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PGR-00067898/2017
como nas vias públicas da cidade de Pacaraima, onde também se concentram integrantes desta
etnia.
Este texto tem seu desenvolvimento dividido em duas partes: na primeira é oferecida, com
base nas referências bibliográficas, uma síntese etnográfica da etnia Warao; e na segunda parte é
feita a análise das observações e entrevistas realizadas por meio do trabalho de campo. Por fim, são
apresentadas as considerações finais e sugestões que podem contribuir às iniciativas de proteção dos
direitos dos Warao em território brasileiro.
3
2. PARTE I: OS WARAO
2.1 – LOCALIZAÇÃO
O Delta do Rio Orinoco compreende uma área de cerca de 40.000 km², composta por centenas de
ilhas e ilhotas entrecortadas por inúmeros rios, o que lhes oferece uma distribuição espacial
4
Os dados arqueológicos apontam que os ancestrais dos Warao podem ter tido uma
territorialidade e mobilidade4 bem mais amplas em tempos pré-coloniais, baseando-se em
informações sobre os padrões de enterramento de mortos Warao 5. Resultados de pesquisas em
antropologia linguística também apontam na mesma direção, demonstrando a presença do léxico
Warao por toda a extensa região das Antilhas no período pré-colonial, bem como o farto uso de
palavras de origem Aruak e Caribe pelos seus falantes atuais, de modo que embora se trate de uma
língua que compõe um tronco linguístico isolado, ela influenciou e foi fortemente influenciada por
outras línguas ameríndias. Este processo foi resultante das convivências e trocas estabelecidas entre
os vários grupos que, no curso do tempo, se estabeleceram no delta do Rio Orinoco (Kirchhoff,
3 Dos próprios Warao entrevistados no Brasil soube-se que há comunidades da etnia que são ribeirinhas e
outras que se localizam em cidades nos três Estados venezuelanos citados e na Guiana. Também foi encontrada uma
única referência à presença de comunidades Warao no estado Venezuelano de Bolívar, feita por Escalante (2011): “Los
warao, también conocidos como guaraúnos, habitan en los estados Delta Amacuro Sucre, Monagas, Bolívar, así como
también en la República de Guyana. (...). Su idioma es el warao, clasificado como independiente por algunos autores,
mientras otros intentan emparentarlo con el tronco chibcha”).
4 Neste parecer “migração” e “mobilidade” são adotados às vezes como sinônimos, outras como categorias de
análise diferentes entre si, mas de modo geral optamos por utilizar com mais frequência o termo “mobilidade”, por
entendê-lo como noção que permite tanto abordar os modos específicos e “locais” de espacialidade, quanto os processos
de mobilidade mais gerais ou globalizados, muito embora o que as abordagens antropológicas recomendem seja o uso
das categorias próprias das pessoas e coletivos em mobilidade (as categorias nativas), por meio da etnografia (mas sem
perder de vista o exame dos procedimentos de Estado na construção das suas categorias jurídico-administrativas) o que,
no reduzido tempo deste estudo, não foi possível realizar e atingir.
5 As práticas funerárias de alguns segmentos Warao implicavam em acender fogueiras sobre as tumbas dos
mortos, fazendo-as durar dias e até semanas. Observou-se padrão parecido nos agrupamentos humanos da cultura
Ciboney correspondente aos grupos pré-agrícolas das Antilhas, no que atualmente corresponde ao território cubano
(Frías, 2013).
5
1950; Sanoja e Vargas, 1974; Wilbert, 1993; Granberry e Vescelius, 2004; Frías, 2013; Heinen &
García Castro, 2013).
Enquanto a antiguidade da ocupação Warao no delta remonta a período não inferior a 6.000
a.c., os documentos com registros históricos sobre a região datam de pouco mais de 500 anos. Estes
habitantes do delta foram inicialmente registrados pelo nome de tibitibes 6 pelos colonizadores
espanhóis, partilhando espaço com outros grupos ameríndios (Sanoja e Vargas, 1974; García Castro
& Heinen, 2000; Granberry e Vascelius, 2004; Frías, 2013).
6 Os Tibilibes foram localizados inicialmente no noroeste do delta (noroccidental), nas áreas alagadas e canais
do rio Guarapiche. Eles eram aliados de índios falantes de línguas Caribe (García Castro, 2000). Para García Castro
(2000) também foram descritos como Tibilibes ou Tiuitiues, os Siawani (também chamados pelos espanhóis de
Chaguanes), que eram guerreiros que dominavam o Rio Manamo e seus arredores, referidos também como exímios
construtores de canoas. Estes Siawani ocupavam uma região chamada Hororotomaka, situada no norte do delta e, a
partir dali, controlavam a principal via de acesso entre o interior e a ilha de Trinidad. Também constam registros da
presença, no delta, dos Waraweere - que em Warao significa “habitantes das terras baixas” ou “de pântanos” - que
guerreavam com os Siawani e que vieram a se unir com estes para enfrentarem um inimigo comum: os colonizadores
espanhóis.
7 Sabe-se que as sociedades indígenas agricultoras penetraram pelas zonas adjacentes ao delta e que se
dispersaram sobre extensas áreas, graças a seu sistema de transporte, tendo trazido o processo de produção e preparo da
mandioca (yuca) (García Castro, 2012).
8 O hábito de adotar percursos que envolvem longas distâncias, comum entre os povos de línguas pertencente
ao Tronco
Caribe visando realizar seu sistema de troca e comércio interétnico (gerando territorialidades como a descrita
como “cinturão caribe”), foi o que levou estas populações a também povoarem as regiões periféricas do delta do Rio
Orinoco, colocando-os em contato com os Warao.
9 Sobre os grupos Caribe, sabe-se que historicamente apresentam grande mobilidade e que seus deslocamentos
cobrem imensas extensões: como no conhecido “cinturão caribe”, que atinge hoje regiões situadas na Venezuela,
Guiana e Brasil (no Estado do Amazonas, mas também além dele).
6
Gasson entendem que a dinâmica da interação desses grupos teve caráter mais temporário e
informal10. Estes etnógrafos ressaltam, cabe frisar, que os Warao do passado não podem ser
confundidos com os do presente.
