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ROLLO MAY**
Nos últimos anos temos notado uma conscientização crescente por parte de alguns
psicólogos e psiquiatras sobre a existência de enormes lacunas em nosso conhecimento a
respeito dos seres humanos. Essas brechas mostram-se mais pungentes aos terapeutas
que precisam confrontar-se, em suas clínicas ou consultórios, com a realidade nua e crua de
uma pessoa em crise, cuja ansiedade não pode ser aliviada por meras formulações teóricas.
Também no campo da pesquisa científica, certas lacunas apresentam-se na forma de
dificuldades aparentemente insuperáveis. Conseqüentemente, muitos psiquiatras e
psicólogos europeus, assim como alguns pesquisadores norte-americanos, vêm levantando
questões inquietantes, e não faltam pessoas que abrigam dúvidas torturantes suscitadas por
essas mesmas questões meio reprimidas e não formuladas.
Vamos a uma dessas questões: Podemos ter certeza de que vemos o paciente como ele
verdadeiramente é, conhecendo-o em sua própria realidade? Ou estamos simplesmente
projetando sobre ele nossas próprias teorias? Certamente cada psicoterapeuta sabe de cor
tanto os esquemas e mecanismos comportamentais quanto o sistema conceitual de sua
orientação teórica. Tais sistemas conceituais são absolutamente necessários se
pretendemos observar as coisas cientificamente. Mas a questão crucial é sempre quando
relacionamos tais sistemas com o paciente – como podemos estar certos de que nosso
sistema, por mais teoricamente harmonioso e elaborado que seja, tenha algo a ver com este
senhor Silva de carne e osso, com sua personalidade luminosa, palpitante, sentado diante
de nós em nosso consultório? Essa pessoa em particular não poderia estar precisando de
outros procedimentos, um outro quadro de referência totalmente diferente? Talvez este
paciente – ou, para semelhante problema, qualquer outra pessoa – não se enquadre em
nossas investigações e escorra dos nossos dedos científicos feito espuma do mar,
exatamente na mesma proporção em que confiamos na consistência lógica de nosso
sistema?
Outra questão não menos pungente: Como podemos saber se estamos vendo o paciente
em seu verdadeiro mundo, o mundo no qual “vive, se movimenta e é dono de seu ser”, e
que para ele é um mundo à parte, concreto e diferente de nossas teorias gerais sobre a
cultura? Há uma enorme probabilidade de que nunca tenhamos participado do seu mundo e
nem de possuirmos qualquer conhecimento direto sobre ele. No entanto, precisamos
conhecê-lo e ser capazes, ao menos em parte, de existir nele se quisermos ter alguma
chance de compreendê-lo.
Tais questões inquietavam os psiquiatras e psicólogos europeus, que mais tarde
constituíram o movimento existencial-analítico ou Daseinanalyse. Seu principal porta-voz,
Ludwig Binswanger, escreve:
A orientação existencial nas investigações psiquiátricas surgiu da
insatisfação com os esforços predominantes para se obter conhecimento
científico no campo da psiquiatria... Todos concordam que a psicologia e a
psicoterapia, enquanto ciências, estudam o “homem”, mas não o homem
Antes começarmos a explicar o que vem a ser essa nova concepção sobre o homem, é
preciso dizer que tal visão ocorreu espontaneamente em vários lugares da Europa e entre
escolas diversas, e é estudado por um corpo heterogêneo de pesquisadores e pensadores
criativos. Entre eles figuraram Eugene Minkowski, em Paris, Erwin Straus, primeiro na
Alemanha e mais tarde nos Estados Unidos, e V. E. von Gebsattel, também na Alemanha;
estes representaram fundamentalmente a primeira fase deste movimento, conhecida como
fase fenomenológica. O segundo estágio, existencialista, se fez representar mais
especificamente por Ludwig Binswanger, A. Storch, Medard Boss, G. Bally e Roland Kuhn,
na Suíça; H. Van Den Berg e F. J. Buytendijk, na Holanda, e assim sucessivamente. O
curioso é que esse movimento surgiu como se fosse por geração espontânea, sem que, em
várias ocasiões, os pesquisadores de um setor conhecessem os trabalhos marcadamente
semelhantes aos de seus colegas de outros setores, e que ao contrário de ser o segmento
das idéias de um líder, foi obra de diversos psiquiatras e psicólogos. Tais fatos comprovam
que este movimento veio responder a uma necessidade geral que se fazia sentir em nosso
tempo nos campos da psiquiatria e da psicologia. Von Gebsattel, Boss e Bally são analistas
freudianos; Binswanger, embora suíço, tornou-se membro da Sociedade Psicanalítica de
Viena sob recomendação do próprio Freud, quando o grupo de Zurique rompeu com a
Internacional. Alguns dos terapeutas existenciais tiveram também influência junguiana.
Estes homens extremamente experimentados ficaram intrigados diante do fato de que,
mesmo efetuando curas aplicando as técnicas que tinham aprendido, não conseguiam,
desde que se limitassem aos postulados de Freud e Jung, obter uma compreensão clara de
por que tais curas ocorriam ou não, ou o que realmente acontecia na vida do paciente. Estes
homens se recusaram a silenciar suas dúvidas e inquietações pelos métodos convencionais
utilizados pelos terapeutas – ou seja, concentrando sua atenção e redobrando seus esforços
em aparar as arestas do seu próprio sistema conceitual. Freqüentemente os terapeutas, no
instante em que surgem dúvidas ou inquietações a respeito daquilo que estão fazendo,
voltam-se para a técnica. Talvez o truque mais cômodo para tranqüilizar-se seja o de deixar
tais questões fundamentais de lado, adotando uma postura totalmente técnica. Estes
homens também resistiram a semelhante tentação. Nem se mostraram dispostos a admitir a
priori certos elementos não verificáveis tais como a “libido”, ou o “censor”, como observa
Ludwig Lefebre,2 ou os diversos processos compreendidos por meio da expressão genérica
conhecida como “transferência”, para explicar o que ocorria. E tinham fortes dúvidas sobre a
utilização da teoria do inconsciente como carta branca em que caberiam quase todas as
explicações. Como disse Straus, percebiam que “a maioria das vezes as idéias
inconscientes do doente são as teorias conscientes do terapeuta”.
