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SÉRIE TRADUÇÃO

01

A FAMÍLIA É UNIVERSAL?1

MELFORD E. SPIRO
Brasília, 2011

Universidade de Brasília
Departamento de Antropologia
Brasília
2011

1
T raduz i do por Zul mi ra Guerrei ro Ma rques ( com revi s ão da Prof. Al ci da Ri ta
Ramos ) do ori gi nal : "Is the Fami l y U ni vers al ?" American Anthropologist ,
Ameri can A nthropol ogi cal As s oci ati on , vol . 56, 1954, pp. 839 -846.

O ri gi nal mente publ i cado nos Cadernos de Antropol ogi a da E di tora U nB com a
permi s s ão do Autor e da Ameri ca n Ant hropol ogi cal As s oci ati on.
Série Tradução é editada pelo Departamento de Antropologia
da Universidade de Brasília com o objetivo de divulgar textos
traduzidos para o português por docentes e discentes no campo
da Antropologia Social.

1. Antropologia 2. Tradução. Departamento de Antropologia da


Universidade de Brasília

Solicita-se permuta.

Série Tradução Vol. 01, Brasília: DAN/UnB, 2011.


Universidade de Brasília

Reitor: José Geraldo de Souza Jr.


Diretor do Instituto de Ciências Sociais: Gustavo Lins Ribeiro
Chefe do Departamento de Antropologia: Luís Roberto Cardoso de Oliveira
Coordenador da Pós-Graduação em Antropologia: José Antônio Vieira
Pimenta
Coordenadora da Graduação em Antropologia: Marcela Stockler Coelho
de Souza

Conselho Editorial:
Andréa de Souza Lobo
Soraya Resende Fleischer

Comissão Editorial:
Andréa de Souza Lobo
Larissa Costa Duarte
Soraya Resende Fleischer

Editoração Impressa e Eletrônica:


Cristiane Costa Romão
EDITORIAL

A Série Tradução é uma iniciativa do Departamento de Antropologia da


Universidade de Brasília apoiada pelo Decanato de Extensão desta Universidade
via Edital DEX 1/2010. Como atividade de extensão, o objetivo desta Série é
reunir e disponibilizar a um público mais amplo traduções em formato digital e
com acesso livre por intermédio do sítio do Departamento de Antropologia. Tais
traduções vêm sendo realizadas, há alguns anos, no âmbito do Departamento
de Antropologia. Até então, estes materiais, em sua maioria, estiveram
circulando de forma artesanal e informal, como documentos eletrônicos e/ou
cópias xerográficas ou mimeografadas.

Os textos foram traduzidos por docentes e discentes do Departamento


de Antropologia, geralmente para fins didáticos. São materiais referenciais para
o corpus teórico da disciplina e sua ampla demanda e utilização justificam que
versões em português sejam produzidas, sobretudo para o público graduando,
nem sempre versado em uma segunda língua.

Cada número da Série é dedicado a um só artigo, ensaio ou material


traduzido. Novas traduções serão sempre bem vindas e, sendo acolhidas e
aprovadas pelo Conselho Editorial bem como garantidas pelo direito autoral da
publicação de origem, poderão ser publicados em nossa Série Tradução.

Conselho Editorial
Introdução

A universalid ade da família tem sido sempre aceita em


antropologia como uma h ipótese v álida. Recent emente Murdock
pode confirmar essa hipót ese basead o no seu important e estud o
transcu ltural (cross -cu ltural) sobre parentesco. Além disso,
Murdock informa que a família "nuclear" é também univ ersal e qu e
apresenta normalment e quatro fu nções: sexu al, econ ômica,
reprodutiv a e educat iva. O mais importante em seu estudo é a
revelação d e que n enhuma socied ade "con segu iu en contrar u m
substituto adequado para a f amília n uclear, para o qual pudesse
transf erir essas fun ções" (1949:11). À lu z dessa ev idência não
haveria muit a razão para se questionar su a previsão de qu e "é
muito improv ável que haja sociedad es bem sucedidas em tent ativ as
de tal ordem, ap esar de haver propostas utóp icas para se abolir a
família" (p.ll).
As funções desempenh adas pela família nu clear são,
naturalment e, pré-requisitos un iversais para a sobrev ivên cia d e
qualquer socied ade. É baseado nesse f ato que Murdock a considera
universal.

