhas de sócios modesws, enjeita-
das da Misericórdia e jovens do seu retiro 95 que, de outro modo, engrossariam as
fileiras de amásias e prostitutas coloniais.
Masé novamente no reino dos bígamos, incriminados ou processados pelo
Santo Ofício de Lisboa, que encontramos o maior indício da relativa "popularida-
de" do casamenro no Brasil coloniaL Na visita do século XVI, das 35 pessoas
acusadas por bigamia, isto é, por se casarem mais de uma vtz na igrtja. stndo vivo
o primeiro cOnjuge, mais de 25% se compunham de forros, homens sem ofício.
marinheiros, soldados e aré escravos índios; a grande maioria, por sua vez, incluía
trabal hadares especializados da economía af):ucareira, arresáos, vende iros e oficiais
menores da administral):áO - seror integrado, ponanto, por indivíduos que cm
regra desempenhavam ofícios manuais. Semente trés indivíduos, convém real~.ar.
pertenciam aos segmentos dominantes da sociedade nordesrina ... E, se elegermos
como universo de avalial):áo o conjunto de réus processados por bigamia, desde a
primeira visira~á.o até o final do século XVIII, nossos índices náo se alreram subs-
tancialmente: 17% de gen re abastada; 31% de pobr<S e dependenres, inclusive
forros e escravos; 52o;0 de licenciados, pequenos burocraras e, sobrerudo. nego-
ciantes miúdos e rrabalhadores manuais.
Tuda nos parece indicar que, na época moderna, espccial~e~te nos_ impé-
rios coloniais ibéricos, a bigamia tornou-se um delito "popular • lmpulsa~nad.o
,
entre outros monvos pelo d es locamento constan 1e de individuos enrr< al\::mnsula
, - d
e as possessóes ulrramannas. Separa~ao e casaas,
· esf.tcdamento d.c- ~i.mllias. . su-
pressá.o de contaros entre marido e mulher, o moderno _coloni,¡l~~mo et~sc¡ava
, , • . . l ~. 0 própno Corh:al&o Je 1r<nro,
óumas condil):óes para matnmomos uregu ares. . .
d ia aos parocos muuo cu•dado n~
como que atento aos novas tempos, recomen ar b J ) .. .
.. ndos" (ou va¡~• un os : mu1tos
celebra~áo de matrim6nios envo1ven d o vagamu d
da flxa e '"-omo slo e pc~rsas
Sao OS que andam vagando e nao teffi pousa ' d' J I'<S L'Om
, . , lher casam-se em IV'<IWS up
lntenc;óes, desamparando a pnmcna mu •
106

. · · do a primeira"." 7 Estamos longe, ponanro,


ourra, e muiras vezes com vanas, vJven . , ·¡
· · d · · cipes que repud1avam a esposa esren para,
dos Mgamos medJevaJS, os reJS e prm . A •

·
casando-se novamente, garanur a rran
smissáo do parnmomo e do poder aos her-

deiros legítimos. . . d " b d "


A moderna bigamia tornar-se-ia, asslm, um en me . e vaga un os ' ex-
- 1 siva náo necessariamente a indigentes e miseráveJs, mas aos que anda-
pressao a u , · d b d
vam vagando, migrando "sem domicílio ceno", vaivém t1p1co e o a p_ane os
colonos ponugueses e espan hóis entre os séculas XVI e XVIII. Na Metropole ou
na ColOnia, 3 bigamia conveneu-se num deliro de arresáos, mascares, l:rrados
sem posses e até mesmo homens e mulheres humildes, rodas avenrure1ros do
moderno colonialismo. Grandes senhores, mercado res e al ros funcionários, muí-
tos desses homens também náo escapavam ao ir-e-vir da colonizac;:5.o, mas dora-
dos de bens, ciosos do património, do cargo e do presrígio que possuíam, dificil-
mente se avenruravam a se casar mais de urna vez na igreja, fingindo-se soheiros
ou viúvos; podiam aré amancebar-se com várias mulheres - o que faziam amiúde - ,
mas raramente incorriam naquele deliro.
A "popularidade" da bigamia nos fornece preciosas indicac;óes sobre a his-
tória do casamenro no Brasil ColOnia. Indica-nos, ames de tuda, que o casamento
legal era mais difundido na sociedade do que parecía ser a primeira vista. Sugere-
nos, cambém, os progressos e os fracassos da Contra-Reforma no século XVI, e
sobretudo nos seguintes: progressos porque, a partir do século XVII, os casamen-
tos confessados pelos bígamos eram já, em maioria, celebrados na igreja e na
.. forma tridentina"- prova de que os casamenros "de feiro" ou "de pública fama"
estavam cm franca extinc;:áo; fracassos porque a freqüenre ocorrencia de bigamias
nos indica que em vários lugares e províncias, as rigorosas verificac;:óes recomen-
dadas por Tremo náo passavam de "letra morra".
Mas o que levaría esses homens e mulheres, já casados em outra parte, a se
exporem di ame da temida Inquisic;:áo casando-se nova mente in focie ecclesiae? Se,
como nos sugere Redondo, a mais freqüente motivac;:áo dos bígamos era a "soli-
dáo afeciva e sexual nascida da prolongada auséncia do cónjuge", 98 por que náo se
amancebavam no trópico, como faziam quase todos, arriscando-se táo-somence as
penas mais brandas da Juscic;:a Eclesiástica contra os concubinários? Mocivac;:óes
pcssoais a pane, que só um exame caso a caso nos poderia desvendar, os bígamos
da ColOnia afrontavam o sacramento do mauimónio porque cinham mesmo a
intenfáo de casar, companilhar a vida conjugal, serem reconhecidos e vistos como
c:uados. Se optassem por ''viver como se fossem casados", sendo-lhes possfvel faz~­
lo, estariam escolhendo caminho muito diferente: instável por natureza, social-
107

mente estigmatizado e, a curro prazo, mais vulnerável qu . . b' .


. . . e a propna Iga:ma.
Delito grave aos olhos da lgre¡a, a bigamia rrazia-lhes porém d
. . , a vanragem e ser
necessariamente secreta, tnVISJvel para a comunidade, desde que 0 passado náo
lhes viesse barer apana na figura de um amigo vizinho, em algurna cana ou na
súbita chegada da ex-mulher ou do ex-marido.
Se os bígamos oprassem pelo concubinato, todos na comunidade saberiam
que náo estavam casados, pois náo se teriam recebido na igreja do lugar. Manrer
segredo sobre o antigo casamento, 3.s vezes celebrado em remota província do
Reino, iludir a vizinhan<ja do novo povoado, enganar o próprio cOnjuge dizendo-
se solreiro, assim preferiam fazer os bígamos a passarem por amancebados. E náo
faltaram na ColOnia casos em que, longe de ser urna "preferencia" do rransgressor,
a bigamia resulrava de urna imposic:;:áo social, especialmente em sendo a noiva
"moc:;:a de família". Paren res pressionando homens a se casare m com jovens
seduzidas, julgando-os solreiros; homens desejosos de ascenderem socialmente,
casando-se com mulheres "bem doradas"; indivíduos ansiosos por come~arem
vida nova em outro lugar, casando-se, tendo filhos - eis a origem de muiras
bigamias.
Valorizado socialmente, difundido além dos serores dominantes da Colo-
nia, assim parecía ser o marrimónio legal no Brasil. A rransgressáo dos bígamos
náo deixa dúvidas a esse respeiro: se desprezavam o sacramento matrimonial, como
calvez o fizesse a maioria da populac:;:áo, apegavam-se demasiado ao casamenro, ao
estado e aos ritos exteriores que !hes conferiam a legirimidade social.
108

N orAS

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l. Frqrc, Gilberto. ÚJSa·gn:t" t t ·

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de que a Coroa Ponugucsa confcria absoluta lcgalidaJc aos c1samcnws n;ío ;lbt.:IH;oadm
pela lgreja. Ver Hcrcubno, A. Eswdos sobrr o msamrnto Civil 2. eJ. Lisboa, l.ivraria
Editora de Tavarc:s Cardoso e lrmáo, 1892, p. 170 e scgs. Somos de opiniao contrária, já
que pdo Alvará dc 12 de sctcmbro de 1564, a monarquia adorara as rcsoluc;ócs do Con·
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lfl')

16. Comtituipll's f'rimárm rlo Arcehispado da /Ja/Jit1. Sáo Paulo 1HSJ


paroí~. 971J. • · Livro V, ríudo XXII,

17. Idt:m, l.ivro V, dudo XXII, pad~.IJHH.


18. ApuJ Silva, Maria B. N. da. Op. ci1., p. GO.
19. Comtitui(iit's Primt'irm ... , l.ivro V, título XXIV, parág.~;. IOOO t: lOO!.
20. Silva, A. dt: Morai.~. Diáotuírio... , p. 266.

21. Almt:ida, c:.M. de. Código hlipino.... l.ivro V, dtulos XXVII, XXVIII, XXIX, XXX.
22. id., ibid., tÍtulo XXVIII. Crifo nossn.

23. Na mesma sessáo XXIV, t:mbora condenasse 0 casamemo clandestino, 0 Concilio de


'lfcnw náo o considcrou nulo, mas v;ílido, desde <¡ue fundamemado na livrc vomadc dos
conrracmcs. Embora quiscsscm 'l.dar pela auroridade paterna, os cardeais se manriveram
fiéis;\ doutrina cscoLística do matrimónio, bascada no consmms.
24. f'landrin, Jean~l.ouis. Familles. 2. cd. Paris, Seuil, 1984, p. 177.
25. Regimento do Audit<írio Eclesiástico do Arccbispado da Bahia. In Comtituiróu Primci-
ras ... , número 17.
26. Né>brcga, Manuel da. Cartas do /Jrmil e mais escritos (1549-1560). Rio de Janeiro, 1m-
prensa Nacional, 1886, p. 119.
27. Prado Jr., Caio. Formariío do Brasil contemporáneo. 17. cd. Sáo Paulo, Brasiliense, 1981,
p. 353.
28. Frcyrc, G. Op.cit., p. 414. Na dcvassa mincira de 1738, cmrcos 83 casos de concubinato
c:nvolvcndo ca ti vos, 75% corrcspondiam a rcla~óes entre scnhores e escravas. V. Costa, l.
dc:l N. e Luna, F. V. Dcvassa nas Minas Gerais: observac;ócs sobre casos de concubinato.
AMP. XXXI. 1982, p. 228.
29. Figueiredo, L. O avmo da mtmória. Estudo do papel. participafáO e condiráo social da
mulher no slculo XVIII mintiro. Exemplar mimcografado, 1984, p. 112-113.
30. Russcl-Wood, A.j.R. Fidalgos..., p. 146.
31. Constituifóes Primeirns... , Livro V, thulo XXII. parág. 988.
32. Código Filipino... , Livro V, dtulo XXX. Há remissáo as "Ordenac;óes Manuelinas". prólo-
go. Livro V, titulo 26, prólogo e parágs. 1 e 2.
33. Souza, Laura de M. e. Dtsclassifirados... , p. 153 e 156.
34. O exemplo é de Souza, Lau"' de M. e.. op. cit.. p. 154. A citl¡áo é de F"')"''. G.. op. cit.. P· 317.
35. Benci, Jorge. A economía cristá dos senhorrs no govtrno dos rscravos (1 700). S:io .Pa~l~.
Grijalho, 1977, p. 68. Segundo Boxer. "fica~se coma imprcssáo (... ).de que a prosmu~~o
de raparigas escravas pelos seus senhores, homens ou mulhc:rcs, era ma~s ~m~m ~a~~nca
ponuguesa do que na cspanhola". V. A mulher na expansáo u/mtmAnna r/Hnctt. Lisboa,
Livros Horizonte, 1977, p. 74.
36. Boxee, C. A mulher... , p. 70-71. Se náo se casasscm, mas livcsscm filhos, ficariam blo-
queados os ileghimos.
TRÚPICO DO!i I'ECADO.s

110

. ,. . rtu ¡,(1 415 _1825). Lisboa, Edi,óes 70, 1981, p. 252.


37. Boxer, C. O lmptno colomal po . gu . 1 A •emes dalnquisi.;áo. AJ\.fP, XXX:lll, 1~84,
38. Novinsky, Anita. Algreja no Brasil colonia . ¡;
p. 26-34. 'd, , 0 decreto de Pombal ( 1755) dispon-
. 414 Neste caso, consl ae·Sl: d " b 1 1
39. Freyre, G. Op. Cit., p. . . tuJ seria inabilitado, chamada e ca oc os ~u qu~ ~ucr
do que ninguém pc:rdena.0 Jta1 "' casarcom m , d'oas V. Boxcr, C. Reiarues mcwu 110
• ·
outro nome que parecer msu tos ao5) R'o de Janeiro. Tcmpo Brasilciro, 1967, p. 132.
· l · /portugub(J415-182 · 1
Imptno (O .oma . tos foram realizados na Bahia, cm 1738. cnv.olvcndo. branc~s
40. Apenas dOIS ~amemos :;se A mulha.... P· 74. Iraci Del Nero, pesquisando SI.Stc.man-
de dasse superwr. V. Bo~ : · , l XVlll chegou aconclusáo de que a ma10na dos
camente a popula\io mmeua no secu o . 1 , com pcssoas da mes ma cor. V. lraci Del
indivíduos se casava denuo do grupo socl~ ep 1 IPE/~Sl~ 1979. P· 36.
Nero. ViiA Rica.- popuiA¡áo (1719-1826). Sao au o,
41. Boxer, C. A mulh<r... , P· 74. . . ._
. A d . J A (Antoni(). Cultura e opu/(ncta do Brmd. Sao
42. Benci, Jorge. Op. en., P· 103. n reom, · ·
Paulo, Companhia Editora Nacional. 1967, p. 161. . • . .
43. Wilteke, Venincio. Atas capitulares da Província Franciscana deSamo Amomo do lklSII
(1649-1893). RIHGB. Vol. 286, 1970, p. 128-129.
44. Benci, J. Op. cit., p. 103.
45. Comtituiró~s Primeiras... , Livro l. tÍ[Uio lXXI. parág. 303.
46. Constituiróes Extravaganw do Arabispado de Lisboa. Lisboa, AmOnio Gonplves - im-
pressor, 1569, rítulo V.
47. Andreoni, ].A. Op. cit., p. 161.
48. Mauoso, K. de Q. Ser escravo no BrtJsi/. Sáo Paulo, Brasiliense, 1982, p. 105.
49. Mott, L.R.B. Os puados da família na Bahia de Todos os Santos. Centro de Es rudos Baianos,
1982, p. 16-18; Costa, l. Del Nero e Luna, EV. Devassa nas Minas Gerais ... , p. 227-228.
50. Na visita de llhC:us constam someme duas referencias de concubinato sendo escravos o
homem e a mulher. V. Mon, L. R. B. O p. cit., p. 26. Na visita mineira de 1738, nenhum
caso foi registrado. V. Costa, l. Del Nero e Luna, F.V. Devassa nas Minas ... , p. 228.
51. "( ... ) Que se nio puserem cobro nos ditos escravos, fazendo-os apartar do ilícito trato e
ruím estado por meio do casamento (... ) ou por ouuo meio, se há de proceder contra os
ditos escravos a prisáo e degredo, sem se atender a perda que os ditos senhores podem
ter... " V. Comtituiróes Prímeiras ... , título XXII, parág. 989.
52. Figueiredo, l. O avesso da memória ... , p. 99.
53. A pena máxim~ p~evista nas ConnitUÍ(j:óes de 1707 consistia e m muha, prisáo e degredo,
ou excomunhao, segundo o que parecer mais conveniente". Título XXII, parág. 982.
54. Já Caio Prado Jr. afirmava que "o maior obstáculo arealizaljáo do casamento, e mais freqüen~
s~u cwt~': Op.~cit., P· 352. Vários autores dizem o mesmo: Samara, Eni de Mesquita.
te, é 0
A~~l~b""t~(S~ Paulo, Brasiliensc, 1983, p. 52); Souu, L. de M. e. D"c/IIJJificadm....
P· ' on, ·• r=dos da famOia, p. 15; Costal. Del N. Jli/¡¡ Rica.. ., p. 33-34, etc.
111

55. Figucircdo, L. Op. cit., p. 103-106.


56. Silva, M. B.N. da. Sistema de casattunto. ., p. 114-115.
57. Id. ibid., p. 51-53.
58. Apud Costa lraci Dd N. Vi/a Rica... p. 34.
59. Silva, M.B.N. da Op. cir., p. 55.
60. ANTfiiL. proccsso 1287.
61. !bid .. proccsso 9479.
62. Segundo Eni de Mcsquica Samara, "urna parcela representativa da populas;áo permanecía
no celibato o u sirnplcsmcnrc adcria as uniócs ilegítimas, aprcscnrando urna cena resisrCn-
cia aos apdos da lgrcja cm sacramenrar cssas rdas:ócs". Op.cir., p. 44. E Luiz Mon,
constatando o prcdomínio de pardos cmre os amancebados, afirma: "Os pardos livres
cram cena mente o grupo que mais escapa va ao comrolc da religiáo, ponamo, quem mais
desprczava a moralidade impona pelo clero." Os ptcnd05 ... , p. 17.
63. Londoño friso u a iüneráncia dos mineiros pobres, rústicos cas:adores de fonunas no Mato
Grosso, como urna das causas do concubinato na regiáo. V Visita paJtoral a Sáo Luiz dr
Vi/a Maria del Paraguay en 1785. Sáo Paulo, exemplar mimeografado, p. 3. Laura de M.
e Souza associou a insrabilidade das rda¡¡:óes amorosas em Minas, rípica das popula\Óes
pobres, com a transitoriedade da ocupa\áo e da explora\áo económica regional. V. Ñ
devassas eclesiásticas: fonte primária para a Hisrória das mentalidades. AMP. XXXIII,
1984, p. 69.
64. Londoño, E T. El crimen del amor: amor ilícito rn una visita pmtoral del Jiglo XVIII. Sáo
Paulo, exemplar mimeografado. p. 9.
65. Mon, L. Os pecados ... , p. 13-14. Na visita mineira de 1738. l. del Nero e E Luna indi-
cam cerro equilíbrio entre as mancebas que coabiravam e as que someme enconrravam os
amantes. Náo esclarece m, porém, se as primeiras "viviam como casadas" o u simples men-
te moravam na casa dos amantes. Levando-se em coma que a maioria dessas mulheres
eram forras ou escravas, inclwive dos próprios mancebos, é-nos possível supor a inexistencia
de vínculos paraconjugais cm boa parte dos casos. V. Devassa nas Minas .... P· 229.
66. Souza, L. de M. e. Drsclanificados... , p. 158.
67. Souza, AntOnio Cindido de Mello e. The Brazilian Family. In Smith, T. L. (org.) Bnuil
Portrait of Half Continent. Nova York, Marchand General, 1951 - exemplar
mimeografado, trad., p. 26.
68. Primeira vúitaráo do Santo Oficio aJ parw do Bmsil- Dtnuncit~(OtJ Ja &thi" (1591 -
1593). Sáo Paulo, Eduardo Prado, 1925, p. 280-281 e 319-322.

69. Londofio, F.T. El crlmtn... , p. 6. _


70 Maria B.N. da Silva a presenta vários casos inreressantes de promessas de casamenro nao
cumpridas julgadas pela lgreja de Sáo Paulo. Op. cit .. P· 89- 97 :
. . . . hisroirr Jr Jnluctrtm '" IAN[.N«i« ( 1676-
71. Phan, Marie-Ciaude. Lrs AmouN 1/Ttrmts, . . . 1 86 78 Em Portugal.
1786). París, Centre National de la Recherche Sclennfique. 9 ' p. .
" . va nrc" de 16 de julho de 1540 rnandou f.1Zcr dcvass;Js pdos juízos de
urna le• exua ga. fi d d brir homens e mulhcrcs «.JUC mantiwsscm rda')üc~
mdas as cidades e Vllas a 1 ~ e_ esco r·cebido a dispensa legal, mcsmo <.Jllc c.Hivcssc ~ 1
sex.uais com paren res mas nao uvessem c.: • . •.
combinados para se casarem. Apoiando a lgrcja ~a lu~a conr~a c.spt~~ls.'us Clltrc ~J<HL'Iltcs, e,
ainda, contra a coabha~táo de noivos, o Esrado. Jam;us u amm!lar~,l .1 concubmarns. Ver
. Asd ru'ba1A. d·e.
AguJar, e.nmeS e deliws scxuaJS, cm. Ponug:llna
. • epoca das Ordcna')ücs.
9 N . . .
Arthivo át Mtdicina Ltgal 1930, separam dos nurncros 1 e 2, p. 2 . ~> c~t.tnw.' dn-nos
Hcrculano, "os pais dos comraenres náo duvidavam de manrcr na propna h:Jlm;u;:lo 05
filhos casados por este modo". Op. cir .• P· 178.
72. Métral, Marie-Odilc. Lt mnringt; lts hlsitations tlt I'Occidmt. Paris, Auhicr, 1977, p. 49.
A moral erina considerava as segundas núpcias urna cspécic de adulrério. A vi uvez, por
seu turno, expressava para os teólogos urna castidade de segundo1 caregori;l, :Uds da vir-
gindade, acima do casamento.
73. Mais da mecade do clero de Ilhéus vivia amancebado. V. Motc, L. R. B. Os pcc;ldos ... ,
p. 20. Sobre concubinams e filhos de padres na ColOnia. Lcwcowicz, Ida. A fragilidadc
do celibato. In Lima, L. L. da Gama. Op.cit., p. 55-68. Sobre cautela dos p:tdres, V. Cmu-
titui¡órs Primtims do Arcrbispadu da Bahía (Livro V, IÍ!ulo XXIV, par;ígs. 994-J 001) e
Silva, M.B.N. da, op. ci1., p. 42.
74. Respeclivameme, Londoño, F. T., El crímrn.... p. 9, e Mou, L.R.Il .. op. ci1 .. p. 14.
75. Desde o Concilio de Tremo, pelo menos, punia-se com mais rigor o concubinário casado cm
rda~ao ao sohciro. Idem nas Constitui~Oes de 1707, Livro V, título XXII, parágs. 980-982.
76. P,.do Jr.. C. Op.ci!., p. 353.
n. Souz.a, L. de M. e. Drsclassificados... , p. 160.
78. Londoño, F. T. El rrímrn..., p. 9, e Visita pasrom/..., p. 22-23.
79. Londoño, F.T. El crímrn... , p. 6.
BO. Primtira visita~áo do Santo Oficio Os pnrtts Jo Brasil- Dtnundaróes de Ptrnambuco
0593-1595) Sao Paulo, E~uardo Prado, 1929, p. 176-179 <394-395. Confissóes da Bahía
0591-1593). Rio de Janeuo, F. Briguel. 1935, p. 219.
81. Primrirttvisita¡iio... Conforórsdrl'trnambuco(/594-1595) Re ·r, U . 'd d F d al
de Pernambuco, 1970, p. 90_9 1. · Cl e, mvers1 a e e er
82. ANTTIIL, proce.,o 6361.
83. Dmunciaróts dr Prrnambuco, p. 346- .
347
84. Conjissórs dr Prrnambuco, p. 42-43.
85. ANlT/JL, procc:sso 1332.
86. Russei-Wood, AJ.R. Women and So . .
Studirs, n. 9 (1) 19n. p. 13. CICif In Colonial Brazil. }ournal of Latín Amrrican

87. A idade ~úbil era de 14 anos para o homem • .


Apesard1uo, entre 05 Rculos XVI XV e l2 para a mulher, no direíro canon1co.
puberr¡lirio". V. Flandrin J L. O e. 111 ncnhurn moralista recomendo u o "casamenro
' · p. en. p. 187.
CoNCUIIINA'ItJ 1·. ·"'' IIU.\HlNitJ
113

88. Souza, L. de M. e. O diabo e a l(rra de Santa Cr s~ p 1 C .


1986, p. 229 e sep. uz. ao au o, ompanhla das Letras,

89. Denunciariie; dt1 ilahia, p. 278~280.


90. DenunciarOn de Pernambuco, p. 121 ~ 122.
91. Sobre a ~roibi~ao r.tgia de se fundarcm conventos fcmininos no Brasil, V. Silva, M. B.N.
da. op. cu., p. 23. Sobre obstácul~s impostas ao envio de donzelas para conventos ponu~
gueses, V. Russcl~Wood, A.J.R. F1dalgos ... , p. 136~137. Sobre imeresses das elites em nio
casar filhas, wrnando~as freiras, V. Soeiro, SusanA. The Social and Economic Role of the
Convent: Women and Nuns in Colonial Bahia, 1677~1800. HAHR, v. 54, n. 2, maio~
1974. p. 219.
92. Figueircdo, L. Op.cit., p. 106-108.
93. Costa, lraci Del N. Vi/a Rica... , p. 34-35.
94. Venáncio, R.P. Nos limites da sagrada família. In Vainfas, R. (org.) História e sexUillidade
no Brasil Rio de Janeiro, Graal, 1986, p. 115 e segs.
95. Russel-Wood, A.J.R. Op. cit., p. 144.
96. Ricardo Garcia Cárcel considero u a bigamia como u m rdlexo da mobilidade das popula~
~óes características das sociedades européias do Amigo Regime. Bernard Vicent,
relaüvizando a qucstáo, afirma que a grande mobilidade populacional na Espanha, por
exemplo, em rela¡¡:áo a Fran~a, correspondía urna tendéncia mais acentuada para a biga-
mia. V. Discussion. In Redondo, A. (org.) Op. cit., p. 161-162.
97. Apud Garcia Cárcel. R. El fracaso matrimonial en la Cataluña ... In Redondo, A. (org.)
Op. ciL, p. 125. Na mesma disctmion citada. Redondo ponderou que, ames mesmo do
Concílio de Tremo, vários estatutos sinodais dos anos 1530-1540 recomendavam o mes-
mo, revelando urna tomada de consciencia da lgreja a respeito do moderno "vagamundar".
Id. ibid., p. 162.
98. Redondo, A. Les Empéchemems au mariage et leur transgression dans I'Espagne. In -
(org.) Op. cit., p. 44.
PATRIARCALISMO E MISOGINIA

Em ma cosa cada um ; rú .. E com muito


mnir mzáo podemos dizer que o marido tnn
servidáo rm sua mulhtr, porque /he usa de todt,
sua subrtáncin, honra t founda, e /he obedrct
em htdo.
)oáo de Barros. Espelho dos casados. 1540

A naturezn humana ; uma mu/Jur possuú/a


ptlo Diabo.
Arnauld. Segunda apologia de Jansenius.
Século XVIII

FAMIUA E ORDEM PATRIARCAL

CONTROVI!RSIAS

O predominio da "familia patriarcal" na sociedadc brasilcira, desde o século XVI


até pelo menos o final do XIX, tem sido alvo dos mais privilegiados por parte de
nossa moderna critica historiográfica. Dirigindo-se especialmente a Gilberto Freyrc,
a
mas também chamada "hisroriografia tradicional". diversos estudiosos rcconrc-
menre dedicados a pesquisa ou arellexáo sobre a familia no Brasil t~m rcssaltado
a obsolesc~ncia do modelo patriarcal enquanro elemento de comprcensáo de nos-
so "passado familiar". Objeto essencial dessa critica é o suposto "esrcreótipo" da
familia numerosa, composta nio só do núcleo conjuga! e de seus filhos, mas
da vasta gama de criados, patentes, agregados e escravos, submetidos todos ao
poder quase absoluto do chek da casa- a um só rempo. marido, pai e patriarca,
verdadeiro dominus da casa-grande.
""
. S, io Buarque de Holanda, para quem a
. é is extenSiva a erg 11 d. .
A cr lnca ' P0 ' d adapra~áo do ve 10 JreHo canónico
,. . 1b 'leira resulcou e urna , - , .
fam1ha pamarca rasJ b, . longo de inúmeras gera<;oes, a reahdade
'd Península 1 enea ao .. 1
romano, mann ° na d'l d e "o círculo famd1ar e, com e e, a autori-
d lanrac;óes, 1 atan o-s , . "
escravocrata as P . . "E ,deo be m caracrenstJco , prossegue o au-
d d . d
0
patrr fomzbas. sse nu .
a e 1mensa odelo da antigü•dade, em que a própria
" do se comporta como seu m . 1d , . .
mr, em ru . d fi ¡ acha esrreiramente vmcu a a a 1dé1a de
al família denvada e amu us, se .
P avra ' filhos sáo apenas os membros hvrcs do vasto
escravidáo, e em que mesmo os J "1 A '1 . . ,
. d patriarca (... ). na oga, e SUJelta a mesma
carpo inteiramenre su bord ma os ao b d .
,. ' . - d e mília colonial presente na o ra e Caw Prado Jr.:
crmca, sena a concepc;ao e IJ . , 1
.
estreJtamente · 1ada a, escravidao ' ao poder senhonal e.a popu
vmcu . . osa casa-grande
. pe10 auror como "esco la de vícios" • em razáo
- vasta . . das IIHIInJdades entre bran-
cose escravos e dos desregramencos sexuais que ah tmham lugar. E~1bora rcprove,
a"mo da Jesumca
· , · "' o am bien te imoral da casa-grande, . em rudo diStante
- de. urna
.
"virruosa" ordem familiar, é a família patriarcal que Caw Prado supoe ter ex1sndo
em nosso passado, ao menos enrre os poucos que logravam se casar na sociedade
colonial.'
Masé sobretudo contra as idéias de Gilberto Freyre e, em menor escala, de
AmOnio Cindido, que nossa moderna historiografia dirige sua crítica. Contra
Freyre por ter confundido, na idealizas;ao que fez da casa-grande, a família senho-
rial nordestina -larifundiária e escravocrata- como conjunto múltiplo e dis~
tinto dos núcleos familiares de ourras camadas sociais e regióes e, ainda, por ter
exagerado a autoridade marital e a submissao da mulher na sociedade colonial.
Contra Antonio Cándido, por lhe ter seguido o modelo, ainda que com mais
sistemática e nao poucas diferens;as. Trata-se de se u clássico ensaio de 1951, "The
Brazilian Family", ande a família colonial nos é apresentada em termos de urna
estrutura dupla: "um núcleo central, legalizado, composro do casal branco e seus
filhos legítimos, e uma periferia nem sempre bem delineada, constituída de escra-
vos e agregados, índios, negros ou mestis;os, na qual esravam incluídas as concubinas
~o ch_efe ~ seus filh~s ilegítimos", além da vasta gama de marginalizados que,
pors;ao nao-famd•ar da sociedade, subsisria nas franjas da ordem patriarcal. E, a
semelhans;a de Freyre, também Antonio Cándido acenruou a relativa inferiorida-
de da posis;ao feminina b ·d . • ·
'su veru a ocasiOnalmence por adultérios, pela gerencia
dos trabalhos na casa-grand 1 'b' 1 ' "1
. _ e, pe a su Ita e eva~áo de herdeiras ou viúvas a Vltl
cond•s;ao de mandantes-'
Nossa recente historiogr fi · . d
1 · l . a la onenra sua diScordáncia com relas;áo ao mo e-
o patnarca a parur de dais ei l
xos, nem sempre excludentes. Em primeiro ugar,
117

com base e m_ p~squisas sobre a estrurura populacional, familiar e domiciliária no