Taipa (2007, 2008) por meio da reconstrução e da análise dos sistemas indígenas em todo o
oriente venezuelano, identificou a existência de onze sistemas interétnicos pré-coloniais nos quais
indígenas de diferentes troncos linguísticos coexistiam – sendo estes sistemas estruturados por meio
de redes de comunicação e de intercâmbios comerciais próprios. Esta situação foi progressivamente
transformada pela imposição de novas formas de organização dos seus territórios e espaços sociais
pela presença do colonizador europeu, em especial, por meio da implantação de missões religiosas12.
Para Taipa (2008), no caso dos Warao, foi justamente pelas suas características culturais e
pela ecologia própria do seu território que eles puderam reunir outros grupos que fugiam da inserção
missionária, tornando a região um centro de atração para sedentarização e agregação. Assevera este
autor que foram as características do território dos Warao que permitiram que eles fossem dos
poucos entre os grupos indígenas do período que nunca foram conquistados nem submetidos na sua
totalidade ao regime de missões. Isto teria se dado porque para os missionários era praticamente
impossível fundar e manter missões naquelas áreas inundáveis onde eles viviam, de modo que
tinham que transferir os Warao de suas áreas de origem para outras, em terra firme. Este teria sido o
motivo pelo qual apenas uma pequena parte das comunidades da etnia esteve envolvida em
empreendimentos missionários.
Ainda da constatação das diferenciações culturais, em face da unidade linguística, merece
destaque um estudo elaborado Wilbert (1979), onde o autor busca explicar, por meio de um círculo
(Figura 2), como os próprios Warao interpretam sua diversidade interna. Deste esquema explicativo
resulta uma compreensão dos Warao acerca de si mesmos como grupo, cuja melhor imagem seria a
de um mosaico composto por quatro formas que podem assumir as suas práticas culturais e
simbólicas: 1) o delta Central: cuja especificidade é serem pescadores, caçadores e terem vida
sazonal; 2) a área central do Amacuro ou o sudoeste do delta (Suroriental), onde eles são
caracterizados como horticultores (de milho e mandioca), dispondo de residências fixas instaladas
nas bordas dos grandes rios e utilizando-se dos butirizais situados na zona mais próxima dos rios; 3)
o delta Noroccidental: onde são caracterizados como pescadores, fabricantes de canoa, onde o buriti
(morichaleros) tem grande importância e a horticultura é incipiente, e 4) a “boca do Orinoco”:
plazo, circunstanciales o temporales, com funciones religiosas y rituales, en el senso de un sistema interregional
basado en el intercâmbio a grandes distancias y celebraciones rituales” e que desta rede “participaban muchos grupos
linguísticos, ente ellos, hablantes de lenguas Warao, Arawak, y Caribe, incluyendo los Nepoyo, Chaima,
Parogoto/Guayanos, Siawani (Chaguanaes), Kariña, Verotiani ([Farautes] Waraotu) y Guaiaquery (Wikiri)” (Heinen,
Gasson & Gacia Castro 2012: 122).
12
Os Warao estão presentes em dois destes sistemas analíticos: o Paria, que se desenvolveu entre o século XVI e XVIII
e que envolvia os Chaima e os Warao, e o sistema deltano, estruturado desde o século XVI e atuante até o presente e
integrado pelos Warao do delta com os Kari'ña e os Paria.
região de marismas e pântanos, onde os Warao também são caracterizados como pescadores e
buritizeiros (morichaleros), mas sem qualquer forma de agricultura (García Castro, 2000)11.
Com este breve esforço descritivo visou-se destacar a espacialidade e mobilidade da etnia
Warao, bem como a multiplicidade e as diferenças culturais internas que a caracterizam. Nos
tópicos que se seguem buscamos avançar um pouco mais na etnografia Warao, visando
compreender as influências do seu ambiente e dos processos colonial e pós-colonial na construção
dos sujeitos Warao.
11 Conforme advertem os autores que se utilizam desse recurso analítico-explicativo dos quadrantes, os atuais
Warao não habitam os quadrantes originais dos tempos pré-hispânicos. Desde os primeiros tempos da colônia até o
século XVIII, muitos ameríndios se refugiaram nas áreas dos Waraowitu e seus buritizais (morichales), alterando a
composição e localização das populações. Além disso, as frentes de expansão e expropriação colonial e neocolonial
também entraram posteriormente neste território promovendo alteração da localização das populações originárias. De
todo modo, ainda hoje o sistema de quadrantes teria expressão nos mundos Warao, se considerados como mosaicos,
com suas particularidades: com rituais (mare mare), festas (naha namu) e instrumentos musicais (seke seke) próprios.
Alguns etnógrafos dos warao observam que as maiores diferenças se encontram entre os “morichaleros”, basicamente
os Warao sem canoas (“curiaras”) e os construtores artesanais de embarcações (ou carpinteros de ribera) (García Castro,
2012).
8
do sacerdote Joseph Gumilla. Mais recentemente, nas décadas iniciais do século 1920, missões
ainda eram fundadas entre eles visando “discipliná-los” como trabalhadores nas plantações que se
ampliavam na região. A presença das missões em outras regiões próximas também fomentou novos
contatos e mobilidades, sendo este o caso dos habitantes de Murako, que não vivem no território de
seus antepassados porque foram transferidos por Capuchinos (García Castro, 2013)12.