Sem a pres e nça da pri mei ra e da ter cei r a (s exual e


reproduti va), a s oci edade s e exti ngui ri a; s em a s egunda
(econômi ca), a própri a vi da ces s ari a; s em a qua rt a
(educati va), a c ul tura cheg ari a ao fi m. A e norm e
uti l i dade s oci al da famí l i a nucl e ar - e a raz ão bás i ca de
s ua uni vers al i dade come çam as s i m a s obres s ai r (p. 10).

Embora as atividad es sexu al, econ ômica, reprodut iva e


educativa sejam pré-requisitos fun cionais de qualquer sociedad e,
surpreende-n os u m pouco que tod as essas quatro f unções sejam
desemp enhadas p elo mesmo grup o social. D ada a grand e
variabilidad e encontrada n as culturas humanas, seria de se supor,
a priori , que houvesse cu lturas onde essas quatro funções
estiv essem distribuíd as por mais de um grupo. Pelo menos em
termos lóg icos, é perfe itamente possív el que essas fun ções estejam
dividid as por v ários grupos sociais n uma mesma sociedad e; seria
mesmo dif ícil de crer que a cap acid ade inv entiv a do h omem, em
alguma part e do mundo, não tornasse real essa possib ilidad e
lógica. D e f ato, ela se torn ou realid ade em cert as comun idades
utópicas — e t em sido bem su cedid a dentro dos estreitos limites
dessas comun idad es. No entanto, estas se tem sempre con stitu íd o
em subgrupos dentro de uma sociedade maior, permanecend o
assim a qu estão básica sobre se t a is t entativas pod eriam ter
sucesso qu ando aplicadas a sociedad e maior.
Porém, o present e trabalh o, em v ez de especu lar sobre a
resposta a esta pergunta, apresent a um estudo de caso de uma
comunid ade que, como as comunidad es utópicas, desenvolv eu uma
estrutura social que não inclu i a família. Esp eramos que o exame
dessa comunid ade — o kibbutz de Israel — v enha clarificar essa
questão.

Matrimônio e família no kibbutz

Kibbutz (no p lural, kibbutzim ) é uma fazenda colet iva d e


Israel cujas princip ais caract eríst icas são: v ida comun al,
propried ade colet iva (portanto, ausên cia de "livre empre sa" e de
"lucro") e educação infant il comunal. A cultura do kibbutz é reg ida
pelo seguint e principio orientador e explicito: "de cada um
conforme su a capacidad e, a cada um conforme suas necessidades".
A "família", segundo def in ição em Social Structure , não existe no
kibbutz , em quaisqu er de su as formas: nuclear, poligâmica ou
extensa. Deve-se enfat izar, entretan to, que os kibbutzim estão
organizados em três fed eraçõe s nacionais dist intas e, embora a
estrutura básica da sociedade de kibbutz se já semelhant e em
todas, há d iferenças important es entre elas. Portanto, nest e
trabalh o o termo kibbutz ref ere -se exclusiv ament e àqueles
kibbutzim que são membros da federação est ud ada pelo autor.

"Famí l i a", como Murdock a defi ne (p. l ):


é um gr upo s oci al carac teri z ado por res i dê nci a comu m,
cooperação econômi ca, e re produção. I ncl u i adul tos de
ambos os s exos , s endo que pel o me nos doi s del es
mantêm rel ações s exuai s s oci al mente aprovadas , e um ou
mai s fi l hos des tes , própri os ou adotados .