Estes psiquiatras e psicólogos não discutiam as técnicas específicas da terapêutica.
Reconheceram, por exemplo, que a psicanálise é válida para certos tipos de doentes, e
alguns deles, membros indubitáveis do movimento freudiano, fizeram uso dela. Mas todos
tinham sérias dúvidas em relação a suas teorias sobre o homem, acreditando que essas
dificuldades e deficiências no conhecimento do ser humano não só entorpeciam seriamente
a pesquisa, como também limitavam, a longo prazo, a eficiência e o desenvolvimento de
8L. Binswanger, El Caso de Ellen West: Estudio Antropológico-clínico, in May, R., et alii,
(eds.), Existencia, Madrid, Gredos, 1977, capítulo IX, pp 288-434.
9L. Binswanger, Erinnerungen na Sigmund Freud, publicado nos Estados Unidos sob o título
de Sigmund Freud: Reminiscences of a Frienship, trad. de Norbert Guterman, New York,
Grune & Straton, 1957.
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simplesmente mais uma escola entre tantas que surgiram da ruptura com Freud, Jung,
Adler... Essas primeiras escolas formaram-se sob o impulso criador de um líder original,
surgindo como uma exigência para certos pontos obscuros na terapêutica ortodoxa,
emergindo tipicamente quando a ortodoxia se mostrava inepta. Enquanto a psicanálise
clássica se perdia em discussões bizantinas e insípidas a respeito do passado do paciente,
Otto Rank acentuava, no início dos anos 20, a necessidade de estudar o presente nas
experiências do enfermo. A análise do caráter de Wilhelm Reich surgiu ao final da década de
1920 como resposta à necessidade premente de abrir uma brecha nas “defesas do eu” da
couraça do caráter; nos anos trinta, desenvolveram-se novas concepções culturais com o
trabalho de Horney e, de forma peculiar, Fromm e Sullivan, quando a psicanálise ortodoxa
perdeu de vista o alcance real dos aspectos sociais e interpessoais dos distúrbios neuróticos
e psicóticos. É preciso dizer que o surgimento do movimento da terapia existencial possui
um ponto em comum com as outras escolas – ou seja, como uma exigência em relação a
certos pontos obscuros nos métodos psicoterápicos da época, como poderá ser visto ao
longo deste livro. Mas difere das demais escolas em dois pontos. Primeiro, não é criação de
nenhum líder isolado, mas desenvolveu-se espontaneamente e de maneira original em
diversos pontos do continente europeu. Segundo, não pretende fundar uma nova escola em
oposição às preexistentes nem apresentar novas técnicas terapêuticas contrárias às
antigas. Sua proposta fundamental é a análise da estrutura da existência humana – um
empreendimento que, se bem sucedido, ajudará a compreender a realidade latente em
todas as situações dos seres humanos em crise.
Assim, o movimento pretende fazer algo mais do que lançar um raio de luz sobre pontos
obscuros. Quando Binswanger diz que “... a análise existencial é capaz de ampliar e
aprofundar os conceitos básicos e o conhecimento da psicanálise”, a meu ver, move-se em
terreno sólido não apenas em relação à psicanálise, mas também quanto às demais formas
de terapia.
Entretanto, não é preciso ser profeta para antecipar a resistência que este movimento
encontrará nos Estados Unidos, apesar de estar se impondo rapidamente na Europa e de
que vários pesquisadores se refiram a ele como o movimento predominante no velho
continente. Nos primórdios, quando ainda eram colegas, em certa ocasião Freud escreveu a
Jung dizendo que era preferível localizar e desmascarar abertamente a resistência contra a
psicanálise por parte daquela civilização, ainda vitoriana. Seguindo o conselho do próprio
Freud, vamos dar os nomes das principais resistências que tememos encontrar contra este
movimento.
O primeiro foco de resistência contra esta ou qualquer outra forma de inovação é a
suposição de que todas as grandes descobertas já foram feitas nestes campos, faltando
apenas preencher algumas lacunas. Tal atitude é uma velha intrusa, uma hóspede que não
foi convidada, mas que sempre fez muito barulho nos embates entre as diversas escolas
psicoterápicas. São os chamados “pontos cegos alicerçados em dogmas”. E ainda que não
se deva levar tal atitude em consideração, inclusive pelo fato de mostrar-se impermeável a
qualquer raciocínio, é um posicionamento que infelizmente se encontra mais disseminado
no atual período histórico do que se poderia desejar.
O segundo foco de resistência merece uma resposta mais profunda: é sobre a suspeita de
que a análise existencial seria uma intromissão da filosofia na psiquiatria e que pouco teria a
ver com ciência. Esta atitude é uma reminiscência das cicatrizes culturais herdadas daquela
batalha do final do século XIX, quando a ciência psicológica se libertou da metafísica.
Aquele triunfo foi de importância capital, mas como em qualquer guerra, produziu reações
extremistas no sentido oposto, que também são prejudiciais. Faremos algumas observações
sobre esta resistência.
Convém lembrar que o movimento existencial em psiquiatria e psicologia surgiu justamente
do desejo de sermos mais empíricos, e não menos. Binswanger e os outros estavam
convencidos de que os métodos científicos tradicionais não só eram injustos quanto aos
dados, mas tendiam a esconder mais do que a revelar o que ocorria com o paciente. O
movimento analítico existencial é um protesto contra a tendência de vestir o paciente com
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roupas sob medida, medida essa referida a nossos preconceitos, ou a formá-lo à imagem e
semelhança das nossas predileções. Nesse ponto, o movimento existencial enquadra-se
perfeitamente dentro da tradição científica no sentido mais amplo. Além do mais, amplia seu
conhecimento do homem com as perspectivas históricas e as sondagens dos especialistas,
aceitando o fato de que os seres humanos se manifestam na arte, na literatura e na filosofia,
aproveitando também as aquisições dos movimentos culturais particulares, onde se
manifestam a ansiedade e os conflitos do homem contemporâneo. Basta ler os capítulos
que se seguem para apreciar a probidade intelectual e a disciplina científica destes
estudiosos na exploração dos seus respectivos campos. A meu ver, representam uma
síntese da ciência e do humanismo.