Deste modo, o delta do Orinoco, em que pese à existência de sucessivas ocupações históricas
por diversos grupos humanos, constitui-se em um ambiente que, assim como seus habitantes
indígenas, resistiu por séculos. Recentes mudanças afetaram o modo de vida dos Warao ao deixá-los
totalmente à margem de projetos governamentais de “desenvolvimento” ali implementados. Destas
alterações destacam-se duas que costumam ser apontadas como particularmente prejudiciais para o
grupo e para a sua territorialidade: a introdução do cultivo de ocumo chino, nas décadas de 1920-40,
e a construção do dique-estrada no rio Manano, na década de 1960. Estas e outras pressões que se
acumularam ao longo do último século se refletem nas condições de vida dos Warao na atualidade,
em suas localidades de origem, jogando as famílias e pessoas da etnia para fora da espacialidade do
delta e as obrigando a criarem alternativas que passam pelos contextos urbanos da Venezuela e,
mais recentemente, também por outros países.13
Foi somente a partir da década de 1960 que os Warao foram descritos como dependentes dos
recursos e empregos externos para complementar a sua subsistência, incluindo as cidades na sua
territorialidade, o que coincide com o fechamento do Rio Manamo; um movimento para as cidades
próximas do delta também foi identificado na década de 1950, o que se dá logo após a inserção do
cultivo do ocumo chino em substituição aos buritizais. Na década de 1990, novos empreendimentos
do setor petroleiro são implantados na região, momento em que novamente é registrada uma
intensificação dos deslocamentos e migrações dos Warao para contextos urbanos (García Castro,
2013); por fim, a situação econômica do país vizinho gerou perdas de programas ou do valor de
benefícios sociais, desencadeando aumento da migração para cidades.
12 Um relato sobre os habitantes de Murako afirma que eles “son descendientes de otros Warao e Caribes de
las misiones de los P. Capuchinhos Catalanes de Guayana a donde fueron llevados durante El siglo XVII, para
emprender el regresso en el siglo XX” (García Castro, 2013, p. 18). O autor deste trecho afirma que neste grupo Warao,
as mulheres possuem o hábito de usarem grossos colares, o que as diferem de outras.
13 No curso deste século eles também estiveram inseridos em plantações de não indígenas, na prospecção de petróleo e
no comércio com outros grupos indígenas (especialmente da Guiana), com os criollos de Trinidad e com as populações
venezuelanas, mas sempre suas atividades tradicionais.
14 “Ocumo” é uma das denominações das plantas do gênero Xanthosoma, composta por cerca de cinquenta
espécies. Serve de alimento em várias regiões do continente americano.
10
Inicialmente importante para as transformações processadas na vida dos Warao foi o fato de,
na década de 1920, ter ocorrido a introdução do cultivo do ocumo chino na área de
MerehinaSabobana e, mais tarde, também nas do interior da região Arawao-Winikina e nas ilhas de
Mariusa, nos rios Macareo e Araguao. Com este cultivo, os antigos setores onde os Warao
exploravam a palma de buriti (ou “moriche”, como dizem em espanhol) no delta central foram
tomados. Assim os Warao, devido à escassez de alimentos pela não exclusividade do uso de seu
território, foram obrigados a estabelecer processos migratórios em direção às regiões mais ao sul
(Guayo, Merehina e Curiaco) ou rio acima para junto de populações não indígenas nas cidades de
Barrancas ou Tucupita (Heinen et al., 2012). Vê-se, assim, que foi a necessidade de abandono das
áreas de buritizais que gerou a relação inicial de forte dependência econômica da etnia em relação à
sociedade envolvente .
Quando já não contam com farta disposição de alimentos provenientes das florestas dos
buritizais (mel, caranguejo, frutas, palmitos e outros), houve também o fechamento de fábricas de
palmito, onde havia empregos, o que fez com que mais segmentos das populações locais migrassem,
desta vez, especialmente para o município de Antônio Díaz e para ilhas do delta, onde também
encontraram problemas com a escassez de alimentos. Pouco mais tarde, já na década de 1970,
muitas das plantações em que os Warao trabalharam deixaram de existir, dado o fechamento do
Manamo, que gerou acidificação do solo e uma série de outros problemas para o cultivo na região
(Heinen et al., 2012; Gassón & Heinen, 2012).
O Rio Manamo foi barrado por um dique/estrada em 1965 pela Corporación Venezoelana de
Guayana (CVG) com a finalidade de aumentar as terras aptas às atividades agropecuárias, afetando
áreas situadas no estado delta Amacuro e Monaga, e para dar acesso por terra à capital Tucupita. O
Manamo constitui-se em um braço ou afluente do Rio Orinoco. Está situado a oeste do delta e seu
nome, que é derivado de uma palavra Warao, significa “dois”, pois se trata de rio que bifurca. O
fechamento teve início pela margem esquerda. Esta estrada sobre o dique, finalizada em 1967, ligou
Maturín a Tucupita15, permitindo que os carros entrassem por terra, pela primeira vez, nesta cidade
(García Castro, 2012). Consta que apesar da presença massiva dos Warao na região, eles não foram
ouvidos ou consultados sobre este projeto que, no entanto, gerou de imediato a remoção forçada de
parcialidades da etnia e o impedimento de acesso às áreas anteriormente em uso, além de passar
15 Tucupita, capital do estado de delta do Amacuro desde 1905, foi construída sobre áreas que eram dos
Siawani do Rio Amana (hoje Manamo).
11
suas áreas para populações não indígenas, incentivando estas a empreender em agricultura familiar
ou empresa agrícola16 (Heinen & García Castro, 2000).
Os principais efeitos ambientais adversos que fizeram fracassar o projeto de tornar o delta
em uma “grande granja” foram a salinização das águas, a acidificação do solo, a elevação do nível
das águas nas ilhas e o surgimento de doenças nas áreas onde as águas ficaram paradas. 17 Com a
construção do dique houve a afetação simultânea de todas as atividades de subsistência dos Warao:
a pesca (devido ao aumento da salinidade na estação seca no rio abaixo), a agricultura (acidificação
dos solos) e a disputa por recursos naturais em partes do território18 (García Castro & Heinen, 2000).
ficaram impedidos desta prática depois da implantação do dique no Manamo (García Castro & Heinen, 1999).
21
Outras alterações graves para os Warao: restrição de acesso a partes do território, quebra do sistema de reciprocidade,
assalariamento, monetarização de parte da sua economia até então voltada para a subsistência (inserção do gado), perdas
territoriais, ecológicas e de saberes; mudança no padrão habitacional e o estabelecimento de grande número de
granjeiros em suas áreas e aumento da ocupação crioula (García Castro & Heinen, 1999).
produtos. O deslocamento para as cidades é feito por grande parte da população indígena na
Venezuela e não só pelos Warao, mas com suas próprias singularidades. Nas últimas décadas, por
múltiplas razões, de cada dez indígenas, sete vivem em zonas urbanas (García Castro, 2000a).