passado b_rasJ!eJro: al~~ns autores tém aponrado, com razáo, a exisréncia de nu-
merosos tipos de fan11ha o u domicílio, em nada parec'd e '1' .
1 os coma Iam¡ 1a patnarcal
.· " , . ,
e escravocrata descuta
. .
pelos classJcos . Eni de M . Samara, por exemp lo, aurora
de um esrudo p10ne1ro nesse campo, verifico u que durante 0 século XIX somenre
z6o!o dos domicílios de Sao Paulo apresenravam características da família "extensa
ou patriarcal" ..~ lra~i Del N ero Costa, por sua vez, consrarou que, no alvorecer do
século XIX, V da R1ca centava com várias formas de domicílio, desde 05 "sin ula-
res" aos "múltiplos", incluindo es res últimos a coabita~áo de vários núcleos :ami-
liares. 5 E, resumindo esse ponro de vista e m crítica a Freyre e Cándido, Mariza
Correa afirma que "a família patriarcal pode ter existido, e seu papel ter sido
extremamente imponanre, apenas náo existiu soz.inha, nem comandou do aho da
varan da da casa-grande o processo total da sociedad e brasileira" .r.
Nesse sentido, discorda-se basicamenre da generaliz.a¡;áo da "família pa-
triarcal", exclusiva das elites agrárias, e acenrua-se, por outro lado, a relativa an-
rerioridade da "família nuclear", e m várias regióes, e m rela¡;áo ao processo de
urbanizac;áo e as "transformac;óes burguesas" acorridas no Brasil a partir do final
do século XIX. Reproduz-se, nessa crítica, náo raro intencionalmente, a perspec-
tiva de Peter Laslett e do chamado "grupo de Cambridge", que desde 1969 ques-
tionaram a domináncia da '1amília extensa" no passado euro pe u e verificaram que
muito antes da Revoluc;:áo Industrial a família nuclear predominava em vastas
regióes da Inglaterra e da Fran~a. 7
O segundo eixo a que nos referimos consiste numa aproximac;áo, mais ou
menos explícita, entre a crítica da família patriarcal e o quesdonamento da sujei-
c;áo da mulher ao poder masculino. Esboc;a-se, portanto, náo urna tendencia de
negar ern absoluto a opressáo das mulheres na ColOnia, mas sim a de matiz.á-la,
restringí-la a certas mulheres de elite enclausuradas pelos esposos, re~sahand~-se
por ourro lado, as rebeldías e transgressóes femininas, a eventual ascen~.ao de m un~
mulheres ao governo doméstico e, sobrerudo, a relativa "liberdade em que va-
viam as mulheres nas camadas populares da sociedade.'
. d d srram em face do modelo pa-
0 ceric1smo que os estu os recentes emon
triarcal, a descoberra de outros ripos de família que náo 0 da casa-grande, as
,. mulheres desempenhavam em
observa~óes sobre a variedade d e papeiS que as h .
'b . ~ . t para 0 avanc;o dos con eclffi('n-
nosso passado, rudo isso contn ua ereuvamen e od
. 1 b '1 . p ce-nos conrudo, que a m erna
tos acerca do período coloma rasa e1ro. are ' _ .
. em numerosos aspectos, nao rcstste
crítica ao nosso antigo patriarcahsmo, carrera . ~
l maneira com que munos veem a
a urna avalia<;áo de conjunto, a comec;ar pe a
.. , fl'
~~~m=
· d
·
fi
.
1" de Gilberw Freyre e ourros historiadores. É certo gue a maio-
m a impord.ncia da família patriarcal na Coloma tend<:u a
na os que a 1rmara . , . d
incluir entre seus rral,fOS característicos, o copioso numero de cna os, escravos,
ados submecidos J. auwridade senhorial. Masé igualrnen-
parenres po b res e agre g . , . . . ,
re cerro, por auno lado, que nenhum deles identificou finm~lfl patnarut! e ~mu!ia
exunsa, já que a dimensáo dos lares, em si, em nada !hes _'rnporrava considerar,
a
salvo como indício do poder patriarcal. É flQ(;áo de famíha enquanro parenrela,
rede de poder e dependencia que se refere Antonio Candido quando discrimina o
núcleo e a periferia da família patriarcal, jamais a esrruturas domiciliárias. E até o
próprio Freyre, a quern se arribui um particular apre~,fO pela família patriarcal,
sequer negou a eventual ocorrencia de outras formas familiares: "devemo-nos
recordar", afirma o autor, "de que o familismo no Brasil compreendeu náo só o
parriarcalismo dominante(. .. ) como aunas formas de família (. .. ) parapatriarcais,
semiparriarcais e mesmo antipatriarcais". 9 Nenhum exclusivismo, portanto, se
conferiu a família patriarcal na ColOnia; nenhuma énfase, repitamo-lo, foi dada
ao número de moradores em cada domicílio, mas táo-somente acentuaram-se as
estrururas de poder que noneavam a vida social da ColOnia, hisroricamenre liga-
das a escravidáo, aprepotencia senhorial e as rradic;óes culrurais ibéricas.
Se as famílias coloniais eram mais ou menos extensas, se numa dada habi-
ra~áo moravam poucos indivíduos ou dezenas deles, eis um dilema de pouca rele-
vancia nos trabalhos de Freyre e Cindido. E quer-nos parecer, ainda, que a maior
ou menor concentra\áo de indivíduos, fosse em solares, fosse em casebres, em
nada ofuscava o patriarcalismo dominante, a menos que se pretenda que, pelo
simples fato de náo habitarem a casa-grande, as assim chamadas "famílias alrerna-
tivas"to viviam alheias ao poder e aos valores parriarcais- o que ninguém seria
capaz de afirmar seguramente. E mes m o no tocante a Europa, náo estamos cerros
de que. o predomínio da "família nuclear" constatado pelos historiadores de
Cambndge em seus estudos sobre o Antigo Regime significa, por exemplo, que já
antes do século XVIII predominava urna sociabilidade conjugal e individualista
nas familias ~n.glesas ou francesas. Pelo contrário, náo obstante os esfon;os das
Reformas rehgJOsas em valorizar o núcleo conjugal, encarcerando os indivíduos
na célula doméstica, durante muito tempo as sociabilidades familiares mal se dis-
unguoam dos la~os de vizinhan~a comunitários .. 'bl' .. e · d'
. . • e pu 1cos , conrorme nos 10 J-
ea a obra pooneora de Phillipe Aries."
Eixo fundamental das rela~óes f. l C t· . .
. am1 1ares na o oma, o patriarcalismo seria
antes urna grande bandeora dos moralistas da ép d l'á
oca mo erna, os mesmos, a 1 s,
119

q ue defenderam a excelencia da família con¡· ugal p d .


. . . , . ara 05 pavos a cnsrandade
Parriarcahsmo conJuga! e m1sogmo: nova leido mund d ·
· · 1 . 0 rno erno, que as rrans-
gressóes femmmas onge es{Jveram de negar.

fATR!ARCALISMO: GENLAUJGIA E MODERNl/JAIJL

Em países católicos ou prorestanres, a defesa do casamenro e da vida fami-


liar esreve associada, desde o século XVI, aapologia do parriarcalismo e da socia-
bilidade conjuga!. "Quando os moralistas franceses ou ingleses falavam da fami-
lia, náo conheciam senáo u m tipo" -lembra-nos Jean-Louis Flandrin: a família
conjugal, incluindo os criados domésricos. 12 Trarava-se, com efeiw, do "modelo
monárquico de familia", propagandeado pelos religiosos modernos e, ainda, pelos
poderes reais, ambos empenhados em purificar a massa de fiéis, subordinando-a
ao Estado e aos poderes eclesiásticos nos mínimos deralhes do cotidiano. Objetivava-
se, diz-nos Pierre Bérard, romper as solidariedades comunitárias, extirpar os cos-
tumes "profanos" que as legitimavam a margem dos valores oficiais e isolar os
indivíduos em face do poder: "aos lar;os horizonrais que alimentavam as solidarie-
dades comunitárias deviam suceder relar;óes venicais unindo cada um dos fiéis a
u m Oeus transcendente", L\ associado, e m maior o u menor grau, a figura mdo-
poderosa do rei. O refon;o da familia conjuga!, microcélula da na,áo e do ecúmeno
cristáo, a conversáo de cada pai em monarca e "sacerdote" doméstico, a
instrumentaliza\3.0 das comunidades em favor das modernas estrU[uras esrarais e
eclesiásticas- incurindo-lhes o zelo pela "nova" pastoral- eis a esrrarégia polí-
tico-religiosa adorada pelos poderes ocidentais.
Parriarcalismo e família conjugal jamais se excluiriam, ponanm, na esrra-
tégia veiculada pelas Reformas e pelos Estados europeus. E, longe de ser novo, o
modelo familiar monárquico deitava raízes nas amigas rradi\óes e no di~Ho ro-
manos - profundamente valorizados pelos modernos juristas e hum,a~lstas. da
época-, bem como nas concepr;óes judaico-crisrás da família, com _a umca ~~fc-
renr;a d e que, para os apóstolos, a ..socia
· b'l'd d "
1 1 a e con
¡'ugal sempre lora o nucleo
familiar por excelencia, exduindo-se as concubinas, mas nem se~prc os escr-J.vos
e cna· d os. " Vós, m u lheres, sUJeltai-VOS
· · · a vossos maridos"·• "vós ' hlhos, sede obe-
., ..
.
d lentes h " " ó obedecei a vossos senhores • ¡a
a vossos pais no Sen or ¡ v s, serves, .
e · (5 22· 6 1 5) 'Tksde a ongem
pregava Sáo Paulo na famosa Eplsrola aos Er~s1os • • ' ' · . . . . ..
do cristianismo a família era considerada urna monarquia de dm~no dlvmo -
lembra-nos, urna vez mais. Flandrin. 14
TRÚI'ICO Dm PECADo~
120

ProteS[antes ou católicos náo fizeram mais que difundir antigos pr~c~itus


, ·1· coram em rudo auxiliados pelos poderes CIVJs de
sobre a mora 1 ram1 1ar, no que 1 ~ , • • ,
r •· ¡,¡ re¡· a a propaganda da famrba, lllerente a pasto-
roda a Europa. Nos pa ¡ses r1e1s g . . A • _

ral tridentina, desenvolveu-se por meio do refon;o ao dJreJro canonJ~o-romano,


•· d d listas e sobretudo, de sumas e manuaJs de confls-
do sermonariO e pa res e mora • . . , .
rganizado nesscs texros 1mphcava, se m duv1da, cena
sáo. O rastrear d as e u1pas o ". " , . .
.
h1erarqu1a· d familiar que de u m lado, 1solava os nucleos COllJUgaJs
e urna or em '
da coletividade _privatizando-os, individualizando-os-, e de out ro esrabele-
cia direiros e deveres recíprocos para rodas os familiares, inclusive criados sob o
governo absoluto do pai, simulacro do rei. Todos lhe deveriam _obedecer, respeitar
e honrar, cabendo-lhe, em contrapartida, zelar pela educa10ao dos fllhos, pela
subsisténcia da casa, pelo bem-viver da esposa e pela austeridade moral de quanros
vivessem sob seu bastáo. Poder e obediencia, respeito e sujeis;io, os manuais de
conflssao dos séculos XVI e XVII estabeleceram para os sentimentos domés-
ticos urna ética e m que o verbo amaroscilava entre o governo paciente, racio-
nal, e a submissáo conformada, humilde. Amizade entre marido e mulher-
nunca paixáo - , zelo paterno pelos fllhos e respeito dos últimos pelos pais,
eis os significados do amor familiar para os moralistas católicos, "homens de
corac;:áo seco". 15
Monarquia patriarcal de direito divino, a moderna família conjuga! da
Contra-Reforma seria obviamente misógina. "Em fins do século XVI", escreve
Bérard, "o que aparece com mais pertinencia no discurso erudito sobre a mulher
é o considerável reforc;:o das imputac;:óes misóginas." 16 Misoginia antiga, típica da
cultura ocidental, que pouco a pouco transbordaría os limites do saber erudito e
invadiria a cultura popular, frutificando melhor onde já os costumes nao demons-
travam grande apre10o pela figura feminina.
Na Península Ibérica, náo obstante a forre tradi,áo misógina- legado de
romanos e mauros - , póde florescer urna importante poesía trovadoresca nos
sécuios XII e XIII: canto de amor a mulher inacessível, esplendida dama, "senhor
fremoso" a quem os menestréis palacianos rendiam a homenagem dos vassalos. 17
Em Portugal dos quinhentos, o amor cortes nao teria mais lugar... A partir do
século XVI. e durante mais de cem anos, os poetas cederiam espa\'O aos moralis-
tas •. aos que, tnspuados no "patrimOnio clássico" e no receituário escolástico, al-
me¡avam submeter as mulheres ao jugo dos senhores. "A mulher é a tu a courela;
unlrza o arado nela"" - eis a norma trmnrante,
· e ·
máxzma .
an[lga a .msptrar
· os
novos tempos.
l'Arit1AitCAI.J~~111 1 ,\11\lH.INI,\
121

CASAMENTO E MISot;INIA: SABERES EI\UDITOS

CASAMENTO, OI'(:ÁO MASCIJUNA lo IIAC!UNAI.

De meados do século XVI em diante, a quase totalidade dos moralistas


espanhóis e portugueses dedicar-se-ia a defender o casamemo, refon;ar a autorida-
de patriarcal~ arquitetar.a sujeic;áo das esposas- sempre suspeitas de trair, de-
sonrar e arrumar os mandos. O porruguCs joáo de Barros, autor de um livrete
elogioso ao casamenw, náo se funaria a expor, logo de início, os graves riscos do
estado conjuga!, a maioria dos quais associada 3.s mulheres: manhosas, inconstan-
tes, tolas, gastadeiras, maliciosas, hipócritas ... "Náo há víbora que renha tanta
pec;onha como a língua de urna mulher", 1'' avisavajoáo de Barros aos casadouros,
como que a repetir o juízo dos antigos padres- Crisóstomo, Basílio de Ancira e
tantos outros, que no remoto passado desaconselhavam o casamemo para os ho-
mens.20 Mas tanw o auwr do Espelho dos casados como os demais moralistas
dos séculas XVI e XVII apenas advertiam sobre os riscos do matrimonio -
especialmente se o homem escolhesse mal sua futura esposa-, e nunca reco-
mendavam o celibato, excem em caso de vocac;áo religiosa.
Seja como for, era sempre a mulher, por sua perfídia natural, o grande
perigo que rondava os homens antes de se casarem, e sobrerudo depois, a menos que
a pudessem subjugar. "Diferentes tenta~óes apoquentam o homem nas várias fases da
vida, algumas quando jovem, outras na velhice mas a mulher amea~-o sempre (. ..).
Este inimigo universal está sempre a inquietar-nos (. .. )", adverria temeroso o espanhol
Baltazar Gracián. 21 E, assim como ele, outros escreveram textos misóginos, ora defen-
dendo o casamenro, desde que se conrrolassem as esposas, ora denegrindo as mu-
lheres em variados aspecms. O dominicano Francisco Virória, célebre defensor
dos índios na América hisp5.nica, insisriria em que era impossível amulher discu-
tir problemas espirituais: "seria bem perigoso, dizia, confiar a saú~e mental ~~~
almas a urna pessoa incapaz de distinguir o que é bom e o que e mau (. .. ) .--
E Vieira, por sua vez, diría que o mal feminino come'java pela incli~a'j.iO da.s
. d e casa: " por sa1r
m u lh eres a sa1r . e an d ar d e1xo
· u Eva 0 esposo ' e por san e andar , '\
delxou
· a D eus" , perd en d o-se a s1,· a seu roan·do, a se us filhos • "e a todo, mundo(
_ .....} .-
Pouquíssimos foram os que escreveram rexws elogi~sos ~ hgura tem.mma,
·¡·d - ' isogima remant<. O ¡,.,uu/o
e mesmo esses náo passaram de pa 1 as exce'joes a m 1'
tm loor dt las mujeres, do cabo~verdiano Cristóváo da Cosrot, 0 ~ n~csmo 0 •vro
d R · · (huro frmmmo tt"' por
e Ul Gon'):alves, Dos priviltgios r prrrrogtltU'IIS qut 0 , ·
122

. . 1 s qualidades da submissáo feminina (rcca-


ái"ito... , hm•raram-se a ressa rar a ... "d d 1, .
. • . ., · ) 1 uvar cerras mulheres da Anngu1 a e e asSJca,
ro connnenCia, paCIC"DCia e a o . h
' l 1 as eram capazes de se •guaJar aos omc 1u. 11
exemplos de que pe o menos a gum
. · d s Jivros dedicados a mostrar que as mulhcrcs náo
O 51 mples aparec•mento c:sse ' . . .
. • . á · · d'ca~nos someme a armosfera m1s6gma que un.
eram 3551 m rao 1mprcsr ve1s, m '
pregnava a cultura erudita da ~poca. . .
· · 1 b¡·e 11·vo dos moralisras da Contra-Reforma conSISila, porém,
O pt~nClpa O ...
· - d a ausrcn"dade sexual e na propaganda do casamenro. Dmg1dos aos
na prescn~ao
homcns, aos poucos 1e [radas da época ' mulriplicaram-se os opúsculos contendo
ou sistematizando regras para a escolha do conjuge, o governo da casa e a
neurraliza~áo das imperfei~óes femininas, essencial para o bem viver dos esposos.
Em rela~áo a sele~áo da esposa, problema sempre mencionado, quase todos res-
salt:lvam a necessidade de escolher-se mulher igual ou semelhante no maior número
possfvel de aspectos. "Casem-se primeiro as idades, as condi~óes, as saúdes, e as qua-
lidades, e enráo casaráo bem as pessoas", recomendava entre outros o padre Manoel
Bernardes." Uns enfarizavam a proximidade erária, curros a identidade social, mas
todos insistiam na referida igualdade, prova de que náo devia ser incomum o
"easamento desigual", especialmente no tocante aidade, e mesmo em rela~áo ao
status- circunstancia ti pica dos matrimonios clandestinos sem auroriza~áo pa-
terna. Tomáz Sanchez, autor de importante obra sobre o casamenro no século
XVI, ehegou a considerar nulas as "promessas de casamento" entre pessoas de
diferentes classes, preocupado comas "desordens" provocadas por essas unióes. 26
O grande receio dos rratadisras residia, porém, na desigualdade etária, ao
que atribufam muiros adultérios e perturba~es se fosse grande a distancia entre
os cónjuges. Casamento do diabo era o da "velha com mancebo", e casamenro da
morte, o "da mo~a como velho", alirmava Francisco Manuel de Melo em sua
Carta d. guia dos clliiiiios, preocupado com a humilha~áo das esposas e desonra
dos maridos." A uniáo entre jovens, esta sim era matrimonio de Deus, dizia o
moralista, que no en tanto julgava bom o casamenro com mo~oilas, mais fáceis de
adestrar- supunha- do que mulheres já feitas. Mas que náo fossem demasiado
betas, advertia: esposa formosa, por muitos desejada, "quanto mais cobi~ada é,
menos ~ para cobi~ar". 21
Al~m de recomendarem a igualdade, os eruditos eram quase un animes cm
condenar o casamento por amor, isto ~. por paixáo e desejo. 0 próprio Pedro
~mbardo, teólogo medieval que melhor deliniu o sacramento do matrimonio,
•nclufa ~ beleza ffsica, fosse do homem ou da mulher, entre os motivos minuJ
/m,rwtts do casamento E desd •- . •
· ' e c:nrillU, com rarfss1mas cxcc~ócs, os teólogos nao
ccssaríam de divorciar do casamc:mo o amor e a se ( . 1.d d ..
.. n Jmema 1 a e, admmndo rio-
somence um bcm-querer amJsto!lo - a caritas_ . . . _ ,
- ' JamaJs a palxao. 'Ame-se a
mulher, mas de tal surte guc se nao perca por el a seu m .d .. d"·. F .
ar¡ o • IZ!a ranc1sco
Manuel de Me1o, que aconsclhava os homens a exrrav . _
, _ azarem su as pa1xoes com as
"damas , mas nao corn as esposa.~>. Mdhor seria casar-se por conveniéncia e alian-
.;:a, recomendava, f~c:l a~Js cosrumcs sociais, do que por ffiO[Ívos amorosos, semi-
memos menores, tao v10lcntos quanto fugazes. O amor sensual, pregava, termí-
nava na "posse do que se descjou"; o amor conjuga!, pelo contrário, s6 aJí rinha
infcio e resultava do len m conhecimento recíproco, da convivéncia, da amízade.
Os defensores do casamemo católico odiavam a paixáo e, seguidores da
moral escolástica, recomendavam moderac;:áo nos senrimenros e nas paixóes eróti-
cas, somenre legítimos se vinculados a procriac;:áo, honrosa para Deus, gloriosa
para o Estado. Odiavam o amor no casamemo e odiavam-no em geral: "bem digo
eu (... ) que isto no mundo que se chama amor é urna coisa que náo há ncm é.
¡;quimera, mentira, é engano, é uma doen~a da imagina~áo, e por isso basta para
set totmcnto ( ... ). É urna morte pela qual se vai ao inferno", pregava, cm 1651,
mestre António Vieira." Rematada loucura que faz perder, "náo digo a alma, de
que agora náo falo, mas a liberdade, a quierac;:áo, o sossego, o descanso e: a vida",
a condenar o infeliz 14 a andar sempre penando, fora de si, por urna ímagín~
fantástica ( ... ). Nem o nome de loucura e cegueira basta para declarar o dcsvario
de táo curioso engano"- pregara o mesmo jesuíra, em 1644. 30
Menos fiéis a escolástica, mas empenhados em fazer da família a base da
sociedade e o núcleo da religiáo, os prot<stantes - sobretudo os puritanos-,
consideravam o amor essencial para o exito do casamento: um amor especial, que:
nao excluísse a concórdia nem tampouco a sensualidade. "O marido e a mulher
dc:vc:m ter prazer no amor, na companhia e na conversa entre: si'", diría Richard
Baxter no século XVII. "Oiha pelo teu marido e tuas coisas, deixa que de seja o
véu de teus olhos ( ... ). Deixa que tua mulher seja teu último objetivo; náo penses
em que haja virtudes para além dda; aqudes que sáo pequenos .. tu os ror~as
grandes pela freqüente contempla~iío; aqueJes que sáo maiores, estoma e valonza
no grau devido" - afirmaria Daniel Rogers no mesmo século." lntroduzmdo no
· d · d fi m os costumes e condenaram
seto a conjugalidade o amor, os punranos esa 1ara . _
.d encial a auronzac;ao paterna
o casamento por mera alianc;a. E, se cons1 eraram ess ~•
<. _ ó ·u.,.s inclusive o amor cam.,, a
para as unióes, julgatiam a areo~ao entre os e n) o- • . _,.:l.s
. . d sos Náo sena ourro, :ul ' o
maoor gra~a que Deus poderoa canee er aos espo · r_ d
. . h .. luteranos" os derrnsores e um
mouvo que animaría os caróhcos a e amarem . fa .u
amor conjuga! mais intenso, distante da c11rifiiH~. por 1550 ' pro no.
TIH_)PJCO IH>'I l'l·CAl>o~
124

Q LE/70 CON]UGAL

. . , Jh do cónjuge, o discurso tridentino se-lo-ia


Misógmo no tocante a esco a ~ . . ,
. l - d 'da mariral. As rela~Joes sexua1s enrre mando e
amda, na regu amenra¡;ao a VI . ~ . ,
mulher, canalizadas exclusivamente para a procna!f~~ e ~Istas com~ sunbolo da
·- ' e.
umao corporea entre nsro e a
Igre¡'a continuaram pnsiOnelfJS da nO~JJO de debitum

. - que un
_ obnga~JaO · h am os cón¡'uges de se entregarem sexual
~
mente sempre que
. · d os um pe1o outro . Recomenda¡;áo expressa de Sao Paulo e m su a prega-
requasata
- aos conn
ifao • t'10s, regulamentada por Alberto Magno no século XIII, a dívida
conjuga! implicava, em prindpio, a igualdade absoluta e~tre os espososquanto
aos "direiros de cobran~Ja''. Mas, desde os tempos da escolasnca, fora msntuído 0
chamado "privilégio feminino" que, considerando o pudor e a vergonha naturais
a mulher, facultava·lhe 0 direito de apenas insinuar, e m silencio, seus eventuais
desejos, ficando o marido obrigado a decifrá-los e a eles atender. Já os homens,
por serem naturalmente menos inibidos, poderiam requisitar explicitamente suas
esposas para o aro sexual. A normatiza~Jáo da economía sexual dos casais implica-
va, pois, o abandono tático da "imagem pecadora" da mulher em favor das antigas
concep~Jóes sobre a passividade, a vergonha e a falta de iniciativa "narurais do
genero feminino", conferindo aos maridos o governo absoluto do leito conjuga!:
poder de requisitar a esposa conforme os seus próprios dese jos, poder de reconhece-
los- ou náo- quando manifestados pela mulher-" Por outro lado, retomando
antigas cren~Jas sobre a menor resistencia feminina aos apelas da carne, freqüentes
no cristianismo primitivo, os sábios do século XVI dedicar-se-iam a refor~Jar as
convic~Jóes morais da escolástica. Assim, os médicos renascentisras chegariam a
dizer que as mulheres sofriam de "sufocatróes uterinas" - constatáveis e m viúvas,
freiras e solteironas - , prova de que a falta de rela¡;óes sexuais prejudicava-lhes
~ ~aúde mais do" que aos homens. A natuteza pudica da mulher explicar-se-ia,
Clem~fi~a~~me • por sua maior submissáo ao desejo carnal, geradora de verga·
nhas,ambi~Joes e sentimentos culposos em relatráo ao sexo.34 Sornen re o marido,
portante, menos inibido que a esposa, e menos escravo do sexo reunía a serenida-
de necessária para verbalizar seus d · . d d' ' .
eseJos e, am a, para tscernir os alhetos.
Aprofundando as razóes dadebld d e · ·
1 1 a e remmma a partir do século X
y¡ ' a
Contra-Reforma pouco modifi . , . ,
. l . cou no recenuano escolástico das rela¡yóes domes·
ucas e, pe o conuáno, com as su · · ·d
d b mas e manuaiS de confissáo agu¡you a cunosl a·
e so re o que se passava no leito con. al 35 M . '
¡d l ¡ug · anuveram-se as proibi¡;óes ao sexo
no per ~ o m~~srrua • nos lugares públicos, nos dias santificados e obviamente,
quamo as posi~Joes contra natura .l • .
'especta meme a cópula sodomítica- ofensiva
125

a ordem, divina
.
e alheia a procriac;áo que d
b,
. .
evena anJmar os casais A d
conrroversJas, ram em permaneceram inr d' d d . · pesar as
er Ita as as emaJs posi - . .
ora contrárias J. natureza humana e J. divina . d' .. , c;oes genJtaJS,
· • ora preJu ICJJJS a reten - d A

pela mulher: a retro etznino (mulher de costas h c;ao 0 semen


. . . . . para o omem), assimilada acó 1
dos amma1s, e a rmdur super Vlrttm, JUlgada op , . pu a
. . , " osra a natureza supenor e ativa dos
machos. Para a ma10na dos teologos, a posiráo 1" d d ,
• 'T natura ' a equa a a propagac;áo
da espéc1e, aos cosrumes humanos e aos desígni
.
1 .
os ce esres, contmuou senda a
mulher dettada de costas e o homem sobre ela _ 0 d . e .
que se evena eietlvar com
animo de gerac;áo, sine ardo re. Foram raros os que com · • h l
.. .. , . . • o o Jesuita espan 0 Tomáz
Sanchez, admJttram be!JOS, canelas e JOgos eródcos no Jeito conjuga!, embora muiros
rolerassem, sobremdo. após os séculas XVI e XVII, as posi\óes genitais ilícitas _
empenhados em esrrettar as rela<;óes con¡'ugais , dese¡'osos de aumentar a popu1a~o
-
nos q~adros da legitimid~de familiar." E houve mesmo os que, como 0 espanhol
Franctsco Larraga, ~utonzaram o cono tnterrompido no casamemo, desde que a
esposa nele consentlsse, e o homem náo derramasse o semen extra vas- maneira
engenhosa de conciliar a "inten\:ÍO procriadora" e as conveniéncias do casaJ.37

A MONARQUIA DOMF.STICA

Matéria de confissóes e debates teológicos, as intimidades conjugais nao


constituíam, porém, o terreno privilegiado dessa moderna misoginia erudita;
náo mais que os conselhos sobre o governo doméstico e o cotidiano dos casados.
O pressuposto de todos os que escreveram regras para o bem-viver doméstico
residia na forre convic~iío sobre a inferioridade da mulher em matéria intelectual,
sua propensáo a gastar irracionalmente os recursos da casa, sua debilidade nas
tarefas de comando e, principalmente, sua tendencia para a infiddidade.
"Considerai todos os estragos que te m feito no mundo o pecado da desonesridade,
e achareis que as mulheres foram a origem, e as mulheres a causa", pregaria Vieira,
resumindo o sencimenro geral.'8 . .
E, levando-se em conta 0 caráter diabólico da mulher, muuo cu1dado. pa-
ciéncia e razáo devia ter o marido no governo de sua esposa, sugeriam de 'r2rias
maneiras os textos da época, ora em sermóes pregados a massa. ora em livrer~s
dirigidos as elites. Notável exemplo desses opúsculos em lin~U.l portuguesa fOl.
sem dúvida, a Carta dt guia dos casados, inspirada, como quis 0 amo~.. tanro na
. . h . dernos E, com eh:tto, abar-
sabed ona dos anugos como nos con ec1menros mo ·
cando as variadas esferas da vida conjuga!, Francisco Manod de Mdo elaborou
TRÚPICO DOS PECADOS
126

um roreiro completo de como 0 marido poderia suportar a carga que lhe, represen-
rava a esposa, submerendo-a denl!o da casa e resguardando-a, ao max1mo, do
mundo exterior.
A adminisrra~iio doméstica, a escolha dos criados, a eventual presen~a dos
agregados, rudo deveria ser competencia do marido, embora fosse plausível ~ opi-
niiio da esposa. E, sendo mulher indócil e reimosa, que o esposo evltasse diScus-
sóes, pois isso "seria conceder-lhe urna igualdade no juíw e império", riio descabi-
da quanro indesejável. "Fa~a-se-lhe cerro que a sua conta nao está o entender,
senáo 0 obedecer e fazer executar", recomendava o inflexível moralista. No mais,
evirando~se as influencias externas que desviassem a esposa do conuole domésti-
co, estariam preenchidas as condif1óes para um bom e duradouro matrimOnio.
Bastaría ao marido impedí~ la de ler- advertía - , sobre[Udo romances e comé-
dias, pois o melhor livro da esposa era "a almofada e o bastidor"; proibi-la com
suavidade de receber adivinhas, gentes exrravagantes, músicos, poetas e "professo-
res de navidades"; evitar a constante presen~a de frades dentro da casa, homens
sempre duvidosos¡ determinar o confessor certo, escolhendo pessoa grave, conhe-
cida e de boa religiáo; limitar as saídas e as visitas da esposa; evitar mosrrá-la aos
amigos; corrigir-lhe os hábitos indiscretos, o falar demasiado, os suspiros, a gesti-
cula~áo e até os risos em público, especialmente se fosse graciosa, rivesse bons
dentes, covinha na face, ecc. 3'>
J:. ceno que muicos, n:io c:io ciranicos, amenizavam as imperfeil):óes femini-
nas, ressalrando as virtudes da boa esposa, como o companheirismo, as habilida-
des domésticas, o zelo pelos filhos e mesmo a fidelidade conjuga!- se bem trata-
da no lar, e respeitada foro dele. Mas, via de regra, quando pregavam as mulheres,
quase todos aconselhavam-nas a obedecer, fugindo de conversa~óes suspeitas, evi-
tando parenres e mulheres desonestas, vestindo-se com discri~áo, recusando dádi-
vas de homens e rudo o mais que viesse de encontro ao poder marital. As mulhe-
res casadas, dizia um moralista colonial, deviam ser forres, discretas e prudentes:
em su;u c;uas, zelosas; fora delas, recatadas; e em codas as ocasióes, exemplares,
"mais prezadas de sofridas, que de agastadas (.. .)". 4"
Obedié'ncia, conformismo, medo, eis o que recomendavam os arautos da
família, nao só as esposas, mas também aos filhos e aos demais habitantes da casa.
Marrim Afonso de Miranda nao deixaria dúvidas a respeiro do poder monárquico
meren re ao pata familias. "Todo o pai de família que rem súditos a que m governe,
filhos a ~uem dourrine (... ),e mulhtr a qutm como tal tmtt (... ), deve-lhes minis-
trar Jusu~a de tal maneira que assim cumpram e guardem o que pelos rais lhcs for
mandado como s fo · · ·
' e sse um JUIZ rigoroso, sob pena de que, quando o nao fizercm
referida conformidade, fiquem obrigados a roda a ira t d e
na J . . • emor e esravor que 0
tal Ministro, Senhor, lm ou mando com efe usar."~l
Os "novas monarcas" devcriam, porém _todos ¡11 · ·
. SJSUam - atemar para
Se us deveres de soberano: guardar as obnga~óes de esposos epa· d "lh
. . 1, e ucar os 11 os,
·,nstruí-los na doutnna e tudo o maiS que cabia ao legír,·mo d .
. po er pamarca1.
Convencidos de que a fidel1dade dos homens era, além de urna obriga~ao dos
casados, a principal garanna contra o adulrério feminino, 05 defensores da família
condenaram com veemencia as liberdades sexuais masculinas. Que 0 marido evi~
rasse as "mulheres da vida" ou, pelo menos, que as procurasse sem escándalo ... Em
último caso, dizia o autor da Carta, se viesse a público a rrai~á.o do esposo, 0
melhor remédio seria desmentir os rumores, "curando-se o marido da levianda-
de", e a mulher, dos ciúmes-" Mas, caso o marido !he fosse fiel, e a pérfida esposa
ainda assim o rraísse, náo lhe restaria opc;á.o senáo matá-la, diria Diogo Paiva de
Andrade em seu famoso opúsculo ... Casamento perfeito.~3
Portugal wrnar-se-ia, pois, urna nas:áo misógina, ao menos no plano da
cultura erudita, a partilhar um movimento de idéias enrio universal, inspirado no
Direiw anrigo, nos escritos de Plaráo ou Aristóteles e na forre rradi~áo misógina
da escolástica: tradi~áo renovada na modernidade, que desde os primórdios conta-
racom a colabora~áo lusitana. Afina!, era portugués o autor do famoso De Planetu
Ecc/esiae, livro que, escrito em 1332, dedicava-se em boa parte a relatar nada
menos que os "102 vícios e delitos da mulher" ... "

CASAMENTO E MISOGINIA: COSTUMES POPULARES

IMAGINARIO MISOG!NO

·
As mentalidades populares náo fiICaram 1munes a
essa aurenrica campanha
·e · ¡
anuremlnina veiculada pelos letrados e pe os re 'gwso
¡· · s modernos. Pelo con-
. d d
tr áno, vi ram-se cada vez mais impregna as e va ore
1 s misóginos,. expressos
. d
. d de franca hosuhda e em
em ad ágios, cantigas, versos e mesmo em auru es .
1 no século XVI. e ;\s ,ezes
re 1a~áo as mulheres. Encontramo-los, porém, ogo .
a óes europtlas. o que nos
antes, tanto nos países ibéricos como em ourras 0 <; · d
. b " sobrt' os preconce1tos a
permite relativizar a dererminancia dos "novos sa eres , ¡ XIV
. .11 correnre no sccu o •
cu1tura popular. U m antigo provtrbw de Monta! ou,
128

. . "
. 1 smente doZia Qut at sa rm
.b fi me avec un coussin/croit fui jflire mal et ne fui
1 . b ¡·
somp e d L Roy Ladurie, da re a11va ruta odade dos
foit rün" _ resremunho segun ° e " , , . l
maridos no Languedoc. E Guillaume Bélibasre, o santo cataro, JU gava que
as almas femininas jamais iriam ao paraíso, excero se ant~s reenca.rnasse~ nurn
. . d · · vinham de longe, e nao obstante vanassern
corpo vinf. .. 4S ArHu es ffiiS 6 gmas e d
·~ , · gnavam residual ou prorun amente, a cultura
segundo a reg¡ao ou pals, tmpre '
popular européia. .
No limiar do século XVI. estaríamos, portanro, do ante de u m complexo
· ~ r e anrigos costumes misóginos, pulvenzados em roda
processo de mrerac;:ao en r 05 . . .. . , .
.
a Europa. e o d 1scurs0 de cunho antifeminino, herdeoro da An11guodade classoca e
· mora1en·srá, vulgarizado em escala crescente desde o final da Idade
d a reo 1ogta
Média. Quer nos vol remos para a culmra escrita dos tempos modernos, quer
nos voleemos para 0 universo popular, o que percebe mas acorrer a partir do
século XVI é um movimenro de convergencias e descompassos entre os preceitos
oficiais e as crent;as do cotidiano, tanto em relas:áo a figura feminina como no
tocante afamília, ao casamenro, a religiosidade, aos sen timen tos e as demais esfe~
ras do imaginário e da vida sociais.
Diversas manifesra¡;óes da cultura popular ibérica indicam~nos a existencia
de rra¡;os misóginos náo táo distantes do receiruário oficial. Maria Regina T da
Silva verilicou-os, por exemplo, nas imagens femininas veiculadas nos "folhetos
volantes" - diálogos, estórias e moralidades que circulavam nas cidades portu-
guesas desde o século XVI'' Nesses folheros, "expressóes vivas de urna cultura
popular e tradicional", era freqüente tratar-se da mulher, seus papéis e qualidades,
fun¡;óes e defeiros, mas ora "enalrecendo" a figura feminina, ora aviltando~a, o
rom predominante era sempre misógino. Objeto de tros:a. escárnio e crítica era o
que a aurora denomina .. mulher real"- a mulher sem virtudes, desonesta, peri-
gosa, distante do modelo que deveria guiar a conduta feminina, mulher com
quem os homens jamais deveriam se casar. Amulher "real", mulher do cotidiano,
os folhetos opunham a imagem da "mulher ideal", esposa fiel, máe zelosa e, por
1sso mesmo, valorizada e respeirada socialmente.
Já os títulos desses folhetos dáo-nos bem a medida dos contrastes: encon-
tramos, de um lado, A mulher atrevida e descarada, Malícia das mulheres, Verda-
drira malícia e maldadr
.
· da m u l''ner casada, que teve as ¿·zsptt·
dm mll l''-neres, Despzque
tas com sru mando pelo niio que rer tevar1 · ' · Disputa ¿·zvertl·,¡,a J,•¡
a ver as ¡ttmmartas, "
grandrs.
bu/has
,
qur trve um hom em com sua mul''-ner, por /he niio querer d eJtar · "'1!
fund,fhos n um calrórs velhos' et c.,. de curro, vemos Casamentoperftito, quase uma
. .
r~ploca do lovrete de Dio o p · S d d
g aJVa, egun a carta apologétiaz em fovor e defesa as
129

mu!hem. Malícia dos homem contra a bondade d lh .


' 1 as mu eres, e munos out
escritos desde o secu o XVI até o final do XVIII. ros,
Na crítica ostensiva J.s mulheres visava-se de f , lh .
, . . ' ato, a mu er do dla-a-dia a
esposa que nao obedec1a o mando, recusava a clausur d , . . . '.
• • • A a omemca, tec1a mil aru-
manhas para enganar e dnblar a VlgJ!ancia patriarcal y· ,
. ' . " . " ... lsava-se a mulher en-
quanto ser d~abobco,
. .
beata fing1da , ruína de todos 0 h
. s omens que por ela se
Perdessem. Ao mfellz mando de urna tal mulher só restava meter- lhe muna . pan-
cada, "parti-la de meio-a-meio", "quebrar-lhe u m brac;:o", "acabar-lhe a vida num
momento". No folheto Malícia das mulheres, reeditado dez vezes entre 0 sécu-
lo XVI e~~· as pérfi~'as femeas eram compara~~s sorrateira raposa, gata que
a a
a
arranha, a v1bora que morde, envenena e mara , cruel aranha "que arma fios
(... ) onde os incautos apanha". Balrazar Di as, se u autor, justificava com isso a
opc;:áo que fizera pelo celibato: _"Quem se confia em mulheres/Tem o engano na
máo/Quando o Tejo náo tiver/ Agua toda se secar/Nem no mar peixes houver/Emáo
faltará amulher/Malícia para en ganar."
Nos folhetos menos hostis, por ourro lado, prevaleciam os mesmos tipos de
conselhos, advertencias e admoestac;óes que vimos marcar a dourrinac;áo das espo-
sas pelos letrados. Dirigidos as mulheres casadas, exorravam-nas ahumilhac;:áo, a
servidáo, a obediencia, a fidelidade, a paciencia, ao recato e a rudo o mais que
delas fizessem esposas ideais, máes exemplares, e perfeitas cristás. Num deles, Con-
versafáO entre duas vizinhas... , cena mulher que reclamava dos murros e das bofe-
tadas do marido ouvira o seguinte conselho: "sofra, cale( ... ), e pec;:a ao céu que se
compadec;:a da sua infelicidade". Quem sabe assim transformar-se-iam os murros
em "doces lac;os", "as injúrias em carinhos", "e os ponrapés em afagos".

0 AVESSO DAS BIGAMIAS: F/IAGILIDADE DA MULHER E DO AMOR

Estimulada pela misoginia erudita, e alimenrando-a com a~tigos ~recon­


ceitos sociais, a hostilidade popular contra a figura feminina enraizar-se-la pro-
fundamente e m Portugal dos anos quinhemos. Náo é de admirar, porranto, que_ 0
Bras¡.1fosse, também para as mulheres, um verd adelfo
· e completo interno. Rete-
rindo-se baslcamenre elire senhorial, Gilberto Freyre conta-no~ sob~~ c~mo as
a
nenws "arranlados . n.w raro
mu lh eres eram, ainda jovens, empurrad as para casal . " . . _
.
de uo . .- ·0 fun en cv1J.ememente 1111
com sobrinha, primo com pnma, umoes cu1 · .. ~ . d
. . 1' . de sangue (... ) . Cn> as e m
pe d lf a daspersáo dos bens e conservar a ampez.t . . . .. l
" . . . " . . e - as menmas \'1\'l..tm sol a
ambiente ngorosamente patnarcal - prossegu '
TRÓPICO Dm PECADos
130

mais dura tirania dos pais _ depois substituída pela tirania dos maridos". Mo~oil.,
ou sinhás~donas passavam os dias enfastiadas, enclausur~das c~m- suas mucarnas
num autentico "isolamenm árabe'\ abrigadas a urna subm1ssao mw;ulmana
diante de maridos a quem remiam e chamavam 'senhor' :..¡ 7 . ,

Decerto que há exagero na descri~áo de Freyre, pots nem as smhas da casa-


grande, como bem sabe 0 autor, nem muiro menos as mulheres de ourras. ca~a­
das viviam na absoluta clausura aqui sugerida. Por curro lado, era fato cornqueuo
0 casamento de moc;as com menos de vinte anos, informa-nos Russel- Wood, e
raríssimo 0 de mulheres com mais de rrinta¡ após os 14 anos as meninas n5.o
mais eram vistas como "raparigas", e chegando aos quarenta, fossem o u náo casa-
das, eram tidas por "velhas"." Tudo nos parece indicar, aliás, que a precocidade
do matrimOnio feminino, "regra" vigente na Península, mas estranha aEuropa do
Norte, foi simplesmente transferida para o Brasil e, na medida do possível, adap-
tada a realidade colonial."
Seja como for, a documenta~áo inquisitorial sobre as bigamias, valiosa em
numerosos aspectos, revela-nos que as mulheres raramente decidiam sobre o pró-
prio ma[rimOnio, sobrerudo ao se casarem pela primeira vez ainda jovens, fossem
mo~as de família abastada, fossem filhas de artesáos, pequenos agricultores ou
trabalhadores livres. Na Metrópole ou na Colonia eram os pais ou familiares da
noiva e, em menor escala, o futuro cOnjuge os grandes protagonistas do acerro
matrimonial. Isabel Soares, por exemplo, era tenra menina de 12 anos quando seu
pai, fazendeiro instalado na Bahia em meados do século XVI, a entregou como
esposa a um cerro AntOnio Pais, escriváo que servia ao conde de Castanheira, em
Portugal, obtendo !icen~ do bispo para casá-la em casa e anoite- o que o Concílio
de Trento nao tardaria a proibir. Pouco depois de casados, o marido partiu em viagem
para o Reino, de onde jamais voltaria. Passados 12 anos, descobrindo que o tal escri-
váo era já casado cm Portugal quando desposara Isabel, sua familia trato u nova-
mente de casá-la, acolhendo sugestáo do bispo Pero Leitáo no sentido de uni-la
ao irmáo deste, Gaspar Leitáo. O próprio bispo encarregou-se de investigar a
situa~áo de Antonio Pais e, descobrindo-o casado, anulou 0 primeiro matrimo-
nio de Isabel, autorizando-a a casar ourra vez. Isabel se casou, viveu tres anos com
o marido e enviuvou. Novamente a familia interveio, e pela rerceira vez fe-la
casar-se, entáo como juiz Vicente Rangel. Era com ele, de fato, que vivia Isabel
Soares em 1591, ao ser acusada de bigamia a mesa do Santo Oficio. Quando
convocada pelo visitador, em 1593, Isabel tinha menos de trinta anos mas conta-
v~ já com apreciável bagagem de tr~s casamentos arranjados, u m aba~dono, urna
vtuvez e pelo menos duas desilusóes, aoque se somaria um processo inquisitorial."
Hisrória semelhante foi a vivida por ourra Isabel d b
.d B 1 L .- ' e so renome Gomes
filha do ouvl or a tazar e:rao com urna india da Bahia. Era menina muito nov~
ando seu pa1 acenou casa-la na altura dos anos 1550 .
qu . . com o mercader Henar
Mendes, c~m quem se umu e ~~~eu po: 15 anos, gerando dais filhos. Mas, como
faziam mu1tos homens da Colonia, Hwor Mendes partiu .
f . d em VJagem para Ango-
la• Portugal, nd.as e Castela e ourros lugares ' ausentand o-se por ma1s. de urna
década. Isabel Gomes er.a mulher d~ mais de trinta anos quando, novamenre, seu
velho pai resolveu arran¡ar-lhe mando: o mercador Bemo Rod ·
. " , , ngues, com quem
passou a v1ver de portas adenr:o , a u rulo de esponsais. Esrava presres a se casar,
em 1591, e certamen re se casana, náo fosse o súbito rerorno do primeiro marido,
que, ráo lago soube do casamemo, denunciou mulher e sogro ao Sanco Ofício.''
Excew pelas bigamias, rara entre os principais da tena, as hisrórias de Isa-
bel Gomes e Isabel Soares retratam perfeitamente a fragilidade dessas mulheres
de "boa família" e pais influemes na sociedade colonial: casavam-se novas e, via de
regra, atendendo ao desejo dos pais - decisivo até em segundos ou terceiros
marrimónios, ficasse a filha viúva ou a abandonasse o marido.
Os casamentos arranjados náo eram, comudo, urna prática exclusiva das
elites. Talvez em propon;:óes mais reduzidas, mas nem por isso com menor fre-
qüencia, homens humildes procuravam casar suas filhas no mesmo estilo, acer-
tando o matrimOnio das meninas sem ao menos consultá-las. O mulato Domin-
gos, por exemplo, pobre trabalhador de Lagos em meados do século XVI, foi
quem decidiu casar sua filha Guimar, menina de 12 anos, como jovem Marias
Dias, a quem acolheu em sua casa logo após a cerimónia. Escolhera mal, no
entamo: meses depois, o mos;o fugiria para Pernambuco, tornando a se casar nas
"partes do Brasil", onde passou a viver como "carreiro de bois". 52 Foi também o
pai de Maria de Oliveira, viuvinha de vinte e poucos anos, quem escolhera Joáo
Gon<;alves, mestre-de-ac;úcar na Bahia, para segundo esposo de sua filha, ele que,
para azar da mos;a, era já casado na ilha da Madeira. 53 E, assim como esses, muitos
ourros país- patriarcas de menor condis;áo- geriam a seu modo 0 casamenro
das filhas. Em Lagos ou na Madeira, em Olinda ou Salvador, no Algarve ou na
própria Lisboa, em todo o mundo lusitano enconreamos pequenos lavradores,
. " · d ¡· n<as" arrumando dores e
sapateltos, carpinteiros e rrabalhadores negoCian o ICe .., ' . _
Promoven d o para suas filhas casamentos com homel15 de igual cond1o;ao. .
S · · - d Jheres livres com respe1t0 ao
e muuas vezes era penosa a snuas;ao as mu . . . . d'
casamento, trágica seria a das escravas. Raramente se casavam na ¡greFt, ~~o IS-
. ho dos senhores. Fol esse o
sernas, salvo para atender aos interesses ou ao capnc ·¿ d d R. d
e d adora na Cl a e o lO e
aso e Lourens;a Correia, crioula de 23 anos e mor
132

. -mor Antonio de Figueira e Almeida. AJ¿ 111 u


Janeiro, onde servJa ao sargento
.
. .
bém concubma de seu amo, poJS D. Isabel, espo
e
d
escrava, Lourenc;a evla ser ram . . sa
. . tigá-la por qualquer motiVO e •nsrava para que
do sargenw-mor, v1v1a a cas o
. lh . 1 0 um casamenro com qualquer negro da casa. Em 17l 9
mando e arranJasse og _ ·
uniu-se ao escravo Pedro Benguela, carivo do mes~o sargento, tao-so mente para
"fazer a vontade" de D. Isabel e para "conremponzar com a vontade de seus se-
nhores", conforme confessou depois ao inquisidor. Por náo gastar do marido, 00
-
por conunuar am ásia do sargento • o faro é que Louren<;a
.. náo se livrou
. dos castigos
da senhora e acabo u fugindo para Silo Joáo de Mentl, ande rornana a se casar com
0 escravo Amaro. Louren<;a terminaria mal: acusada de bigamia, presa cm 1745,

e condenada ao degredo pelo Santo Ofício lisboeta''


Mais dramático seria o destino de Marra Fernandes, parda, escrava dopa-
dre Francisco Fernandes na ilha de Silo Miguel durante o século XVI. Tinha cerca
de 15 anos quando engravidou do amante e senhor que, temeroso do que lhe faria
obispo, cuidou de lhe arranjar marido, escolhendo u m cerro Fernáo Gon.;alves,
"uabalhador da erva pastel" (anil). Homem pobre, Fernáo era chegado a roubar,
e durante os dez anos de casamento esteve várias vezes preso por furros na cadeia
da ilha. Marta, por sua vez, jamais esquecera o amante e, náo obstante morasse
com Fernáo, cominuou escrava e amásia do padre Francisco Fernandes, de quem,
segundo disse, engravidara e parita "algumas duas vezes" depois de casada. Certa
ocasiáo, enciumada por ver-se trocada por outta mulher no cora.;áo do padre,
agrediu-o com um vidro de tinta no rosto, fetindo-o bastante ao que parece, pois
teve de fugir para a Madeira. Ali ficou dois anos, até resolver-se a migrar para o
BraSil, 0 que faria após inúmeras peripécias, incluindo um assalto de piratas ao
navlo em que viajou. Em 1590, enconrtava-se em Pernambuco casada com 0
marinheiro André Duarre • quan do ro1
r · · - · '
vista e acusada de bigamia por um homem
presen_re a_o casamenro em Sao Miguel havia já vinre anos. Presa pela visira,áo
mquiSnonal, Marta terminar'13 1 • lh d
d ma • a seme anc;:a da escrava Lourenc;:a: separa a
o segundo esposo e degredada para Angola."
Obrigadas a casar em t d d 1
b d d'fi . °
a asta as, 1 ICJ 1mente as mulh
as as cama as sociais, especialmente nas e asses
.
d d eres conravam com o afeto dos cónjuges arran¡a-
os, a que m, e resto tamb~m ~ , .
d . ' nao amavam. Entre as motivac;:óes dos vanos
casamcntos escruos na doc ~ . I
raramente surp d umenra.;ao Inquisitorial dos séculas XVI ao XVII '
reen emos o amo .
-como nos casamem . 1r, tanto no matrimOnio legítimo - o primeJro
maior freqüencia p r
os lftegu ares Do 13 d
·
¡- 1 d corn
o mascu mo, as razóes a ega as
. a a 0 casamento incluí
hOIVa- dispositivo "cont l"
.. , _ ~
arn as promessas fettaS 3. am 13 .

da
ratua que regulava as unióes - , a vontade de esrab•·
!izar-se e, ainda, prcssóes e: arranjos de vários rip
os, como o que levara Fernáo
Gon~alves a desposar Marta Fernandes, amante do d s- M' .
. ~ , cura e ao 1guel. A maJs
rfp¡ca dessas pressoes era porem a ~os parenres ou dos vizinhos de mulheres
desonesradas. Enconrramo~las na ra1z de diversos casamenros, no Brasil ou no
Reino, embora em cenas SltUJ'fÓes as "sedu<;óes" náo passassem de ardis usados
por familiares o u amigos da falsa vítima, desejosos de lhe arranjar marido ou de
safar da Jusnc;:a algum amante. Num caso extremo, 0 carpinteiro Pedrálvares,
morador na Bahia no final do século XVI, confessou que anos antes fora preso em
Portugal e, na própria cadeia, abrigado a se casar com moc;:a a quem supostamente
desonesrara. Situa<;áo e m rudo corriqueira naquele ternpo, náo fosse a mulher ser
amante de um padre, de quem tinha filhos, e o rapaz ter, na época, apenas dez
anos de idade ... 56 E náo faltariam, enfim, os que se casariam someme de olho nos
dotes, ainda que ínfimos, objetivo nunca confessado, porém implícito em vários
casos. Já do lado feminino, vimos quáo poucas vomades se poderiam realizar em
matéria de casamento. Quando instadas a f:1lar sobre isso, as mulheres simples-
mente aludiam as decisóes do pai, da família, do senhor e, nos casos em que
tomaram iniciativa, a necessidade de remediar urna vida difícil.
Hisrória exemplar, em todos os sentidos, foi a de Pedro Transe, filho de um
capitiio italiano e cirurgiiio na Bahia no início do século XVIII. Aos 19 anos,
quando ainda era esrudante e m Lisboa, passou a cortejar Vitória de Jesus Gouveia,
filha de um pintor, e "temeroso que seu pai o mandasse para a India", resolveu
casar-se coma mo~a. Casou-se e engravidou-a; mas, sofrendo oposic;áo da própria
família contra o tal matrimOnio, resolveu partir, seis meses depois de casado ...
Mudou-se para a Bahia e ali fixou residencia. Cerca de 1704, já com 28 anos,
conheceu Antonia Borges Correa, filha de um lavrador, com quem manreve um
romance e "algum trato ilícito", até ser apanhado em flagrante pelos irm_áos ~
parenres da jovem. Agredido, baleado, foi obrigado a casar-se, o que lhe nao foo
difícil fazer. Mudando 0 nome para Antonio Pereira Ribeiro Transe, e dozendo ser
homem solreiro que viera de Lisboa com 16 anos, logo pode se casar coma mo~a
desonestada. .
Havia mais de quatro anos que vivia com Anrónia, ~.e~ quem .~tvera um
filho, quando lhe veio as miios urna carta da primeira mulher. Senhor: ~ escre-
. . h com saúde como desep., p01s
veu Vttória de Jesus - "estimaret que esta o ac e · • .. M _
. mor de voce (... ). as nao
que a minha ( ... ) é pouca, só com multas penas por a . . h Ab
1 ira o pnmciTO rrec o. an-
se rratava de urna carta apaixonada, como ta vez su~ · .. Dcus !he há de
d onad a, V .ttóna
. 1 . ' .
ogo passana <~.S que1xas
e o'mprecaroes: (... )que
T • • b
d aro pago de rudo a que me rem felto . ) - enho nmgu<m que me se)a om
( ... nao t
( rcnoo
) 11 ¡ 01 ra 1cnw par.1. 1·.¡• servir na casa alheia (. .. ). Hornern
. sem alma, sem
"' .
.
conscllm;u, ncm scntc o me
u descn"ano
r'l
mais que andar fugmc.lo
.
co1no negro ,
1 1, d fu.,ir das rn3os de !>eus para lhc dar o casugo de rudo L.)".
muno•••" 1 " "1
.1 . 1o, 11csa111 ¡>arada • "crga de ranro e mrar SIIOI <csgra~a"
A rnu 11 u~r era sÓ ucsum~&o . ,
• ·1 1<> <JUe voh.,se or·o limirava-sc a pcdor •1ue lloe mandassc
e ora suMcr1a au mar c. •· ' • _, u

1 ¡suncniU. "l:alcmus 110 prcscmc uu no arnanha -concluía- ou mande


a gun . . . . · · · f' .
' pe1o ;u llllr .1-" l>ctiS. e d·t• vor..,..em Sanrfssuna, <JliC () esrunareo 111 1111·
o c.¡uc 111c c.1•¡;u
ro, e de novo vivcrci tendo algum alivio (... ). l>eus que vos guarde como eu
dcscjo. De vossa mulhcr, V.J.G."" . .. . .
Mulhcr simples, que cogirava o "servir cm casa alheoa , Votbrta de jcsus
tratava 0 m;uido por "scnhnr". Continuava reverente, cmbom abandonada; hu-
milde e ccrta de <JUC ainda era sua lcghima esposa, náo obstante lhc rogasse as
piures pragas; esperan~""' de sua voha, suplicanrc de scu auxilio. Amava-o? Esta·
va "ccga 1fe ranro doo~;~r" por re-lo perdido havia 14 anos? DiAcil afirmá-lo ...
Mas, scm dúvic.la, Vitório1 csrava s6, vivcndo ~ míngua, e via no marido a lmica
possibilidade de sobrcvivcr. Pedro Transe, por sua VC'l, jamais se casara por amor.
Ncm (om dil, triste Vitória, nem com a segunda esposa, a llUCnt se un ira literal-
mente ~ bala.
Mas houvc homcns que se casaram por amor, a cxcmplo do cscravo Ma-
nuel de Souza. Natural de 8cngucla, carivo cm Pernambuco, largou a mulher,
Maria Arc.la, escrava com quem se casara dcz anos ames, e uniu-se a ourra escra-
va, Maria Correa, cm 1738. C;lSou-sc com a amanrc porque "lhe rinha grande
inclina~ao", confcssou dcpois, ou "pelo grande amor" que lhe dedicava. E ram-
b~m n!o lhc fui complicado o cas;u-se na igrcja: simplcsmcnrc aprcscnrou-se com
a moc;a cm ouua frc~ucsia e prodarnou-se solrciro, apresen tanda como testcmu-
nhas uns ciKanos que encontrara no caminho ... " Assim rambém o fez Domingos
Luis, prern forro doRio de j;mein>, largando a esposa, forra como ele, para casar
com Lufza de l'rcir;IS, libcrra, por qucm "se apaixonara" cm Minas Gcrais na
~poca do ouru."' E mais ousado ainda foi o sapareiro Anr6nio Figueira de Jcsus:
casado pela segunda vez em Pernambuco, preso e condenado ao dcgredo pelo San ro
ORcio de Lisboa, fugiu e ombarcou-sc de voha pam o Brasil cm busca da amada
mulhor. Esrava a pomo <le cnconrr:l-la, quando fui nov:omcnrc preso pela lnquisi~iio."
l'oram rarfssimos, no enramo, os que rivcram scmclhanrc ousadia de largar
a cspo~a • rornarcm .a se casar, por a"'or, ex pondo-se ~ ira da jusri~a inquisitorial.
RarfsSimos cram, ah:ls, os casamcnros apaixonados. Quanro ~. mulhcres, bem
•bcmos <JUC poucas vczcs rinham a possibilidadc de cscolha ncsscs assunros, execro
quan<lo abandonadas pelos mar1'dos, sóse drsamparadas, no unenso · ·
mtpérlo· po r·
IV

tu
gués. E. quanto aos lwmcn.<.,
_ .
únicos que podiam e lh ..
seo er ou reJeltar o casamen-
parcclanl ttr o cora<¡:ao seco ao tratare m de matri • · E .
ro, • . . .. . . . . monlos. sranam a cumprir :a
dverrcnoa dos mor.d1st.1s, dos que v1am no amor 0 úlr· d
a , . liTio os sennmenros~ Ou
eramos !errados que, pelo contrariO, apenas davam eco aos cosrumes sociais~

DA RFCJJ/.\Á!J A V/U/.[NOA

Vigilancia sobn.: as mulheres da família, controle da esposa, decisáo sobre 0


casamenro das fllhas, eis alguns tra~tos inequívocos de nosso anrigo parriarcalismo,
especialmente assurnido pelos grandes senhores da Colónia. E areclusáo domésti-
ca, por todos al me jada e m defesa da própria honra ou virgindade das filhas, so-
mar-se-ia a prisáo nos conventos e recolhimenros. Mas bem nos lembra Susan
Soeiro que o envio de filhas aos mosteiros nem sempre atendía a zelos religiosos
ou morais. M u iros pais o faziam como firme propósiw de náo casá-las e, assim,
manter intacto o património fundiário da família, embora !hes fosse caro e difícil
transformar as filhas em religiosas."
A Coroa portuguesa, já o dissemos, sempre desencorajou a funda,ao de
conventos no Brasil e o envio de mo~tas para os mosreiros ponugueses, receosa
de que isso emperrasse a inda mais a rnulriplica~táo dos matrimOnios enrre os "princi-
pais da terra". Desencorajou mas náo impediu, embora tenha dificultado muito,
no inicio do século XVlll, o envio de jovens para os moste iros do Reino. Em
meados do século XVII, fundar-se-ia o célebre Convento de Sama Clara do Des-
cerro, na Bahia, logo seguido do Convento da Ajuda, no Rio de Janeiro, e do
Recolhimento de Santa Teresa, em Sao Paulo, todos autorizados pelo poder me-
tropolitano. E, no século XVIII, em possível conexáo comas restril'óes da Coroa
aentrada das mo<;as coloniais nos mosteiros portugueses, mulriplicar-se-iam os
conventos e, sobretudo, os recolhimentos na Bahia, em Pernambuco, no Maranhio,
<m Siio Paulo, no Rio de Janeiro, em Minas, e até no Su l."' .
A monarqma . e • . t a funda,áo de rteolhl-
sempre deu prererencta, no entan o, .
mentas, em vez de conventos, no mundo ultramarino: "os inconvenu:nres de se
permitirem mosteiros nas colOnias sáo tantos quantas as utilidades de havcr ndas
recolhimentos e seminários ande se recolham, criC"m e ensinem as filhas das casas
principais, as dos homens ricos, e ainda da gente ordinária".!.'J Evirava-sC", com
¡ . . . . _ povoamento da rerra - ,
sso, a muluphcal'áo de cehbaránas - tao avossa ao
·· d feito ademamento das mu-
cnan o-se, por ourro lado, as condi~óes para um per . . d
lhe~ts coloniais. E das mulhe~ts de elite, conv<m frisar, pois • ma•ona os c-on·
a-se a receber mo~as de f.1mílias abastadas o u, no
~~===~e~
.
mímmo,
lh . d d'
b caneas. As e1artssas
·
..
do Desterro • por exemplo, ficanam celebres f'ela
A • • •

, . l" · na aferi¡;áo da ascendencia das candJlhtas a rdi-


sua pureza raCia ' ngorosas . , , .
-~ E lho'menros eram esrabelecunentos so acess1veJs, cm maio-
g•ao. 64 mesmo os reco . . , , .. .
. as
na, , prmopa1s
. . . vmmas,· do rigorismo pamarcal, ou seJa. as mo~as de fanHil.ls
.
ncas .
Desrinavam-se a educa¡;á.o e ao resguardo das donz_elas, a: _recebunenro de
mulheres casadas durance auséncias dos maridos, reoro espnnual de viúvas e
"local de corre~áo para as mulheres cuja conduta deixava a desejar, e confor-
me decisáo de pais ou maridos". 65
Em seu imporrante artigo sobre a educa~áo feminina no Brasil Colonia,
Maria B. Nizza da Silva nos informa muim sobre como funcionavam esses reco-
lhimenms, seus objetivos e suas práticas, examinando os estaruws de dais esrabe-
lecimentos pernambucanos do final do século XVIII, ambos redigidos por
D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho. ''' Mostra-nos a autora, e m
primeiro lugar, que os recolhimentos eram preferencialmente voltados para as
mo~ de famllias importantes, tantos eram os obstáculos ao ingresso de filhas
ilegítimas ou mo~as de cor. E indica-nos, ainda, seu propósito de preparar as
mulheres para o setvi~o de Deus, "casando-se com Cristo", o u assumindo o papel
submisso que !hes cabia no regime patriarcal.
As meninas eram educadas num ambiente de absoluta clausura o u, como
rezavam os estatutos, fechadas "numa pequena sociedade de pessoas do seu sexo".
Deviam vestir-se com total simplicidade, sem enfeites ou "afeta~óes" que desmen-
rissem o estilo de vida do lugar; o mundo exterior era "cuidadosamente evitado",
e aré mesmo as cartas só eram entregues depois de abertas pelas regentes. No
a
tocante educa~áo pressupunham-se, antes de tuda, as debilidades da vida e os
exemplos que tinham em casa, a come~ar pela "falta de ocupa~óes" e, por conse-
guinte, pela ociosidade, máe de todos os vícios, do relaxamento e da "perniciosa
sensibilidade para os divertimentos e espetáculos". Azeredo Coutinho parecia
mesmo repetir as exotta~óes de Jotge Benci, sempre indignado com 0 ócio que os
senhores permiriam aos escravos ... Cabia, portanro, instruir as recolhidas e
educandas para que exrirpassem os "defeitos ordinários" do sexo feminino: as
arrimanhas, as vaidades, a ragarelice, ere. Somente as candidatas a freiras deve~
riam aprender o larim e a música, limitando-se as demais :ls aulas de ler, escrever,
contar, coser e bordar, atividades suficientes para urna boa esposa e máe. Escala
misógina, formadora de mulheres dóceis e obedientes assim eramos recolhimen-
tos da Colonia e, certamente, os da Metrópole. '
Clausura "
. doméstica ' celibato perpetuo ou reco lh'1menro prov1sono,
· , · nen h u m
desses mecanosmos era suficiente para salvaguatdar os valores da família, a !ideli-
dade da esposa e a honra dos maridos. Com f
llllllta requCncJa, as mulheres rom-
iam esse cerco familiar ou 1nsuruc10nal, expond _ •
p . o se a VIO 1ene las, agrcss6es e
homicídws consagrados pelos costumcs e aré por ¡ N ,
.. . . . els. o tocante as classes abas-
radas, nossa e romea acha-se 1eplera de assassmatos cr ,. d d . .
. b . ue¡s e o nas e s1nhas perpe-
trados por mandos so erbos, Jrm5.os enciumados e · l
. _ . . . . pa1s ze osos, que 30 menor
sinal de rraJC;ao ou mdJscJplma, punham-se a lavar 3 ¡ .
. , . ' lonra com sangue. AssJm
nos canta, sohdano com as mulheres, o benedirino Domi
. . .
L e
ngos orero auto, que
se deu ao rrabalho de mventanar diversos episódios sangrent d .
. . . " · os causa os por sim-
ples mexencos, nos qua1s perderam a v1da algumas ilustres donz.elas e marranas
pernambucanas" .('7
Mas a violencia misógina náo era um privilégio das elites. Praticavam-na
todos os homens, e a tal ponto que as eonstituis:óes de 1707, dispondo sobre a
punic;:áo dos amancebados, recomendavam muira discric;:áo aos vigários na ad-
moesra~áo as adúlreras, especialmente se fossem os maridos capazes de matá-las
ou impingir-lhes "mau tratamenro considerávei". 6M E Maria B. Nizz.a da Silva
lembra-nos que embora a lgreja admirisse várias causas para a separac;:áo dos
consortes, a alegac;áo de sevícias era táo recorrenre por parte das mulheres que os
primeiros modelos de "petis:áo de divórcio", imptessos no início do século XIX,
utilizaram aquela justificativa a guisa de exemplo. Náo faltou senso prático aos
impressores de tal modelo, pois tudo nos indica que boa parte dos casais vivia as
turras, e muitos maridos faziam da pancada o principal meio de resolver as quere-
las domésticas. Se bebiam demais, se perdiam no jogo, se amavam a concubina,
por qualquer razáo batiam nas mulheres, e as vezes por questiúnculas de somenos
importancia. Num litígio acorrido em Sáo Paulo, no final do século XVlll, u m
marido depravado chegou a atacar sua mulher a faca, ameas:ando-a de "sangrar
como u m parco", simplesmente porque ela se recusara a acompanhá-lo a uns
"batuques e bailes desonestos": caso peculiar, sem dúvida, ondea pobre mulher
esreve abeira da morte justamente por seu recato e sua fidelidade excessivos. No
, ·• e a "sobetba de machos"
extremo oposw, porem, encontramos mesmo o cJUme
como causa de agressóes e crueldad es d os man·d os, mes mo nas classes populares:
_
e .
atanna Rodrigues, por exemp1o, casad a h av1a
·
mal.S de trinta ·anos
. e .mae de 15
filh e · , h "pelo mando Clumento, o
1 os, rot brutalmente ferida nas partes vergon osas ,. ,,
1 lh
qua tanto a "rasgou" que parecia querer- e urar a
" · madre para fora ·
. . l
. . _ d ¡ · empre ¡01 , reconhe.;amo· o,
Dtante de tantas violencias a poSt<;ao a grep s . 11
d . mos advertonCias secretas s
a e proteger as mulheres: recomendava, como vt ' . _ d d. ó · con-
lh d 1 é . lhia as pen.;oes e tv reto
rnu eres casadas que praticassem a u t nos< aco
rra maridos violemos, homens que abusavam do po~er ~~ casrigo_que l~es confe-
. . _ . . r ·a1 )á Estado, ou a le. CIVIl, paree ~a maJS compla-
nam as uadu;oes e a enea ouc1 · 0 . .
· . · arirais facultando ao esposo o d1rello de matara
ceme para com as v1o 1enc1as m • _
mulher e o adúlrero, desde que os pegasse em flagranre e o amanre nao lhe fosS<:
. h. · social Caso conuário, sendo o amás10 fídalgo
supenor na 1erarqu1a · . , . . " _ " ,
desem bargador ou pessOa de "maior qual1dade , e o mando Simples peao , 0
último deveria contentar-se em matar a esposa, nunca o adúhero, sob pena de ser
degredado para a África."
Embora limirasse 0 poder de "execu~áo" marital ao flagranre adulrério _
se assim podemos dizé-lo - , e apesar de punir corn a morte vários maridos que
andaram matando as esposas por mera presun~Yáo de rrais:óes/ 1 o faro é que 0
Estado se revelava solídário com a "honra masculina" valorizada nos cosrumes.
Parricularmenre em Porrugal, pelo menos desde o século XV, as Ordena~óes
Afonsinas aucoríz.avam o marido a "execurar" a esposa infiel, o que os Códigos
Manuelino e Filipino só fariam confirmar nos séculos seguimes. Porém, convém
repetir, a misoginia náo seria um fenómeno lusitano ou ibérico, em contraste com
urna Europa mlerante. É ceno que diversas leis hispánicas já de muito restringiam
a liberdade das mulheres casadas, proibindo-as de andarem sós na rua, abrigando-
as a jamais cobrirem o rosro (e a idemidade) ao saírem de casa, além de esrabele-
cerem ouuas restric;:óes72 que seriam inclusive adoradas nas colOnias, ao menos
teorícamente. Mas também nas demais nac;:óes européias, sobretudo nos úlrimos
séculas medievaís, os códigos cívis cenderam a recrudescer o casrígo das mulheres
adúlteras, fixando, em muitos casos, variadas penas corporais. 73
Por ouuo lado, no ámbiro da culrura popular, embora a rrai~áo da esposa
fosse reprovada e castigada em toda a Europa medieval, outros mecanismos eram
uadicionalmenre usados para punir os adúlteros, a come~ar pelo repúdio da mu-
lher, o ~ire dos uaidores, a infama~iio pública, e ourros casrigos que nao impli-
cavam a pena de morte. Na Franc;:a, por exemplo, era comum praticar-se o charivari
co~r~a as mulheres infléis, os amanres, e mesmo os maridos que náo reagissem 3.
""'~ 0 • fau:ndo-os passear no lombo de besras sobo escárnio da comunidad<-
cosrume que sobreviveu no mundo rural até o século XVIII a pesar de condenado
pela5 leis civis ·" E ramb~m em porruga1 encontramos costumes
' do genero na
remora uadi~áo medieva1• segun do consra no Lzvro· velho das linhagenr. a rosqUia
·
da mulher, pena infamanre e r d' · 1 · 1d
para o rabo do animaJ.n ' o ra tetona passeto de mula com o rosto vo ca o

Talvoz mais forre na Penfn su1a Jb<~~:nca,


· sem lhe ser exclusiva, a hosu'l'd d
1 a e
contra aJ mulhcres tornou-se cr
escence ern toda a Europa, entronizando-se nos
139

códigos civis e nas práricas sociais a partir do século XV a1·


. . 1 d. . 1 , •mentada por urna
misogm1a popu ar rra 1C1ona mente zelosa da fidelidade con. .
. 'd " d . . E ¡ugal, porem menos
•'homlCI a o que vma a ser na u ropa moderna S · e
. . eJa como IDC, quer-nos pare-
cer que as le1s ponuguesas contra o aduhério feminin d . .
. . , . - . . o eram as maJs ngorosas no
J¡m 1ar do seculo XVI. nao cog1tavam pumr os marido · e,. al .
. . s muels, s vo se dorm¡ssem
com mulheres casadas, e ilmnavam-se a determinar em d .1
. que casos a a u tera deve-
ria ou náo marree por sua rr_au¡:áo._ A espelhar os cosrumes misóginos do Reino,
exarcebando-os,. o Estado
. sena comvente coma violenc·1a ant·c · · que vimos
1remmma .
grassar no Brastl pamarcal.

RfBELDIAS E CUMPLICIDADES: O MUNDO FEMININO

Enclausuradas, desprezadas, vigiadas, espancadas, as mulheres nem por isso


limiraram-se a sofrer, acuadas, a cresceme misoginia dos cosrumes e das leis. Pelo
contrário, sempre reagiram 3.s pressóes masculinas, desafiando homens, rompen-
do unióes insuporráveis e tomando várias iniciativas no campo amoroso e sexual
- o que, longe de "liberrá-las", estimulava ainda mais a misoginia, legitimando
o moderno patriarcalismo no receituário dos moralistas. Sendo as mulheres abri-
gadas a se casar em todas as classes, náo é de estranhar que o adulrério feminino
fosse corriqueiro e, como tal, preocupante para os homens casados. A "ausencia
dos maridos" converteu-se, de fato, em verdadeira neurose masculina e, por moti-
vos óbvios, quase u m sinónimo de infldelidade e rrai~áo: fora já responsável pelos
famosos "cintos de casridade" medievais e seria tema de várias comédias e "farsas"
encenadas nas cidades européias dos séculas )01 e XVI. Náo foi ourro, aliás, o
tema do Auto da India, escrito por Gil Vicente no início dos quinhentos, r<tratando
0 que seria o maior pesadelo de muitos portugueses aépoca: sua partida para 0 alé,~­
mar e o envolvimento de suas mulheres com os avencure1ros do própno Remo.
Recatadas e vigiadas, as mulheres portuguesas granjeariam, porém, cerra
fama de adúlteras e namoradeiras, a confiarmos no relato que deJas fizeram 05
viajantes europeus do século XVIII: quase todos diziam que bastava urna co~ver-
· d h ssibilidade do alme¡ado
sa fnuma, um elogio corees, e lago se esen ava a P0 .. .
r 1
amanee. Mas que os interessados se acaute assem,
adverria um frances, po15
_ d
a
menor suspeita, u m marido ciumento, u m irmáo altivo enterravam no cora~ao 0
galante o punhal de que andavam sempre munidos"."
140

Identico restemunho dariam, ainda, os francese~ que vi~,iraran~ o Brasil nos


l XVII XVIII gundo nos conta Gilberro Freyre. Fran\'OIS de Corea!,
sécu os e . ' se observaram o conrrasre que marca va a vida ferni-
Frézier Froger e munos ourros
. ' ~~ . _. 1 re das mulheres abastadas: de u m lado, o recato, 3
nana naCo ama, espeua men 3 . ~ . .
clausura, a indiferen~a e, de curro, o fogo sexual. a p.alxao, o arnscar da VIda por
. dadas pelas amigas, alcovJtadas pelas mucamas, enea-
urna avenrura amorosa. AJU . , . . . .
- de va· rias maneiras enconrravam as smhas u m JeHo de tlud~r 05
benas pe1as maes,
maridos ou pais; e, a procura dos deleites que !hes negava o casamento, expu-
nham-se a wdos 05 perigos, ao corretivo de pancada, J clausura do recolhimento,
ou ao banho de sangue que lavava a honra dos patriarcas. 78
Nem mesmo as freiras guardavam o recaro deJas esperado pela religiáo,
fosse no Brasil, fosse na Europa. Analisando a vida das clarissas do Desrerro,
Susan Soeiro indica-nos que as freiras gozavam de mais liberdade no convento do
que se esrivessem na casa paterna; ali adquiriam a cultura só reservada aos homens
na sociedade, ascendiam a posi~óes de mando, encenavam pe<¡as, organizavam
recitais, e as vezes rinham o privilégio de morar com tias, parentas e até servir-se
de escravas que rraziam da casa-grande. Além disso, namoravam muito, sobretu-
do padres, e náo raro com esd.ndalo. No caso mais rumoroso, em meados do
século XVIII, o capeláo do Desrerro seria apanhado em flagrante com urna jovem
novil'a no dormitório das mol'as, onde lograra entrar pelo al<;apáo da igreja ... "
Rigorosas quando aferiam a origem racial das postulantes, as "claras pobres" náo
pareciam se-lo na disciplina conventual. E náo muiro distintos, ainda, deviam ser
os recolhimentos, se dermos crédito a Francisco Manuel de Melo: "mosteiros,
recolhimentos e omros resguardos em que os homens depositam suas mulheres,
náo deixam de ser arriscados; e deceno, quando a ocasiáo náo seja muiro urgente,
é usar comas mulheres ruim lei, e falrar-lhes com a fé (.. .)", adverria, preocupado