Cabe lembrar, também, que todo método científico baseia-se em postulados filosóficos.
Estes postulados determinam não só o quanto da realidade o observador pode perceber
com o uso deste método em particular – de fato, são as lentes com as quais ele observa os
acontecimentos –, mas também se os fenômenos observados são pertinentes ou não aos
problemas reais, e por conseguinte, se o trabalho científico se mostrará duradouro. É um
erro crasso, ainda que comum, acreditar ingenuamente que a melhor maneira de observar
os fatos é despojando-se de toda e qualquer preocupação filosófica. O único resultado é o
de refletir acriticamente as doutrinas provincianas da cultura limitada do observador. Em
nossos dias, esta atitude teve como conseqüência a crença de que a ciência é o conjunto de
métodos que pretendem isolar os fatos e observá-los sem preconceitos: é um método
particular que brotou da ruptura entre sujeito e objeto produzida no século XVII na cultura
ocidental, e que nos séculos XIX e XX evoluiu em direção a suas formas especiais de
compartimentos estanques.10 É natural que hoje em dia sejamos tão vítimas dessa
“metodolatria” quanto qualquer outra cultura. Mas parece especialmente lamentável que
nossos conhecimentos num campo tão vital quanto o do estudo psicológico do homem – do
qual depende a compreensão de sua saúde emocional e mental – se mostrem entorpecidos
pela aceitação cega de certos postulados restritos. Segundo a arguta observação de Helen
Sargent, “a ciência oferece mais refúgios do que podem supor os estudantes
universitários”.11
Não é da essência ciência o pressuposto de que a realidade é legítima e, portanto,
compreensível? E não é um aspecto inerente à integridade científica que qualquer método
deva criticar seus próprios postulados? A única maneira de ampliar os horizontes é
analisando os postulados filosóficos próprios. A meu ver, os psiquiatras e psicólogos do
movimento existencial têm o mérito de empenhar-se firmemente no esclarecimento de suas
próprias bases filosóficas. O Dr. Ellenberger, em um capítulo adiante, afirma que tal
empenho permite que eles vejam seus pacientes sob uma nova ótica, e capacita-os a
projetar uma luminosidade original sobre muitas das faces da experiência psicológica.
O terceiro foco de resistência – e o mais crucial, a meu ver –, é a tendência, reinante nos
Estados Unidos, de uma preocupação excessiva com a técnica, associada a uma grande
impaciência diante dos esforços para encontrar as bases sobre as quais tais técnicas se
fundamentam. É fácil explicar essa tendência considerando o nosso entorno ambiental e
social, podendo justificá-la através do nosso impulso otimista e ativista para ajudar as
pessoas. Certamente, no campo da psicologia, nossas habilidades dirigiram-se
principalmente para a área clínica, na esfera comportamental e da psiquiatria aplicada,
sendo que nesta última a nossa contribuição foi maior na farmacoterapia e em outras
aplicações técnicas. Gordon Allport chamou a atenção para o fato de que as psicologias
norte-americana e britânica (seguindo a tendência intelectual geral) seguiram as diretrizes
pragmáticas de Locke, que se ajustam ao behaviorismo, aos sistemas de estímulo e
resposta e à psicologia animal. Em contraposição, a tendência do continente europeu foi
10Ver p. 17.
11Methodological Problems in the Assesment of Intrapsychic Change in Psycotherapy (no
prelo).
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seguir a linha leibnitziana.12 Mas para que não nos tornemos altivos, convém lembrar que
todas as novas contribuições teóricas com originalidade e força suficientes para produzir
novas escolas no terreno da psicoterapia brotaram no continente europeu, com apenas duas
exceções – e uma delas também era de ascendência européia, defendida por um psiquiatra
nascido na Europa.13 Nos Estados Unidos tendemos a ser excessivamente práticos; mas a
questão que deve inquietar-nos é: de onde vamos tirar aquilo que vamos praticar? Em
nosso afã pela técnica, ainda que louvável, tendemos a esquecer que a técnica sustentada
sobre si mesma acaba eliminando a própria técnica. Um dos motivos pelos quais o
pensamento europeu tem se mostrado mais fecundo na produção de descobertas originais
nestes campos é o da sua tradição de amplas perspectivas históricas e filosóficas no campo
da ciência e da filosofia. Isto se mostra de maneira evidente na linha concreta que nos
interessa neste livro, o movimento da psicoterapia existencial. Binswanger, Straus, Von
Gebsattel e demais fundadores deste movimento certamente pensam em problemas e
pacientes reais, mas em seu pensamento sentimos o perfume da ciência “pura”. Não
buscam apenas técnicas, mas sim o olhar compreensivo que deve iluminar todas as
técnicas particulares.
Em minha opinião, as resistências que mencionei, longe de minar a contribuição da análise
existencial, demonstram justamente a sua importância capital, potencial para o nosso
pensamento. Apesar de suas dificuldades – em parte devido a sua linguagem e à
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complexidade do seu pensamento –, acredito que representa uma contribuição de alcance e
originalidade que merecem que a estudemos seriamente.
É preciso agora eliminar toda essa confusão criada em torno do termo “existencialismo”. É
uma palavra bastante alardeada, que chegou a significar qualquer coisa: do diletantismo
atrevido e vaidoso de alguns membros da vanguarda parisiense, até a filosofia do
desespero, com seu evangelho do suicídio, passando também pelo sistema da filosofia
alemã anti-racionalista, escrito em linguagem tão esotérica que se torna desesperador para
qualquer leitor com mentalidade empírica. O existencialismo é na verdade uma expressão
de profundas dimensões, que reflete o temperamento moderno emocional e espiritual, e que
se manifesta em quase todos os aspectos de nossa cultura. É encontrado não apenas na
psicologia e na filosofia, mas também na arte – pensemos em Van Gogh, Cezanne e
Picasso – e na literatura – lembremos de Dostoievski, Baudelaire, Kafka e Rilke. De fato, em
muitos aspectos, representa o retrato único e específico do predicamento psicológico do
homem ocidental contemporâneo. Este movimento cultural, como veremos detalhadamente
mais à frente, tem suas raízes na mesma situação histórica e nas mesmas crises
psicológicas que originaram a psicanálise e outras formas de psicoterapia.