Os contextos urbanos geraram, por um lado, uma solução precária à economia Warao,
alterada pelos danos socioambientais em seu território, mas, por outro lado, lhes acarreta problemas
relacionados à saúde, estranhos ao universo indígena (tuberculose, diabetes, DSTs) e que
normalmente estão associados à pobreza, desnutrição e desamparo social. Estes problemas se
somaram a outros decorrentes de questões sanitárias surgidas como consequência das alterações
ambientais nas suas áreas de origem (como a malária, a febra amarela, dentre outras). Assim, as
questões de saneamento e saúde também passaram a motivar o deslocamento em busca de
tratamento nas cidades (García Castro, 2000a, 2000b).
No caso dos Warao, e para citar apenas os eventos recentes com repercussões sobre a saúde
coletiva do grupo, tem-se uma epidemia de cólera em 1992-1993 (que gerou a morte de centenas de
Warao) e a morte, em 2007-2008, de 38 pessoas da etnia, devido a uma enfermidade que demorou a
ser diagnosticada pelas autoridades de saúde. Consta que neste último episódio, as principais
vítimas foram crianças. Chama a atenção o fato de que os esforços dos Warao têm aumentado em
torno das questões de saúde, de modo que estas tornaram-se questões centrais do movimento social
13
Warao. A saúde indígena chegou a receber, no curso do governo Chaves, atenção especial, mas tudo
indica que no momento ela não é uma das prioridades do atual governo (García Castro, 2000a,
2000b).
3. PARTE II: OS WARAO NO BRASIL
19 Uma das senhoras que está em Boa Vista deu notícias da introdução do gado, ela vive numa localidade em
Monagas, região de pecuária, em que se cria gado nas comunidades pequenas, de modo coletivo. 23 Braços ou ribeiras
do Orinoco, no Delta.
14
regra ideal é a matrilocal, onde o papel da mulher costuma ser fundamental na composição da
unidade do grupo (elas permanecem e os homens circulam) e na redistribuição dos alimentos e
outros recursos adquiridos entre os integrantes da família extensa. Nos contextos públicos,
observase que as manifestações são majoritariamente dos membros masculinos. Nos relatos,
destacam o acervo de cantos antigos (rituais, curativos, festivos), que alguns lembram mais do que
outros justamente por haver comunidades onde estes cantos tem maior relevância que em outras -, e
descrevem festas e rituais.
Os Warao nomeiam as crianças quando já estão um pouco maiores. Esta prática pode estar
tanto ligada a fatores próprios da onomástica da etnia, quanto estar relacionada aos altos índices de
mortalidade infantil, especialmente se comparado aos padrões urbanos, pois tivemos contato com
algumas mulheres Warao que relatam terem perdido mais da metade dos filhos que tiveram ao
longo da vida, quando estes ainda se encontravam na infância, o que bem traduz o contexto de
origem das famílias que hoje se encontram no Brasil.
Possuem clara divisão sexual do trabalho quando em suas comunidades, competindo aos
homens a pesca e construção de canoas e às mulheres a elaboração da farinha e a cestaria. Quando
em expedição pelas cidades, algumas regras sobre divisão sexual podem se apresentar invertidas,
com os homens cozinhando enquanto as mulheres trabalham fora “pedindo” em vias públicas
(García Castro, 2000a)20.
Eles narram que alguns vivem em comunidades situadas nas beiradas dos rios, mas praticam
um ir-e-vir entre estas e as cidades, em viagens para vendas, trocas, trabalhos temporários, obtenção
de dinheiro de doações nas ruas e acesso a serviços públicos de saúde, dentre outros motivos.
Muitos dos que já vivem em bairros urbanos das cidades em Delta Amacuro e Monagas, de acordo
com o que nos relataram, mantém vínculos sociais com suas comunidades ribeirinhas. Assim, os
recursos conseguidos nas cidades, seja quando se deslocam temporariamente ou se nelas vivem,
podem ser compartilhados nas comunidades.
Na região do delta do Orinoco os Warao relatam não dispor do uso exclusivo de seu
território histórico e do qual necessitam, pois ele está partilhado com os que eles chamam os
Hotarao (habitantes das terras altas: crioulos e estrangeiros). Considerando-se as informações até o
20 Entre os que estavam em Pacaraima vimos apenas mulheres cozinhando e, na feira do passarão, em Boa
Vista, foinos narrado que também eram elas as contratadas nas barracas da feira.
15
momento encontradas, pode-se dizer que não há ainda titulação de um território contínuo do povo
indígena Warao; encontrou-se dados, apenas, de titulação territorial para comunidades específicas
(Marin, 2013; Arias, 2016; Venezuela, 2016).
Das sete unidades familiares que estavam no CRI, seus representantes informaram as
seguintes procedências: um (1) grupo familiar da Cidade de La Baba (Estado Sucre, próxima a
Maturin e à divisa com Monagas), dois (2) grupos oriundos da comunidade Araguabisi, no canal
(caño) de mesmo nome, no município de Antônio Diaz, em Delta Amacuro, um (1) da Comunidade
Espanha, em Monagas, um (1) da Comunidade de Peso, entre os municípios de Barrancas do
Orinoco e Antônio Diaz e um (1) da Comunidade de Nabasanuka, entre os municípios de Tucupita e
Antônio Diaz, no Delta Amacuro. Assim, entre os que se encontram no Brasil, há famílias
provenientes dos três Estados mais mencionados na literatura consultada, de distintas regiões
deltaicas, sendo que o município de Antônio Diaz apresenta pequeno número a mais de famílias do
que os demais.