O grupo social do kibbutz , con stitu ído de adultos de ambo s


os sexos e seu s f ilh os, é caracterizado pelo fator reprodutivo, ma s
não pelo de residência comum ou cooperação econômica. Antes d e
examinarmos esse grupo social como um todo, ire mos, entretanto,
analisar a relação ent re os dois adu ltos do grupo que mant ém uma
"relação sexual aprovad a socialmente" a fim de d eterminar se essa
relação se const itui era "matrimônio".
As pesqu isas de Murdock revelam que matrimôn io
compreende a interação de pessoas de sexos opostos de tal mod o
que existe uma relação sexual relativament e permanente e uma
divisão econômica do trabalho. Quando um desses padrões de
comportamento est iver au sente, não haverá matrimôn io. Como diz
Murdock (p.8):

U ni ões s exuai s s em cooperação econômi ca s ão comuns e


exi s tem rel ações entre ho mens e mul heres envol vendo
uma di vi s ão de t rabal ho s em que haja grati fi cação s exua l
(. . . ) mas s ó há matri môni o qu ando o ec onômi co e o
s exual es tão u ni dos numa s ó rel ação, e es ta combi naçã o
ocorre apenas no matri môni o.

Ao examin armos a relação de u m casal de kibbutz v in culad o


pelo matrimôn io e cuja união sexu al é sancion ada social ment e,
verif icamos que somente um desses dois critérios se ap lica, a
saber, o sexual. Sua relação não implica em cooperação
econômica. Se é esse o caso — e os fat os serão ex amin ados a
seguir – não ex iste matrimôn io no kibbutz , se por "matrimônio"
entendermos uma relação entre adultos de sexos opostos,
caract erizad a por ativ idades sexuais e econômicas. Portanto, foi
en contrada aqu i uma ex ceção para a g eneralização de qu e
"matrimôn io, assim def in ido, ex ist e em toda socied ade conh ecida"
(p.8).
O casal de kibbutz mora num cômodo único, qu e serve como
quarto e sala de est ar. As ref eições são feitas num refei tório
comum e seu s filhos são criados num dormitório infant il comun al.
Tanto o homem como a mu lher trab alham na fazenda colet iva e
cada um pod e fazê-lo nu m dos ramos agrícolas ou num dos
"serv iços". Estes ú ltimos in clu em trab a lho de escritório, educação,
trabalh o de cozinha, lavand eria etc. Na verdad e, os homen s
predomin am n os ramos agrícolas e as mu lheres nos ramos d e
serv iços. Por exemplo, não há h omens n o setor do sistema
educacion al, qu e abrang e desd e a infância até ao nív el de
secundário ad iant ado, e n em as mulheres trabalham n aqueles
setores agríco las que requerem o uso de maquinaria pesada, tais
como caminhõe s, tratores etc. Note -se, entret anto, qu e algumas
mulheres desempenh am papeis primordiais em ramos agrícolas,
tais como h ortas e pomares, e que algun s homen s são
indisp ensáveis em serviços t ais como edu cação secund ária.
Contudo, é correto afirmar que a div isão sexu al do trab alho é uma
caract eríst ica da sociedad e de kibbutz como um todo. Entretanto,
esta mesma div isão de trabalho não caracteriza as relações qu e
exist em entre ca sais. Cad a membro do casal trabalha num ramo da
economia do kibbutz e, como membro ( chaver ), cada um receb e
sua cot a de bens e serv iços forn ecidos pelo kibbutz , mas nenhu m
dos dois est á engajado em at ividades econ ômicas dirigid as
exclu siv ament e para a sat isf ação das necessidades do outro. As
mulheres cozinham, cos turam, lavam, etc., para todo o kibbutz e
não ap enas para seu s companheiros. Os h omen s produzem ben s,
mas os resultad os econ ô micos de seu trabalh o vão para o kibbutz e
não para su as comp anheiras e para si próprios, embora,como
membros do kibbutz , to dos eles p artilhem desses resu ltados.
Assim, aind a que exista cooperação econômica entre os sexos
dentro da comunid ade como um todo, esta cooperação não ex ist e
entre cônjug es, porque a estrutura social d essa socied ade exclui a
necessidade de tal co operação.
Qual é então a n atureza d a relação dos casais de kibbutz ?
Quais são os mot ivos para su a união? Que funções, além da sexu al ,
ela d esempenha? O que dist ingue tal união de um simp les caso
amoroso?
Ao tentarmos respond er a essas perguntas devemos ant es
observ ar que n ão há t abus a resp eito de relações pré -maritais.
Espera-se, tod avia, que os joven s em id ade de cursar escola
secundária evit em ativ idades sexu ais, que são fortement e
desen corajadas. Mas d epois da formatura e de su a eleição como
membros do kibbutz , esses jov ens não est ão mais su jeitos a
sanções contra relações sexu ais. Enq uanto solt eiros, os membros