com as vinganc¡:as femininas. 80
Por auno lado, náo foram poucas as mulheres que, abrigadas a se casar ou
destratadas pelos maridos, náo someme os traíam como rompiam as unióes, fa-
zendo-se senhoras do próprio destino. Freqüenre entre as mulheres populares era
o abandono puro e simples de maridos insuportáveis, movidas ou náo pela deseo·
berta de novas amores, conforme nos indicam diversos processos de bigamia. Na
Merrópole ou na Colonia, vemo-las fugindo de maridos cruéis, farrando-se de
esperar por maridos sumidos, assumindo relac¡:óes com amantes ro m pendo casa·
mentos indesejáveis • acabando
• • en fi1m, com s1tuac¡:oes
· - opress1vas
· ' ou ·mcertas. Em
outros casos, segundo nos masera Maria B. Nizza da Silva, as mulheres agiam de
acordo com a lei e, se casadas com homc:ns ·m dCSC:JáVels,
. . vtolentos
. ou repugnantes,
avam com p<..:dido de divórcio na vara eclesiásri A . .
enrr ' , . d ,. ca. maiOna das que o pe-
d . 111 alegavam s<:vlclas uu a ulreno dos maridos ra - _ f ..
¡a , ' zoes tao requemes como
ficazes para u m despacho favoravel, senda carrero 0 m . d _
e1• ottvo a separac;ao. Havia,
rém. as que reclamavam de maus-traros ou adultér' .
po . . . lOs apenas para segutr a
Praxe desses ped1dos, pots eram curras as resrnc;Oes qu f .
. . . . e az1am aos esposos
conforme admmam em segu1da: Impotencia su¡'eira dil 'd - d b
. . " , . ' • apt ac;ao os ens
com meretrtzes, embrtagues, doenc;as, e vanas curras, nem sempre acolhidas
pelo vigário-geral."
Muitíssimo hábeis eram, ainda, as que se aproveiravam d ¡ ··-
a nquisic;ao para
delararem homens que as haviam molestado, ou para defenderem am·
. . , . 1gas cenera
siwas:óes pengosas. LuiSa D Alme1da, por exemplo, que sofrera pressóes sexuais
de seu compadre, Fernáo Cabral, acusá-lo-ia ao visitador do século XVI por ter
negado o pecado do incesto - no que foi seguida pela irmá Paula D'Aimeida -,
rrazendo graves aborrecimentos para aquele importante senhor da Bahia.u Méscia
Barbosa, por sua vez, denunciou como bígamos os ex~maridos de duas amigas,
objetivando livrá-las de identica acusas:áo, já que ambas, farras de esperar por
esposos fujóes, estavam casadas pela segunda vez. 83 Mas, em matéria de vingan-
~as, a jovem Maria Grega seria realmente exemplar: havia dais anos casada como
ex-alfaiate Pero Dominguez, porém "afeis:oda" ao mameluco Francisco Correa,
resolveu acusar o marido de só a pass uir em cópulas sodomíticas, mancomunando-
se com irmá, pai e outros parentes, o que levava o infeliz marido 3. prisáo e ao
processo inquisitorial. .. 84 Luísa, Méscia, Paula, Maria, diversas mulheres fariam o
mesmo, aliando-se, por intermédio da Justi~a. contra homens indesejáveis, levia-
nos ou hostis.
Manietadas por pais e maridos, reiflcadas pelos homens, excluidas de várias
esferas do cotidiano social, as mulheres acabariam por consrruir urna sociabilida-
de e urna linguagem próprias, em que muitas vezes uansparecia o ranear e a
insubmissáo contra a ordem patriarcal que as oprimía. Parcciam viver um coüdia-
no aparte, esrabelecendo cumplicidades, alians:as. hierarquias que náo raro sub-
veniam ou amenizavam as barreiras sociais do colonialismo. inclusive os prrcon-
ceitos raciais, conforme nos ffiOS{ra fartamentc a documcnta~o inquisitorial do
século XVI. Brancas e mamelucas, mo<¡as de familia ou filhas de arresáos. S<nho-
.
ras ou escravas, todas pareciam umr-se cm d'1versas snuacro
· -es • n.ortilhando
r- . exp<n-
eOCias,
. trocando consdhos, descobrin do segr<:dos, e qu ase S<mpr<: arquncrando
mane1ras
· para mc:lhor se relac1onarem
. com os homc ns · Estarlamos de acordo . com
.
11 N . ..
ana ovmsky na observa~áo de que o mun mascu 1
d
° r no da Col&ma, pranca- .¡
mente imperme:lvd as mulher<:s em seu aspec10 fOrmal", deu-lhts • oponunl• a-
-~· ~- L · um mundo femíníno, expre11ado em la~,. de 10)¡.
de ..cm urta mcglwa., oc cnar .
dar··-~-~- ·:w~e entre vízính», amígaa e paren u:•, no• expedienteo altcrnarí-
lcuaoc e ami ' n.n
vOJ de eopcran4j2 e num poder informal e d1fu10 (. .. )..
E, ae ho uve um unívcrJO fcmíníno por excdanc1a, ..lugare ondc
. ,
aJ mullu:rco
•L·
cram 1mw, do mmava
· m 01 coo
-dígoJ e .. uníam quaJC cm . con.rana
, .para enfrcn-
tar .. maulu do cotidiano, uu: foí o campo daJ práucu mág1caJ. (~ certo que 0
vaiv~m de or~• e cartu amatóríu, a bwca de 10rtíl~gíoo e a arm:u;áo de li:írí~ 1
náo cram pr:úicaJ exduoívamcnu: fcmínínu; mu, aínda que oJ homcno apdao-
J<m com frcqüéncía 30 10 brenuural, e muí101 JC wrnao~em deo pr6príoo "fciríceí-
roo" ou "magoo", eram ao mulherco que de1ponravam como douwrao da magía no
mundo ocidental, e ao1ím eram vilw pclo1 crudítol da ~poca. Oo copccíalíorao cm
demonoJogia cre4ítavam o fenómeno á naturC'l3 díab6Jíca da muJhcr, a JUa pro•
pendo a pactuar com o dem6nÍo, C OJ moraJÍJiaJ alríbufam-no a Ígnorincía OU a
rudeza mental dar fimeao, mao, Jeja corno for, da Círce de Homero aCclc11ína de
Fernando Roju, a bruxa Kría, anu:1 de rudo, a mulher."'
Foí por inu:r~ío daJ mulhercJ, com efdto, que a tradícíonal magía eró-
rica porwgue•a enraizou-te no Braoíl, miJrurando-~e ao longo doo téculoo com
díver101 elementOJ indlgenao e africanoo. E náo J6 para con~eguír marído1 ou
admnhá-IOJ, conforme já mencíonamoo alhure1, mao para numcro101 outro1 lino
afaiyoo, u mulhera apdavam ao 10brcnalural, protagonizando cm váríoo ~enrí·
dao a vida arnor01a na Colbnía. Algumu uuvam de taÍJ cxpcdic:nu:o para malrra·
w e vínpr-te de home111 índaejáveiJ, e m meomo aníquílá-lo1, como no ca10 de
Cawína Fr6a, moradora na Bahía e CaJada com um anrígo cocríváo cm lino do
lkulo XVI. Cwrína havía procurado María "Arde-lhe-o-Rabo", de quem já faJa.
mot, a1111 o firme propósito de mwr um genro e oubmcter ouuo avonrade de
oua (dha"- o que bem 1101 indica a atrnoJfcra de r.:noáo e deoafeto que marcava
01 aoít daqucle rempo.

E ram~m Guíomar de Olíveíra, Calada com um 1aparcíro em Salvador,


ptoeurou a famou Nó!Kcp para "vívcr bem com tcu marido", verdadcíra obtu-
do clat apotat de oucrora. Nó!Kcp ~lhe enrio que furtaJJC rrlt
,.. cnchendo but • •
av • 01 1C0J com Clbclot de todo o teu carpo, unhat, rupaduru
~tola dao ~· uma unha do dedo mlnimo da própría bruu e, fcíiD ÍJJO, cflll'"
~-rudo. ÁIJ 1..••• Jo. por L L . • ~-· ,
.-...- ......., -
vrnho do marido, o.,.,.
-...1 ••• ,
~
,
'111111"" de que modo-, ucY'"'
p/H· ludolhe110 aíftda. ,_ Guíomat ,,_ -•- naJIOU
L.· '
1m razcr. N6br""•
.,....

*
-- •
bem, tcndo do pMpriO
11m " " - · 1
1--
~ 0 Jtmcn do homcrn d.do 1 beber "faía querer pode
,_.... .., •
te ,. L - - L
uc .._ que, da.jando muriD ,
o aJIIOl'
llllllher dcvcría "t~~~ír-tc 1 ele catnalmcnll", retirar o .tnwn de
14l

ua vagina e dá-lo a beber para o amado no c<~po de v' h ,


1 . •n
fez a mo~a para, <JUCJn ••1>e, conqu11rar o afcw do marido" M
°- "''" que rambém
.
· 1 . · u ounsmamcnro.
da N6brega "'"la 1111 Jarn de excepciOnal, pois muiw comum era o wo uc '-lil trot
1
amoroso• '""tuda época. Eram-no "
a tal ponro "UC
,
)olo uc
'· ,._ .._ .
oarro1 neta vJu um
h~iro das mulhcre• cuada&: C. .. ) faum fcirit;tll e dio amadiot a scus maridos
Para que lhe que>ram ma10r ..be~,m, e /u ve1.cs crram a úmpcrac os maram ou <raum
caír c:m gran de: doeru;a (... ).
Além de filrros, poo;óe• e beberagcns, u mulhcre1 usavam de "carw de
wcar", /u quaio arrihufa~ o pode~ de conquiuar rodu u pciiOU que por clao
f011em wcadu. hz1arn, amda, vanadu or~cs, invocaodo santos, diaboo, almas
ou for~ao naruraio. Entre ao mais belao, encontramos urna que cosrumava cnsinar
a N6brcga, muiw marcada pela culrura i1limica: "Fulo eu re encanto e rccncanto
com o lenho da vera cruz, e com 01 anjos fi1610fos que 1io trinra e seis, e com 0
mouro encantador, que ru re nio aparre• de mim, e me dip quanto IOUbcra, e
me dé1 quanro rivere1, e me ame1, mai1 que todao u mulhcra".'" E rodu ainda
pareciam aaedirar que ao palavru da conugr~ diw na boca do marido ou do
amante, /u ve-us no aro tcxual, rinham o poder de prCIICU-Io1, conquilá-lot ou
amaruá-l01. Hoc tJt mim corpu1 meum - "are ~ o mcu corpo" -. cÍI o que
divcnu mulhcre• andaram dizcndo para homcn1 descjadol ou maridol ind6c:cil
vi1ando a dominá-los, domeuid-lo1, •ubmcra-lo1, cnlim, i 1ua vonudc." Nlo
por acuo Francisco Manuel de Mclo recomendaría 101 maridos que proibi~~em
"adivinhu" e "profeuoru de novidade•" cm IUII cuu, a •ubvcrrcrcm com ICUI
ensinamenros o bem·ellar dom~llico e patriarcal.
O universo mágico cm que viviam u mulhcrcs 10lidarinva-u, irma·
nava-u para além du hicrarquia1 10CÍai1, confcrindo-lhc• ainda um poder
valorizado e re1peirado •ocialmcnrc. Mas u mulhcra do pauado lonp Clll·
vcram de qualqucr "contciancia grupal", mc1mo que a lingu.gcm doslihros
e d11 or~ct not m . d'aqucm o conrrilrto,
, · Jtto· ~ ' um detct'o .-••ral de scrcm
amadu e valorizadu pelo• hnmcn1. al
Por mai• que se uniucm acnhoru e acravu n• co~ de pm ro-
, __ ,_ , _,_ campo do amor, boluva
manee, por ma11 que rrocuacm acgmw• e m.r"""" no ,. .•
. um 1imple1 de1lizc da cKrava, para 0 afcro "mudu·sc cm """' le br • a
um t~úmc,
negra confidenrc acabar wrrurada pela ama impicdou- Como
G'IL
bcmnd":'.:-:
-'""' 0 ,.¡ • "'muJIOOI .,bmudo
' 1""rw Frcyrc, 01 viajanrc1, o (olclore, • "''"~ .....,. daa
q:
11 sinh'- cram piorc1 que 0 , acnhorc• no rr1umcnlo dot acra-. e ,
•. ' dot rljol . . - •
ncgr.,, a qucm com frcqllfncia murilavam por mera •nWII
bclo, den res".
Por ouno lado, nollaJ mulhere• pareciam aJJ~mir cerros limites que a
. · · coeva lhes 1·mpunha· Eram pudicas o sulie~enre para
mJJOgJnJa . nao discut,'rem
a forni~. usunto que tanro animava u conversas masculm ... e, <crramente, a
imagín~o feminina. A que arribuirmo• esJC ab1oluro silencio da• mulheres, IC·
nlo 1 convi~io de que ~tmclhanrerema era coisa de homens? Nao faltaria quem
u dcnunciwe, se alguma dclu ousuJC negar verbalmenre o pecado da fornic~ao.
poil náo faltaram u que denuncíavam inrimidades uma~ du ourru ...
Solidáríu no corídíano, u mulherel nem sempre o seríam cm face do
inquisidor. Se muíru procuravam defender·IC muruamenrc, havcndo oporruni.
cWic para fall·lo, ounu tanru se acuJavam sem pejo, brindando a Ju•ti~a
inquisitorial como que mais cla aprccíava provocar: • ruptura das solidariedada
e conivfnciu socíais para glória de Deus. Maria "Ardc-lhc·n·Rabo", Ant6nia
Nóbrcga, Isabel "Boca·Tona" e tanw ourru que as mulhcrcs procuravam para
conhcccr osscgredos da conquista e do afeto viram·sc denunciada por suas clien-
ra na mesa da visit~áo, e de "me11ru do amor" tornaram·•• bruxas, feiticeiru,
"mulhcrascm marido", alcoviteiru, amigas do díabo ...
A solídarícdadc du mulhera tínha, pois, muitos límites. Rebeldes e apai·
xonadu, nlo raí11íríam As preu6es misógínu que, de um modo ou de outro
rriunfariam cm toda a parte. '
14S

NoTA~

L Holanda, \ér¡¡io llum¡uc de. 1/a/w do /!wil 9 cJ Ríe de J · J


p. 49. , , ' ancJro, .,.¿ Olympio, 1?76,

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!fouuhold and Family in l'art 'lime. London Cambridge Univcnioy Pre~o, 1972. A
!elle da fa mUía cxccn&a como rfpica do Antigo Rtgíme foí defendida tobrctudo por
frédcric Le Play, para qucm, antcl da índu1uialíz.a~áo, era comum a exí.&clncía de
larcJ cxtcnma, incluíndo o cual principal, o ca.ul chdiado pelo primoglníto e 1eUJ
filhcJI, além de ourma írmáoa e parcnccaaolceíroa o u deapoaaufdoa. V. Flandrín, Jean~
l.ouí1. Fami!I~J: partntí, mailon, uxualítí áam l'anfitnnt Jodltl. 2. cd. Pari1, Seuil,
19H4, p. 54-57.
8. V., por cxcmplo, Samara, Eni de M. Op. cir .. oobrctudo o ircm ·o miro da mulher
oubmi11a e do marido dominador", p. 57-66, e Corrb, M. Op. cir.. P· 29 • I<P·
9. Frcyrc, Gilbcrro. CAra-granda rtiiZIJin. 16. cd. Río dt j.nciro, )01<! Olympio. 1973, P· 65.
1O. A cxprmáo <de Mariza Corrb, op. cir., p. 36, cmpcnhada cm valorizar." conduw
ahernatívaJ b que uiunfaram hilroricamencc. No cocance ao wamcnro e 1 vida conJupl
nu pauado, vimo1. como parccem Kr fr.lgeU u n~a dale gcnlro, mamo K rd'eridas M
menralidadeJ populara d'ouuora.
., lh'l'
11 . ArJ~:J, · · JOflll
' 1 1ppc. H111druz · 1'- · '·fim'/u 2 cd • Riodt)anciro,z.lw.I98L
1111 ffllln(il t 1111 '11 1' • • da famd'
Arih en mina o longo prouuo, "concluido" no oiculo XVlll. de ~de~
, d , d' 'd 1' , da
burgucJa, pnva a, 1n JVI ua 111a e, aJn • a r,~ .dnCIC do moderno I<OIImcl110
riel Jet . dr la 'fic
V. rb. flandrin, J.-L., op. cir. oobr<rudo o ircm "Le Cadr< malt ft nra
domc11iquc", p. 91-110.
12. Plandrin,J.-1.. Op. cío .. p. 170. oikloo) e;.¡,¡
13. B~rard, l'icrrc. l.c Sexo cnrr< rrodioion ft mndornio! (XVIc.-XVIIIe. ' '"
int.rnatlonaux tlt~orio/st.ít. Vol. 76, 198~. P· 1~9.
!46

14. Fbndrin. J.-L. Op. cit., P· !18.


15. id. ibid .. p. !55.
16. Bérard. p Op. cit., p. 147. .
. . •. R de de. A mulher e as ongcns da cuhura trovadoresca no Ücidcn-
l?. Ohve1ra, Amomo ese/hn 'edade porwguesa. Actas do coló(]liÍo realizado na U ·
re en insular. In A mu er na soCJ . .. . . . nt-
ve~idade de Coimbra, 20·22 de mar~o de 1985. CoJmbra, Immuto de Hlstona Econó-
mica e Social. 1986, P· 20-34.
18. Trara·sc de urna norma do Alcoráo. V. Boxcr, C. A mulher na expawíío ttltmmarina ibéri-
ca. Lisboa, Livros Horizonte, 1977, P· 122.
19. Barros, Joáo de. Erpclho dos casados. Porro, 1540, p. 1-15.
lO. V. Rousselle. Aline. Porniia; uxualidade e amor no Mtmdo Antigo (Sao Paulo, Brasiliense,
I984), sobretodo 0 item "Virgindade feminina e cominCncia masculina- imrodu~ao
aos to:los cristáos", p. 153-168.
21. O jesuíta Bahazar Gracián escreveu um dos maiorcs uatados misóginos do Ocidente: El
"iticón, editado entre 1651 e !657. Apud Boxer, C. Op. cit., p. 124-125.
22. Referimo-nos a "Sobre la potestad de la Iglesia", apud Boxcr, C., op. cit., p. 124.
23. Vieira, AntOnio. Strmóts. Lisboa, Typografia de Miguel Deslandcs, 1679-1689, vol. lO,
p. 62-63.
24. Sobre o Tratado en loor... veja-se Boxer, C., op. cit., p. 126; Gon!)alvcs, Rui. Privilégi01'
prtrrogativas q~tt oglntro fnninino ttm por dirtito comum e OrdenaróeJ do Reino mail que
o glntro maJculino. Lisboa, 1785, [Ji edi\áo: 1557].
25. Referimo-nos a"Nova floresta", apud Silva, María Beauiz Nizza da. Sistema de cmamento
no a,.,¡¡ cokmial Sáo Paulo, EDUSI~ 1984, p. 66.
26. Trata-se de Disputationtm dt Sancto Matrimonii Sacramento, obra em 3 vol umes publica·
da em Madrid entre 1602 e 1605.
27- Melo, Francisco Manuel de. Carta dt guia dos casados. Porto, Editorial Domingos Barrei·
ra, s.d. (l ~ edí\áo: 1651.) Alguns adágios populares lusitanos náo recomendavam a igual·
dade, pelo m~n~s cm rela~áo aidade: "Mais quero o velho que me honre, que mo\o, que
me assombre ; Antes velha e d" h · M BN
da, op. cíL, p. 66 . om m eao, que moc;a com cabelo". Apud Silva. . · ·

28. Melo, F.M. de. Üp. cit., p. 26, 39.


29. Vieira, A. O p. cit., vol. 2, p. 266-267.
30. Id. ibid., vol. 4, p. 98-9 9.
31. Apud Lcites, Edmund A cons .• .
Brasiliensc, 1987, p. 2;·29. CltnCJa puritana (a uxualidade moderna. sao Paulo.

32. Ocarolicísmosomentemudariade osi a ·ca


Humam11 Vitat(l%8) V M P e; 0 no século XX, sobrcrudo a pardr da Endch
1'am,
· Aub'ler, 1977, p. .234.
. étral,
. Maric-Od'l L
1 e. t M · · d
anagr. les htsitntJOns t /'0 «l·¿,nt.
238
147

33. Essc "privilégio" foi cS[abc~ecido. por Alberto Magno no século XIII. V. Flandrin
Hommc e( femme dans le In con¡ugal. In Le Sexe et 1'0 ·¿ p . . . J-L.
. . . m ent. ans, SeUII, 1981, p. 128.
34. Bolognc. Hutotre de la pudeur. Pans, Olivier Orban, 1986, p. lj,
35. Ddumeau, Jean. Le Péché et la peur. Paris, Fayard, 1983, p. 242 e segs.
36. flandrin, J~l. A vida sexual dos_ casais na amiga sociedade: da douuina da lgreja realida-
de dos componamemos. In Anb, l~ et alii (org.). Sexualidades ociduJtais. Lisboa, Con-
rcx[o;, 1~83, p. ~ 1?,-118. ~s _man~ais ponu~ueses dos séculas XV e XVI. emboca julgas-
sem. su¡as e fc1as as p~slt¡:ocs na~. narura1s, consideravam-nas apenas pecado venial.
V. L1ma, Lana Langc da Gama. Apns1onando o desejo: confissáo e sexualidade. In Vainfas,
R. (org.) Hútória e sexua/idade no Brasil. Rio de Janeiro, Graal, 1986, p. 81.
37. Refcrimo~nos ao Prontuário de Teologia Mora~ obra publicada em Coimbra (1749), apud
Silva, M.B.N. da, op. ciL, p. 161-162. Tradicionalmente, o coito imerrompido era mais
tolerado pelos teólogos nas relac;óes ilícitas do que no casamento.
38. Vieira, A. O p. cit., vol. 9, p. 255.
39. Melo, F. M. de. Op. cit., p. 37: 44-45: 67: 73-79.
40. Pcreira, N uno Marques. Comp2ndio narrativo do Peregrino da Amirica. 6. ed. Rio de
Janciro, ABL, 1939, vol. 1, p. 292-293. (l'edi,áo: 1728.)
41. Apud Vel oso, C.j.R. de. A imagcm e condic;áo da mulher na obra de autores portugueses
da primeira metade do século XVII. In A mulher na socitdadt portuguesa... , p. 263.
42. Melo, F. M. de. Op. cit., p. 35.
43. Apud Veloso. C.J.R. de A. Op. cit., p. 266.
44. Trata-se de frei ÁJvaro Pais, franciscano doutorado em Bolonha, discípulo de Duns Scm
cm Paris, posteriormente bispo de Silves. Sua obra veio a ser impressa em Ulm (1474),
Lyon (1517) e Veneza (1560). V. Veloso, C.J.R de A. Op. cit., P· 261.
45. Ladurie E. Le Roy. MonliliU/ou Vi/lage OccitAn. 2.ed. Paris, Gallimard, 1982, p. 279,282.
46. Silva, Maria Regina N.X.A.T. da. O tema mulher em folhetos volantes portugueses. 1n
A mulher na socittÚtde portuguesa ... , p. 38-54.
47. Freyre, G. Op. cit., p. 338-339: 421.
48. Já os homens eram considerados velhos após os se~enta anos. Y. Ru~d-Wood. A.J.R.
Women and Society in Colonial Brazil. JourntJI of Lttin Amm"ciln StuJin, 9, l, 1977 ·
p. 16. . '
. l l p 1 1 Ibérica (siglos XVI-XIX): una
49. Rowland, Roben. Sistemas matrimoma es en a en nsu a . . d 'd d b
d d D mogr<'f/- Hutónc.. Ma n , =m ro
perspectiva regionaL Actas de las 1}orntJ as e e .. d
1983 - exemplar mimeografado, p. 18~20. Sobre o "padrio europeu e casamentos
tardios, V. Flandrin, J-L. FamiUes ... , p. 184.
50. ANTI/IL., processo 1334. . . ,u&},;. (1591-
Sl · Primeira viJittJfiO do Santo Oficio Al parttJ Jo 81'11Jtl- [)na,,cupn
1593). Sao Paulu, Ed. Eduardo Prado, 1925. P· 309 -310 ·
148

52. ANTfiiL., processo 11037.


53. Idem, processo 2555.
54. Idem. processo 11283.
55 Idem. processo 10745. . . .
. C .r. - d f'rrnnmbuco (1594-1595). 1\wfe. Untvcrsodadc Fe-
56. Primrirll l!isitarflo ... - on¡mots r
dml de Pernambuco. 1970, p. 130-132. . . .. .
A d . Vitória de Jt:HIS Gouvc1a nu.: fu1 Jndlclda e gentil-
57. ANTI/IL .. processo 8686. cana c
meme cedida por Luiz Mou.
58. Idem, processo 911 O.
59. ldem, processo 8206.
60. Idem, processo 2650.
61. Soeiro, Susan A.The Social and Economic Role of thc Convcnt: Womcn and Nuns in
Colonial Bahía, 1677-1800. HAHII, vol. 54 (2), maio 1974, p. 219-220.
62. Azzi, Rielando. A insti[Ui~áo eclesiástica durante a primcira época colonial. In Hoornaert,
Eduardo et alii. História da fgrrja no Brasil 2. ed. Pcuópolis, Vozcs, p. 224-232.
63. Apud Silva, M.B.N. da. Op. cit., p. 24.
64. Boxer, C. Op. cit., p. 72.
65. Silva, M. B.N. da. Op. cit., p. 23-24.
66. Idem. Educa~áo feminina e educa\áo masculina. In Cultura no Brmil Colón in. Petrópolis,
Vous, p. 68-80.
67. Couw, Domingos Lorelo. Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco. ABN, vol. 25,
1904, p. 475-485.
68. Constitui¡órd'rimriras doArctbispado da Bnhia (1 707). Sáo Paulo, 1853, Livro V., título
XXIII, parág. 990.
69. Silva, M.Il.N. da. O divórcio na capitanía de Sáo Paulo. In Bruschini, M. C.A. et alii.
Vivincia: história, s~xualidad~ ~ imagem fimininas. Sao Paulo, Brasiliense, 1980, p. 184·
lBS; 168.
70. AJmeida, Cindido Mendes de (org.) Código Filipino ou ordmnriies ~ /~is do Reino de PoY.
tugal. Río de Janeiro, lipografia do Instiluto Philomático, 1870, livro V, título :XXXVlll.
prólogo e parág. l. ldem nas Ordena~óes Manuelinas, Livro V, título XVI, prólogo
e parág. l.

71. Cons~ltamos alguns processos em que salram punidos os maridos por molestarem ou
~asslnarc:",' c.sposas ~a Lisboa do século XVIII. Sc~áo de Reservados da Biblioteca Na·
ctonal de LISboa, códtee 867, n. 1 e códice 853, n•. 160-162.
72. V. Graullc:ra Vicc:me M · · 11
1 R<d d 'A . · u¡er, amor Y motaltdad en la Valencia de los siglos XVI y XV '
n on o, ugwun (otg) Amo 11 · · '"'il
·~ ¡, ) p . p bl' . ·· urs 'gltlm~s. nmotm 11/tgitim~s tn Espagne (XV/e.·A r J t.
SI e es . am, u ICatlons de la Sorbonnc, 1985, p. 111, 114.
149

73. Barros, Joáo ~c. Op. cit. A. 45. Após citar vários códi os ami
Barros conclum que cm Ponugal era "mais á g gos e modernos, jo!io de
" . . . spera a pena e os maridos eram mais duros'".
74. Flandnn, J-L., famdles .. ., p. 40, 124.
75. Braga. 'ICófilu. O povo portuguts nos srus costumrs ,,., J.
Dom Quixotc, p. 20 l. ' rnras r tra irón. Lisboa. Publica.¡:óes

76. Saraiva, Ancónio José. Gil Viuntr r o fim Jo tratro mrditual 3 d . .


Berrrand, 198 l. p. 77. . e . Amadora, Ltvrarm
77. Chanca), Suz.annc. A vida quotidinnn rm Portugal 110 ttm 0 áo . .
do Brasil, s.d. p. 114. rp ttn-amoto. LISboa, Lavros

78. Freyre, G. Op. cit., p. 424.


79. So~ir~: S.A. Op. cit., p. 225-:27. Gregório de Matos chamou as clarissas de "lascivas
freuas . Sobre a quebrada dasc1phna conventual nos mosteiros portugueses, V. Mansdia,
Frei Joáo de. A histórin tscnndalosn Jos convrntos da ordtm dt Siio Domingos rm Portugal
(/774-1776). Lisboa, Vega, 1983.
80. Melo, F.M. de. Op. cit., p. 125.
81. Silva, M. B.N. da. O divórcio ... In Bruschini, M.C.A. et alii. Op. cit., p. 162 e scgs.
82. Dmunciarórs da Bahia... , p. 355.
83. Id. ibid., p. 498.
84. ANTI/IL., processo 2525.
85. Novinsky, l. L. Heresia, mulher e sexualidadc: algumas notas sobre o Nordeue nos sécu·
los XVI e XVII. In Bruschini, M.C.A. et alii. Op. cit., p. 235-236.
86. Souza, Laura de Mello e. Aftitiraria na Europa mod<rna. Sáo Paulo, Atiea, 1987 [Cole-
~iio Principios, n.ll8]. sobr.tudo o capitulo 3, "A personagem- prátieas", p. 14-24.
87. Primrira visitaráo... - Confissórs da Bahia (1591-1593). Rio de janeiro, F. Briguet. 1935.
p. 68-69.
88, Id. ibid., p. 76-87.
89. Barros, joiio de. O p. cit., 11. VI.
90. Confosórs da Bahia... , p. 61.
91. Em rela~áo ao uso profano das palavras da consag~io, os dois mdhom: ~ foram os
de Margarida Carncira e sua filha, Violantc Carncira. ambas moradoras na 8ah1a, cm fins
do século XVI. Cf., respectivamente, ANTI/IL., processos 10751 e 12925. Para uma
avalia~áo de conjunro sobre a magia eródca na Col6nia. V. Souza, Laura de Mello e.
O diabo < a Ttrra dr Santa Cruz (Sio Paulo, Companhia das Letras, 1986), sob.....do 0
capitulo 5, "Prcserva~iio da afetividade", p. 243-274.
o NEFANDO EA CüLÓNIA

Os que Jt surpreendem na prática da sodomia


sáo abrigados a levar, por dois dia;, o ca/ratio
preso ao pescofo, punitáo que indica terem eltr
invertido a ordem natural das coisas, pondo os
pb sobre a cabeta.
T. Campanella. A cidade do sol

Táo louca te traz, que só por Damas suspira.


Gregório de Matos
"A urna dama que macheava outras
mulheres·

Reunido em Salvador no ano de 1707, o primeiro e único sínodo colonial consi-


derou "táo péssimo e horrendo o e rime de sodomia", táo contrário aordem da
natureza, que era "indigno de ser nomeado", quanto mais cometido: crime rerrí-
vel, que levara Oeus a destruir as infames cidades de Sodoma e Gomorra na
remota Antigüidade, e ainda provocaria "terremotos, tempestades, pestes e fomes"
se náo fosse extirpado da face da Terra. Abominável e torpe. assim se julgava o
chamado "vício nefando", pecado que parecia "feio ao mesmo demonio".' Fazen-
do eco aprega~áo dos teólogos e ao que dispunham os códigos civis e eclesiásticos
desde séculas, as Constitui<¡:óes baianas execravam os aros de sodomia e destina-
varo os culpados da Colonia ao tribunal do Santo Ofício.
Nem por isso deixaram nossos povoadores de praticá-la afarra. Homens de
todas as classes e ra~as, padres, autoridades, mulheres, ~rian~as.: as font~.s
lnquisitoriais revelam-nos ampla variedade de individuos e hgames nefandos •
como enráo se dizia, espalhados de norte a sul do Brasil. E longe de ser urna
peculiaridade colonial supostamente acalentada pelo ardor dos trópicos, a sodomta
'
grassava em lOda a Europa, .
rJislvti aos o¡¡,os (111.1
J_. · J¡ui
soclt ts t tiA ki' como sola
!52

os os ecados na era das Reformas. Sujeiros a rigurosas penas,


acorrer com rod P . ram esses protagonistas da moderna Sodom
incluindo a marre na foguelra, queme , . 1 . , a
. d ? A ames do propno sexo, wmossexua1s, lesbi-
de que a ngor, eram acusa os. m "
e ' . d ·ruinosos contra Deus e os costumes huma-
cas ou meros prancanres e aros en . 1 .
. . · ma incerteza parulhada tanto pe os erudnos e
"? Eis um dilema mqUietanre, u
nos · , ¡ maioria dos anrigos nefandos, fossem da velha
pelos poderes da epoca como pe a
crisrandade, fossem do Novo Mundo.

SODOMIA E HOMOSSEXUALIDADE

ENTRE OS ATOS E O CAllA TER

Em se u clássico ensaio A vontade de saber, M ichel Foucault vi u no


homossexualismo um conceiro típico do século XIX, inscrito na incorpora\io das
"sexualidades periféricas" e na nova especifica~áo dos indivíduos pela sciencia sexualis
ocidenral. 2 O homossexual seria, a partir de en tao, u m personagem dotado de
urna rrajerória panicular, urna infancia, um carárer e urna anatomía específicas e,
quem sabe, de urna fisiologia misteriosa. A "medicaliza~ao" do homossexual se
oporia, assim, aanriga concepr;áo de sodomía presente nos direiws civil o u canónico
enquanro ato proibido pelos mandamentos divinos e pelas leis humanas. O ho-
mossexual tornar-se-ia um indivíduo doente, anormal, e náo apenas o sujeiro
jurídico de um crime a um só rempo religioso e civil. Foucaulr nos indica, com
efeito, urna discinc;:áo imporranrissima entre o sodomita e o homossexual aluz dos
saberes eruditos ocidenrais, pois foi sem dúvida a partir do século XIX que aquele
último adquiriu os contornOJ individuais tlpicos que !he atribuem ainda hoje os
discursos incitadores e repressivos das condutas homófi!as. A antiga sodomía, no
emanto, embora designasse um ato ou um conjumo de aros pecaminosos, ofensi~
v~s a ~eus e a lei, jamais se limirou a esse significado, nem seus autores foram
VIstos Slmplesmeme como evemuais praricames de um crime ou desvío moral.
Táo longa como a teologia moral cristá, a história da sodomía foi antes de rudo a
hutóna de d1lemas e incertc:zas.
A palavra tem sua origem A · -r d · 'o
. . no nugo 'estamento, a propósito da estrul~a
dlVma de Sodoma narrada no Gt · A d s
. . . nesu. recusa de Lar e m oferecer aos mora ore
da c1dade os do1s anJos que h · h d
avla ospe ado, e o suposro desejo sexual que a
153

wdos anima va quando for~aram a porta daquele p d h b


. , d . ~ le oso e reu no encal<;o dos
hóspedes, e1s as ra1zes a assoc¡ac;:ao enue 0 castig d S d
1 ~ · 0 e 0 ama e a condenac;:áo
J.udaica das re a~oes sexuaiS entre homens. John B 11 .
h . oswe • autor de tmporcanre
esrudo sobre a omossexual!dade no passado, sugere-nos ue as . 1. _
. d " ·'d. d •· " . . q Imp!ca~oesse-
xuals o ep1so 10 so omitlco , mclusJVe 0 castigo 1 l
. . ce este, resu taram de urna
leirura d1srowda daquela passagem do Génesis por pa t d al ,
, . . . r e e guns apostolos e
teólogos da Pamsuca, md1cando que a hosrilidade dos m d .
. ~ . . . ora ores contra os anJos
e a desuuu;:ao d1vtna da c1dade representavam apenas a inospiralidade dos sodomitas
e a forre reprova~áo . da rradi~áo
_ judaica
, . a tais
, atitudes'· Se¡· a co mo ror,
e o Anugo ·
Testamento contmha reprovac;:oes explicnas as relaróes mascul 1'nas 1
,. . " . , . .. . ,. ,acome<;arpeo
Levltlco, que cons1derava abommave1s as rela<;óes sexuais emre dais homens,
como se um deles "fosse mulher" (18,22 e 20,13). Combase nessa condena~áo,
Sáo Paulo julgou rorpe a sensualidade "de homens com homens" (Rm ¡ ,27}, e foi
dos primeiros a usar o termo sodomita (segundo a maioria das uadu\óes) para
aludir aos masculorum concubitores, incluídos pelo apóstolo na vasta gama dos
fornicários. 4
No limiar do criscianismo as condU[as homossexuais enavam já bem
distinguidas da heterossexualidade mas, como nos lembra Aries, se encomravam
mergulhadas "no vasw arsenal das perversóes" que caracterizava a sexualidade em
getal. 5 Ca m a pálida exce~áo da cópula entre esposos, única prática legítima desde
que visando 3. procriac;:áo, desejos e aros sexuais eram pecados mais ou menos
abomináveis, quaisquer que fossem os seus protagonistas. Até mesmo a cópula
conjuga!, que na ahura do século XII se nansformaria em obriga\áo dos casais e
símbolo da uniáo corpórea entre Crism e a lgreja, por séculas foi vista com extre·
mamá vontade pelos teólogos, sempre prontos a recomendar a abstinencia sexual
para os esposos o u a condená-los, como Sáo Jerónimo, em caso de ardor excessivo.
Em meio a essa reprovac;:áo generalizada do sexo, a sodomia pcrdeu o significado
mais específico que marcava sua origem, confundindo-se ~m inúm~ros tex,tos
com a idéia de luxúria e com a ampla no~áo de fornica~áo. Amda no seculo IX, 0
hispo Hincmar de Reims a identificaria com diferentes aroo; contra na/Uru, tn-
duindo a emissáo de semen com urna freira, um parenre, a mulher de .o~t.Km,
. . , · da manipulao¡io sohrana do
mu lh eres gráv1das, anima1s, homens, e ace por meJo . . l
penis. Sodomia, fornic1\áo e luxúria eram quase sinónimos. ou podJam se- 0 ' na
teología moral da Alta Idade Média, apesar do permanente destaque que sempre
se deu ao coito anal como ato sodomítico por excelencia. . ,
. ao pro¡;esso que 1cvan.l J
A partir dos séculas XI e XII. em meio al . • .1•
. l . moral scxu cnsta unt t-
sacramentaliza<;áo do casamento e da cópu1a conJuga' il
'"
. . d ~ sintética da luxúria, incluída pelos tl.:ólogos na lista
car·se-la por melo a llOIJJO - . " , _. - l " . " .
dos ser e pecados capirais. Reunidos sob essa no~ao, os . VICios l .l cune sena m
d. 'b 'd
caregorizados, !S tri os em ·
Ul
classes mais o u menos ano gas, capaze.s de descrever
_ . . . . .. .
. .- rol de rransgressoes mora1s. Consrruu-se-1.1, ass 1m 0
com ma 1or prec1sao o vasto . . _ , ._ . . '
. h 1F 1 h
que MIC e oucau re amo
u de morfologta cnsta dos a tos, ttptca do ractonaltsmo
.
, . h d m sistematizar os conhecunentos sobre u uso do carpo
esco 1asnco, empen a a e ..
e - d ·ro de naturew· narureza humana e divina, convém lago
em wniJaO o conce1 · .. . , .
frisar, táo racional quanto ética, que admitia a leg¡tJm!dade da copula procnadora
entre marido e mulher e rejeirava, hierarquizando-os em gravidade, os demais
aros sexuais. Nesse novo contexto a sodomia passou a significar, enquanro aro, os
desvios da genitalidade na cópula entre indivíduos do mesmo sexo o u até de sexo
diferente, e com mais freqüencia o coito anal homossexual o u heterossexual. E, ao
contrário do período anterior, quando em muitos penitenciais era tratada corn
relativa indulgencia, a sodomia acabaria elevada ao cume dos pecados da luxúria,
máximo vício contra natura, posic;áo que, em diversos estatutos sinodais dos sécu-
las XIII e XIV, alternava com a bestialidade.
Fortemente identificada com o coito anal, há muito estigmatizada na tra-
dic;áo ocidental por sua associac;áo com sujeira, excrementos, impureza, dem0-
nios,6 e aproximada ao bestialismo por sugerir a semelhanc;a da cópula com ani-
mais, a sem-razáo animalesca a que a busca do prazer poderia conduzir, a sodomia
náo perdeu, no pensamento dos escolásticos, os vínculos que sempre guardara
com as condutas homossexuais. Albeno Magno, o mesmo teólogo que vimos
legislar sobre o débito conjugal, definiria sodomia como a "uni5.o carnal entre
pessoas do mes m o sexo", especialmente homens, acrescentando que o sodomita
poderia ser "curado" se lhe fosse es fregado no i\nus a pele da hiena ... Santo Alberto
adotaria, pois, a cren<;a popular descrita na Epístola de Barnabé, julgada falsa
pelos compiladores dos Evangelhos, segundo a qual a hiena mudava anualmente
de sexo. 7
A mais influenre definic;áo de sodomia construída pela escolástica, visível
nos teólogos católicos e protestantes da época moderna foi, porém, a do famoso
doutor angéltco, Santo Tomás de Aquino. O célebre autor da Suma teológica pro-
c~rou.' antes de rudo, classificar os grandes pecados que implicassem desvios irra-
ctonats da sexualidade natural d' · d . , ·
, . ' Jscernm o, ass1m, a busca de poluc;áo sem coito
com o fito u meo do prazer ven' " . .. . · á·
d . . p ereo • quase um smommo de masturbac;áo sollt r1a
ou a OJS, as formas nao naturais d 6 l . . .
· 1h e e pu a, tnclumdo a fela<;ao, a cuntllngua e 0
cotto ana eterossexual· a bestialid d h d' d d .
·- 1 d "h ' a e, e ton a cópula com bichos a so omta,
umao scxua e omem com homem e mulher com mulher". s P:ra o douror
155

angélico, portan ro, sodomia era o mesmo que r ¡ h p .


e ac;oes omossexuaJs entre ho-
mens ou entre mulheres, embora também ele parr'd• · d e .
• ' 1 ano a mor,ologJa dos aros
considerasse o coHo anal emre machos como a suprem ·e _ .. '
. " a mamresrac;ao da perfeita
sodomw.
Entre a cópula anal e a hemofilia sexual assi
._ ., •
'1
moscJavamossa 1osda
'b'
cristandade na defim~ao do abommavel pecado sodomítico d'l b .
, 1 ema que so rev 1-
veria aré os serecenros. N5.o chegaram, por cerro, a definir qualquer espécie de
"carárér sodomítico", longínquo precursor do personagem homossexual que viria
a luz no século XIX, mas náo restringiram o sodomita a mero culpado de atas
impuros. Vislumbraram a ocorréncia de conduras homófilas, e ralvez náo renham
ulrrapassado esse ponto por apego excessivo acópula anal enquanro am definidor,
senda a prática de ams o modo essencial com que apreendiam e julgavam 0 uso
sexual do carpo. Prava máxima dessa en fase no inus foi o desamparo revelado por
quase ro dos os teólogos no entendimento da sodomia foeminarum, conforme vere-
mos a seu tempo. A maioria deles, mesmo quando admitia que também as mu-
lheres podiam "unir-se rorpemente urnas comas oucras", escusava-se de examinar
a matéria em detalhe, o que causaría profundos transtornos aos juízes doravante
encarregados de sentenciar "mulheres nefandas". Afinal, se as mulheres náo ti-
nham pC:nis, como poderiam perpetrar o supremo ato sodomítico urna na oucra?
Seria o uso de "instrumentos", incapazes de produzir semen, o equivalente ao falo
masculino na sodomia entre fC:meas? Dilemas como esse náo faltariam nos proces-
sos judiciários de todos os países na época das Reformas, tempo de intolerancia
prenunciado pelas persegui~óes nos séculas XIV e XV.
Sodomia, "vício dos clérigos", assim a viu Pedro Damiáo, amor do impor-
tante Livro de Gomorrah no século XI, a espelhar a forre tendencia de identificar-
se o pecado nefando e a uniáo sexual entre homens pelo "vaso posterior" • como
enráo se dizia. Os saberes eruditos náo limitaram sua concepc;áo de sodomia a
cópula anal, mas, prisioneiros desea última, ficaram a meio caminho da posterior
no~áo de homossexualidade. _ .. d "
Menos problemática. era, por outro 1ad o, a 1'den tificarao
T
dos nefan os no
plano social e popular. Homens ou mulheres que buscassem 0 prazer comaman-
nhecimento da soc1edadc,
tes do mesrno sexo, e cujas atitudes passassem ao co
d h ldade _ 0 que, natur..Imenr<,
eram passíveis de discriminac;:áo e as vc:zes e osn 1 pé.
. 1 • . das diversas culruras euro las
vanava conforme a maior ou menor to eranc•a ' . d sod mia
d' d · - cial dos prancanr<s a o ·
•ante do homoerotismo e, ainda, a P 051 ~ 30 so 8 11 · d·-- nos
·Uf1Üty fohn os"" '" •~- ·
Em seu Christianiry. Social Tokmnct and Homosr> '· d 1 -'ncia para
d' 's fOram l!poca e ro e••
que, no conjunto, os primciros séculas me •eval
156

. d toda a Europa. e até mesmo a lgreja, ernbora


com os suposros homossexuaJs e , . ~ d. h
. as práricas sodomltlcas, nao 1spun a penas
teoricamenre reprovasse com ngor . .
. d' 'd compreendidos em taiS rela~oes. Quer-nos parecer, as-
graves para os m lVI uos d' · l'd d
. - d d'cada pelossaberes eru 11os a sexua~ a e a partir
51 m que acrescente arem¡ao e 1
do ..séculos XI e XII. bem como o recrudescimento das penas contra a sodornia
entáo verificado nas leis eclesiásticas e civis, provocou mudan~a~ nas atttudes po-
. l d olhares de reprova~áo em
pu Iares, esumu an o .
face da homofiha.
. . . _
Seja como for, náo deveríamos atribuir essa d•sc_nmmac;:ao. popular contra
os homossexuais do passado táo-somente aquelas pressoes da lgre¡a e dos poderes
civis durante a baixa Idade Média. Em seu O uso dos prazm:s, Michel Foucault
mostra-nos que na própria Antigüidade grega, onde náo havia leis ou éticas
condenarórias do homoerotismo, e ande as relac;:óes desse gCnero eram vistas como
urna entre várias formas de amizade e de busca do prazer, os amores entre homens
eram objeto de normas e restri~óes sociais. A rela~áo entre dois adultos, por exem-
plo, era motivo de crítica ou ironia especialmente voltada para os suspeitos de, a
semdhan~a das mulheres, exercerem "fun~áo passiva" no coito. Reprovava-se, pois,
náo a rda~áo homoerótica em si mas o indivíduo que, abrindo máo de sua "supe-
rioridad< masculina" e de sua honra de cidadáo, experimenrasse o prazer a moda
"passiva e inferior" que caracrerizava as mulheres. E mesmo os vínculos entre
adultos e rapazes, vínculos confundidos comas rela~óes entre mestres e discípulos,
valorizados pelos clássicos como a mais sublime amizade e o "verdadeiro amor"
daquela sociedade, eram também objeto de preocupa~áo social. É provável, diz-
nos Foucault, que o principio da honra do jovern náo se referisse a posi~áo assu-
mida na cópula ou ao seu apego ao mesrre e amante, mas a um principio de
estilística geral: "náo convinha (sobretodo aos olhos da opiniáo) que o rapaz se
conduzisse 'passivamcntc', que ele se deixasse levar e dominar, que cedcsse sem
combate, que se tornasse um parceiro complacen re das volúpias do ourro, que ele
sarisfizcsse seus caprichos, e que oferecesse seu corpo a quem quisesse, e da manei-
ra pela qua! o quisesse por lassidáo, por gasto pela volúpia ou por interesse".'
.•Amores hornoeróticos nao eram, porranto, objeto de indiferen~a na amiga
rradl~ao oe~denral. Mas o que vernos acorrer nas manifesta~óes populares desde o
final da ldade Mód1a <algo de muito distinto; menos urna discrimina~áo contra
o us~ do corp~, menos urna reprov~io da "posi~áo passiva" no ato sexual, do que
o esugrna da mversáo O que p · h ·
. . . · arcc1a causar esuanheza, por vezes atirudes osus,
e~eármo e ltoma, era o fato de h · h 'b'
~ . . urn ornern vesm-se de mulher, ostentar a 11os
emmmos ou, mesmo quando "mú 10 " 1 · s
d . cu • teve ar e1ara preferencia por parcelto
o própno sexo. A inversáo so · ¡ d · ·1 d
"a os pap~1s scxuais, 10 mais do que o csr1 o a
157

'pula, eis o que parecia inquietar as moralidades po 1 ,


co . ,1 , . . puares, esngma que acabaria
bsorvtdo pelos reo ogos da escolasttca, osctlanres em d fJ . d ,
a . e 101r o so omna emre 0
raricanre do cono anal consumado e o adepto de reJa ~ h . .
p . 1 . c;oes omossexuaJs. AntJgos
PreconceJtos popu ares atuaram, po1s, nos dilemas do 5aber eru d'l[o, e senam
. por
ele aferados ao longo do tempo, de sotte que só com di" Id d d ,
. tJCu a e po enamos
demarcar a fronte1ra entre ambos. De qualquer modo no r · d
• tm1ar os rempos mo-
dernos, a gente comum reprovava os machos que se faz.iam de fémeas e vice-versa
como os homens e as mulheres que, mesmo conservando 05 "trac¡:os exteriores" d~
seu sexo, oprassem por andar com indivíduos do próprio género. Estaríamos lon-
ge do rempo em que um homem era isemo de preconceiro ou reprova~áo por
revelar~se "ativo" numa relas:Jo homossexual.
Examinando as perseguic;óes contra os sodomitas de Valencia entre os sécu~
los XVI e XVJll, Rafael Carrasco observo u que muitas denúncias populares, embora
incitadas pela lnquisic;Jo e contaminadas pelos critérios da moral oficial, nada
diziam sobre atas sexuais, mas táo~someme indicavam condutas socialmente
desviantes: homens que passeavam de máos dadas, homens que se "festejavam"
efusivamente, afagos, abras:os, carinhos ... Se o que interessava ao poder era espe~
cialmente a ocorrfncia da penetras:áo anal com "derramamemo de semen", o que
mais chamava a atens:áo do observador comum era a amizade excessiva entre
homens ou entre mulheres e, sobretudo, a ostentac;Jo de conduta avessa aos aui~
butos do próprio sexo, 11 No en tanto, é inegável que, a partir do século XVI,
rambém as moralidades populares passaram a identificar no coito anal um simbo~
lo expressivo da conduta homoerótica e, para tanto, contribuíram as investidas da
moral oficial sobre 0 imaginário popular, sobrerudo por meio da leirura pública
das sentenc;as e m que sobressaía urna clara associafáO mtrt o crim( dt sodomia (os
atos sexuais comprovadamente perpetrados pelo condenado. Nao é de estranhar,
aliás, que urna procissáo organizada em París pela Confraria dos Pe.nitentes, e::a
1583, na qual saíram Henrique lll de Valois e sua corte de jovens mtgnons - l dt
des hermaphrodites, como a chamavam - , fosse descrita pelo povo co~.a segumtc:
quadra: " Ils sont accouplés deux a, de~tx.ID'uru asstz d,(VO 1t manitrd Mau
. ¡tl<r .ITOUt•t
·· ¡ ., "12 Até o rer,· por tamo ' pod1a
VlCleux Quand ils únfilent par derrtere. . .,
ser motiVO de
. nuitos Sl~mhcav.l o poss'-
chacota popular, renda fama de sodomita, o que para 1
vel gosro pela cópula anaL >ários
e .
M as na cultura popular o perre1to d sodomía era um enrn: '
ato e mÚ
atributos do homoerocismo. No Canciontiro gtral de (i'arcia tÚ R~st ' 05 verso~
d D b. d ort< F..lava em soys e nio son
e , )oáo de Menezes a urna dama les tea • e . .1 l · 1 G~rio
dama" • "soys macho", etc, L' Séculas depois, no própno BraSI co 0013 '
!58

. , ma a "uma dama que machea va out ras mulheres"


de Matos fana tambem um poe >¡ , '
. . , d'd homens queres/Que por amores te tomam. Se es rnu.
aromzando: que ren 1 os lh ~" H A 1 .
_ h /E , homem para m u eres. pesar le mcapazes de
lher nao para omem es ~ . 1
' . " diúam os teólogos, na cromca popu aras mulhe.
cometer o colW ana1' con arme h .
" hos" se agissem como omens, mvertendo a con.
res eram logo trata das por mac . . h
. l te exigida. Náo sena daferenre com os omens: rnais
duca que lh es era socaa men . .
. d . 1 · famava-os 0 efemmar-se o u o andar publicamente ao
do que o eso 1o a copu a, m . "
lado de efeminados, dando mostras de que os quenam . como a mulheres".
0 vocabulário popular indicativo de conduras homossexuaas era, nesse caso, di-
versificado e ambíguo, e ora apontava para a inversáo do sexo, ora aludia a aros
sexuais. Na Espanha chamavam-lhes cabalgados, puñetarios, termos alusivos apas-
sividade no coi ro e a prática de masturbac;:óes, respecovamente, mas rambém se
usavam expressóes como mariquitas, cotitas, indicativas de condutas femininas.li
Em Ponugal era corrente o emprego do termo fonchono ou fonchiio, equivalente
ao puñetario casrelhano ou, segundo Morais, ao efeminado. )á dizia, a propósito,
0 dirado popular: "se arruais sois vadio; fanchono se sois caseiro", o u seja, suspeito

de fonchonice por viver domesticamenre como mulher. 16


Ourra expressáo popularíssima em Portugal era a de somítigo ou sométigo,
equivalente ao somético espanhol, alusiva tanto ao homossexual como a pessoa
mesquinha, sovina, atributos que rambém caracterizavam o judeu no vocabulário
popular. Se somítigo era urna variante de sodomita ou de semita, eis urna quesráo
que deixaremos sem resposta, masé absolutamente cerro que o imaginário ibérico
fundiu a desqualiflca,áo que pesava sobre os fanchonos com a que denegria os
judeus (ou crisráos-novos), e ralvez porque uns e ounos eram os réus mais fre-
qüentes das fogueiras inquisitoriais lusitana e espanhola. Náo por acaso, lembra-
nos Carrasco, a piar injúria que se podia lan(j:ar contra um hornero espanhol era
chamá-.lo de puto judeu, prova dessa curiosa relac;:áo entre sodomia e judaismo nas
mentalidades populares da Península. 17 As conexóes entre sodomia e heresia náo
eram, aliás, exclusivas da Península Ibérica, nem tampouco da época moderna,
pois desde o século XIII, mosrra-nos Boswell, eram comuns as associac;:óes entre
.hereges e sodomitas no discurso onc1a
r · Jd - · ' 18
e repressao aos alb1genses e aos cararos.
falvez nessa época se tenha 0 · · d · ·1 d
,. . ngma o a asslm! ac;:5.o entre crime de fé e peca 0
sodommco, assoc¡ac;:áo freqüe ,· ' ·
. . nre em vanos cod1gos modernos, bem como as va-
nadas mese! as esrabelec1das no ¡ · , · b
· h · N magmano popular entre desvios nefandos, ruxa·
nas e eresJas. a Franc;:a por e l . .
. r ' xemp 0 • o termo mais vulgarizado e peJorauvo
para d es1gnar os nerandos era b
d B 1á· ougrr, que, segundo Ménage aludia tanto aos
pavos a u g na, suposramenre afe· , ' 1 , ¡.
· d . Itas a cópula sodomícica quanro aos 1ere(
cos, quelma os por cnmes de fé ;\ scmelhan(j:a dos homossex~a.is. I'J
159

Fanchonos ou pU[os, mariquitas ou somítigos h .


. ·e d 1 1' 'os omossexuaiS eram da-
mente 1dentll1Ca os pe as mora 1dades populares enq . d' ,
ra , . ~ ,. uanto m tvJduos desvianres
de seu propno sexo. E, VI timas da crescente perseguí'"'- . d' . , . .
. d . . d , . Tao JU leJana, senam-no
cada vez ma1s o escarniO e o odw das popula~óes em r d E
0 a a uropa moderna.

DA JVLE!IANCIA A HOSTILIDADE

A legisla<;:áo penal contra as práricas homossexuais no Ocidente, incluindo


a pena de morte, data do final do lmpério Romano e da Alta Idade Média: leis de
Constantino e Teodósio, Código Justiniano no século VI, leis visigóticas no sécu-
lo VII. Mas os especialistas na história do homossexualismo sáo uninimes em
considerar essa legisla,ao episódica e inócua, ainda que justificada pela moral
austera do cristianismo e m ascensáo. A era das perseguis;óes, a má sane dos prari-
canres da sodomia viria sornen te a partir do século XI, estimulada por urna Igreja
fortalecida pela Reforma Gregoriana e, ainda, pelas monarquias feudais em pro-
cesso de expansáo.
Já no Ill e no IV Concílios de Latriío, realizados respectivamente nos sécu-
las XII e XIII, wmaram-se decisóes mais severas contra os culpados do nefando,
especialmente quanto aos clérigos, condenados a deposic;:áo das ordens e ao
confinamento monasterial. Mas a vigiláncia e a perseguic¡:áo dos homossexuais
náo se limitou amoralizac;:áo dos sacerdotes, esforc;:o precursor da cruz.ada tridentina
na época moderna. Os estatutos sinodais da Baixa ldade Média, a seguir o rigorismo
dos concílios gregorianos, tenderam em sua maioria a reservar aos bispos a absol-
vi~áo dos culpados do nefando, esvaziando-se o poder dos curas nesses casos e
neutralizando-se a relativa indulgencia dos penitenciais a esse respeim. Paralela-
mente, como vimos, os teólogos rrataram cada vez mais do assun~o, ~ra e~ ter-
mos gerais, ora e m situas:óes específicas, associando sodomía a heresaa e ~.slanusmo.
Além dos que viram naquele "vício" um coscume dos cátaros, dos albagenses ou
dos seguidores de Pierre de Vaux, argumento poderoso para ilegitimar moralmen-
te as defec~óes da lgreja, houve os que como Jacques de Vitry o assoc¡aram aos
. •
costumes aslamicos, ao Coráo e a práuca. d os ca1''aras. 1an<ando-se
T
a ,...cha de ne-
• ,..--

fandos sobre os principais inimigos da cristandade ocidental. FOI, portanto, no


. 'd' · internas e em meao ao
contexto da afirma¡;:áo da Igreja contra suas d ass1 encaas '
. d d 1 . das Cruzada.!, que os pra-
processo de expansáo territorial da cnstan a e pe a vla
t' d h 'l'd d da.~leis Em toda a Europa. os
!Cantes a sodomía passaram a sofrer a osu 1 a e · soc1 · ,.
ód' . m 0 "crime de om~> •
e &gos civis tornaram-se extremamente ngorosos 00
TRL)l'ICO nos PECADos
160

fixando penas infamantes e capirais que seriam a base jurídica das persegui~Oes
lipicamente modernas. . . ..
Em Fran¡¡a, a compila¡¡áo de Tourraine-AnJoU diSpos, em 1246, que todas
os suspeitos de sodomia deveriam ser presos, julgados pelo biSpo e con~enadas a
a
fogueira, semelhanc;:a. dos heréticos, urna vez comprovadas as acusac;:oes. Os li-
vros de "Jostice et Plet", datados de 1260-1270, também chamados de "código de
Orléans", fixavam para 05 homens culpados de sodomia a casrrac;:áo, murih;óes
de ourros membros e, no caso de rerceiro lapso, a marte na fogueira. 20 Na Penín-
sula Ibérica, 0 Código de Afonso, o Sábio, estabeleceu no século XIII que os
culpados de sodomia seriam condenados a morte, salvo se menores de 14 anos
violados por outrem, estendendo-se o castigo aos praticantes de bestialismo, in-
clusive ao animal com que se eferuara o hediondo aro. Também na Inglaterra,
na¡¡áo das mais tolerantes no castigo dos nefandos, urna lei do século XVI fixou a
pena de morte por meio do "sepulramemo vivo" para wdos os que manrivessem
rdac;:óes sexuais com judeus, animais o u pessoas do mesmo sexo. No mesmo sécu·
lo, até mesmo na Irália, cuja "rradic;:áo sodomítica'' ficaria famosa em roda a Euro-
pa, várias cidades estabeleceram leis persecurórias contra os homossexuais, a exemplo
de Bolonha, Floren<;a e Perugia. Suplícios, enforcamentos, afogamentos e foguei-
ra, eis o destino que a crisrandade passou a reservar aos sodomitas em quase todas
as na¡¡óes no ocaso da Idade Média.
No en tanto, o rigor da legisla¡¡áo dos séculos XIII e XIV nao parece ter sido
acompanhado por urna sistemática perseguic;:áo ames dos tempos modernos, em·
bora haja registros de algumas execu¡¡óes naquele período, envolvendo geralmente
homens acusados de outros delitos além da sodomia. 11 Igreja e monarquia dispu-
nham, a rigor, de parcos instrumentos de vigil:incia, com excec;:áo da confissáo
obrigatória estabelecida em Latráo, e dependiam imensamente da aquiescencia
das comunidades em denunciar os culpadas. Mas a reprova~áo popular dos "ho-
mens efeminados" ou das "mulheres-machos" náo parece ter sido, durante muiro
tempo, hostil o suficiente para fornecer copioso número de réus as agencias de
poder. Diversas leis, inclusive as portuguesas de D. Afonso e D. Manoel em ple-
nos stculos XV e XVI, acenavam com premios e gratificac;:óes para os delatores de
sodomitas, 21 .possível sinal de que, sem incentivos, a engrenagem punitiva ficaria
sem réus. Seja como for, a partir do século XV, e sobretudo no século XVI. os
Estados europeos renovaram sua hostilidade jurídica contra os culpados de sodomia
e, insuflados pela propaganda moralista das Reformas, as popula~óes de quase
toda a Europa, católica ou protestante, comec;:aram a despejar, por compulsáo ou
· ·¡ ou d a 1nqu&su;:ao.
vontade, centenas de réus nos cárceres da)u s t"u;:a ctv1 · · - D a [ngla-
161

ra ao Santo Império de Carlos V, da Suí<;a calvinista a' p ,


lCf .
l b .
enmsu a I énca diver-
sas leis relteraram a, mane-como pena ordinária para os culpados de sodomía
compelindo o povo a dela<¡ao. '
Em Portugal, a exemplo da Espanha, o pecado nefa d "d
. . n o comeu o entre
homens ou entre mulheres tornar-se-ta equtvalente ao crim e de lesa-maJesrade
.
e
Os culpados seriam, queimados
. .
e feitos "por fogo em pó" para q d

'
ue e seus carpos
náo resrasse memo na; e, amda, todos
. , . .
os seus bens reverteriam ao t é .
esouro r gto,
ficando seus filhos e news mabets e mfames para o resro da vida.23 Náo tardaría
para que, em parre da Espanha e no Reino lusitano, a sodomía passasse aesfera
inquisitorial como beneplácito do papado. Náo tardaria, ainda, para que 0 amigo
escárnio popular contra os sodomitas se convertesse em violéncia e hostilidade
abertas, náo só na Península como em outras partes da Europa, inclusive no além-
mar. Na Valencia moderna, um padeiro levado a lnquisi<;áo por acusa<;áo de
sodomia fora absolvido por falta de provas. Pois, emáo, coma-nos Rafael Carras-
co, a massa enfurecida invadiu a catedral da cidade e obrigou as autoridades a !he
darem o preso, que só náo foi queimado vivo porque apareceram uns franciscanos
a convencer a multidáo de garroteá-lo antes: 2 ~ exemplo extremo, sem dúvida, mas
comprobarório de um novo tempo em que a violencia náo mais se restringía a
letra da lei.

"GUETOS" NEFANDOS, AMORES LJ!SB/COS

O impacto do furor persecurório contra os sodomitas foi desigual, geográ-


fica e socialmente. Vi a de regra, a persegui~áo recolheu entre as massas de arresáos,
trabalhadores e deserdados suas vítimas mais freqüentes, concedendo-se anobr<:za
e aos demais segmentos da elite certa liberdade de movimentos e hábicos sexuais,
exceto se o gosto pelo nefando fosse acompanhado de delitos como trai<;áo e ho-
. íd" ' 1 d
m1c 10. Em cenos países, foram poucos os reus eva os 30
cadafalso
.
pelo pecado
sodomítico, inclusive na ltália, a "moderna Sodoma", e na própna Inglaterra, até
- política dos puntanos
pe1o menos os meados do século XVII, quan do a ascensao . l
1 . l"b d
ranstornou episodicamente a relauva 1 er a e em
d que viviam. os, .buggm mg e-
ll E .· 105 países ¡bencos - a~~r
ses. m outros lugares a repressáo f01 teroz; menos 1 • . d
d . 1 d aloguwa- o que nas
e muitos "fanchonos" e "sométicos" terem s1do eva os .. d . _
.- 1 d 2~> E numa y¡sao e conJUn
regloes calvinistas, a exemplo da Suí<;a e da Ho an ,l. ' 'VI dos do
to . dos do século X e mea
'a grande leva de execu<;óes Sltuou-se entre mea XVIII
XVII, declinando sensivelmente em toda a Europa do século ·
a
O maior ou 0 menor grau da repressáo sodomía obviaml'nte incidiu nas
lha crisrandade, encontrando-se desde arirude
con d utas ne fan d as d a Ve " , " _ , . s
d escontral'd as e pu, bl·c·¡s até a formaráo de guetos e subculruras rdatJVJil1ente
1. • · -r ., •
clandestinas e acuadas pelo medo do castigo eclesJasttco o u secular. Na ltália do
.
Cmquecento, as re 1at;o'es hon10ssexuais
· eram notórias e m rodas as grandes cidades
. ,
. larmente e m N'poles
parucu .. , Roma • Veneza e Florenc;:a,
. . . ha vendo que m arnbuísse
05 males políticos que assolavam o país ao casngo d1v_mo conrr~ a cxpansáo do
nefando. Na Floren~a de !403, a exemplo de o u tras Cldades, cnou-se a Oncsta,
associac;:áo encarregada de vigiar a moralidade pública e, sobrerudo, de favorecer a
prosriruic;:áo em detrimento da sodomia. A hália viu nascer, assim, sua famosa
civilitil puttanesca, mas nem por isso a sodomia deixou de ser conhecida em toda
a Europa pelo sugestivo no me de "vício italiano" Y
Pálidos eramos mecanismos de repressáo, a come~ar pelos tamburi, espécie
de caixas que recolhiam denúncias anónimas conrra violencias sodomíticas e que,
reoricamenre, podiam conduzir os acusados as barras da Jusri~a, a excmplo do
acorrido com Leonardo da Vinci. Mas nunca se aplicou ali a pena de morre,
prevista nos casos mais acinrosos, qui~á violentos, sempre comurada por multas
mais ou menos pesadas, conforme as circunsdncias. Entre os nobres, ou nos mei-
os intelectual e artístico, o homoerorismo esteve longe de ser nejandus ("o que
náo pode ser diro"); confundía-se, a moda clássica, com as rela~Oes de amizade e
com os vínculos entre mesrres e discípulos do Renascimento e, nesse sentido, era
até objeto de glorifica~áo. Curiosa era a sociedade italiana dessa época, onde
In laudem
Giovanni della Casa chegaria a dedicar seu canto de louvor ao nefando,
Sodomiae, a ninguém menos que ao papa Júlio IIL Mas o homoerotismo náo
era exclusividade das elites, disseminado abertamente em rodas os níveis sociais e,
náo por acaso, os italianos pobres, os soldados e os vagabundos sempre pareciam
bem representados enrre os estrangeiros punidos alhures pelo pecado nefando,
tan. ro em países catól~co~ como protestames. Em Portugal, Iembra-nos Luiz Mor~,
1o simples fato de ser Italtano ou mesmo ter "passado pela ltália" implicava suspei-
tas de "envolvimenro como pecado abominável".28
Na Franc¡:a a situac¡:áo era ambígua, tamo no tocante arepressáo como com
relac;áo ao estilo de vida dos bougm e dos bardaches. M a u rice Lever fala-nos de cena
"italianiza~áo da Fran~á' no início do século XVI, estimulada pela corte de Cata-
n na de MédlciS, 0 que significou, em termos eróticos, o cultivar de hábitos e
meneiOstfp•cos 'da Sodoma peninsular. Henrique III e seus mignons no século
XVI, Ph.l!.pe D Orléans, o Monsieur, no século XVII, a corte francesa acabaria
conhec1da em toda a Europ , da
. a como o cenero da luxúria, da liberunagem e
sodomla, a pomo de o nefando ficar também conhecido como "vfcio frances".
0 NLHNilP 1 A Col (lNI.I
163

Entre os nobres, porém, que gozavam de priv"l, · · l .


• . .. . 1eglos mc Us!ve no campo de
as preferencias sexual~, a sodom1a era chamada de b . d ..
su. . . - " 1 " eau VIce, a ffiltJda como
rra•o de d 1sum;:au e e urme dos cortesáos. Glorificada co ál' .
'" · ¡ ¡ . mo na 1t 1a, a sodom1a
chegaria a e~.wnu ar, ~m p e na VersaJII~s de Luís XIV, a funda~áo de urna "socie-
dade secreta , confrana de homossexua1s dorada de estatut . .
. _ . os, CUJO awgo 42 rezava
que "se algum dos trmaos v1esse , a. se casar, seria abrigado a d ec1arar que nao_
0
fazia senáo pelo be m de seus negocws, o u porque seus pais o obrigavam a isso ou
porque era preciso deixar um herdeiro'\ frisando ainda que jamais amaria 'sua
esposa e só dormiria com ela para fins de engravidá-la. Náo fossem os nobres
confrades adeptos do "be! o vício", estariam nesse artigo a reiterar, com exímia
precisáo, as regras da escolástica sobre o uso natural do sexo conjugal.
Glorificada e descortinada no meio aristocrático, a prática da sodomia era
violenramente reprimida entre as classes populares. Na corre era 0 belo vício,
consagrado pelo espírito, pelo nascimenro ou pela fortuna; nas ruas de Paris era
motivo de perseguic;:óes e espetáculos que, na pra<;a de Grhe, mosrravam os ne-
fandos queimados para regozijo da multidiio. Os homossexuais da plebe niio tive-
ram saída sená.o a de se esconderem em tavernas, hospedarias, termas e ourros
lugares do basjond parisiense, mal separados dos bordéis e das casas de alcouce:
mundo camuflado pelo medo da repressáo, registrado náo na crónica da cone,
mas nos relatórios da intendencia organizada por Luís XIV. Nesse meio for~osa­
mente defensivo e semiclandestino, enconreamos um esbo~o de subculrura
homossexual, que ora rompia cenas barreiras sociais, ora reproduzia a cruel explo-
ra,ao do Antigo Regime, incluindo o tráfico de meninos para as orgias de bur-
gueses, nobres o u clérigos?J
Siruac;:áo análoga ocorria na Península Ibérica, embora as eones lisboeta e
madrilena fossem menos abertamenre nefandas que Versalhes, e as conduras
homófilas da massa mais camufladas do que em Fran~a- nem ranro pelo maior
rigor da repressáo como pela imagem rerrificante que inspiravam a pris~o c. a
fogueira inquisitoriais. Em Valencia, coma-nos Rafac:l Carrasco, podcr-sc~la .'" 15 -
1um b rar u m verdadeiro gueto homossexua,1 cnpwssoc1e
· · dade organizada cm lun-
- d as re Ja~óes sodom!ticas, mclum
~ao
· · d o prosmuros,
· alcovitciros e grupos de ho-
.. mcsmos lugares e se: rodca-
mens que se conheciam muiro bem, frequenravam os
"d ." p í da urna linguagcm verbal e
vam e precaw;:óes contra a infamia . ossu am ro
¡· s Tratavam-sc muruamcnre
gestua 1própria, códigos de sedu~áo e termos pccu oarc · . _ lh
' - fi !adoras da mvcrsao que es
por wuca, puta, m~u marido e expressoes a ms, rcve .. . . ..
i 1 . d o historiador dos somttooos
mpun la o prcconceito popular. Mas Já nos a verte . . ¡fico e
valencianos: "a sodomia consrituiu um campo de acividade mats mesp«
TJH)l'JCO nm PECADos
164

ossexualidade"· atitudes defensivas, linguagem peculiar


ab erw que o d a atua1 h o m • ~ .
. d h ld de contra os agressores externos nao encobnarn a fluidez
o u are gesws e osn 1 a " A. • ,

da solidariedade grupal e a ausencia de urna consCienCia homossexual entre os


somiticos. 30
Também em Portugal, rerra ande o monarca D. Pedro amara se u escudeiro
Afonso Madeira "mais do que se deve aqui de dizer", a homofilia popular beirou
a "subculrura" que vimos marcar algumas cidades da vizinha Es pan ha. Em Lis-
boa, especialmente, os fanchonos se encontravam em hospe~arias, esralagens e
cavernas habiruais, conejavam-se na Ribeira, as margens do TeJO, ondea sodomia
se misrurava aprostitui~áo abena; e amavam-se em vários lugares inclusive públi-
cos, como 0 muro da Igreja das Chagas, as Escadas da Rua Nova, os Arcos do
Rocio e muiros ourros. Informa-nos Luiz Morr, com base em exaustiva análise
dos processos inquisiroriais portugueses, que cenas casas era m verdadeiros "bordéis"
homossexuais, pontos de enconrro mais ou menos conhecidos da populac;áo ern
geral." A morada do padre Santos de Al m e ida, capeláo do rei nos inícios do
século XVII, era chamada pelos vizinhos de "escola e alcouce de fanchonos", ou
ainda, "recolhimenro dos fanchonos", em razáo do vaivém de rapazes extravagan-
tes que caracterizava o lugar. Outro padre que freqüentava o "recolhimento" cha-
mava-o com gra<;a de "sinagoga dos somítigos", assimilando a "Sodoma do padre
Santos" ao suposto criptojudaísmo dos cristáos-novos.
Entre os fanchonos da "gaia Lisboa", de Évora e de Coimbra, era também
freqüente o uso de alcunhas e codinomes alusivos ao sexo nefando desfrutado em
segredo e que, asemelhanc;a de outros países, pareciam assumir com sarcasmo o
estigma popular da inversiio sexual. O padre Pedro Furtado, bacharel em dnones
e pregador afamado, era conhecido no bas-fonddos fanchonos como "Dona Paula
de Lisboa", e ainda diziaser mesmo "mulher que parira duas vezes". E assim como
ele, outros fanchonos, leigos ou clérigos, ostentavam nomes do genero nos
"conventículos" do nefando: "Isabel do Porto", "Cardosa", 'Turca", "Mosca",
"A Bugia da Alemanha", "O Arqui-Sinagoga'', etc. Além das alcunhas, havia ou-
uas insígnias paniculares e personalizadas que só vinham aluz na mesa inquisitorial,
como as "anáguas e cor nos bei<;os" usadas pelo jovem criado Manoel de Souza em
scus enconrros nocurnos. E as havia também públicas e exteriores, a exemplo das
gadelhas, cabelos longos com madeixas e franja, tiio comuns entre os fanchonos
que muitos viam na expressáo "moc;o de gaddhas" um sinónimo de somftigo.
A documenta<;iio do Santo Oficio lisboeta é, portanto, riqufssima em da-
dos sobre a vida dos ho_mossexuais portugueses na época moderna. Linguagem.
hábitos e códogos, tudo osso aponrava para u m esbo<;o de "subcultura" que vimos
0 l'lf-~·H'Dtl F. A Col uN lA
165

rer em Valencia o u Paris, hostilizada pela multidao , .


ocor . e, as vezes por 1sso mais
. rosamente persegu1da pelo poder. Em Lisboa como e d '
ngo ' m quase to a a Euro a
domia só era tolerada nas cortes e nos mosteiros ond h . P'
a so , " • e os av1a; fora desse
treito wculo, quando confrontada coma ordem familiar" d R e . ,
es . , . .. as e10rmas, v1v1a
semiclandesuna e acuada em prototipos dos guetos" homossexuais.
Menos visíveis do que a sodomía entre os homens e nem d 1 " .
. • e onge orgam-
zadas" soc1almente, eram as conduras homossexuais femininas. Yerno-las com
alguma nitidez nas corres, inclusive na Lisboa medieval, que inspirara 0 poema de
D. Joáo de Menezes "a dama que rufiava e beijava Dona Guiomar de Castro".
Mas náo resta dúvida de que, em maréria de amores palacianos entre mulheres, a
corte francesa foi insuperável, a come~ar pela própria Catarina de Médicis e suas
meninas, charmosamen te nomeadas de "f'escadron volant de la reine." Táo ardoro-
sas eram as paixóes de Sua Alteza que o memorável Branr6me náo reve como fugir
do termo "lésbica" ao descrever ramanho frenesí, senda aliás pioneiro no uso da
expressáo. 31
E afora o mundo palaciano, do qua! só citaremos aquele célebre exemplo,
os amores femininos aparecem igualmente visíveis nos conventos que, a seme-
lhanc¡:a dos mosteiros masculinos, eram espac¡:os ande grassava o homossexualismo,
apesar das precau~óes veladamente contidas nos diversos estatutos. Na Lisboa de
1574, duas freiras caíram na teia inquisitorial por rela~óes quase nefandas, já que
a mais velha, de 24 anos, dizia-se "máe espiritual" da mais nova e lhe dava "o peiro
para mamar". 33 Ambas náo foram sequer processadas, ao connário de duas freiras
espanholas que, segundo Antonio Gomez, teriam sido queimadas no século XVI
por aros sodomíticos perpetrados com o uso de instrumentos. 34
No entanto, o caso já clássico foi o descrito por Judith Brown em Atos
impuros. Trata-se de Benedetta Carlini de Vellano, por muitos anos abadessa de
um convento teatino em Pescia, acusada de ser visionária e praricar aws nefan~os
com Barrolomea Crivelli, sua acompanhante especial na década de 16 10 · UsbJca
ardorosa, Benedetta seduzia sua "escudeira" dizendo ser o aojo SplendJtello, ro-
e d . .. do-lhe fidelidade eterna
an o em seus se1os, bel)ando-lhe o pesco~o e prometen "
" 35
l d 1
em voz celestial". Benedetta acabo u ene ausura a, ta ve z apenas . pelas f..lsas
vlsoes
- "• e sua amante Bartolomea, freira ana lfabera, seque r foi pumda, como so(a
acorrer com a maioria das monjas naquele rempo. ¡
u da clausura convenrua '
No dia-a-diadas mulheres, forado luxo das corres o d h' ria
pou " . . . " h conhecimcnw os ¡sro -
cos casos de nefand1ces fe m m mas e egaram ao . ,__. ,
dor d n~io áso.lolffUIJ~"-'"""' ,
es, mesmo porque as Justi~as nao davam gran e ate 1 em seu
exccr0 . . conta por exemp o,
ern sttua'róes excepcionais. Monra•gne nos '
TR()I'ICO Do~ PECADos
166

•, . J_ . , ltdlia sobre sete ou oito mulheres que, segundo se dizi


Dzarw aa vtagem a • . . a,
. h d esrir se e viver como homens, uma das qua1s chegana a casar
un am opta o por v - ·
se terminando seus dias enforcada em 1580:~6 Mais escandaloso, e mais bern
d~cumenrado do que 0 caso italiano, foi o de Catharina Margaretha Linck, exe-
curada na Alemanha no início do século XVIII. A exemplo das italianas de
Montaigne, Carharina assumiria a persona masculin~, serviria como soldado a
vários exércitos, forjando falsas identidades, casar-se-la duas vezes com a mesma
mulher: a primeira na Igreja luterana e a segunda na "forma tridentina", o que
fizera entáo por conveniencias pessoais. Caso muiro rumoroso, que esreve a en-
volver conflitos com a "sogra" e o uso de um penis de cauro a guisa de falo
marital. 0 romance dessa intrépida alemá acabaria, após muiras discussóes judi-
ciárias, na espada do carrasco. 37
Histórias como as de Catharina Linck, além da legisla.~áo anti-sodomítica
que atingia igualmente homens e mulheres, levaram Louis Crompton a questio-
nar o "miro da impunidade das lésbicas" no Amigo Regime. Mas, comparado ao
número de homens executados, ou mesmo processados, o das mulheres foi quase
irrisório, como veremos oportunamente. Mais aprisionadas na sociedade que os
homens, mais discretas em seus amores, as mulheres rinham possivelmente "me-
nos ocasiáo de pecar" e melhores condi~óes de manter segredo sobre suas rela~óes.
E, para sorte de muitas lésbicas, a sodornia entre mulheres náo estimularia as
)usri~as a despender grandes esfor~os persecutórios. Ao conrrário da sodomia
masculina, as condutas lésbicas do passado eram menos visíveis para os contem-
porineos e o seriam ainda, aos olhos do historiador.

50MfTIGOS E FANCHONOS

. Pecadores inveterados no próprio Reino, os povoadores do Brasil náo dei·


xanam de se-lo na vasridáo dos trópicos, inclusive no "abominável nefando", pro·
regidos pela fraqueza da esrrur ura ec1estasuca
· • · e pe 1a quase tora 1 ausencta
' · d-'
Inquisi~áo
• até o final do sé cu 1o XVI . ¡ nócua sena,
· portanto, a mstru~ao
· - d(
D. Joao III a Duarre Coelho, em 1534, autorizando-o a condenar e mandat
execurar, sem apela~áo nem ag d · lh
. _ ravo, os so omitas de qualquer qualidade que '
v1essem iu maos.'" Execro pela · 16 · - · · d '
tng na prega<;ao tnaciana, e por eventua1s rama:
167

d nscíCncia, nada impedía os colonos de dar Jivre cu


eco~ "· borninávcis". rso aos seus desejos, fossem
ou nao a
Com rcspciw a sodomía, além da relativa escassez d lh
e e e mu eres que por
. ¡ em nada arerava os ranchonos, favoreceu-a cena t 1 , . '
sma ' . , o eranc1a que ramo 05
, dios como os afncanos devoravam as con duras homoss . J, .
1n . , ~ , . exua1s. a vtmos como