A seguir apresentamos os mapas produzidos pelos próprios Warao no curso do trabalho de
campo e que descrevem suas áreas de origem com as comunidades da etnia de acordo com a
memória, os principais caños, suas rotas e outros aspectos que ali aparecem retratados:
Legenda: “Ilhas de Antônio Diaz”.Tucupita. Caños: 1. Boca Grande. 2. Orinoco. 3. Macareo. 4barra Cocuiña. 5. Caño Manamo
(Rodeia Tucupita). 6. Rio Araguayto. 7. Caño Araguao. 8. Caño Coboyna (pata la Boca Coboyna). 9. Caño Araguabise. 10. Cño
Jaruguara. 11. Caño (Grande) Winikina. 12. Caño Joribujo. Cidades, Bairros e Comunidades: 1. Los Barrancos. 2. Ciudad
Guayana. 3. Barranca del Orinoco. 4 Tucupita – Bairro La Horqueta. 5. Pedernalles.6. Comunidad Sto Domingo. 7. Comunidad
Winamorena. 8. El Consejo (Criollos). 9. Cantico. 10. Tortuga – comunidade indígena. 11. Tortuga-comunidad criolla. 12.
Cruzero Araguao. 14. Araguaymujo. 15. – 16. Bonoina. 17. Navasanuca (Marias). 18. Jubasojuro. 19. San Francisco de Guayo.
20. Curiapo (capital de Antonio Diaz). 21. Remanso Sacupana. 22. Serro Sacupana. 23. El Toro. 24. Orocoyuna. 25. Manoa. 26.
Paloma de Toro. 27. Araguarice. 28. Tacarejoro. 29. Baracaro. 30. Vulcán de Araguao.31. Coboyna.32. Winikina. 33. Cocal. 34.
Janakojobaro.35. Ajunaburo. 36. Barranquilla. 37. Morichito. 38. Jojene. 39. Espanha. 40. Cuberuna. 41. Joibitoro (tem uma
laguna grande). 42. Mariusa. 43. Macareo (barra de Cocuina), 44. Pedernalles.
Os indígenas Warao que se dirigem para o Brasil o fazem em grupos familiares. Muitos dos
que aqui se encontram já se conheciam nas suas regiões de origem; outros se conheceram no trajeto
ou quando já se encontravam nas cidades no Brasil (Pacaraima, Boas Vista e Manaus). No decorrer
deste trabalho, soube-se também da presença de famílias Warao na cidade de Manaus e que estas,
antes de se dirigirem à capital amazonense, já haviam passado por Pacaraima e Boa Vista. Este dado
indica o dinamismo dos processos de mobilidade Warao que, no contexto brasileiro, se encontram
em pleno curso.
Constatou-se que famílias extensas se dividem entre Brasil e Venezuela nesse processo de
mobilidade: uma parte viaja e a outra aguarda o retorno ou, se assim for decidido, fazem o mesmo
percurso para se juntar aos demais. Os familiares mais velhos raramente saem das comunidades
17
para vir ao Brasil, mas pudemos observar uns poucos que acompanhavam suas famílias no CRI
(Centro de Referência do Imigrante) em Boa Vista. Geralmente permanecem nas comunidades de
origem também os aposentados e funcionários assalariados, como os professores. Os entrevistados
relatam que as comunidades Warao atualmente possuem um Cacique, um Conselho Comunal e um
Conselho Indígena.
Conforme as narrativas que ouvimos, diante da fome, do corte e das limitações nos
programas sociais, na atual conjuntura em seu país, e sabendo de notícias de outros Warao que
vieram para o Brasil, decidiram viajar em busca das possibilidades de acesso aos gêneros
alimentícios que rarearam ou encareceram agudamente, assim como para venderem artesanatos,
pedir roupas e dinheiro. Dentre os homens e mulheres Warao com quem conversamos, no Centro de
Referência ao Imigrante, há quem já viajou para Maturin, Ciudad Bolivar, Valência, Maracaibo e
Caracas. Eles esperam poder retornar com algum dinheiro, roupas e gêneros alimentícios e, se a
situação venezuelana não mudar, trazer os filhos e demais membros para o Brasil. Compreendemos,
das conversas com eles estabelecidas que, no momento, a perspectiva é poder ir e vir, embora
permanecer também seja uma possibilidade considerada. Certo é que nada podem prever neste
momento que acabam de chegar, saindo de situações que relatam como muito dolorosas.
A presença dos Warao nas cidades brasileiras é registrada desde 2014, tendo-se observado,
desde então que a quantidade de membros da etnia oscila ao longo do ano, o que se pode ser
atribuído a diversos fatores, dentre os quais: o fechamento/abertura das fronteiras pela Venezuela, a
sazonalidade ou alternância das práticas de pesca, agricultura e coleta nas comunidades que beiram
os rios e canais do Delta do Orinoco e a dinâmica de formação das redes de relações sociais entre os
Warao que estão no Brasil e destes com os que permanecem na Venezuela.
É provável ainda que o período natalino, enquanto um tempo de doações onde as pessoas
costumam ficar mais generosas, tenha permitido às mulheres Warao - que contavam com a doação
em dinheiro nos principais cruzamentos das avenidas de maior movimento, ou na feira do Passarão
e outros lugares comerciais - reunir os recursos para redistribuição dentro da sua rede de
parentesco, nas comunidades de origem. Além de dinheiro e mantimentos, os Warao também levam
as roupas usadas que ganham.
É possível pensar, como hipótese a ser explorada e nos casos das unidades familiares
provenientes das comunidades nos caños, numa relação entre a mobilidade para o Brasil, a
sazonalidade das atividades no Delta e as condições atuais de algumas delas. Nas conversas no
Centro de Referência ao Imigrante21, os Warao contaram que janeiro é tempo de semear o ocumo,
que é colhido seis meses depois. Entre julho e agosto, é a vez de saírem para os locais de pesca
(caso dos caranguejos, em Laguna de Mariusa). Para estas atividades, deslocam-se sempre em grupo
familiar, sendo que em muitos casos precisam permanecer nos locais, em habitações provisórias.
Também soubemos que a pesca, embora reduzida, é muito importante como fonte de alimento e
para o comércio, e que muitos dos que se encontravam no Brasil estavam deixando de praticá-la
para fins comerciais desde o início da crise na Venezuela, em virtude dos altos preços e de não
haver compradores. Assim, a intensificação dos deslocamentos ao Brasil no período que realizavam
a pesca pode indicar que, como esta não está cumprindo o papel de gerar renda, ela está sendo
substituída pelas “viagens” em busca de recursos. O contrário se passa com a coleta e plantio
voltados para a subsistência: devido à importância destas atividades para a nutrição familiar, pode
ser que tenham retornado após o mês de dezembro ao delta para auxiliarem suas famílias nestas
atividades, reduzindo assim o seu número no Brasil. Sugere-se que estas ponderações venham a ser
avaliadas, de modo a que se compreenda as oscilações nos registros da presença dos Warao no
Brasil, acima mencionadas.