A confusão sobre a palavra existencialismo ainda ocorre nos círculos literários. The New
York Times publicou uma reportagem onde comentava sobre a atitude de Sartre –
inicialmente de protesto, seguido de rompimento definitivo com os comunistas russos pela
sua repressão do movimento de libertação húngaro –, qualificando-o como líder do
“existencialismo, que em termos gerais é uma forma materialista de pensamento”. Esta
reportagem é um exemplo ilustrativo de dois tipos de confusão: primeiro, a identificação do
existencialismo com os escritos de Jean-Paul Sartre, muito freqüente na opinião pública
norte-americana. Sem levar em conta o fato de que Sartre é mais conhecido nos Estados
Unidos por sua dramaturgia, seus filmes e romances do que pelas suas sérias e penetrantes
análises psicológicas, devemos ressaltar que este autor representa uma ala extrema, niilista
e subjetivista do existencialismo, prestando-se a mal-entendidos, sendo que sua postura
não pode sequer ser considerada a melhor introdução ao movimento existencialista. A
Segunda confusão é ainda mais séria, presente na reportagem do Times quando define o
existencialismo como “grosseiramente materialista”. Nada mais incorreto; exceto se for
entendido como seu extremo oposto, isto é, como uma forma idealista de pensar. Isto
porque a própria essência deste sistema consiste em procurar analisar e retratar o ser
humano – seja na arte, na literatura, na filosofia e na psicologia – em uma dimensão que
visa justamente suprimir o velho dilema entre materialismo e idealismo.
Em poucas palavras, o existencialismo é o esforço para compreender o homem, eliminando
a cisão entre sujeito e objeto que tanto torturou o pensamento e a ciência ocidentais desde a
época do Renascimento. Binswanger chama essa cisão de “câncer de toda a psicologia até
o presente momento..., o câncer da doutrina da cisão do mundo em sujeito-objeto”. Este
modo existencial de compreender os seres humanos conta com alguns progenitores no
mundo ocidental, tais como Sócrates em seus diálogos, Santo Agostinho em suas profundas
auto-análises psicológicas, Pascal em seu esforço para encontrar um lugar para “as razões
do coração que a própria razão desconhece”. Porém, de maneira específica, surgiu há mais
de um século no violento protesto de Kierkegaard contra o racionalismo imperante de seu
tempo – ou na frase de Maritain, “o totalitarismo da razão” de Hegel. Kierkegaard acusou
Hegel de identificar a verdade abstrata com a realidade: isso era uma ilusão que levava a
uma armadilha. Em palavras de Kierkegaard: “A verdade só existe na medida em que o
indivíduo a produz no decorrer de sua ação”. Ele e os existencialistas que o seguiram
protestaram energicamente contra os racionalistas e os idealistas que pretendiam ver no
homem apenas um sujeito – isto é, um ser que só era real enquanto ente pensante. Mas
lutaram com não menos vigor contra a tendência de tratar o homem como um objeto que
dever ser medido e controlado, como era patente nas tendências quase unânimes no mundo
8
ocidental de tentar transformar os seres humanos em unidades anônimas para encaixá-las
como robôs dentro do coletivismo industrial e político dos nossos dias.
Estes pensadores buscavam justamente o oposto do que seria um intelectualismo
encerrado em si mesmo. Eles protestaram de maneira ainda mais violenta do que a
psicanálise clássica em relação ao abuso no emprego do pensamento como defesa contra a
vitalidade ou mesmo como um substituto da experiência imediata. Um dos primeiros
existencialistas da ala sociológica, Feuerbach, fez esta impressionante advertência: “Não
queira ser filósofo em contraposição a ser homem..., não pense como um pensador...; pensa
como um ser vivente e real. Pensa em termos de existência”.14
“Existir”, derivado do verbo latino “ex-sistere”, significa literalmente: sair, emergir, aflorar.
Esta etimologia indica exatamente o que procuravam estes representantes culturais, tanto
na arte como na filosofia e na psicologia: a saber, retratar o ser humano não como uma
coleção de substâncias estáticas, mecanismos e esquemas, mas como algo emergente,
efervescente, isto é, existente. De fato, por mais interessante e teoricamente correto que
seja o fato do homem ser composto de tais e quais elementos químicos, e de que se
comporte sob o efeito de tais e quais mecanismos e esquemas, sempre resta a questão
crucial de que ele existe em um momento dado do tempo e do espaço, e da conseqüente
problemática vital de como perceber isso e o que deve fazer diante desse fato. Mas é
importante frisar que, como veremos mais à frente, os psicólogos e psiquiatras
existencialistas não pretendem de forma alguma eliminar o estudo dos dinamismos,
impulsos e esquemas de comportamento. Eles sustentam que tais conhecimentos não
podem ser compreendidos em um sujeito concreto sem levar em consideração o fato crucial
de que estamos diante de uma pessoa que existe, que é; e se esquecermos disso, todos os
conhecimentos que possuirmos ou viermos a possuir sobre esse sujeito perderão seu
sentido. Sendo assim, abordam cada caso de uma forma dinâmica; a existência fala do vir à
tona, do nascer, do devir. Os esforços desses profissionais visam compreender essa
“efervescência” da vida como sendo a estrutura fundamental da existência humana e não
uma máquina, um artefato sentimental. Quando o leitor encontrar o termo “ser” nos capítulos
seguintes, palavra que empregamos com freqüência, deve lembrar que não é uma
expressão estática mas sim dinâmica, uma forma verbal. O existencialismo preocupa-se
fundamentalmente pela ontologia, que é a ciência do ser, segundo sua etimologia grega.