rre rupmambas a relas:ao homoerotJca náo era obJ'ero d . . ~ .
en 05 . . . . e recnmmaljao em 51
mesma, embora cerros ttvtrasou tzb1ras- os efeminados da cultura ameríndia-
c055em passíveis de algum desprezo, menos por suas preferenc 1· . d
r1 . . _ . as sexua1s o que
Por !hes falrarem mclma(joes
., guerreuas. Ourros, porém • eram mul.tl'ssimas
· .
respeua-
dos, a exemplo dos paJeS, lembrando-se que, segundo Gilbeno Freyre, era para "as
máos de indivíduos bissexuais o u bissexualizados pela idade" que resvalavam em geral
05 poderes e as func;óes de místicos ou curandeiros entre várias tribos americanas.'? E

náo seria diferente com os africanos de Angola, segundo a descric;áo de Antonio de


Oliveira Cadornega, e m 1681, para quema sodomia era corren te entre aqueJes povos,
havendo mesmo os que, travestidos, recebiam o nome específico de quimbanda.s.
Alguns deles, prosseguia o capitáo, "sáo finos feiticeiros (. .. ) e todo o mais gemía os
respeita e os náo ofendem em coisa alguma (... ). Andam sempre de barba raspada,
que parecem capóes, vestindo como mulheres". 40
A multiplicidade de con tatos entre os portugueses e outros pavos tolerantes
em rela~áo ao homoerotismo nao parece re-lo favorecido, enquamo fenómeno
cultural, apenas no Brasil. Já no próprio Reino, em 1571, D. Sebastiáo sugerira
com alguma razáo que outrora, antes talvez de o monarca portugues se tornar rei
d'aquém e d'além-mar em África, Guiné, Arábia, Pérsia, India, etc., Portugal era
"limpo de táo abominável pecado pela bondade de Deus"." Mas náo convém exage-
rarmos a ilusáo desse jovem rei, sempre pronto, como os demais governames da Eu-
ropa, a acusar 0 "estrangeiro" pelos males que flagelavam seus domínios e senhorios.
Vulgarizadas em Portugal a partir do século XVI, descortinadas ainda pelo
maior rigor punitivo das agencias de poder, as condutas homossexuais logo se: m~u~­
riam nas fornicac;óes que tanto atormentavam os jesuítas desde 1550. Mas, eximi-
os pregadores contra o desregramento moral, nem os inacian~ nem os .~unos
moralistas da Metrópole ou da Colonia ousavam falar em púbhco sobre 0 que
nao devia ser dito". Em rela~áo asodomía, nosso antigo sermonário mdcntmo e-ra
eomp1etamente omisso, e náo fosse pelas fumes ·mquisironats,
· · · · as rel.,..,...
..;.---
homosse-
,
xu · d L _ 10 tigma do nef.tndo ...
alS aqueJe tempo estariam ainda hoje encoocrras pe es b
Logo na visitac;áo de 1591 a 1595. concentrada na Bahia e em Pl:rnam rd~
u-
L . J'cadOS por ••-S
co, nada menos que 1O1 homens e 29 mulheres roram IIDP 1 dtc
ho . 'lh. d'asmeses,anosou a-
mossexuals acorridas em Ponugal ou no Bras1 avla 1 '
I"ROl'ICU nm Pi·.CADO!i
!68

das. Confissóes, denúncias e processos insrruídos pelo visitador Heiror Funado


d e M en d onc;a reve 1am~no S de zenas de indivíduos
. .
chamados de fanchonos e
.
,.
sommgos, como em Portugal , mas rambém de . tlbJYas,
. prova
_ de gue a!nda
, . no
terreno dos estigmas sexuais se operava a ffi!SC!genac¡:a~ cul(Ural tlp!ca do
colonialismo. As 130 pessoas acusadas ou infamadas de prancar aros sodomíticos
_número só inferior, por hipótese, aos acusados de judaísmo naquela visitac¡:5.o -,
poderiam nos sugerir u m frenesi homoerótico semelhante ao .:u e vi.gia ~a Europa
da mesma época ou, quando menos, urna nova faceta da mtOXlcac¡:ao sexual"
atribuída por Freyre a nosso primeiro século. Nada disso ocorreu, entretanto, na
modesta ColOnia lusitana da América, apesar dos numerosos "esd.ndalos"
devassados pela lnquisic¡:áo nos tres séculas.
Comparado ao que ocorria em Roma, Lisboa, Paris o u Valencia com suas
tavernas, alcouces, confrarias e codinomes homossexuais, o nefando colonial era
quase pueril, disperso pelos maros e pelas choupanas, prisioneiro das casas~
grandes ou das senzalas, quic;á do palácio governamental, de alguns conventos e
mosteiros, e só eventualmente concentrado na casa de algum fanchono mais atira·
do. E isso se devia menos acondic¡:áo colonial em si mesma do que ao baixíssimo
grau de urbanizac;áo que caracterizou o Brasil do século XVI ao XVIII. Na vizi-
nha América espanhola, especialmente em Puebla e na Cidade do México, o mundo
dos soméricos quase nada devia a seus congC:neres europeus, masera-nos Serge
Gruzinski em seu admirável arrigo sobre os homossexuais novo-hispanos no sécu-
lo XVII." Náo faltaram ali as pulquerías e os temascales freqüentados por mariquitas
e sométicos, réplicas das tavernas e dos banhos das cidades européias; nao falta-
raro as festanc;as e as orgías periódicas, inclusive em dias santificados, onde jovens,
velhos, rravestis e prostitutas tomavam chocolate, recordavam conquistas, namo-
ravam e até brigavam por esse ou aquele amame; náo faltaram as alcunhas pican~
tes e os codinomes misteriosos como "La Zangarriana" (comum a rodas), "La
Luna", "Las Rosas", "La Martina de los Cielos", "El Rey de Francia'', "Cascavel",
"Alazán" ... A semelhanc;a dos que pesquisaram as "subculturas" homossexuais na
Europa moderna, afirma-nos Gruzinski que "o pecado nefando ( ... ) constitui um
fenómeno essencialmenre urbano", donde provinha a maioria dos réus punidos
no México por esse deliro.
Mais precisameme, como nos diz Carrasco, o sodomita carecia de condi~
c;óes específicas para desdobrar-se em fenómeno cultural mais consistente; neces-
sirava de possibilidades concretas de clandestinidade que garantissem u m relarivo
anonimato dos nefandos e um a barre1ra · d erens1va
e · contra as agressoes
- d o po d ere
da populac;áo e m gera!H Carecia, enfim, de grandes cidades. Escusado dizer que
169

da disso ocorreu no Brasil, mesmo e m lugares como Salv d . .


na , 1 XVIII d . a or,Riodejanmoou
v·¡ Rica no secu o , e mane1ra que nossos fanch ,. .
1a , . . anos e somltlgos tlveram
de adaptar seus
.
amores a promlscllldade característica d d C ..
, . e ro a a aloma. Só náo
fi¡e aram ma1s vulnerave1s que
,
seus companheiros Jisboer as ou europeus porque
ara alívio de rodas, rambem os aparelhos repressivos náo , '
P . . escapavam a pobreza
geral do rróp1co luSitano.

SoCIOLOGIA DOS NEFANDOS COLONIA/S

Do século XVI ao XVIII, pelo menos 165 homens, moradores nas mais
diversas regióes coloniais, foram acusados ao Sama Ofício lisboeta de pracicarem
a sodomia homossexual. Referimo-nos a wdos os implicados nas visitac¡:óes
inquisiwriais a Bahia, a Pernambuco e ao Pará, acorridas episodicamente do final
do século XVI a segunda metade do XVIII, e a todos os que sofreram processos
por esse crime ora delatados nas devassas edesiásricas, ora direramente acwados
aos comissários e aos familiares do Santo Ofício espalhados pelo Brasil. E entre
esses casos, mais de 80°/o apresenram dados sobre posic;:áo social, cor, estado civil
e idade, infotmac;:óes suficientes para esboc;:armos, com efeiro, urna sociología do
nefando em rerras coloniais. 44
Somítigos o u fanchonos, havia-os de alto a baixo na hierarquia social, insc-
ridos nas mais diversas ocupac;:óes, desde governadores e senhores de engenho aré
forros, escravos e desclassificados. O grupo majoritário compunha-se da gente
mais oprimida da sociedade colonial, incluindo índios dos aldeamentos jesuíticos,
forros, soldados, marinheiros, vagabundos e, principalmente, criados, uabalha-
dores dependen res e escravos, senda que os rres últimos atingiam, sornados, cerca
de 43% dos nefandos coloniais. Vulnerabilidade, sujei~áo a homens poderosos,
absoluta indigencia, eis as prováveis razóes do predomínio desses homens enuc os
' •
Sommgos co1omats,
· · especta· ¡mente porque, na maaor · par re dos casos envolvendo
escravos e criados, a sodomia era urna conseqüencia di reta da servidáo e da pobre-
za. )á em Portugal era corrente dizer-se que "náo há galinha que náo ponha _ovos,
'd d . , · ldequeapn:sra.¡>ode
nem cna o que náo fosse para cometer so omaa • sana . .
· . . . .d · ., Náo sena d1fen:nn:
servtc;:os sexua1s era obrigac;:áo corrtqueua de cna os e paJcns.
na e 1• . . . d . menos a dos esctavos ...
o oma a sttuac;:áo desses ind1v( uos, ncm multo d h
ca camada e omens
Cerca de 22% dos nefandos penenciam a hererogen
A

. d d
rIVtes dorados de algum oficio, as vezes com forma~ao - rior incluiD o. voga-
supe ' rttSlos e
dos . . -- ~ . varo nesse grupo osa
'Ctrurg1óes e religiosos. No cntanto, pn;uomma
os rrabalhadores livres (1 S%), alguns dos quais eram "nefandos incorrigíveis",
como diziam os inquisidores, que faziam de suas ofi~ina~ ver~adeiros alcouces
homossexuais. Em rudo surpreendente se afigura, a pnme¡ra VISta, o exíguo nú-
mero de padres_ guarro (3%). A que atri.buirm~~ tamanh.a .esc~ssez, senda 0
clero colonial famoso por seu "brasileirismo d1ssoluro , como d1zla Gil berro Freyre,
além de a sodomia ser considerada desde a Idade Média como o "vício dos cléri-
gos"? Com wda certeza, isso nio significava urna excepc~iOI~al ave~sáo dos padres
coloniais as priticas sodomíticas, mas táo-somente a ausenc1a ocas10nal de acusa-
.¡:óes nas visitas inquisiroriais e, fora delas, escassez de processos contra sacerdotes
por esse crime. Carente de clérigos, a lgreja colonial procurou, aoque rudo indi-
ca, resguardar seus quadros contra a Jusri¡;a inquisitorial, ao menos quanto ao
"pecado nefando", pois do contrário talvez ficasse sem ministros. Os famosos
Cadtrnos do nefondo- catálogo organizado pela lnquisi.¡:áo portuguesa contendo
dados sobre wdos os indivíduos citados como sodomitas no mundo lusitano-
deceno conrem copioso número de pirocos ou religiosos coloniais. Segundo nos
informa Luiz Mott, semente os acusados da ordem beneditina no Brasil, nenhum
dos quais processado, aringiram o mesmo número de quatro sacerdotes que apu-
ramos em todo o período colonial. Sem dúvida, rudo nos leva a crer que os nefan-
dos da Igreja eram em número bem superior ao revelado por nossa amosrragem.~ 6
Enfim, perfazendo cerca de 22% dos somítigos, encontramos a grei de
autoridades, grandes mercadores, donos de engenho e fazenda, lavradores,
mineradores ou, ainda, seus jovens filhos e parenres próximos. Eram todos, como
veremos, grandes protagonistas do nefando colonial e, no mais das vezes, fossem
jovens ou homens maduros, apareciam "sodomizando" seus criados e escravos,
ora com a do.¡:ura de amantes, ora com a violencia de senhores.
As informa.¡:óes relativas a cor e a composi.¡:áo étnica dos sodomitas em
parte confirmam, em parte matizam, as impressóes apuradas na análise da posi.¡:áo
social. Os brancos, perfazendo 46% do total, predominavam sobre negros (25%),
Indios {14%) e mestic;os, mulatos ou mamelucos (14%), talvez porque fossem
individualmente mais reconhecidos e observados pelos vizinhos. Ricos ou pobres,
prestigiosos ou miúdos, nao faltava quem os delatasse quando surpreendidos em
atos nefandos. Por out ro lado, o expressivo lndice de negros e Indios compunha-
se menos de homens visados pela populac;ao, do que de individuos citados a pro-
pósito de sodomias.cometidas com brancos, sen do raro, aliás, 0 registro de nefandices
enrre cno~los, afncanos ou nativos. Conclusáo idenrica foi 3 que chegou Luiz
Mott analuando u.m elenco de 46 somltigos de cor em seu artigo "Relac;óes raciais
entre homossexuau no Brasol Colonia": a imensa maioria desses nefandos apare-
17]

. nvolvida em relac;óes com brancos, náo porque a d . e


cta e , . f ~ 50 om1a rosse rara enrre
vos ou mdws, mas em un¡yao do menor inreresse q .d
,sera ue a v1 a sexual d
homens despena va na populac;áo colonialY esses
Escusamo-nos de medir, em detalhe, cada urna d l _ .
. , . . . d .. ~ as re ac;oes sexua¡s desses
165 individuos mcnmma os pela lnqUlst~ao- o que ser13 d fa
. _ , . • e ro, urna tarefa
demiúrg 1ca. - , mas nao resta duv1da de que os amores e as , l 1. .
_ copu as a 1 registrados
eram prinCipalmente rela?o:s entre brancos, ou eram relac;óes inrer-raciais envol-
vendo aqueles e os dema1s es_rraws étnicos" da ColOnia, confundindo-se, nene
último plano, com a opressao a negros, índios e mesric;os característica do
colonialismo. Mas em matéria de nefandos, convém salienrar que essa era apenas
uma rendencia, nunca urna. regra absoluta: por exemplo, a maior parte dos
índios incluídos em nossa hsra compunha-se de jovens aborígenes da aldeia
do Guaramane, em Pernambuco, que se fartaram de sodomizar um cerro Balrazar da
Lomba, homem branco de cinqüenta anos que costumava "coser, fiar e amassar
páo como mulher". O velho fanchono apreciava tanto os amantes nativos que
chegaria mesmo a mudar-se para a aldeia indígena em busca de pausada e aven-
mras nefandas ... ~ 11
Apesar do velho Lomba, a maioria absoluta de nossos nefandos náo passa-
va de meninos e jovens com menos de 25 anos, indivíduos isentos de responsabi-
lidade criminal: incluíam-se, nessa faixa etária, 65 rapazes (54%), dos quais trinta
(25% do total) eram seguramente menores de vinte anos, havendo mesmo um
"moleque" escravo que mal completara dez anos quando o "possuiu" o filho de
seu amo. Muitos deles, convenhamos, longe estavam de serem nefandos ou
fanchonos, no sentido cultural e social dos termos: alguns só rinham cometido o
"abominável pecado" urna vez, na renra infancia, e grande parte deles era ca m pos-
ta de "mo~os criados", pajens, filhos de trabal hado res, ou "moleques" sodomizados
pelos senhores a for~a. o u por out ros homens em traca de qualquer coisa.• ?

Encontramos, ainda, expressivo índice de adultos e homens já maduros


(42%), incluindo jovens de mais de 25 anos até cinqüentóes: alguns deles,
fanchonos que desde meninos só haviam buscado o prazer com homens; e out~
. d rimentando rela~oes
que, d e quando em vez, senda solteuos, an aram expe .
homoeróticas. E náo faltaria também homens mais velhos uselros em come.rrr
n r d" . C al . casado com D. Cat>nna
eran ICes as mais variadas, a exemplo de Fehpe av can ti,
de Albuquerque, fundador do famoso dá pernambucano, que aos setenta anos,
er · d . . ,. Mas hmtremo-nos
a "" a mfamado de cometer a sodomta com um mo~. . d 68
Por ora a Citar
. . d S
mais dois exemplos: fret Lucas e ouza,
religioso que-, atn a aos
Plrá d
anos, cometía o nefando em sua cela do convento das Metds. no Griio- o
, d 1 século XVI, o padre Frutuoso Álvares, vigário d
seculo XVII, e antes e e, no .. e
Mawim, na Bahia, que também aos 68 anos belpva, a~ra.-;a:,a ~ l~as~urbava jo-
vens de várias cores e idades. Padre Fruruoso era um anngo e classlco fanchono
que há décadas cometia aros sodomíticos, senda d_uas vezes degrcdado por is~o: de
Braga para eabo "verde , e da ilha para o BraSil. onde permaneceu afeno as
nefandices. 51
Enfim, senda a maioria dos somírigos composra de rapazes ca m menos de
25 anos, náo é de admirar que 76% fossem solreiros conua 23o/o de casados. Mas
convém frisar que, em si, 0 estado civil pouco significava em termos de maior ou
menor adesáo a sodomia. Se muiros homens só a comereram quando solreiros,
"aparrando-se do vício" após o matrimOnio, ourros tantos eram grandes fanchonos,
náo obstante casados, havendo mesmo os que, longe de oculrarem das esposas
suas preferencias homoeróricas, provocavam-nas aberramente ao lado dos aman-
tes para escandalo de roda a popula~áo,

PERSONAGENS, DESE}OS E AMORES

O "mundo hornossexual" da Colónia tendia, pois, a diluir-se no interior


da sociedade, emplastrando-se nas variadas relac¡óes sociais. Comparado as "con-
frarias", aos "conventículos" e aos "guetos" semiclandestinos que vimos ocorrerem
nas grandes cidades européias ou novo-hispanas, o ambience dos fanchonos náo
ensejou nenhuma espécie de "subcultura" no Brasil Colónia. No en tanto, náo !he
faharam personagens mareantes, as vezes excentricos, a colorir o dia-a-dia da so-
ciedade e, ao mesmo tempo, estimular a ira da muhidáo.
Entre os mais extravagantes encontramos um ral Francisco Manicongo,
também conhecido por Francisco Congo, escravo de um sapateiro na Bahía do
século XVI. Francisco fora duas vezes denunciado, inclusive por um escravo dos
jesuftas, "de usar o ofício de femea" nas relac¡óes que mantinha com outros negros.
Travestí, recusa va-se a usar "o vestido de homem que Ihe da va se u senhor", prefe-
ríndo "trazer u m pano cingido comas pomas por dianre", amaneira dos ji m bandas
do Congo, que, segundo o principal acusador, homem versado em cosrumes afri-
canos, era o traje utilizado pelos somítigos pacientes em rerras guineenses e
congolesas. "" A semelhan~a dos quimbandas observados por Cardonega na Ao·
gola do século XVII, Francisco era um autentico jimbanda que reimava em mao·
ter n~ Ba_hia o travc:stismo aceito c:m sua terca natal. Era hornero que causava
cspée~e, mculando naqueles trajes pelas ladeiras de Salvador, mas a causava m<·
173

e seu congt!nere AntOnio, negro de Benim qu


nos qu " ' e quarenra anos anr ·
m Lisboa com um aventa! de burel cingido b , es Circu-
Java e d. " . e a erro a frente", "gibao
bran co atado todo por. .Jante .
• panmho na cabera cha '
T • peu e curros adere s
1irara va-se de. u m. perfeJto )1m banda, ao menos durante 0 ¿·1a, po1s. ao cau. da naire
c;o ·
mia por mteJto a figura de mulher. Grande de corpo i b b .
assu _ " • m er e e muao negro
Afl(ónio rransforma~a-se en tao na. negra Vitória", irritando-se quando lhe cha~
ma
vam pelo verdade1ro
, .
nome, e faz¡a concorréncia as prosrirut d Rib .
as a eiracomo
se fosse mulher publica. Descoberro por u m clienre mais observador, pois trazia 0
Pe'nis "amarrado com urna fira vermelha por entre as pernas" , ac abana · preso e
condenado ao degredo perpétuo nas galés d'el Rei-"
Travestís aparte, a documentac;:áo inquisitorial nos indica muitos fanchonos
ou somírigos característicos, homens solreiros maduros o u acé idosos que desde a
juvencude demonstraram clara preferencia por indivíduos do mesmo sexo. Encre
eles, o citado Balrazar da Lomba, cinqüenráo de hábims feminis que só comeria 0
nefando enquanto paciente, ou nosso conhecido FrU[uoso Álvares, padre de 68
anos, que sempre praticara masturba<;:óes e sodomias com homens e rapazes, sen-
do "ora agente, ora paciente". Já frei Lucas de Souza, religioso no Pará em meados
do século XVII, era táo efeminado que dizia a seus amantes que era mulher, a
exemplo do padre Pedro Furtado, a "Dona Paula de Lisboa". Ainda em Portugal,
quando servia de capeláo as tropas, seduzira um jovem de 23 anos chamado Ma-
nuel de Briro, com quem manteve cerca de duzentas cópulas anais por espa~o de
ano e meio, sendo sempre paciente. Ao rapaz diz.ia que seu inus era "vaso de
mulher", e o sangue que dele eventualmente escorria dizia "ser menstruo", no que
o jovem admití u acreditar, ingénua ou ardilosamente, durante algum rempo.
Fanchono inveterado, frei Lucas se havia farrado de praticar a sodomia na Alema-
nha, em Nápoles, em Portugal e nourros lugares, contabilizando 99 homens em
seu curriculum nefando. Manuel de Brito deve ter sido o centésimo, recorde que
seria batido no convento paraense dos mercedários, em 1653."
Mais. "vm
. '1" que o re1'Ig10so
. d o Pará, mas tgu
. almente conhecedor
. _ dos am-
1
bientes nefandos europeus, era o mercader Miguel da Fonseca, cnsrao-no.vo, so -
re· d era "homem multO sen-
Ira, que, segundo disse seu criado Duarte Fernan es, . , H
!" d . dito vieJo . omem
sua que anclara por ltália e Flandres, "donde evJa trazer 0 1\: b co
vio! M. B sil estando em rnam u
enro, tguel também praticara esses aros no ra ' · "~~E nio
po 1 · d " ancada< ac;oll< ·
r vota de 1613, violentando seu criado por meJO e P d 3\ anos.
m B · 1udeu mrco e ·
enos experiente era o também mercader Joáo ansra, N istio-novo
soltei h . . . . o em Lisboa. osso cr
ro, omem recém-converndo ao cr~snamsm juckus em
Ptaticava o nefando, desde os 1S anos de idade, fattndo-o com tur<OS e
sua terra natal, e com dezenas de individuos em Roma. VeneZ-.1, Portugal e Brasil,
cnttc 1575 e 1590. Asvcus pacienre,Joio Bansr:aera, ames de rudo, u m aficcionado
pdo coito anal, supremo aro sodomítico, praticando-o com l~omens, mas tam-
bém com ccrras '"negras" que encontrara na ilh~ de Sá~ Tomé."'" - .
Al ns somítigos da ColOnia, aJém de b1ssexuaiS como Joao Bansta, che-
garam m:mo a casar-se sem deixar, no enramo, seus hábitos homoeróticos. Caso
realmente notávd foi 0 de Salvador Romeiro, homem de 4 5 anos que trabalhava
como kiror em Pernambuco, na última década do século >-.'VI. Natural de Lisboa,
tinha pouco mais de vinte anos quando se caso u com a mulata Ana Fernandes na
ilha de Sáo Tomé, passando a morar na casa do sogro. Mas, já nessa época, Salva-
dor era com razáo infamado de somítigo, e vivia brigando com a sogra que 0

acusava, sintomaricamente, de náo dormir coma esposa. Delatado, acabaria deri-


do numa ofensiva do juiz local contra vários nefandos, enviado a Lisboa e preso
no famoso circere do Limoeiro. Condenado as galés pela Jusric;a civil, serviria na
inglória armada de D. Sebasriáo, após o que seria liberrado. Passados alguns anos,
transferiu-se para o Brasil, onde serviu a Ambrósio Fernandes Brandáo, autor dos
DUilogos das~ cometendo vários aros sodomíticos com u m seu criado de
alcunha Lomba, jovem de 17 anos. Novamente acusado de somírigo no Recife,
voltou a Lisboa, tomando a se casar na igreja com Lucrécia Nunes, mulher bran-
ca, com quem viveria dois anos até conhecer Pero Marinho Lobera, mo<¡:o de 17
ou 18 anos. Afei~ando-se ao rapaz após um convívio de dez di as numa esralagem
do Reino, promereu levá-lo para o Brasil, largou a esposa e rumo u para os trópi-
cos em companhia do jovem a quem chamava de "sobrinho". Esrava a vi ver em
Pernambuco como feiror de Benro Dias Santiago, quando se viu acusado de
sodomía e bigamia na visir:a inquisitorial de 1593. Apesar de casado duas vezes,
Salvador Romeiro scmpre fora de faro um grande somírigo, "agente e paciente",
desde os 18 anos de idade, quando "jogara a punheta" com um frade na "gaia"
Lisboa."
A singular hisrória de Salvador Romeiro, bígamo e sodomita a u m só rem-
po, náo encontraría paralelo na Colonia, nao fosse pela rrajetória de Luiz Delga-
do, importante c.sranqueiro do tabaco na Bahía do século XVII, o qual mereceu
de Luiz Mou um c.srudo específico: "Desventuras de um sodomita porrugues no
Bruil scisa:nrisra"." Natural de Évora, onde ganhava a vida tocando viola, Luiz
Delgado de Quintal tinha 25 anos quando foi preso na cadeia pública da cidade
por cometer hmos, juntamente com seu irmiío Joiío Delgado, cm 1665. Nos
Cinco mesa em que permaneceu encarcerado, era visitado por um menino cha-
mado Brú, moleque de dez ou dou: anos, irmáo dt Esptran~a Nunes, a quem
. h3.via prometido casamenro. O futuro cunhado d l . _
Lu" . e uoz tao magrinh0
ra\'l na Gtdct.t por entre as grades e ali fi.-.. va . en.,
qu< t l't • · . . . - muoro rempo eh d
r "ári 1s none.ti e m companh1a do v1oleiro Ddatad • 1 ' ~ 0 a
r>"' · . _ . .·
0 que os \'It~l l.Ometer .uos nefandos, Lutz seria rra ,_ .d
o a nquisi~ por um
po<S _. _ . "'"'" o aos cárcer<s do
, 10 Otkoo. pro<essado e torturado. Cora¡oso negou q .
~.,an . , .. ~ ' ue tlvt:ssre consumado o
aro de sodom1a com Bras. . adnuundo. tao-somente agitaf"'Ño
, .....s com seu membro
'ril nas pernos do me nono, sendo por osso desterrado de ¡;vara 1 d .
\1 • • peocs~ e0110
anos e confinado por tres anos nas fronrcoras de Braganfi'l.
Anos depois. ten do p_assado por vá~ias prisócs e vivcnciado alguns roman-
ces. luizDelgado embarcaroa_ para o Bra~ol tornando-se, com 0 passar do tempo,
<>tonqueoro do rabaco na Balua. Comercoante próspero, casar·sc·ia com Florencia
Dias Pereira e gozaria de ccrra influencia no lugar, cmbora continuassc in&mado
de somfrigo. Mantinha rela~óes episódicas com vários jovcns e chcgaria mcsmo,
para escandalo da popula~áo, a viv<r amancebado com alguns rapazcs, especial-
mente com seu criado Manuel de Souza. Trarava-o com particular esmero, vesrin-
do-o com requinte, presenteando-o e despertando a fUria dos vitinhos que nio se
cansavam de denunciá-lo aos visitadores cpiscopais na d«ada de 1670. Um de
seus sócios, acusando-o posrerioremcnrc, admiriu rt-lo visro bcijar seu amante
'na cara e na boca" diante da própria esposa, mulhcr que vivia a qucixar-se, todos
diziarn, das arirudes do marido.
E assim corria a vida de Luiz Ddgado, que, dcpois de Manud de Souza, se
ligaria a José Gon~alvcs, jovcm csrudanrc no Rio de Janciro, e finalmente a Doroteu
Anrunes, rapaz de 16 anos a quem levou cm sua companhia para a Bahia, mon-
tando-lhe "urna casa no maro". Analisando o caso Delgado. Luiz Mou obscrvou
muiro bem que o ódio que o esranquciro dcsperrava na mulridio, cxpresso cm
otireradas dda~óes na Bahia e no Rio de Janeiro, provinha nio apenas de scu
público desacato aos cosrumes, mas da ousada subvcrsáo da hicrarquia entre amo
e criado. Delgado, sem dúvida, fazia mais do que cometer a sodomia, ao passcar
ab~ado com seus rapazes, pcnre:i-los na janela i visra de rodas. ere.: dcsafiava_ •
tradicional hosrilidadc popular contra a invcrsáo dos papéis scxuais. Nio podcri•
um homem, inclusive rico e casado, ostentar sua clara pref,rfncia por individuos
do mesmo sexo sem despertar anrigos preconceiros morais. E Lui• Dclpdo nm·
~m feria a rigidez dos "valores estamenrais ao dispensar rraramcnro rto pro-
so ' ..
>- • •
Vczes reverente, a simples croados. Houvc, asstm.
quem acusass< o nosso
• bro
rabaqueiro menos por scus posslvcis aros nefandos do que por andar :'" •
•mb • lh '--- rodas as vonndts. (011\0 se
ro com scu prorcgido amante, ou por e .-r desaao
105
Luiz Delgado fossc seu criado, e o dito esrudanre seu amo". TantoS
TRÚI'ICO nm PECADos
176

morais e sociais acabariam por arruinar as "imunidades" que homens ricos corno
Delgado gozavam na ColOnia lusitana. Acus~do em Lisboa por um ~~-amante
arrependido, seu caso passaria a interes.sar .mals de perro ao. Sant~, Qf¡c~o, resul-
tando na prisáo e no processo do ex-viO!etro em 1689. Belrava pos cmqüenra
anos quando, encarcerado em Lisboa, teve que defronrar-se urna vez mais com a
torrura e a puni.;áo inquisitoriais.
Comamos, assim, com numerosos exemplos de homens maduros que,
fanchonos ou somítigos, solteiros ou casados, J.s vezes experimentados na vida
nefanda dos "guetos" europeus, estiveram a cultivar seus prazeres eróticos no tró-
pico. Se náo chegaram a construir um "mundo de fanchonos" comparável ao de
Lisboa foi porque faltavam a Colónia as condi.;óes objetivas e, quem sabe, a ne-
cessidade para tanto. Mas nosso retrato dos personagens ficaria incompleto, qui~á
tendencioso, se excluíssemos a "plfiade" de jovens fanchonos que, a exernplo dos
amantes de Luiz Delgado, gravitavam em torno de somítigos mais ou menos
poderosos: esrudanres, criados, mo.;os, pajens que, longe de serem coagidos ao
"abominável pecado", mal disfan;avam sua alegria de vivero que alhures era cha-
mada de "belo vício". Mas náo tenhamos ilusóes a esse respeiro: o mais das vezes,
o cotidiano da sodomía era menos alegre do que próximo a opressáo e a pobreza
que sempre marcou o Brasil colonial.

0 OUTRO LADO DA SODOMIA: RELA¡;6ES, V!OltNC!AS, M!SÉRIA

Numa visáo de conjunto, as práticas do nefando na Colónia indicam-nos


ceno predomínio de rela~óes ande táo ou mais salientes que o dese jo, o amor ou
a op~áo homoerórica eram o eventual ardor juvenil, a promiscuidade dos hábitos
e mesmo a explora.;áo social e racista. Muiríssimas rela.;óes envolvendo meninos
jovens e moc;os náo passavam, em boa parte, de ujogos pueris" ou brevíssimas
aventuras que mal chegavam a urna ou duas experiencias. A documenrat;:áo
inquisitorial revela-nos vários casos de homens já maduros, casados de langa data
e sem qualquer fama de somítigos que, no enramo, admitiram ter cometido o
nefando quando mo<;os - estando a brincar com rapazolas da mesma idade -
de1xa~do de fazf-lo com o passar do tempo. Esse homoerotismo juvenil, muiras
vezes mcesru.oso, favor~cia-o a promiscuidade da vida familiar, especialmente o cosru-
me de dormuem as cnanc;:as na mesma cama, vestidos só de camisa o u camisáo, fato
comum nao s6 no Brasil como em várias regióes européias nos séculos XVI e XVII.
)á o famoso Conftssional de Gerson, datado do século XV, recomcndava aos con·
r ores para qut: argüissem os penitentes sobre
05 d 1· .
ress e Itas comeudos 0 'd d
ve a doze anos, ao tempo em que dormiam jumas co . - a .1 a e de
no m seus 1rmaos e 1rmás
rova náo só do costume, mas também da cresceme preocu a _ d . -
p 'd d . f ., ,., p ~ao a Igre¡a com a
sexual! a e Jn antl .
Nao se passava de outro modo no Brasil colon'al M
. 1 • esmo em famílias
·mporrantes da Bah1a o u de Pernambuco no século XVI en ,. .
1 . . • • centramos vanas cnan-
~as dormmdo no m~smo recmw, misturando-se _os filhos brancos do senhor com
jovens agregad~s, cnados e moleques escravos. As vezes surpreendemos até dais
meninos dormmdo na mesma rede ou esreira, ou rres garoros na mesma cama
ere., sirua<;áo que náo raro se reproduzia na vida dos adultos, inclusive em Ponu~
gal. Na visirac;:áo a Pernambuco, o entáo mercador Fulgéncio Cardoso confessou
que, aos 13 anos, dormindo com seu irmáo Barcolomeu Cardoso, jovem de 15
anos, pecara urna só vez no nefando, senda paciente. Na época da visirac;áo,
Fulgéncio e Barwlomeu eram homens de trinca e poucos anos, casados coinciden-
remenre com duas irmás, e jamais haviam repetido a sodomia de currara com
nenhum indivíduo.w Situa<;:áo análoga se passaracom AmOnio e Bastiáo de Aguiar,
filhos de importante senhor do Recóncavo, que, sendo jovens de 13 e 12 anos
respectivamente, andaram se deleitando com Marcos Tavares, mameluco de 17
anos que servia na casa e cosrumava deixar sua rede, a noite, para dormir com os
meninos. AntOnio e Basriáo gostaram ramo dessas experiencias norurnas que as
repeteriam nourras ocasióes, inclusive com outros rapazes da mesma idade ... 61
E muito comuns eram ainda as brincadeiras eróticas entre moleques e filhos de
senhores criados juntos na casa-grande e muiras vezes separados das meninas.
Assim ocorreu com Esteváo Velho Barreto, mo~o de 21 anos, filho de um senhor
pernambucano e já casado com Beatriz de Briro: comou ele que, aos 13 anos,
embora já gostasse de mulheres e renda com elas dormido, sodomizara os molc-
ques Francisco e AntOnio, ambos meninos e escravos de seu pai, náo wrnando a
fazé-lo em ourras ocasióes. 62
Experiéncias como essas, ainda que resultassem na penerrac;áo anal. longc
esravam de configurar a "sodomía" que ramo indignava a lgreja, 0 Estado e a
popula~áo em geral. Difícil, portanto, equipará-las as cópulas de Baltazar da Lomba
co rn seus 1n . De1gado com seus criados·' d•flcJI, amda,
• d'Jos, ou aos amores de LUJZ .
v . d d b d de f.mchonos ou somlngos
er nesses menmos e moleques, recém-sa{ os a pu er a • . d
e . e N popula.;áo os v1a esse
rn porencJal, embora muitos realmente o wssem. em a , h
modo, salvo se fossem conrumazes, efeminados, ou "amancebados com omens
rn . 1 'd .. domitas". Náo por acaso.
315 ve has, e nem mesmo a lgreja os cansa erava so . .
le b . . 1 d'
rn ra-nos Flandrin, os antigos penitenciaJs a u 1am ao
s atos sexuaiS mtrt JD"'"'
TH.OI'ICO llll\ I'H~ADos
17H

. b d' tinws dos usados para a sodomia cnrre adulto


t cr~anras com termos em IS • . d 1 '·
. h " duras ¡'uvems que dev1arn ar ugar a outras após
refenndo-se-1 es como con . . . o
casamenro".c.t E náo seria diferente a perspecnva do,s ~srarur~s .sJ.nodaas, das leis
civis e dos manuais de conflssáo no final da Idade Media~ no IniCIO da Moderna:
mleranres em relac;áo ao sexo pubenário, apesar de ngorosos no tocante ao
homoerocismo em geral.
No extremo oposro 30 dos meninos que, com 12 o u 13 anos, mal sabiam 0
't¡'ca da sodomia, encomramos grupelhos de rapazes, mo-
quanto pecava m na Pra . . ~ .
c;os e aré homens feitos que andavam JUntos, mantmham rela<;oes sexua1s entre si
e, vez por outra, seduziam criados, vagabundos e escravos encontrados no cami-
nho. Yerno-los )ogo no século XVI. ora na Bahía, ora em Pernambuco, esfor~an­
do-se por manter urna clandestinidade em tuda dificultada pela transparencia da
sociedade colonial. E, paradoxalmente, é-nos difícil discerní-los com absoluta ni-
tidez exatamente pela relativa publicidade de suas rela~óes e pela quase inexistencia
de espac;os específicos que vimos acorrer na Europa ou na América espanhola.
Seus enconrros se davam em qualquer hora do dia ou da naire, amenizando o
trabalho, temperando as refei~óes e as bebedeiras, quebrando a rotina monótona
em que se arrasrava odia-a-diada ColOnia. E quanro aos lugares ande praricavam
o nefando, eram os que lhes propiciava a ocasiiío: a casa de algum fanchono, a
oficina, os maros, muros das igrejas, barcos, choupanas, ere.
Apesar de tuda, embora sem o "charme" de um "recolhimento dos
fanchonos" ou de urna "sinagoga de somítigos", estabelecimentos que pululavam
na Lisboa seiscendsta, chegaram a esbo~ar-se na ColOnia alguns ' semi- 1

conventkulos" de fanchonos, se assim podemos chamá-los, a exemplo da oficina


de André de Freitas Lessa, sapateiro de 32 anos que morava em Olinda no final do
século XVI. Na oficina do Lessa, como era conhecido nosso personagem, entra-
vam e saíam dezenas de moc;os e rapazes que o sapateira atraía a rraco de páo,
vinho e até quinquilharias. Lessa parecía chefiar urna camarilha de fanchonos,
incluindo Diogo Henriques, filho de u m mercador cristiío-novo, Joáo Freí re, mulato
que servía a um principal de Olinda, Salvador Barbosa, Antonio Pereira, e outros
rapazes: núcleo de homossexuais que viviam quase em familia", sodomizando-se
11

uns aos ouuos, ora na oficina do sapateiro, ora na casa de um cerro AntOnio
Bezerra, a quem servia o "Pereira'\ um dos amantes de Lcssa. A camarilha do
sapateiro afigura-se-nos, assim, como um dpico grupelho de fanchonos unidos e
contuma':es na práuc~ do nefando, e useiros a requestar moleques e rapazolas de
qualquer 1dade e cond1~iío tiío lago vislumbravam a possibilidade de, no mínimo,
urna masturba~áo a dois.M
179

Entre os rocamenros de meninos e molequ · d' e


. . es e a m Israr~ada al d
concumazes fanchonos, ass1m transcorna a "vida nefanda" no B .1 g~rra e
· , · ' · 1 · ~ ras¡ colonial, flui·
d e rrans1rona como a propna co oniZa\ao lusitana Af; .
a - b 1 . ora essas ocasJóes e esses
aros e nao o sranre a guns romances duradouros e d L .
es P , • . amo os e UJZ Del ado
elacóes nefandas nada InaiS eram do que desdobramenr d 'd- g 'as
r , . , . . os a escrav1 ao, do abu.
de poder e da miSena colon ~al. Gaspar Rodrigues l e.
so . . ' por exemp o, reuor de se·
nhores ba1anos nos anos 1580, JUlgava·se no direiro de vial .
. enrar o escravo Manas,
negro de Angola, apertando-lhe a goela, obngando-o a calar-se e metendo-lhe
en fim : "o membro vtnl em .
se u vaso rraseiro" Na mesma Bah' d . 1 XVI '
, . · 1a o secu o I, 0
licenCiado e lavrador Fehpe Tomas de M~randa ' rico senhor de t nnra ·
negros e
negras, era infamadíssimo por sodomizar seus escravos. Todos sabiam que fugira
de Pernambuco por volta de 1600 por ter assassinado um seu criado com quem
comeda o nefando, temeroso de que o moc;:o o delatasse aInquisic;:áo. E na Bahia,
superado o incidente d' outrora, fa nava-se de provocar e possuir sexualmeme os
escravos, chegando ao requinte de mandar seu mulato Francisco ficar "em camisa
e sem calc;:as" enquanro escrevia de noire. 6 5
Algo de parecido era o que fazia, amesma época, o riquíssimo Pero Garcia,
cristáo-novo, dono de quatro engenhos na Bahia e de copioso número de escra-
vos. Entre as centenas de negros que possuía, dava preferencia a Joseph e Bento,
mulatinhos de 14 e 15 anos respectivamente, aos quais sodomizou inúmeras ve-
zes, segundo confessou ao visitador Marcos Teixeira em 1618. E como se náo lhe
basrasse sodomizar os próprios escravos, ainda pracicaria o nefando com cerro
forro que servia a Felipe Tomás de Miranda e possivelmente com muiros curros
que, por conveniencia, preferiu omitir. 66
Asemelhanc;::a das negras, também os africanos, crioulos ou mulatos acaba-
riam reduzidos a condi~ao de objeto sexual dos senhores, de seus filhos e apani-
guados. Molestados, espancados, sodomizados, náo cinham saída senáo grir~r,
fugir, ou entáo, se muiro corajosos, denunciar seus algozes ao Sant~ Ofí~i~. ~•m
0 faria Felipe Santiago, mulato escravo do padre José Ribeiro Olas, v•gano nas

Minas de Paracatu e senhor de 27 negros. Aproveitando-se de urna devassa onle-


nada pelo bispo de Mariana em 1747, Felipe acusaria seu amo de inúmeros. atas
sodomíticos perpetrados contra a sua vontade e, revelando claríssima cons,•enc•a
da5 unp - sexua1s. da escravt'd"ao, d ec1arou que fora violentado pelo edpadre
· ¡·1cac;:oes d
"com poder e respeito de senhor", obedecendo-lhe nesses caprichos "com m 0 e
escravo que é" .67 •
.
M as em mat~ria de violencia sodom ¡nca a escravos mngutm supera-
conrr da d
ria a Francisco Serráo de Casrro, senhor de engenho paraensc na segun mela e
1!1()

·ovem cscravo Joaquim AntOnio, negro de ori


do século XVIII. Acusa do pe1o J ' . .. . ·. . . . gen¡
, . . · · ninado por v10lenr.Is sodonH.Is Lonua quasc v·
311 , 0 Jana,t--ranclsco sena mcm . . . ,_ . , nne
g . . d · vens ou molequcs, todos onundos d Afnca. E111 e
escravos, solre1ros o u ,asa os, )0 . . , . on-
. d d l;rancisco Serráo praucava a sodomJJ, vanos cscravos
seqüenc 1a a ru eza com que . : " se
. ... h ¡
v1ram me :Il os na panc
traseira" e cinco deles chcgaram a f.deo.:r, porque lag
• , , o
. d d' " ... 1aróes" e "infusóes de sanguc , adocccram are perderem
Jep01 s os nos atos , me 1 .,. . . . l , as
vidas. Caracterizado pela rradiCIOOal violenCia scnh~nal no t.l.w-1 ara e Mara-
A • • • • , .:-

nháo, Francisco Serráo de Castro seria, ainda, um ríp1co scnhor colonial: abusava
sexualmeme dos escravos e impedia-lhcs de "freqücntar missas, rezar o rer~o e
aprender a Dourrina", conforme acrescentou o aloxicongo Joáo "Voltciro", teste-
munha convocada pelo visitador Geraldo José de Abranches cm 1767.''"
0 abuso de poder em maréria sexual e sodomítica náo se restringía, porém,
a casa-grande e a senzala. Praricavam-no todos, desde u m simples sapareiro em
sua modesta oficina ao próprio governador, a excmplo do célebre Diogo Botelho
no inicio do século XVII. Conta-nos frei Vicente que, táo logo chegou a Bahia,
Diogo Botdho mandou remover o pelourinho da prac;a, cm frente ao palácio do
governo, alegando que aquilo lhe recordava um episódio dcsagradável, quando
esteve abeira de ser degolado por traic;ao, só escapando da morte por ter esposado
a irma de um secretário da corte. Da vida pública de Diogo Botelho constam,
ainda, a repressao de um quilombo no rio ltapicuru, para o que se valeu dos
Indios chefiados por Zorobabé, e o apoio aobra missionária dos jesuitas, segundo
informa~óes do mesmo frei Vicente." já Sebastiáo da Rocha Pita, costumeiro em
louvar aumridades, náo viu na administrac;áo de Borelho "norícias de que fazer
particular mc:mória", tc:ndo em vista a "rranqüilidade" entáo vigente no Brasil. 70
Eis, portanto, alguns tra~os da vida pública do governador: seu horror ao
pdourinho, combinado a repressáo dos quilombolas e ao "espirito missionário".
Ficarlamos, pois, com esse retrato oficial, náo fosse a confissáo de Fernáo Rodrigues
de Souza, ex-pajem do governador, ao visitador Marcos Teixeira em 1618. Fanchono
e libertino, Diogo Botelho promovia verdadeiras orgias nas "casas d'el Reí", co·
mc:r~n.do nc:fandicc:s, "ora como agente, ora como paciente", Dessas orgías palacianas
partlclpavam desde funcionários da administra~áo pública até criados, pajens e
filhos de guardas. ' uns por vantade: pr6 pna,· arendendo aos convttes· d o governa·
dar,. outros obngados pelo hom em maJS· po deroso da Col6nia. Somftigo ·mveterad0 •
D10go Botdho era ainda um • · .
.. autentico voytur, abrigando homens a de1tarem em
sua cama para se provocar e incitar" ao nefando, o que: de faro fazia com dais ou
trl:s fanchonos ao mc:smo tc:m 11 A · . · · ..
.
de D 10go B lh h po. SSiffi transcorna a "tranqüila" admmiStra~ao
ate o, omc:m qu • h .
e nao c:snou cm converter sc:u palácio governa·
181

mental num simulacro tropical das corres. Ambicioso e .


aria para si o título de vice-rei, "como se 0 enfe'r· prepotente, amda recia-
m f I u;asse a esperanc;a de g
ourro Peru uu uma segunda ndia (. .. )".72 overnar
Da casa-grande
, ·
as aldeias e aos maros ' da sed e d0 governo aos humildes
casebres da Coloma, o nefando campeava em roda a . d' .
, . _ . , . pane, m Issociado da pre-
ponderanCia e da exploras;ao da mJSena. Se Diogo Botelh o cenamente regalava
seus convivas com banquetes e bons vinhos homens com
• uns requestavam rapa-
zes e meninos em tr~ca de qu:lquer coisa. Encontramos, de faro, numerosos
fanchonos que, mov1dos por tntens;óes nefandas davam do

'd
rm1 a a po res
b
deserdados que va,g~eavam sem p~usada. André de Freiras Lessa prometia sapatos
_aferra generosiSSima numa soc1edade ande a maioria andava descal~a - , mas
segundo "o Pereira", seu amante, "nunca lhe dera nada". Padre Frucuoso Álvares
cosrumava dar um mísero vintém em paga de seus deleites e até 0 cruel Francisco
Serráo de Castro andou contemplando com "vinte vinténs" um seu escravo após
sodomizá-lo com a brutalidade habitual. Nem mesmo o singular Luiz Delgado,
sempre táo afetuoso com seus amantes, hesitava em cobrar de um namorado
infiel: "com isto me pagais o amor que vos tenho e o muito que convosco gasto,
dando-vos dinheiro, vestidos, casa em que morais e rudo o mais que vos é neces~
sário?" 73 Hospedagens, roupas, moedas, comida, eis como se forjavam muitas
relas;óes sodomíticas no Brasil colonial. Asemelhans;a de Valencia e outros luga-
res, também na Colónia os processos do nefando "ilustram de maneira dramática"
a miséria, a fome e o desamparo que marcavam as classes populares no Amigo
Regime-"
Exceto pela prática da sodomía, perigoso desafio a lnquisi~áo e aos mais
caros padróes cristáos de sexualidade natural, nada havia de contestatório ou ino-
vador nas rela¡;óes da maioria de nossos fanchonos. Em boa parte dos casos náo
passavam de abuso sexual dos escravos e pobres, a exemplo do que ocorria em
centenas de concubinatos heterossexuais devassados pelo Juízo Eclesiástico. E, a
semelhans;a dos casamentos e das mancebias, também as rela~óes netindas náo se
efetuavam a margem dos vínculos hierárquicos, ora reproduzindo os papc!ts so-
.· d · "
ClaJs esempenhados pelos parceuos no mun o ega •
d 1 1" ora recriando .o_padrio
dommador
· da conjugalidade heterossexu al , tn
· depen den temente da post\'O assu-
mida pelos fanchonos no ato sodomítico. .¡· · "
eros onde o "igu nansmo
Rela~óes como as de Luiz Delgad o e al guns ou ' d
. d fa h nice publicam<nre ostenta a,
mova or agredía tanto a sociedade como a nc 0 . h
- . . rccem-nos ser o a.nn o e a
nao passaram de excos;óes. E também excepetonats pa . d'-·
rados· encauma ~Mimo e
ternura com que o mesmo Delgado rratava os namo .
182

· d
apa1XOI13 O,
l'ICOU taO
- d CSl:O
. nsohdo
'
ao ver~sc abandonado
' . .
por" Jos~ Con-;alvcs
_
qu C
se recusou a lavar a roupa da cama em que donllla, diZCIH_fo que a nao mandaria
lavar enquanro o náo tornassc a ver". Exccpcionais porql~c, ;\ ~Himdra vista, as
relac;óes entre homossexuais pareciam paurar-sc na busca ~mediata de prazcr, na
rotatividade de parceiros, numa circulac¡:áo de corpus ma1s accnruada do <-lUC a
vigenre nas relac¡:óes hererossexuais. Quasc idc?ntica fOi a cor.Klusáo de Rafael Car-
rasco sobre os sométicos valencianos: "pareccm pcssoas unJcamcJHc preocupadas
com sexo ... "7~ Mas náo seria essa imprcssáo, ao menos cm parte, u m resultado dos
processos inquisitoriais, montados náo para desvendar "a fetos nefandos", senáo
atas, cópulas anais e poluc;ócs? 7(o
Seja como for, nossos amigos nefandos jamais dcmonstraram grande Jo/i-
darirdadr defensiva em face da terrfvd amca<;a que pairava sobre todos. f-iéis as
rfgidas hierarquias da ColOnia, longe estiveram de csboc;ar qualqucr "conscil:ncia
grupal". Aferivos ou secos, prcpotcnrcs ou frágeis, assim se comporravam os
fanchonos, dependendo da posi<;ao que ocupavam na sociedadc. Nada os distin-
guia do restante dos homens, cada qua! no seu dcvido lugar, senhor o u escravo,
governadorou pajem, branco ou mulato, exceto a prática da sodomia, que repitamo-
lo, tornava-os inimigos capitais da Contra-Reforma no rrópico.

MULHERES NEFANDAS

Da Jodomia fotminarum nossa história colonial deixou poucos registros,


pracicameme reduzidos a ceno número de confissóes, denúncias e processos da
visita<;áo quinhentista, na qual 29 mulheres se viram implicadas por rela<;óes ne-
fandas. 77 Nenhum caso de travestismo, ao estilo da ale m aCatharina Linck, nenhum
caso de lesbianismo conventual a exemplo de Benedetta Carlini, abadessa de Pescia.
Mas, afora o relativo desimeresse da Inquisic;:áo em devassar na prática a sodomia
. . _ o exfguo número d e "neran
entre mulheres, e d as "1 ogo nos sugere, como na E~u ropa.

cena dJscn~tao dos amores femininos em comparac;:áo aos dos fanchonos.


De qualquer modo, as aventuras vivenciadas por essas 29 mulheres do
século XVI nos permirem recon t. · e · ·
. . s JtuJr numerosos aspectos do cotidiano remmmo
no Brasil colomal. Em matéria de homoerotismo, entendido em suas dimensóes
cultural e soc1al, o nefando fe · · e ·
e . mmmo rol seguramente mais inespecífico do que a
ranchomce dos homens As rel - lh · d
· a<;oes entre mu eres adultas mal se distingu1am 0
183

tidiano peculiar que irmanava ~cnhoras escrava 5 lh ¡·


co . . .. · . . . . ' • e mu eres 1vres na traca de
f'redo~. nos nH.:Xl:lllos, nas alcov1tagcns e, cenam t
seo . . . en e, na prepara~áo d ·-
nhas de va nada sortl'. l:, por outro lado, a exemplo do . e ~ezJ
. . . ¡· .. . . que ocorna entre memnos
molequcs, numas ndant 1ces fcmuunas náo passavam d .
e e expenmenros de moc;oilas
recém-saídas da pubcrdadc, pcrtcnccntes aos mais variado5 d .
. segmemos a soczeda-
de colonial.
A maioria
.
das rdac;ócs confessadas a Heiror Furrado de Men donc;a ocorreu
com memnas de nove o u dez anos e com moc;as donzelas de dezoiro a vi me. Várias
mulhercs, j;i casadas o u vi.üvas na época da visitac;áo, confessaram 05 namoros e
roques com amigas dt: infancia, como Madalena Pimentel, mulher de 46 anos,
vil1va de fJzendciro, que admitiu ter vivido quando moc;a "amizade cola e de
pouco saber com out ras moc;as de su a mes ma idade", induindo "contaros car-
nais". Ou corno Guimar Pisc;ara, mulher de 38 anos casada com lavrador, que aos
12 ou U anos deleita va-se com Mécia, "negra ladina da Guiné" que servía na
casa. Ainda cm 1592, ao confessar suas lubricidades infanris, Guimar era amiga
de Mécia, que rambém se casara com u m negro alfaiate, escravo dos jesuíras. 78
Havia, portan ro, rdac;óes entre mocinhas e rambém entre raparigas celiba-
tárias, jovens casadouras que por vezes náo resisriam as meninas de renra idade,
agarrando-as na primeira ocasiáo. Assim foi a juvenrude de Cararina Baroa antes
de casar-se com o alfaiare Diogo Rodrigues, pois, renda pouco mais de 15 anos,
estava sempre a "namorar" meninas de dez ou menos, segundo o relaco de Isabel
Marques, com quem Cararina folgara na inf3ncia. 7'' O mesmo se havia passado
com D. Catarina Quaresma, filha de u m rico fazendeiro, depois casada com im-
portante senhor de engenho da Bahía: ainda solteira, aos 19 anos, mantinha fre-
qüentes relac;óes sexuais com mo~as de sua idade. 80
As folgan~as de Madalena Pimentel ou Catarina Baroa, ao tempo em que
eram meninas ou mo~as, longe esravam de implicar urna opc;áo preferenci~ por
indivíduos do mesmo sexo. Pareciam ser, antes, brincadeiras pueris, ardor de craanc;as
ou, entáo, no caso das moc;as donzelas, formas de liberar os de~ejos sem co~pro-
merer a "honra d a virgindade'.• 0 que razaam,
e · na prát 1"ca • era ¡á prohlemat1Zado
. .
pelo escritor quinhentista Agnolo Firenzuela que, nos llagioMmrnll AmoniSI, co-
l " . . d b d e nao seria melhor par.a urna
ocou seus personagens femamnos e aren o por qu . .. 11 Es
m Ih · .. · cosa sua casudade · ~
u er amar ourra mulher", evitando-se assun os ns . . d
cificamenre no caso de mulheres brancas ou de famUias imponanres. a uranaa. os
. . capaz de afastar menonas
paiS, de que nos fala Gilberto Freyre, talvez fusse mesmo . ._ 1
. . dade atnburo essenc•"' para
e mo~as do convfvio Intimo de rapazes, sendo • v~rgon rm na
arranjar o casamento das filhas. Folgando ou ~deleitando urnas com .. ou
TJU)I'ICO llm PECADos
184

infancia ou na adolescencia, o faro é que o grande objetivo das mulheres era


realmente casar: meninas se inclinando sexual mente por meio de beijos e roques,
mo<;as a namorar sem pejo ou a perseguir raparigas para um breve deleite, nenhu-
ma dessas arirudes era capaz de rurvar as inren<;óes casadouras das mulheres. Urna
vez casadas, sobrevinha a decep<;áo, náo raro os maus-rratos e, com cerreza, a
descobena de que os maridos pouco ligavam para seus íntimos dese jos. Só !hes
resrava, emáo, deixá-los e divorciar-se- sempre urna op<;áo exrrema; o u, ainda,
amansá-los com orac;:óes amatórias, conquistá-los por meio de filtros, traí-los com
o unos homens e, que m sabe, retornar aos nefandos deleites d' outrora. Nada disso
falrou, seguramente, ao cotidiano de nossas amigas mulheres.
Entre as mulheres casadas que preferiram o amor de o u tras mulheres o u,
no mínimo, se abriram para aventuras nesse campo, encontramos variada cópia
de rela¡¡:óes: chamegos com escravas, romances episódicos entre mulheres livres ou
forras, amancebamenros e aré "fanchonices" ao estilo do sapareiro Lessa. 82 Caso
singular parece ter sido o da mameluca Maria de Lucena, que, renda cerca de
25 anos, vivia na casa de urna patenta casada com certo fazendeiro pernambucano.
Apesar de ainda solreira nessa época, pois se casaría depois na Paraíba, Maria já
conhecia o amor de homens, renda inclusive parido antes de casar-se, segundo
conrou urna de suas denunciantes. Mas o que mais lhe agu¡¡:ava o dese jo era o
amor de mulheres, especialmente o das escravas Margayda e Vitória, índias a
quem volra e meia correjava e agarrava. Ao contrário da imensa maioria das mu-
lheres, raramente vistas em aros nefandos, Maria de Lucena era infamada por
"dormir carnalmente comas negras (índias) da casa", e mais de urna vez fora pega
em flagrante deleite. Cerra ocasiáo, surprendeu-a com a tal Margayda urna ourra
índia, a escrava Mónica, que ráo lago as viu "urna sobre a ourra fazendo movi-
menros e sinais como se fossem homem com mulher'', lan¡¡:ou-lhes urna cusparada
e grirou "que náo faziam aquilo por falta de homens"83 - afirma¡¡:áo incisiva,
reveladora de preconceitos ou, quem sabe, ciúmes por parte da restemunha ocular.
Ourro caso notável foi o de Paula de Siqueira, mulher de 38 anos, esposa
do contador da fazenda d'el Reina Bahia. Paula era urna mulher esperta, sobretu-
do porque sabia_ler, rara virrude entre as mulheres daquele tempo. No en tanto,
sua le.tura prefetJda era Diana, romance pastoril do espanhol Jorge de Montemayor,
escroto em 1559 e logo inclufdo no rol de livros proibidos pela Jnquisi~ao. Consi-
derado "livro desonesro" pelos censores do Santo Offcio, Diana narrava os amo·
res

de duas moras
• T ,,'
sugerind o urna "sens1"b"l"d
1 1 a d e h omossexual ao mesmo rempo
l~ten~a e d.ndJda - posslvel razáo náo apenas da censura inquisitorial como do
vtvo mteresse de Paula pelo livro. Tamo falava sobre Diana, recitando-o para as
185

igas que acabaria proccssada por te-lo consigo e 1 d .


arn ' . . d d. d " ~ ' re ve an o-se coraJosa Paula
desafiaria o VISita or 1zen o que nao havia raziío de def. d l . '
. "d l. 1 en erem ta livro", "que
rinha multo gasto e e- o, e por sua vontade o leria sempre - e
.. • nao rosse por sabe-
lo "quase tod o d e cor .
Por outro lado, Paula era como as demais mulheres · dd .
. ' muuo a a a somlé-
gios, orat;:óes e cueras qutmeras, sempre abusca de remédios para amansar 0 ma-
rido e faze-lo querer-lhe bem. Andou-lhe dizendo as palavras da •
. . consagr~ao para
amansá-lo, e amda pedm canas de tocar e ora~óes que nomeavam "esuelas e
diabos" com o mesmo fim de aquietar o esposo. Pediu-as anossa conhecida "Boca
Torta", usando-as várias vezes. Letrada, passional, corajosa, Paula de Siqueira niío
rardaria a verificar, na prácica, como eram os amores sugeridos em seu livro predi-
leto. Inspirada por Montemayor, cedeu encantada as pressóes de urna tal Fclipa de
Souza, mulher também singular que lhe mandava "cartas de requebros e arnore.~",
e vez por outra, dava-lhe beijos e abra~os com claras inten~es lascivas. Durante
dois anos - tres anos antes da visita inquisitorial -, Paula e Fclipa ficararn
remitas a afagos, beijos e cartas, até que, num domingo ou dia santo, rocebendo
a visita da amiga, e sabedora de seus desejos, Paula convidou-a para seu quarto,
ande mantiveram vários atas sexuais confessadamente deleitosos durante o dia
inteiro. E foi só. Nunca mais esteve com Felipa ou qualquer nefanda da Colonia,
segundo confessou ao visitador do Santo Ofício. 84
Mas o principal romance envolvendo mulheres de que <emos norícia foi,
sem dúvida, a conturbada história de Francisca Luiz e Isabel Antonia. Solteira,
Isabel chegara a Bahia por volta de 1579, degredada do Porto e, "aoque diziam",
por pecar no nefando com ourras mulhe<es. Infamada no Porto, sc-lo-ia ainda na
Bahia, a julgar por sua alcunha de "a do veludo", alusiva ao falo aveludado que
usava em suas rela~óes sexuais. Francisca, negra forra abandonada pelo marido,
viera antes, rambém do Porto e abrigara Isabel por algum rempo. Eram amigas ou
amantes desde Portugal e continuariam a se-lo em Salvador. Mas 0 romance era
.,, .1
dlriCI . . b d d · e Isabel- justo "a do
o mOtiVO de escandalo público, SO rCtU O epOIS qu

veludo" - resolveu sair com cerco homcm, o que lcvaria sua amante a inrcrpclá-
1a na porta de casa ao gritos de "vcl haca.1 (... )· Quan tos beijos dás a seu .ooxo
] doe
abra~os nao me dás u m?! (... ) Niio sabes que quero mais a um cono [vagl¡na c.
. L. ....gando-a p< os ca~><·
que quantos caralhos aqui há?!" Disse rudo ISSO aos ocrros, •· . . h A b · a
1 · boc. • avista dos Vllln OS. ng
os, trazcndo-a porta adentro com a~01tcs e "'roes d · ·
~ . . O m o des~erro a capnama
01 parar no }uízo Eclesiástico, que as pum u em l5S co .. . do un•
. F ncisca lol viSta passan
- sentcn~a aliás nunca cumprida. Pouco depOis. ra d fa · ""'" ri-la de
recado para Isabel a modo de reconcilia~iio, dizcndo quc ru 0 na r-
11\Ul'll U lJ\)~ l'lCAOos
186

volra. O caso náo prosseguiu, porém, e Isabel Anrónia morrena ames da chegada
do visitador.'!!~
Mas a grande fanchona da Bahia, se assim podemos chamá-la, loi a tal
. d e Souza, aman 1e da ousada Paula de Siquwa. feltpa
Fel1pa . era mulher
. . simples ,
que "ganhava sua vida pela agulha", fora viúva de u m pedretro e VJVJa casada com
um modesto lavrador. Apesar de duas vezes casada, adora va mulheres e sempre a.s
procurava, conforme dizia, "pelo grande amor e afei~áo carnal ~ue semi a" quando
as via. E, com efeiro, náo perdia oponunidade alguma de corteJar, agarrar e deilar
com todas as que lhe atravessavam o caminho. Foi assim com f\1aria Peralta,
jovem donzela de 18 anos, com quem se abrigou cena vez na casa de um tal
Gaspar da Vila Costa; com Paula de Siqueira, a que m cortejou de todas as manei-
ras; com Ana Fernandes, casada com um ferreiro, a quem agarrou e beijou nos
muros do mosreiro de Sáo Bemo, convidando-a para dormirem jumas; com Ma-
ria Louren\O, casada com um caldeireiro, a quem abrigou cena noite, ao tempo
em que os ingleses saquearam Salvador. Nes[e úl[imo caso, conforme o re !aro de
Maria, logo depois do jamar, Felipa come~ou a falar "amores e palavras lascivas
melhor do que se fosse um rufiáo asua barregá, e lhe deu muiros beijos e abra-
~os", antes de levá-la para a cama. Na noite seguinre, Felipa chegou a fazer-se de
"doente da madre" para que Maria fosse a sua cama e romasse, para "curá-la", o
lugar do marido ... Pelo que confessaram suas parceiras, Felipa "se gabava" muito
de ter mulheres e sempre diiia 3.s amanees que "namorava e tinha damas" e, na
descri\áo do visitador, era "useira e m cometer e namorar mulheres". Se m dúvida,
Felipa de Souza era, de longe, a grande nefanda da Bahia e receberia, entre as
acusadas, a mais dura pena do visitador: a~oites e degredo perpétuo para fora da
capitania. 86
O universo feminino da Colonia também incluía, portanto, o nefando.
Praticavarn-no as mocinhas em meio aos risos e as
brincadeiras infanris, bem
como as raparigas cheias de desejo, mas que nao queriam ou' nao podiam perder
a honra de virgens. Praricavam-no, ainda, algumas mulheres casadas, ralvez em
busca do prazer que seus maridos nao davam. E praticavam-no, enfim, algumas
mulher~ por op~áo homoerótica: "por afei~iío carnal", como Felipa de Souza, o u
por pa1xao, como Francisca Luiz.
Fanchonos ou mulheres nefandas, os indivíduos que vimos transgredir 0
uso natural do corpo cairiam, a partir do século XVI, na al~ada do Santo Oficio
em todos os domíntos do tmpério lusitano. E, assim como eles, também os que se
casassem
. maJS
.. de urna .vez na igre¡· a sen d o vtvo
· o prtmetro
· · conJuge,
• . os d e1enso
< res
da forntc~ao, os questlonadores da primazia do celibato eclesiástico o u da virgin·
. 05 confessores mal afeitos ao sacramento da penitencia, os aman-
d de M arta.
da e l encantadas, os blasfemos, as feiticeiras, muitos cairiam na teia do
de pa avras
«' , 'd No rempo da Contra-Reforma, ainda que no trópico, a imoralidade
· qu!SI d'or. · com a descrem;:a ou, ma1s
10 · precasamente,
· com a heresta:
· escolh a
confun ¡r-se-ta . .
. de um cammho pengoso.
consctente
TRÓPICO oos PECADos
188

NOTAS

ConSh.NÚ(Óts Primtir4l do Arctbispado da &hia. Sáo Paulo. 1853. Livro V, título XVI,
l.
parágs. 958-959. . .
Foucauh, Michel. HiJtória da stxUillidadt. I. A vontadt dt saber. R1o de jane1ro, Graal,
2.
1977. p. 43.
3. Boswell, John. ChriJtianity. Social Toltranet and Homosrxuality. Chicago and London,
The Universiry ofChicago Press. 1981. p. 96~97. Teólogos como Orígenes e Ambrósio
fizeram idemica leitura "náo sexual izada" da destruit;áo de Sodoma.

4. V. 1 Cor 6,9 e 1Tin 1.10, e ainda, Aries, Philíppe. Sáo Paulo e a carne. In Béjin, A. (org.)
Scnuzüdmks ondmtais. Lisboa, Contexto, p. 48-49.
5. Aries, P. Reflexóes sobre a história da homossexuaJidade. In Béjin, A. (org.) Op. cit., p.
77.
6. Gilbcn, Arthur N. Concepcions ofHomosexuaJiry and Sodomy in Western History.In
Licara, Salva[Ore J. e Petersen, Roben (org.). Historical Perspectives on Homouxuality.
New York, Hawonh Press lnc. and Srein and Day Publishers, 1981, p. 64-65.
7. Boswell, J. Op. ci1., p. 137-138:316.
B. Gilben, AN. Op. cir., p. 62.
9. Foucault, M. Hiltórill dA saua/itlade. II. O uso dos praures. Rio de Janeiro, Graal. 1984,
p. 187.
10. Embora os autores tratem do assunto em outro contexto, exuaímos essa no~jáO de Fry.
Peter e MacRae, Edward. O que i homosuxualidade? Sáo Paulo, Brasiliense, 1983 (Cole-
~áo Primeiros Pass os), p. 44 e segs.

11. Carrasco, Rafael. Inquisición y represión sexual en Va/incia. História de los sodomitas (1565-
1785). Barcelona, Laenes Ediciones, 1986, p. 48.
12. Apud Lever, Maurice. Le1 Búchen dt Sodome. Histoires des "inf:lmes". Paris, Fayard. 1985,
p. 85.
13. Cllncionriro geral de Garcia de &unde. Nova edi~jáO preparada por A. J. Gonplves Gui-
marács. Coimbra, lmprensa da Universidade, tomo IV. p. 158.
14. Apud Mon, Luiz R. B. Da fogueira ao fogo do inforno: a alfo"ia do lesbianismo em Portu-
gal, 1646. Comunica~o aprescntada a lntcrnational Conference on Lesbian and Gay
History. Toronto, 1985, p. 2.
15. Carruco, R. Op. cit p. 103-105.
16. Silva, AntOnio de Morais. Dicionárioáa Llngua Portugutsa. Lisboa, Typografia Lacérdina,
1813, lomo 11, p. 10.

l7. ~arr~co, R. Op. cit., P· 27. A palavra puto era wada nessc sentido cm vários lugares.
mclw1vc cm Ponugal.
18, Boswell, J. Op. cir., p. 283 e sep.
189

Lever, M. O p. cir., p. 41 O. No século XVIII a palavra bou ~ as . .


J9. " 1 . " . :gr: p sou a sJgmficar precisa-
meo re 0 homossexua auvo , em opos1~áo a hardacht, passivo.
20. Id. ibid_.. p~ 47-48. (~· úhimo código também fixav~, pela primeira vez em Fran~a. enas
de munla~ao e fogue1ra para mulheres comprcend 1das nesse crime. p
Zl. Crompton: Lo~is. Thc: Myth ofLcsbia~ Impuniry- Capital Laws from 1270 m 179 1.
In Licata, .S. e .l etersen, R. (org.) Op~ ca., p. 17. O primeiro homem a morrer de que se
rem no deJa f01 John de Wenre, anesao, execurado na fogueira em Gand (1 29Z).
22. Marques, H. de Oliv:ira. ~ s~ciedadt mtditva/ portuguesa. 4. ed. Lisboa, Sá da Costa,
1981, p. 129. A med1da fo1 rene rada nas Ordena~óes Manuelinas, Livro y dmlo XIII,
parág. 4. V. Almeida, Ci.ndido Mendes de. (org.) Código Filipino ou OrdenarótJt Ltisd.
&ino de Portugal. Rio de Janeiro, Typografia do Instituto Phylomático, 1870, livros,
dtulos e parágs. indicados, ande há remissáo alegisla~áo anterior. A legisla~áo de várias
cidades italianas fazia o mesmo. Boswell. Op. cit., p. 291.
23. Em Espanha foi reiterada esta pena na "Pragmática dos Reis Católicos" em 1497.
V. Bennassar, Banolomé. Le Modele sexuel: I'Inquisiüon d'Aragon et la rCpression des
péchés abominables. In (org.) L1nquisittion Espagnok{XVt.-Xlk. Jilc/n). Paris, Marabout,
1982. p. 331. Idem nas Ordena~tóes Manuelinas, Livro V. título XII e Código Filipino,
Livro V, título Xlll.
24. Carrasco, R. Op. cit., p. 21.
25. Burg. B.R. Ho hum, AnotherWork of the Devii- Buggery and Sodomy in EariySruan
England. In Licata, S. e Petersen, R. Op. cit., p. 70-78.
26. Montee, E. Wiliam. Sodomy and Heresy in Early Moderny Swirzcrland. In Licua, S.
Op. cit., p. 42-55.
27. Delumeau, Jean.Le Péché tt la ptur. Paris, Fayard, 1983, p. 137. Carrasco, R Op .•cit.,
p. 9. Olivieri, Achillo. Erocismo e grupos sociais na Venez.a do século XVI: a concsa. In
Aries, P. e Béjin, A. (org.), op. cit., p. 93. V. tb. Lever, M. Op. cit., P· 69-73.
28. Morr, L. R. B. Pagode ponugufs: a subculturagayem Ponugal nos tempos inquisitoriais.
Ciincia t Cultura 40 (2), 1988, p. 124.
29. Levet, M. Op. cit. p. 75-78; 153-159: 103-107:228-231.
lO. Carrasco, R. Op. cit., p. 137: 155-156.
31. Mou, L. R. B. Pagode ponugues .. ., p. 127-137.
32. Lever, M. Op. cit., p. 76-77.
ll. Mou, L. R. B. Da fogueira ao fogo .. ., p. 3.
34. Crompton, L. Op. cit., p. 17. . d R n~ S1a
35 · Brown, juduh.
. Atos impuros. A v1da . de uma ~rclr.l
· lésbica na hiha • eniiSC( ·
Pauln, Brasiliensc, 1987, p. 172 e segs.
lG. Crompton, L. Op. cit., p. 17-18. li. JR<ronls.lnl.iata.
37 · Erik.sson, Brigine. A Lesbian Execmion in Germany, l72l -the na
S. e Peterscn, R. Op. cit., p. 27 e 40.
38. Carta de do;u;áo da Capitania de Pernambu.c~ a ~uartc Cod_ho. em 5 d_c nll[ubro de
l 534: Apud Tap.tjós, Viceme. História. ndmuustrati/Jtl d~ BmSJ~ ~· cd: .~~10 ?e Ja~1ciro,
DASP, vol. 2. p. 195. A instru~áo foi rcucrada na car~a ~e no~c..:.t:.to ~e .~~lmc de ~ou·ta,
incluindo na mcsma situa~áo uaidores, heregcs e falsdlc.tdon:s de monl.t~.
39. Freyrc, G. Cmn~gmndersmulla. 16. cd. Rio de Janciro, José Olymp.i<l, 19.73, p. 116-117.
40. História geral das Guerras Angolanas (1681), apud Mo~t, L. R. B.. Escr:vu.Li.o e homossc-
xualidade. In Vainfas, R. (org.) História rsrxualidade. R1o dc Janc1ro, (,raal, 1986, p. 2?.
41 . Lei sobre 0 pecado nefando da sodomia. ~p~d Mott: ~-~·B. Rda~~cs raciais emre ho-
mossexuais no Brasil ColOnia. Revista BraSJieml de Hutorza, n. 1O, l ~85, p. 103.
42 . Gruzinsky. Serge. Las cenizas del deseo. Homosexuales n~~o-his~a.nos a, ~cdiados del
siglo XVII. In Ortega. S. (org.) De la santidad a la pervemon. Mt:xJCo, Gn¡albo, 1985,
p. 255-281.
43. Carrasco, R. O p. cit. p. 158-160. Monter afirma que dificilmente se poderiam encontrar
subculturas homossexuais antes do século XVII, quando as grandt:s capitais comc~aram a
uhrapassar os 200 mil habitantes. Op. cit., p. 42.
44. Os números sáo incompletos, pois náo incluem os denunciados aprcscntados fora das
visitas inquisitoriais que náo sofreram processos. É possívcl pcsquisá-los nos "Cadernos
do Nefando" recolhidos ao Arquivo Nacional da Torre do Tambo, cm Lisboa (sala de
índices).
45. Apud Mon, L.K.B. Pagode ponugues ... , p. 125.
46. Mou, LR.B. Bmeditinos e sodomitas: /6/0-1984. Anexo I a carta enviada ao Exmo.
Reverendíssimo Abade do Mosteiro de Sáo Bento (RJ). Salvador, 5 de julho de 1987.
p. 1-3. Numa visáo de conjunto, incluindo todos os processos e acusa~óes singulares
comidas nos Cadernos do Nefando e relativas aos uibunais de Lisboa, Évora e Coimbra
entre os séculas XVI e XVIII, Luiz Mou constato u que era m cerca de 25% os sodomitas
lusitanos penencentes ao clero, especialmente os seculares. No tocante 3. execu~áo, o
índice de sacerdotes queimados excedeu 30% do total. E, por fim, em relac;áo ao clero
regular, Mon verificou terem sido "raríssimos os jesuítas fanchonos", pois táo logo des-
cabe nos eram expulsas da Companhia.V. Pagode ponugui:s ... , p. 125.
47. Id. Rela~óes raciais emre homossexuais ... , p. 107-108.
48. ANTT/IL. proccsso 6366.
49. Sobre o significado das palavras moleque, mOfO, etc., V. Reis, J. José. Popula~áo e rebeliáo:
nOias sobre a populac;áo escrava na Bahia na primcira metade do século XIX. Revista dt
Citnáas Humanas, n. 1, vol. ), 1930, p. 148.
SO. Primeira Visitafiio do Santo Oficio tls partes do Brasil. Denuncinfóes da Bahia ( 1591-1593)
Sio l'aulo, Eduardo Prado, 1925, p. 44B-4 53 .
51. l'rimtiravilira¡áo... ConfiuórsdaBahia(/591-15 92 , 1,. d·J · e Bri•ucl, 1935.
p. 23-27. /· 'JO e aneHo, r. 0

52. ~enunciafót~ da Bahia, p. 407-408. ]imbanda era o termo do Congo e da Guiné cquiva-
e.ntc .ao qurmban~~ dcscriw por Cardoncga: ambos aludiam, no mlnimo, a homens
cremmados que se vcstiam de mulhcres".
53. MoH. L.R.B. Pag~H.k pon_ugul:s .. ., p. 129-130. O travcS(ismo nunca foi
ma prática dr.: ong~:m afncana. Mou fala-nos de vári ' no entamo,
u XVII 1 . . os portugueses que o praticav
nos sé~ulos ~V.l e assu~ como V•ccme Graullera, que arrolou alguns casos::
,
VaiCncl_a. Mu¡c•. amor y ~(~r-ahdad en la ~al~~ cía de los siglos XVI y XVII. In Redondo
Augusun_ (o~g.) Arnotm !eg1tntw, nmozm t!legaimes en Eipngne (XV/r.-XVI/r. sihlrs). Pa:
ris. Pubhcau_c~ns d~ la Sorbonn,e,_ 198~, p. ~ 15-116. Também Gruzinski informa-nos
sobre uavcsm mcxJClnos no McxJco scJscenusta, inclusive Indios. Op. cit., p. lGS.
54. ANTI'/IL., prowso 6702.
55 _ Conflssóes da Bahia, p. 354-356. A palavra umualera rambém usada no sentido de "im-
pudico, lascivo, carnal", além de "atraen te", ele. V. Silva, A. de Morais. Dicionário... , vol.
2, p. 687.
56. ANTf/IL., processo 4307.
57. Id., processos 1151 9 (Salvador Romeiro) e 12937 (Pero Marinho Lobera).
58. Mon, L. R. B. Desventuras de um sodomira portuguts no Brasil seiscemisra. Comunica·
~áo apresentada ao l Congrcsso Luso·Brasileiro sobre a Inquisi~áo. Sáo Paulo, 1987,
ANTI/IL.. processo 4769.
59. Flandrin, J-1., Le Sexe et /'Occident. Paris, Seuil, 1981, p. 237.
60. Primeira viJitaráo... Confissóes de Pernambuco (1594·1595). Recife, Universidade Federal
de Pernambuco, 1970, p. 136-1 37.
61. ANTI/IL., processos 6358 (Antonio de Aguiar) e 11080 (MarcosTavares) além da con-
fissáo de Bastiáo de Aguiar em Confissóes da Bahia, p. 88·90.
62. ANTI/IL., processo 14326.
63. Flandrin, J-L. Op. cit., p. 256-257.
64. Vários deles foram processados e punidos por Heitor Funado de Mendon~a. o que nos
permitiu a reconstitui~áo de seus ligames. V. ANTI/IL., processos 8473. 2552, 11208,
6349 e 2557.
65. Id., processos 11061 e 7467.
66. Srgunda visitaráo... , Confissórs r Ratificarórs, p. 444-446.
67. ANTI/IL., processo 10426.
68. Livro da visitaráo do Santo Oficio da lnquisiráo ao Estado do Grio-Partl (1763-1769)
Petr6polis, Vozes, 1978, P· 261·265. ANTI/IL.. processo 12894.
69· Salvador, Frei Vicente do. História do Brasil (1500-/627). 6. ed. Sio Paulo, Mdhora-
mentos/!NL, 1975, p. 287 -288; 297. . ·.wus~