Os Warao afirmam que estão se deslocando ao Brasil em busca de alimentos (“porque aqui
tem muito e lá não tem!”), de trabalho, fixo ou temporário e de dinheiro (que buscam auferir por
meio da venda de artesanato, dos pedidos de doações e de pequenos serviços – como engraxates ou
vendedores de picolé, no caso dos homens). Eles buscam também acesso à saúde, pois muitos
chegam machucados e/ou com crianças doentes ou após perda de filhos, ao mesmo tempo em que
21 O local e as condições em que nos aproximamos dos Warao não nos permitiu conhecer as condições em que
estavam antes, nas cidades. Também não foi possível acompanhá-los em suas idas ao centro de Boa Vista para suas
vendas e outras atividades.
19
parecem temer e resistir à aproximação de médicos e enfermeiras, como nos foi narrado em
Pacaraima.
No Brasil, os Warao realizam suas atividades econômicas por meio da venda de artesanato
(tais como chapéus, colares de seda de buriti, miçangas, cestarias, redes de dormir), itens que eles
têm particular interesse de continuar a produzir, assim como arrecadar recursos por meio dos
pedidos de doação em dinheiro nas cidades por onde circulam.
22 “Havia trabalho e alimentos”, mencionou um deles, referindo-se a contratos de trabalho de quatro meses
com um mês adiantado.
20
presente trabalho não tenha sido possível conhecer de modo mais detido a noção de pessoa Warao e
os modos de socialização a esta vinculados (o que recomendamos para os trabalhos futuros sobre a
etnia), já se sabe, com base na literatura antropológica, que há distintas formas de cuidado e de
participação da criança na vida social (Cohn,2000) e que a história colonial e neocolonial está
repleta de exemplos do caráter violento das socializações forçadas e apartadas promovidas pelos
colonizadores e missionários, em nome da “correção de comportamentos”. Assim, alerta-se aqui
para a necessidade de que as políticas de abrigamento, assim como outras que se dirijam aos Warao
no Brasil, busquem compreender e considerar os modos próprios de socialização da etnia, de modo
a garantir o respeito à sua forma de ser (diferente da não indígena) e à sua autonomia no cuidado
com os filhos e filhas23.
Assim, a participação das Instituições Públicas Federais que respondem pelos direitos
indígenas no campo da educação, da cultura e da saúde, além da FUNAI, se mostram importantes,
uma vez que, como lembra Amoroso, as práticas coloniais de educação e assimilação já guardam
uma enorme distância da forma como hoje compreendemos a escola indígena, ou seja, como uma
instituição integrada ao próprio projeto de autonomia dos povos indígenas (Amoroso, 1998).
Vale novamente mencionar o fato dos Warao serem em torno de 49 mil na Venezuela e, no
Brasil, ter chegado uma parcela mínima desta população, pois sabe-se que até o momento a
população da etnia não ultrapassou 600 pessoas simultaneamente no Brasil. Nota-se, assim, a
percepção negativa e nem sempre pautadas na realidade das avaliações que se tem feito dos Warao.
Não obstante a importância da proteção das crianças, ações protetivas podem ser construídas pela
via do diálogo intercultural. Mas o que se nota, no entanto, não são tentativas de melhorar as
condições Warao, mas de tirá-los da vista, de preferência mandando-os de volta a seus locais de
origem, sem considerar a atual falta de condições mínimas, assim como sua autonomia na garantia
de sua subsistência e reprodução cultural.
Todos os Warao com os quais conversamos são falantes da sua língua nativa e do espanhol,
mas alguns, os mais velhos, têm dificuldades na fluência deste último idioma. O português ainda se
constitui em uma barreira para eles, motivo pelo qual enfrentam dificuldades ao passar ao Brasil,
mas como são acostumados aos contextos citadinos (residência ou viagens), acabam por se saírem
23 Recente Resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, CONANDA, mostra
que esta preocupação de garantia do direito de respeito à diversidade mereceu atenção do Conselho. Vide Resolução Nº
181, 2016.
22
bem. Nesse sentido há que se destacar o empenho de comunicação dos Warao quando assim o
desejam, bem como a recusa em fazê-lo quando seus interlocutores deles se aproximam apenas para
dizer o que não podem fazer, como ficar no sinal, estar com crianças na rua e ao sol, dentre outras
“advertências”. Esta recusa se expressa por meio da simulação de não entendimento em absoluto da
pessoa por só se comunicarem na sua língua nativa.
Para chegar ao Brasil os Warao percorrem um longo trecho: uma parte fluvial e uma parte
rodoviária. Tucupita é o ponto de partida da maioria, que lá chegam por via fluvial e de lá
continuam por rodovia. Há distâncias fluviais que demandam até dois dias de deslocamento para se
chegar a Tucupita. A partir de Tucupita até a última cidade Venezuelana, que é Santa Elena de
Uairén, levam mais um dia. A Figura 5 mostra o percurso realizado pelo Warao desde o estado delta
Amacuro até Boa Vista, o que perfaz um total de cerca de 925 km.
Já no Brasil, muitos dos Warao que chegam a Boa Vista a partir de Pacaraima fazem a
trajetória ao longo de três dias de caminhada exaustiva, ou por meio de pagamento pelo transporte,
cujo valor pode variar, a depender do modo como as pessoas entraram no Brasil, se pela rodovia,
passando pelos postos de fiscalização, ou pelo sierro, caminhos existentes entre Santa Elena de
Uairén e Pacaraima. Disseram que têm de avaliar a escolha, uma vez que na passagem pelo posto da
Polícia Federal podem ser impedidos ou lhes serem concedidas permanências muito curtas, algumas
de apenas três dias, o que é incompatível com as necessidades e expectativas que os trazem.