O significado desta palavra pode ser visto com maior clareza ainda se lembrarmos que a
filosofia ocidental, tradicionalmente, contrapunha a “existência” à “essência”. A essência
refere-se, por exemplo, à cor deste lápis, sua densidade, seu peso e as demais
características que constituem sua substância. Podemos dizer que, à partir do
Renascimento, a filosofia ocidental ocupou-se das essências. A ciência tradicional tentava
descobrir essas essências ou substâncias; ou nas palavras do professor Wild, de Harvard,
ela adotava uma metafísica essencialista.15 De fato, a pesquisa das essências pode
estabelecer leis universais altamente significativas no terreno científico ou brilhantes
elucubrações abstratas nos campos da lógica e da filosofia. Mas pode fazê-lo apenas por
abstração, e deixando de lado a existência dos sujeitos particulares. Por exemplo, pode-se
demonstrar que três maçãs somadas a outras três correspondem a seis. Mas daria no
mesmo substituir as maçãs por “mafagafos”; para a verdade matemática dessa proposição,
é indiferente se existem ou não as maçãs ou os “mafagafos”. Isto é, uma proposição pode
ser verdadeira sem ser real. E já que este sistema deu certo em vários ramos do saber,
poderíamos nos sentir tentados a esquecer as implicações de um tratamento onde não se
14Citado por Paul Tillich, Existential Philosophy, em Journal of the History of Ideas, 5, 44-70,
1944.
15John Wild, The Challenge of Existentialism, Bloomington, Indiana University Press, 1955.
Os físicos modernos tais como Heisenberg, Bohr (cf. p. 24) e outras tendências similares
modificaram-se neste ponto, seguindo um processo paralelo a um aspecto do
desenvolvimento existencialista, como veremos. Falamos no contexto das idéias tradicionais
da ciência ocidental.
9
leva em consideração o sujeito existente.16 Aí está o abismo entre a verdade e a realidade. E
o problema crucial para a psicologia e para outros campos das ciências humanas é
justamente esse abismo entre a verdade abstrata dos princípios e a realidade palpitante,
existencial dos seres vivos.
Para que ninguém pense que estamos criando um argumento artificial, queremos assinalar
o fato de que renomados pensadores da psicologia tradicional admitem franca e
abertamente esse abismo entre verdade e realidade. Em palavras de Kenneth W. Spence,
conhecido líder de uma das tendências da teoria comportamental: “O psicólogo enquanto
cientista não se pergunta, ou pelo menos não deveria se perguntar, se uma área particular
dos fenômenos é mais real ou mais próxima da vida real, e se por isso deve ter a
preferência nas pesquisas”. Isto é, que em princípio não importa que o objeto de nossos
estudos seja real ou não. Nesse caso, que setores devemos escolher em nossas
pesquisas? Spence dá preferência aos fenômenos que se prestem “ao grau de controle e de
análise necessários para a formulação de leis abstratas”. 17 Em nenhum outro lugar vimos
este ponto de vista exposto de maneira tão franca e clara: seleciona-se o que pode ser
reduzido a leis abstratas, sendo irrelevante se o objeto do nosso estudo é real ou imaginário.
Diversos sistemas psicológicos foram constituídos por meio deste procedimento,
empilhando abstrações sobre abstrações até construir uma estrutura admirável e imponente
– é dessa forma que os autores sucumbem ao seu “complexo de construção”, algo que nós
os intelectuais sabemos por experiência própria. A única dificuldade é que na maioria das
vezes esse edifício é erguido, das fundações até o topo, à margem da realidade humana.
Entretanto, os pensadores da tradição existencial têm uma opinião diametralmente oposta à
de Spence, da mesma forma que os psiquiatras e psicólogos do movimento da psicoterapia
existencial. Estes insistem em afirmar ser possível e necessário estabelecer uma ciência do
homem que estude os seres humanos em sua própria realidade.
Kierkegaard, Nietzsche e seus seguidores previram com exatidão esta crescente ruptura
entre a verdade e a realidade na civilização ocidental, esforçando-se para dissipar a ilusão
dos homens do ocidente que acreditavam poder captar a realidade por meio de
procedimentos abstratos e de precisão. Entretanto, ainda que protestassem energicamente
contra a aridez do intelectualismo, não pensem que eles eram simples ativistas, nem muito
menos anti-racionais. Não se deve confundir o existencialismo com o antiintelectualismo e
outros movimentos da atualidade que subordinam o pensamento à ação. Qualquer uma das
alternativas que for adotada, transformando o homem em objeto ou em sujeito, tem como
resultado perder-se de vista a pessoa viva, existente. Kierkegaard e os pensadores
existencialistas referiam-se a uma realidade subjacente às duas alternativas, subjetividade e
objetividade. Afirmavam que não devemos estudar apenas a experiência vivida por alguém,
mas sim o homem que passa por essa experiência, que a está vivendo. Insistiam no fato de
que “o objeto da experiência cognitiva não é a realidade nem o ser, mas sim a existência, a
realidade vivida imediatamente, acentuando o caráter interior e pessoal da experiência
imediata do homem”, como afirma Tillich. 18 Este comentário, assim como os anteriores,
indica ao leitor a proximidade entre os existencialistas e a psicologia profunda dos nossos
dias. Não é por acaso que os maiores existencialistas do século XIX, Kierkegaard e
16A realidade interessa àquele que possui as maçãs – este é o aspecto existencial –, mas é
indiferente para a verdade da proposição matemática. Usando um exemplo mais sério, é
verdade que todos os homens morrem, é quando se afirma que a tal idade morre tal
porcentagem, essa proposição é abalizada estatisticamente. Porém nenhuma dessas
afirmações diz qualquer coisa sobre um detalhe – que na realidade é o que mais interessa a
todos nós –, a saber, o de que você e eu teremos que nos confrontar sozinhos com o fato de
que vamos morrer em algum indefinido momento no futuro. Estes são fatos existenciais, que
contrastam com as proposições essencialistas.
17Kenneth W. Spence, Behavior Theory and Conditioning, New Haven, Yale University
Press, 1956.
18Paul Tillich, op. cit.