do kibbutz vivem em pequenos cômodos part icu lares e su a
ativ idade sexual pode ter lug ar tant o nos aposentos do rapaz,
como nos da jovem, ou em qualquer outro local conven ient e. U m
casal de n amorados não ped e p ermissão ao kibbutz p ara morar
num cômod o maior e comum a ambos e, se ped isse, não obteria se
sua relação f osse con sid erad a como sendo meramente de amant es.
Quando um p ar pede autorização para compart ilh ar de um cômod o,
isso é f eito — e o kibbutz presume q ue assim seja — n ão porqu e
ambos sejam amant es, mas porq ue estão apaixonados. A
requisição de um cômodo representa, dessa man eira, um sinal de
que eles desejam tornar-se um "casal" ( zug ); esse termo subst itu i
no kibbutz o tradicion al "matrimônio". Esta un ião não requer a
sanção de uma cerimônia de casamento nem outro ev ent o
qualquer. Qu ando um par requisita um cômod o e o kibbutz o
conced e, su a união é ipso facto sancion ada pela sociedad e. Deve -
se notar, entret anto, que todos os "casais" de kibbutz "casam-se"
eventualmente, d e acor do com as leis matrimoniais do Estado. I sso
ocorre geralment e antes ou pouco depois do nasciment o de seu
primeiro f ilh o, pois os f ilhos n ascidos fora de matrimônio n ão têm
direitos legais, segundo as leis estatais.
Mas tornar -se um "casal" n ão af eta o statu s nem as
respon sab ilidades de ambos os cônjug es d entro do kibbutz. Ambos
continu am a trab alh ar n o ramo da economia em qu e trabalh avam
antes da união. O status legal e social de ambos perman ece o
mesmo. A mulh er conserva seu nome de solteira; n ão só ela é
―considerada como membro do kibb utz , como su a carteira d e
registro of icial nos arquiv os do kibbutz perman ece separad a da d e
seu "amigo" (chav er), termo est e usad o para designar cônjuges."
Mas se a satisfação sexu al pode ser obtida fora desta un ião,
e, se a un ião não env olv e coop eração econômica, o que motiv a as
pessoas a t ornarem -se "casais"? Parece qu e a mot ivação aí é o
desejo de satisfazer cert as necessidad es d e intimidade, tanto física
como psicológica. Em primeiro lugar, do ponto de vista sexual, o
chav er t ípico não se cont enta em envolv er - se numa serie
constant e de casos amorosos sem conseqü ências. D epois d e u m
período de experiências sexu ais, ele deseja est abelecer uma
relação relativ amente permanente com uma única pessoa. Mas,
além da int imid ade sexual, essa u nião forn ece u ma int imida d e
psicológ ica que pod e ser expressa em noções como "camarada -
gem", "segurança", "dep endência", "amparo" etc. E é principal
mente essa intimidad e psicológ ica que distingue "casais" de
simp les namorad os. Desse modo, o amor é o crit ério para a relação
de "casal", distingu indo -a de relações entre adu ltos do mesmo sex o
que gozam d e int imidade psicológ ica e de relações entre adult os d e
sexos opostos qu e desfrutam d e int imidade f ísica. O casal passa a
exist ir quando esses dois t ipos de i n timidad e est ão un idos numa
mesma relação.
Uma vez que as un iões no kibbutz não con stitu em ma-
trimôn io, porque não sat isfazem o critério econ ômico, então u m
"casal" e seus f ilh os não const ituem u ma família, pois a coop eração
econômica é p arte da definição de "f amília". Além disso, como já
indicamos, esse grupo de adultos e crianças n ão sat i sf az o critério
de "residên cia comum", pois, emb ora os filhos vi sit em diariament e
os aposentos dos pais, residem numa das "ca sas de crianças" ( bet
yeladim ), onde dormem, comem e passam a maior part e do tempo.
Entretanto, o mais important e para se det erminar se exist e
ou não f amília no kibbutz é o f ato d e que o "cu idado f ísico" e a
"educação social" dos filhos não são d a respon sab ilidade dos pais.
Mas, d e acordo com Murdock, essas respon sabilidades con stitu em
as funções mais important es que tem os adult os da "f amília" em
relação aos filhos.
Antes d e entrarmos n a discu ssão do sistema de "educaçã o
coletiv a" ( chinuchme shutaf ) do kibbutz , devemos enf atizar que o
kibbutz e uma socied ade essen cialmente voltada para a criança. A
importân cia das crianças, que é u ma característ ica da cu ltura
judaica trad icional, f oi mant ida como um dos princ ipais v alores
nesta sociedade qu e é hoje manifestamente ant i -trad icional. "A
Coroa d os Pais" e o t ítulo de um capítulo da etnografia sobre a
aldeia judaica da Europa Oriental. Seus autores (Zborowsk i e
Herzog, 1952:308) escrev em o seguint e:

Al ém das raz ões dadas nas es cri turas e pel a s oci edade,
os fi l hos s ão bem -vi ndos pel a al egri a que traz em aos
pai s , al e gri a es s a que vai al ém da grati fi c ação a el e s
devi da: o praz er de ter uma cri ança em cas a. O bebê é
um bri nq uedo, um tes ouro, o orgul ho da cas a .

Excetuando a referencia às escrituras, essa descri ção s e


aplica int egralment e ao kibbutz .
Porém, no kibbutz , h á ainda outra razão para as cri ança s
serem assim acolh idas. O kibbutz é visto por seus mem bros como
uma tentativ a de revolucionar a estrut ura da sociedad e humana em
suas relações sociais básicas. A sua f é na capacidade de alcançar
esse objet ivo só pod e ser just ificada se o kibbutz puder criar uma
geração que opte por viv er n essa sociedade comunal e, assim,
continu ar o trab alho in iciado pelos f undadores dessa sociedad e,
i.e., seus pais.
Por essas duas razões, a criança é soberan a. El a é cercada d e
atenções e cuidad os pród igos ao ponto de muitos adultos
admitirem que as crianças são mimadas em excesso. Os adul t os
podem morar pobrement e, mas as crianças moram em boas ca sas;
o alimento dos adultos pode ser escasso e monóton o, mas as
crian ças desfrut am de uma variedade de comida ex celente; pod e
haver racionamento de roupas para os adu ltos, mas o vestuário
infant il é f arto e de boa qualidade.
Entretanto, apesar dessa ênf ase na criança, não são o s
próprios pais que diretament e contrib uem para os cuidados fí sicos
dos filhos. Na realid ade, eles n ão t êm qualquer responsabilid ade
neste aspecto. O kibbutz como um todo assu me essa
respon sab ilidade p ara com t odas as crianças. Estas dormem e
comem em "casas de crianças" especiais; adquirem suas r oup as
numa loja comun al; quando doentes, são cu idadas por
"enfermeiras". Isso não signif ica que os pais não se int eressem
pelo bem estar de seus f ilh os; ao contrário, est a é uma de su as
maiores preocup ações; signif ica sim, que quem tem a
respon sab ilidade ativ a pelo cuid ado d as crianças é uma in stitu ição
da comun idade. Tão pou co isso quer dizer que os pais n ão
trabalh em para o cu idado f ísico d e seus filhos, pois esta é uma d e
suas mot ivações mais fort es. Porém, os frutos de seu trabalho não
revert em diretamente para os f ilhos, e sim para a comunidad e que,
por sua v ez, prove a t odas as crian ças. Uma pessoa solteira ou um
"casal" sem f ilh os contribu i tant o para o cuid ado físico das crianças
quanto um "casal" com f ilh os.
Murdock diz que a resp onsab ilidad e da família na socialização
da crian ça é "t ão important e quanto o seu cu idado físico".