70 · Pita, Sebastiáo da Rocha. História da Amíric11 portupt'SII. Bdo Hortz.onte, ltau '
1976, p. 1OO.
71. Srgunda visitaráo... , Confissórs r Ratificafárs, P· 38°-3 84 · . . N · ¡
72 H . Paulo Companhoa Ednora _... '
· olanda, Sérgio B. de. Visáo do p,,./so. 3. ed. Sáo '
p. 323.
192 TROPJCO "'" PEI:.\Do¡

L R.B ()avcnturu d< um oodomita...• P· 9.


73. ApudMou, . · •
74. Carruco. R. Op. cit., P· 161. Acraccnta o autor: Numa oocinlad. como a ...... ;
dillcll conccbcr que um '"f'll,. awitUIC com o pnrnmo ..Juho que lhc of.._"""'
e coberta, ou roupa nrc,adria para cobrar 11 carnea, ou anclw1vc um umpln ~ dr:
p1o • fruta", foco muito comum naqucla <poca.
75. Carruco, R. Op. cit., p. 114.
76. Foi o que quationou Gruziruki, apaar d<_camb<m vwficar • prom.,cuidode f<luol doo
mdomiw maicanoa. Op. cit., p. 276. l::m rrabalho K'<< ni<. l.uoz Muu - ..r....,
•obre vúiu n:~ amofOIU encrc .enhorn e cacravUI na Culc\n~. t:nuc ouuw c-.
fala·noo d< um cono capillo J<* de Lima Noronha, caaadu, mur..Jor cm Slo Jo¡, iiiJ
a.y no ~. XVIII. amancebado com u ansol• Anconru por 1H """' rc:cuodo.! v. 0 ..,.
cacivo: abcrnaciva cróciw dol africaftOI e Kw daanJmca no Bru1l ncnwill&. C...-
·~ op-nwla no Canc- ln~ernacional ..,¡,.., • t..<ravrdio. * l'aulu, 1911.
11. Apio OICIIOI da primrin v~. ró oe wnhccc rcpuu no 8r11d colonw de ICUro¡6o
conua uma wAtoa RDu. arlllladu pdo alno:co < 1010ur<Uu du b10.,..Jo de Mor-,.
1795. Ver o acuda de Bdlini. U,ia. A con.....,_,._
MrJJ-. ..,¡,• ..,, ,...,.,...
Brlllil ,.¡,.;.L Diua. de rnallldo apraentada ~ Unrwnida.k falctal da ....
Solwdo~ 1987. p. 70-71.
78. Conliu6a da Bahil, p. 206-209 (oa doia caaua).
79. ld<m. p. 210.
80. AI'ITJ'/11., p - 1289.
81. Apud s-,). Op. cit.,p.l9-20.
fo_,_• ..., ,.
82. Al upu ae jllllificam, no aao, porque nlo ae utiliza.,. o 10rmo
homeno, ID eontrúio de hajc, q-.lo 1 polayra forttl.u <wrrmte....,.IO uada aaJio.
JUIPIII popular como lin6Dimo de l&bico ou "mulhcr·macho".
83. .0..~ i. ~ (IS!Il-1595). p. 47·50.
84. AI'ITI'IIL p - 3307.
85. ldem, p - 13787.
86. ldem, ~ 1267.
ATElA DO INQUISIDOR

Um sistnna prnal ekvt ur conctbido como um instru~


mmto para gffir difirmcialmtntt IIJ Jrgaliáatks, n4a
para suprimi-las a todas.

Michd Foucaulr
¡;A f' 1 TU l. IJ 6

() SANTO ÜI'ICJO NOS DOMINIOS DA MORAL

O primríro hmsiarca do mundo foi 0 DmuJ-


nio, t 01 primriro1 htrtgtJ, AtJ4o t Evt~.
Vieira

INc¡uiSir;Ao, REHJltMAS E JusTJC;As

Empcnhado cm contcr o avan~ das hereoiaJ no século XIII, eopecialmen<e o


catari11no no Sul da Fran~a, o papa Greg6rio IX delego u a Domingo• de Gwmáo
a tarcfa de organizar u m tribunal rdigiooo encarrcgado de deocobrir c inquirir 01
aplmata. do criuianismo, rcmctendo aos poderca civil a ex<cu~áo dos culpado• de
herc1Ía. A.uim nasccu a mais estruturada das lnquisi~es medícvaís, controlada
pelo, dominicanos, subordinada ao papado e re•pon•ivd por inúmcraJ penegui-
~ócs aoa cátaros, "seguidores do lívrc c1pírito", e a ouuos hercgcs. E nasaram, por
outro lado, os modernos procedimento• judicíirios calcados no ocgrcdo do pro-
CCIIo, na ínnítucionaliza<;áo da tonura como meio de arrancar confiuócs, no
anonimato daa tcJtcmunhas, e out ros mecanismos cxaustívamcnrc deralhados nos
manuais de Bernardo Gui, Practica fnr¡uiJitionis, e de Nicolau Eymcrich, DirtriiJrwm
lnquisitorum, ambo, datadoo do 1éculo XIV'
Surgida na ldade Média para detcctar e combatcr aJ chamada. "s<iw hcrc!-
tita.", a lnqui·i~áo e 0 estilo inquisiwrial dc Justi~a atingiriam ocu apogcu na
C.poca Moderna. Enquanw tribunaleclesiinico fundamcnralmcntc vohado con-
tra 01 deovioo da "verdadeira fé", a lnquisi~áo ocria "rccriada" na h4lia cm 1S<ll.
pouco anteo de inidar-sc o Concilio de Trcnto, wumindo cntlo oo mamo• obtc·
tivoa da Contra-Reforma: contcr o avan~o do prorenanriomo nal'cnlnaula. com-
TRÚI'ICO DO~ PECADOs
196

, ·e
.
d a 1greJa.
- d
as mannesra~oes a cu u
· s que exrrapolavam os preceiros do catolicismo e perseguir
barer os sab eres eru d J1o . , .
Ir rae da religiosidade populares medutiveJS aos dogmas
. . . . ,.
'al nte as práticas mágicas, a feaH;ana e as !deJas ou palavras
espeCI me , .
"erróneas".2 Exemplo norável de sua aruac;áo nesre ulumo ponto, vemo-lo no
admirávellivro de Cario Ginzburg, O queijo e os vermes, ande se descreve o triste
destino de Menocchio, simples moleiro friuliano processado por suas idéias sobre
a Criac;:áo, 3 Igreja e os sacramentos, mistura original de crenc;as populares e valo-
res eruditos característica da religiosidade camponesa. 3
E, ainda como tribunal religioso, porém submetida a auroridade dos reis, a
lnquisi~áo ressurgiria na Espanha, em 1478 - onde havia o importante prece-
deme do tribunal aragones no século XIV- e, por extensáo, em Portugal, ins-
taurada por D. Joiio III no ano de 1536. Duas grandes distin~óes marcariam, em
princípio, as lnquisic;óes ibéricas em relaijáO a congCnere medieval e a Inquisic;ao
papal: a primeira, já mencionada, reside em que o Santo Ofício ibérico se organi-
zou como tribunal eclesiáscico diretamente subordinado 1t monarquia; e a segunda
repousa em sua conhecida obsessiio anti~semita, razáo ou pretexto da própria insta-
la~áo dos rribunais em Espanha e Portugal'
A sistemática persegui~áo dos chamados cristáos-novos - judeus conver·
tidos ao cristianismo e suspeiws de "judaizar" em segredo - foi, sem dúvida, o
rra~o distintivo e peculiar das lnquisi~óes ibéricas, respondendo pela grande maioria
dos réus processados e executados entre o último quartel do século XV e a segun-
da metade do XVIII.' Mas, como já indicamos em ourros capítulos, os ecos da
Contra-Reforma também se fizeram ouvir em centenas de condenacróes
inquisitoriais espanholas e portuguesas a partir de meados do século XVI, lindo o
Concilio de Tremo. Herdeiro das decisóes tridentinas, o Santo Ofício voltar-se-ia,
de um lado, contra o avan~o do "luteranismo" na Península, fosse ele real ou
quimérico, conforme a regiiío; de outro lado, aderindo ao pro jeto aculrurador e a
onda persecurória que, esbo~ados nos séculos XIV e XV, varreram o conjunto da
Europa moderna, empenhar-se-ia na depura~áo das mentalidades populares, na
demonizacráo dos sincretismos religiosos, na persegui¡;:áo as "ofensas morais" a
família e aos "abomináveis dese jos heréticos".
As tarefas desse genero, inscritas na estratégia de acultura~áo popular, se
dedicariam os poderes do Ocidente tanto nos países católicos como nos proresran·
tes, ocupando a aten~áo de inquisidores- onde os havia - , jufzes eclesiásticos
ou magiStrados civis. Na Fran~a, milhares de feiticeiras seriam julgadas e conde-
nada. pelos "p ar 1amemos" reg10na1s
· · (rribunais mistos)/' enquanro a Inren d'ncia
e
de Lula XIV aprisionaria centenas de bougm utilizando agentes especiais - a.s
mou •
ches homens de físico
.
atraen te infiltrados no bas-fond · .
pans1ense com 0 fito de
vocar homossexuaJs. Na mesma Fran~a de 1630 - f ¡ .
pro . . , . . ~ nao a rana urna tal
"CompagnJe du Samr-Sacrement , tnclumdo nobres • burgueses, magiS[ra . d ¿._
05 1
plomaras e ourros segmentos da elite decididos a comer heresias e indecen~ias·
usava "os pi ores méwdos da Inquisi\áo", nas palavras de Maurice Lever, introdu~
ll.ndo~se nas famílias, espreitando, denunciando ' violando correspon d"enctas,
. per-
seguindo, atua~do na ~ombr.a "p~r~ resrau:ar urna ordem católica" no país.7 Na
Inglaterra anglicana, rnbuna1s rellgwsos e JUÍzes civis se alrernariam na rarefa de
vigiar os costumes e a religiáo popular8 e, se foram complacemes coma sodomía,
agiriam com algum rigor em relac;áo :ls feiticeiras, queimando-as em apreciável
escala na época de Cromwell.' E o que fazia o Santo Ofício espanhol ou porru-
guCs em rela~áo a sodomitas e bruxas- processando vários, queimando algumas
- fá-lo-ia muito mais o temível Consisrório, verdadeira "inquisi1¡:áo" calvinista
organizada na Suíc;a dos seiscenros. 10
As atitudes policiais e repressivas da moderna lnquisir;áo, ibérica ou roma-
na, imegravam o vasto painel da violenta pedagogía cristá posta em prática no
Ocidente. E quanto aos chamados métodos inquisitoriais de inquirir e processar,
longe esriveram de ser u m privilégio do Santo Ofício. O cerirnonial do segredo na
formac;áo dos autos, o acolhimento de rumores ou denúncias imprecisas, o anoni-
mato das testemunhas, a prática da cortura na obrenc;áo de confissóes, e a própria
confissáo como máxima prava de Justic;a, eis os mecanismos utilizados afarra por
inquisidores e juízes seculares em toda a parte, embora a natureza variável dos
crirnes conduzisse a importantes diferen~as no método de julgar.
O emprego da tortura, em particular, utilizada em réus negativos ou "vaci-
lantes" contra os quais havia muitas acusa~óes, era um ptocedimento judiciário
previsto nos códigos de roda a Europa. Na legisla~áo francesa do século XVII.
regulamentava-se o momenw de aplicá-la, a durac;:áo, os usos, os instrumentos, o
comprimen ro das cordas, o peso dos chumbos, o número de cunhas, as inrerven-
~óes do magistrado e outros detalhes. 11 O mesmo ocorria em Portugal pelo menos
de5de as 0 rd enayóes Manuelmas . - antes, portan r°• do wabelecimento
.. , . da
In · · - .. ova¡· udaoana era tal que
qu1su;:ao. A preocupa¡yá.o de uuhzar a tortura como pr
•e ¡· "d s sessóes de tormento ao
recomendava naquelas ordenac;:óes náo ap acar segua a .
rnesmo réu, de modo a evitar-se a ratificac;:áo de urna falsa confiss;io umcamente
rnovida por " d d d " 11
me o a or . n ercebida como injusta,
lnfqua aos olhos de hoje, e já no século XVI P . d
dos . . Antigo RegJme o que urna
umana e meficaz 13 a tortura nada maas era 00 . ó ·
ca . ' . s ecial de mterrogat no.
racrerfsnca burocrática das Jusri¡;as e urna récmca e P
TROP!Cü Dos PECADos
198

. l b Foucaulr náo era urna forma de "arrancar a verd d


E este úlnmo, em ra-nos , " . . a ea
.. "louca ronura apltcada pelos modernos reg 1mes tor ¡· ,
qualquer pre~o nem a . . ., . a Jta-
rios.t4 Concebido e regulamemado como prov~. JUdJCtana, o tormento fazia de
muiros inrerrogarórios um "suplício da verdade ' sen~o ~oc vezes o único meio
, . h ara se provar inocente, conforme nos md1cam AmOnio Saraiv
queoreurm ap , . . . ~ 15 , ae
Bartolomé Bannassar a respeiro da propna lnqu¡su;ao. E, a esse titulo, observa
muito bem 0 autor de Vigiare punir, "mais longe do que as técnicas da Inquisi~áo",
0 rormenro se Jigava as antigas provas judiciárias medievais, as célebres ordálias e
duelos, aoque se poderia acrescenrar o antigo uso romano da questio. 16
Quase nada distinguia, pois, a violencia e a arbitrariedade do Santo Ofício
ibérico em relac;áo as práticas judiciárias utilizadas e m seu tempo. Consistórios,
intendencias, tribunais do Santo Ofício, rodas atuavam consoante as Justic;as de
urna época ande náo havia "direiros humanos", ande o processo era urna manifes-
tac;áo do poder institucionalmente arbirrário do Estado, ande a eventual execuc;áo
de penas capitais era um espetáculo massivo e exemplar de suplícios. Mas, no
tocante a moderna merodologia processual, talvez a lnquisi'láo merec;a lugar des-
tacado em termos genealógicos, especialmente o Santo Ofício medieval, notável
matriz de todas as Justic;as dos séculos XV e XVI, inclusive na Península Ibérica.
E, entre as medonhas "contribuic;óes" do antigo tribunal dominicano nesse savoir
foirt judiciário, incluiríamos o emprego da tortura e m e rimes de fé o u comporta-
memos- e náo só em delitos contra pessoas ou bens - , e certamen te na minu-
ciosa regulamentac;ao de sua aplicac;áo, presente no anrigo manual de Nicolau
Eymerich, de que tanto a moderna Inquisic;ao como as Justic;as civis foram herdei-
ras}7 E se acrescemarmos que também o segredo do processo era um trac;o da
Inquisic;áo medieval consagrada pelos Estados modernos, justifica-se plenamente
a afirmac;áo de Foucault sobre o "estilo inquisitorial" da processualística no
Antigo Regime.
No tempo das Reformas, os objetivos e métodos da Inquisic;áo ibérica se
assemelharam aos praticados pelas agencias de poder em todo o Ocidente cristáo,
católico ou protestante. Com excec;áo da "questáo judaica", especificidad< da
Península e do Santo Ofício espanhol e portugues, a Inquisic;áo foi um entre
ourros mstrumenros emáo orientados para o disciplinamento do homem moder-
no- corpo e espirito adestrados para glória de Deus e do rei.
o SM>I 1o Ül fCI() N()~ ll0.\11 NI O\ I>A ~j( >U,\1
19')

MoRALIDADES E DESF¡os HERÉTicos

A partir de meados do século XVI, diversos "crimes ·"


, . rnora¡s , que no res-
tante do mundo caWIJCo permaneceram na alc;ada secular 0
, , . . ..
1 ·, .
u ec es1asuca, passa-
ram, na Penmsul_a ~bcnca, para a e_sfera mqu1sJtorial. Foi 0 caso da bigamia, da
sodomia, da besoaildade, de cenas mcontinencias clericais e de alg .
. . , . urnas propos¡-
~óes verba1s ofens1vas as regras mora1s da lgreja. Mas por que a sodornia e náo 0
adulrério, por exemplo, passou acompetencia do Sama Ofício _se ambos eram
atitudes sexuais ofensivas a lei de Oeus~ Por que a bigamia e náo 0 concubinato?
Por que a chamada "defesa da fornicac;áo simples" e náo as próprias relac;óes sexu-
ais entre pessoas solreiras? A res posta algo paradoxal a essas quesróes reside em que
a ingerencia do Sanw Ofício no terreno dos desejos e das moralidades desvianres
jamais se referiu a "crimes morais", considerados em si mesmos, senáo aqueles
que, de um modo o u de ouuo, fossem assimiláveis a heresia.s. A lnquisic;áo, con-
vém sempre frisar, era um Tribunal de Fé, encarregado por princípio de averiguar
e descobrir os desvios da alma, escolhas conscientes de caminhos oposros aos
dogmas oficiais. O Santo Ofício voltava-se, assim, para a detec.¡áo do hmg'-
indivíduo que escolheu e "isolou de urna verdade global urna verdade parcial, e
em seguida se obstinou na escolha" . 18
Os pecados morrais da carne, os sonhos eróticos, o mero pensar em qual-
quer indecencia, nada disso interessava aos inquisidores enquanro simples mani-
festa.¡óes da fragilidade do carpo, da tenta.¡áo fugaz do demonio e da corrup.¡áo
geral da criatura humana resultante da primeira e irreversível queda. O pecado de
um sonho "desonesw"' a intenc;áo lasciva de um olhar ou pensamenro, eis algu-
mas faltas veniais ou monais de que os confessores sacramenrais poderiam dar
.
conta em noca d o arrepen d 1mento · • · d o 0 rdinário pecador. E ofen-
e d a pennenc1a
sas como os amancebamenros e adultérios, faltas gravíssimas aos olhos de D~us,
além de perturbadoras da otdem pública, chegavam mesmo a configurar mm"
·. , . l .. . exemplo das multas e dos
SUJeltos as penas seculares da Jusnc;a Ec es1asnca- a
d d . - os pecados da carne ou 05
egre os. Mas, repitamo-lo urna vez. ma1s, nao er~
crimes morais que despertavam a atenc;áo inquisiwnal.
Ao Santo Offcio interessavam, fundament al mente, os '"'" b .. a do•m""
. fi óes ou idéias con[l.~sratona.s
passíve1s de serem captados náo apenas em a •rmac; bs ·.
. encos que, por sua o u
verd acle oficial e divina, mas em anmdes ou comportam . .-¡0 de
• . . ira de herena, presun..,
na.¡ao desafiadora aquda verdade, omphcavam suspe al er emenda e
que 0 individuo pecava e insisria em faze-lo, recusando-se a qu qu
TROI'ICO Do~ PECADos
200

urdindo maneiras de burlar a disciplina normatizadora ~a Igreja: ll~tcressavam­


lhe enfim, ainda que no campo das moralidades e do erousmo, os lndJvíduos que,
l. b' · e náo por eventual renra-;:áo demoníaca-, escolhiam dourri
~~u~- . .. -
nas ou modos de viver francamente hosris aos preceJWS do carollclsmo. Por isso,
como veremos em detalhe, 05 inquisidores romaram a seu cargo o julgamento dos
bígamos, mas náo 0 dos concubinários; por isso pe~seguiam os sodomitas, por
vezes 05 culpados do bestialismo, deixando os demaJs rransgressores sexuais nas
máos de confessores ou tribunais diocesanos. Eleic;:áo arbitrária de "pecados heré-
ticos"_ poder-se-ia com alguma razáo afirmar-, mas sempre justificada com 0
argumento de que cerros pecados eram táo graves que ameac;avam a pureza e a
ordem da verdadeira fé.
Em cerros casos, portan ro, era o Santo Ofício que rransformava aros se-
xuais ou moralidades cotidianas em matéria heretical. presumindo haver desvío
de fé ande só existiam desejo, valores morais ou comportamentos sociais náo
condizentes com as regras éticas do catolicismo. Por outro lado, havia desejos e
costumes "heterodoxos" socialmente inseparáveis da religiosidade popular,
moralidades ligadas a crenc;:as e rituais "profanos" que praticamente impossibili-
tam ao historiador a demarcac;:áo da fronteira entre o suposto desvio moral e a
crenc;:a religiosa sincrética. Assim eram, por exemplo, cenas "blasfemias" que
maculavam a virgindade de Maria ou sexualizavam Jesus Cristo, falas indicativas
de urna vivencia profana do sagrado, que, sem necessariamente negar o catolicis-
mo, amalgamavam "proposic;:óes desonestas" e supostos questionamentos de
dogmas. Assim era o hábito que tinham mulheres e homens de proferir as pala-
vras da sacra na boca do ser amado como fito de amansá-lo e conquistá-lo, dizen-
do-as por vezes no próprio ato sexual, e confundindo-se u m dos elementos do rito
eucarístico com o afero e o uso sexual do carpo. Assim eram, principalmente, as
diferentes modalidades de magia erótica, a exemplo de filtros, orac;:óes e sortilégios
ligados ao amor e ao desejo, nas quais o profano e o sagrado se viam justapostos
o u entrelac;:ados. E náo convém esquecermos os "pactos diabólicos", presumidos
ou reais, que por influencia dos tratados demonológicos, dos ingredientes
sexualizados da feitic;aria, ou pela confluencia de ambos, implicavam sempre a
suspeic;áo de variados tipos de cópula entre 0 (a) pactuante e 0 demónio súcubo
ou íncubo, inclusive "as rela<;óes anais, dolorosas, frias, destituídas de prazer e
prenhes de senrimenros culposos" . 19
Em todas essas atitudes que cotidianamente misturavam desejos e
religio~idades, moralidades e crenc;:as, o Santo Qffcio náo precisava esforc;:ar-se em
demasJa para fundamentar sua competéncia judiciária ou justificar a presunc;áo
de ¡1eresias: os que usassem as palavras da sacra com fin
. . s amorosos era m suspeitos
de náo venerar o sacramento da Eucansna, usando m ¡ l
· . , . . a as pa avras sagradas; 05
reciadores de soruleg10s eram suspeltos de praticar a her 't' " d ..
ap ~ e Ica arre e ad1vmhar".
os praticanres de orac;oes amorosas, os fazedores de filtros e . , . '
e , . . " curras magias eroucas
m 00 mlmmo, suspeaos de usar mal das coisas sagrada " , .
era • , " , . , . s e, no maxJmo, de
rerem contraido pacto tacita ou explicito com 0 diabo".2o
Mas, fo_ss~ ou ~~o n_írida a presen<;a de "ingredientes religiosos" nos crimes
de competC:nCia

mquiSICOrlal, era sobrerudo a presunráo de "m· d
. .. , . T
· "
a oumna o que
justificava a mrromissao do Sama Oficio em maréria de sexualidade e comporra-
mentos, e náo a uansgressáo moral e sexual em si mesma. Bígamos ou fornicários,
sodomitas ou praticantes do bestialismo, os "desonesros" e "indecenres" ue
caíam na teia do inquisidor eram, provadas as culpas, assimilados a hereges. N:m
sempre, porém, por melhor que fundamemasse a suspeita de heresia em cer[Os
"desvios" sexuais ou morais, o Santo Ofício logrou assumir a competencia para
julgá-los ao confrontar-se com a Juscic;:a Civil ou Eclesiástica. Assim ocorreu em
Espanha, informa-nos Bennassar, ondea Inquisic;:áo castelhana jamais subrraiu a
Justi<;a secular o direito de julgar a sodomia e a bestialidade, ao contrário do Sama
Ofício aragonCs, que desde o início do século XVI assumiu essa competencia com
autoriza<;óes do rei Fernando, em 1505; do Consejo de la Supr<ma Inquisición, em
1509; e finalmente do papa Clemente VII, em 1524.
Pressóes da Justic;:a Eclesiástica o u Civil, o u mesmo desinteresse da Inquisi¡;áo
em sobrecarregar seu ministério, também levariam o Santo Ofício ponugues a
abrir mao do crime de bestialismo a partir do inicio do século XVII. embora lhe
fosse exclusiva a al<;ada sobre o pecado nefando desde a segunda metade dos qui-
nhentos.21 Náo eram raros, a propósito, os confliros de jurisdic;:áo entre os diversos
tribunais do Estado e da Jgreja na Península Ibérica, nem o era, por oucro lado, o
eventual desapego do Santo Ofício por "pecados heréticos" que lhe onerassem os
trabalhos - sabidamente concentrados na persegui<;ao dos judaizantes. Amda
em 1684, por exemplo, encontraríamos a lnquisic;:áo lisboeta a reclamar conua o
·
semencJamento de urna bígama pe la Jusn<;a
· secu1ar, embora há muito fosse , . 2a,
b1gam1a
· maténa· mquJSJtonal
· . . . tanto em portuga1 como na Espanha e na !taha. •
E no mesmo século XVII, surpreenderíamos um mquJsJ· · ·d de lOvora a ponderar,
or .
e . . .. · Santo Oflc1o o conhc-
om res peno a sodomia fotmmarum, a carga que rrarta 3 0 .
. . dubitávd a compet~nCia
~Jffienro penoso destas torpezas", emboca lhe parccesse m
Inquisitorial na matéria. 23
PRO/'OS!C,:OES DESOSESTAS, EQll/\ 'OCOS MORA/S

D e qu al quer mo do , era relarivamenre amplo o Jeque. J.c


, .
moralidades e aros
. ·
,, ¡ , , - porruguesa podia julgar nos terntonos do unpério lusi-
eroucos que a nqu1s1~ao , ~ ., .
rano. E, náo obsrante fosse o "domínio moral do Santo Oh~~~ c~Hnposto de falas,
arimdes e dese jos raramente inspirados por doutrinas e rellgloSJ~ades "alrernaci-
vas" ao cawlicismo _ exceco em casos singulares e nas moralidades ligadas a
magia e a feicipria - , os inquisidores sempre busc.ul~. rastrear fundamemos
heréticos nos desvíos morais de sua ah;ada. Vemos com mudez esse rasrreamemo
na esrigmariza~áo de duas "proposi~óes" aparentemente oposras: a afirma'rao de
que náo havia pecado na fornicatJáO e a de que o estado dos casados era melhor ou
igual ao esrado dos religiosos. No primeiro caso, lembra-nos Jean Pierre Dedieu,
a Inquisi~áo jamais se preocupou comas rela~óes sexuais "narurais" entre homens
e mulheres- matéria de confessores o u juízes eclesiásticos-, senáo coma crenra
de que a fornica~áo náo era u m pecado morral. 2.1 A racionalizac;áo das rela<;óes
exrraconjugais, e náo os aros sexuais, e sobrerudo sua verbalizac;áo no coridiano, a
contestar o sexro e o nono mandamenros, eis o que os inquisidores tencionavam
extirpar das moralidades populares ao incluírem semelhantes falas em seus
monitórios do século XVI.
Por ourro lado, vimos como esta opiniáo era vulgarizada no imaginário
masculino da época, e como o suposro desprezo pela leí de Oeus parecía ser, antes,
urna alusáo as relac;óes de homens com mulheres "solteiras" ou prostitutas, nem
sempre desprovida de senrimenros culposos. O mais das vezes, as defesas da
"fornicac;áo simples" exprimiam urna consciencia misógina que associava a mu~
lher só e "desprotegida' ameretriz, reduzindo ambas a condi<;áo de objeto sexual
masculino, Quanto as defesas da "fornica<;áo qualificada' -raras aliás, no Brasil
do século XVI - , niío passavam em geral de vanglória de machos desejosos de
mulheres casadas - ou inimigos de seus maridos - , ou eram traeros de urna
cultura popular que náo vía mal em dormirem juntos 05 noivos antes da bCnc;áo
sacerdotal, mesmo se fossem parentes nos graus proibidos pela Igreja,
, Mas niío foi por identificar nessas falas urna moral popular ignorante dos
precenos e aposta aos dogmas que a lnquisi¡;áo as lan¡;ou no rol das heresias,
seniío porque nelas viu um possível indício da "seita luterana", Na Idade Média,
cost~ma~vam já os dominicanos atribuir aos hereges a mais variada sacre de
formca¡;oes sacrílegas, incestuosas e sodomiticas, e náo seria diferente a postura da
Contra~ Reforma di ante dos protestames. Referindo-se a Lutero e a Calvino, Vieira
chamá-los-ia "sensuais" que se haviam dado "solrameme aos v(cios e pecados",
ando 3 expiadora confissJ.o, a sublime casridadc: e .
reneg . , . . .. . o sama marnmónio. "Con-
am 0 bansmo , d1z1a, e o nome de cnstáos mas s· d
serv _ . . • ao areus ver adeiramen-
" HA conresta~ao protestante da ma1ona dos sacrame · l .
re . . . . mas, tnc usave do marri-
• ni o rornar-se-1a, a os olhos do carobCismo razio su~ .
m0 • . . • ncaeme para que 05
formados fossem suspe1tos de adorar a formcaráo _era
r< _ T o que prc:gavam 05
seguidores de Trenw no afa de comer a Reforma. E se Lutero e Calvino eram
grandes "fornicários", luteranos e calvinistas deviam ser 05 que negavam haver
pecado na fornica~áo - pe1~savam os. inquisidores. A mesma suspeira rtcairia
sobre certa frase de Menocchao, o moletro de Ginzburg, para quem 0 casamenro
náo fora feiro por Deus, mas sim pelos homens: "homens e mulhcres faziam
rrocas de promessas e isso era suficiente", dizia o suposto herege, em perfeita
conformidade com a tradi~áo popular."
Defesa da fornica~áo e dúvidas sobre a santidade do casamento, tudo isso
podía compor, no entender do Santo Oficio, um mesmo corpo doutrinário, pos-
sivelmeme "luterano", a minar os pilares da lgre;a ... Seria mero pretexto dos
inquisidores empenhados em depurar a mentalidade popular de cenas opinióes
ofensivas a moral católica? Ou seria, por ourro lado, urna prova de invislvcis
cantatas entre os questionamentos da Reforma e as moralidades cotidianas es-
tigmatizadas pela lnquisi~áo? Eis duas hipóteses de dificílima comprova~ao, espe-
cialmente porque a crítica de Lutero ou Calvino ao sacramento mauimonial-
definido canonicamente como símbolo da uniáo entre Cristo e a lgrcja -longc
esteve de enveredar por urna apología da liberdade sexual. Num de s<us textos,
Lutero consideraria o casamento como "a mais bela institui~o" que Deus havia
fixado para os homens, insistindo na obriga~iio marital de amar a esposa, alimen-
tar os filhos e governar a familia. E já observamos nouuo capítulo o empenho dos
"teólogos" puritanos em ressalrar a imponincia do casamemo, do eSlrcira.menro
dos vínculos maritais, inclusive do prazer no leito conjuga!. Faziam-no, claro está,
a
com argumentos contrários uadic;áo canónica, ignorando as adventncias de Sáo
jerónimo quanto modera~iio do ardor ent"' os esposos e afirmando que D<w
a
institulra o casamento antts da ttrriwl qutda da hu111AnUitu/t, e niio como "'mt-
dio da concupiscencia. 27 Mas nem por isso eram menos favoráveis a'--onnnb1cla e
a<strita fidelidade matrimonial.
e
Reror~ar · hc<.-endo • imponinci• do
a uniiio pessoal entre cÓnJuges. ~on . •
PrazCt stxu aJ no casamen[O, a isso se rt:d Ut.IU
· a .. rcvo 1uTráo $CXUal puntan& • COO-
J.L:
~ . 1 O ..M Jt ,..,.,..,..~ !liCias
orme a chamou Christopher Hill em seu be o •u r· . ·
co d c. · - impurcaa nlo consnm•·
rno as os rant~rs, de que "o adulttrio, a rurnle&~O e 1 , ..
riam
pecad o" • ou de que , ter mul h eres cm comum era coisalrglnma , nlo paa&-
TROPICO oos PECADos
204

.cal. - d processo revolucionário ingles, visível também em ourros


ram de rad 1 aza~oes o . . . ..
domínios do social."ldéias desse genero jamaiS Impr~mmam sua marca na ética
. ¡· ·
puncana. amaran o-sed ao "universo sectário" que floresceu nas margens do pro-
.
tesrannsmo a par ar t' do se'culo XVI • apregoando a extin~áo
. . . absoluta dos sacra-
mentos, 0 fim da explor~áo social, o isolamento endogam1co, etc. Na Inglaterra
reformada náo faltariam indivíduos castigados por "defenderem a fornica~áo", a
exemplo de Katherine Salter, penitenciada por afirmar a legitimidade do sexo
cnue noivos ames do casamento - rraduzindo "em palavras urna prática popu-
lar"." Igreja e Reforma hostilizavam-se mutuamente nos séculos XVI e XVII,
mas agiam no mesmo sentido com respeito aos costumes sociais.
A pesquisa de ingredientes luteranos na fala dos fornicários ibéricos nem
foi mero pretexto, nem foi a única razáo para sua inclusáo no rol das heresias.
Ilegitim~ dos protestantes, preven~áo contra seu possível avan~o, combate aos
"privilégios masculinos" perfeitamente assentados na moral popular, eis por que a
lnquisi~ identificou "dizeres fornicários" a idéias luteranas, transformando em
supostos hereges simples homens que no dia-a-dia de suas conversas vangloria-
varn-se de peripécias sexuais. lncitava-os, na estigmatiza~ao de suas palavras, a
falarem sobre o sexo, "institucionalizando" urna discussáo popular com o fito de
extirpar convi~óes e macular consciCncias. Ao mesmo tempo, promovía cone-
xóes imaginárias entre os inimigos doutrinários da lgreja e os valores da gente
comum irredutíveis aos dogmas oficiais.
Suspeita análoga de luteranismo rccairia, com mais razáo, sobre os que
afirmavarn a superioridade ou a igualdade do casamento em rela~áo ao estado
religioso. Embora tenha envidado grandes esfor~s para difundir seu modelo ma-
rrimonial a panir do século XVI, exaltando as suas virtudes e o agrado que ele
propiciava a Deus, a lgreja jarnais abandonou sua tradicional convi~áo sobre a
primazia do estado clerical, superior ao casamenro e ao celibato dos leigos -
e5rado suspeito, este úlrimo, de acobenar fornic~óes. A excelencia da ordem dos
religiosos repousava justamente em sua proximidade a Deus, fruto da ora~áo, do
ministério divino e da ctutidatú in'""" 110 ctlibato tt:I<Siástico. Já no remoto sécu-
lo XII, 0 Concnio de larrio 11 havia instituido definitivamente a exigencia do
celibato para os sacerdotes, combatendo o chamada "nicolaísmo" e invalidando os
casamentos de padres efetuados segundo os costumes.JO O Concilio de Trento niío
faroa ~utra cou~ senáo empenhar-se em moralizar o clero, profissionalizá-lo • dis-
tlngu•-lo dos le•gos. para melhor aproximar a Igreja e 01 fiéis. O refo~o do cielO
•ft -~ era parte fundamental da estratog••
. da cutidade inere nte -,ue1e est..,o
e o. eiOfiiO ' ·
tridennna, tanto no plano ofenoivo da pastoral junto b masoas como na defe5a em
OS"NTO OffCIO NOS lJOMJNIU~ IIA MUIIAJ

205

, das hostilidades protestantes. "!mundo celibato" h . L


race . ' .
. da ordem clencal, numa exphwa compara<;áo com 0
a
' e aman a mero exi en-
. • . h' g
cJa . , . . - macnmoniO; lpocrisia a
cobrir vanadtss1ma sorce de forntcal):oes e vicios ofensivo D . .
en ,.. ,.. . . s a eus, sem tmphcar
nhuma devo<;ao na prega<;ao evangéhca. A d 15 cussáo sobre 0 d .
ne . . s esta os era, asstm,
um problema da culr~ra .erudita, urna ~ontrovétSJa teológica acirrada pela Refor-
ma e reativada
.
no propno se JO da lgre¡a entre ilustres human•'sr fié'
. . ,. . as 1 ts ao papa.
Erasmo fo1 um dos que dJScordaram da vJSao ofic1al, ao dizer que 0 celibato era
uma forma de "ficar estéril e desnaturado", pois nem Deus nem a natureza fariam
"coisas frustradas o u em váo ( .. .)". "Por que adicionou Ele 0 poder de conceber",
argüia o filósofo, "se o celibaro deve ser tomado como elogio?" 0 casamento era
superior ao celibaro, insisria Erasmo em seu Encomium Matrimonii (1547), por·
que faculcava ao hornero o "doce prazer" da convivéncia coma esposa e de com ela
"copular náo apenas na benevolencia da mente, mas também na eonjun<;áo do
corpo". 31
Para defender-se de tamanha agressáo, a lgreja proibiria obras como as de
Erasmo e inrroduziria a mesma discussáo em seus catecismos do final do
século XVI e do início do XVII, difundindo obviamente a sua versáo do proble-
ma. Assim o fez o cardeal Bellarmino em sua DtclarapÜJ tÚ ft crislii, em que o
estudame indagava a seu mesrre: melhor tomar o sacramento do marrimónio ou
manter a virgindade? Empenhada em resguardar a castidade e a primazia do sa-
cerdócio, a Igreja incitaría a mulridáo a discutir o assunto. Esta última, rradicio·
nalmente apegada ao casamento, bombardeada pela propaganda matrimonial da
lgreja e pela apologia do celibato e do estado clerical, acabaria por assumir um
dilema essencialmente erudito. Entre o juízo de Erasmo e a opiniáo de homens
comuns pareciam esrabelecer-se as "convergencias subrerrineas" que Ginzburg
verificou entre "a cultura erudita, nova e velha, irredudvel aos esquemas conua-
reformísricos, e a cultura popular", ambas inimigas da Igreja Católica." E. curio-
samente, ralvez fosse a mesma Igreja e, no caso, a lnquisi~o. o elo mais nfrido
entre os dais universos, ao incitar e estigmatizar enrre o povo urna poll:mi.ca da
t<ologia moral, agu<;ando o apre~o dos leigos pelo casamento e suas erinas a
-~ od · .. des&vor.lvd l pn·
p.,..res negligentes ou devassos. De qualquer m o, a op•n•ao . . .
mazia do estado religioso era muiro perigosa para o catolicismo: mmava • pnna·
~• d od l~in do clero e. a valonu·
""'mera a Contra-Reforma, orientada para a rem e....- ~~­
. d ·-<n he~a. con.....
'i"O o sacerdócio." Aos olhos da Jnquisi~o era urna propos•..- foo
•m livros de hereges, ca~ndo descobrir os que assim pensassem • ........., ,. •
'<m h 1 · ,.,. própno caamaoso
ornens simples que nunca liam Erasmo. e o~oav:un
ou apenas reclamavam de padres.
"TORPEZAS" DO CLERO

enceras massas da primazia da castidade religiosa em


Empen h ad a em conv . ,
1 _ , d. - trimonial a Inquisi<;io voltar-se-la tambem para a vigilán-
re a~j:ao a con u¡:ao ma • . ~ .
. d d d 1 0 que pudessem desmenm a excelenCia de seu estado ,
03 as con uras o e er .,
d b .
ponoaa1xoos
ob¡'etivos tridentinos. Seria de esperar, alias, que assumisse a
. .,.
. . d. - b
JUrtS u¡:ao so re ro a
d 5 as falras morais e sexua1s do carpo eclestastlco- sendo 05
. . .
religiosos homens de doutrina abrigados a segUI-la com m a !S ngor que os leigos,
especialmente num tempo de reforma geral da lgre¡a. Afina!, a segUlrmos os ctité-
rios da lnquisi<;ao, nao seriam os pecados dos sacerdotes, sobretudo quando pú-
blicos, assimiláveis a heresias? Náo ofendiam o catolicismo e confirmavam as
ironias de Lutero a respeiro da casridade clerical? Mas náo foi isso o que ocorreu,
pois semente alquns delitos eclesiásticos passaram aesfera inquisitorial.
Fornicários e amancebados da Igreja, por exemplo, permaneceram na al~a­
da do Juízo Eclesiástico e dos superiores das ordens religiosas, exceto se comeres-
sem o "abominável" nefando - pecado que teoricamente náo poupava da
lnquisiijáO nenhum indivíduo. 34 Mas se, curvando-se a tradi¡;áo, o Sanro Ofício
deixou de lado as fornicaijóes e os concubinatos de padres, náo recuaria ante os
sacerdotes que largassem o hábiw, os vocos, e contraíssem o matrimónio na forma
tridentina, nem em face dos indivíduos regularmente casados que abandonassem
a esposa para ingressarem no clero. Pelo menos a partir do Regimento de 1640, a
lnquisiijáo ponuguesa reservou aos "clérigos que se casam" a excomunháo, a pri-
va<;ao das ordens e dos benefícios e o degredo para as galés; quanto aos padres
religiosos compreendidos no mesmo deliro, ainda que expulsas das ordens pelos
superiores, teriam igualmente de remar nas galés d'el Rei ou purgar seu pecado
num dos "lugares da Conquista do Reino". Clérigos o u religiosos "casadouros"
eram de fato assimilados aos bígamos, suspeitos de "sentir mal" do sacramento do
~atrim~nio e, ainda, do sacramento da ordenac;áo o u profissáo religiosa que ha·
v1am feuo antes do casament 0 · ~5 Menos ngorosa
· ·
era a pena prevista para o 1eJgo
·
c;uado que se ordenasse, posta que suspeito de "sentir mal do sacramento da
ordem,
. .
ao qua!
.
anda anexo 0 vot 0 d e casu·d ad e" : privado das ordens e d os bene f1 -
cJos e lmpedado de seguir carreira eclesiástica.36
O Santo Ofkio nao pa · 1 da
• recaa to erar os que misturavam os sacramentos
ordenaljao e do ccuamento •• u d _ .
. . ' q eren o recebe-los ao mesmo tempo sendo tao •n-
compadveJs enuc sa" .17 Afina) · as
· . . ' nao reprovavam os inquisidores os que apen
quesuonavam a pnmaz~a do estad 1. . d 'ti·
riam, sem desconfiar da .. 0 re '~,'oso s~bre o matrimllnio? Como a. m•
pureza da fé ' Individuos que, além de discuurem a
. arquia dos estados, passavam de um a outto sem
h¡er d dl
.~ . . gran es e ongas, guiados
somenre por conveniencias pessoats? Suspeiros de heresia, caíam na reia do
inquisidor.
Pior do ~ue casar-s~ s~ndo padre, ou ordenar-se senda casado, era 0 sacer-
dote ofender o ¡mponannssJmo s:cramenro da peniténcia, requestando fiéis du-
rante a confissáo para aros sexua1s. Hostilizada por Lmero, que nela viu urna
"inven~áo de charlaróes",
. .
a confissáo rornar-se-ia ob¡'ew privil · d d
. .
,.
eg1a o a crmca
Prorestance ao catoliCismo. E, d1ssemmada enrre os humildes , que por m1· ·b·Jt;ao,
-
a
medo ou desconfianc;a, muitas vezes resisriam expia~áo do confessionário, essa
crítica seria também popular. "Ir se confessar com padres ou frades é a mesma
coisa que falar com urna árvore", dizia o moleiro do Friuli, que nada dnha de
lurerano. :lll
Já salientamos, no en tanto, a import:incia assumida pela confissáo na tra-
diláo teológica do catolicismo: tornada obrigatória no século XII, foi deveras
refor1ada pelo Concílio de Trento. Mecanismo essencial do controle da Igreja
sobre as atirudes, os pensamentos e os desejos dos fiéis, ela náo poderia convener-
se em veículo de satisfas:óes sexuais, deturpando-se sua funt;áo essencialmeme
expiadora. Náo poderia o confessor, lembra-nos Lana L. da Gama Lima, acabar
seduzido pelo discurso por ele mes m o incitado- minuciosas narrativas libidino-
sas que era abrigado a ouvir e decifrar - , transformando-se de censor em agente
do pecado. 39 A sedut;áo acorrida no confessionário, ou em torno da confissáo,
clava-se o nome de solicitafáo. Solicitar era, nesse sentido, um enorme pecado e
um grave crime de religiosos ou clérigos que, a partir do século XVI, também
seria assimilado aheresia. Pelo Breve de Clemente VIII, datado de 1599, o Santo
Ofício lusitando ficaria autorizado a "proceder contra os que no ato da confissáo
sacramental" solicitassem "mulheres para atos desonestos" - decisáo reforc;ada
em vários documentos pontifícios do início do século XVII, incluindo a "solicira-
láo de machos" no mesmo plano da sedu1áo de mulheres." .
As "torpezas" clericais toleradas pelos inquisidores noutros lugares e w-
cunst:incias seriam doravante objeto de vigil:incia e repressáo se, dando ch~nce a
crítica dos "hereges'', envolvessem o austero sacramenro da penitencia. No Regamen-
t0 · " · 1· · h mem ou mulher antes.
tnqUISitonal de 1640, qualquer confessor que so tcttass<: 0 .
d o - b 0 preteXto de ouvt-la,
urante ou imediatamente depois do ato de connssao, ou, 50 . . ,.
d ros para fins tlkttos ,
provacasse o penitente com "palavras ou racamentos esones
ficar · · . . - dopoderdeconf\,ssar-aso
ta su¡etto a vanadas penas: no m(ntmo, a suspensao . " .. d "·
fosse d. tos sexuatS soltara os , no
lscreto, pouco infamado e náo consumasse OS a . . 41
má>< maz no dtto en~.
•mo, o degredo para as galés, fosse de re1apso e con 1u
IKUI'ICO Dos PECADQ 5
208

. . ~ reciam culrivar, no enranco, quaisquer dourrinas h


Os sohcnanres nao pa . e.
~ dres mal afeiros ao voto de casudade, que se apr .
r~ricas. Eram tao~somente pa ~ . ove,_
, . . "d de a.ssegurada pela confissao para sedu21r mulh
ravam da ranss1ma pnvaCI a . . eres
vam a libido. Longe dos ouv1dos al he JOs, sussurrav
ou rapazes que lh es aguc;a . , . d h . am
. _ tre.., grades do confesswnano, on e o av1a, o u estando 5 •
suas mren¡;oes por en .. , os
.
com as penuenres, n
áo hesíravam em cocá-las, be1p-las e mesmo agarrá-las • dan -
do vazáo aos desejos. . .
Muiro disrinro da solicirac;áo era o chamado molznoszsmo, nome derivado
. , espa nhol Miguel de Molinos (1628-1696)."
dO JCSUH3 ,. ,
Nao seria erróneo ' ao
nosso ver, filiar Molinos aos místicos espanhoJS do seculo XVI - San Juan de la
Cruz, Tereza D'Ávíla - , preocupados com urna religiáo mais intimista, voltados
para urna ínterioridade espiricual perfeccionista e elevada para a ~al~a¡yáo da alma,
a ora~áo e 0 amor a Oeus:H Molinos era adepto do chamada qUle[lsmo, dourrina
que associava a perfei¡yáo crisrá ao amor de Deus, ao sossego da alma e aanula'táo
da vontade em favor da contemplayao - idéias que desenvolveu em seu Guia
tspiritual qut dmmbaraza al alma y la conduce por el interior del camino para
alcanzar la ptrfocta conttmplación... , publicado em 1675 4 '
Molinos seria possivelmeme induído enrre os místicos pela hisroriografia
da lgreja, náo fosse articular sua doutrina contemplativa a profunda indiferenla
com rel~áo aos apertos da carne: o amor a Deus e a fé crista lhe pareciam sufi-
cientes para preservar a alma do religioso, independentemente dos pecados que
viessc a cometer por tentayáo demoníaca. Preso pela lnquisiyáo espanhola em
1585, confessou vários atos sexuais ao inquisidor, foi condenado a prisao petpé-
tua e teve seu livro proibido em 1687. Diversos religiosos e freiras parecem ter-lhe
seguido o exemplo, sendo indiciados pelo Santo Oficio lusitano e espanhol como
seguidores da "maldita seita do heresiarca Miguel de Molinos", definida pelos
inquisidores como "dourrina para se ensinar aos fiéis o perniciosissimo erro das
violencias diabólicas nos atos extremos da sensualidade, para com esta falsa dou-
trina se abrir caminho largo e franco as paixóes e excessos da lascivia" ou, ainda,
como id~ia "de que os atos ilfcitos e cópulas nao eram pecados", nem havia razio
para confessá-los''
Ainda que os inquisidores deturpassem as relayóes sexuais desses réus,
arrancando-lhea conlissóes doutrinárias onde só havia quebra da castidad:,
qucr-nos parecer que o molinosismo foi mais do que simples atos sex~aJS
tranaformadoa pela lnquisiyáo cm heresia. Tratava-se, antes, de uma doutflna
justificadora de transgreuó<! sexuais, seriamente cultivada por religiosos e
religiosu penitenciados pelo Santo Oficio no infcio do s~culo XVIIl."
209

BIGAMIA

A ac;áo moralizante dos inquisidores náo privl ·


. . - d 1 eg•ou, conrudo, as rrans-
gressóes denca1s, senao as con utas populares que, assimiladas as h .
e ·1· d - . . eresoas, desa-
fiavam a ram1 1a e os pa roes sexua1s acenos pela Igre¡·a E , .
. . . · , emrc esses cnmes", 0
mais regularmente ¡ulgado e punodo foo sem dúvida a bigam' .
. . . . . 1a - o casar-se ma.s
de urna vez na •greJa senda VIvo o pnmeuo cónjuge -, freqüeme nos tribunais
lusitanos desde meados do _século XVI até fins do XVIII. A exemplo do nefando,
rambém a bogamoa foo ob¡eto de dosputas entre as jusric;as civil, eclesiástica e
inquisitorial, cada qua! advogando para si o direito de processá-la. Em l6S9,
talvez por causa da prisáo e do julgamenro da bígama Isabel jorge pelos julzes
civis de Lisboa, o próprio rei induiria aquele delito no rol dos crimes mixli fori,
embora admitisse que os inquisidores eram "privativos do crime de heresia (... ) e por
este fundamento" também podiam "castigar os bígamos". Mas náo se poderia impe-
dir, acrescenrava, que os juízes seculares julgassem a matéria vindo-lhes rais crimi-
nosos as máos, tratando-se de "aros táo escandalosos e prejudiciais arepública" Y
Dedarac;iío régia aparte, o fato é que desde o século XVI, tamo na Espanha
como em Portugal e respectivos impérios coloniais, a bigamia foi principalmente
julgada pela lnquisic;áo, em especial após o Concilio de Tremo. Por que o Santo
Oficio?- perguntou Jean-Pierte Dedieu, que náo encontrou para o caso espa-
nhol nenhum documento justificando a suspeic;áo herética naqude crime. Talvez,
prossegue o autor, em tazáo da "colorac;áo religiosa" que abigamia impuseram a
propaganda da lgreja e os ataques protestantes contra o matrimonio católico;
talvez porque a lnquisic;iio era a única institui<;iío espanhola capaz de controlar o
espac;o peninsular e, por conseguinte, urna delinqü~ncia de migrantes." Sem dú-
vida, Dedieu tem razáo. No caso portugu~s - limitemo-nos a examinar a pri-
meira hipótese - , a bigamia foi assumida pelo Sanro Oficio por implicar, entre
todas as conjunc;óes ilícitas entre o homem e a mulher, a mais grave_ a~nta ao
sacramento do matrim0nio:49 mais ousada que o adultério ou a fornacat;ao sa~·
pies - que podiam ocorrer por fragilidade da carne e folt11 IÚ tioutrirur. maos
ofensiva que o concubinato - que podia acorrer pelas mesmas razóes, ou por
inúmeras dificuldades impeditivas do casamenro. rad 1
Adultérios fornicac;óes ou concubinatos eram transgressóes 0 '": . as
' . 'd • volviam os scus manlStros.
margem da Igreja entendiam os inquoso ores, e nao en .
'
Eram, de fato, pecados d divinos e mesmo crtmes
mortais contra os man amentos . ' • . do
. - . 1' necessanarnenre suspeora
pass1veos de castigo temporal; mas nao omp ocavam . . ua ve•
ft' . . . oral A bogamoa, por s •
maos do que car~ncia de insrruc;áo re1tgoosa e m ·
TRÚPICO no~ PECADos
210

ro na tramada mentira do bígamo dianr d


. . na fraude do sacramen ' e os
cons1sUa ado desprezo pelo sacramento que a Igreja tanr
ministros de Deus, no consum - . " . o se
e d d taques luteranos. Nao sena erro neo d 1zer-se q
em enhava em deien er os a . . . . ue a
. P . d lrério ou 0 concubmato assun como a so1Jc 1 ra~ao
bigamia esrava para o a u . ... d d O b, no
. ,. s evenruais formcac;:oes epa res. s Jgamos, a exe
confessJOnano esrava para a . m-
. . . . apenas rransgred1am o sexto e o nono mandamenr
plo dos 50 l1 e~ranres, nao . d os,
.... faziam-no, uns e outros, por mew os sacramentos bur-
renrados pe1o demomo, . . . " . ,
!ando a confian,a da comunidade e da Igre¡a, suspeitos aSSim de senurem mal da
sama fé católica". Eis a "conorac;:áo religiosa" que )ean-P1erre Dedieu vislurnbrou
muiro bem 110 crime de bigamia, conorac;:áo responsável por sua inclusáo no
monitório de culpas da Jnquisi,ao. E, por isso, dispós o Regimento de 1640: "do
crime de bigamia, se conhece no Santo Ofício conforme a declara,ao que há do
Sumo Pontífice, pela presunc;:áo que resulta contra os bígamos de náo sentirem
bem do Sacramento do MatrimOnio, com que ficam suspeitos na Fé". 50
Ao tempo em que perrencia ao foro civil a bigamia era crime passível de
pena capital, salvo se o condenado fosse menor de 25 anos, ou fidalgo, ou casado
pela segunda vez com mulher de baixa condic;:áo, o u por casar-se novamente ren·
do-lhe fügido a primeira esposa e o culpado náo a soubesse viva ou morra. 51 A lei
régia abria, pois, amplas possibilidades de se minorarem as inten~óes malignas do
transgressor, livrando-o do cadafalso. O Santo Ofício adotaria, em parte, essa
"complacencia" da lei, jamais sentenciando os bígamos a marre, senáo a ac;:oires,
galés e des[erros, conforme a qualidade dos réus e as circunstancias do crime. Por
ourro lado, comprovado ou nao o "desprezo do bígamo" pelo matrimonio, era-lhe
sempre imputada pelos inquisidores a grave suspeita de heresia.

SODOMIA E MOLICIES

. Enfim, único delito moral capaz de levar os condenados afogueira, a sodomia


fo¡ [ambém incluída no território do inquisidor. E náo é de admirar que assim 0
fosse, táo freqüenres eram as associac;:óes entre sodomitas e hereges nos textos
cristaos da Baixa ldade Média, empenhados em desmoralizar os inimigos da Igr~­
¡a. A '~tolerancia moral e sexual dos poderes modernos só faria agu~ar essa su_" 1
confusao de conceitos, levando progressivamente a assimilac;áo entre sodomJa,
recusa da fé crisra e penurba,ao da ordem pública. No mundo católico, vários
foram os religiosos que estabe¡eceram analog1as
. entre sensua l'd
1 ad e, ou Iuxúria,'
"fomal heresia" a exe ¡ d . . é ¡ XVIII."
' mp o o nosso Peregrmo da Aménca no s cu 0
O SAN lO Ül·fCIIl Nll~ IHI~1[NI\l\ IJA MIIJIAI

211

E se a mera fornica~ao podia estimular em alguns espí · l b


' ~ . . " . ' mas a em ran~a de crimes
heréricos, o que nao ensepna o abommavel pecado nefa d "h, , 1 .
,1 ~ n o a secu os estigma-
rizado pelos reo ogos.
Rafael Carrasco fundamentou com brilho esse am '1 .
, .. . . _ a gama concenual, alu-
diodo a frequente Jdenufica~ao enrre sodomía e "cólera d D "
, . . , e eus presente em
diversos cod1gos repress1vos dos seculos XV e XVI. Se violava a lei natural contra
0 uso do corpo, se provoca.va desgra~as no mundo desde a clássica destrui\áo das
cidades pecadoras, a sodom1a certamente violava a ordem divina e as "coisas da fé".
Aos olhos dos inquisidores, o nefando era mais que urna doen~a ou atividade diabó-
lica: era um erro. "Por um mecanismo de assimila11áo que se poderia resumir num
jogo de palavras, passava-se do equívoco sensual ao erro de juízo,logo erro na fé;
do erro dos sentidos ao sentido do erro". 53 Moléstia social, escolha consciente de
aros ofensivos a doutrina, subversáo da ordem, assim a lnquisi~áo portuguesa
definiu o nefando, ao resguardar contra a ingerencia de out ras Justi~as sua compe-
rencia judiciária: "porque o crime de sodornia é gravíssimo e de tal qualidade que
houve que m afirmasse com grande fundamento que quemo comería era suspeiro
na Fé (. .. ); e táo contagioso que mosrra a experiencia, pois ern breve rempo infec-
ciona náo só as casas, lugares, vilas e cidades, mas ainda Reinos inreiros (. .. )". 5 ~
Com efeito, as Provisóes de D. Joao III, em 1553, e do cardeal D. Henrique,
em 1555, esrabeleceram a competencia da lnquisi~áo em crimes nefandos, reco-
nhecendo o que já era fato desde 1547. E,logo em 1562, a interven~ao do Sanro
Ofício nesses casos foi sancionada pelo papa Pio IV, e confirmada em 1574 por
Gregório XIII. No mesmo ano de 1574, D. Henrique, inquisidor-mor do Reino,
instruiu os ministros do Santo Ofício para agirem de acordo com as decisóes
papais, processando os nefandos "filhos da dissidencia" da mesma forma que cos-
turnavarn proceder nas "causas de heresia". Que inquirissem e recebessem denún-
cias contra os culpados daquele crime, podendo até "relaxá-los a Jusri~a secular"
- erórmula eufemística que designava a pena d e marre na ~ogueira · Vános do-
51

. b, . d"
cumenros se segmram aqueles textos astcos, ora 1spon do sobre deralhes
, . da nova
"missao" anri-sodomftica- a quesrao da prisao e do julgamenro de dengos .. por
exemplo - , ora examinando dúvidas gerais sobre como proceder nessc cn~e.
Qua1s, sodomitas deveriam merecer a rogue1ra.
e . ' S . . usro condená-los em pnmu
ena 1 . . )'16
la d · s com os r<tncodenr<s.
'Psu o u, a semelhan~a dos hereges, usar e ngor apena fa lh ·
. . "d fa« da tan: que es tn-
Muiras seriam as dúvidas dos mqu1s1 ores c:m . ·~
. , .. fandos Slgnmcava proc<-
cum b 1ra o papa. De um lado, descobrir e mqUJnr os ne . ~
d ¡fi nem~io anal com emossao
er contra os culpados de u m aro sexualespec leo: a pe lh res
de semen, fosse entre homens (sodomia perfeita), h>SS< entr< homens. mu •
. . e . ) D outro lado, descobri-los também significava, canfor~
(sodomoa omperreota . e . d. 'd ..,,
. A ·1· decifrar pecados entre m JVI uos do mesmo se
·á dizJa 0 Doumr nge te0 • . , xo,
J . l achos _ idéia que perpassava m umeros textos alusivo ,
parncu armente entre m . ~ . . . sa
. le'sria soctal subversao e heres1a. Da leltura do Regomen
sodomta enquanco mo ' . . . ro
de 1640 fica-nos a clara impressáo de que o alvo pnvolegoado do Santo Ofício
eram 05 homossexuais contumazes, escandalosos e irre_verenres e m face do poder,
tolerando-se 05 que só eventualmente rivessem comendo o nefando, os menores
de 25 anos, 05 que confessassem voluntariamente, ere. Variada casuística foi ali
estabelecida para vasculhar a vida sexual do indivíduo incriminado por sodomia,
examinar 3 publicidade de suas atitudes, seu drama de consciéncia, sua disposis;áo
em colaborar com os inquisidores, sua convicc;:áo no erro, seu arrependimento,
seu medo." Mas nem por isso o Regimento explicito u qualquer diferen~a de trata-
memo entre as sodomías horno e heterossexual. Sodomía, crime herético de
"fanchonos"; sodomía, cópula anal consumada entre quaisquer indivíduos: entre
essas duas concept;óes oscilava a visáo inquisitorial do nefando.
Oscilante entre a perseguic;áo empírica aos homossexuais e a condenat;áo
teológica do coim anal, o Santo Ofício recorrería, por vezes, a noc;:áo de molícieno
dia a dia de sua prática judiciária. Molície era o nome dado pela teologia moral a
va.uo elenco de pecados contra natura que náo implicassem coito anal o u vaginal,
a exemplo da masturba~áo solitária o u a dois, da fela~áo e da cunilíngua. Theodore
Tarczylo se lhe referiu como sinónimo de sensualidade, "indício de um perigo
próximo as piores torpezas" no entender dos teólogos, em particular a polu~áo
volunrária. 58 A molície aludía, portante, a urna ampla gama de atas homossexuais
ou heterossexuais relacionados com a poluc;:áo sine coitu, a maioria dos quais
desinteressante para a lnquisi~áo, que preferia deixá-los a cargo de confessores e
curros juízes. Recusando~se a julgar carícias conjugais ou masturbac;:óes juvenis, o
Santo Ofício excluiria a molície de sua jurisdi~áo no Regimento de !613, reco-
mendando aos inquisidores que de modo algum recebessem denuncia~óes de se·
melhante pecado. Mas, prova sintomática de sua hesita<;áo, o Santo Ofício náo a
excluiria [O[almence: que os inquisidores concinuassem a uatar de molícies se,
julgando casos de sodomia, viesse abaila a ocorrencia daqueles aros e polu~óes."
A quais molicies se referia o Regimento? Molicies que preludiavam o coito anal
homossexual e heterossexual? Molicies que substituíam e adiavam a sodomia con·
•umada entre homens? Aros impuros entre mulheres? A incerteza teórica dos
inquisidores iria espelhar-se, doravante, em vários de seus julgamentos. .
Se já revelavam dúvidas sobre como processar os nefandos masculinos, se ¡á
hc.itavam entre 0 acusado da cópula anal e os fanchonos. ficariam compleramen·
113

arordoados e m face da sodomia foeminarum. Aind d


re . ~ a em mea os do século XVII
lnquisic;áo luSitana quase nao havia julgado casos d "1 b' . ., •
a . e es aamsmo ' com a notá
vel excec;áo dos processos movtdos por Heiror Furrado d M d . -
h . ., .
Diante de raman a mexpenencaa e da om 1ssáo regi
. e en on.;a no Brastl. 60
l .
. . menta a esse respeJto,GI 0
distante Tnbunal de Goa resolveu mdagar ao Conselh G al d S , .
.
sobre como ag1r nesses casos, do que resulrou a seguinte e
o~ o~oo=
l d ... d
. " .. _ onsura mg 1 a aos
rribunats portugueses: pode a lnqutstc;ao proceder contra lh
. , mu eres que urnas
comas ourras uverem copula e aros sodomíticos senda íncubas . b
. . . . ou sucu as, agen-
tes ut vtn com Jnstrume~to o~ se~. ele, por v1as anteriores ou posteriores?" O que
era simples e cerro na legtslac;ao CIVIl pelo menos desde o rempo de D. Manad-
a condenac;áo a fogueira de homens o u mulheres culpados de relac;óes homoeróticas
_ mrnar-se-ia um dilema para a lnquisic;:áo.
As aras da discussáo no Tribunal de Évora" - as únicas que logramos
encontrar- revelam-nos, com efeito, o mar de incenezas e a rígida moral dos
inquisidores na avaliac;áo da sexualidade. Náo conseguiam pensá-la senáo a partir
do modelo de cópula hererossexual e do "esquema ejaculatório" que Foucaulr
arribui aos discursos sobre o sexo gerados no Ocidenre desde a Anrigüidade. Des-
se modo, a maioria dos inquisidores alegou que somente se urna mulher introdu-
zisse o "semen" no "vaso posterior" de outra ficaria caracterizada a perfeita e con-
sumada sodomia, levando-se em coma a impropriedade da vagina para a eferua~o
do di ro crime e a eventual incapacidade do instrumento utilizado para" comunicar
semen agentis no vaso preposterum". A opiniáo majoritária insisria, pois, na ima-
gem do coito anal como o autentico ato sodomítico e conjecrurava, ainda, sobre o
uso de inrrumenros, réplicas do falo, para a ocorrencia do nefando perfeiro-
seguindo a rradic;:áo escolástica que penalizava as mulheres pelo uso de instrumen-
tos de "video, madeira, cauro ou qualquer ourra maréria" na execw;:áo dessas
cópulas."
Houve, no encanto, quem contesrasse aquela opiniáo, a exemplo do
inquisidor Mareus Homem de Leiráo, alegando simplesmenre que ao Santo 0~­
cio só comperiam os casos de "propríssima sodomia" efcruados coma anrerven\'a~
do mem brum virilt no ;inus. Afinal, pon d erou, se a 1nqUI·sirio
-r
romasse conhect-
d e d d 0 u coisas ""nerranres. ha>'<'-
mento e cópulas com falsos membros, rossem e os r- . _
· d · m seu raroávd 1uízo. nao
na e ¡ulgar penerra~óes em vasos falsos ... - o que, e . sod .
. d M H 0 mem prancar a omta
tena cabimento. lmpossfvelll mulher, segun o areus -· •. . l . _
. .- . d L . . Maria Stntstrart. tcó ogo Ita
- opm1ao que encontramos aperfeu;:oa a em lllg•-
1' ~ b loso tratado sob~ o assunto.
•ano que, no final dos seiscenros, escreveu um a u d A :or-
Ed " . . " lh 6 d ria penetrar. e orar ou '
' e acordo com o espeCialista , a mu er 5 po e
TROI'ICO Dos PECADos
214

"-mea se possuísse dentro da vulva um "grande nymphium" u~a


romper ourra r< d 1' · ' "'
" -scencia carnal" mais avanrajada que o comum os e ltóns, apto a penetrar e
exc.. " . . · f¡ · d' "d ·
derramar sémen no 3nus da parceira. SmJStrarl oJ se~ UVI a msuperável: pri-
. . d colegia dos aros da mecanica ejacularóroa e do modelo hererosse
SIODCirO 3 ffiOW ' u .. , " -
xual de cópula, precisou masculinizar a mulher e dar-lhe um pems para reconhece.
la capaz de desvios nefandos.
Opiniáo singular sobre o assunro na discussáo de, É~ora, roralmenre oposra
b concep~óes de Sinisrrari, emiriu-a o depurado D. Veross1mo de Lencasrro, futu-
ro inquisidor-geral do Reino. Rejeirando as opinióes da mesa, considerou que
todos 05 aros sexuais efemados entre mulheres, fossem no 5.nus ou na vagina,
havendo ou náo instrumentos, eram rela~óes genuinamente nefandas e, como
rais, afetas aInquisi~áo. D. Veríssimo foi deceno o juiz mais rigoroso; mas foi
rambém 0 único a conceber, ainda que em esbo~o, urna no~iio de "homossexua-
lidade" extensiva b mulheres. Mas sua opiniiio nao prevaleceu, e os inquisido~<.~
conrinuaram na dúvida. Incapaz de resolve-la, o Conselho Geral acabaria por aban-
donar a jurisdi~áo inquisitorial sobre a sodomia foeminan•m, limitando-se a julgar as
nef..ndices masculinas e, vez por outra, as cópulas sodomíticas hererossexuais."
Assim se consrruiu o rerrirório moral do inquisidor. Elevaram-se alguns
pecados ao nívd de heresias, e se desqualificaram curros tantos- a exemplo das
rela~óes nef..ndas entre mulheres. Os transgressores morais da al~ada inquisitorial
seriam, de qualquer modo, equiparados aos hereges, examinados como se esrives·
sem a cultivar doUirinas oposras averdade católica - o que raramente f..ziam.
Náo por acaso seriam quase sempre abrigados, em caso de condena~áo, a f..zerem
"abjura~áo de leve suspeira na fé".
NorAs

Hamilron, Bernard. The Medieval lnquúition. Suffolk Ed dA Id


, war rno , 1981. p. 35 e
segs.
2. Montee, William. ·.rh~ ~editerram~an Inquisitions. In Ritual, Myth and Magic in Early
Modern Europe. Illmo1s, fhc Harvester Press, 1983, p. 64-68.
3. Ginzburg, Cario. O qtteijo e os vermes. Sáo Paulo, Companhia das Letras, 1987.
4. Para o caso cspanhol. vejam-se: Kamcn, Henry. La lnquúición Española (Barcelona
Grijalbo, 1977, p. 37-~9); e Netanyahu, Benzion. Motivos 0 pretextos? La razón de¡~
Inquisición, in Alcalá, Angel et alli. lnquúición Espanola y Mtntalidad fnquilitoria/ (Bar-
celona, Ariel, 1984, p. 23-44). Para o caso portuguC:S: Herculano, Alexandre. História tÚl
origem e estabelecimento da lnquúitáo em Portugai(Lisboa, Europa-América, s.d. 3 vols.);
Saraiva, AntOnio José. lnquúiráo e crútáos-novos (5. ed. Lisboa, ESlampallmprensa Uni-
versitária, 1985, p. 39-57).
5. No caso espanhol a perseguic;áo dos cristáos-novos pela lnquisic;áo sofreu oscilacróes: de
1480 a 1525 foi quasc absoluta (99,18% dos réus), e novamente intensa entre 1590/
1630 e 1720/1725. Cf. Dedieu, Jean-Pierre. Le Quatre temps de l'lnquisition. In
Bennassar, B. (org.) L'lquisition Espagnole (XVe.-XIXe. sitcles). Paris, Marabout, 1983.
p. 13-40. No caso portugues sempre predominaram largamente os criSláos-novos entre os
réus do Santo Ofício.
6. Mandrou, Roben. Magistrados efiiticeiros na Franra do siculo XVII. Sáo Paulo, Perspec-
tiva, 1979, p. 439-450.
7. Lever, Maurice. Les Búchen de Sodome. Paris, Fayard, 1985, p. 100; 200-201.
8. Hill, Cristopher, O mundo de ponta-cabera. Jdtias radicais durant~ a R~volu(io lngksa ti~
1640. Sáo Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 164-167: p. 300.
9. Souza, Laura de M. e. O di abo ea Terra de Santa Cruz. Sáo Paulo, Companhia das Leu'ls,
1986, p. 281.
10. Momer, E.W Sodomy and Heresy in Early Modern Switz.erland. In Licata. Salvatore J. e
Petersen, Roben (org.) Historien/ P~rspectives on HomoseXUIIIity. New York, Harwonh
Press Inc., and Stein and Day Publishers, 1981. P· 45.
11. Foucauh, Michd. Vigiar e punir: nascimmto da pn'sáo. Petrópolis, Yozes. 1~ 77 ' P· ·' 9·
12 bé Código Filipino. Ll\'ro Y. thulo
· Ordenacróes Manuelinas, Livro V, titulo 64, e tam m _ . áo R . J, Pttm.-
133. V. Almeida, C:indido M. de. Código Filipino ou Orrlena(O~S e /.m mw t
gal. 14. ed. Rio de Janciro, Typographia do lnstiluto Philomáuco. 1870· ... .
13. E 177' b 1 'sir;áo a re<;:onheccria como lflltlf'lmentc
m .... cm ora mantivessc a tortura.~ nqUJ l•n:'a Mác, a mais segura in~ncrlo
estranha aos pios e misericordiosos senumcntos da ¡; l ( )" Cf. R,.ft•P M
f l m culpado robusto ... · -.-
p,ara castigar um inocente raco e pa.ra sa va~ u_ :a Nacional. 1983 .\.ivro 11. titulo 111.
5anto Oficio da Inquisirio de Got~. Lasboa. B1bhotcc
TROPICO oos PECADos
216

. 0 á . d tormento, já dizia Roussiaud de la Combe, em 17-il


arág 1 Sobre a meriC era o , no
~eu Tra;tiáts matitm crimint/lo, que náo se tof[urasse~ os réus cunera os quais houvesse
,. ~ rriscar a condena~áo ao desuno e ao desenlace de urn supl"
culpa provada, para nao a dF 1 M 0 Jcro
de intcrroga<ório (...1que náo leva a nada". Apu oucau !, . p. cil., p. 40.
14. Foucaul<, M. Op. cil., p. 39.
15. Saraiva, A. J. Op. cit., P· 66, e Bennassar, B: Le t-¿~~Cie scxucl:_ L'lnquisirion d'Aragon et
la répression des péchés abominables, in L '/nqumtton ... , op. Cit, p. 350-351.
16_ Foucaulr. M. Op. cit., P· 39. Afirma Cándido_ Mendes sobr~ a prática dos "tormentos"
prevista no Código filipino: "Este bár~aro meJo, de prover ~n~cs hcrdara·m· os pavos da
Europa criná dos romanos qu~, em dJ~erentes mul~s do D~gcsto e ?o Cod1go 0 consa-
gram denominando-o Questio . O p. Cl[., nota relauva ao Ltvro V, mulo 133.
17. Eymcrich, Nicoulau. Lt Manutl dts fnt¡uisitturs. París, Mouton !:.diteur, 1973, p. 207-
212.
18. Novinsky, Ani<a. A fnquisi(íio. 2. ed. Sáo Paulo, Brasiliense, 1983 (Cole~áo Tudo 1Hilló·
ria, n. 49): "A palavra hcrcge origina-se do grego hairtsis e do latim hatmis e significa
douuina conuária ao que foi definido pela Igreja em matéria de fé. Em grcgo, hairrtikis
signifiCa o quurrolk''. p. 10-11.
19. Souza, Laura de M. e. Op. ci1., p. 316-318. Mon, L. R. B. Emodemonologia: aspec<os da
vida sexual do diabo no mundo Ibero-americano (séculos XVI ao XVIII). Comunica~áo
apresentada na 141 Reuniáo da Associa~áo Brasileira de Antropología, 1984, mimco.,
p. 5-14.
20. Regimemo do San1o Oficio da lnquisi~áo em Ponugal (1640). Exemplar mimeografado,
p. 376.
21. Regimen<odoSan<oOfrciodalnquisif.ioem Ponugal (1613). In Silw, José). deAndnde
e. (org.) Colqíio CTOnoMgica da ltgirkz(íio portuguaa. Lisboa, Livro l, !Í!Uio V, parág. 8.
22. BNL, Sef.io de Resel'Vlldos, códice 730, fls. 184-224.
23. ldem, Códice 869, fls. 361-364.
24. Dedieu, )-P. Le Modele sexuel: la défense du mariage chré!ien. In Bennassar. B. (org.)
Op. ci<.. p. 318.
25. Vieira, Amonio. StrmótJ. Lisboa, Typografia de Miguel Deslandes, 1679-1689, vol. 2·
p. 266-267.
26. Ginzburg, C. Op. ci1., p. 53.
27 · Lciles, Edmund. A conscilncia puritana t a uxua/idaJt moderna. Sáo Paulo, Brasiliensc.
1987, p. 124-125.
28. Hill, C. Op. cÍI., p. 302.
!9. Amussen, Susan Dwyer. Féminin/masculin: le genre dans l'Anglererre de l'époqoe
moderne. Annala E.S.C, 1985, n. 2, p. 274 .
10. S:u:z' ,Ricard 0 · La Transgrcssaon
· de llntcrdn
•. . amourcux: le prCue, la eremme e1 J'enfa••
. ·,m
dans 1archeveché deToiMe 0565-1620). In Redondo, Augus!in (org.) Amoun /iglll '
217

amoun illigitimes m Espagne (XV!r.-XVI/e. Jite/es) Pa.ris p bl' .


1985. P· 94. . • u Jcauons de la Sorbonne,
JI. Apud Leites, E. Op. cit., p. 121-122.
Jl. Ginzburg, C. Op. cit., p. 115.
33. A par[ ir da_Contra-Reforma, a ~greja re~o.delaria sua esrratégia de canoniza~áo, relutan-
do cm. sa~u.ficar faz~dor~s de mllagres e VISionários e reconhecendo sobretudo u 3 samida-
de de mdJvJduos CUJas v1d~s ex~m~lares os ~~~ros podiam seguir, e cujo uabalho evangé-
lico reforc;ava o poder e a mfluenc1a da lgreJa , a exemplo de Cario Borromeu, lnácio de
Loyola e oUlros. Cf. Brown, Judith .. ~tos.i~puros. Sáo Paulo, Brasiliense, 1987, p. IS6-
157. V. rb. Souza, Laura de M. e. VIsJonanas portuguesas do século XVII: 0 sagrado e 0
profano. Comunicac;áo apresentada no l Congresso Luso-Brasileiro sobre Inqui.si~áo, Sáo
Paulo, 1987, exemplos mimeografados, 14 p.
34. Caso especial foi, entre outros, o de frei Luiz de Nazaré, carmelita que vivia em Salvador
na década de 1730. Exorcista e curandeiro, visitava mulheres doemes e com elas tinha
cópulas, "alegando que tais atos eram indispensáveis para que as enfermas rccobrassem a
saúde". O problema era, en tao, a curandeirice e a magia, e nao propriamente a fornica~o.
V. Souza, Laura de M. e. O padre e as feiticeiras: notas sobre a sexualidade no Brasil
colonial. In Vainfas, R. (org.) HiJtória t stxualidadr no Brasil Rio de Janeiro, Graal,
1986, p. 15-16.
35. "Clérigos que se casam" e "Religioso que se casa" sao respectivameme os parágs. 6 e 7 do
livro 111, cículo X.V, relativo esse último a bigamia. Em processo específico contra ceno
beneditino baiano que abandonara o claustro e se casara na igreja, sua culpa apareceu
descrita como bigamia Iimilitudinária. ANTT/IL., processo 8786. Curiosa assimilat;.áo
fez. o inquisidor nessa semen~a. pois segundo o Liv. 111, chulo XV. parág. 3 do Regiment-:
de 1640, bigamia similicudinária era o casar-se urna pessoa solteira com outra já casada,
sabendo-a nesse estado (o que nao era o caso daquele frei).
36. R•gimento... (1640). Livro lll, tírulo XVI, parág. l.
37. Expressao usada no libelo acusatório contra o padre Francisco Lopes Lima, pá~co no Rio
de Janeiro, o qua! antes de receber ordens sacras, havia se casado in fou tcckJIIlt (1761 ).
AN1T/IL., processo 8675.
38. Ginzburg, C. Op. cit., p. 53. .
39. Lima, Lana L. da G. Aprisionando o dese Jo:. con fi1ssao
- e sexualidade· In Vamfas, R. (org.)
Op. cit., p. 88.
40 e . . ( ) omém a insütui~áo e progn:sso do
. oletóno de Bulas e Breves Apostólicos ..._ qu~ ceserv:tdos. códice I05 A, fls. 84-87.
Santo Ofkio em Portugal (1634). BNL. Se~ao de R 1 d
4 . · do 0 assunto cm detalhc. Lana ·· a
l. Rrg1mmto ... (1640) Liv. 111, título XVIII. Pesqu•san. l 1 · 5 ¡~ 0 somente no
G. Lima nos indica mais de quatrocemos casos cnados pe a ~qUI nvtm frisar. aos
B ·¡ , · nsamcnte supenor, co
ra~1 , sobretudo no século XVII_I._ ~umero •me do dcro colonial. Comunic.a\'ÍO ap~
efcuvamentc processados. V. InqUisu;ao e controle 5
sentada ao 1 Congresso Luso-Brasileiro .... Sao P..1.ulo, 1987· p. ·
TROI,ICO Dos PECADos
218

42 . As vezcs era chamada de molinismo na própria documc:nt;u;áo Ím]UÍSÍ[Orial (!?). Mas con-
vém lembrar que molinismo era a doutrina do também jcsu~ta L11iz Mo/ina ( 1535-1 GOO),
expocnre da Baixa Escolástica cspanhola, ~ue a~r~ava a hbcrd.adc .d~ homem frente a
gra~a e apresciCncia divinas. Ele cscrcvcu amda.v:mos tcx.[Os s~brc a cuca da coloniza~áo,
Cf. Hoffner, J. Colo1liznf'ÍO<r1Hlllg<ihu. 2. eJ. Rto de Janmo, 1rcscn\'a, 1977, p. 240-24 1.
43. Andrés, Melquíades. Alumbrados, crasmisms, luteranos y místicos, y su común denomi-
nador: el riesgo de una espiritualidad más intimista. In Alcahi, A. ct alii. Op. cit., p. 373_
409.
44. Molinos, Miguel de. Guia tspiritlln.l... (1675). Madrid, Nacional. 1977. foi nove vezes
reeditado cm várias linguas no século XVIII.
45. Edita! censurando 0 2. tomo do livro Máximm tspirituais de frci Afonso dos Ptazercs,
impn:sso pela l. vezem 1737. e pela 2. cm 1740. BNL. Se~áo de Resctvados, códice 853,
fls. 70-73. Censurado por "inuoduzir o molinismo e o quietismo tantas vezes proscrito e
condenado pela mesma lgreja". ANTT/Inquisi~áo de Coimbra, proccsso 957. Agrade~o
a Luiz Mon pelos dados desse processo, além de outras informa¡;óes sobre o assumo.