10
Nietzsche, figurassem entre os psicólogos mais ilustres de todos os tempos, e que um dos
líderes contemporâneos desta escola, Karl Jaspers, fosse originariamente um psiquiatra e
tivesse escrito um texto notável sobre psicopatologia. Quando lemos a profunda análise de
Kierkegaard a respeito da ansiedade e o desespero, assim como também as maravilhosas e
penetrantes intuições de Nietzsche sobre a dinâmica do ressentimento e sobre a culpa e a
hostilidade decorrentes da repressão das forças emocionais, ficamos surpresos de estar
lendo obras escritas a setenta e cinco anos:* estaríamos certos de tratar-se de análises
psicológicas contemporâneas. Os existencialistas visam basicamente à redescoberta da
pessoa viva dentro da compartimentalização e desumanização da civilização
contemporânea, tentando fazê-lo por meio de profundas análises psicológicas. porém não
centram seu interesse em reações psicológicas isoladas, mas sim no ser psicológico do
homem que está vivendo sua experiência. Isto é, empregam termos psicológicos, atribuindo-
lhes um sentido ontológico.19
** A primeira edição deste livro foi publicada em inglês em 1958 (nota do tradutor).
19Para os leitores que desejam uma referência histórica mais ampla, acrescentamos esta nota. No
inverno de 1841, Schelling pronunciou sua famosa série de conferências na Universidade de Berlim
diante de um distinto auditório, onde figuravam Kierkegaard, Burckhart, Engels, Bakunin. Schelling
propôs-se a desbancar Hegel, cujo amplo sistema racionalista – que identificava, como dissemos, a
verdade abstrata com a realidade, condensando toda a história em um “conjunto absoluto” – obteve
uma imensa popularidade e predominava na Europa a meados do século XIX. Ainda que as respostas
de Schelling à Hegel houvessem decepcionado amargamente muitos dos seus ouvintes, pode-se
dizer que deu-se aí o início do movimento existencialista. Kierkegaard voltou à Dinamarca, onde
publicou em 1844 seus “Fragmentos Filosóficos”, e dois anos depois escreveu a declaração de
independência do existencialismo em seu “Concluding Unscientific Postcript”. Nesse mesmo ano
surgiu também a Segunda edição de “O Mundo Como Vontade e Representação”, de Schopenhauer,
uma obra importante dentro do novo movimento, pelo grande destaque dado à vitalidade – vontade –
associada à “representação”. Nos anos de 1844-45, Karl Marx escreve duas obras relacionadas entre
si. O Marx primitivo distingue-se neste momento por seu ataque contra a verdade abstrata “como
ideologia”, fazendo de Hegel seu bode expiatório. A teoria dinâmica de Marx, que considerava a
história como um cenário onde os homens e os grupos tornam a verdade realidade, e as significativas
passagens onde assinala a maneira como a economia do capital industrial moderno tende a
transformar os indivíduos em coisas e a desumanizá-los, são também no movimento existencialista.
Tanto Marx quanto Kierkegaard aproveitaram o método dialético de Hegel, mas com propósitos
bastante diferentes. Podemos salientar que Hegel possuía muito mais elementos existenciais latentes
do que reconheciam seus antagonistas.Nas décadas seguintes o movimento refluiu. Kierkegaard
passou totalmente desapercebido, a obra de Schelling teve um enterro vergonhoso, e Marx e
Feuerbach foram tachados de materialistas dogmáticos. Entretanto, em 1880 deu-se um novo
impulso com a obra de Dilthey, mas sobretudo com Friedrich Nietzsche e seu movimento da “filosofia
da vida”, e com a obra de Bergson.
A terceira fase – já contemporânea – do existencialismo surgiu do choque que a Primeira Guerra
Mundial produziu no mundo ocidental. Tanto Kierkegaard quanto o Marx dos primórdios foram
novamente desenterrados, enquanto a acomodada placidez da era vitoriana mostrava-se incapaz de
responder aos sérios desafios lançados por Nietzsche contra as bases espirituais e psicológicas da
sociedade ocidental. A cristalização desta terceira fase deve muito à fenomenologia de Edmund
Husserl, que proporcionou a Heidegger, Jaspers e outros o instrumento que precisavam para cortar
pela raiz a escandalosa cisão entre sujeito e objeto operadas tanto na ciência quanto na filosofia.
Existe uma semelhança evidente entre o existencialismo, com sua ênfase na verdade enquanto
produzida na ação, e as filosofias progressivas, como a de Whitehead e o pragmatismo americano,
particularmente o de William James.
Para os que desejam mais informações sobre o movimento existencialista enquanto tal, remetemos à
obra clássica de Paul Tillich, “Filosofia Existencial”, de onde tirei quase todo o material histórico
precedente.
Podemos acrescentar que parte da confusão neste campo deve-se aos títulos desorientadores dados
aos livros. Sendo assim, a “Breve História do Existencialismo”, de Wahl, é breve mas nada tem de
existencialismo histórico, da mesma forma que o livro publicado por Sartre intitulado “Psicanálise
Existencial” tem pouco a ver tanto com a psicanálise quanto com a terapêutica existencial.
11
Martin Heidegger é considerado de maneira geral como o fundador do pensamento
existencialista contemporâneo. Sua obra seminal, “Ser e Tempo”, foi de vital importância,
proporcionando a Binswanger e a outros psiquiatras e psicólogos existencialistas a base
profunda e ampla que procuravam para compreender o homem. O pensamento de
Heidegger é rigoroso, lógico, incisivo e científico, no sentido europeu de seguir com vigor e
profundidade incansáveis qualquer pista ou implicação que resultasse de suas pesquisas.
Mas a sua obra se mostra quase impossível de traduzir. Em inglês dispomos apenas de
alguns ensaios.20 A melhor contribuição de Jean-Paul Sartre para o nosso tema são as suas
descrições fenomenológicas dos processos psicológicos. Além de Jaspers, podemos citar
outros proeminentes pensadores existencialistas, como Gabriel Marcel, na França, Nicolas
Berdiaef, nascido na Rússia porém residindo em Paris até a sua morte recente, e Unamuno
e Ortega y Gasset, na Espanha. Paul Tillich revela em sua obra uma mentalidade
existencialista; o seu livro The Courage to Be é, em muitos aspectos, a melhor e mais
vigorosa apresentação do existencialismo, como forma de abordar a vida atual, que
podemos encontrar na língua inglesa.21
Os romances de Kafka descrevem o desespero e a desumanização na civilização
contemporânea, de que – e a partir da qual – fala o existencialismo. “O Estrangeiro” e “A
Peste”, de Albert Camus, são excelentes representantes na moderna literatura, onde
aparece um existencialismo meio consciente de si mesmo. Mas talvez seja na arte moderna
onde o sentido do existencialismo tenha se mostrado mais vivamente, em parte por estar
articulado simbolicamente e não na forma de pensamento autoconsciente, em parte porque
a arte sempre revela com especial luminosidade a têmpera emocional e espiritual latente na
cultura. Nas próximas páginas faremos alusões freqüentes à relação entre a arte moderna e
o existencialismo. Destacarei aqui apenas alguns dos elementos comuns nas obras dos
mais célebres representantes da arte moderna, tais como Van Gogh, Cezanne e Picasso.