No mundo i nt ei ro, o pes o da ed uca ção e s oci al i z ação


recai pri nci pal ment e s obre a famí l i a nucl ear (. . . ). A
res pons abi l i dade col eti va pel a educa ção e s oci al i z ação,
tal vez mai s do que qual quer outro fator, s erve para
cons ol i dar as vari as rel a ções da famí l i a (p. 10).

Porém, no kibbutz , a educação e socialização das crianças é


uma função de suas "babás" e professores e n ão de seu s p ais. O
recém-nascido é colocado na "c asa inf antil" apôs a su a mãe sair d o
hospit al e aí permanece sob os cu idad os de enfermeiras. Ambos os
pais v isitam seu filho aí, a mãe quand o o amament a e o p ai quand o
volta do trabalh o. A crian ça n ão vai aos aposent os d os p ais at é
completar seis meses, pod endo daí em diant e ficar com eles
durante u ma h ora. À med ida que a crian ça cresce, mais tempo ela
pode passar com seu s pais, podendo ir v isitá-los em casa qu ando
quiser, durant e o dia, embora t enha que volt ar a sua "casa d e
crian ças" antes do apagar da s luzes. No entanto, sendo que as
crian ças estão n a escola na maior part e do dia, e os pais trabalh am
também durante o d ia, os f ilh os – mesmo em férias – f icam com
seus pais aprox imadamente duas ho ras por dia, n o período desd e a
volta dos p ais do trabalho até est es saírem para jant ar. Os filhos
também podem, se quiserem, p assar com os pais todo o sábado,
que é o dia de descanso.
Conforme a crian ça vai crescendo, ela passa por u ma
sucessão de "casas de crianças" junt amente com outras crian ças d e
sua idade, onde é supervisionada p or uma "b abá". Esta é qu e
começa a discip lin ar a criança, a en sin ar -lhe as práticas sociais
básicas, sendo a respon sáv el p ela "socialização de seu s in stint os".
Ê certo que a criança também aprende com seu s pais, t am bém eles
sendo agentes no processo de socialização. Mas a ma ior p art e
desse processo é confiada e deleg ada às "babás" e prof essores. É
quase certo que uma crian ça de kibbutz aprenda sua cultura,
mesmo se d esprovida da contribuição dos pais para su a
socialização; mas, privad a da contribuição de suas "babás" e
professores, ela permaneceria um ser não -socializado.
Á medid a em que as crianças entram na f ase juv enil, pré-
adolescente e adolescente, elas são g radualmente introduzi d as n a
vida econ ômica do kibbutz . Trab alh am de u ma h ora (alu nos d e
primário ) a três horas (alunos em últ imo ano do secundário) por
dia num dos ramos econômicos sob a supervisão de adultos. Assim,
suas hab ilidades econômicas, como a maioria d e su as hab ilidades
sociais anteriores, são ensinad as, n ão por seu s pais, mas por
outros adu ltos. Esta gen eralizaçao se aplica também ao
aprendizado de valores d o k ibbutz, que n a t enra id ade são
inculcados por "babás" e mais tarde por prof essores. Quando a
crian ça passa para o penú ltimo ano do secundário, essa função,
que é tid a no k ibbutz como de importância fundamental, é
deleg ada ao "prof essor p articular", conhecido como o "educador"
(mech anech ), e ao "líder" (madrich ) do movimento juv enil int er
kibbutz. Naturalmente, os p ais ex ercem inf luência no en sinament o
dos valores, mas a divisão formal do trabalh o no kibbutz delegou
essa responsabilid ade a outras aut orid ades.
Embora os pais n ão d esempenh em um papel fundamental n a
socialização de seus f ilh os, ou n a sat isfação de su as necessidades
físicas, seria errôn eo con clu ir qu e eles n ão têm qual quer
importân cia na vida da crian ça. Eles representam para os filhos os
objetos de su as ident ificações mais importantes e lhes dão cert a
seguran ça e afet o que mais ningu ém lhes proporcion a. A afeição
dos filhos pequen os por s eu s pais é mesmo maior do que em nossa
própria sociedade. Porém, isso é irrelevante para o propósito deste
trabalh o, qu e é chamar a atenção para o fato de qu e aqu elas
funções dos pais que con stituem condição sine qua n on para a
exist ência da "f amília" – o cu idado f ísico e a socialização dos filhos
— não são fun ções dos pais n o kibbutz. Podemos apenas conclu ir
que na au sên cia das fun ções econômica e edu cativ a da f amília
típica, e de residência comum, a f amília não ex ist e no kibbutz.