46. Examinamos em detalhe o extraordinário processo de madre Joana Maria de jesus, freira
portuguesa condenada em 1720. ANITIIL., proccsso 8290. Nao encontramos nenhum
caso de molinosismo para o Brasil nas listas de autos-de-fé lisboetas.
47. Apud Silva, Maria Beatriz N. da. Sisttma dr casamrnto no Brasil colonial Sao Paulo,
Edusp, 1984, p. 123.
48. Dcdieu, j-P. Le Modele sexuel ... In Bennassar, B. (org.) Op. cit., p. 311-312.
49. V., por cxemplo, Alega~áo de direito em que se mostra penencer o conhecimento do
crime de bigamia privativamente aos inquisidores. BNL. Se~áo de Reservados, códice
730, ns. 184-224.
50. 1/qimrnto... (1640), Liv, lll, titulo XN, parág. l.
51. Cdt/igo Filipino... , Liv. V, titulo XIX.
52. Percira, Nuno Marques. Compindio nílmzlivo Jo Ptrtgrino Ja Amlrica. 6. ed. Rio de
Janeiro, ABL, 1939. vol. 1, p. 132, referindo-se apenas as transgressóes contra o sexto
mandamento cm geral.
53. Carrasco, Rafael. lnquisiddn y rtprtsidn stxual tn V./rncia. Barcelona, Laertes Ediciones,
1986, p. 42-43.
54. "lribunale Pcrfectum (sive) Comenraria de Regimcn Sancti Officii Regni Portugal. ANTfi
Consclho Geral do Santo Oficio, quota 123.
55. Coletório de Bulu e Brev<s Apostólicos ... BNL. Se~ao de Reservados, códice 105 A.
n•. 75-77.
56. Carta ~ cardeal Milino (... ) para o hispo dom Fernáo Martins Mascan:nhu sobre o
enrcnd•mento do Breve de Pio IV. Colctório... , fl. 80, verso.
57. 1/qim<nto... (/640), Livro lll, tirulo XXV.
58 · Tarczylo, Thcodorc, Sru" libmi•u Sih:lr drs Lumi~rrt. Paris, Presses de la Renaillancc.
1983, p. 103.
O SANTil ÜI'/Citl NOS DoMINIO~ IIA MORAl.
219

59 . Rrgimmto... (/613). Livro 1, titulo V, parág. 8.


60 . Além das mulhcrcs indicadas n~ visha~~o, só temas nodcia de duas mulhercs unidas
(condenada~ ao dcgrcdo) p~lo mbunal hsboera entre os séculas XVI e XVIII, aJ,as or
rela¡;ócs ana1s hctcrosscxua1s. ANIT/IL., processos 11860 e 194 2. p
61 . Dos 1~ c~pítulos de rít~lo .XXV dcdica,dos apraxiJ judiciária no nefando, somenre 0 último
se refenu as mulhcrcs. L1~1tava-se, p.orcm, a recomendar discrit;áo na punit;áo das semencia-
das. náo esclarecendo maiS. Cf. /kg•mrnto ... (/640), Liv.lll, titulo XXV, parág. !3.
62. BNL. Se~áo de Reservados, códice 869, ns. 361-364.
63. É 0 que nos informa o padre Luigi-Maria Sinistrari em sua obra De soelomia in IUI
exponitur doctrina nova de sodomia foeminarum a tribaáismo áistincta (/700). Cf. M!u,
L.R.B. Da fogucira ao fogo do inferno: a alforria do lesbianismo em Ponugal, 1646.
Comunica~áo aprescntada na lncernational Conference on Lesbian and Gay History.
Toronto, 1985, p. 4.
64. Apud Bellini, Lígia. A coisa obscura. Mulher, soáomia e lm¡uisi(io no Brasil colonUzl Dissena-
~¡0 de mestrado apresentada na Universidade Federal da Babia. Salvador, 1987, p. 36-37.
65. O Regimento de 1774 manceve o mesmo parág. 13 do tÍ[UloXX:V que, no Regimento de
1640, aludía a puni¡;áo das mulheres compreendidas em sodomia. Oaro está que ama-
nuten~áo do parágrafo cm 1774 visava somente as mulheres compreendidas em nefandos
heterossexuais, jamais em a[Os lésbicos- abandonados pela lnquisi~áo em 1646.
lNQUISI<;AO, MORALIDADFS E
SOCIEDADECOLONIAL

Em cada canto um frtqiimtaáo olhtiro


Qut a Vida da vizinho ' da vizinha
Ptsquisa, tscuta, Nprtita t tsqruulrinha
Para levar aPrafa, t ao Ttmiro.
Gregório de Matos

Ac;.í.o INQUISITORIAL NA COLONIA: INSTITUI<;:OES

Entre 1621 e 1622, no tempo em que Filipe IV da Espanha reinava cm Portugal,


cogitou-se seriamente o estabelecimento de um tribunal da lnquisi~o no Brasil,
autónomo, permanente e com identicas prerrogativas as dos tribunais de Lisboa,
Coimbra, Évora e Goa, criados entre 1541 e 1560. O tribunal da Colonia nio foi,
contudo, além do projeto, especialmente cm fun~ da resistencia da lnquisi~
lisboeta que, sem prejulzo da a~áo inquisitorial, julgava-se apta a controlar os
desvios de fé no trópico distante. Ao contrário da América espanhola, onde fun-
cionavam tribunais do Santo Oficio cm Lima (1570), México (1571) e Canagena
(1610), distribuidos em lugares estratégicos daquele império colonial, o Brasil
ficaria mesmo se m sua própria lnquisi~o. De nada valeriam as insistencias do re•
Filipe: as invasóes flamengas no Nordeste e a ascensio dos Br:~gaD~a ao trono
portugues cm 1640 enterrariam definitivamente aqude projeto. E na segunda
metade do século XVII, lembra-nos Sonia Siqueira, já era passada ··a oponunida-
de de ere~áo de rribunais nas colonias" . 1
Nunca houve no Brasil o exrraordinário e mórbido auto-da-~. espetáculo
que aglutinava no terreiro do Pa~o. cm Lisboa, multidóes que escarneciam dos
condenados, apedrejavam·nos no cadafalso, conremplavam-nos na fogueira,
extasiadas, e recebiam, ao mesmo tempo, a lic;5.o inrimidatória que o Sanro Ofício
apreciava ministrar ao pavo católico. 2 Com exccc;áo das improvi~adas ·:procissóes
de fé"' organizadas pelo visitador Furtado de Mendon'a nos finaiS do seculo XVI,
a encena,áo do Santo Oficio no Brasil foi bem modesta. Também faltaram a
ColOnia os temíveis "cárceres secretos", o poder de julgar, a tortura e, por conse-
guinre, os documenws - depositados quase sem excec;áo nos bem guardados
cofres do Sanw Ofício lisboeta. Mas nem por isso deixou a lnquisic;á.o de atuar no
Brasil desde meados do século XVI, a partir da instala,áo da diocese baiana. Sónia
Siqueira nos informa que desde aquela época eram os bispos encarregados dos
negócios inquisicoriais na ColOnia, embora com poderes limitados a instruc;áo de
a
processos, e sujeims jurisdic;áo de eventuais visitadores enviados de Lisboa. já no
final dos anos 1560 o segundo bispo de Salvador, D. Pedro Leiráo, parecía repre-
sentar o Sama Ofício no Brasil, delegando poderes inquisitoriais ao vigário e cura
do Rio de Janeiro, padre Mareus N unes. Mas foi sobretudo a partir de 1579 que
os hispas assumiriam oficialmente semelhame func;áo, nomeando·se D. frei An-
tOnio Barreiros delegado do Santo Ofício e inquisidor apostólico "para conhecer
das causas que nas ditas partes do Brasil" fossem "tocantes a Santa Inquisic;áo". 4
Apesar de agirem em nome do Santo Ofício, e autorizados a ouvir denún·
cias, abrir devassas, prender suspeitos, receber os presos encaminhados pelos vigá-
rios, remeti:·los a Lisboa quando os julgassem afetos a lnquisic;áo, os hispas eram
apenas "agentes indirc:tos" daquelc: tribunal, segundo a apropriada expressá.o de
José Gonc;alves Salvador. 5 A rigor, náo perrenciam necessariamente aos quadros
inquisiroriais, nem passavam pelos minuciosos exames exigidos aos membros do
Santo Oficio' Enquanto supremas autoridades da lgreja colonial, possuíam ai,a-
da sobre wdos os crimes do foro eclesiáscico- ao qual também recorriam crimi·
nasos do foro civil - , mas náo podiam sentenciar nenhum "herege", ao menos
cm prindpio. E, náo obstame scja carreta afirmar-se que a func;á.o inquisitorial
dos bispos foi o mecanismo utilizado para suprir a ausencia de um tribunal do
Santo Ofício na Colónia, o fato é que também em Portugal adorou-se igual pro-
cedí mento na segunda metadc do século XVI.
Segundo l;rancisco Berhencourr, há anos dedicado a rcconstituic;áo deta-
lhada da máquina inquisitorial lusitana, os primeiros cnsaios do Santo Ofkio
reino! dcram-sc pela organiz.ac;áo de pcquenos uibunais distritais sobrcpostos "3
malha administrativa eclesiástica" (~vora, Lisboa, Tomar, Coimbra, Lamego e
Porto), "cstratégia acompanhada da nomeac;áo de hispas e vigários locais como
inquisidores". Aproveitou·se, assim, a estrutura eclesiástica preexistente, inclusive
223

as visitas e inspeyóes diocesanas, para agilizar a instiruic;áo do Sama Ofício que,


simulraneamenrc, eferuava suas próprias visitac;óes nas diversas regióes de Ponu-
al.7 Somenre na década de 1560 é que se reduziriam os rribunais inquisiwriais 3
~vora, Coimbra e Lisboa, subordinados ao Conselho Geral do Santo Ofício _ 0
que Jonge esreve de eliminar a estreita colabora,áo prestada pelaJusti>a Eclesiástica.
Estratégia análoga seria adotada no Brasil em meados dos quinhentos, res-
salvadas a enorme debilidade característica da Igreja colonial, pelo menos até 0
final do século XVII, e a ausencia de um tribunal na vasta Colonia. Mas desde
1551 nossos bispos andaram visitando os rerrirórios diocesanos, em nome da
lgreja e do Santo Ofício, e remetendo uns poucos suspeitos para Lisboa. D. Pedro
Sardinha visiwu llhéus, Pernambuco e Espíriro Santo; D. Pedro Leiráo esreve em
Iraparica, Sáo Vicente, Santos, Bertioga e Rio de Janeiro; e D. AntOnio Barreiros
visitou O! inda, em 1590, antes que lá chegasse o primeiro visitador inquisimrial. 8
f: certo que, ao fazerem tais visitas, iam os prelados a inspecionar os problemas da
catequese e do povoamento, mas nem por isso se escusaram de prender suspeitos
de heresia e instruir processos comra eles, a exemplo do que ocorreu com alguns
réus de Heitor Furtado de Mendon>a oriundos de visitas realizadas em 1590.
a
No enranto, foi coma visira~áo inquisitorial Bahia e a Pernambuco, emre
1591 e 1595, que se inaugurou efetivamente a atua>áo mais formalizada do Santo
Ofício no Brasil. Muito se especula sobre as razóes que reriam levado Lisboa a
a a
ordenar urna visita especial Colonia em fins do século XVI, falta de documen-
tos esclarecedores do episódio. Anita Novinsky vincula a visita as notícias da pros-
peridade colonial que entáo chegavam ao Reino, o que poderia ter despenado a
cobi~a dos Filipes, sendo expressivo o número de comerciantes e senhores de en-
genho de origem judaica esrabelecidos na regiáo.'' Sónia Siqucira a vincula ao
interesse da Igreja em "integrar 0 Brasil no mundo cristáo" e ao objetivo de "in-
vestigar sobre que estrururas calcava-se a fé" de nossos moradores. 10 Persegui\óes
rapaces Contra OS cristáOS-nOVOS, ;inimo de expandir O Catolicismo, ÍnVeS[iga\áO
da fé, eis objetivos que noneariam tanto a visira~áo ao Brasil quanto a arua\áO
inquisitorial portuguesa no conjunto aré meados do s¿culo XVIII. Parece-nos,
pois, que a controvertida visita\áo náo possuiu qualquer atributo especial senáo o
de incluir-se no vasto programa expansionista efetivado pelo Santo Otlcio na
última década dos quinhentos. Consolidada no Reino, e ac~scentando a seus
propósitos originalmente ami-semitas o espírito da Contra-Reforma, a lnquisic¡áo
ordenaría diversas inspec¡Oes nos domfnios lusitanos do ;¡j¿m-~lar. A dtcada .d,e
1590, informa-nos Bethencourt, assinalou "urna viragem na oncma\áo das VISI-
tas'\ emáo dirigidas 3.s ilhas e aos rerrirórios ultramarinos. Ao mesmo tempo que
224

Heitor Funado de Mendon<;a visirava a Babia, Pernambuco, Tamarad e Paraiba


Jerónimo Teixeira percorria os A<;ores e a Madóra, e pouco depois (1596. 1598 )
seria a vez do padre Jorge Pereira visitar o remo de Angola por comissao do
inquisidor-geral.''
Heitor Furtado chegou a Bahia a 9 de julho de 1591, acompanhado do
governador Fernando de Souza, recém-nomeado para o cargo. Exercera fun~óes
de capeláo fidalgo d'EI Rei e do desembargo do Pa<;o, e era deputado do Santo
Oficio quando o nomeou o inquisidor-geral para visitar náo só a Bahia e
Pernambuco, mas também Sáo Vicente, Rio de Janeiro e as ilhas de Cabo Verde e
Sáo Tomé. Suas atribui<;óes eram, porém, limitadas, cabendo-lhe julgar os casos
de bigamia, blasfemias e culpas menores e apenas inscruir os processos contra os
demais acusados, remetendo-os presos para Lisboa. 12 Mas Heiror Funado, que
chegou doente na Colonia e tardou a iniciar os trabalhos, fez o que lhe pareceu
conveniente ou razoável- vício das "autoridades coloniais" - ; foi táo subjetivo
em sua atua<;áo, abandonando por completo as instru<;óes do Conselho Geral,
que só lhe faltaram mesmo a ere<;áo de cadafalsos e a execu<;áo de penas capitais no
trópico. Talvez por sua conduta arbiuária aos olhos do Conselho, acabaria recam-
biado para Lisboa antes de visitar as capitanias do Sul e as ilhas do Adantico.
Seja como for, Heitor Furtado foi recebido na Bahia e em Pernambuco da
mesma forma que os demais visitadores o seriam nos séculas seguintes: com o
pinico da popula<;áo, sobretudo dos cristáos-novos, mas também dos cristáos-
velhos, convertidos todos em potenciais hereges pela temível lnquisi<;iío. Na visita
do século XVI, muitos fugiriam das capitanias inspecionadas, apavorados com a
simples notícia de que se aproximava a comitiva inquisitorial ou com a perspecti-
va de que algum preso recente os viesse acusar na mesa, bandeando-se para as
capitanias do Sul, para o sertao, Antilhas de Castela, Angola e outros lugares. De
ourro lado, o inquisidor era recebido com a sujei<;áo de rodas as autoridades colo-
niais ao seu poder, expresso num sem-número de homenagens, juramentos e reve-
rencias do hispo, do governador, dos funcionários da administrar;áo, dos mem-
bros da Cimara, dos ouvidores, etc. A estrutura civil e eclesiástica do poder colo-
nial era, assim, completamente submetida a autoridade do Santo Ofício enquan-
to duravam os trabalhos.
Em todas as cidades e vilas Heiror Purtado faria o que era a praxe das
visita<;óes inquisitoriais. Solene, afixava o Edita! da Fé a porta das igrcjas e man-
dava le-lo semanalmente aos domingos, convocando os Héis a confessarcm e dc-
nunciarem as culpas atinentes ao Santo Oficio sob pena de excomunháo maior.
Em seguida aconvoca¡;;:áo geral, fazia apregoar o famoso monirório, rol minucioso
[Nl}IJIII~ AP, ,\HlllAIII>AI!I \ 1 \( ¡(.J 1 llAI!I ( l !1 ONIAI
225

dos crimes que deviam ser notificados ao Sama Ofício, o u mesmo os indícios de
rais crimes, a exemplo ~.o~ costu.~es suspeiros de cripwjudaísmo: escusar-se de
comer carn~ de por~o,, JCJUar o J~JU~ da .r~inha Esther", rezar ora~óes judaicas,
gua rd:~.r

0 sabado ... A epoca da pnme1ra V!Sltará.o utilizava-se 0 mon·t, ·
. . . T ' . 1 OCIO orga-
nizado porO, Dwgo Sdva em 1536, acresc1do das mcumbencias assumidas pelo
Sanco OfíCio nas decadas segumtes, e nele náo fahava nenhum dos delitos morais
a
e sexuais que vimos penencer Inquisi~áo, inclusive a besrialidade e a molície,
posteriormente excluídas da jurisdi~áo inquisitorial. 13 Fixava-se, pois, um extenso
roreiro de "pecados heréticos", mecanismo essencial para provocar 0 auro-exame
da comunidade, atemorizando-a e estimulando sua colabora~áo com o poder.
Enfim, fe itas as admoesta<yóes, o visüador anunciava o tempo da Grara, período de
até trinta dias em que os confirentes espontaneamente apresenrados ficariam Ii-
vres de penas corporais e do confisco de bens desde que fizessem plena e verdadei-
ra confissáo de seus erras. Assim agiu Heitor Furrado de Mendon~a. assim agi-
riam os visitadores inquisiroriais. Por meio de coa~óes, censuras e roteiros de
culpas, proporcionavam urna "forre experiencia visual e auditiva as popula~óes" e
avivavam a memória coletiva de acordo com as verdades da lgreja. 14
a
Outras visita<;:óes inquisiroriais seriam enviadas ColOnia no decurso do
século XVII, embora só conhes:amos a documentas:áo da acorrida em 1618-1621,
efetuada pelo licenciado Marcos Teixeira na Bahia, José Gons:alves Salvador faJa-
nos de duas visitas enviadas a Pernambuco e as
capitanías do Sul, ambas em
1627, 15 e Anita Novinsky examino u denúncias e processos da "grande inquiri~áo"
realizada na Bahia, em 1646, sob encomenda do Santo Ofício e ordens do b1spo
D. Pedro da Silva. 1G Mas a partir de meados dos sciscemos, rudo nos indic~ que a
Inquisi¡;áo portuguesa deixou de enviar visitadores especiais para o Brastl. com
exce<yáo da extempor.inea visita~áo do Pará, Maranháo e Rio Negro, con.fiada a
G Id J ' d Ab h 1763 e 1769 17 O quase rotal desaparec¡menro
era. ~ o.se ~ . r~~c es, ent~e . 'culo XVII náo si nifi~
das VISitas mquiSitonaiS ao Brastl na segunda metade do se .. . g .
cou, conrudo, decréscimo das atividades do Santo Ofício na Coloma, nem fol
e .. . e
renomeno exclusivamente colomal. lnrorma-nos rancl
F 'seo Berhencoun. .que . d
tam~
,
b em . definitivamente as VJSitJS esse
em Portugal e nas ilhas se mterromperam d d J
genero após 1637 o que segundo o auwr, resulwu parcialmente 0 estJ 0 e
. . ' . ' .. .. . áo até 1660 e dos encargos
guerra VIvido pelo Remo na sequencta da Restaura~ e: .. d·¡¡.·¡ 1 ~ E
onjunmra nnancc1ra 1 h.l . ~
crescentes que tais visitas represenravam numa e d , . l X\'11 en ·on~
1cmbra~nos ainda Bcthencourr que, na segun da· mctadc o se~..: u o · · ~,
. .. .. J S· Ofici l cm
. á . e tamJiaares uo ~;uno "
trava~sc já consolidada "a rede de comJss nos . d mais
. . . . . 'ais rornar~sc~Jam ca a vez
todo o país, de sorte que as vtsuas mquunon dh óllli-
dispens~veis. Além disso, também a lgreja portuguesa apres<ntava m or org
TROI'ICO Dos PECADos
226

za~áo administrativa nessa época, implementando regularmente suas próprias vi-


sitas pastarais e alimentando os tribunais do Santo Ofício de réus "suspeitos de
heresia'' .''' Em resumo, aperfei~oou-se a máquina inquisitorial e organizo u-se a
estrutura judiciária da Igreja, funcionando a segunda como mecanismo ancilar da
primeira naquilo que extrapolava a competencia do Juízo Eclesiástico.
Guardadas as propor~óes, e consideradas as dificuldades encontradas pelas
agencias oficiais de poder para funcionarem na vasta Colonia, reproduziu-se aqui
0 mesmo fenómeno que vimos ocorrer na Metrópole, ainda que atrasado em
algumas décadas. De um lado, mostram-nos Siqueira e Novinsky, foi a partir de
meados dos seiscentos, e sobretudo no século XVIII, que se multiplicaram as
habilita~óes de comissários e familiares do Santo Ofício no Brasil, encarregados
uns de instruir processos, proceder a inquiri~óes e ordenar prisóes de réus tocantes
ao foro inquisitorial, e outros, a prender suspeitos e sobre eles colher informa~óes
a mando dos comissários. 20 Paralelamente ao desdobramento de dioceses e prelazias,
simultaneamente aestruturar;áo da lgreja colonial, montava-se a máquina inquisitorial
no Brasil. E de outro lado, a medida que se aperfei~oava a estrutura eclesiástica,
rornavam-se freqüenres e periódicas as visitas pastarais, o u devassas, ordenadas pelos
bispos, que, como bem norou Caio César Boschi, acabariam "alimentando o Tri-
bunal do Santo Ofício lisboeta com culpados de crimes mais gravosos", agindo
como "rribunais itinerantes" e complementares da institui~áo inquisitorial."
Com efeito, se já funcionava nesse sentido desde o século XVI, época em
que a lgreja colonial era ainda incipiente, as visitas diocesanas praticamente subs-
rituiriam, como em Portugal, as amigas visita~óes inquisitoriais, especialmente
após a regulamenta~áo que lhes deu o sínodo baiano de 1707. 22 A fun~áo auxiliar
dessas visitas aengrenagem do Santo Ofício, vemo-la no próprio "Regimento do
Audirório Eclesiástico", espécie de monirório que incluía quarenra crimes passf-
veis de serem delatados aos visitadores do bispo, desde os atinentes ao Juízo Ecle-
siástico - concubinatos, incestos, adulrérios, alcoviragens, ere. - aré os delitos
da al~ada inquisitorial, caso em que os acusados eram entregues aos comissários
do Santo Ofício para norifica~áo ao tribunal de Lisboa e eventual prisáo dos futu-
ros réus. Assim ocorria, por exemplo, em rela~áo ao pecado nefando e a bigamia,
para os quais se previam o envio do "sumário de restemunhas" aos oficiais do
Santo Offcio e a prisáo dos culpados no aljube do jufzo Eclesiástico aré que os
inquisidores os mandassem buscar." E nada disso, convém frisar, permaneceu
"letra mona": vários sodomitas e bígamos coloniais que encontramos presos e
condenados na lnquisi~iio durante os séculas XVII e XVIII procediam, de faro,
das visitas diocesanas.
[N<lLJJ.II(r\O, ,\rlOI(,\I.IJ>Alll·~ l· .'>(){ ll·llAllE COLONIAl
227

A articula~áo concreta entre os aparelhos ¡· udiciários d ¡ ·. -


. . . , . a nquJSI~ao e da
1gre¡· a no Bras.I reproduzJt-se-Ja
. tambem no esnlo das visitas d'1ocesanas, em bora
variados proced1mentos as afastassem da visita~áo inquisitorial. Segundo Caio
Boschi, as v1s1tas dt~cesanas apresentavam um rito processual mais simples e su-
mário, limitadas bastcamente a colher testemunhos da comunidade contra os in-
divíduos incursos nos itens do "regimento do auditório". A denúncia era, pois, a
"razáo de ser da visita", inexistindo praticamente as confissóes e 0 chamada " e-
ríodo da gra~a'' que, na visita do Santo Ofício, isentava os confitentes dos ca.sti;os
mais rigorosos. Coligidos os depoimentos, o visitador lavrava os termos de culpa,
convocava os acusados para a ratificac;áo e dava-lhes penas correspondentes, em
geral pecuniárias-" So mente nos casos de terceiro ou quarto lapso e de culpados
aferos alnquisic;áo é que o visitador procedía aprisáo do réu, remetendo os autos
para o vigário da Vara Eclesiástica ou para os comissários do Santo Ofício, confor-
me a natureza do delito.
Em outros aspectos, porém, a visita diocesana em muito lembrava a inqui-
ri~áo do Santo Ofício, a come~ar pelos objetivos repressivos e pedagógicos: "ensi-
nar a fé e católica doutrina fora de todas as heresias, e conservar bons cosrumes,
emendar os maus, incitar o povo com admoestac;óes a religiáo, paz e inocen-
cia (... )" 25 Além disso, lembra-nos Luciano Figueiredo, rudo se passava em segre-
do, de modo que o acusado desconhecia a identidade dos delatores e o próprio
teor de seu crime - fato só explicitado na lavrarura do termo de culpa. 26 E, no
mais, embora o visitador pouco argüisse as testemunhas e os culpados, a inquiri-
c;áo diocesana ostentava, como diz Londoño, um cerw "modus facúndi
inquisitorial", trabalhando para a afirma~áo do núcleo dogmático da lgreja sobre
as moralidades e as cren~as do cotidiano, alterando a vida das comumdades e
ro m pendo seus vínculos de solidariedade internos." .
e . . '" · d
o 1ab orava, pms, a IgreJa para o extto a m1
·ssáo inquisitorial" no BraSil.
, .
·1 d d ·
especta mente por meio de suas devassas, ver a etros
substitutivos
.
das clasSicas.
_ ,
. . d M s TeixeJta E nao e de adnu-
VJSJta~óes de Heitor Fu nado de Men on~a ou arco · ,
d J · diferentes e de ser o ]UJw
rar que assim o fosse; afinal, apesar e serem usuc;as . d .
Eclesiástico subordinado aos bispos e a lnquisic;áo ao rei, náo p~rse_gu•~m ro os~
mesmos propósitos? Náo eramos quadros do Santo Oficio maJonran:unente sal-
. . . celados a alrernarem 'argos
dos da h1erarquia eclesiástica? Náo esuveram mUJtoS P . l
. c. . ~ p irarmos apenas do1s excmp os
na justJ~a Eclesiástica e no Santo Or!CJo. ara e . t' 1 d
'1 . , . d 1 quisio¡áo ,,. Bah~;• no ma o
1 usrrcs: joao Calman, principal com1ssano a 0 . . . . 1 .
ex c:riencia JUd1c1J.na na g~Ja.
século XVII e no inicio do XVIII, possufa vasta P l . b
.;lslica anrc:s de p c:uc:ar e o ter ;\
ten do sido desembargador da Rdao;áo Ee1eSJ
TROP!CO Dos PECADos
118

comissaria inquisitorial;" e Geraldo José de Abranches, célebre visitador do Par;,


exercera a vigairaria-geral em Sáo Paulo e Manana, acumulando-a com a fun)áo
de comissário do Santo Ofício, antes de obrero cargo de depurado da Inquisilao
postulado em 1760." juízes eclesiásticos, visitadores, inquisidores, eis funlóes
que na prática náo eram muito discintas. .. ~
Mas a Igreja colaboraria ainda com a lnquiSic;:ao - permanentemente_
por meio de curros mecanismos. A confissáo sacramental, por exemplo, obrigató-
ria e periódica, funcionava na ColOnia ou nas metrópoles ibéricas como ante-sala
de numerosos processos inquisicoriais. Na visirac;áo do século XVI encontramos
vários indivíduos que, orientados por confessores - sobretudo jesuítas - , pro-
curavam a mesa inquisitorial para relatarem suas "opinióes erradas" sobre fornica<;áo,
casamenco e celibaro, embora muiws viessem já absoltos e penitenciados espiri-
tualmente do confessionário. Em casos de sodomía agigantava-se ainda mais o
papel dos confessores, que, cientes do forre cunho hererical daqueles aros, muitas
vezes recusavam-se a absolver os nefandos, instando para que se apresentassem a
lnquisi~áo. 30 De mecanismo expiador dos pecados e reconciliador do fiel com
Deus, a confissáo sacramental transformava-se, entáo, em fonte de outras confis-
sóes, náo mais íntimas e espirituais, senáo externas e criminais, isto é, feítas na
mesa do santo tribunal e usadas como prova judiciária de delitos contra a Igreja.
E, paradoxalmente, parece ter sido essencial o papel dos confessores no
desvendamento de inúmeros solicitantes- justamente os que, maculando a pu-
reza do sacramento, agarravam as penitentes no próprio aro da expiac;áo. Vários
dos que ouviam confissóes de mulheres outrora provocadas por "maus confesso-
res" náo hesitavam em mandá-las delatar os colegas de ofício as autoridades
inquisitoriais, funcionando suas acusac;óes como raiz de diligencias e processos
contra os chamados solicitantes.3 1
Enfim, em termos específicamente coloniais, náo seria erróneo salientar-
mos a prestimosa colaborac;áo que sempre deram os milicianos da Companhia de
Jesus ao "reto minisrério do Santo Ofício" desde 0 primeiro século. já em Portugal
a convivencia entre as mais poderosas agencias eclesiásticas do Reino fora por
muiro tempo amigável; o próprio lnácio de Loyola, devedor de favores a D. Joáo 111,
trabalhara em pro! do <stabelecimenro do Santo Ofício em Portugal, embora re-
cusasse o cargo de inquisidor de Lisboa para um membro da Companhia. No
século XVII o quadro iría mudar, instalando-se u m grave confliro entre a Inquisic;áo
e os jesuitas, do qual fizeram pane o famoso processo contra AntOnio Vieira e a
própria suspensáo do tribunal entre 1674 e 1681, urdida pelos inacianos. Diver-
gencias sobre métodos de julgar e punir, ou sobre o papel dos crisráos-novos em
/NQLiiSJ<:AO, ,\1UltAI.IlMlll·" 1 \tlCJI·IJ¡\lll· C lllllNIAI
229

Port ugal • nada disso falto u. as controvérsias entre a Companh·1a e os mqu1s1


. . .d
ores
na segunda metade dos . . seJScentos - um capítulo • a bem da verdade, d as rusgas
entre jesuíras e dommicanos e, sobretudo, da lma pela hegemonia no interior da
lgreja portuguesa.-"
Mas, se brigavam na Metrópole, inacianos e delegados inquisitoriais anda-
riam ombro a ombro na Coló ni a, agindo os jesuítas como freqüenres colaborado-
res do Santo Ofício. Na visita de Heitor Furtado de Mendon<;a, encomramo-los
sempre a receber penitentes enviados pelo visitador para as langas "confissóes
gerais de toda a vida" que a lnquisic;áo soía incluir em suas sentenc;as; a recomen-
dar que alguns pecadores fossem amesa do Santo Ofício para lá externarem suas
culpas confessadas na sacramental; e, inclusive, a denunciar cristáos-novos como
suspeitos de criptojudeus. No Pará e no Maranhiio, os reitores dos colégios
comumente exerceram comissarias do San m Ofício, efetuando diligencias e pri-
sóes desde 1653; 33 e na chamada "grande inquiri<;iio" baiana de 1640 ninguém
menos do que o provincial da Companhia, padre Francisco Carneiro, fora incum-
bido de presidir os trabalhos, fazendo as vezes de inquisidor no trópico." Diver-
gencias aparte, especialmente quanto ao "problema judaico", jesuítas e inquisidores
foram grandes aliados na cruzada tridentina patrocinada pela monarquia lusitana
em seus domínios.
Lentamente, ainda que sem tribunais, a lnquisic;áo se foi cristalizando na
sociedade colonial. Pela a<;iio de seus próprios visitadores, comissários e familiares,
ou pelas periódicas devassas episcopais, montaría urna fabulosa máquina de vigi-
lancia, lubrificada pelo apoio dos jesuíras e dos confessores sactamemais- sorve-
douro de réus em toda a Colonia.

CUMPLICIDADES, PÁNICOS: CONFESSAR E DELATAR

A complexa máquma . . . . . l · d Colónia póde funcionat


mqutsl[ona orgamza a na
com alguma eficiencia, se considerarmos a vastidáo da América port~gu_esa e o~·
·~
tras d lrlculdades, recolhendo centenas de réus os maiS on
d · 1 gínquos nncoes braSI·
r
leiros entre os séculas XVI e XVlll. Mas quer-nos parecer que de pouca val"
· .. . . - fo e a relativa adesáo popu a1
senam as VISitas, as devassas ou os com1ssinos, nao ss ,. A .
ao apeo 1 das autoridades eclesiásticas empen h adas em descobrir os "heregosd· "ped
com·
vencia da sociedad e resulrava, antes de rudo, do que Bennassar chamou e a·
gogia do medo", <Spectro da lnquisi~ao associado ao se?redo dos processos, ao
pavor da morte na fogueira, do confisco de bens e da m:am~a• que rec~ía sobre os
condenados do Santo Oficio." Nao obstante faltassem a Coloma os mos espeta.
culares que 0 Santo Oficio utilizava no Reino para alimentar sua imagem
terrificante, 0 vaivóm de noticias e pessoas entre Portugal e o Brasil, ou mesmo as
narrativas da vizinha América espanhola, eram suficientes para manter aceso em
nossos colonos 0 pánico inspirado pelo inquisidor. E a medida que se organiza.
vam as engrenagens inquisitorial e eclesiástica no Brasil, que a vigilancia dos
múltiplos "familiares" do Santo Ofício se fazia sentir na própria vizinhan~a. que
as devassas da Igreja se tornaram freqüentes e periódicas, expondo a vida de todos
ao julgamento público, a lnquisi~ao logrou impor sua sinisrra presen~a no rrópi·
co, ainda que "a negra casa do Rocío" ficasse na distante Lisboa. "
A ame~a geral que o simples nome do Santo Ofício representava para os
súditos de Portugal juntavam-se variadas intimida~óes cotidianas, visíveis por
exemplo no ritual das visita~óes. Tanto nas devassas eclesiásricas como nas visitas
inquisitoriais, ~ram todos abrigados a delatar os crimes inscritos nos monitórios,
sob pena de excomunhao maior, o que por si só já carregava em demasía a cons-
ciéncia da popula~ao. Na visita de 1591-1595, Heitor Furtado acrescentaria as
censuras de praxc aunas tantas que se revelaram muito eficazes embora contra-
riassem as insrru~óes do Conselho Geral: promoveu "procissóes de fé" na Bahía e
em Pernambuco, incluindo a leitura pública das senren~as e fez executar vários
condenados a ~oites pelas ruas das vilas e das cidades visitadas. Homens e mulhe·
res com vela na mao, desbarretados, descal~os, a ouvirem consrernados o relato de
suas intimidades e abjurarem de "leve suspeitos na fé" a visra da multidao, eis o
que o visitador houve por bem realizar na jovem Col6nia. Niio por acaso, vários
individuos apressaram-sc a confessar, ou a delatar amigos e paren tes, após assisri-
rem a tais episódios nos domingos e feriados daqueles anos - tempo em que
Heitor Furtado de Mendon~a assombrou o Nordesre.
Os ritos exteriores das visitac;óes provocavam, aliás, urna enorme confusáo
nos espfritos. Embora fossem elas expedic;óes judiciárias, uibunais icinerantes ou,
no mínimo, averigua~óes policiais, os visitadores as faziam passar por grandes
momentos de expia~iio coletiva, abrindo a possibilidade de todos se reconciliarem
com Deus. Juízes da lgreja com o poder de aplicar penas seculares, criavam a
ilusio de serem meros sacerdotes encarregados de pregar a palavra divina; ao
conclamarem os fiéis ~ dela~io, apregoavam seus objetivos dourrinários e pedagó-
gicos, sem omitir os repressivoa, voltados para a "cmcnda dos costumcs e crcnc;as".
Oesnorteada, ficava a popula~io espremida entre os castigos do Céu e da Tetra e,
131

ceme
rosa de ambos, verga va-se as
vomades do poder É .. -
· na.s VISHat;oes do Sanco
Ofício que melhor obs<:rvamos essa confusáo popular entre 05 .... . d .. al
. . .. _ ..... pectos JU ICI e
expiaróno das m:ulflc;oes, so~rerudo porque nelas se abria a oponunidade de
confissóes espontaneas, envolvJdas numa falsa magia sacramemal: confissóes em
cudo disrinras do sacramenw da peniréncia, pois, como vimos, náo eram falas de
reconciliac;áo com Deus, senáo provas judiciárias transcritas nos autos. Se feítas
00 "período da grac;a": plenas e verdadeiras, lívrariam de penas mais rigorosas 0

réu pecador; mas se feaas com atraso, ou se colidissem com evenruais denúncias
de ourrem, poderiam levá-lo ao desrerro, aos a¡;:oires, as galés e a cueros castigos.
Embora mui[Q distintas da confissáo sacramental. :ts tais confissóes de cul-
pas exigidas pelo visitador lembravam a muitos a tradiu, ~.d expia~j:áo da Quares-
ma, forjando-se urna atmosfera de "alívio da consciéncia" onde só havia pesquisa
inquisitorial de heresias. Náo é de admirar que muitos procurassem o visitador
para confessar pecadilhos, tolices que mal interessavam ao Santo Ofício, vendo-se
no juiz da lnquisi~áo um simples confessor de almas pecadoras. Os hábeis
inquisidores também náo se faziam de rogados, e diame da confissáo de miude-
zas, e mesmo de faltas graves externadas com sincero arrependimemo, apllcavam
peniténcias espirituais aos pobres pecadores, assumindo a imagem que deles fa-
ziam os incautos. Muitos colonos agiam com essa candura apavorada em face dos
visitadores, emboca quase todos soubessem, no fundo, que a lnquisi~j:áo era um
tribunal de fé.
Contudo, o que mais provocavam as visitas, fossem do Santo Ofício, fos-
sem da lgreja, era o panico generalizado. A simples chegada dos visitadores, as
solenidades da convocatória ao povo, os monitórios e os pregóes logo geravam
urna atmosfera de vigilancia, um atilj:ar de memórias, sentimentos de culpa e
acessos de culpabiliza~áo. Surpreendemos, por vezes, noráveis mecanismos de de-
fesa individuais ou coletivos: fugas, pactos de siléncio, reinvenlj:áo de histórias a
serem contadas ... Bígamos a convencer amigas - e falsas - testemunhas dos
segundos casamentos de que nada havia a temer se confirmassem a mone da
primeira mulher· homossexuais a relembrarem o número de cópulas passadas, a
fitm d e acertarem' as confissóes; m
. d.avíd uos a d esd.tiere m 0 que haviam dito
. sobre
os prazeres do sexo em conversas pregui~j:osas, insisrindo com os amagos - e
. . . . fe d
possfvels denunciantes- que Jamals de n eram a rmc • ·
¡¡, · ariio· eis atirudes defcn-
· . pula~es devassadas. Mas,
Slvas, qu1~á solidárias, que verificamos ocorrerem nas P0 . . .
antes de estimular cumplicidades o u resisténcias, as inquirilj:áes e ~tsaw mmavam
as solidariedades, arruinando lealdades familiares, desfucndo amlz.ades. rompen-
do la~os de vizinhan~a. afetos, paix6es. Despcrtavam rancores, rcavavavam mama-
zades, ati\avam velhas desaven\as. Agu\avam, enfi~n, antigos ~reconceitos Inorais
que, traduzidos na linguagem do poder, se convernam em pengosas ameac;as para
cada individuo e para a sociedade em geral.
É-nos possível reconstituir um pouco dessa massa de sentimentos contra-
ditórios que a todos assolava, examinando cenas motiva<;:óes do confessar e do
acusar na visita\áo dos quinhentos. Os que atendiam a convoca\áo do visitador,
apressando-se a delatar erras alheios ou confessar os próprios, eram movidos por
algumas espécies de medo. Antes de tudo pelo medo de ser acusado, o que levava
muitos a se anteciparem as denúncias, apresentando-se ao visitado, ou a delata-
rem os outros para "mostrar servi\o" a lnquisi<;:áo. U m dos raros escravos a fazer
denúncias a Furtado de Mendonya foi o angola Duarte, rapaz de vinte anos que
mal falava o ponugufs e teve de acusar por meio de um intérprete. Morador na
Bahia, ande servía aos jesuítas, contou que era perseguido por Joane, escravo
Guiné, para com ele cometer o nefando, usando Duarte o "papel de macho", o
que de modo algum consentía, segundo disse, cien te de que o nefando "era caso
para os queimarem". E aproveitou o ensejo para também acusar de sodomía a
Francisco Manicongo, jimbanda que vimos infamado por travestir-se nas ruas de
Salvador. Duarte mentía ao eximir-se de culpa? Dificilmente poderíamos assegu-
rar qualquer coisa em tal situa<;:áo: o que disse Duarte e m su a língua fora traduzi-
do por um portugues que bem conhecia os jimbandas da Guiné e deles náo gos-
tava ... Saberia realmente o escravo boyal recém-chegado de Angola que o Santo
Ofício portugues queimava os fanchonos? Seja como for, Duarte sempre andava
como tal Joane no tempo em que ambos serviam aCompanhia, sendo fama geral
que os jesuhas tinham vendido o segundo para evitarem nefandices no Colégio; e
mais, até os indios do lugar chamavam os dois de tibiras - sinal de que seus
hábitos sexuais eram claramente identificados a moda nativa. E náo seria impos-
sível, ainda, que Duarte tivesse andado com o próprio Manicongo, homem que
facilmente cedía a quanms negros lho requestassem ... Mas deixemos de lado as
conjecmras: temeroso de ser denunciado- 0 que viria a acorrer no dia seguinte
- , Du~rte resolveu acusar os possíveis amantes e parceiros de infortúnio, escra-
vos da Africa como ele, para escapar a fogueira do Santo Oficio.-"
Também por recearem dela~jóes, Banolomeu de Vasconcelos e AntOnio
Gomes compareceram no mesmo dia a mesa inquisitorial para confessar seus
erras e acusar os alheios. Bartolomeu era homem de 32 anos, cónego da Sé de
Salvador e amante de Violan te Carneira, a quem engravidara sete ou airo meses
ames. O romance com Violame bem podia trazer problemas para 0 cónego, náo
pdo amancebamento em si, que disso náo rratava a lnquisic;áo, mas pelo faro de
jr.JQUI.II(AO. ,\H>ItAIIl>Al>l 1 1 \OCII DAI>l ( OIONI,\I

233

mo•a ser useira em proferir as palavras da sacra na boca d


' ' . f, · ·· A • . o amado - 0 que
nosso cléngo pre e~JU om~nr. nromo Gomes, por sua vez, era escriváo da d.mara
do bispo. portugues de trmta anos, casado e morador 0 B h' M
. . a a 1a. as o que ambos
nfessaram ao VISitador, temerosos de grandes compl' ~ ~
co . ., . JCa~oes, roram aros de
corrup~áo na Juswr~ EclesJasu~a que cinco anos ames haviam perpetrado em fa-
vor de Gaspar Rodrtgues- feaor que perseguira e violentara u m escravo negro
senda por isso acusado no foro diocesano. N urna opera~áo que envolvera vário~
amigos e ex-amos de Gaspar e fora intermediada por Bartolomeu de Vasconcelos,
dez cruzados chegaram as ~áos do escriváo para subrrair os auras da jusri.¡:a e
A

queimá-los - o que Anwmo Gomes confessou ter feiro antes que 0 processo
fosse despachado pelo vigário da Vara. Eram dez cruzados urna soma elevada? Em
moedas de prara portuguesas, chegavam a cerca de 4.800 réis, quamia que nao
dava, por exemplo, para comprar um escravo, que valia no mínimo 12 a 13 mil-
réis naque la época. 38 Mas rambém náo era urna soma desprezível ... Barrolomeu e
AntOnio confessaram sua parricipas;áo no caso e pediram perdáo ao visitador por
rerem obstruído o julgamento de "táo abominável crime", senda que o cónego
aproveirou a oporrunidade para acusar de somícigo o feitor que anteriormente
livrara da Justis;a. Mas nossos antigos corruptos temeram mais que o necessário: o
visitador ouviu suas confissóes e mandou-os seguir em paz. 39 Quamo ao acusado
Gaspar Rodrigues, acabaria vírima de um longo processo, entao inquisitorial, do
qua! seria, enfim, absolvido! Somente Violante Carneira sairia chamuscada dessa
hisrória: acusada de usar palavras sagradas para "suas torpezas e luxúrias", termi-
naria condenada a ouvir sua pena na igreja e degredada quatro anos para fora da
Bahia.
Escravos, clérigos, funcionários, muitos ourros confessariam e delatariam
com medo de acusas;óes, mostrando-se subservienres e arrependidos em face do
inquisidor. Entre os praticantes da sodomia isso foi absolutamente corriqueiro,
pois, sendo vários deles useiros em trocar de amantes em curdssimo espa~o de
lempo, dificilmente poderiam assegurar-se do absoluto silencio de parceiros que,
as vezes, mal conheciam pelo no me. Mesmo que nao fossem vistos na princa do
nefando, ou dela niio fossem infamados, era-lhes impossívd garantir que algum
- rosse
rapaza 1a nao e · 1os d e perre1tas
a mesa para denunc1á- e · sodomias
. ' a exemplo do
ocorrido com o fanchono André de Freiras Lessa." E trisre drstmo era reservado
aos que, acusados de sodomia, rivessem deixado de confessar no período da gra~a
ou omitido deralhes em suas confissóes... . .
Por ourro lado nao falraram indivíduos que, ráo logo ouviam 0 monnórto
ou ass1st1am
· · a qua 1quer
' pemtenc1a
· • · pu'bl"1ca cm Salvadore Olinda, se apreS5aV11lla
2.14

ddar:u amigos e p:uenrcs com o flro d~ aliviar ~uas c~>nsciCncias e, ao mesrno


rempo, minorar as culpas de enres qu~ndos ..Assun o hzcr.~m .Manoel Álvares e
Pero Fernandes, delatores do velho Dommgos f·crnandcs por defesa da fornica\io".
0 rimeiro era gen ro, e o segundo, fllho do acusado, mas, cmbora admüissem a
p de Domingos, asseguraram que era 1ara "se m m a 1''''.a
culpa · " , "·
sunp 1esmenre", tra-
tando-se inclusive de "muito bom crisráo".'11 Assim o fez Francisca Fernandes,
esposa do marinheiro Anrónio Monreiro, abandonada havia mais de vinte anos
pelo marido. Sua irmá, Do mingas Fcrnandes, lan~ara grande carga contra 0
cunhado ao denunciá-lo, dizendo que fora já punido por bigamia no Peru e vol.
randa a viver com Francisca após faze-la vir de Portugal, tornara a deixá-la sem
dar nodcia. Passados dais dias, Francisca apressou-se a desmentir a irmá afirman-
do que, apesar de bígamo, Anrónio voltara para sua companhia e com ela vivia há.
quase cinco anos.'u E algo parecido foi a denúncia de Méscia Barbosa comra os
ex-maridos de duas amigas, a quem acusou de bígamos objetivando livrá-las de
idfntica acusa<;áo, pois ambas estavam já casadas pela segunda vez na Bahia. 41
Acusar para defender: eis o que m u iros faziam, apavorados com a lnquisi<;áo.
Misto de pavor e sentimento de culpa foram as confissóes de Ana Seixas e
seu marido, Manoel Franco, "rrabalhador de enxada e foice" na capitania de
Tamaracá. Ana deve ter chegado rremula a presen~a de Heitor Furrado para con-
fessar, desconcenada, que durame os 14 anos de casamento sempre mamivera
"cópulas naturais" com o marido, das quais resultaram inclusive tres filhos. Os
únicos deslizes, admitiu a pobre mo<;a, teriam acorrido no tempo cm que eram
recém-casados, quando Manoel por duas vezes a penetrara em lugar proibido, no
que consenrira Ana "para fazer a vontade de se u marido". Contudo- fez questáo
de frisar- , Manoel jamais derramara sfmen e m seu "vaso posterior", "cumprin~
do sempre no vaso natural" - afastando, hábil ou sinceramente, qualquer hipó-
tese de sodomía consumada. No mesmo dia da confissáo de Ana apresentou-se
Manad a confirmar a versáo da esposa e assumir a responsabilidade pelas remotas
nefandices, com a única desculpa de que, na primeira ocasiáo, estava bebado, e na
segunda, fora "instigado pela carne"." Pobre casal apavorado ... Até mesmo inti-
midades conjugais jamais vistas por ouuem podiam chegar aos ouvidos do
inquisidor, confessadas por gente táo temerosa do Santo Offcio como do inferno,
a exemplo de Ana e Manoel.
Medos variados, portante, empurravam a popula<;áo para as confissóes e
denúncias ansiosamente esperadas pelo visitador. Mas sobre todos os medos, fos-
sem quiméricos ou razoávcis, imperava um panico difuso e gcrat que, já o dissc~
mas, associava a Inquisityáo ~tortura, pauperizatyáo, infamia e morte. Disso resul~
. ~10IIAI1JJAill·~ 1· ~()CIII>AIH Clll ONIAI
J~tJU1~11) 0 •" 235

m as numerosas confissóes no período


rara,. ._
da graca sempre b
T'
lh"d
emaco1aspelo
Sanro OfiCIO como prava de su~mlssao ao poder. E a isso ligava-se o hábito de
boa parte dos confirenres aprovenarem suas idas a mesa inquisitorial para delara-
rem ourras pessoas, revelando-se auti:nricos colaboradores da lnquisi~áo. Faziam-
no em meio as confissóes, a modo de minorar suas culpas, ou por via de acusa~óes
formais, lavrando-se em separado o termo de denúncia. Com efeiro, se avaliarmos
globalmente as denúncias e as confissóes dos quatro "deliras morais e sexuais"
mais recorren tes nessa visita~áo - defesa de fornica~áo, crítica ao celibato ecle-
siástico, bigamia e sodomia - , veremos que o número de indivíduos apresenca-
dos "na gra~a" foi muito inferior ao dos acusados: 78 confirenres contra 208
denunciados. O que esrariam a confirmar esses números? Especialmente o medo
de confessar, apesar de todas as garantias dadas pelo Santo Ofício aos que se
apresentassem voluntariamente; a maioria da popula~áo parecia cultivar a vá es-
peran~a de que seus erras passariam despercebidos aos vizinhos, eximindo-se de
confessá-los de maneira espontánea. E a contribuir decisivamente para a defasa-
gem entre confirenres e acusados despontavam os "sodomitas", sem dúvida os
mais apavorados com as penas inquisiroriais. Os números confirmam-nos, ainda,
a extraordinária vigilancia que caracterizava a nascenre sociedade colonial, o senso
agudo da observa<;áo popular, as murmura~óes e o exercício de memória que
todos eram instados a fazer por exigencia do inquisidor. Exames de consciencia e
rastreamento dos próprios erras, lembran<;a de conversas amigas e faros remotos,
rudo isso se achava na base das centenas de relatos apresenrados ao visitador.
E, finalmente, o extenso número de indivíduos acusados nos vem outra vez con-
firmar a ruína das solidariedades locais, o atloramento de preconceitos e o reavivar
de rancores- condi<;áo sint qua non para o exiw do Santo Ofício e m su a lUla
contra a comunidade.
Forres inimizades reriam levado um rico senhor de engenho de Taparica,
Gaspar Pacheco, a ser alvo de denúncias de sodomia e blasfemias durante a visitac;áo
do Santo Ofrcio e antes dela. A denunciá-lo na mesa inquisitorial, reforc;ando um
processo que corria na Justi~a Eclesiástica, compareceu o lavrado~ Diogo Monte• ro
dizendo que Gaspar, seu amigo e compadre:, era dado a pragueprcontra Deus e
. . . d. ez que prc:fena ser chamado
ta 1vez a pratlcar sodomias, pms ouvua-o 1zer certa v .. 4 ~
d e "cab ráo cornud o " que de somíugo,
. .
·
G ar
°
"d d 3 entender que o era . Meseo
an
Pacheco ao
. .
v1s1tador
d
a -
d epms, venc1do o prazo da gra<;a. ap~sencou~se asp . ~
mitindo que, de fato, costumava jurar pelo corpo de Deus, suas tnpas •. ~ 30.5 e
pés, mas jamais cometera o pecado nefando. Auibuiu a calúnia 3 um tnlmlgo
. . l lh fabricara "falsamente os au-
capotal, padre Bastiiio da Luz, vigáno-gera que e
236

ros", convocando seus piares inimigos para o acusarem. no eclesiástico. Arrogante


encregou a mesa urna cerridáo de bons co~t~mes assmad~ por Fernáo Cardirn:
entáo reitor do Colégio baiano, e pediu ao VISitador que agiSse com )usti>a. Dian.
te de tamanha petulancia, Heitor Fu nado nada fez senáo lembrar ao intrépido
senhor que era grave heresia jurar pelo carpo imortal, ressuscitado e glorioso de
Cristo, porque Deus náo tinha carpo ... 46
Jnimizades, pequenas disputas, dívidas, eis algumas razóes para várias de-
núncias feítas ao visitador, que, a bem da verdade, sempre inquiría os delatores
sobre suas relac;óes com os acusados. Emboca incirasse desavenc;as na comunida-
de, a Inquisic;áo desejava acusac;óes verdadeiras e fundamentadas, ainda que "no
ouvir dizer", e náo rixas de vizinhos. Mercadores, lavradores e senhores cosruma-
vam, assim, acusar-se com alguma freqüencia, menos por motivos de fé ou moral
do que por atraso de pagamentos e coisas do genero. E nem sempre as querelas
envolvendo dívidas eram privilégio dos bem aquinhoados. Francisco Luiz, que
usava o ofíclo de sirgueiro em Salvador, teimara como sapareiro Francisco Fernandes
em que dormir com urna prostituta náo era pecado mortal, embora fosse pecado,
e como náo dirimiam a questáo, resolveram apostar urna galinha e pergumar a
religiosos sobre o assunto. Desfeira a dúvida, Francisco Luiz recusou-se a pagar o
que devia, levando o amigo a denunciá-lo ao Santo Ofício por "defesa da
fornica~áo". Por urna simples galinha, que valia menos de oitenta réis em 1590,
nosso "fornicário" acabaria abjurando de leve suspeito na fé, e pagando "dez cru-
zados para as despesas do Santo Ofício". 47
Se muiros delaravam por se verem lesados na vida material, ourros tantos o
faziam por ranear sentimental. Encomramos, aqui e ali, acusas;óes que bem nos
sugerem ciúmes de homens e mulheres abandonados e destratados por cónjuges
ou amantes. Acusa~óes de bigamia, de uso profano de palavras sagradas e até de
sodomia parecem-nos muiras vezes eivadas de mágoa e obsessáo vingativa, levan-
do os pobres acusados a situa~óes no mínimo embara~osas. A denúncia de Luiza
d'Almeida contra seu compadre Fernáo Cabra!, por ela acusado de "defender que
o incesto náo era pecado", dá-nos boa medida dessas motiva~óes, lembrando-se
que a tal "heresia" náo passara de inábil tentativa de sedu~áo." Motivada por ódio
confesso foi também a denúncia do mercader Heitor Mendes contra sua esposa
Isabel Gomes quando, ao voltar de longa viagem, achou-a casada pela segunda
vez por arranjo do sogro." E, também movida por forte desprezo pelo marido-
o ex-alfaiate Pero Dominguez - e por frustrada paixáo por ourro homem, a
jovem Maria Grega acusaria o esposo de só possul-la por detrás, jamais pelo "vaso
natural". Igual acusa~áo faria ainda sua irmá Francisca Grega, com 0 aval da
família. que detesta va o _rapaz a ponto de .remar mará-lo,a b ase d e "frechadas". Foi
elo menos, a versao de nosso hum1lde réu que
esra, P . . . • • mesmo preso e várias vezes
acusado, rermmana absolvtdo pelo visitador. so
Medos e ódios, vinganc;as e desagravos, invejas e ciúmes, eram inúmeras as
ra zóes que levava m os .indivíduos a confessarem o u delararem na · . . 'al
. mesa mqutslton .
Amedrantada pelo viSitador, provocada em suas rixas internas, a comunidade
rambém deixaria aflorar os preconceiros que vimos caracterizarem as moralidades
do trópico, preconceitos contra as mulheres solteiras e negras, conna 05 que de-
preciavam o casamento, contra os que exalravam as virtudes da luxúria, e sobreru-
do contra os sodomitas - em panicular, fanchonos, cibiras e quimbandas. Na
distante Metrópole, donde vinha a mor parte dos estigmas aqui adorados, 0 pavo
esreve a beira de revoltar-se nas ruas de Lisboa ao ver suspensa a aplicac;áo de
ac;oites em 24 sodomitas recém-condenados pela lnquisic;áo, "principalmente as
mulheres"- anotou o funcionário dos Estaos- "[queixosas} de se náo execucar
o castigo neles". '>l Os preconceitos do Reino seriam ainda os da ColOnia, e deles se
aproveitaria a lnquisic;áo para levar avante sua missáo pedagógica, volcada contra
a própria sociedade que a alimentava de réus.

iNQUISI<;:ÁO E SOCIEDADE: ESPELHO DAS HIERARQUIAS

O Edital da Fé afixado por Heitor Furtado de Mendon~a em 1591 náo


estabelecia discriminac;á.o de nenhuma espécie ao convocar o pavo para os traba-
lhos da visita~áo. Assim agia a Inquisi~áo em todos os tempos e lugares, dc:sco-
nhecendo, ao menos em princípio, as hierarquias sociais. Qualquer que fosse 0

"grau, estad o e preemmenc1a


· ' · " d os m
· d'IV id uos, to do s deveriam confessar-se .e dela-
.
. . . ... d "costumes de fié1s cns-
tar os suspe1tos de heres1a, apostasta e transgressao os d
- " , d'Issolvendo-se prov1sonamente
taos · · "lég10s
os pnv1 · e as lealdades em .fuvor
• . a
et0 ridade e obed~encoa no
nova ordem inquisitorial. Suspensos os lac;os de areto, au . .. d'
.. · · ¿ · do Santo Ofkto ou, t!o
Plano social, abría-se o caminho para o reto mtmst no . d
d d e moralidades em nome •
e ourro modo, para sua a«¡:áo desbastadora e cren«¡:as
fé e da lgreja d
· _ . . d a um esquadrinhamento e
Mas, se submetermos a popula~ao vtstta a Ofl · -
. - vomades do Santo cio nao
ttpo sociológico, veremos que todas as precau~oes e d C l' · _ for-
. l plorada a o unta
passavam de ilusáo. A popula~áo mtser~ve e supen:x
TROI'ICO Dos PECADos
238

ros, desclassificados, índios, escravos, criados- foi muiro acusada de faltas mo-
rais e sexuais, perfazendo 41% dos denunciados; em comrapartida, sornen re lS%
dos acusados penenciam J grei dos senhores de engenho, altos funcionários da
governan~a
local , 1·uízes • autoridades eclesiásticas, mercado res e fazendeiros • un·I-
dos em regra por hu;:os de parentesco. Eram esses, no en tanto, os que mais delata-
vam (48%) e confessavam na gra~a (37%), juntamente com os seto res interme-
diários de advogados, pequenos funcionários, clérigos, religiosos e trabalhadores
livres assalariados: 35% dos delatores e 40% dos confiten tes. Por remerem mais 0
Santo Ofício, por julgarem que rinham muito a perder, eramos bem-aquinhoados
que preferencialmente davam mosuas de aquiescencia e arrependimemo em face
do visitador. Já os pobres da Colónia, oprimidos no cotidiano, mal ousavam fazer
denúncias (17%) ou confissóes (20%), temerosos de que houvesse represálias vin-
das de cima ou de que a engrenagem do Santo Ofício viesse ajuntar-se aopressáo
que !hes moviam seus algozes do dia-a-dia.
Os miseráveis da Bahia e de Pernambuco foram acusados especialmente
pela prática do nefando, ulrrapassando 50% dos delatados por esse crime, mas o
foram sobretudo por suas relac;:óes sexuais com gente poderosa. O elevado índice
de nefandos pobres e subalternos da primeira visitac;:áo compunha-se, a rigor, de
numerosos criados, escravos e forros sodomizados por amos e senhores, mais que
de indivíduos precipuamente visados pelos denunciantes. Náo por acaso, os prin-
cipais grupos sociais de nefandos arralados na visita foram os servidores (20%) e
os carivos (13%), su jeitos as vontades sexuais dos que sobre eles tinham domínio.
Por outro lado, também a sodomia foi o grande crime a envolver os principais da
terca: dos 29 individuos da elite colonial que confessaram desvios morais ao
visitador, 48% o fizeram por sodomias; e, dos 32 acusados da mesma grei, 50% o
foram por idC:ncica razáo. Afina!, já o dissemos, a sodomia foi entre esses crimes o
mais denunciado e o mais confessado em toda a visitac;:áo do século XVI.
No extremo oposro das culpas, nenhum potentado colonial confessou bi-
gamias, e apenas 9% dos bígamos acusados eram gente da governan~a ou do
grande comércio. Escusavam-se os ricos de admitir segundos casamentos? Evirava
a populac;:áo de acusá-los desse crime? Deceno que náo. Nesse caso, convém mais
urna vez salientar, o jogo das confissóes e denúncias exprimia fielmente a realida-
de social: individuos de posses e slatusdificilmenre expunham os interesses envol-
vidos no casamento a semelhante transgressáo, preferindo amancebar-se se m maio-
res riscos. Já no século XVI, portanro, a bigamia era um crime popular, praticado
sobretudo por pc:quenos comercian ces, rrabalhadores livres, artc:sáos ou funcioná-
rios menores da administra~iío pública; 75% dos confiten tes e 48% dos acusados
de se casarem pela segunda vez senda vivo 0 prim · • . .
' . . ClfO COnJuge pertenc¡am as
onadas medo as da socoedade, e nada menos do que 25•A d d l . .
ca . . o os e aros por b1gam 1a
ram mannhe1ros, soldados, homens sem ofício e até escr pl . .,
e . . avos. e o v1sro, Ja nessa
época o casamenro _na 1grep esrava bem mais difundid o enrre o pavo d0 que
normalmenre se supoe.
No rocanre a cor ou a etnia dos personagens da visita, os resulrados de
nossa avalia¡¡:áo em parte confirmam o que vimos sobre a posi¡¡:á.o social. Por reme-
rem mais que os curros a devassa inquisitorial, os brancos perfizeram 89% dos
delatores e 78o/o dos confiten res em matéria moral e sexual, e possivelmenre nou-
rros domínios do monirório inquisicorial. Mas, por serem mais identificados pela
populac;ao em geral, foram eles os mais acusados (57%). Com respeiro á natura-
lidade, os originários de Ponugal eram ampla maioria entre os delatores (68%) e
alternavam com seus descendentes "mazombos" a primazia enue acusados e
confitentes. Menos visados pelos colonos, que duvidavam mesmo de sua humani·
dade, índios e negros náo chegaram, sornados, a 20o/o dos acusados, prova da
escassa aten<;áo que se lhes dava em assunros morais e sexuais, excero quando
sodomizados por brancos. É fon;:oso reconhecer, no enramo, que índios e negros
jamais cometeriam cenas infra<;:óes contidas no monirório, a exemplo das propo-
si<;óes erróneas sobre o sexo, o casamenro e o celibato, a menos que fossem criou-
los extensamente aculturados amoda popular. Na maioria dos casos, se desconhe-
ciam a no<;:áo cristá de pecado e sequer falavam porrugues, como iriam defender a
fornicac;ao o u duvidar da casridade sacerdotal?
A margem da religiosidade e da cultura colonizadora, índios e negros náo
confessaram nenhum crime moral ao visitador, e semente poucos ousaram delatar
os desvios de outrem, como fez o angola Ouarre, acusador de dois escravos nefan·
dos, o u a índia Mónica, delatora das fanchonices de Maria de Lucen a. No decurso
dos séculas XVII e XVIII, surpreenderíamos curros nativos ou africanos a expo·
rem seus amos a lnquisi<;áo, como no caso de Joaquim AntOnio, corajoso angola
que denunciou Francisco Serrao de Castro, cruel nefando do Pará, no final dos
serecentos. Mas seriam poucos, a bem da verdade, os que assumiriam atit~de t.lo
. . bé S oclco·o duvidaria, na pr:ltoca. da
pertgosa para suas vtdas. E tam m o anto 11 , .

capacidade colaboracionista de "homens nawralmenre inferiores • suspe•tos _de


acusar por motivo de ranear ou ignoráncia. Sempre que um "bo<;al" ou nanvo
. .
depunha, o visitador l d zo e cericismo, e ao final do
costumava tratoi.- o com espre .
r 0 crtdito do depoomenro, era
testemunho, quando se reunia a mesa para ava aar ¿· ,. "fal
comum discutir-se a capacidade do depoente, sr "era ou náo la 100 • se ava
d - clava "m ostras de bom enn:n-
bem o portugues", se apesar de sua cor e d egra a~ao
rROI'ICO Dos PECADos
240

dimenro". Em simonía com os valores do colonialismo, o ~anto Ofício tornava


letra morra a suspensao dos privilégios apregoada no Edtto da Fé. Longe de
suspende-los, espelhava-os fielmente, recebendo a colaborac;ao das frac;óes domi-
nantes da sociedade e excluindo os deserdados e explorados, que mais apareciarn
nos processos como vítimas ou réus.
Em colOnia de poucas mulheres brancas, a visíras;áo quinhenrista só
poderia se concentrar na populac;áo masculina: 83% dos acusados, 8!% dos
confiten tes e 77% dos delatores. Quanto a participac;áo das mulheres, já bem
oprimidas no plano doméstico, foram pouco acusadas (18%) e confessaram
em pequena escala (19%). No en tanto, levando-se e m conta su a escassez nu-
mérica, denunciaram bastante (23%), especialmente os homens que as havi-
am hostilizado no passado. Náo resta dúvida de que também para elas o
Santo Ofício era perigoso e, dependendo do quanto pecassem, podia levá-las
a graves penitC:ncias; mas, paradoxalmente, a lnquisic¡:áo náo deixou de ajudá-
las, em diversas siruas;óes, contra a opressáo misógina que lhes impunham os
lusitanos e os brasileiros d'além-mar.
Com relafláO ao estado civil de nossos personagens, verificamos um exato
equilibrio entre casados e solteiros acusados de crimes morais (43%), embora
alguns denunciados (17%) o tenham sido justamente por fraudarem o sacramen-
to matrimonial. Mas entre os confirentes e os denunciantes sempre predomina-
raro os casados, respectivamente 53 e 57%- o que, longe de sugerir sua maior
adequafláO amoral oficial, indica-nos mais urna va. que as pessoas mais esrabelecidas
na sociedade eram as melhores colaboradoras da lnquisi.¡áo.
a
E, por fim, os deliras morais pareciam ser, primeira vista, um assunto de
cristáos-velhos: 60% dos acusados, 87% dos confitentes e 91 o/o dos delatores.
Acaso náo pecavam os cristáos-novos, superados até pelos neófitos entre os acusa-
dos de crimes morais ou sexuais? Curra deve ser a reposta: possivelmente, senda
os cristios-novos um quase sinónimo de judaizantes, e alvos predileros da
InquisifláO, náo faltariam atitudes "criptojudaicas" para incriminá-los ou levá-los
a confessar na mesa de Heitor Furrado. E, por ourro lado, se apareciam pouco
a
como delatores desses crimes, era porque certamenre evitavam expor-se visitafláO
por questóes de somenos importancia - ao menos para eles enquanto grupo.
Suspeitos de heresia por sua origem judaica, mais que por supostas conduras
heréticas, os cristáos-novos pareciam fugir dos contaros com 0 visitador, escosan-
do-se de incriminar os transgressores da moral, ainda que 0 quisessem fazer. Afi-
na!, era-lhes difícil acusar espontaneamente na Inquisi<;áo, sabedores do caráter
anti-semita que animava o Santo Ofkio em todo o mundo ib~rico.
]~'oJ.t:iSJ<,:AU •.\tlliZAI [[)A[}~~~ ~Ut IH>AIH. CUIONIAI
241

Desse modo, numa visáo de conjunto eram as d .


. ' regras a soc1edade -
·sro de valores metropolaanos comas hierarquias e as · A • d .
mt . . . . . extgencJas a colomzac;áo
_que presJdiam o SlniStro Jogo de confissóes e denúncias exigidas pelo visitador
Ao conrrário do que rezava o Ed.i~~· o grau, o estado e a preeminencia dos indiví~
duos rornavam-se elememos deciSivos nos aros de acusar e confessar. 0 delawr
dpico era o branco portugues bem posicionado na sociedade, homem casado e
crisráo-velho, que muito tinha a perder se virasse réu do Santo Ofício _ perfil
próximo ao do confitente. As mulheres compareciam pouco, ao menos na visita
colonial do século XVI, mas náo hesitavam em milizar o Santo Ofício como
instrumento de desagravos pessoais contra homens hostis ou indesejáveis. Quan-
ro ao perfil dos denunciados, deceno mais heterogeneo, desracavam-se 0 homem
simples, o colono pobre, o trabalhador manual e o servil, portugues, mazombo, e
até mesti<;o- alvos privilegiados pelas acusa<;óes de 1591 a 1595. A rivalizar com
eles sornen te os escravos e desclassificados, gente que, além de violentada no cocí-
diana, foi ainda indiciada pelo Santo Ofício como inimiga da lgreja.
A rarefa aculturadora da lnquisit;:áo náo pOde nem quis, a rigor, isnorar as
regras básicas da estratificac;:áo social. Sua atuat;:áo por ceno alrerava o fluir do
cotidiano, disseminando o medo, rompendo solidariedades, ativando inimizades
e despertando preconceiros, sem o que tornar-se-ia impotente. Sujeitava asocie-
dade a seu domínio, mas náo era capaz de dissolver o tecido social, verricalizando
em seu único proveito o sentido de obediencia. Na ColOnia, como na Metrópole,
agia a Inquisi<;áo ao lado dos senhores e dos potentados, cruzando-se os poderes,
fundindo-se os privilégios. Vulnerável as hierarquias, a lnquisi<;áo seria também
penetrada por vasta gama de preconceiros gerados na sociedade e na cultura popu-
lar. O rastreamento das heresias ficaria, em múltiplos aspectos, limitado e cercea-
do de anremáo.
NoTAS

l. Siqucira, SOnia. A ¡,1q1,;1¡ríio porwgumt t a socúdadt colonial. Sáo Paulo, Ática,


1978. p. 135-139.
2. Saraiva. A. José. Jnquisiráo t cristíios-novos. 5. ed. Lisboa, Estampa/lmprensa Universilá-
ria, 1985, p. 101-112.
3. Mortira, AntOnio J. e Mendom;a, José L. D. de. História dos principais actos eproetdimrn-
tos J¡z fnquisiráo em Portugal Lisboa, 1m prensa Nacional/Casa da Moeda, p. 142.
4. Siqucira, SOnia. O p. cit., p. 145. nota 3 e p. 150 (comissáo passada ao hispo pelo cardeal
D. Hcnrique- rei e inquisidor-geral de Ponugal). Delcga~fio idCmica ocorreu na Amé-
rica e.spanhola ames da instalafiáO dos uibunais. V. Maricl de lbáñez, Yolanda. El Tribu-
nal dt la Inquisición tn Mixico (siglo XVI). México, U, 1979, p. 33 e segs.
5. Salvador, J.G. Cristáos-novos, jesuítm e lnquisiriío. Sao Paulo, Pioneira/Edusp, 1969, p. 85.
6. Siqueira, S. Op. ci1., p. 150.
7. Bcthcncoun, Francisco. lnquisi~áo e conuole social. Lisboa, 1986, cxcmplar
mimcografado, p. 2.
8. Siqueira, S. Op. cir., p. 149.
9. Novinsky, Anita. Cristáos-novos na Bahio. Sao Paulo, Perspectiva, 1972. p. ll O.
10. Siqueira, S. Op. ci!., p 184-185.
11. Be1hencoun, F. Op. ei1., p. 5.
12. Garcia, Rodolfo. lntrodu~o. In Abrcu, J. Capistrano de. (org.) Prim~ira visitaráo do
Santo Oficia .. Dtnunciaróts dt Ptrnambuco (/593-1595). Sao Paulo, Eduardo Prado,
1929, p. VIl. Tb. Siqueira, S. Op. ci1., p. 199.
13. Monitório referido cm Garcia, R. Op. cit., p. XX e segs. Exclusáo da bestialidade e da
molfeie no Regimenro do San1o Oficio de Ponugal em 1613: In Silva, José Jusrino de
Andradc: e (org.). Coltríio cronoMgica da ltgislariío portugutsa. Lisboa, 1855. Livro 1,
drulo Y, par.lg. 3.
14. Be~hencoun, F. Op. cir., p. 12.
15. Salvador, J.G. Op. ci1., p. 96 e p. 105-107. Foram confiadas a dois comissários do Sanlo
Oficio: An11lnio Rosado (Pernambuco) e Luiz Pires da Yeiga (Sul).
16. Novinsky, A. Op. ci1., p. 129 e segs.
17. O livr~ dcssa visita~o foi dcscobcno por acaso pelo historiador José R. do Amaral Lapa,
pesquisando no ANTF em 1963. Ver l.ivro tÚ visitaráo Jo Stmto Oficio Ja Jnquilirio liD
l!Jtatlo do Grtlo-l'ard ( 1763-1769). l'euópulis, Yozc:s, 1978. O au!or nos esclarece muiro
sobre o cpisódio no caphulo inrrodutório, "A visita oculta", p. 19-38. Disscmo-la
cxrcmpor.t.nca por rrCs razócs búiw: t) a lnquisi4;áo portuguesa havia muiro abandonara
cuc expediente cm todos os domfnioslusitam,. quando cnviou 0 visitador ao Par'¡ 2) a
[t<QUfSIC,:,\0, MllliAIIIJAIH·~ 1·. ~IICII·IIAIH. Clll llNii\1

243

máquin~ _inquisi~orial era, enrio;, u_ m~ pálida lembran~a da poderosa instituí á


até 0 in reto do scculo XVIII- drluru-se" no Estado ~ d d ~ 0 que fora
. . d' · r ~ re orma 0 o marques de Pamba]
eficoulrmrta rssrmacmsuasiUnc;:oes;3)arazáodescrdoS Of'. . . ..
. ~ . lh amo rcro, tsto e, a dtstm~áo
entre ~rJS{~os-~cl .os e novas, e~tava em vías _d_e d~saparccer _ 0 que ocorreria em 1773 _
Tambcm F. Bct.lC;:ncoun consrdcrou essa vrsua completameme defasada da ematé ia
surgida no conuncnte desde a Restaurac;:áo." Op. cit., p. 6. g
!8. Bethencoun, F. Op. cir., p. 7.
!9. foi o que sugcriu José Pedro_ ~e ~Mato~ ~aiva, analisando as visitas pastarais em Ponugal nos
séculas XVII e XVIII: lnqutsrc;:ao e vrsuas pasmrais. Dais mecanismos complementares de
controle social. Comunicac;:áo aprcscnrada ao I Congresso Luso-Brasíleirosobre a Inquisi~.
Lis_boa, 1987. C~nv~m le~brar q~~ o próprio instrumento das visitas diocesanas nas paró-
quras era um anugo mecamsmo uultzado pela Igreja desde a Alta Idade Média, coma cober-
tura dos poderes civis. Regulamenradas nas capitulares de 742,769 e 813, e pelo Sínodo de
Aries em plena época carolíngia, seriam aperfeic;:oadas pela lnquisi~áo dominicana e, no
século XVI, pelo Concílio de Tremo. V. Londoño, F. Torres. Visita pastoral aSáo Luis de Vila
Maria del Paraguay en 1765. Sáo Paulo, s.d., cxemplar mimeografado, p. 4-5.
20. Siqueira, S. Op. cir, p. 160-168 e p. 172-181. Novinsky, A. A lgreja no Brasil eolonial.
Agentes da Inquisic;:áo. Anaú do Museu Paulúta. Tomo XXXIII, 1984, p. 26-34. O mes·
mo nos informa Danicla Huono Calaínho com base em extenso levamamenw de
familiaruras expedidas para o Brasil- projero "Inquisic;:áo e sociedade: os familiares do
Santo Ofício no Brasil Colonial" (mestrado/UFRJ).
21. Boschi, Caio César. A5 visitas diocesanas e a Inquisic;:áo na ColOnia. Comunica~o apn::·
sentada ao l Congresso Luso·Brasileiro sobre a lnquisi~áo. Lisboa, 1987. p. 37.
22. Constituifóes Primúras do Arubispado da Bahia ( 1707). Sao Paulo, 1853. Livro V. título
XXXIX, relativo as "Devassas": previa "devassas gerais".: feitas por ord.em do bispo "ainda
que nao haja infámia o u indício contra pessoa alguma .
23. Idem, rírulo XVI, parág. 959 (sodomia) e parág. 341 do "Regimcnro do Audirório Ecle-
siástico" a p. 75 das Constituic;:óes (bigamia).
24. Boschi, C.C. Op. cir., p. 19 e segs.
25. Assim determinou o Concílio de Trento, sec..áo XXIV. cap. 111. apud Londoño. F.T.
Visita panoral..., p. 5.
26. Figueiredo, Lucia no R. de A. O avesso da mcmória ... Relatório final de pesquisa ap~n­
tado a Funda ..ao Carlos Chagas. Sáo Paulo, exemplar mimeografado. l981, P· SO.
.. les Sáo Paulo. exemplar
27. Londoñ.o, F.T. Iglesia y transgresión. Las vuuas pastora ·
mimeografado, 1982, p. 14. . oioCalmon.com&sdrio
28. Mott, L. R. B. U m no me ... em no me do Sanro Ofle<o: 0 ebncgo Jrafad d 17
da lnquisi~áo na Oahia setecemista. Salvador. exemplar mtmeos; 0 ' s.. ·• p. .
S Oficio no Sras• l. In op. en .•
29. Lapa, ).R. do A. A~ribula~io de um servidor do '" 10
p. 40-61. .
.,
3O. Rafael Carrasco afirma que a InqUI.n~io c.- men(e conadcnte da importan~ •1u·
era perR"It&
!RO PICO Dos PECADos
244

da que rcpresentava a conflssáo e punia sempre com maior ri~~r.~s nefandos que irnpe-
diam seus parceiros de confessarem na sacramemal. V. lnquumo1z y repmión stxu,J tn