Esses elementos são: primeiro, revolução contra a hipócrita tradição acadêmica do fim do
20Publicado por Werner Brock, junto com uma introdução e um sumário de “Ser e Tempo”,
em Existence and Being, Chicago, Henry Regnery Co., 1949. Heidegger repudiou a
qualificação de “existencialista”, quando ele foi identificado com a obra de Sartre. Ele se
denominaria, falando com rigor, filólogo ou ontologista. De qualquer forma, devemos ser o
suficientemente existencialistas para não envolver-nos em controvérsias sobre títulos,
olhando para o sentido e para o espírito da obra de cada um, mais do que para a literalidade
do texto. Martin Buber também não acha muita graça em ser chamado de existencialista,
apesar das afinidades que sua obra apresenta em relação a este movimento. O leitor que
sentir dificuldades em aceitar certos termos neste campo se encontrará em boa companhia!
21The Courage to Be, New Haven, Yale University Press, 1952, é existencial por ser uma
forma viva de abordar a crise, em contraste com os livros que falam sobre o existencialismo.
Tillich não deve ser qualificado como um existencialista puro – o mesmo se aplica à maioria
dos pensadores mencionados neste texto –, já que o existencialismo é uma maneira de
abordar os problemas e não uma panacéia de respostas ou normas. Tillich apresenta
normas racionais – em suas análises sempre predominam estruturas racionais – e normas
religiosas. Certos leitores não estarão de acordo com os elementos religiosos de The
Courage to Be. Mas o importante é perceber o aspecto tremendamente significativo ilustrado
por estas idéias religiosas, que é o de terem uma autêntica postura existencial, não
importando se as aceitamos ou não. Isto pode ser visto nos conceitos de “Deus para além
de Deus” e de “fé absoluta” propostos por Tillich, onde a fé não é uma crença em uma
verdade ou em uma pessoa, mas sim um estado de ser, um modo de relacionar-se com a
realidade caracterizado pelo valor, pela aceitação, pela entrega etc. Os argumentos teístas
para demonstrar a existência de Deus não apenas estão fora de questão, como também são
um exemplo da deformação no hábito ocidental de se pensar em Deus como uma
substância ou um objeto, existente em um mundo de objetos no qual nós somos sujeitos.
“Esta é uma má teologia”, nos diz Tillich, resultando no “Deus dado como morto por
Nietzsche, porque ninguém pode tolerar que o transformem em mero objeto de
conhecimento e de controle absoluto”, p. 185.
12
século XIX; segundo, um esforço para penetrar sob a superfície até captar novas relações
com a realidade da natureza; terceiro, o afã de recuperar a vitalidade e a experiência
estética de maneira honesta e direta; e quarto, a tentativa desesperada de expressar o
sentido imediato que subjaz à moderna situação humana, mesmo que isso signifique pintar
o desespero e o vazio. Tillich afirma, por exemplo, que o quadro “Guernica”, de Picasso,
constitui o retrato mais impressionante e revelador da condição fragmentária da sociedade
européia antes da 2a Guerra Mundial e “mostra o que atualmente forma a base da alma de
muitos americanos, ou seja, desnorteamento, dúvidas existenciais, vazio e falta de
sentido”.22
O fato desta concepção existencial ter brotado como um produto original, como uma
resposta espontânea a certas crises da civilização moderna, pode tanto ser notado na
literatura e nas artes, como também nos diversos filósofos surgidos em diferentes partes da
Europa e que desenvolveram estas mesmas idéias, sem que tivessem nenhum contato
consciente entre si. Ainda que a principal obra de Heidegger, “Ser e Tempo”, tenha sido
publicada em 1927, já em 1924 Ortega y Gasset expusera e publicara parcialmente algumas
idéias impressionantemente parecidas, mesmo sem conhecer diretamente a obra de
Heidegger.23
É evidente que o existencialismo nasceu em um momento de crise cultural; e desenvolve-se
atualmente à beira do vulcão revolucionário da arte, literatura e pensamento modernos. A
meu ver, este fato é muito mais uma garantia sobre a sua intuição do que o contrário.
Quando uma cultura atravessa um período de transição marcado por profundas convulsões,
é compreensível que os indivíduos padeçam de uma correspondente comoção espiritual e
emocional dentro da sociedade; quando tais indivíduos percebem que a mentalidade e os
costumes tradicionais não mais lhes oferecem segurança, acabam encastelando-se no
dogmatismo e no conformismo, renunciando ao esforço mental que as novas situações
exigem, ou então se vêem forçados a exigir de si mesmos uma nova tensão autoconsciente
que lhes abra os olhos para os seus novos problemas existenciais e para a busca de
soluções sobre novas bases. Esta é uma das maiores afinidades entre o movimento
existencialista e a psicoterapia: o fato de ambos se ocuparem de indivíduos em crise. E
longe de afirmar que as intuições durante um período de crise são “simplesmente um
produto da ansiedade e do desespero”, provavelmente comprovaremos – como
freqüentemente ocorre na psicanálise – que a crise é justamente a mola propulsora de que
as pessoas necessitam para despertar de suas rotinas conformistas, cheias de dogmas sem
conteúdo, e para forçá-las a livrar-se de seus disfarces seculares, fazendo com que
descubram a verdade desnuda sobre si mesmos, sabendo que essa verdade, por mais
incômoda que seja, pelo menos se mostrará mais sólida. O existencialismo é uma filosofia
que aceita o homem em um estado de devir permanente, o que equivale virtualmente a
estar em crise. Mas crise não significa desespero. Sócrates, que representa o protótipo do
existencialista em sua busca dialética da verdade, era um otimista. Mas é compreensível
que esta atitude floresça em períodos de transição, entre os estertores de uma era
moribunda e as dores do parto de uma era em gestação, onde os indivíduos ou estão
perdidos e sem lar ou desenvolvem uma nova atitude consciente. No período de transição
entre a Idade Média e o Renascimento, que foi uma época de fortes comoções na
civilização ocidental, Pascal descreveu com pinceladas enérgicas a experiência que tempos
depois os existencialistas denominariam Dasein: “quando considero o curto lapso de minha
vida, prensado entre duas eternidades, uma anterior e outra posterior, o reduzido espaço
que ocupo e que alcanço com meu olhar, perdido na infinita imensidão de mundos que não
conheço e nem me conhecem, sinto medo e pergunto-me atônito porque estarei eu aqui e
não ali, pois não há razão para que eu esteja aqui em vez dali, nem para que eu exista
22Existentials Aspects of Modern Art in: Christianity and the Existentialists, editado por Carl
Michalson, New York, Scribners, 1956, p. 138.