Houve menção à cobrança, caracterizada como forma de corrupção de agentes venezuelanos,
no trajeto de retorno para suas terras, de modo que, além dos gastos com transporte, os ganhos são
reduzidos quando lá chegam de volta. Eles afirmam que com a venda dos produtos de artesanato e
com o que adquirem pedindo doações, obtêm o suficiente para apoiarem os parentes na Venezuela,
seja em espécie, seja por meio de alimento e outros produtos adquiridos aqui, notadamente
alimentícios.
Figura 5 – Caminho percorrido entre o delta do Rio Orinoco e Boa Vista
23
Fonte:
Amazoniareal, 2016
Com a interrupção da deportação em dezembro de 2016 por ação judicial proposta pela
Defensoria Pública da União em Roraima, cerca de metade dos indígenas retornaram a Boa Vista e
a outra parte seguiu, por opção, para a Venezuela. De acordo com avaliação de um dos Warao que
conversamos, os que preferiram voltar para a Venezuela provavelmente levaram em conta o fato de
que já haviam conseguido dinheiro e alimentos suficientes para o trajeto de volta e para os levarem
aos familiares. Permaneceram em Roraima aqueles que chegaram mais recentemente e que não
tinham ainda alimentos e dinheiro para o retorno às suas comunidades. Os Warao também avaliaram
que alguns permaneceram no Brasil por temor de adentrarem novamente a Venezuela e não
poderem mais voltar para cá, pois uma questão que muito os preocupava é se havia garantias do
24
Em decorrência desta tentativa de deportação, a maioria foi retirada dos espaços onde
estavam concentrados em Boa Vista, em especial na Feria do Passarão – local de atividade
comercial popular de produtos alimentícios – e levados para Pacaraima, na fronteira com a
Venezuela, sob a justificativa oficial de não possuírem a documentação necessária. Os que voltaram
para Boa Vista ainda passaram um tempo na Feira do Passarão, mas recebendo comida em um
sindicato e, no final de dezembro, foram levados para o abrigo do CRI, onde os encontramos.
Consta que antes mesmo de saírem da Feira do passarão que a Federação Fraternidade Humanitária
Internacional, instituição não governamental com sede em Minas Gerais que vem coordenando as
atividade no CRI, já atuava junto a eles.
Em Pacaraima, onde não havia abrigamento, ainda os encontramos em um terreno vazio,
próximo à rodoviária. Estavam em cerca de três grupos familiares de aproximadamente trinta
pessoas, incluindo as crianças. Neste local eles preparam o próprio alimento de forma precária e
com baixo teor nutricional: estavam consumindo, naquele momento, apenas arroz branco e uma
espécie de pão preparado com trigo e água. À noite se acomodam no espaço coberto da rodoviária,
sobre papelões e juntos a vários outros imigrantes venezuelanos, este últimos geralmente em trânsito
para Boa Vista. Moradores de Pacaraima reclamaram do uso de bebida alcoólica e da formação de
lixo em áreas públicas.
Em Boa Vista, inicialmente os Warao passaram a se posicionar nos semáforos dos principais
cruzamentos, especialmente as mulheres. O governo e sociedade locais, desde então, reagem de
maneira ambígua em relação aos Warao: por um lado, comovem-se com a situação, sobretudo das
crianças, mas por outro lado desejam vê-los distantes, de modo que estimulam as pessoas a não
darem “esmolas”, uma vez que existe acolhimento no CRI24. Este discurso apenas camufla as
verdadeiras condições do CRI e a real assistência oferecida pelo poder público, sem oferecer
condições mínimas de segurança alimentar.
O CRI é o local onde atualmente a maior parte dos Warao em território brasileiro se abriga.
Trata-se de um ginásio do Governo de Roraima, localizado no bairro Pintolândia. Neste abrigo, as
famílias estão incompletas e encontram dificuldades de comunicação com os que ficara na
Venezuela. Uma senhora relatou que naqueles dias tinha conseguido se comunicar com sua filha,
que se encontra cuidando de sua casa, em sua comunidade. Ela disse que tem “moradia digna”, mas
24 Soubemos que circulou na internet uma campanha, de autoria desconhecida, mediante uma fotografia de
uma senhora Warao segurando uma caixa de suco com os dizeres: “não alimente esta cultura na nossa sociedade”.
Ouvimos, também, observações tais como: “são diferentes dos “nossos índios”, pois ficam nas ruas pedindo
esmolas”.
25
estavam passando fome e necessidades. Por esta situação, a comunidade, conforme lhe informou a
filha, por decisão de seu Conselho, havia recentemente deliberado vender as cinco cabeças de gado
criado coletivamente. Quando da repartição do dinheiro obtido, a filha e netos não receberiam sua
parte, em razão da ausência da mãe. A filha protestou e, não sem muita tensão, obteve decisão
favorável, recebendo 25 mil bolívares, já gasto com comida. Esta situação, disse-nos na ocasião, a
preocupava muito.
A assistência por parte do governo estadual no CRI se faz presente, na ocasião que lá
estivemos, pela Defesa Civil, que é representada pelo Corpo de Bombeiros. Alimentos não
perecíveis foram fornecidos por esta via, mas apenas alguns produtos que haviam sido apreendidos
pela Polícia Rodoviária Federal, dentre eles, arroz, macarrão e óleo. São os missionários e
voluntários da Federação Fraternidade Humanitária Internacional que, como dito, estão prestando
assistência no CRI: administram as rotinas, e todos os dias buscam doações de alimentos com os
comerciantes da cidade, prestando cuidados de enfermaria, organizando atividades com as crianças,
providenciando transporte para acesso a atendimento de saúde etc. A Fraternidade, como é
conhecida, vem articulando diversas ações para promover a melhoria das condições dos Warao no
CRI e em Boa Vista.
No abrigo são os próprios indígenas que preparam e servem os alimentos, mas sob o controle
de quantidades, modos e formas definidos pelos integrantes da Fraternidade. Desde que chegaram
ao abrigo, os Warao estão organizados em nove líderes e concordaram em serem referidos como
Aidamos, em referência à organização sociopolítica Warao, nas comunidades. Estes ficam
responsáveis por falar pelas famílias, mas as mulheres têm seu papel, ainda que de modo reservado,
na interação ali estabelecida.