Interpretação

Através desta descrição su mária do kibbutz , fica claro que a


maioria das fun ções qu e caracterizam a família nu clear típ ica
tornaram-se funções d a sociedade inteira de k ib butz. Tanto é assim
que o kibbutz como u m todo pode quase sat isf azer os crit érios
pelos quais Murdock def ine "família". Isto não imp lica em que o
kibbutz seja uma família nuclear, pois su as estruturas são
diferentes. No entant o, essa observação sugere que o k ibbutz pod e
funcion ar sem a família, porqu e fun cion a como se, ele próprio,
fosse uma família; e pode funcion ar assim, porqu e seu s membros
percebem-se uns aos outros como parentes, dadas as imp licações
psicológ icas do termo. Isto requer uma explicação.
Os membros do kibbutz n ão se con sideram meramente co-
cidadãos ou co-resident es de uma aldeia, ou co-trab alh adores de
uma economia agrícola. Eles se con sideram chaver im , compa-
nheiros, con stitu indo u m grupo em que cada um está intimament e
relacionado com os outros e em que o bem -estar de um est á lig ado
ao bem -estar d os outros. É uma socied ade em que o prin cíp io "de
cada um conforme su a capacidad e para cada um con forme su as
necessidades" é posto em prática, não porque seus membros sejam
mais altru íst as que os de outras socied ades, mas porqu e cad a
membro considera os outros como parentes, psi colog icament e
falando. E assim como um pai de família não reclama por trab alh ar
mais do qu e seus filhos e receber tant o ou menos da renda familiar
do que estes, também no kibbutz um membro com alt a
produtividad e econ ômica não reclama porque receb e tanto ou , às
vezes, men os do que um membro cuja produtividad e é baix a. Est e
"princípio" é subent endido como sendo o modo normal de se
proceder. Já que são todos chaver im , psicolog icamente f alando,
"fica tudo em família".
Em suma, o kibbutz consiste num geme inschaft . Seu s
padrões de interação são int erpessoais; seus vín culos são d e
parentesco, sem que h aja os resp ectiv os laços biológ icos. Sob esse
aspect o, representa a "sociedade de folk" em sua forma quas e
pura. A citação de Redf ield (1947) q ue se segue pode ria ter sid o
escrita t endo em mente o kibbutz , tão acuradament e ela d escrev e
a base sócio-p sicológica da cultura de kibbutz .

O s membros da s oci edade de folk pos s ue m um fort e


s enti mento de gr upo. E s te (. . . ) percebe s ua s
s emel hanças e, portanto, s e s e nte uni do . Cada u m,
comuni ca ndo -s e i nti mame nte como os outros , tem di rei to
a s ol i dari edade dos outros (p. 297) (. . . ). A vi da pes s oal e
í nti ma da cri ança na famí l i a é es tendi da, na s oci edade d e
folk , ao mundo s oci al dos adul tos (. . . ). As rel ações em
tal s oci edad e não s ão meramente pes s oai s , el as s ão
também fami l i ares (. . . ). O res ul tado é u m gru po d e
pes s oas entre as quai s preval ecem as rel ações pes s oai s e
categori z adas que caracte ri z am as famí l i as por nós
conheci das , e no q ual os padrões de pare nt es co tendem
a s e es tende r do grupo de i n di ví duos gene al ogi cament e
rel aci onados para a s oci edade i ntei ra. O s pa rentes s ão o
model o para todas as experi ênci as (p. 301 ).