l{r/mci.. Barcelona, Lacrtes Ediciones, 1986, p. 17.
31 . Dcvo esta informa~áo a Lana Lage da Gama Lima, que obs~rvou a recorrc!ncia daqudas
atitudes nos processos de solicita.,-áo incluídos em sua pesqu1sa sobre o clero colonial.
32 _ Sobre 0 assunto, V. Azcvcdo, Joáo Lúcio de. Os jesuícas e a lnquisic¡áo em conflito no
século XVII. Lisboa, Boletim de Segunda Classe da Academia de Sciencias dt Lisboa. vol.
10. p. 1-9.
33. Salvador, J.G. Op. cit., p. 149-150.
34. Novinsky, A. Cristiios-noi/OI.. ., p. 130.
35. Bcnnassar, Banolomé. Modelos de la memalidad inquisirorial: mé[Odos de su pedagogia
del miedo. In Alcalá, Ángel et alii. Inquisición Espanola y mmtalidad inquisitorial Barce-
lona, Asid, 1984, p. 174-185.
36. Nomc pelo qual ficou conhccido o palácio dos Estaos, ondc funcionava o tribunallisboe-
u, situado na p~a do Rocio. Atualmeme é o Teatro D. Maria l.
37. Primtirtt visitAriio... Denuneiaróa da Babia (/591·1593). Siio Paulo, Eduardo Prado,
1925, p. 406-408; 420-421.
38. Para os p~os de cscravos cm 1572 e moedas ver Manoso, Káda. Str tscravo no Brasil
Sio Paulo, Brasiliense, p. 90; 252.
39. O wo completo acha-se em ANTI/IL., processo 11061.
40. O sapatciro Lcssa confcssaria cm Pernambuco (período da gra~a, a 23 de novcmbro de
1593) várias rela~s nefandas. Continuaria amante-las, porém, e a 27 de maio de 1594
tornaría a ser acusado por um rapaz a qucm sodomizara no dia anterior- o que lhe
rcndcu um longo proccsso e grave condcna~áo. ANTI/IL., proccsso 8473.
41. Denunci•róts da Pmramburo, p. 73-74; 107-108.
42. Idem, p. 52·53; 70·72.
43. Dtnunci•róts da s.h;., p. 453-455.
44. l'rimril'll visitario... ronfiuóes de Pernamburo (/594-1595). Recife, Universidade Federal
de Pernambuco, 1970, p. 99-102.
45. Dmun<i•róts da Bahill, p. 238.
46. l'rimtil'tl visit•riio. .. Confiuóts da Babia (/591-1593). Rio de Janeiro, F. Briguet, 1935,
p. 109-110.
47. ANIT/IL., proccuo 17807.
48. Dmunei•róts da Bah;., p. 365-366.
49. Idem, p. 309-310.
50. ANIT/IL, prOCCIIO 2525.
51. Idem, livro 7 (lisra de au1o.s-de-fé cclebndos em Lisboa) _ informa~óes sobre o auto de
27 de maio de 1645.
cAPITULO 8

Do PECADO AHERESIA

A parcialidadt do Tribunal do Santo Oficio i


dt alguma forma imtitucional
Amónio José Saraiva

No vasto domínio das rransgressóes puníveis pelas jusci¡;as do Antigo Regime, a


heresia era de faw sui generis, exigindo urna prática judiciária em alguns pomos
distinta da habitualmente empregada em ourros crimes. Deliro religioso, ainda
que referido a comportamenros e náo a crenc;:as, a heresia em muito se distinguía
do crime comum perpetrado contra pessoas ou bens, ou mesmo do crime de lesa-
majestade, ofensivo ao rei e ao Estado. Homicídios e roubos, estupros e agi<SSÓ<S
físicas, traic;óes e larrocínios, eis alguns acos criminosos perfeitamente idenrificáveis
pela existencia de vírimas o u de vesdgios mareriais,levando os poderes competemes a
simplesmente apurarem as responsabilidades. Presos os suspeitos, ou culpados no<Ó-
rios, os magistrados limiravam-se a extrair a confissáo dos réus, náo raro por mcio de
torturas, impondo-lhes castigos teoricamente proporcionais aos dc:liros. E, como
hem nos lembra Foucault, a puni~áo de grandes criminosos, cujos aros implica-
vam a pena de morte, era sempre arroz, pública, exemplar, exprcssiva d~ "vinga.n-
~a do rei" e desprovida de claro sentido correcional.' A enfase do casngo recala,
por cerro, na figura do criminoso, dilacerado como cxemplo do que mcr«lam
sofrer os transgressores da lei; mas o ato de julgar incidia unicamentc sobre. os
crimes, levando-se em conta as circunst:incias ate-nuames ou agravames do dchto.
Tratando-se de heresias, pelo contrário, ráo ou mais importante ~ue os aros
criminosos c:ra a conscléncia do uansgrcssor ao comc:tt..los. Mat~ria-prlm& eucn-
TH()I'ICO nos PECADos
246

cial dos inquisidores, os aws náo passavam, a rigor, de indícios, pistas de que 0
indivíduo poderia "sentir mal da fé católica'. Assim como o "guardar 0 sábado",
por exemplo, náo fazia do suspeiro um judaizante consumado, o defender a
fornicac;áo, 0 cometer um ato sodomítico, o proferir uma "orac;áo diabólica" náo
conveniam os responsiveis em hereges convicws, embora fossem gestos altamen-
te suspeitos de erro consciente. Aos inquisidores, juízes de fé, sempre cabia inqui-
rir sobre as intenc;óes do réu, seu pensar e seu sentir; adiferenc;a do delito comum,
a heresia já implicava o julgamento simultaneo e articulado do crime e do próprio
indivíduo criminoso. Crime gravíssimo, a heresia so mente se construía- e náo
apenas se provava- na mesa da lnquisi~á.o, haja vista a extraordinária importan-
cia assumida pela consciencia do réu na forma¡¡áo da culpa. O Santo Ofício limi-
tava-se, com rela11áo aos atas, a recolher indícios, fragmentos mais o u menos con-
sistentes de inten11áo herética, com base na suspei11áo apriorística que lan11ava
sobre algumas condutas. Em meio a inquiri11á.o do acusado, aí sim, tratava de
averiguá-las em profundidade, confrontá-las com a vida do réu, remontá-las aluz
dos critérios inquisitoriais e construir, se possível, a substancia da heresia. Tratava-
se ainda de urna pesquisa arcaica, bem ao estilo cristá.o, voltada para a decifra11á.o
das vontades que levavam o indivíduo a perpetrar tal ou qual ato; mas já se esbo-
\ava na mesa do Santo Ofício o esquadrinhamento do próprio infrator, seu modo
de pensar, sua vida, sua natureza e seu passado. 1
Por outro lado, deslocando-se o problema para a esfera dos desvios
morais, as atitudes assimiladas as
heresias afastavam-se tanto dos pecados
quanto dos crimes afetos aJusti\a Eclesiástica, conforme vimos e m capítulo
anterior, apesar de pertencerem todos ao vasto campo de trangressóes religio-
sas. Mais do que arriscar a própria alma, e qui11á as alhcias, como no caso dos
pecadores; mais do que perturbar a ordem familiar da cristandade, a exemplo
dos raptores ou adúlteros, os "hereges da moral" amea¡¡avam a pureza da fé e
a pr6pria lgreja, ;ustificando-se por isso a competencia inquisitorial. Cerros
atos, a bem da verdade, eram já suspeitos de semelhante ofensa, mas depen-
dendo das circunstancias e intenc;óes do culpado se poderiam caracterizar ou
náo seus nac;os hereticais. O rasueamento das inten\Óes, comum a confesso-
res sacramentais e inquisidores, assumia portanto sentidos diferentes nos dais
casos: ~~ confessor interessava decifrar a consciencia do penitente a fim de
reconctllá-lo com Deus, reeducá-lo, salvar-lhe a alma; para 0 inquisidor, no
entanto, a pesquisa das intenc;óes era parte de urna investiga\áo sobre a vida
e a pessoa do criminoso, investigac;áo capaz de desmascará-lo como ousado
dissidente da lgreja e de extirp:l-lo da sociedade. Se 0 pecado resulta va, antes
247

de rudo • da falta de
.
doutrina que tornava 0 cristá
. .
1 , l
o vu nerave ao demónio a
l1eresia era u m crnne especud, del no dc fé apasto a v d d . .
er a etra re 1tgtao.
'P '

.
Embora se onentassem segundo critérios gerais acle d · · l .
. , . , . . . . . • qua os a smgu andade
de crunes hereucos, as praucas da Justu;:a mqutstcorial na 0 f¡ h •
" . . , . oram omogeneas.
Via de regra, os ~n.mes morats ~nseJavam processos rnais curros que 05 deliras
marcadamen_r~ rel~gtosos, e~n. paruc~lar o judaísmo; tambérn 05 processos despa-
chados na~ vtsH~c;:oes col.omats tendtam a ser sumários, comparando-se aos julga-
dos nos rnbunats do Remo; e, finalmente, amando duranre quase rres séculas, a
Inquisic;:áo foi mais ou menos rigorosa em relac;:áo a vários crimes, conforme sua
con juntura particular e o contexto geral da história ibérica e européia nos rempos
modernos.
A exaustiva análise que fizemos dos processos lisboetas entre os sécu-
las XVII e XVIII, ainda que concentrada nos desviantes da moral, permite-nos
generalizar sobre os passos do processo inquisirorial no tribunal d(: Lisboa. Pro-
longando-se por vários meses ou até anos, os autos se abriam com documentos
preliminares relativos as primeiras denúncias, ou com a apresenta~Jáo voluntária
dos acusados feita ao visitador eclesiástico- caso exclusivo das dela~Jóes - , aos
comissários do Santo Ofício e as demais autoridades da lgreja. Seguiam-se as
diligéncias executadas para averigua~Jáo das culpas, as investiga¡yóes sobre a opor-
tunidade de enviar o suspeito ao tribunal, a correspondéncia entre comissários e
inquisidores de Lisboa e a ordem de prisáo encaminhada a familiares do Santo
Ofício na ColOnia. Salvo se rivesse confessado esponraneamente, o suspeiro quase
nunca sabia que se lhe movia urna devassa secreta nessa fase do processo, aré que
lhe viesse um familiar da Inquisi~áo para, "em nome do Santo Ofício", levá-lo
preso e embarcá-lo na primeira nau para o Reino, após seqüestrar-lhe os b(:ns
(casos de judaísmo, sodomia e outros). ..
Feiro o inventário dos bens nos casos pertinentes, iniciava-se a fase decasava
do processo. O primeiro grande documento era a chamada confis.ráo,_lon~."ar_ra­
. e · . 1 -
uva que raz1a o réu de sua v1da em re a~Jao ao suposto en
·me de foro mquiSitoroal.
, á tos dos Estaos. Era praxe.
as vezes no mesmo dia em que adentrara os e rcc:res secre . . _ 1.
.á 1 ·nquos1dor mas rao logo a 1
a
al1 s, evar o réu mesa para iniciar o contara com 0 1
.
' d
. mado a acusar-se o que
e h egava sugeria-se-lhe que viera por vontad e prÓproa. am ¡;,
teoricamente náo sabia: "Tomava muito bom consdho de querer con ss~r suas
1 " ·. . . , . h · ~las todas em memóna para
cu pas , d1z1a o mquiSidor, e lhe convm a mutto t ni de" ca alivio
deias fazer uma inteira e verdadeira confissáo, declarando toda 1 "" 1 . pa d
d e sua consciencia e bom despacho de sua causa. 10 timidado e e~enr< .
o s<u
va
erro, emboca se lhe náo declarassem os motivos da acusa~io e da proslo, p.-
248
TROPICO no~ PECADos

0 réu a discorrer sobre suas culpas, cuidando de minorá-las aqui e ali ou de negá-
las na vá cspcram;:a de com isso livrar-se do casngo. Ao langa dessa narrativa, os
componentes da mesa pouco imervinham, deixando que o réu falasse "a venta-
de", exceto nos casos de teimosos negativos. Ao fim do relato, se lhe admoestavam
ara que mrnasse a refletir no cárcere, reexaminasse sua consciencia e completasse
~ponunamenre a confissáo exigida. Os inquisidores sempre diziam isso, fosse 0
réu medroso e confesso, fosse omisso ou negacivo; era um procedimemo habitual,
desrinado no mínimo a minar a confianc;a do acusado, intimidá-lo e dar-lhe a
impressáo de que nada podia escapar aos ouvidos do inquisidor.
Passados alguns dias, os inquisidores requisiravam o réu para a sessáo de
gtnlalogia. Deixavam de lado as acusac;:óes e argüíam sobre o lugar de nascimenro,
a idade, o ofício e demais informac;:óes sobre os país, avós e rodas os parentes de
que se lembrava o acusado, especialmente se haviam sido out rora penitenciados
pela lnquisic;:áo. Argüic;:áo possivelmente montada para a devassa dos cristáos-
novos e de seus antecedentes, o inquérito genealógico acabaría vulgarizado para
todos os réus, recompondo-se a história do indivíduo em linhas gerais, sempre a
cata de algum fato que lhe pudesse incriminar no passado ou na vida dos paren-
tes. Para melhor averiguar a consciencia do réu, faziam os inquisidores um breve
exame de doutrina cristá, limitado a requisitar o Pai-Nosso, a Ave·Maria e, por
vezes, os mandamentos de Deus e da Igreja- coisa que m u iros náo sabiam dizer.
Afina!, se o queriam acusar de heresia, de ofensa consciente averdade do catolicis-
mo, era preciso investigar sobre o quanro de doutrina conhecia o infeliz.
A confissáo e: a gc:nc:alogia c:ram, como vimos, urna espécie de apresenta¡;áo
do acusado diame da mesa, quase um monólogo do réu sob os olhares austeros do
inquisidor. O cruzamento das falas e: a imbrica¡;áo dos discursos viriam nos passos
seguintes, e prolongavam-se por muito rempo, embora 0 despacho de Criminosos
11

morais" náo ulrrapassasse cm regra um a dais anos contados após a prisáo.


O confronto se iniciava com o chamada exame in gtntrt, que, como sugere o no me,
consistía numa argüi¡;áo genérica sobre preceitos e doutrina supostamente contraria-
dos pelo r~u. mc:smo que ene náo tivesse admitido culpas na citada "confissáo". Tra-
tava-se de um roteiro preestabdecido de pergumas adaptadas 11s culpas: se sabia o réu
que o casamento era indissolúvel; se sabia que a fornica¡;áo era pecado¡ se sabia que a
sodomía era abominável- eis algumas questóes fe itas aos acusados cm tom solc:ne e
formal. E, náo raro, Jobrerudo cm casos de réus negativos que sabiam os prc:cei-
tos mas rc:cusavam as acuJac¡:Oes, os inquisidores enverc:davam j:i por particulari-
dad., do crime, faJando mais que os acusados. Após 0 in genrrr, procediam ao
interrogarório in sptcit, ~~ vezes desdobrado cm v;irias sessóe 1 e vol rada para o
249

quescionamenro
.
do crime em panicular, suas circunsrincias e
. , . . .
r ,
seus ratos especifi-
cas. Assu~ reconsrn_wam os mqu~s1dores a hisrória dos réus, faziam aflorar sua
consciéncJa e demol1am-na
. gradauvamenre ' ensinando-lhes a verd ad e e o b ngan-
.
do-os a vergar-se d1anre do poder, no mais das vezes com hito.
Por_ mais que o ré_u admitisse suas culpas, observamos ern quase todos 05
processos ¡ulgados em Ltsboa- fossem de reináis ou de moradores da Colonia
_ a lavratura do Libelo acusatório, sinal de que os inquisidores julgavam
insarisfarória a confissá.o por mais ampla que a fizesse o "suspeiro". Redigidos pelo
promowr com base em modelos correspondentes ao deliro, os libelos exigiam
como de hábiw a condenarráo as
piares penas do Direito, nQ[adamenre se 0 réu
reimasse iquela almra do processo em negar as acusarróes da mesa. E, nesses casos,
bem como nos réus diminutos que omitiam fatos sabidos pela lnquisi¡¡:áo, o pro-
motor anexa va a prava de justÍfa: "e que senda o Réu cristáo batizado e abrigado
a guardar os preceitos da Santa Fé Católica, o fez pelo contrário (... )"- eis como
se iniciava a derradeira acusac;áo, incluindo extensa lista de denúncias específicas
sem nomear o denunciante, o lugar do crime, os cúmplices, coisa alguma. Rol
impreciso e genérico, a prova de Justic;a era mais urna pressáo comra o réu a modo
de arrancar-lhe a confissáo; caso se lha resistisse, recebia um procurador indicado
pela mesa a fim de elaborar suas contraditas, o u seja, refutar denúncias e acusado-
res cujos nomes lhe náo revelavam os inquisidores, nem ao advogado. Náo lhe
restava saída, porranto, além de fazer novo exerdcio de memória, lembrar-se de
seus inimigos, imaginar possíveis acusa¡¡:óes contra o mais vasto elenco de pessoas
para, com isso, invalidar as "provas" ou, no mínimo, retardar o despacho final.
Ultrapassada essa fase, recebidas ou náo as contraditas do réu, feitas as
diligencias necessárias, a mesa inquisitorial se reunía e discutía a senten¡¡:a a execu-
tar, emitindo seu parecer quanto a pena, induindo as discordáncias entre
inquisidores e depurados. Apreciava-o o Conselho Geral, que geralmente optava
pelo castigo intermediário entre o mais e o menos rigoroso dos constantes ~o
parecer, lavrando-se a derradeira senten¡¡:a. Das primeiras denúncias acondenac;.ao
no auto público o u na sala do tribunaL assim transcorria a saga dos réus do Santo
O o¡ · · . . 1· b Vá · en~t:dos discursos e cons-
IICIO na amensa maaona dos autos as aetas. nos ' d
ciencias desfilavam na mesa inquisitorial entre as pressóes do poder e as ve~es .0
h omem comum, até que, como num passe d e m ágaca, · for¡'ava urna só h1Stóna
se
. · 'd
e urna só verd acle, urdidas tanto pe1o mqulSI orco
mo nt>lo réu acuado.
r-- . Em
Mas a processualfstica inquisitorial merece ainda alguns romentáraos. .
. .
pnmearo lugar, os processos despachados nas 0 mas.
e
16 . ¡'á o dissemos. eram maiS
d ·
simples que o descriro, e m se tratando de visira~6es especiais com praz.os eterma-
2\0 TR()l'ICO oo~ PECADos

nados e enorme volume de trabalho. Recebendo confissóes e denúncias, e julgan.


do procedente submeter 0 acusado a processo na própria Col~nia, os visitadores
mandavam chamar 0 réu, prendiam-no ls vezes, e o submcnam a duas ou trb
argüi¡;óes, incluindo 05 exames genealógico e de douuina; se fossc negativo ou
diminuto, era ameac;ado com o famoso libelo - ameac;:a rarameme cumprida -,
seguindo-se 0 parecer e a sentenc;a final. Assim agiu Heiror Forrado no século
XVI, julgando em primeira e única insr3.ncia diversos réus que escapavam asua
jurisdi~áo; assim agiu Geraldo José de Abranches na visita do Gráo-Pará, embora
só renha despachado culpas menores, enviando os casos mais graves para Ponu-
gal. Comparados aos calhamac;os de Lisboa, tais processos eram em maioria su-
mários, mal passando dos dez fólios, exceto em casos muiro singulares. Estariam
esses amos breves e toscos a comprovar desleixo da atua<;:áo inquisitorial na ColO-
nia? Náo necessariamente, a nosso ver, senda possível que o mesmo procedimemo
caracterizasse as múhiplas visita<;:óes do Reino ao longo dos quinhentos. Náo
esque<;:amos, afinal, que as visita<;:óes eram urna espécie de Justi<;:a itinerante, mais
informal e agilizada em sua atua<;:áo que o solene Palácio dos Estaos.
Em segundo lugar, tamo nas visitas como nos processos julgados em Lis-
boa, rarameme encontramos o emprego da tonura em réus acusados de desvíos
morais. Fornicários, detratores do celibato eclesiástico, bígamos, nenhum deles
sofreu tormentos, e mesmo os sodomitas negativos dificilmente eram levados ao
a
potro e polé- únicos instrumentos de tortura utilizados pela lnquisi<;:áo ponu-
guesa. Privilégio de que gozavam os réus coloniais? Certamente que n5.o, pois
m u iros cristáos-novos residentes no Brasil, poucos "feiticeiros" 3 e raros somírigos
sofreram rormenros em Lisboa. Mas, no conjunto, também no Reino a maioria
dos "hereges morais" náo sofría ronuras, sugerindo-nos um quadro de relativo
desapego inquisitorial por esse método de interrogatório, ao menos nesses casos.
A semelhan~a de Espanha, parece que também em Portugal "se utilizo u a tortura
quase exclusivamente em casos de suspeitos de judaizar ou de pertencer as seiras
de Maomé o u Lutero" 4 , isto é, e m casos de religiáo.
Em terceiro lugar, veremos que o papel dos procuradores_ os advogados
dos presos- foi por vezes mais importame que o suposto na "legenda negri' da
Inquisi<;:áo. Eram decerto funcionários do tribunal, semente habilitados se natu-
rais do Reino, cristáos-velhos, limpos de "sangue infecto" e de infamias morais, e
deviam a inda ser pessoas de "letras, prudencia, e confianc;a, graduadas e m canon es
o u Leis" e, de preferencia, eclesiásticas.~ Sua atuac;áo na defesa dos acusados era
cm rudo dificultada pelas regras do segredo que noneavam 0 processo _ ao qual
náo rinham acesso -,mas tais homens náo foram apenas gendarmes da lnquisic;áo,
251

nem se limiravam a exortar o réu a confessar, alegando que náo lhe resrava auno
remédio. Ao menos no caso de sodomitas - emboca ralvez náo em crimes de
judaísm~ - , s~rpreendemos ~otáveis defesas de advogados baseadas unicameme
na ciénc~a que tmham do funcwnamento do tribunal e dos cr1·1e· · d ¡ .. _
nos a nquas1¡;ao
para formar as culpas.
~inal~~nte, é preciso dizer que, na prárica, o célebre segredo inquisitorial
era muHo ltmnado em se tratando de crimes morais. É cerro que nossos réus
jamais viam os autos e desconheciam os denuncianres, a exemplo de rodas 05
acusados do Santo Ofício, mas sabiam perfeitameme do que eram infamados ao
chegarem na mesa inquisitorial. O mesmo náo devia acorrer, admitamo-lo, nos
casos de muitos cristáos-novos de terceira ou quarta gera'j-áo já "integrados" ao
catolicismo, salvo por sua origem judaica, que, por discrimina¡;áo racista- e náo
por aposrasia - , se viam subitamente presos e encarcerados como judaizantes.
Náo é de admirar que, nesses casos, desconhecessem o próprio crime ... Mas muí-
ro distinta era a situa¡;áo dos desviantes da moral; a imagem kafkiana do Santo
Ofício, onde réus perplexos eram acusados náo sabiam de qué, em rudo colide
comas centenas de processos que examinamos em Lisboa. Sabiam-no muito bem
e, mais do que isso, conheciam meios de livrar-se do pior, embora ignorassem por
vezes as sutilezas que os inquisidores desejavam ouvir em suas confissóes. Conhe-
ciam, porém, os atenuantes de seus erros e os agravames de seu delico, e buscavam
desembara(j:ar-se da ardilosa teia que lhes armava o inquisidor.

fORNICARIOS E CASADOUROS: IGNORANCIA DAS FALAS,


EQUIVOCOS DO PODER

Somente na visita de Heitor Furtado de Mendon\a toranl julgados réus


.. •
co1omaas por defesa da fornicac;áo e por erronea com
pararáo entre a ordem dos
T
. . . . d . e I9 homens, e no segundo
casa d os e a d os rellgtosos: no pnmeuo e1uo roram- 110 _
17 homens e urna mulher. E, convém insistir, nos dois casos eram as~~~ e s.uas
. ~ . . . . _ . . . · 1 No caso dos tormcános,
mten¡;oes o obJeto de argütc;=áo e dectfra¡;ao mqutsnona · . 1
· · 1" áo do sexo exuacontuga ·
lmportava desvendar 0 que havia por rrás da ractona tza~ . d
. . - d damento. Mero5 IUÍtos a
as
possível agressáo consciente tnterdu;oes o sexto man .
cultura popular masculina, opinióes sobre a licitude dos homcns pranc~Km 0
. al· das ao nívd de doutnna ou
sexo com mulheres desimpedidas eram, asstm. lt 3
antidogma. Algo semelhante se passava com a opiniáo o posta, a superestima~ao
do casamento em rela~áo ao celibato religioso, capaz de sugerir dúvida sobre 0
valor da castidade inerente aquele estado e subversáo doutrinária da hierarquia
enrre 0 clero e os leigos no mundo católico. A valoriza~áo popular do casamento e
a crítica moralista aos deslizes dos clérigos era m transformadas e m questionamentos
da própria autoridade eclesiástica no mundo de Deus. Por essas razóes tais falas
erróneas eram identificadas a heresia, e particularmente atribuídas a inspira~óes
luteranas. "Falsa e herética opiniáo", assim a sentenc;a inquisitorial definía a
vanglória dos machos que apregoavam seu direiro de fornicar. "Que seja declara-
do por herético", sentenciou o libelo do Santo Ofício contra um arrogante defen-
sor do estado matrimonial no Brasil quinhentista. 6
Senda esses os pressupostos, náo é de admirar que o interrogatório desses
homens fosse todo pautado no rasueamento de heresias dogmáticas, transfor-
mando-se conversas do dia-a-dia em colóquios iconoclastas, engenhos e oficinas
em covil de hereges, homens simples em prosélitos. Nos dois casos os modelos de
inquiri~áo eram muito parecidos, voltados para a detecc;áo do erro e, sobretudo,
da teimosia no errar. Pouco ou nada importava para o inquisidor se quem defen-
día a fornica~áo era useiro em praticá-la com duas ou várias mulheres ao mesmo
tempo, o u se o elogio do casamento era feito por um leal esposo que apreciava seu
a
estado para a glória de Deus. Que os fornicários se deleitassem vonrade que
deles cuidaría o demOnio nas profundezas da Terra, e que os maridos e os casado iros
continuassem a prezar o casamento, que deles seria o Reino dos Céus ... O que
nao podiam fazer arevelia do Santo Oficio era, de u m lado, negar que pecavam ao
fornicar e, de ourro, colocar o matrimOnio acima do estado religioso. E mais do
que proibidos de dizer essas coisas, eram-no ainda de pensá-las como verdadeiras.
O qut achavam do assunro? Por qut haviam dito? Se o réu se apresentasse
claudicante, inseguro sobre se havia de faw pecado na fornica~áo simples, o
inquisidor náo hesitava em argüí-lo: esteve o acusado a dormir carnalmente com
mulheres que náo a própria, ou com negras solteiras deste mundo? Em caso afir-
mativo, o que lhe ocorrera no espirito, o que pensara?7" 0 inquisidor náo media
esforc;os para vasculhar as consciencias: pretendia saber 0 que pensavam os ho-
mens cm meio a seus deleites ... Mas, lembremos ouua vez, pouco se importava
com as deleirac;óes em si mesmas.
Recorren te no inquérito era a clássica pergunta: esteve 0 réu e m companhia
dos luteranos ou chegara a ler seus livros? No caso singular de um hornero que,
para desonrar um marido sovina e turbulento, disse que seria bom amancebar-se
com sua esposa, pergunrou~lhe: "ac:uo aprendera com luteranos que 0 adultc!rio
213

a servi~o de Deus?" 8 A maioria desses homens ¡'amais and l


er . ara com uteranos
aJ
do que se tratava, curros nem mesmo sa b.1am Ier e'
·'guns sequer sab1am ao cerro
• .
em [Oda caso, nunca ouvmam de austeros protestantes a apologia da irrestrit~
. . .. .
ll.berdade sexual, embora deles pudessem ouvir pesadas cr¡'t"
A suspeaa mqwsHonal
. ·~ , . ' •
~-~=··
sobre o acusado era comudo ren,·te t . d
d
.
n e. e quem ouv1ra
semelhanres optmoes. A que m d1ssera? Quantas vezes? Teimara no erro ou recua-
ca, advenido por ourrem? Repecira a muitos em outras ocasióes e lugares?
0 infeliz era transformado em possível membro de urna seita quimérica ao ser
bombardeado com tais perguntas. E mais imponante que rudo era, como vimos,
averiguar a íntima opiniáo dos suspeitos sobre a licitude errónea da fornica~o e a
falsa primazia do estado matrimonial...
Como todos os réus do Santo Ofício, a maioria dos fornicários e casado iros
já se apresenravam ao visitador medrosos e cientes de que suas falas eram matéria
inquisitorial, renda-as ouvido no monitório e nas sentenc;as de oucros penitenciados.
Tamanho era o medo que um simples apreciador do casamento, mais do que do
clero, se apresentou ao visitador com um roto papel listando seus pecados confes-
sados no foro sacramental, induindo o deslize de se ter "ajuntado carnalmente
com urna negra pagá"? e o u tras rol ices, como se fosse possível trocar pecadilhos da
carne pelos erros aferos a lnquisic;áo. Buscavarn assim demonsrrar arrependimen-
to, dar de consciencia e, sobretudo, ignoráncia ou rusticidade ao justificarem scus
maus dizeres. O que demonstravam tais aticudes? Ames de rudo, que ao elogia-
remo casamento esses homens náo faziam senáo resguardar seu estado, tC-Io como
ideal de vida, repetir sermóes de padres, criticar a má vida de cerros clérigos e, as
vezes, assumir urna discussáo teol6gica que a Igreja fora a primeira a incitar, re-
ceosa da Reforma. E quanto aos defensores da fornica<;iío, apenas se jacravam de
seus privilégios masculinos, sobretodo em relac;áo :ls prostitutas, 0 "mal neccssá-
rio" que nelas viu Santo Agostinho ... Perguntado sobre o que achava da ma~éria,
o soldado baiano Belchior Francisco afirmou que ao dizer isso "tinha para SI que
náo era pecado" dormir com mulheres solteiras "por ser coisa muiw geral entre~
homens" 10 - expressáo inequ,voca de urna cerca mentalidade popular. E mats
engenhoso foi o jovem Francisco Barbosa da Silva, morador em Pt-rnambuco:
disse ao visitador que sempe soubera o quanw pecava em dormir com mulhe~
públicas, mas náo sabia ser heresia diztrque náo era pecado ajuntar-se com elas ...
O u') urna
· exemplo ·andtca-nos
· uma outra posst'bldade
J'
de leitura das c-on-
duras dos réus diant~ do visitador. Suas arirudes nos sugerC'm r11.m~m urna
h em descaracrcnur qu:al~
m· - ·
morac;ao consciente dC' convic.;óC's C' u m tone em~n °
quer peninácia. Ent~ os fornicários, muiros admitiam rtr faladtl Km pensar. stm
, . mbriaguez simplicidade, tola zombaria, etc. Entre casad .
ma1tela, por e
05
' , . A • • Olros,
náo falravam 05 que arribuíam seus erros a 1gnorancta, ao bom conceao que Deus
rinha dos casados, ao mau passo de algum clérigo ... Náo emendiam que ofen-
diam a Igreja ao dize-lo, e salientavam ter falacia sobre o que náo conheciarn.
Indagado sobre 0 que achava realmenre da polemica dos estados, o soldado AntO.
11 ¡0 Pires respondeu: "náo sei, os !etradosé que sabem".ll Resposta significativa, a
exprimir a completa dissoluc;ao da mentalidade popular em face da doutrina e da
cultura escrita. Transtornados, os homens cuidavam de ilegitimar suas opinióes e seus
valores, ceceosos de que fossem assimiláveis a culpas mais gravosas, capazes de levá-los
3. fogueira OU, quando menos, 3. humilhante procissáo de fé nas ruas da cidade.
Rastreando heresias e m falas populares, a lnquisir;áo acabaria por culpabilizar
as moralidades da gente simples. No encanto, terminado o julgamento, o Samo
Ofício reconhecia que os culpados náo eram hereges e justificava sua misericórdia
e a habicualleveza das penas aplicadas "respeicando a ignoráncia, a simplicidade e
a falta de malícia" desses homens rústicos e incultos. Por serem ignorantes, deixa-
vam de ser heréticos, merecendo por isso castigos menos penosos. Náo seria váo
perguntarmos a essa altura, se o Santo Ofício possuía absoluta clareza sobre quem,
a rigor, desejava punir. Aos hereges possivelmenre en rustidos em homens comuns?
Ou a esses últimos, que teimavam por ignoráncia em contrariar os dogmas cató-
licos? Com toda a certeza, a Inquisic;:áo parecia visar aos dais "grupos", que unia
de forma confusa, esrabelecendo um elo invisível entre a ignoráncia e a heresia, a
rusricidade e o "luteranismo". Empenhado em depurar as moralidades populares,
o Santo Ofício fazia-o sobo pretexto ou a suspeita de que neles havia heresias; e,
descobrindo apenas homens faltos de dourrina, castigava-os assim mesmo, edu-
cando-os na verdadeira fé, embora lhes aplicasse penas menores. Enguanto torpe-
deava os réus rastreando dogmas heréticos ande só havia opiniáo popular, o Santo
Ofício confundía objetivos e pretextos, alvos reais e imaginários, rransrornando
os acusados e a si mesmo. Mas náo deixava de prestar urn grande servir;o a Con-
tra-Reforma, estigmatizando as consciéncias e deixando claro para todos que en-
tre o pensar e o dizer muiro exame devia fazer 0 fiel católico, sob 0 risco de
bandear-se para o lado dos inimigos da Igreja e expor-se aos piares castigos. Ao
final das comas, hereges ou ignorantes da fé, os defensores da fornicar;áo e os
d~trat~res do celibato religioso acabariam convencidos de que erravam ao dizerem
ra1s co1sas. Se antes da experiencia inquisitorial esses homens desconheciam a
Verdade, ou a confundiam com meras opinióes, depois de instruídos pelo castigo
aprendiam a discernir entre o dogma e o erro e, certamenre, a calar e m assunros
que só cabiam aos letrados do poder. E, virória imporranríssima da lnquisic¡:áo,
255

diam que a casridade era o mais belo dos estad


apren os, que o clero era a mais
. osa das ordens e que o sexo era, também para 05 h ...
v1nu omens, um smommo de
culpa.
p0 ucos indivíduos negaram seus erras ou afronta .. _
. _ ram a 1nqulSI~ao nesse
domínio das proposH_;:oes. Entre eles figuro u o rico lavrador e mercader Francisco
Mendes, crisráo-novo que morava em Iguarac;u, homem muiro acusado por de-
fender 0 estado dos casados, embora fosse solteiro. Talvez por medo de confessar
qualquer coisa e com isso atrair suspeiras de judaísmo _ pois bem sabiam 05
crisráos-novos quem eram os_ réus prediletos do uibunal- Francisco negou que
discurira o assunto, que elog1ara o casamenro e rudo o mais. Acabaría recebendo
0 maior castigo aplicado a "casadoiros", mais pelo siléncio obstinado diame da
mesa do que pelas frases ditas em alegre conversa de quarro anos ames. 11 Cristao-
novo como Francisco Mendes, Diogo Nunes apresemou-se desafiador perame
Heitor Furtado. Já o desabonara ser irmáo de Joáo N unes, urn dos homens mais
denunciados na visita<;:áo por ter um crucifixo próximo ao "sujo servidor" em que
deposita va su as fezes, por ler texto tridentino e dele discordar, por viver amancebado
com urna tal Barreta, mulher casada, e por dizer que só pecava venialmente ao
viver com a mo<;:a. Diogo, nosso conhecido de ourro capítulo, era riquíssimo
senhor de engenho em Pernambuco, e vivia exaltando suas vinudes de macho:
deirava-se com quantas negras quisesse, dizia sernpre, pagando-lhes por esses fa-
vores ... Chamada pelo visitador após várias denúncias, afirmou que nao se lem-
brava de nada, era "bom cristáo" e o "seria aré a rnone"; apenado pela mesa,
disse que náo ouviu nem sabia se era ou náo pecado dormir com mulheres
solteiras e que náo se preocupava com isso ao faze-lo com as negras; e mais,
adrniriu que sempre confessara seus prazeres na sacramental, e nao obstante os
padres lhe dissessem que pecava mortalmente, nenhum deles sabia que inten·inha
paga nesses ajuntamenros - o que para o rico senhor, neutralizava o pecado.
Arrogante, concluiu a primeira argüi<;:áo insistindo na dúvida sobre se realmente
pecava ao dormir com tais mulheres, já que cumpria a sua parte e lhes clava
qualquer coisa em traca ... Diogo Nunes pagaria caro - em dinheiro, diga-se
lago - por tamanha irreverencia em face da lnquisir;áo. 14 . •
Omro a esconder suas "idéias fornicárias" dianre do visitador kn nmguém
menos que Ferniío Cabra! de Atafde- famoso patrocinador da "Santidade" em suas
.• · d · que os Indios culrivas-
terras. Fernáo Cabral era u m herege por convemencaa: eaxava .
sem religiosidades sincréticas em seus domínios. reverenciava-os e esumula-
va-os para tanto com o único fito de usufruir o uabalho dos nativos. Era um
prot6tipo de senhor colonial. sempre avesso .a carequcse dos escravos ... Inúmeras
TROPtCo Dos PECADos
256

vezes denunciado, embora tenha confessad,o na grac;a, acabaría ~reso e argüido


pelo visitador. Mas Fernáo Cabra! era rambem acusado ~e um delno nio confes-
sado: apregoar que dormir compadre com comadre nao era pecado, frase q
emitiu quando rentara seduzir sua comadre Luísa D'Almeida. O processo de Fern~:
ralvez seja 0 mais longo dos julgados por Heiror Furrado, nao só pela vasta docu-
mentafláO relativa aSanridade como pelas quatro Ion gas sessóes de interrogatório
que 0 visitador impOs ao réu. E, curiosamente, razoável espac;:o das tres últimas
argüi¡¡óes foi ocupado náo pelos faros da Sanridade, que disso o réu já havia
tratado anterioremente, mas pela "defesa da fornicac;áo qualificada" omitida na
primeira confissáo. Acuado pelo visitador, Fernáo Cabral confessaria curras cul-
pas de que náo esrava delato: reconheceu ter di ro que náo havia pecado em dormi-
rem homens com mulheres, desde que negras e náo "brancas honradas"; admitiu
que praticara um ato de sodomía com cerca índia virgem em suas tercas; mas
negou-se a confessar seu envolvimento com a comadre. Só na última sessáo, im-
pressionado coma amea~a do libelo, resolveu confessar rudo, inclusive que fora o
célebre Joáo N unes quemo ha vi a aconselhado a negar: "o bom era, neste juízo da
Santa lnquisi~áo, negar sempre a verdade", pois "parvos" eram os que confessa-
vam. Temendo "que lhe dessem maus traros" por ramanha obsrina~áo, Fernáo
resolveu admitir esta última culpa, mais preservada pelo réu do que seu
envolvimenro na "herética seira" da Sanridade. 1S
Francisco Mendes, Diogo Nunes e Fernáo Cabra!, rres exemplos de resis-
tencia diante do inquisidor. Pouco havia para temer, reconhe~amo-lo, se admitis-
sem logo suas leves culpas, especialmente senda hornens ricos e poderosos da
ColOnia. O silencio de um, a arrogancia de ourro e os perjúrios do terceiro, eis as
novas heresias, mais graves que suas falas pretéritas, responsáveis pela perrinácia
inquiridora do visirador. Afina!, como dizia Nicolau Eymerich no século XIV:
negar, afrontar e perjurar eram tra~os inequívocos de grandes hereges.

A MÁ-f~ DOS BfGAMOS: Af!RMA<;:ÁO DO NÚCLEO DOGMÁTICO

. Enrre to~os os crimes morais aferos a Inquisi~áo, a bigamia foi certamen[t


o ma1s persegUido, chegando a superar urna centena 0 número de réus coloniai
pro~essados por se c~sarem duas ou mais vezes na Igreja senda vivo 0 primeirc
cOnjuge. Nesse caso, VImos que a matéria sobre a qual se debru~avam os inquisidore
riro de casamenro, a cerimónia tridentina qu ¡ _ ,
era o , e se ava nao so a uniáo con. u al
0 uso de u m sacramento, sJmbolo da uniáo esp· · 1 . J g
mas . _ . . !mua enrreCnstoeal re·a
e porranro a d1mensao reiJgJOsa do matrimOnio id ·r d g J·
~ra . . . _ , . • enuuca a a um dos miscé-
. 5 do
cnsnanJSino na versao catohca, que 0 Sanro Of' · . l
no . . .. . IC!o JU gava ofendida pelos
e desprezavam a mdJssolubJhdade merente as núpci A . . .
qu . as. s outras posstvets ¿ 1_
mensóes e aspectos do . casamenro, tals como a vonrade ¡ d. ·d l d
. n lVI ua e casar-se, o
aIcero
1 •
a promessa, a ahanc;a de mteresses familiares as Cl.rcun • ·
•_ • • • • S[anctas que envo l-
viam a umao, nada d1sso tmponava cons1derar aos olhos do inquisidor, senáo a
eferuac¡:áo da cerimónia in focie ecclesiae, verdadeiro sinónimo de casamenro para 0
poder.
Casar-se mais de urna vez na forma tridemina estando unido a oucrem, eis
0 que rornava o bígamo um herege convicto, independentemenre das circunstan-
cias que o tinham levado aos casamencos. Exceto se admirisse connernado que 0
marrimónio náo lhe parecía sagrado, caso em que se monearía arrependido e
aberro para a devida expia~áo, era considerado herege peninaz., insinente em en-
cabrie imen\Óes bem próximas as idéias luteranas. Assim o demonsrram os libelos
e as sentenc;as contra os bígamos, por mais francos e deralhados que fossem em
suas confissóes; náo admirindo que se casaram pela segunda ou terceira vez por
julgarem desprezível o sacramento matrimonial, eram sempre considerados fingi-
dos e diminutos, revelando "má tenijáo" comra a lgreja, e "mal sentir" da fé cató-
lica. Os bígamos eram, assim, réus condenados de anremáo: se confessassem des-
prezo pelo matrimOnio, náo deixavam de ser hereges confessos, emboca o arrepen-
dimenro teoricamente os livrasse de penas remporais; se o náo confessassem, eram
suspeitos de má-fé, a mesma que os fizera burlar a lgreja, envolvendo scus minis-
tros e suas bC:nt;áos em farsas matrimoniais. E, a bem da verdade, náo enconna-
mos u m só bígamo que admitisse desprezar o casamento- o que, convcnhamos,
seria extraordinário. Afinal, homens e mulheres que rornavam a se casar senda já
casados podiam ser acusados de muiras coisas, menos de repudiar o casamenro. Po-
diam aré desdenhar a indissolubilidade inerente ao sacramento - o que 3.s ve=
admitiam - , mas ao menos quando casavam novamenre por vonwic própri.a, scm
pressóes de nenhuma esp~cie, davam mosuas de grande apego pc.lo nro -
valorizad!ssimo, aliás, na sociedade daquele rempo. O julgamento dos hlgamos en.,
por isso, cruel e impiedoso, invulnerável a qualquer álibi, indiferente. • qualqu.r dn.·
ma pessoal. Em nenhum dos crimes morais afccos a scu tOro os inqu•sadores re~lanm
tamanha coerencia de objetivos e propósitos como no julgamento dos blgamos. .
1merrogava-os .anquiSidor
0
.. no rastro d a m á cons ci~ncia • e antes de argül-
los sobre tal ou qual casamenro, perguntava-lhes se sabiam 0 quanro crravam ao
se casarem pela segunda vez na forma uide~r.ina seJ~do já casa~os, e vivo o prirnei-
ro cónjuge; se ouviram de alguém que era liCito faze-lo; se sabJam que o matrirno.
nio náo podia ser desfeito, exceto pela marre da esposa o u marido, ere. 0 Santo
Ofício rrarava os bígamos como se fossem, também eles, membros de algurna
seita anrimatrimonial. Por vezes, havendo indícios de que os réus teriam andado
em tenas de luteranos ou mauros, pergunrava-lhes se ali haviam aprendido que 0
casamenro náo era sagrado o u monogámico. Assim ocorreu no século XVI corn 0
forro Antonio Luís, sapateiro de 31 anos, filho de um crioulo e de um negra
guineense. Pergumou-lhe o visitador: "Tens raqa de mauro? Sabes se o genrio de
Beafar no Rio Grande da Guiné permite aos homens se casare m com várias mu-
lheres? Casaste-te a segunda vez com 'a tenqáo de guardar o dito cosrume'?" 16
Os pobres bígamos e bígamas náo penenciam, con rudo, a nenhuma "seita"
de hereges, nem guardavam cosrumes de infiéis ao se casarem segunda vez.
A única grande razáo que alegavam para seus erras confundia-se com a história de
suas vidas: seus amigos casamenros quando jovens; longas separaqóes do primeiro
cónjuge, náo raro motivadas pela aventura ultramarina e colonial; falta absoluta
de notícias sobre a esposa; presunqóes de que enviuvaram; vontade o u necessidade de
casar-se outra vez ... Era essa a desculpa padráo, a espelhar a exrraordinária mobilida-
de espacial dos ibéricos na época moderna e, ainda, urna vá renrariva de atenuar a
má-fé de que eram suspeitos. Os inquisidores ouviam pacientemente esses longos
relacos e justificativas para depois pergunrarem ao réu: "Acaso fizesre diligencia
antes de se casar pela segunda vez, a fim de cenificar-se da morte da esposa? Por
quanro tempo esperaste resposra? Como e em que circunstáncias soubesre da marre?
Que pessoas restemunharam os casamenros?" E, deixando que o bígamo respon~
desse 3. vonrade, pouco importando se menria ou náo, arrematavam com a per-
gunra demolidora: "Disseste ser viúvo ou solreiro ao conrrair 0 segundo matrimO~
nio?" Questáo terrível para os bígamos, que, mesmo quando cerros de sua viuvez,
costumavam apregoar-se soheiros ao posrularem o segundo casamenro, ralvez por~
que assim corresse mais rápido o processo matrimonial. Em inúmeros processos
inquisiroriais era a partir dessa pergunta, cuja resposta sabia 0 réu ser do conheci-
mento do Santo Oficio, que afloravam fatos aré emáo omitidos nas confissóes: rroca
de nomes, necessidade inelutável de se casar, pressóes e curros motivos que levavam os
homens a se forjare m desimpedidos e habilitados para as núpcias.
Havla amda os que, alegando ou náo a suposta viuvez quando rornaram a
se casar, agregavam outras razóes que bem nos retratam as morivaqóes do casa-
mento_ e o cotidia~~ da v~da .conjuga! no passado. Casavam-se uns por pressóes,
necess1dades, graudao, miSéna, amor e até por luxúria, como no caso do pobre
[WI'fCAllllAIIIIii'IA
2\9

e rro Anrónio Luís. Casavam-se ourros por sofrerem


10 . . .
d 1. . d . .
a u tenas a pnmeaa es 0_
sao u maus-uacos do prunetro mando. Tudo isso era narrad 0 d lh P
. . . . . . em era e para um
inquiSidor enfadado, certo de. que ¡amaiS ouvma a dese¡'ada con fi1ssao
. ~ .
- de que réu
0
desprezava ~ rna.t~unon!o: O julgamenro dos bígamos era praticamente urna farsa
em que_ os mquiSldores
,
v1a de regra sabiam antes de iniciar s
. . . . '
... -
- e a argu1~ao, que a
confissao dos reus sena d1mmura, mcapaz. de resolver a ardilosa charada que lhes
armava o Santo Ofício.
Uns poucos e habilíssimos réus buscavam descaracterizar sua culpa alegan-
do irregularidades e m alguns casamemos, o que vez por o u tea os livrava do casti-
go. Assim fez. o carpinreiro Pedro Álvares, provando que se casara pela primeira
vez aos dez anos - e na cadeia - , vírima de urna uama urdida pelo padre,
amame de su a primeira "esposa", nunca consumando o matrimOnio por meio da
cópula. Assim fez o escriváo da Fazenda d'el Reina Paraíba, AntOnio da Costa de
Almeida, alegando que só se casara pela segunda vez. em Lisboa após receber carra
noticiando o falecimento da primeira mulher, "obra falsa" perpetrada por seu
"grande inimigo" Balrazar da Nóbrega, e ainda assim pressionado pelos parenres
da segunda esposa. U m e ouuo safaram-se de processos, ao conrrário da maioria
dos acusados. 17 A escrava Marra Fe mandes, táo exfmia na arre de enganar que
logrou montar quarro diferentes estórias para seu primeiro casamenro, alegou
numa delas que sua uniáo era irregular, pois ela e o marido "náo deram as máos,
nem disseram palavras de presente, nem clérigo nenhum lhes deu as máos, nem
esreve com sobrepeliz, nem com estola, nem !hes disse as palavras do matrimOnio
na igreja, nem em casa( .. .)". 18 Ex-amante de um padre na ilha de Sáo Miguel, da
conhecia muito bem numerosos aspectos da liturgia tridentina, e soube usá-los
em sua defesa. A também escrava Louren~a Correa da Lapa, moradora em Sáo
Joáo de Meriti em 1745, conrou que só se casara pela segunda vez porque suas
amigas !he baviam di ro que, náo renda "dormido" com o primeiro n~arido, ~eu
"matrimOnio náo era verdadeiro" .•<J E, melhor que todos os bígamos, tmpro_v,sa~
dos juristas por exigencia da ocasiáo, foi o capitáo de infanraria da Bahia, Afunso
Neiva de Mendon~a, réu voluntário em 1671. Admiriu que tornara a se casar
depois de consultar sacerdotes e certificar-se de que seu P.rimeiro cas~mcnt~l era
nulo por cinco razóes: fora amancebado com a moc;a scndo viv~ 0 m~ndo: dtssc ¡\
infeliz que a esposaría se ela assassinasse o esposo- como de ta~o .velO i ocorr~r~
casara-se com ela entre airo e nove horas da naire- horário protbido ~~~ l~rel~·
_ d l - · h:.~. qualqucr nott(la havta
nao teve cópula com ela depois de casado: e e a nao un . .
14 anos. 20 Engenhoso era o nosso capitáo, especialmcnt~ ."as.quarro pnmeuas
- . d 1
raz.oes, o que náo o hvrou porém e um eve e ~:> asrl' uo inqUISttorl.tl.
TROJ'ICO nos PECADos
260

0 Sanw Ofício, claro está, deixava afluir numerosas histórias e conversas


dos bfgamos, mas se manrínha quase sempre .infle~ível, so~rerudo nos sécu-
las XVII e XVIII, rempo em que o casamenro rndenuno parec1a defmirivamenre
assentado no mundo ibérico, em detrimento das unióes costumeiras. Náo aceita-
va, pois, nenhuma desculpa. Maus-traros do marido o u adulrérios da esposa eram
boas razóc:s para peticyóes de divórcio, jamais para segundos casamentos; luxúrias
e amores eram belas razóes para fornicac;óes e amancebamenros, que deles gosrava
0 dc:mónio, mas nio para zombar do marrimónio eclesiástico. Graridáo, obriga-

c;óes, carencias, rudo isso podía ser muiro bonito ou lamenrável, mas náo justifi-
cava, aos olhos do inquisidor, a terrível bigamia, crime de fé. E nem mesmo as
irregularidades da cerimónia poderiam, na maioria dos casos, apagar a "m á. tenc¡:áo"
do acusado ao contrair novas núpcias, como se o casamenw náo anulado pela
lgreja fosse mera conringéncia da vida.
Histórias díspares acabavam assimiladas por essa inrolerincia, coerente no
enranro com os objetivos do poder. Joiio Ferreira Matado, homem que e m 171 S
fora penitenciado em Coimbra por dizer singularmente que o matrimOnio náo
era sacramento(!), e que viria a casar-se trés vezes em Abrantes, Castela e Santos
(capitania de Siio Paulo), mudando de nome, apregoando-se solteiro e fazendo de
vários padres coadjuvanres de grandes farsas - acabaría rotulado de herege con-
vicm no crime de bigamia por semir mal do sacramento do matrimOnio e da
Santa Fé Car6lica. 21 O mesmo ocorreria com Urbano Cardoso, ex-carcereiro no
Vizcu, vendeiro na Bahía, que centava com sessenra anos em 1701. Quarenta
anos ames, esposara Maria Marques em Ponugal e, degredado para o Brasil por
dar fuga a presos, viria a se casar com Francisca de Barros em Pernambuco, ao
receber notfcias de que Maria falecera. Tornara pois a se casar, rivera oiro filhos, e
décadas depois, quando um deles se vi u barrado na pretensáo de ser padre, veio a
saber que sua primeira mulher ainda vivía. Urbano era, sem dúvida, um fiel cató-
lico que, ao se descobrir um b(gamo, procurou lago 0 comissário AntOnio de
Faria para delatar-se. Mas, assim como Joáo Matado, acabaría penitenciado como
diminuw e fingido cm sua confissáo por náo declarar que desprezava o matrim0-
nio ... 12 U m homem de sessema anos, pai de oito filhos e católico praticante acaba-
ría táo herege quanto o avemureiro Joáo Matado, individuo que desconfiava da
santidade do marrimOnio e, por isso, casava-sc e descasava-se a seu bel-prazer.
Nunca a lnquisic;áo foi táo inAex(vel diame de crimes morais. Obcecada
cm afirmar o núcleo dogmático do marrimónio tridentino, condenaría wdos os
que, náo obstante apegados ao estado dos casados e ao próprio rito eclesiástico,
usavam a lgreja conforme suas conveniencias pessoais. Os processos de bigamia se
26!

nos afiguram, assim, como urna comédia ou tragédia de equívocos: homens e


mulheres a apregoar o quanto prezavam o casamemo na igreja, e inquisidores a
esperar em váo por declara<;:óes do quanto o desprezavam.

Qs SODOMITAS: ENTRE O ERRO DOS SENTIDOS


E O SENTIDO DO ERRO

Crime mais denunciado na visira do século XVl, a sodomía praücada emre


homens era o único desvío moral que podia, em cerras circunstincias, levar os
culpados amorte na fogueira. Assimilada aheresia por razóes históricas e teológi-
cas, a sodomía possuía, no entamo, um significado fluido na culcura escrita, no
saber jurídico e, conseqüentemente, na prática judiciária inquisitorial. Referida as
rela<;:óes homossexuais masculinas, ora significava específicamente cópula anal com
ejacula<;:áo íntra vas, ora aludía a cerros hábitos homoeróricos em que táo impor-
tantes quanto o coito anal consumado eram a freqüencia das relat;:óes, o gasto pelo
sexo nefando e a consciencia do praticame em face desses prazeres.
A oscilac;:áo teórica dos eruditos e dos juízes do Santo Ofício, vemo-la em
diversas semens:as, libelos e pareceres emitidos nos processos. Especialmente nos
acórdáos, o "sodomita" era descrito como indivíduo que "eferuara e consumara o
hortendo e abominável pecado nefando da sodomia", especificando-se se fora agente
ou paciente em suas relas:óes e aludindo-se, em geral, ao número de parceiros com
que perpetrara o crime e quantas vezes o fizera. Por fim, ressalrando-se o "pouco
temor de Deus e da salvas:áo de sua alma", condenava-se o réu as pen~ c~~íveis.
O sodomita era, portante, exposto como criminoso, rransgressor das lets dtvt~as e
humanas ao cometer u m ato sexual específico. Em cerros casos, as sentent;:as amda
inclufam dados agravantes, a exemplo de ourros aros sexuais pra.cicados a ~ardo
coito anal, como "conatos nefandos", "acessos por detrás" • molíctes e dematS ro~­
pezas apuradas na argüis:áo inquisitorial. Excero pela singularidade de ser a sodomaa
U m "en· me sexua 1" , pouca cotsa
· dtrrrencaava,
-<- · nc:ssas sen t e: nras
T •
o r--
,..,fil do nefando
e m relac;:áo ao de outros transgressores da lc:i: crimc:. circunstincias agr.lvanres,
cúmplices, número de atos criminosos, eis o vocabulário que gravirava c:m torno
da sodomia nos acórdáos do tribunal. bl" 1 d
.
A s semenc;:as eram, ala:is, , . d essos levada a pú ICO, 1 a
a umca pe(ja os proc . d
nas prac;:as e igrejas por ocasiáo dos auros-de-R; ndas se passava a tmastm 0
sodomita táo~somente como criminos_o, e~cu~~nd~~se o poder_de. entrar ern rnaio.
res detalhes sobre "o que náo se poden a J¡ze~ . _Afmal. se o obJeUvo da Inquisi\ao
era intimidar e divertir a mulridáo que assJsna aos amo . . , basta va apresentar o
nefando corno culpado de um hediondo crime, táo mcn;ccdor de castigos quanto
0 judaizante ou 0 homicida da Jusric;a civil. Mas as scnren\as conu_·a os nefando~
possuíam já alguns elementos que talvez apontcn_1 para uma ~1uahfica~áo desscs
indivíduos. 0 grande sodomita náo era só o praucante do coJto anal. mas tam.
bém 0 exercente, 0 devasso, o escandaloso, e o incorrigível ... É ceno que seme.
lhante adjeriva~áo náo era exclusiva dos condenados por sodomía: aplicava-se-a
aos judaizantes, aos solicitantes e a todos os hereges convictos e pertinazes nos
seus respectivos erras. Mas no caso dos somítigos e dos fanchonos, o que signi-
ficariam tais adjetivos senáo a qualilicac¡:áo de cerro caráter? O que poderia
significar um nefando incorrigível senáo o indivíduo que jamais conseguira li-
vrar-se de suas preferéncias homoeróticas? Estamos cerros de que a multidáo bem
enrendia a "fanchonice" inerente ao "nefando incorrigívcl", ao ouvir semelhantes
senten~as nas vilas da ColOnia quinhentista o u no terreiro do Pa<;o em Lisboa.
Dependendo do caso, fosse o sodomita u m habitué e m nefandices, a docu-
mentac¡:áo secreta do tribunal náo deixava de explicitar se u caráter nefando, insis-
tindo mais na fregüéncia e na contumácia das relac;óes do que nas cópulas anais
propriamente ditas. Assim acorrería no parecer de André de Freitas Lessa, nosso
conhecido chefe de fanchonos em Pernambuco, descrito como "habimado hor- a
renda e nefanda wrpeza da sodomia".H Assim acorrería com o extravagante frei
Lucas de Souza, religioso doPará que dizia aos parceiros que seu J.nus era "vagina
de mulher": a um de seus juízes pareceu que era o frei táo culpado de "multiplica·
dos aws com várias pessoas", táo "inveterado no di ro pecado nefando" gue náo
havia "esperant¡:a de emenda" para o réu ... 21 Responsável por "multiplicados aros
criminosos", vicioso "inveterado no pecado nefando", assim oscilava a figura do
homossexual no juízo dos inquisidores.
Nas discussóes do processo, transcritas nos papéis secretos que supunham
imunes a leitura de esrranhos - guanto mais de historiadores - , nossos
inquisidores deixavam clara sua preocupacyáo com 0 caráter dos nefandos, suas
possfveis opijóes homoer6ricas ou, simplesmeme, seus trac;:os "fanchonos" perfei·
t~menre dc:tec~áveis n~ cuhura popular. Mas ralvcz explicirassem essa preocupa-
c;ao de forma mconsc1emc, se assím podemos dizC-Io, j~ que só formavam seu
verediro sobre o caráter nefando do réu ap6s arrolarem 0 número de atas, su~
freqüencia, ere. Náo encontramos nc:nhum juiz a pcrguntar diretamenrc ao aeu·
sado: "Gastas de manter rdat¡:ócs nefandas com honu·n~~ Prd"crcs dornlil conteks

J
po pFOIJ() A 111· 111· ~JA

lugar de mulheres~" Argüia-o, por outro lado sob .


no . , . ' re os atas, as CJrcunstáncias
o número de parceJ~os, a contumacia ... Verdadeiros critérios emáo utilizados ar~
a decifraifáO do carater. P
Diante de. réus arrependidos que confessavam esponraneamenre seus atos
indicando parceJros e outros detalhes, o Santo Ofício limitava-se a rastrear ~
consciCncia do réu e m face de su as "torpezas". Pergunrava-se-lhe, genericamente
se sabia que todo cristáo devia segu~r os mandamentos divinos e que pecav~
gravemente quem os quebrava; se sab1a que o sexto mandamento proibia toda a
Juxúria, incluindo o abominável pecado da sodomia; se sabia que 0 pecado ne-
fando era condenado pelas leis natural, divina e humana com gravíssimas penas,
em senda "o pecado que mais ofendia a majestade divina" ... Outras vezes, inda-
gava-se-lhe se confessara tais atas na sacramental ou preferira omiti-los; se impe-
dira seus parceiros de fazC-Io, diz.endo ou pensando que a sodomía náo era peca-
do ... Buscava-se, pois, avaliar a que grau de desafio as leis da Igreja chegava o
praticante da sodomía; se a praticava conscientemente sabedor do quamo errava,
ciente dos perigos a que se expunha, ou se a fazia ignorante das san~¡:óes
inquisitoriais ou infernais, prisioneiro táo-somente dos apertos da carne. lnreres-
sava particularmente aos inquisidores saber se o réu sentia culpa por seus atas, se
os confessava na sacramental e se clava mostras de arrependimento, vergando-se
diante da lgreja e do Santo Ofício. Em suma, importava-lhes definir se o sodomita
era um mero pecador ou um grande herege. E para se cenificarem de que os
confitentes voluntários, por mais subservientes que se mostrassem, náo mentiam
cm suas confissóes, sempre lhes perguntavam ao final: acaso cometeram mais
vezes o nefando, além do já confessado na mesa? A omissao de detalhes conheci-
dos pelo Santo Ofício - as vez.es por mero esquecimento do acusado - , eis o
que poderia fornecer a almejada prava de intenifáO herética contra os sodomitas
"falsamente arrependidos".
Apresentados o u presos, os réus de sodomia cosrumavam revelar.-se ~~ro­
sos, dando m ostras de arrependimento e consciencia culpada dianre do Inquisidor.
Diziam uns que buscavam se penitenciar rigorosamente após rdatarem seus aros
na sacramental e por isso náo se haviam acusado no Santo Oficio. Alcgavam
- ' . . d
outros, nao sem razáo, que: hav1am pranca o o neliln
L. d
° a .,. '
ro~. violentado por
.
senhores e: homens poderosos- o que os inquisidoCC'S costumavam acenar.em se
, d F ·tas Lesu tentou mmorar
tratan d o de escravos, criados e servidores. An d re e CC'I .d .
· ¡ e .,.¡., luas endoo c<1a
sua culpa dizendo que: fora já "muito enfermo d o ffiiO 0 t'- .
r . d' L d Costa l'c~ora, homcm
e raz.ta desatinos foca de: sc:u ju(zo".H O mé ICO uca.s a h
que violemava mularinhos nas Minas de Paracatu no skulo XVIII, rt'\."''R eceu
264

" e•·ra e rragilidade sua nio fazia a devida reflexáo no mal que ob
que por cegu r1 . , ~6 ~ rava,
levado semente de seu torpe apeure .· E o mularo Manod Fe mandes dos Santos
acusado de sodomizar vários negros na cadeia do Recife, onde se achava preso po~
homicídio, disse que carnerera o nefando por "fragilidade e miséria" da carne, e
" or entender que sabendo-se deste crime seria rrazido preso para esta Inquisi¡¡:ao
a:nde reria melhor livramento e sairia da dica cadeia em que se achava preso havia
22 anos" y Nosso curioso réu almejava encontrar na sodomía e nos cárceres secre-
tos do Santo Ofício o caminho seguro para a liberdade- sinal de que os aljubes
coloniais deviam ser aterradores. Fragilidade do carpo, tenta<fáo demoníaca, ce-
gueira, torpe apetite, perturba<;áo do juízo, os acusados qu~se sempre alegavam os
apenas da carne e a inconsciencia para justificar seus atos. E de su por que falavam
com sinceridade, ao vincularem seus "atos torpes" a dese jos sexuais, e náo a con-
viq:óes doutrinárias; mas náo deixavam, com isso, de eliminar qualquer suspeira
de que pecavam por desdenharem os mandamemos da fé.
A grande desculpa dos confitemes voluntários, medrosos e arrependidos,
era porém a de que jamais haviam consumado a cópula anal - prova inequívoca
de que bem conheciam as regras da Inquisi~áo a esse respeito. Sobretudo no caso
de réus fartamente infamados e acusados por "andar com homens", de pouca valia
seria negar suas relac;:óes homoeróticas; se o fizessem, passariam por negativos e
poderiam mesmo ir a tormento - o que a todos apavorava. Optavam assim por
relatar a mais variada sorte de atos sexuais em todas as circunsd.ncias possíveis,
exceto o famoso derramar de semen intra vas. Em pé ou deitados, na cama, no
cháo ou em esreiras, pendurados em escadas, no mato, atrás de muros, em codos
os lugares e horas admitiam os nefandos a prática de suas "molícies". Reconhe·
ciam "fazer as sacan as", penerrac;:óes se m ejaculac;:áo, gozo nas nádegas, "coxeras",
"punheras", "acessos no vaso traseiro", fela~óes, roc;:ar de membros e coda urna
plfiade de "torpezas" substitutivas da perfeita sodomia. Admitiam coro rais narra·
tivas, serem culpados de molícies, mas náo da abominável e perigosa sodomía que
poderia condená-los amorre. Num caso extremo, acorrido náo no Brasil mas na
"gaia Lisboa" em 1638, frei joiio Botelho negou obstinadamente ter consumado a
sodomia, fosse como agente, fosse como paciente, e s6 depois do libelo admiciu
culpas nefandas, inclusive beijos que tinha dado no "vaso uaseiro" de um moc;:o.
cheirando-o e lambendo-o, sem confessar no entamo a efetuac;:áo de sodomia
perfeira. 28
Muiros falavam a verdadc, alguns mcmiam, mas pouco importa avaliar a
veracidadc de suas narrativas, isto é, se haviam praticado 0 coito anal ou apenas as
mollcics confcssadas ao inquisidor. Scus relatos indicam-nos, de qualqucr forma,
265

niverso da sexualidade possível de acorrer nas relaróes h , . .


ou . ~ , . Y omoeroucas masculi-
nas. Exammando. docume.nta~ao a~a~oga, o historiador dos sodomitas valencianos
salienrou a reduz1da valonzac;:ao erot1ca do carpo nas relac;:óes homossexuais, lem-
brando que a lingua~em ~as confissóes somenre frisava os membros e as parees
vohadas para o gozo !mediato, fosse ou náo por meio da cópula anal,2? 0 mesmo
cipo de descric;:óes sexuais ligadas aejaculac;:áo acorre nos processos lusitanos, mas
náo convém esquecermos ser isso u m possível resultado da própria argüi~áo, mon-
tada para apurar onde e como se havia efetuado o nefando derrarnamenro de
semen- faro essencial para a formac;:áo das culpas. Evenruais carícias e aros eró-
ricos que escapassem a esses "momentos ejaculatórios" só por acaso eram ditos ou
registrados nos auros, e tal vez o fossem pela fórmula "abta~ar e beijar", muiro
freqüente na documenta\áo em se tratando de prelúdios amorosos.3° É cerro que
dificilmenre flagramos a nudez nessas rela\Óes, mesmo na calorenta ColOnia, sen-
do comum a prática de aros e acessos nefandos mediante o "arriar-se os calc;:óes" e
o "levantar-se as camisas", e m vez do despir-se por inteiro. Mas a presen\a da
nudez calvez fosse rara na maioria das rela\Óes sexuais da época, especialmente nas
classes populares, onde muitos dormiam no mesmo aposento sem privacidade
nenhuma. Por outro lado, os fanchonos e os somítigos de Lisboa ou do trópico
longe estavam do "amor convencional" que norteava, por hipótese, a maioria das
relac;:óes sexuais. E náo apenas por tratar-se de homoerotismo. As proezas confes-
sadas ao inquisidor, o lamber, o manipular, ainda que dirigidas somente para a
ejacula\áo, be m nos sugerem urna explorac;:áo mais salta do carpo, só comparável
aoque faziam as prostitutas e seus amantes nos bordéis mais afamados da Europa.
É o que deduzimos das Sei giornati de Acerino, onde náo faltam aos diálogos das
corresás alusóes ao poder atrarivo das nádegas, ao "mel" que uns e curros sorv&am
de suas vaginas, e a variadas posic;:óes sexuais: "um prefere assim, curro prefcrc
assado" - dizia a prostituta Nanna; "tém arres para darem beijos atrás, para
ffietetem O peSC0\0 entre as pernas, cofocam-se a moda de joana, a cegonha, a_
a a
tarraruga, igreja-em-cima-do-campanário, rédea solra", etc'l .
Apenados pelo inquisidor, nossos fanchonos acabavam produzmdo nume-
. . .
rosos d &scursos sobre o uso da gemtá 11a e a cronza\ao
· - das máos da Hngua, dos
'
dedos, da boca, mas relutavam em admitir o derramamcnro de semen inlnl "~
e . e · te que esse aro podena
rosse no próprio, fosse no do amigo. Sabtam perreitamcn -
· . . . . nchiam as confissoes com
tncnmmá-los como autémicos sodoml(as e, ass1m, prce . . l •
· d , . , . al ·
narrauvas e molicies mdumdo o co1to an mterrom
pido e vanadlssrmas
.
po u.¡ocs1
forado inus. Prision:ira de sua morfología dos aros, a lnquisi~áo f.azia 0 posdvoe
para arrancar dos nefandos a confissáo das ejacula4jáes anais. Afinal. pensavam os
266 TROl'iCO Do~ PECADos

juízes, se aqueles homens faziam tantas lubricidades se m qualquer pejo, por que
náo haveriam de perpetrar o "perfeim ato"? O que os impediria? Nao !hes bastava,
assim, que 0 indivíduo fosse "homossexual"; era preciso que praticasse a sodornia
perfeita.
Em 1689, no julgamenro de Doroteu Anrunes, um dos amantes do nosso
conhecido rabaqueiro Luiz Delgado, os inquisidores chegaram a se irritar corn a
obstina~áo do rapaz em negar a consuma'fáO dos aros. Provocando a toler5.ncia da
Inquisi~áo, Doroteu chegou a dizer que fora várias vezes penetrado pelo amante
sem consentir-lhe jamais o "derramar dentro de se u vaso traseiro", "por náo ver
naquilo nenhum gasto", e náo "por saber que era mais o u menos malícia" deixá-
lo ejacular no 3.nus. Em ourras palavras, Doroteu insinuou que náo pretendia
"enrolar" o Santo Ofício, minorando seus aros, mas que apenas náo lhe aprazia a
consuma~áo do nefando; do contrário, re~la-ia confessado ... Colérico, perguntou-
lhe o inquisidor: como nio fizeste mais coisas do que tens dito, se vivias de portas
adentro com Luiz em lugar ermo, a semelhan~a de "marido e mulher"? Náo era
"crível, nem verossímil" que nem ao menos algumas vezes deixasse derramar den~
no a semente- disse o juiz para o rapaz-, pois a "paixáo de semelhante luxú~
ria'' náo possuía limites, e seus praticantes sempre buscavam consumá-la por meio
da cópula anal. Diminuta e fingida, assim considerariam os inquisidores a confis~
sáo do réu, "pois senda sustentado pelo outro tanto tempo, e perdendo o pejo dos
primeiros atas, haveria de consentir no mais", isto é, na propríssima sodomia. Se
Doroteu era um fanchono amancebado haveria de ser também um sodomita, eis
a lógica inquisitorial na matéria, perdida e confusa entre os aros e o caráter. Mas,
nesse caso, os inquisidores náo se deixaram trair por seus critérios atomizadores
do sexo; recusaram~se a aceitar meras molícies no interior de um concubinaro
nefando, e qualificaram o réu como "cego, pertinaz e obstinado" na arte de men-
tir.32 Afinal, alguns inquisidores eram de opiniáo que 0 "crime de sodomía, por
ser oculto", podía ser suficientemente provado por "conjecturas e presun¡¡:óes" do
poder.
Havia porém réus mais ousados, sérios candidatos a acusa¡¡:óes de pertiná~
cia herética, os quais negavam totalmente seu envolvimento com 0 nefando, in~
cluindo as mais singelas molícies. A lnquisi¡¡:áo era nesses casos muito paciente,
pelo menos no início da argüi¡¡:áo. Perguntava~lhes se sabiam das causas perten~
centes ao ~anta Ofício; se acaso julgavam~se culpados em algumas delas; se ao
menos sab1am por que estavam presos; se sabiam que 0 sexto mandamento proi~
bia a cópula sodomftica cometida "quando um homem mete seu membro viril no
vaso traseiro de outro (. .. ) ou procura por atas próximos 0 cometer (... ) ou con~
267

re que outro homem lhe meta( ... )"." Noutras vezes . . ... _
sen . . . • a propna arguu;ao geral
de negacivos segUJa rumos esp~clals, como no caso de Gaspar Rodrigues, feiror
que molesrava es~ravos ~a Bah1a quinhemisra e ainda era infamado de aderir 30
nefando por ..
ter SJdo catlvo dos mouros em Argel. Sabedor des e
ses raros, pergun-
rou-lhe o viSitador: quantos anos anclara fora de Ponugal em terras mauras? Usa-
vam 05 infiéis de cosrumes nefandos? Acaso fora solicitado para cometer esse abo-
minável pecado por algum mouro?34 No juízo dos inquisidores persisriam, scm
dúvida, as idéias de um Jacques de Vitry, para quem Maomé _ inimigo da natu-
reza- havia disseminado o vício da sodomia entre seu pavo.
Mas, diante da aparente indiferen~a desses homens, que endossavam as
inrerdic;:óes doutrinárias sem assumirem nenhuma culpa, os inquisidores especifi-
cavam as perguntas e insinuavam acusac;:óes contra o réu: se cometeu ou tentou
cometer o nefando senda agente ou paciente, quantas vezes, em quais lugares e
circunstincias; se induziu alguma pessoa a faze~lo com ele a naco de dinheiro,
dádivas, promessas, etc. E, fracassando nas insinuac;:óes mais gerais, passavam a
questóes minuciosas, praticamente narrando as denúncias do processo sem no~
mear as testemunhas o u os paree iros: em quem penetrou e derramou o semen no
vaso traseiro, cerra ocasiáo? Por quem foi solicitado e consenriu na penetra~áo?
Com que companhia do sexo masculino, estando na cama, "o réu se chegava a ele
algumas vezes e lhe dava abra~os e beijos na boca e na cara, dizendo-lhe palavras
amorosas e colóquios como se fora um amante com sua mulher?"" Com que
pessoas e ande, nos últimos oiro anos, "estando ele réu e as ditas pessoas deitadas
na cama de noite, meteu ele réu seu membro viril na boca de urna das ditas
pessoas do sexo masculino?"36 Em todos esses casos, recusando~se os réw a confes·
sar, eram os inquisidores que produziam os variados discursos sobre 0 sexo, deta~
lhando aros, posi~óes, gozos e rudo o mais, embora no tom solene e formal qu<
lhes cabia utilizar
Tats..lfltetrogatonos
· , . eram cm tud o exrraord'mános. · ·longas e prolixas disser-
- .mqutsttonals
ta~oes .. .. sobre a pránca . d a sod omta,. en tremeadas de breves &las do.
réu negauvas. dos fatos ou da própna . val'd d - Alguns eram tio obsn-
1 ez as quesroes. .
.. mado 0 ato sodomlnco
nados em negar que nem sob tortura admmam ter consu .
. • . deu nos o f.amoso Lull
ou mesmo ourros. Exemplo raro de coragem e restsrencla ~
D1 b .¡¡,,¿. Aos 25 anos, <m
e gado, cuja história contamos no capitulo so "' 0 ,.,. · had' h
. . - eborense por sodom izar seu fututo cun •nlhe
1665 , quando preso pela InqlliSJ~ao °
d 12 . 1 d .rindo tio somenre que
e anos, Luiz negou com firmeza o cono ana • a ma ba ·
d amando apenas na rngo
rnetera o rnembro "na virilha entre as pernas (... ) en ·00•
(... ),e as vezes na mio do menino". Levado l poi~ para so~r "um trato corn '
268

resisriu ao tormenro, senda condenado apenas ao de~terro _de Évora e confinado


por ues anos nas fronteiras de Braganifa. Passados ma1s de Vlnte anos, era jáo rico
rabaqueiro colonial de que falamos, quando, por so~rer infinidade de acusa~óes,