Há vários problemas de estrutura no CRI: saneamento por fossas rudimentares, sendo que
estas não estão ligadas a uma rede de esgoto e, com o uso frequente, elas enchem e transbordam;
alimentação insuficiente, pois depende de doações arrecadadas pela Fraternidade; grande quantidade
de insetos; a acomodação conjunta no espaço da quadra de esportes com imigrantes não indígenas, o
que pode ocasionar desentendimentos; assistência insuficiente ao atendimento de suas necessidades;
impossibilidade de reproduzirem adequadamente seu modo de vida tradicional. Destaca-se neste
conjunto, a inapropriada substituição de responsabilidades, pois a entidade humanitária que vêm
prestando seu apoio, tem seus limites e cumpre do modo como lhe é possível e específico o papel
que é do poder público.
3.7 – A ATUAÇÃO ESTATAL E DA SOCIEDADE CIVIL
26
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
25 O que contesta a ideia de senso comum - e algumas vezes afirmada também na antropologia, mas para
povos específicos – de que um povo corresponde a uma cultura bem definida, circunscrita, isolada e homogenia.
29
danos e de migração de suas áreas de origem para ter acesso aos recursos de saúde, por exemplo. 9)
É importante não sobredimensionar o processo de migração em tela, a população indígena Warao
na Venezuela chega a cerca de 49.000 pessoas e os dados aproximados da migração ao Brasil ainda
não ultrapassou a cifra de 600 pessoas, simultaneamente, desde 2014.
10) O Centro de Atendimento ao Imigrante, em que pesem os dedicados esforços ali
demonstradas pela Defesa Civil e a Fraternidade, não é local apropriado para acolhida aos Warao
que se dirigem para as cidades brasileiras.
11) Os serviços a serem prestados, de saúde, educação, ações para autonomia econômica e
atividades culturais requerem participação das instituições públicas federais responsáveis pelos
direitos indígenas nos campos da saúde, educação e cultura, além da FUNAI.
26 Dentre os Warao que conhecemos, poucos já se deslocaram para além das fronteiras nacionais, alguns já
foram para Trinidad e Guiana, mas consta informação da pesquisadora Lusi Videla Núñez - que trabalha com as
mudanças de padrões de assentamentos dos Warao e sobre os impactos destas mudanças nas práticas culturais e no
manejo da diversidade das zonas ribeirinhas e ilhas litorâneas do Alto delta (em Pedernales, Jacao, Guanipa e Isla
Misteriosa) - que recentemente esteve com os Warao de Barrancas do Orinoco (estes procedentes de Winikina e
Mariusa) e que entre eles há os que tem se deslocado também para a Colômbia. Esta informação foi repassada por esta
pesquisadora, via e-mail, datada de 01 de março de 2017, às antropólogas Bibiana Bilbao e Elaine Moreira. As
informações prestadas pelos Warao em Boas Vista indicam que viagens para Trinidad y Tobago e Guiana são opções
mais difíceis. Provavelmente por barreiras linguísticas, entre outras.
estudam os processos de mobilidade indígena através de fronteiras nacionais e que tenham interesse
em projetos colaborativos e de extensão.
31
5. SUGESTÕES
Sugerimos, a título de contribuição para as questões em pauta no âmbito dos trabalhos dos
membros do MPF que solicitaram o presente parecer, as seguintes ações:
1. A construção de uma política migratória para os Warao que garanta o direito de ir e vir; 2. Que
sejam ouvidos, de modo livre e informado, sobre as decisões e políticas de acolhimento, trabalho,
educação, saúde ou quaisquer outras medidas que lhes afetem, tomadas por autoridades brasileiras;
3. Que se estabeleça um protocolo para um processo de consulta sobre políticas junto a eles e com
sua ampla participação na construção do instrumento, considerando a mobilidade dos Warao, o que
faz com que nem sempre os que participarão da consulta poderão retornar e outros chegarem; 4.
Que os diálogos, consultas e a prestação de serviços públicos atentem para efetiva comunicação,
uma vez que poucos compreendem o português, pois têm como primeira língua o Warao e, como a
segunda, o espanhol;
5. Que a rede de instituições públicas e da sociedade civil responsáveis e envolvidas na política
migratória brasileira monitore a efetiva execução das políticas públicas definidas para os Warao na
audiência;
6. Que se desenvolva uma metodologia para que os responsáveis pelo abrigo possam registrar
de forma periódica, sistemática e permanente os dados sobre a entrada e de saída de indígenas
Warao no CRI, de modo que os dados possam ser utilizados nas pesquisas acadêmicas e nas
políticas públicas voltadas para a etnia;
7. Que o MPF e a rede de instituições envolvidas na política migratória estimulem as
Universidades (Federais e Estaduais) brasileiras e venezuelanas que já pesquisam migrações
indígenas através de fronteiras nacionais (especialmente nas áreas de antropologia, sociologia,
relações internacionais e afins) a desenvolver projetos de pesquisa e extensão com os Warao,
visando melhor compreender o processo de mobilidade da etnia no Brasil, assim como aprofundar
os estudos sobre danos socioambientais no território histórico de origem e que podem estar na base
dos processos migratórios da etnia, conforme argumentamos neste parecer;
8. Que sejam construídas, em conjunto com os Warao, propostas de ações e políticas cultural
ou etnicamente orientadas de atenção, em especial, nas seguintes áreas:
a) Saúde: especialmente a saúde das mulheres e crianças, que considere as
principaisdoenças que acometem a etnia, que identifique as vulnerabilidades próprias do
contexto brasileiro, que incorporem os saberes e práticas médicas da etnia no seu
escopo;
32
EDUARDO TARRAGO
Analista do MPU/Perícia/Antropologia/PR-RR
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deportados pela PF. Disponível em http://amazoniareal.com.br/crise-na-venezuela-indios-
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capuchinhos. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 13, n. 37, p. 101-114, June 1998 . Disponível em
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35
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University.
35
Foto 3 – Presença Warao em praça de Pacaraima: detalhe para a atividade de preparo de alimentos
39
Foto 5 – Desenho de criança Warao, no CRI: detalhe para a centralidade da “canoa”, elemento marcante da cultura
41