É por isso que o homem solteiro e o "casal" sem filh os nã o


sentem que há in just iça quando cont ribuem para o su stento dos
filh os d e outrem. As crianças n o kibbutz são t idas como filhos d o
kibbutz . Os pais (qu e são bem mais ligados a seus próprios filhos
do que aos filhos de outros) e os soltei ros se ref erem igualmente a
todas as crianças do kibbutz como "nossos filhos".
A percepção social de se v er o p róximo como p arent e,
psicolog icamente f alando, se ref let e em outro aspecto import ant e
do comport ament o no kibbutz . É n otável e bastant e sÍg n ificativo o
fato de que os indiv íduos que nasceram e foram criados no kibbutz
tendem a prat icar exogamia de grupo, embora não haja regras que
os forcem ou en corajem a fazê -lo. Na verdade, no kibbutz ond e
fizemos trabalho d e campo, todos os indiv íduos nessas condições
casaram fora de seu próprio kibb utz . Quand o pedimos uma
explicação para esse comportamento, esses indiv íduos respondem
que não pod em casar com aquelas pessoas com quem eles foram
criad os e a quem, con seqü entement e, consideram como ir mãos.
Isto sug ere, como ind ica Murdock, que "para seu s membros, o
kibbutz é psicologicamente v isto como uma família n a med ida em
que gera o mesmo tipo de tend ências incon scientes para evi tar o
incesto" (comun icação pessoal).
O que est a discu ssão sugere é a segu inte proposição:
embora, do ponto de v ista estrutu ral, kibbutz con stitu a uma
exceção a gen eralização sobre a universalid ade da família, ele
serv e para conf irmá-la do ponto de v ista funcion al e psico lógico.
Na ausência de um grupo social esp ecífico — a f amília — ao qual a
sociedad e delega as funções de socialização, reprodução etc.,
tornou-se n ecessário qu e a sociedade inteira pas sasse a ser u ma
grande família extensa. Mas isso é possív el soment e numa
sociedad e cujos membros se con sid eram psicologicamente como
parentes. S eria de presumir que h ouv esse um limite popu la cion al,
além do qu al os ind ivíduos n ão mais se considerariam como
parentes. Provav elmente esse p ont o é alcançado quando a
interação de seu s membros não é mais face a face; em suma,
quando deixa de ser um grupo primário. Portant o, é prov ável que
soment e numa sociedad e "familial", tal como o k ibbutz, se ria
possível não h aver a f amília.
NOTAS
1 O trabalho de campo n o qual se baseiam minhas af irmações
sobre o kibbutz foi realizado em u m ano (1951 -1952) e foi
possível graças a uma bolsa pós -doutoral conced ida pelo
Social Science Reserch Council .
2 Outros termos, como "homem jovem" ( bachur ) e "mulh er
jovem" ( bachura ) tamb ém são usad os em v ez d e "marido e
"mulher‖. Se mais de uma pessoa no kibbutz tiv er o mesmo
nome próprio, e houv er alguma dúvid a sobre a quem se est á
referindo, em determin ada conv ersa, a pessoa é ident ificada,
adicionand o-se "o b achur de fu lan a" ou "a bachura d e
sicrano".

REFERÊNCIAS

MURDOCK, G.P.
1949 - Social Structure . New York , Macmillan .
REDFIELD, R.
1947 - "Th e Folk Society". The American Journal of Sociology
52:293-308.
ZBOROWS KI, M e E. HERZOG
1952 - Life is with People . New York , Internat ional
Universit ies Press.
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