seria preso e levado para a lnquisiifáO lisboeta. Expenente nas lides do interroga-
tório, Delgado negaria todas as acusaifóes que teoricamente !he imputaram os
inquisidores, resisrindo inclusive ao tormento no potro. Indiferente a admoesta-
~áo de praxe em que 0 inquisidor advertia o réu sobre o perigo de morte ou fratura
de membros nessas sessóes- eximindo-se de responsabilidades e m face da peni-
nácia negativa do acusado - , Luiz Delgado foi levado ao cárcere do tormento.
Arado nos bra~os e nas pernas com oito correias de cauro, foi submerido a um
"trato" e meio, isto é, a urna e meia volta no torniquete que regulava o apeno das
correias, e mesmo gritando por "Jesus do Céu e pedindo misericórdia", Luiz Del-
gado náo confessou. Utilizaria sua coragem como prova de inocencia, e livrar-se-
ia assim de possível pena capitalY
Resistencias e negativas, inclusive sob os apenas do potro e os solavancos
da palé, nada disso faltou a cerros somítigos diante da lnquisi~áo. Mas nenhum
deles ousou defender-se questionando a moral da lgreja e afirmando, por exem-
plo, que náo se julgavam pecadores por praticarem o nefando. Quando resistiam
até o libelo sem confessar, faziam contraditas com o auxílio dos procuradores,
limitando-se a incriminar possíveis denunciantes cujos nomes, por sinal, náo co·
nheciam ao ceno. Assim agiram vários somhigos, a exemplo de Luiz Delgado,
igualmente notável nesse domínio. Além de resistir a tortura, elaborou 243 con-
uaditas incriminando centenas de pessoas, incluindo sua esposa, seus ex-amantes,
vizinhos e autoridades da Colónia. Refutou, por exemplo, a suposta acusa~áo do
ouvidor do Río de Janeiro- homem que o havia complicado no romance como
estudante José Gon~alves- soba alega~áo de que o delator era seu inimigo desde
que ele réu o havia xingado de "judeu" - engenhosa maneira de ilegitimar o
denunciante aos olhos do tribunal. E refutou as possíveis acusac;:óes de seus aman-
tes e sua esposa, elaborando a extraordinária versáo de que a mulher !he cometia
o adultério com os criados, razáo pela qual todos 0 teriam acusado ao Santo
Oficio. Na história de Luiz Delgado, aposta ao que dele dizia a multidáo de
acusadores tanto na Bahia como no Rio de Janeiro, sua desprezada mulher era
urna grande adúltera, seus namorados uns grandes traidores de sua generosidade
e confianc;a, e seus vizinhos e amigos, alcoviteiros das relaljóes ilícitas que canto o
desonravam. Chegou mesmo a dizer que castigara dais escravos que levavam reca·
dos de Doroteu Antunes para a esposa, disposto a sustar aquelas ofensas "por
amor del a", apesar de traído. Talentoso, Delgado enfrenrou de fato a Jnquisi~áo:
269

brigou 0 Sanw Ofkio a fazer novas diligéncias atrasou 0 d h d


0 ¿· . , .• ' espac o a sentenc;:a
e ainda confun 1u os JUlzes por ocas1ao do parecer.
Em o~tros ca~os. era~n os próprios advogados indicados pelo tribunal que
insravam o reu a res1st1r, aJudando-o na elaborac;:áo das contraditas e defenden-
do-o mesmo diante do libelo acusatório. O dedicadíssimo advogado de Luiz Del-
gado no primeiro processo, em Évora, temou até descaracrerizar as nefandices do
réu com o ten ro cunhadinho, dizendo que se o acusado !he fazia "afagos, carícia.s
e mimos, era pelas razóes de m u ira amizade que os uniam, e de estar comprome-
tido a casar-se com su a irmá, e por lhe querer bem", senda "muito usado", aliás,
"fazerem-se semelhanres carícias e darem-se beijos e abrac;:os aos meninos natural-
mente". Nem mesmo o imaginativo réu ousaria urdir táo fantástica versáo, trans-
formando a popular "coxeta" em mimos inocentes, sabedor do que fizera e de
a
quantos o viram agarrado crian<;a ... Curiosa foi rambém a defesa que fez o
advogado de Luiz Gomes Godinho, réu confesso de praticar a mais variada sorce
de nefandices - incluindo fela<;óes em escadas e coitos na noite de Natal - ,
durante 14 anos e m Lisboa, até mudar-se para Sáo Paulo, na ColOnia, e abando-
nar o abominável vício. Solidário com o infeliz, defendeu-o o advogado ponde-
rando que "como pela mudan<;a de lugar se mudamos cosrumes", já diúa Santo
Isidoro, "tomando o réu este exemplo (... ), por evitar as ocasióes de pecado se
embarcou para as partes do Brasil (... ), dando visíveis sinais de arrependimen-
to". 38 Trópico dos pecados, o Brasil tornar-se-ia urna espécie de "recolhimento dos
fanchonos arrependidos", ao menos na imagina<;áo desse aguerrido procurador.
A melhor das de fes as que vimos acorrer nesses processos foi, contudo, a do
licenciado AntOnio dos Santos, procurador de Doroteu Anrunes, réu obsri.nado
em negar o perfeito ato sodomítico com Luiz Delgado. Diante da increduhdade
dos jufzes, aos quais parecía impossfvel que o acusado recusasse a ejacula<;áo do
amigo intra vas, urna vez que vivía amancebado e sustentado pelo amante, reror-
quiu o advogado: "Porque náo é totalmente inverossírnil que, p~nerrando~ 0
cúmplice, derramasse foca, pois se movia arrás do seu aperire. podena acha~ ma•or
deleita<;áo derramando enrre as máos do que derramando demro do uaselro, as-
. h .
como á homens que acham ma1or e e1raf)aO no a
Slffi
d 1. - ro venér<O pelo \'>SO derris
do que pelo diante" em senda rnulheres as parceiras. Dito de ourro modo. 0
d
do cudo era possivd ... N lo
ad vagad o afirmou que em matéria de prazer desor ena _1
· h
hav1a "' , · a desviando->< do narunu
omens que preferiam o 3nus das rerneas 41 vagm ' .
1 . 1 ados de sodomoa, nesscs
em matéria heterossexuaP Náo eram ram btm e es ~..u P . d
- h ria so mingos adepto.! ou-
casos, emboca náo fossem fanchonos? Por que nao aw . d ~
nas formas de deleite. desviando-se do habitual nas rela1¡6es ndan as.
270

Exrraordinária visáo do sexo demonsrrou cssc advogado - além de bri.


lhante defensor-, concebendo o prazcr como algo difuso e su jeito a numerosos
"aperires", além das cópulas vaginais o u ar~ais ..Se m negar a morfología dos atas
sexuais táo cara aos inguisidores, e scm drssocrar o sexo do pecado, vinculou a
busca de prazeres e o uso do carpo l imagina~Jáo e aos dese jos de cada indivíduo.
E nosso intrépido advogado foi além, esposando a causa do réu, e afirmando que
náo havia razáo para Doroteu ocultar alguns aros, se confessara outros igualmente
torpes(!), nem sua vida em comum com o parcciro era motivo para os juízes
presumirem tais aros! 1? Sua defesa daria resultado: convencidos de que Dororeu
era um nefando praticante de molícies, os inquisidores o condenaram ao desterro;
mas, aceitando a tese de que talvez náo praticara a sodomia perfeita, livrararn-no
dos a'oites, das galés ou de castigos piares.
E tia boa quanro a defesa de AntOnio dos Samas, emboca menos ousada e
mais de acordo com as regras do poder, foi a do próprio réu valenciano Mosén
Melchor Armengol, professor universitário preso em 1613. Optando por "dar
lic;óes" de teología moral aos inquisidores espanhóis, admitiu que sodomia e molície
eram coisas muito distintas, emboca ambas implicassem ejaculac;óes. Mas na
molicie, frisou, clava-se a emissáo de semen extra vas e, na sodomía, intra var; "e
assim, urna náo é semelhante a outra, nem os atentados de urna se podem dizer
atentados de outra, unáo que sáo duas vias diferentes por onde se pode chegar ao
deleiu carnal e torpe". Portante- concluiu -,se alguns ch.amavam as molícies
de sodomías, faziam-no imprópria e figuradamente, tomando o nome specie
sodomia pelo genero peccatum contra natura m- ande se incluíam as molícies de
que era de fato culpado. O réu declarou-se, assim, um torpe pecador, mas náo o
herege "somécico", livrando-se com isso da pena capital. ~o
Assim se defendiam, no máximo, em face do Santo Ofício os somítigos das
colOnias ou das metrópoles ibéricas. Por iniciativa própria, ou por intermédio dos
procuradores, buscavam descaracterizar a culpa sodomítica com base na mesma
teología moral da escolástica que fundamentava os inquisidores. Fora da mesa
podiam até se vangloriar de suas fanchonices,~l mas diante dos temidos juízes
arriscavam, quando muito, fazer o papel de pecadores "moles", fugindo da pecha
de hereges. Náo é. de admirar que os austeros inquisidores se confundissem mui-
tas vezes. Afina!, a quem deveriam descobrir e punir? Aos fanchonos, mesmo que
náo consumassem o coi[O anal? Ou so mente aos amantes daquele coito proibido?
Diffcil dizC-Io, pois no emc:ndc:r dos inquisidores nem todo fanchono era isenro
de culpa, mesmo náo praticando a cópula anal, e nem todo 0 indivíduo que a
cometesse era culpado de sodomia, a exemplo dos violentados, dos episódicos e
dos sinceramenre arrependidos. Entre o fanchono da culcura popular e 0 pratican-
pol'f.CAIJO A 111'1(1-'>IA

271

ce de cópulas com "pcssoas do mesmo sexo" (segund d ~"' . ~ .


,. d o a enm~ao tomtsta) .
ciwbeava o Santo OftCIO ao efromar-se com a d . • asstm
. , so om1a emre homens
MJChel J~oucault tem razáo, até cerro ponr d .l ·
. . . 0 • quan o VIS umbra no ami
0
sodomita u m cnmmoso acusado de ceno aro sexual· , 1 l g
. . . , . . ' a copu a ana era, com efeiro
a pnnc1pal refereru:ut para a deCifrac;:áo da sodomia b · , l '
, . . . ~ . • a ommave pecado. Mas, no
dominiO da lnguiSI\=aO, o sodomita podia ser menos · d .
. . . ~ ou ma1s o que o stmples
praucante daguele cono: pod1a se-lo menos se fosse ape 1 d d !' .
. ~ . . . ' nas cu pa o e mo ICtes;
podta s~-lo mats, ~e prattcasse a .sodomta com devassidáo, comumácia, indiferente
aos casugos do Ceu e da Terca, trredutível a qualquer emenda. Uns e curros eram
comudo, passíveis da punic;:áo inquisitorial, punic;:áo que inúmeras vezes deixav~
de lado a prava dos aros e debru.;:ava-se sobre as inrenc;:óes e 0 caráter dos indiví-
duos, como aliás convinha a um rribunal de fé.

NEFANDOS IMPERFEJTOS: A HERESIA DISSOLVJDA

Sodomia imperfeita, sodomía imprópria, a qualificac;:áo teológica das


nefandices heterossexuais já muito nos diz sobre a menor gravidade da cópula
anal nas relac;:óes emre homens e mulheres aos olhos da Igreja. Mais do que no
domínio do homoerotismo, a sodomía se afigurava aqui como sinOnimo exclusi-
vo de penerrac;:áo anal com derramamemo de semen, excluindo-se das rerríveis
fromeiras do nefando os demais aros, carícias e molícies. No tocante 3. a~io
inquisitorial, que parecía visar mais aos fanchonos que ao "am proprfssimo" de
sodomía, esse desdém em face dos coitos anais hererossexuais se rraduziria no
reduzido número de processados pelos rribunais lusitanos e espanh6is. 41
No Brasil colonial, encontramos algumas confissóes e denúncias desses aros
nas rres grandes visirac;:óes, de que resulcaram poucos processos. A maior parte ~os
casos provém da visita~iio do século XVI, alguns dos quais já citados: Ana S<•n.s
e Manoel Franco, humilde casal que confessou dais aros nefandos ap6s as .núp-
cias; Jácome de Queiróz, cónego pedófilo que andou sodomizando duas escr:avonhas
de sets <~ · · · 10
' e oito anos; Joana Nóbrega, prostituta e rrmce•ra · f.omada por arender
. . .
seus clientes pelo "vaso traseiro"; Fernáo Cabral, que por medo de adm•~•r maao-
res culpas confcssou ter sodomizado urna índia; Pero Dominguez e Mana Grega,
casal problemático cuja sodomia rendcria um proccsso ao marido. Com c~io
de pero 0 omtnguez,
. be m como de u m mercad or CriSlioiO-
· J novo de quem f.olar<mos
adiante, nenhum daqueles casos resulrou em processo espe.cífico, salvo quando 0
"somfcigo imperfeiro" foi também acusado de outros delaos. Excessos eróticos
entre homens e mulheres náo pareciam ser do interesse da Inquisi~t5.o, haja visto o
desprezo de Heiror Furrado em face da denúncia conrra um tal Joao da Lagoa,
acusado de no próprio aw sexual retirar seu membro da vagina de Ines Pausadas
e pó-lo na boca da amanre, "sujando-a'', conforme as palavras da delarora."
Na visita~táo de Marcos Teixeira, surpreendemos mais dois "casais" inculpados
por cais aws: Francisco da Costa, viúvo e funcionário da Rela~táo baiana, e sua cunha-
da, cambém viúva, Catarina N unes, confitentes de quatro ou cinco rela~óes anais;
AntOnio de Melo, alfaiate, e Isabel de Lima, viúva de um marinheiro a quem traía,
quando vivo, deixando-se sodomizar quarenta vezes pelo amante. Nos dais roman-
ces nefandos, se assim podemos chamá-los, o visirador náo fez mais que registrar
as confissóes. 44 Na tardia visita~áo paraense do século XVIII, tres indivíduos com-
pareceram a mesa para confessar tais sodomias: o carmelita Manoel do Rosário,
que confessou ter penetrado em duas índias, criadas e m seu convento marajoara;
o pequeno lavrador de ro~a Felipe Jacob Baralha, que admitiu persuadir a índia
Marcela a cometer o nefando, bem como a viúva Feliciana de Lira Barros; e, por
fim, esta última, que confessou suas rela~tóes com Felipe, apesar da "repugnancia''
que rais aros lhe causaram ... 41 O visitador Geraldo José de Abran ches so mente proces-
sou os dais homens, sentenciando ambos a "nunca mais cometer táo feio e abominá·
vel pecado" sob pena de, tornando a faze-lo, serem castigados com todo o rigor. 46
Do século XVI ao XVIII foram inexpressivas as denúncias e as confissóes
de "sodomia imperfeita" na ColOnia, e raríssimos os processos. A que atribuirmos
tamanha escassez? Acaso seriam raros os coitos anais entre homens e mulheres?
Seriam-no discretos, comparados aos dos fanchonos? Impossível dize-lo, embora
homens e mulheres talvez fossem menos dados acópula nefanda, e mais discretos
ao faze-la, que os "perfeitos sodomitas". De qualquer modo, a grande maioria
desses casos veio ao conhecimento do Santo Ofício por meio de confissóes (82%)
e, no tocante 3.s denúncias, somente urna resultou de testemunha ocular. O que
pare~e ser indubirável, no entamo, é a pouca valorizar.;áo atribuída pelo Santo
Ofí~ 10 acópula nefanda heterossexual, náo por acaso chamada de "imperfeira" na
tradu;áo escolástica. Apesar de tuda, os que confessaram esses atos a lnquisir.;áo
pareciam táo medrosos quanto os fanchonos, sabedores de que a sodomia era
~rime .de m~ne. "Em rela~táo aos homens, embora alguns alegassem "luxúria",
em~naguez o u tenta4f5.o demoníaca", afastando logo a suspeita de te re m prefe·
rCnc~a por e~sa cópula, a desculpa mais corriqueira era a de que, no clímax de seus
dcSCJOS, hav1am se desviado do "vaso natural" e "corrompido" por engano o inus
Dol'l·tAilO A 111-IU ·"'''
273

' . " • ~ T
a
da mulher. E náo faltaram os que, semelhanra dos hom . d" . _
ossexuaJS, IZJam nao ter
"cumpndo mtm vas, senao :ora dele ou na própria vagina, rransferindo com isso
as suas culpas_ ~ara o d,~mímo ~a molície ou da fornicac;áo. Quamo as mulheres,
algumas admn1am rer. consentido nessas torpezas", ourras se disseram for\adas, e
rodas passavam cena tmagem de repugnancia em face dessas relac;óes.
Mas, via de regra, esses infelizes se apavoravam atoa, pois os visitadores se
limiravam a adverti-los do quanro pecavam, insravam-nos a náo cometer 0 nefan-
do e mandavam-nos confessar na sacramental. O caso mais severamente argüido
que vimos ocorrer na Metrópole deu-se e m 1621, envolvendo a prostituta Maria
Machada, mulher de 36 anos, denunciada por dois clientes- um tratante e um
religioso - como useira em praticar sodomias. Denúncias desse genero calvez
fossem comuns na Lisboa seiscenrista pois, segundo o promotor inquisicorial, a
prisáo de Maria Machada era um meio de levar as demais prostitutas "indiciadas
no dito crime ( ... ) a se emendarem ou virem confessar suas culpas" na lnquisic;áo.
Presa e apavorada, Maria pós-se a negar rodas as culpas a mesa e, pergunrada se
sabia quais eram as causas perrencenres ao Santo Ofício, repondeu: "judeus,
fanchonos e somítigos". Também para genre simples, claro está, sodomia era coisa
de fanchonos o u somírigos, isro é, de homossexuais -embora nossa ré certamen-
te soubesse do que era acusada. Apenada pelo inquisidor, admiriria conSlernada
que, "por fraqueza e pelo dinheiro que lhe davam", carnerera diversas nefandices
com alguns clientes. O processo de Maria Machada foi contudo exemplar, desti-
nado a "purificar" a prostituic;áo lisboeta, dela erradicando a sodomia; a ffi0\3
acabaria degredada para 0 Brasil(!) e, ao que nos consta, náo seriam processadas as
demais prostitutas "indiciadas" pelo Sanw Ofício.H .
E m terras coloniais, so mente dois homens foram seriamente argüJdos nes-
sa macéria, ambos na visita do sempre original Heiror Furtado. Do caso e~v~lven­
do Pero Domingues já mencionamos alguns aspectos, especialmente 0 ódlo que
lhe devotava a mulher (e denunciante) Maria Grega. Mas o que deve ter chama~o
- d · · r · · ¡ · descnconuo das versocs
a atenc;ao o vtsl(ador para este caso rot, em pnnc P10 ' 0 • l
.
d e Pero e Mana, . .d fi lics de Ana SeiXas e ManO<
ao contráno do ocorn o nas con 155 fO.
Franco, igualmente casados na forma tridentina. Quem ddl.agrou 0 procc'SSO .1'
a rigor, a irmá de Maria, Francisca Grega, denunciando 0 cunhado por só poss~n
al amea~á-la de mone "' nao
a esposa pelo "vaso rraseiro", jamais pdo natur • e . M .
. · f, · a ..,1 de a própna ana
consenrisse na "dita torpeza". Quinze d1as depols 01 "d Ira
. d
G rega apresentar·se e acusar o esposo, d 1zen nunca scu man o a pos:su
o que ra1.
" d mamioporKuvason.aN •
naturalmente por diante; "muiras vez.es an ava co nd • _
. "lh 1 vaosptsmetc oscu mem
punha-a de costas e, "por cima da barnga e a cntl
!74

bro desoncsto por baixo do vaso uasciro". E ain~.a lhe dizia que náo pecavarn
naquilo, e que lhe "canaria 3 língua com urna fac_a se contassc o que faziam "na
cama, 00 cháo e sobre 3 rerra". Passados quarro d&as, sabedor do que dele diziarn
30 visitador, apressou-se Pero Domingues a confessar suas culpas sodomíticas.
Contou que havia dais anos era casado com Maria Grega e de fato nunca lhc
penetrara no vaso namral por ser "moc;a ~ui[O ásp_era de condic;.áo, e o náo querer
consentir" e que semente urna vez havta comeudo a sodomia com a mulher:
"cheio de vinho", cuidava que a penetrara na vagina, mas o fizera no 5.nus, derra-
mando intra vas.
Heiror Furtado nada fez sobre o caso até receber nova denúncia de Maria
Grcga, meses depois, renovando as queixas anteriores. Só entáo mandou prender
e processou Pero Domingues. Transformado em réu, Pero confirmou sua antiga
confissáo e acrescenmu que chegara a esboferear a esposa por náo re-lo advertido
de que a penetrara no vaso errado por ocasiáo da faddica cópula. E acrescentou,
rambém, que depois de sua confissáo na gra~a cuidara logo de possuir a mulher
pelo vaso natural, "levando-a de sua honra". Acusou, porém, o sogro, a cunhada
e a própria Maria de urdirem urna conspira~áo contra ele, réu, rentando mará-lo
e acusando-o falsamente no Santo Oficio. Negou, em suma, que desse preferencia
ao anus em suas cópulas com a mulher. Dianre da obsrina~áo do réu, o visirador
procc:deu as diligencias, apurou as inimizades da cunhada, do sogro e da esposa, e
absolveu Pero Domingues de rodas as culpas. Levou o caso as úlrimas conseqüen·
cias náo porque lhe interessassem as mazelas de simples casal da Bahia, que disso
tratavam os confessores ou vigários da Vara eclesiástica, senáo por suspeirar de
má-fé do réu. Talvcz fosse um viciado em cometer o nefando coma mulher, talvez
perperrasse mais atos do que o único admilido na gra~a. perjurando na mesa
inquisitorial. Mas, ao constatar que a esposa e os parentes adiavam o mo~o, deu-
lhe crédiro e mandou-o seguir em paz." Afina!, se mesmo em rela~áo aos fanchonos
o Santo Oficio náo se imponava muito com coims episódicos, ainda que proibi-
dos, por que haveria de se inquietar com nefandices conjugais?
O segundo "grande" procc:sso reve por vlrima o jovem mercader Rodrigo
Fídalgo, cristáo-novo morador em Pernambuco - acusado de sodomiz.ar urna
escrava de 15 anos que trouxera de Angola. O caso se tornou rumoroso depois
que a própria mo~a o rela~ou a urnas ••negras ladinas". 0 que, chegando aos ouvi-
dos de Maria d' Almeida, mulher dada a mexericos, acabaria virando denúncia
contra o jovem senhor. Convocada para depor, a escrava teve de faz.~-lo por meio
de int~rprete, e admitiu que dormira com Rodrigo urna só vez pelo vaso traseiro.
e ourra pelo narural; o único problema dessas cópulas foi-lhe aconreccr "náo rerer
as urinas" no di a seguinre, conforme como u - ela o u o imérprete?- na mesa da
visita~áo.
Preso por ordem de Heitor Fu nado em razáo de náo ter confessado esse ato
rara - e ralvez porgue era cristáo-novo e rico _ Rod · F.d 1 fi
na g .,. • . , ,. . . • ngo 1 a go tea u
apavorado. Pos-se a delatar mumeras praucas Juda 1zames da máe, da tia, dos
irmáos, de amigos da família e outros, a exernplo de jejuns, ora~óes e mais costu·
mes "judaicos" - emboca frisasse que jamais seus familiares riveram a imen\áO
de judaizar. Apenado pelo visitador, reperiu sua versáo, acrescemando náo ter
confessado na grac;a por motivo de viagem. Pois, entáo, deixando de lado 0 supos-
to judaísmo do réu, argüiu-lhe o visitador: sabia que dormir "homem com mu-
lher pelo vaso traseiro é o mesmo pecado contra natura nefando"? Pecou desse
modo com alguma pessoa? Como se chamava "urna moleca com quem lhe fazia 0
pecado nefando"? Quem poderia te· lo visw em tal aw? Rodrigo Fidalgo resisriu:
admitiu ter comprado a "moleca", mas negou wdos os ajunramentos carnais,
fossem o u ná.o nefandos, parecen do temer mais a culpa de sodomía que a de apostasía
judaica(!?). Mas remeu em váo; ná.o sofreu pena por sodomía nem por judaísmo;
semente por se ter omitido no período da gra.ya. 4?
Foram esses, porranro, os casos mais "sérios" de nefandos imperfeiros jul·
gados na ColOnia: dois homens processados por suspeira de má·fé ou omissáo,
mais que por culpas sodomíticas. No domínio da heterossexualidade, a suposta
heresia do nefando se dissolvia como por encanw; a sodomía perdía suas coces
abomináveis e lentamente escorregava, enquamo aro sexual, para o terreno dos
pecados afetos aos confessores sacramenrais. Náo por acaso, esriveram os
inquisidores de Lisboa a discutir se rambém no caso de "homem com mulher" era
o crime nefando matéria inquisitoriaPo E pouca coisa se alrerou ao decidiremos
inquisidores que, apesar de menos grave, competía ao Sanw Ofício casrigá-lo-
decisáo meramente teórica, coerente com a estigmatiza~áo do coiro anal, porém
desligada da prática judiciária do tribunal. Em matéria de sodomías, os inquisi~ores
só pareciam ter urna única certeza: a de que o abominávd nefando - hertsla ou
erro d e rré - só podia ser vascu lh ad o nas re 1a.yoes
- en rre homcns ' no mundo dos
somftigos e fanchonos "perfeitos".
SODOMIA FEMININA, TRIUNFO DA MISOGINIA

Dos raríssimos processos de sodomía feminina julgados pda Inquisi¡¡:ao


portuguesa, a maioria provém da visita de Heitor Furrado, sempre ele. Entre
1591 e 1595, 29 mulheres moradoras na Bahia e em Pernambuco foram arraladas
pelo visitador por rerem alguma vez praricado o nefando urnas comas curras, das
quais sete se viram processadas na ColOnia. Nas décadas seguintes, nenhuma
mulher, tanto no Brasil como no Reino, cairia na garras da Inquisi<;áo por seus
"atos impuros". E nos meados do século XVII, reconhecendo su a inexperiencia
nesses casos, o Santo Ofício lusitano decidiria que julgar nefandices emre mulhe-
res náo era rarefa da sua jurisdiijáo. Por mais que reprovassem a sodomía femini-
na, os inquisidores nunca esriveram bem cenos de como as mulheres poderiam
praricá-la se m o penis ... E, se eram incapazes de perpetrar o supremo ato nefando,
dificilmence poderiam cair no cerreno da heresia, que, no tocance a sodomia,
sempre fora visea como erro de homens. As nefandices femininas seriam doravante
equiparadas as molícies, comando-se objeco de confessores ou, no máximo, das
]usti~as eclesiástica e civil- e nao da Inquisic;iío, tribunal de fé.
Mas já nos processos quinhemiscas enconuamos o relacivo desdém que
vimos marcar cambém o julgamenco da sodomía hecerossexual. Enconcramo-lo
nem canto na defasagem emre o número de processadas {se te) e o de incriminadas
(29), pois o mesmo ocorreu em rela~áo aos demais acusados de faltas morais.
Ainda assim, das sete mulheres que, indiciadas pelo nefando, terminaram preces-
sacias por Heicor Furcado, apenas eres foram castigadas por aquele deliw, senda as
quacro rescames punidas por cueras culpas de que eram acusadas- comer carne
em dias samificados, luceranismo, irreverencias, leitura de livros proibidos, ecc.
E enue as eres sentenciadas pela prácica do nefando, táo-somente a nossa conhe-
cida Felipa de Souza sofreria cascigos rigorosos _ a~oites e descerro perpétuo da
capitanía.
O desprezo do visitador pelo "crime" dessas mulheres, vemo-lo menos nos
números do que no teor dos processos, das confissóes e das denúncias. Compara·
dos aos documentos ínquisitoriais sobre o nefando entre homens, os relativos 3.s
mulheres apresemam, de fato, sensfveis diferenc;as. A primeira vista, um cotejo
superficial enrre as duas séries documemais poderia nos indicar, no caso dos ho-
mens, um frenesí puramente sexual, alta circulac¡:áo de paree iros, encontros breves
e pouco afetivos; do lado feminino, ao menos entre as mulheres adultas, encon·
po n.LA!JO A IIIIH\IA
277

rraríamos romances, paix~es e criatividade amorosa, porém absoluta monotonía


no wcante aos aros sexuats. Quer-nos parecer, no entanr ,.
o, que nem os somtugos
eram homens apenas preocupados com sexo nem as mulheres que experimenta-
raiD aqueles prazeres eram sempre mulheres apaixonadas 0 d 1 al e
~ , . • . · mo o pe o qu 10•
ram vazadas as confissoes e denunctas, o ammo dos inquisidores ao rranscreverem
histórias e aros nefandos nos dais casos cerramente pesaram na descri~áo que deles
fazem as fontes.
Afigura-se-nos indubitável a discri~áo das mulheres na consecu~áo de seus
aros impuros, bem como a presen~a, aquí e ali, de algum requinte sedutor e
amoroso táo ou mais salieme do que as rela~óes sexuais. Raramente vistas nessas
situa~óes, as mulheres consuuíam verdadeiros romances secrecos, emplasrrados
nas sociabilidades femininas de que falamos em outro capítulo. Felipa de Souza
mandava bilhetes de "requebros e amores" a Paula de Siqueira; Paula inebriara-se
as
com a esrória lésbica narrada em Diana, ames de ceder propostas de Felipa;
Isabel Anrónia recobria de veludo, caro e macia reciclo, o instrumento com que
peneuava sua amante; Francisca Luiz mandava também, "por escrito" recados
a
para a namorada guisa de reconcilia~áo - e rudo isso na paupérrima e rúscica
ColOnia do século XVI. Oificílimo, com efeíto, enconrear fatos desse genero na
imensa maioria das relac;óes entre homens, em que "presentes" e "dádivas" mal se
distinguiam da explorac;áo da miséria.
Por outro lado, embora a qualifica~iio das culpadas em juízo fosse marcada
pela mesma adjetivac;áo estigmatizame da sodomia masculorum - abominável.
[Orpe, nefanda, etc. - , verificamos urna surpreendente uniformidade dos a[OS
sexuais narrados pelas mulheres ao visitador. Coincidentemente, o modo como as
mulheres se relacionavam sexualmenre era o mesmo em todos os casos, fossem
meninas, moc;as ou mulheres já feiras. Deitadas na cama, vez.es cm r~des ~.u no
as
cháo, ficavam urnas sobre as omras frente a frente, com as "fraldas amadas e as
"camisas levantadas", e "uniam seus vasos dianreiros" movimcntando-.se aré che-
garem ao deleite que, por sinal, nem sempre admiriam. Jamais se ~fenam ao uso
de "instrumentos penetrantes", manipula(jóes ou excitac;óes, freque~res nos at~
. - alavras de scdu(jaO nas qua.as
entre somfugos e fanchonos, mas tao-somenre a P . h.
.
Fel1pa fi - d lheres eram, aSSim, preenc •-
de Souza era mesrra. As con tssoes essas mu l ·
das mais pelas circunstáncias do romance e d0 enconrro do que ped a· narrauva ntos
. onremplavam os Ols assu
sexua1- ao contrário dos relatos mascu lmos, que e h _. e
~ . mo assim - omo!i.. nros
e, particularmente, os dados da cópula. Scnam mes . e_ dos pelas
.
destmercssantes . 1 .d aros Impuros conn;ssa
para as própnas envo VI as - , os .. d as do
vam ao v1s1ta or, rteros
mu 1hcrcs? Ou era essa a imagem que d e1es passa
278

castigo inquisiroriaP E, ainda, até que ponto ná~ seria ~citor fu nado 0 respon-
sável pela uniformiza\áo de relatos que !he pareoam des~uHeressantes~ Seja corno
for, a sexualidade feminina vazada nesses documentos ahgura-se-nos lmperceptí-
vel, quase opaca.
Decerto que as mulheres daquela época eram mais criativas sexual mente
do que 0 registrado naqueles autos. Eram-no na própria ColOnia, a julgarmos
pelo uso de filtros, canas amatórias, e até pelos romances que incitavam urnas
com as omras. Eram-no em todos os lugares, inclusive no plano heterossexual e
conjuga!. Era delas a iniciativa do coi ro interrompido, sugere-nos Flandrin, usado
como técnica contraceptiva até no casamento; afmal, sen do pred.rias as condi~óes
dos amigos partos, sobravam razóes para as mulheres limirarem esses riscos, con-
vencendo os maridos a ejacularem extra vm. E no caso das relac¡:óes ilícitas, em
meio a adulrérios ou no seio da prostirui\5.0, n5.o seriam as mulheres as mais
lesadas com a indesejável gravidez? Náo seriam delas as op<;óes de cópula que as
preservassem da fecundac¡:áo? 51 As lúbricas cortesás de Aretino, as dames-galantes
de Brantóme, náo faham exemplos de quáo criativas podiam ser as mulheres no
uso do corpo e na valoriza~áo de seus órgáos genirais, contrariando a "falolatria"
dos amigos, dos renascentistas e dos próprios teólogos. Em Portugal, as mulheres
usavam várias palavras para aludir ao "vaso feminino", ciosas de se u prazer, de seu
corpo ou de seu "ofício": as freiras de Santa Ana o chamavam de passarinho, as de
Santa Mana, ca"isu, as do Salvador, clitário; as da Rosa, covinha; as de Santa
Clara, mont~zinho; as putas, ave de rapina (?!); as casrelhanas, correio; as melin-
drosas, cousinha; e assim por diante. Conhecimenro popular da anaromia femini-
na, valorizac;:áo de tal ou qua! sensa~áo ou prazer, eis o que nos indica semelhante
vocabulário. 52
Além do mais, nos raros casos de "lesbianismo" argüidos em detalhe pelo
poder em outros pafses, remos a exara medida do que podiam fazer as mulheres
no máximo de seu ardor, eliminando-se a obscuridade de nossa documentaljáO a
esse respeito. A célebre Benedetta Carlini, abadessa italiana estudada por Judith
Brown, pelo menos trC:s vezes por semana se rrancava na cela com sua amante
Ban~lomea, "e fica:a se mexendo em cima dela até que ambas se corrompiam".
M~ 1sso era o m'm~o que faziam: Benedetta ainda beijava os seios da compa-
nheua, e ambas praucavam a masrurbac;:áo "aré atingirem 0 orgasmo"; segundo
co~fessou Bar~olomea, a abadessa "agarrava sua máo a forlja e, colocando-a em-
batxo dela, fazta-a colocar o dedo em seus genitais ( ... ) e ficava se mexendo at~ se
corromper a si mes:~". Em dezenas de ocasióes, ambas chegaram a dcspir-se -
faro raro- e a se beJJarcm e lamberem nas panes genitais.H Exceto pela "privad-
279

dadc" de que g~ozavam as fr~iras- sobretudo em senda urna delas abadessa-


áo remos razoes para duv1dar de que semelhanres aros f¡ . d '
n . ossem pranca os por
ourras mulheres;, E ma1s ousados eram ainda os acessos da alem3. Catharina Linck
com sua "esposa Margarerh, pois, além das "wrpezas" aqui menci d b.
.. ~ . o na as, o nga-
va a amante a be IJar e sugar o pems de cauro que trazia arado a cintura ... 54
0 próprio uso de insrrumemos era mais comum do que se podia imaginar. A citada
a
alemá usava-o farra, chegando a molestar sua amanee de ramo f.ci-lo _ assim
como curras mulheres eventualmente presas alhures¡ 55 também a amiga comédia
grega mencionava "instrumentos de cauro", usados já pelas aurC:nricas sáficas da era
dássica; 56 e náo esque<;:amos que os teólogos medievais aludiam aos instrumentos
de cauro, vidro e outros materiais como indicativos de verdadeiras sodomias en-
tre fémeas. Enfim, na própria Bahia dos anos 1580, Isabel Antonia era chamada
"a do veludo" por motivos perfeitamente conhecidos, inclusive do visitador.
Fica-nos, assim, a clara impressáo de que o uso nefando do sexo pelas
mulheres na ColOnia náo se pode perceber nos papéis do Santo Ofício. A que
atribuirmos esse possível obscurecimenw~ Podemos atribuí-lo, em parte, 3. cons-
terna~áo dessas mulheres cliante do visitador, conforme bem observou L. Bellini: 57
instadas a falar diante de homens esrranhos e poderosos sobre intimidades
secreríssimas e arriscadas, eram possivelmente económicas ao revelarem seus atos.
Mas nel}l todas se mostrariam apavoradas: Paula de Siqueira, já o dissemos, ou-
sou discutir com Heitor Furtado o porque de o Sanco Ofício proibir DianiZ,
apesar das óbvias ligac;:óes entre o livro e seus amores nefandos; D. Catarina
Quaresma, casada com rico senhor de engenho baiano, admitiu sornen te um ato,
negando com arrogancia e urna ponta de ironia as demais sodomias de que ~ra
acusada; e Felipa de Sousa, que antes de ser presa andou delatando erros alh~~~
ao visitador, foi a única pessoa a vincular seus aws "ao grande amor e afelp:
carnal que sentía" por individuos do mesmo sexo- suas amadas mulhercs ...
Mas nem Felipa, nem outras mulheres deram grandes informa~óes de ~us ~ros
sexuais, minorando-os conscientemente. Usassem ou náo insrrumenro, Jamals 0

d mam . . d 1 u levadas a tormento-.
ao VISitador - exceto se apena as pe a mesa 0 l
fessá-lo Se havia tetl o-
sa bedoras do quanto poderiam agravar sua cu 1pa ao con · _L .
. . de insuumenros na SOIIII"'"'
gas e JUrtstas que negavam valor agravante ao uso .L
.
fiotmmarum, lh d A ó io Goma. consoucravam-
ourros havia que, aseme an\a e nt n . . ~ot N b<-
n0 ' . lh fandas a togueora. áo ..
a un1ca razáo justa para condenar mu eres nc l
riam essas mulhercs de amigas rés levadas ao cadafalso pela Jus~i~l. sccu ar cspa~
h . so de "cotsas penetrantes
0 0 1a ou lusitana? Náo reriam ouvido d1zer que 0 u . . ró--
. ¡ ·..,.> S•J• como lor. o P
po d la conduzi-las a mane, equiparando-as aos som n~--·
1 JH J]'J( .() IJ!¡; I'EC.A.IHJ~
200

· tri'b un al de Zaragoza havia decidido, cm 1560, que '". inquisidores nao


pr1o _
mmauem conhccimenw das "camas de mulhcrc~ qiH: 5em rmtrumento rinharn
molkics urna com a ouna";r.cJ e a própria semenc,.a (.ondcnarcJria de Fdipa de
Souza, cm 1592, au~nuaria su a pena considerando a au.\l:ncia de "instrumento
penetrante" cm suas variadas cópulas. As "nefanda," da Col.bnia ncgavam, pois,o
uso de insuumcnros, e tal vez ncgasscm gestos e roques ma1s ousados, limitando-
se a responder quanras ve-tes praticaram as "cópulas", se rivcram o u náo deleites,
e as dcmais qucstócs previstas no Ínterrogarório.
Dcfcndiam-se as mulhercs de u m inquisidor que pouco !hes dava aren~áo,
ralva porque náo cstívessc convencido da alcrada inquisitorial sobre o assumo e
cenamcntc por dcsconhc:c(r o carpo feminino, scus descjos e prazeres. Nos casos
cm que inquiriu as mulhcres com mais apuro, jamaís tcntou esmiuc;ar os detalhes
das rclac;ócs scxuais, e nunca desconfiou das narrativas feítas a mesa. Se acaso
desconfiou, náo teve inrcrcsse maior cm "desvendar a vcrdade" o u descubrir o erro
- como fazia com os homcns - , orquesuando confissócs quasc idemicas nos
auros da visira~iio. Argüindo Fdipa de Souza, limirou-sc a lhe pcrgunrar por que
nio confessara suas torpezas ao tcmpo cm que viera denunciar oU[ras pessoas; e,
ouvindo de Fdipa que fora o confessor espirirual quem lhe dissera niio haver
nccessidadc de ir ao Sanro Oficio, lcmbrou-lhc que isso era falso, pois a sodomia
conllava explicitamcmc no monirório. 61 No caso de Cararina Quaresma, que
uoou a mesma dcsculpa de Fdipa, dizcndo que seu confessor a dissuadira de apre-
scntar-sc a mesa, o inquisidor uarou de investigar as outras rc:lac;óes ou circuns-
t1ncia.s: quamas vezc:s rinha cometido o nefando; o nome das moc;as; se havia
"candeia accsa" quando perpetrara o único aw confessado; quem lhe havia cosí-
nado a mentir perantc o Santo Oficio.r,z Mas náo levou a inquiric:;:áo adiantc ...
E no caso de Francisca Luiz, infamada por dormir com u a do veludo", limitou-sc:
a pergunrar se mandara ou náo o recado para a amante cm busca da reconciliac;áo;
scqucr lhc ocorrcu argüi-la sobre a pc~a de vdudo usada por Isabel, sua amanrc,
cmbora o faro consrasse na dcnúncia e no dossie cclesi:isrico anexo ao proccsso
inquisitorial.(j'
De ramanho dcsinrcrcssc, combinado lt cspcrrcza das mulheres, rcsulraram
as narrativas inócuas, onde rodas as "nefandas" apareciam urnas sobre as ouuas,
"co~o se f~ss~m homc:ns com mulheres", depcndcndo de que m ficassc uem cima"
ou cm ba~xo no aro da cópula. As rda~ócs l~sbicas cram, assim, idcnrificadas lt
sodo~ia m:uculina, uma.s e ourras prísionc:iras do esquema cjacularório e do modelo
do COl lo hcrerossexual e falocenrrico que orienravam os dbios do Ocidcnrc desde
01 grcgoo ao1 inquisidorco. Em se rrarando de somhigos, homem era 0 penerranre,
281

ulher o pa!iosivo; cm senda mulheres as nefandas e " ._


' m . . . . .. ' ra a posu;ao nalural" da
cópula o w1cno dcfinodor dos papm.
o de~dé~ i~quisi~orial. em relac¡:áo asodomía feminina náo passou de urna
facc.ta. da m1sog1ma en tao remante. n~ cuhura erudita ocidencal: a mesma que
P101 b1a a nudez da. mulher
, . com. mm .ngor que a masculina·• a mesma que, repro-
duzindo o cor~o hzpocrattco, esugmauzava a vagina e 0 útero como órgios imper-
feiloS e doen11os, se comparados ao porrenroso falo." Jurisra dos mais famosos na
Suí~ do século XVI, Germain Colladon nao considerava necessário descrever
minuciosamente os atas entre mulheres nas semen~ das condenadas, bastando
sintetizá-los como detestável crime contra natura. abominável e torpe. No enran-
ro, lembra-nos Monter, os homossexuais masculinos tinham as circunstincias de
seus crimes proclamadas em detalhe por ocasiao das execu~es." Nao 1io ilus1re
como Colladon, Heilor Furrado era um juiz do seu lempo, um erudi1o da Igreja
que se recusa va a ver o u renatar o carpo feminino, incapaz de conceber as mulhe-
res fazendo sexo sem o falo. Seu desinreresse pela sodomía feminina era porran1o
um fenOmeno cultural, um trac;:o dos saberes misóginos enrio triunfantes. Se para
os moralistas da época, as mulheres eram naturalmente torpes, eram·no sobretu-
do ao pecar ca m homens, desviá-los da razao, seduzi-los como Eva para a queda
da humanidade. Pecando entre si, sem homens nem falos, podiam quando mui1o
perpetrar molícies, jamais a verdadeira sodomía, e menos ainda a hcresia que
somenre o coila anal era capaz de consumar. O visi1ador do Brasil quinhen1isra
nada mais fez que antecipar em meio século a decisao que a lnquisi~o porruguesa
viria a lomar em 1646, escusando-se de julgar as "torpezas enlre mullieres".
Assim agia o San lo Oficio. Elevava moralidades e sexualidades ao niV<l de
heresias e desqualificava ourras tantas, relegando-as ao rerreno dos pecados. Na
pr:i1ica judici:iria inquisitorial, a sodomía acabou senda menos do que as_rel~
sexuais cnue pessoas do mesmo sexo, conforme diziam o Douror Angihco 00 0
Código de D. Manuel. 0 nefando limirar-se-ia ao mundo dos soml1igos e dos
fanchonos - nossos antigos homossexuais.
NOTAS

1. Foucauh, M. Vigiar t punir. Pcuópolis, Vozcs, 1977. p. 34.


2. Id. ibid., p. 40. Ao conuário do que diz Foucault, que arribui essa individualiza~o do
julgar as conce~óes judiciárias dos seteccntos, cm oposi¡;ao ao Amigo Regimc e aprática
penib:ncial crislá, somos de opiniao que o Santo Ofício já preconizava esse caminho cm sua
merodologia de interrogatório, apesar do arcaísmo da lnquisicráo cm numerosos aspca05.
3. Ver alguns ca50S de torturas de feiliceiros (as) coloniais em Souza, Laura de M. e.
O diabo e a umz de Sanl4 Cruz. Sao Paulo, Companhia das Lenas, 1986, p. 334-370.
4. Bcnnassar, Banolomé. Modelos de la mentalidad inquisitorial: mé[Odos de su pedagogía
del miedo. In Alcalá, Angel et alii. lnquiJición EsptznoiA y mtnta/idad inquisitorial Barce-
lona, Ariel, 1984, p. 177.
5. &gimtnto do Santo Oficio dt Portugal (1640). Exemplar mimeografado, Livro 1, thulo 1,
par.lg. 2 e titulo IX.
6. AN1T/1L, proeessos 17807 e 8502.
7. Id., proeessos 17807 e 10876.
8. Id., proemo 634 l.
9. Id., proeesso 1111 l.
10. Id., processo 7947.
1l. Primtil'll uisil4ri~ .. Confosón de Pernambuco(/ 594-1595). Recife, Universidadc Federal
de Pernambuco, 1970, p. 55-56, grifo nosso.
12. ANlT/IL, proc. 6361, grifo nosso.
13. Id., proeesso 8502.
14. Id.• proce150s 885 e 1499. joío Nunes foi dos poucos enviados a Lisboa pelo visiwlor.
Idcm, proeeuo 6344 Diogo Nunes).
15. Id., processo 17065.
16. Id., proeesso 5546.
17. Confo•ón de Pern•mbuco, p. 130-132 e 76-77, respectivamente.
18. AN1TIIL, proccuo 10745.
19. Id., proCCNO 11283.
20. Id., procc110 5722,
21. Id., proeesoo 9479.
22. Id., proeeuo 6997.
23. Id .. p10CCIIO 8473.
24. Id., proccuo 6702.
283

25 . Id.. proccsso 8473.


z6. Id., processo 205.
l7. Id .. processo 11607.
28. Id .. pr~cesso ~ 118 .. O_ réu foi co_ndenado a mane pelo Sanro Oficio, que julgou suas
confissoes tard1as. dlmJnUlas e an1madas pelo único desejo de salvar a própria vida.
29. Só o penis era contemplado com cinco nomes: mtmbro, arma, ,arajo, pija, e pJj¡zro ou
parda~ a ere~áo era .definida como aheraHe, armar·se, ter o membro alterado; quanto a
ejacula4JáO, predommavam~ expressóe~ o.flciais como dtmzm4r, srminar e cumprir, apc:sac
de alguns usare m expressoes deprec1at1vas em relac¡;áo ao sexa ántou porraria tk suas
partes, por exemplo. V. Carrasco, Rafael. fnquisirión y "}rmión stxual tn Valnuitt. Barce-
lona, Laertes Ediciones, 1986, p. 103·105. No século XVII frei Lucas de Sama Cawina
definiu com humor o pfnis "( ... ) na língua ma[erna lhe chamavam carvalho, ürando-lbc
a le[ra V; nas universidades os canonisras o apelidaram de cano, os lcgisw e os médicos,
natura; os cirurgióes, mtmOro; os sapateiros o [em por buxo; os mercadores por coiiiZIÚJ; os
alfaiates por forador, os pasreleiros por carnt-viva; os violeiros por cavaktt. Nas rdigiócs
dos franciicanoi o apelidam vtrga, os capuchos pau (... )",grifos nossos. Resposta de urna
pergunta que se fez a um ceno homem por urna freira em que lhe perguntava que cousa en.
Frangalho. BNL., Se~áo de Reservados, Manuscrim 128, Col. Pomballna, p. 95.
30. Afirma G. Freyre que "por ahrac;ar e beijar - tuftmismo qut inJica v4rim fomw tk
priapiimo - foram degredados de Portugal para o Brasil numerosos indivfduos". Ver
CaJa-grandt t unula. 16. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, p. 323. Grifo nosso.
31. Olivieri, Achillo. Erotismo e grupos sociais na Veneza do século XVI: a con~. In Arits,
P. e Béjin, A. (org.) Op. cir., p. 91-92.
32. ANITIIL., processo 4230.
33. ANIT/IL., processo 4565. Exame in gmtrt de Luiz Gomes Godinho, réu pauli.Sla do
século XVIII.
34. Idem, processo 11061, segunda sessáo de interroga[ório.
35. ANITIIL; processo 4769. Exame in sptcit de L. Delgado.
36. Id., processo 4565. Exame in sptcit... . nu ~no Brasil
37. Id., processo 4769. V. tb. MO[r, L. R. B. Desvenwrasdc um sodo~t~ ~ gu 1 q~
seiscentista. Comunicac;áo apresentada no 1Congresso Luso-Brast caro re a n
Sao Paulo, 1987, mimeo., p. 16.
38. ANIT/IL., processo 4565. conrraditas.
39. Id., processo 4230, ibid.
40. Carrasco, R. O p. cit., p. 48, grifo nos;o, d ·nar $N$
41 · · d - d Sé do Porto. cosluma.va ouc:n
· Um tal padre Grcgório Martins 1-cr~tra. cao a · lkus radt) df 05 horMN
colegas nefandos dizcndo que a sodomía fOra proibida ~lf.. e~ -JU&c 1 lff'l'ilo. 1
. 1 . ¡· ~ J ('S...J.·¡c· SC Jtlo lmpo;v
se mclinarcm a da, impedindo a mu up u.:a,ao a r- ·1\ r.¡ode poma¡u&.... p.l-'6
sodomía seria uma furniL-a ..áo simples". Apud Mott. LR. ·
TR()l'ICO Dos PECADos
284

42 . Para 0 caso cspanhol, só trc!s processados em VaJéncia (0,8% dos casos de sodomia), 1! nc-
nhum castigado; 00 tribunal de Barcelona náo houvc_ casos;~ e no de Zaragoza apenas d~:L,
contra cemenas de proccssos envolvendo homossexuaJS. V. Carrasco, R. O p. cit., p. 37. 38 _
43. Primára visitaráo... Dmuncia(óts da Bahia (1591-1593). Sáo Paulo, Eduardo Prado,
1925. p. 525-528.
44. Segunda vúitaráo do Santo Oficio... Confissóes t Ratificn(óes. Anais do Muscu Paulista,
romo XVII, 1963. p. 374-376; 461-462; 524-525.
45. Livro da Visita(áo dO Santo Oficio da lnquisitáo ao titado do Griío-Pará (1763-1769).
Pmópolis, Vozes, 1978, p. 147-150; 186-191.
46. ANIT/!L., processos 2694 e 2695.
47. Id., processo 11860.
48. Id., processo 2525.
49. Id., processo 12223. Foi condenado a sair em auto, "abjurar de leve" e pagar trima cru1.ados
ao Santo Ofício. Até o Conselho Geral discordaría da semen~a. avaJiando-a poS[eriormcme:
"Este réu merecía usar-se com ele de muita misericórdia por haver denunciado sua mae (. .. )."
50. Papel de direito sobre a queS[ao se o crime nefando cometido emre mulheres ou homem
com mulher perten~a ao Santo Oficio castigá-lo. BNL/Se~áo de Reservados, códice 1531,
fls. 306-308. A discussao nao vem datada, mas deve ter acorrido no século XVII, a pro-
pósito dos Regimentas de 1613 ou 1640, os primeiros a induírem a sodomía no rol das
culpas do tribunal.
Sl. Flandrin, Jean-Louis. Familits. 2. ed. París, Seuil, 1984, p. 213 e segs.
52. Assim nos informa o irrevereme dominicano(!?) freí Lucas de Santa Catarina (1660-
1740) em sua "Resposta da Freyra para o suplicante acerca {de) que couza seja Parrameiro".
BNL. Se~ao de Reservados, manuscrito 128, Cole~ao Pombalina, p. 96. AJém de nos
informar sobre o quamo as mulheres prezavam seu sexo, 0 dominicano bem conhecia os
segredos do prazer feminino - coisa rarfssima em seu tempo. Emre outras defini~óes,
diz.ia que o parramtiro era "amigo de folgar" e quando tinha "crescimentos e solu~os" só
depois de vomitar ficava "aliviado".
53. Brown, Judith. Atos impuros. Sao Paulo, Brasiliense, 1987, p. 169; 172-173.
54. Erilwon, Brigíue. A Lesbian Execution in Germany, 1721 - the Tría! Rccords. In Licata.
S. e Petersen, R. {org.) Historica/ Pmptctiws on Homostxuality. New York, Hawonh Press
lnc., and Stein and Day Publishers, 1981, p. 37.
55. Aguisa de exemplo, vária.s mulhercs foram punidas com a~oites pela justi~a civil castelhana
por usarem ínsnumentos "in forma dt naturt dt hombrt''. V. Cardaillac, Louis e Jammes,
Roben. Amours et Slrxualité a travers les mémoircs d'un inquisitcur du XVIlc. siedc. In
Amours ligitimts, amours illigitimts tn Espagnt. París, Publications de la Sorbonnc, 1985,
p. 188.
56. Em Herondas, VI, vinculava-se ()uso desses instrumentos a "falta de satisfai(ÓCS conju·
gaisn. V. Rouselle, Alinc. Porniia; uxualidadt t amor no Mundo Antigo. Sao Paulo,
Brasiliense, 1984, p. 82.
Do rf.CAL>O ALL~.Il~-~~A
285

57 _ Bellini. Lígia. A coila obscura. Dissenas:áo de mestrado apresentada aUniversidade Fcde·


ral da Bahia, Salvador, 1987, p. 100.
Si. ANTf/IL., processo 1289 e 1267.
59. Apud Crompwn, Louis. The Myth of Lcsbian lmpunity... In Licata, S. e Petersen R.
(org.) Op. cir., p. 19. '
60. Apud Carrasco, R. O p. cir., p. 36.
61. ANTf/IL.. processo 1267.
62. Id.. processo 1289.
63. Id., processo 13787.
64. Bologne, jean-Ciaude. Histoir< ¿, la pud•ur. Paris, Olivier Orban, 1986, p. 34-35.
Darmon, Pierre. L• Mith, ¿, promation aI'Ag• a.,...,.
Paris, Seuil, 1981, p. 10-17,
211-221.
65. Momee, E. W. Sodomy and Heresy in Early Modern Swincrland. In Licata, S. e Petc:rsc:n,
R. (org.) Op. cit., p. 47.
A ENGRENAGEM PUNITIVA

E foi qru de ""mrtt ci'UII , foia,


A maiJ t¡ut eu nu.nu vi, tÚlllmpaMnzm
Muiws a vitltt, , "" kml nlrttnha , alhtia
Os ossos para snnprr sqJuúaram,
Qunn hawrá qru snn o wr o mia!
Camóes:

Para o tksumJ sn- mDru, nmbuma coisa


lhtfttlltt...
Vieira

PROCESSOS E IMPUNIDADES

BALANr;o DOS PROCESSOS - UMA ABORDAGEM COMIIfRATIVA

Trópico dos pecados, o Brasil foi no entanto colonia das menos atingidas pela
repressáo tridentina no mundo ibérico, ao menos no tocante as moralidades e aos
desejos afetos a Jnquisi~o. Colonia imen5a onde OS podera Knhoriai5 sempre
lcvaram de vencida os débeis representantes da Métropole, Colonia cm que a
lgteja fota sempre desarticulada e fraca, a ex~ dos jesuitas, o Brasil acabarla
menos castigado pelo Santo Oficio que as metrópole5 ibéricas, Goa e a vizinha
América espanhola. Na segunda metade do •éculo XVIII, fortalecida a adminis-
""''áo colonial pelas reforma5 pombalinas, multiplicados os bupados e orpniaa-
da a esrrutura paroquial, a Inquisi~áo e51a.,. ji em franca decadencia na Penlrm~­
la. Ainda nos anos 1740-1760, a miquina de su~o de hereses daria mosms de
alguma clici~ncia, recolhendo dezenas de infelizes de virias qióes bruileiras,
noradamenre das Minas do ouro¡ mas nas ú.lrimu d«adas dos seteceoros srriam
288 TROl'iCO Dos PECADos

raros 05 réus coloniais encarcerados no sempre rerrível tribunal de Lisboa, apesar


da curiosa e rardia visita¡;áo do Gráo-Pará.
Comparados aos sentenciados da Menópole o u de out ras colónias, 0 nú.
mero de "pecadores hereges" oriundo do Brasil foi bastante modesto em todos os
crimes. Vemo-lo menos no caso das proposic;óes erróneas sobre a fornica~áo e
sobre 0 casamento verms celibato, delitos que só ocuparam a aten¡;áo dos
inquisidores entre as úlrimas décadas do século XVI e as primeiras do sécu-
lo XVII. Os réus coloniais desses crimes, já o sabemos, foram todos processados
na visita de Heiror Pureado: 19 homens por apregoarem o "sexo livre" para 05
machos, e 18 indivíduos por julgarem que mais valia casar do que ser religioso.
Na mesma época essas "idéias" eram vasculhadas em Ponugal e entre os colonos
da África e das ilhas adinrícas por meio das visitac;óes, e dezenas de pessoas se
viram sentenciadas por falar demais "sobre o que nao entendiam". 1 No vizinho
Peru colonial, ande o tribunal fora recém-instalado e m 1571, Barrolomé Escandell
Bonet verificou 32 "rela~óes de causas" por "doutrina contrária ao sexto manda·
mento'? ao passo que na Espanha alguns tribunais chegaram a punir várias
centenas de "fornicários": 346 em Toledo, de 1561 a 1635; 145 em Logroño, de
1571 a 1590. 3
A puni~ao de "fornicários" e questionadores do estudo religioso, caiu em
total desuso nos domínios ibéricos antes da metade dos seiscentos, reduzindo·se a
números ínfimos os réus desses crimes nos autos·de-fé posteriores a 1650. Verifi·
cando esse declínio com rela~ao aos "fornicários" de Espanha, Jean-Pierre Dedieu
atribuí-o ao relativo éxiro da campanha "moralizame" que animo u o Santo Ofício
hispinico no pós-Trento: apesar de nao impedir o sexo extraconjugal, a perseguí·
~áo aos defensores da fornica~ao entre os séculas XVI e XVII teria ao menos
contribuido para o autopoliciamento das consciencias e falas entre a gente rústica
do pafs, preparando inclusive a decisáo tomada por Felipe IV contra os bordéis do
Reino em 1623- medida que, se também nao extinguiu a prostitui~áo, dificul-
tou-a e, segundo o autor, jamais seria decretada sem 0 apoio prévio da propagan-
da inquisitorial a favor da continéncia. Ficamos céticos, no entanto, diante do
que afirma Dedieu nesse ponto. Seria o desaparecimento dos réus "fornid.rios"
urna prava de exíw da campanha inquisitorial? Teriam deixado os homens de
apregoar suas amigas convic~óes de que náo iam ao inferno por dormirem com
"solteiras" ou "mulheres públicas"? Certamen te que náo, cm hora seja possfvel que
fossem mais reservados e económicos ao tratarcm do assunto, após décadas de
persegui~áo inquisitorial. Talvez cm Espanha, admitamo-lo, as centenas de sen-
tenciados por se uoporcm ao sexto mandamento" renham produzido maior inri-
289

rnida¡áo ali que e m Portugal, país em que a persegui10áo foi mais modesta. Quer-
nos parecer, contudo, que o principal motivo para o declínio das persegui¡;óes
residiu em que também os pretextos da incrimina¡yáo dos fornicários perderam
sua razáo de ser- o que se nos afigura igualmente válido para a "errónea compa-
ra~áo enrre o matrimónio e o celibato religioso". Náo emraram essas falas no rol
das heresias quando mais acirrada era a lutada Igreja comra o avan ¡yo protesrame?
Náo resultara do Concílio de Trento a suspei¡yáo de luteranos que recaiu sobre tais
dizeres' Ao longo do século XVII, demarcadas com nitidez as fronreiras do cato-
licismo e da Reforma, os que diziam náo pecar ao dormirem com prostitutas, os
que pensavam "ser mais fiel a Deus o bom casado que o mau padre", deixaram de
ser heteges aos olhos do inquisidor, e suas falas acabariam reduzidas a pecadilhos
ou "falta de doutrina", nunca má-fé. Se também animara aos inquisidores perse-
guir fornicários e casadoiros por razóes morais - defesa do casamemo crisráo e
do airo valor da casridade, respectivamente-, o fim dos "arrifícios" usados para
essa campanha moralizante acabaria por extinguí-la, ao menos nos moldes até
enráo adorados.
Em Portugal, só por inércia as duas proposi~óes permaneceram incluidas
nos monirórios inquisitoriais, especialmente a defesa da "fornica~áo simples". ex-
plícita no monitório de D. Francisco de Castro (1640), no regimento "pombalino"
0774) e no monitório de Goa (1780), embora se lhe náo referisse o vasto rol de
quarema delitos fixados no Regimento do Audirório Eclesiástico, roceiro de cul-
pas utilizado pelas visitas diocesanas no Brasil após 1707. 4 E na visirac¡:áo paraense
do século XVIII náo encontramos nenhuma confissáo o u denúncia daqudes erros
enrre os vários recenseados por Geraldo José de Abranches .• Seja como for, apó~
1650 foram raríssimos, mesmo e m Portugal, os culpados de 'defender os casados
ou a fornicat;áo; se houve denúncias náo o sabemos, mas processos ~ora~ re~·
mente poucos O último que vimos processado em Lisboa por confc:-nr pnmaz•a
ao casamento .foi um cal Simáo Dias, em 1656, que dc:-ve [é-lo feüo com ~ra~de
peninácia, senda dois anos degredado para Casrro·Marim. ~Qua~ ro a forn_•ca.;ao,
· dos em Losboa, doos ddes
de 1717 a 1723 encontramos quarro homens sentenCia d
. . . m 0 sexto mandamenro a par e
em circunsráncias muiro espec1a1s, pou contestara l h ''G h ...
0 30
erras rnais gravosos: o rrabalhador AntOnio Rodrigues, de a cun a an · '
l · h com cena mulher como se tos.se
que afirmava "ser lícito a cópula carna que nn a l do"· J ttph
. S h a Nossa lho rc:-rc:-m revc a • e o
com ela casado, por Deus e a V1rgc:-m en or . . L-· . rrs
d da luxúna JUnto a ·~·n~ e ar
Manreigas, cambém acusado d e negar o peca 0 . b . .111 •
. . 0 primelfo aca ,arra que• -
mágicas que usava para seduz.lf mulhercs mcautas. f .i . ~ 0
do por herege e vi.sionário pertinaz - nunca pelos dizert'.S ornK rro.s - .
segundo condenado iis galés pela culpa ~gravante de ora<;ócs rorpcs." A "defesa da
fornica(jáo" _se emáo podemos chama-la dessc modo - rransbordaria em do.
mínios semelhanres aos frcqüenrados pelo tal Manreigas, ou seja, no terreno da
magia erúlica, das ora(jóes e dos filtros amorosos que homens e mulheres adora-
varo usar cm busca de casamenros ou conquistas tanto em Porrugal como no
Brasil. Acusa<;óes de "magias fornicárias e casadouras", cssas si m náo faltariam a
nossa visita(jáO do Gráo-Pará, rastreadas por urna lnquisi¡yáo cambaleanre, porérn
ciosa da fé católica, mais que de sua moral sexual e familiar.
Mas é principalmente no rocanrc ao "abominável pecado nefando" que
constatamos a parcimónia com que o tribunal de Lisboa puniu nossos colonos,
para glória do diabo, em comparac;áo ao que fazia na Metrópole. Do século XVI
ao XVIII, 49 pessoas foram processadas por sodomia na Colonia, dos quais 73%
eram nossos conhecidos somítigos e fanchonos envolvidos em rela¡yóes homosse-
xuais. Na visita do século XVI foram-no 19; no século XVII, fora da visita, ape-
nas oito; e no XVIII, nove indivíduos. Comparada a persegui¡yáo inquisitorial nas
mctrópolcs ibéricas, a acorrida no Brasil foi modesríssima: 411 nefandos foram
punidos sornen te no tribunal de Lisboa, entre 1547 e 1768; 132 em Zaragoza,
apenas no século XVI; e 259 em Valéncia, de 1547 a 1775. 7 Especialmente no
século XVII, tempo em que mais foram perseguidos os sodomitas pelas lnquisi¡¡:óes
lusitana e aragonesa, os singelos oito nefandos coloniais sentenciados em Lisboa
se nos afiguram irrisórios. Em Ponugal, nada menos que 270 indivíduos foram
punidos por sodomia nos autos ou nas salas dos rribunais lisboeta, eborense e
coimbráo nos anos seiscemos (60% do tO[al), o mesmo ocorrendo coma imensa
maioria dos "soméricos" valencianos entre todos os punidos pelo Santo Ofício.
Igual intensidade persecutória, de longe superior a dos piores tempos medievais,
ocorreu cm países onde náo havia lnquisi\áo: na Fran¡ya católica, 90o/o dos 43
bougm condenados a várias penas pela justic;a civil foram-no nos séculas XVI e
XVJI;B na pequena Genebra calvinista, onde mais rigoroso que o Santo Ofício era
0 terrívd Consistório, a grande maioria dos sessenta sodomitas processados 0 foi

enrre 1560 e 1620; e na também puritana Friburgo suíc;a, 05 32 processos contra


os nefandos transcorreram entre 1599 e 1648.'
No século XVIII, a onda persecutória contra os homossexuais- ou culpa-
dos de sodomía - declinou sensivelmente em toda a parte a espelhar certa
"dessacralizac;áo" do nefando na u era das Luzes", 1o de modo que os nove somlrigos
coloniais processados em Lisboa nessa c!poca náo foram, por sua exigüidade nu~
mér~c~, excc:c;áo ~ regra geral. Pelo contrário, parece mesmo ter crescido o rigor ~a
pum\ao no trópico, considerando-se o ritmo lc:mo e arrastado que marcava a a~ao
291

. uisirorial no Brasil e o declínio geral das perseguiróe


mq .
T s serecem1stas Os modes
s nove sodomitas da Colónia perfizeram quase 40% dos n fa d · . -
lO , e n os pumdos pela
lnquisi~áo portuguesa no seculo de Pombal, lembrando-se .
. . ' porem, que apenas
jo/o dos 447 sodomitas pumdos pelo Santo Ofício lusitano foram-no no século XVIII
Mas, numa visá.o de conjunto, nada empalidece a impunidade gozada por nosso~
somírigos, a estimular os pecados do trópico- nem mesmo a condicráo de coló-
nia distante. No México castelhano, entre 1652 e 1673, 123 indivíduos foram
inculpados por sodomia homossexual e isso pela Real Saltt del Crímm, náo lo
tribunal do Santo Ofício ali instalado desde os anos 1570." Fragilidade dos~­
res metropolitanos, da lgreja e da própria Inquisi~áo no Brasil, além de certa
roler:incia em face do "abominável nefando" no trópico, eis o que a modésria de
nossos índices de sodomitas estáo a demonsrrar.
Entre os crimes morais da al~ada inquisitorial, os que mereceriam os maio-
res esforc;:os de vigilancia e punic;:áo por paree de comissários e autoridades eclesiás-
ticas coloniais seriam o de bigamia e, em menor escala, o de solicitac;áo - caso
dos padres que, esquecendo-se do voto de castidade e da pureza da oonfissáo,
requestavam ad turpia mo.yas e rapazes no confessionário. Os bígamos foram, de
longe, os mais punidos pelo Santo Ofício nos domínios da moral, atingindo o
expressivo número de 92 pessoas, 80% das quais no século XVIII, sinal de que
o casamento tridentino era de fato a grande "preocupa~áo moral" dos inquisidores
portugueses. Em relac;:áo aos solicitantes, o número de processados foi muiw su-
perior ao dos somítigos, perfazendo 21 entre 1692 e 1791. E, segundo Lana Lag<.
eles foram objeto de esmiu~ada vigiláncia nessa época, tempo em que afina! se
organizava a Igreja no Brasil: nossa autora encomrou mais de 450 pa~res ~lo­
niais indiciados nos Cadernos de Solicitames do tribunal de Lisboa, mdumdo
desde acusac;:óes singulares até sumário de culpas apuradas em devassas edesiá.ui-
cas ou a mando dos inquisidores reinóisY Só foram processados em pequeno
. . . d escassos os ministros da
numero porque o Santo Ofíc10 era c1ente e como eram . .
Igreja no vasto Brasil e, possivelmente, descarregava seu rigor sobre os matS acmrosos
e comumazes na prática da solicitac;:áo. hó"
brctudo aos espan 15• a
Mas, comparada aos números portugueses, e so . d l rin-
. 1 .. mais próxima a ro t
persegutc;:áo aos bígamos e solicitanles co onaa1s esleve _.
. . .. N le a bigamia, r·o menos
cta, ou da meficiencia, que do rigor punmvo. 0 tocan . úl · as
237 · d" "b 1de L1sboaenrr< 15 nm
tn tvíduos foram processados so mente no tri una . -.L. ram 1
dé d d lnios espanhóos "'~
ca as do século XVI e o final do XVIII. e nos o m .u · Wl os
. . d e oca e TOICUO toram .
numeras assombrosos. Apenas nos uibun.ats t ue . d 1S60 a t ?OO.
blgamos sentenciados entre 1521 e 1560. informa-nos D<do<u. e e
292

Jaime Conueras contabilizou 1.01 O relaciones de causas contra bígamos nos vários
rribunais aragoneses, além de 1.097 casrelhanos.l_l Quanto J América espanhola
embora também ali a intensidade da puni<;áo fosse inferior a metropolitana, 19~
bfgamos foram processados pelo tribunal do México até o final do século XVI!, e
241 pelo limenho de 1560 a 1750- números bem superiores aos de nossa Colo-
nia.l4 Algo de semelhante ocorreu também nos casos de solicita<;áo: em Lisboa
foram pelo menos cinqüenta os religiosos e os padres seculares processados enrre
1647 e 1750; em Aragao e Casrela foram 534 e 545, respectivamente, até 1700; e
nos ttibunais hispano-americanos foram 161 até fins do século XVII, além de 12,
no Peru, durante as primeiras décadas do século XVIII. Esses números indicam-
nos, urna vez mais, que o Brasil foi das áreas menos punidas no conjunto dos
domfnios ibéricos da América, mesmo no visadíssimo crime de bigamia- prava
da precariedade do aparelho de poder em nossa Colonia, mais que desdém, nesse
caso, pelos transgressores do matrimónio e da confissáo. IdCntica fragilidade náo
arriscarfamos estender a Portugal, apesar dos números inferiores aos de Espanha,
cm se tratando de um pequeno país ande funcionavam apenas rrCs rribunais con·
rra os 16 do vizinho peninsular- mais amigos, inclusive-, excetuando-se os da
Sidlia, das Canárias, de Lima, do México e de Carragena.
Por outro lado, a trajetória estatística da puni<;áo desses crimes revela·nos
muiro sobre a prática e eficácia da ac;áo inquisitorial. No caso portuguCs, o au·
mento dos processos de bigamia e solicitac;ao no século XVIII indica-nos que, se
os inquisidores deixaram de perseguir os .. fornicários", passaram a zelar mais pelo
próprio casamento, castigando os bígamos¡ e se deixaram de perseguir os que
duvidavam da primazia dos religiosos, passaram a vigiar 0 próprio clero, especial·
mente no sigilo do confessionário. Mas o crime dos solicitantes ainda apresenta
muiras !acunas para urna avalia<;áo de conjunto, extensiva aInquisic;:áo espanhola,
já que a perseguic;ao foi muito desigual nos diversos tribunais de Castela e Aragao:
e~ alguns deles, inclusive os hispano-americanos, o auge das puni<;óes foi ante·
nora 1614, ao passo que noutros se localizou na segunda metade do século XVII.
Já em Portugal parece indiscutfvel que cerca de 80% dos solicitantes processados
0 foram depois de 1700 - o que com certeza também ocorreu em relac;5.o ao
l~ra.~il, tcrra em c¡ue praricamenre só foram processados solicitantes no século XVIII.
f:.m rdac;áo a bigamia, o pico da repressáo espanhola deu-se enrrc meados do
século XVI e infcio• do XVII: de 1615 a 1700, o fndice dos bfgamossentenciados
declmou 67%, no conjunto da lnquisi~áo hispinica, e 69% no México e no Peru,
mantendo-se estável ou decrescendo ainda mais na primeira metade do século XVIII.
Tamb~m no Sanro Oficio lisboeta, o mais aruanre dos ponuguescs, a persegui~áo
293

~
bígamos. caiu..53% no século XVIII,. e náo deve rer sido dif.erenr eo=~­
mento dos ¡nqUisJdores de Évora e CO!mbra a esse respeito. Seria esse decréscimo
dos processos um resultado das violentas perseguic;:óes dos anos quinhemos, em
Espanha e América, e dos seiscemos, em Portugal - persegui~áo inibidora de
um crirne largamente difundido em pavos mareantes~ Ou seria 0 declínio dos
bígamos um reflexo da decadencia da lnquisic;áo ibérica na segunda merade do
século XVIII? Possivelmenre os dais fenómenos encomram-se na raiz desses nú-
meros. Mas, seja como for, no Brasil deu-se o connário, e o índice de bígamos
processados cresceu 236°/o naquele século, continuando a ocupar os inquisidores
lisboeras com um deliro já declinante no Reino. Sem dúvida, o trópico lusitano
deixou de ser o paraíso dos bígamos e dos solicitantes portugueses no transcurso
dos se recentas, e certamen te porque foi nessa época que a Igreja, as visitas diocesanas
e o aparelho inquisitorial passaram a funcionar melhor na vasta Colónia.
Em plena era das Luzes, rambém a bigamia acabaria "secularizada" na Pe-
nínsula Ibérica, sobrerudo em Espanha, onde a ascensáo de Carlos III ao trono
representaría o golpe final na jurisdi<;áo inquisitorial sobre esse crime. Nos anos
1770-1780, o julgamento de bígamos seria reralhado pelas várias jusric;as espa-
nholas: as Corres seculares caberia julgar o dano causado ao parceiro e aos filhos
pelo falso marido e pai (o u pela falsa esposa e máe); a Jusric;a Eclesiásrica incum-
biría cuidar da validez e da anula<;áo dos casamenros; e ao pobre Sanro Oficio
competiría averiguar a eventual ocorrfncia de heresia nas inten~óes do cri.mi~o­
so... " Na prárica, porém, o julgamenro dos bígamos foi transferido para a l~sroc;a
civil, e a anulas:áo dos segundos casamenros confirmada na al~ada ede.sJ~n~a,
perdendo os inquisidores sua antiga jurisdit;:áo sobre os "hereges" do mammomo.
Nao se adoraría semelhante decisáo em Portugal. aoque nos consta, e os bígamos
continuariam afetos ao foro inquisitorial até a extin~áo do Santo Oficio, em 1821 ·
Em nosso atrasado trópico ficariam os comtss . .."nos
. do rribunal a cac;ar alguns
b¡gamos, .mclus1ve
. . > - d
no se 1o da populas:ao escrava, urante
1783 1799. 1804 <
' . b
oUtros anos "extravagantes " , mforma-nos
. Dav1.d H.1ggs, dedicado lo p<squlsadso "'·-
os estertores da lnquisis:áo porruguesa.l6 Enquanro se conspirava conrr: a oml
- . e 1' . Santo Oficio
nas:ao portuguesa em várias partes da annga 0 01113 • 0 .
<S!ol\'•v:I-S<
·
ndo herrs1as no rróflll.""O ...
por compensar a relativa impunidade do passado rastrea ·
E · á io d< Sáo P.ulo • n:sp<'"'
m 1799, chegaria mesmo a enviar ordens ao comass r . d '<kr.i-
de que aritudes deveria tomar e m relas:áo abigamia, quem 53 ~ por 110 aronsl
la u m "crime de fé" ot<:nsivo ao carolicismo ... 17
TROP!CO Do~ PECADos
294

EFICftNC/A E DESDÉM _ BAúiNC;o DAS VISITAS INQU/5170RIAIS

lnserida no conjunto da aruac¡:áo in_quisirorial ibéric~ entre os séculas XV¡


e XVIII, sem dúvida a repressáo as moralidades e aos deseJos heréticos no Brasil
colonial foi limitada, para sorte de nossos colonos. Tendeu a crescer no século XVIII
especialmente no cocante a bigamia, mas longe esteve de rivalizar com 0 núrner~
de processados na Metrópole ou nas colOnias americanas de Espanha. E, se deslo.
carmos 0 eixo da avaliac¡:áo para o desempenho das visitac;óes, veremos confirmar-
se 0 quadro de "impunidade", especialmente no século XVII - tempo em que a
inroler3ncia moral aringiu seu cume, tanto no mundo católico como no protes-
tante. De outro lado, se a visita do Pará também náo produziu muitos processos
-realizada numa fase já decadente da lnquisi~áo - , a visita~áo de Heiror Fur-
rado em 1591-1595 revelar-se-ia mais rigorosa do que podem sugerir as desobe-
diencias e as rrapalhadas do célebre visitador.
Na primeira visita inquisitorial ao Brasil, o número de processados esreve
muito aquém das cemenas de acusados na Bahia ou em Pernambuco, ainda que
excluamos os livros de denúncias e confissóes náo publicados} 8 Mas náo é de
admirar que assim o fosse, pois, além de chefiar u m "tribunal itinerante", encarre-
gado de "visitar" diversas regióes em curto espac;o de tempo, Heitor Furtado ado-
raría cerros critérios, ora pessoais, ora afinados como espírito e a praxis inquisiroriais,
de modo a agilizar os rrabalhos da visira~áo. Confissóes no "período da gra1a',
ausencias de delac;óes contra confitenres, confissóes de teor mais amplo que o das
acusac;óes, eis razóes que levaram o visitador a náo processar diversos pecadores do
trópico. Além disso, muiros acusados eram ausentes, fugid