23Ortega y Gasset, La Deshumanización del Arte, Rev. De Occidente, Madrid.
13
nesta data e não naquela...”.24 Em poucas ocasiões o problema existencial foi expresso de
forma tão simples e bela. Nesta passagem vemos, em primeiro lugar, a profunda
consciência da contingência da vida humana, que os existencialistas chamam de
“thrownness”. Em segundo lugar, percebemos como Pascal encara, sem pestanejar, o
enigma de “estar ali”, ou mais especificamente, de estar “onde?”. Em terceiro lugar, vemos a
comprovação de que não se pode recorrer a explicações superficiais ou circunstanciais, algo
que Pascal poderia ter feito, em sua qualidade de cientista. E finalmente, a profunda e
inquietante ansiedade nascida desta viva consciência de ver-se existindo em semelhante
universo.25
Por último, para encerrar esta seção de orientação, resta notarmos a relação entre o
existencialismo e o pensamento oriental tal como aparece nos escritos de Lao Tse e do Zen
Budismo. As analogias são impressionantes, bastando olhar para algumas citações do “Tao
Te King”, de Lao Tse: “A existência escapa à força expressiva das palavras: estas são
impotentes para defini-la; muitos termos podem ser usados, mas nenhum é absoluto”. “A
existência nutre-se de nada e nutre tudo: é mãe do universo”. “A existência é infinita, não
pode ser definida ou limitada; e ainda que em suas mãos pareça um pedaço de madeira
disposto a deixar-se talhar por você, não se deve brincar frivolamente com ela, nem jogá-la
fora”. “O caminho para fazer é ser”. “Habite o centro de seu ser; pois quanto mais você se
afasta dele, menos aprende”.26
Expressões semelhantes, presentes no Zen Budismo, também nos surpreendem. 27 As
analogias entre estas filosofias orientais e o existencialismo são muito mais profundas do
que a mera semelhança entre algumas expressões. Ambos apontam para a ontologia, para
o estudo do ser. Ambos buscam um contato com a latente realidade que se esconde sob a
cisão entre sujeito e objeto. Ambos insistem no fato de que o obstinado empenho do
Ocidente em dominar a natureza resultou não só no afastamento do homem da própria
natureza, mas também em sua alienação de si mesmo. O motivo principal destas
semelhanças é o fato de que o pensamento oriental nunca sofreu essa cisão radical entre
sujeito e objeto que tão bem caracterizou a filosofia ocidental: e essa dicotomia é justamente
aquilo que o existencialismo busca superar.
Entretanto, não podemos identificar uma concepção com a outra, pois elas transitam em
planos diferentes. O existencialismo não é uma filosofia universal e nem um sistema de vida,
mas sim uma tentativa de captar a realidade. A principal e específica diferença entre ambas,
no que nos diz respeito, é que o existencialismo está imerso e brota diretamente da
ansiedade, da alienação e dos conflitos do homem ocidental, sendo fruto da nossa
civilização. O existencialismo, assim como a psicanálise, não pretende importar soluções de
outras culturas, mas fazer uso dos próprios conflitos da personalidade contemporânea como
24Pensées of Pascal, New York, Peter Pauper Press, 1946, p. 36. O Dasein é definido na
página 63.
25Não nos é estranho o fato de que esta concepção da vida se mostre importante para os
cidadãos contemporâneos que estão conscientes dos dilemas emocionais e espirituais com
os quais nos confrontamos. Mencionamos, por exemplo, Norbert Wiener. Ainda que as reais
implicações da sua obra científica possam diferir radicalmente dos aspectos mais
destacados das posições existencialistas, ele afirmou em sua autobiografia que a sua
atividade científica levou-o a um existencialismo “positivo”. “Não lutamos por uma vitória
definitiva num futuro indefinido”, diz ele. “A maior vitória possível é ser e ter sido (grifo meu).
Nenhum fracasso pode nos privar do triunfo de ter existido em alguma fração de tempo num
universo que parece nos olhar com indiferença”: I am a Mathematician, New York,
Doubleday.
26Witter Bynner, The Way of Life, according to Laotzu, an American Version, New York, John
Day Co., 1946.
27Vide William Barrett, ed., Zen Buddhism, the Selected Writings of D. T. Suzuki, New York,
Doubleday Anchor, 1956, Introdução, p. XI.
14
norteadores para uma mais profunda autocompreensão do homem ocidental, encontrando a
solução dos nossos problemas a partir das crises históricas e culturais que os provocaram.
Neste caso, o valor particular do pensamento oriental não reside na possibilidade de ser
transposto, completo e armado tal qual Atena *, para a mentalidade ocidental, mas sim no
fato de funcionar como corretivo para nossas aberrações, lançando luz sobre os
equivocados postulados que conduziram a civilização ocidental à presente situação. O
interesse que pensamento oriental desperta em grande parte do mundo ocidental é, a meu
ver, um reflexo dessas mesmas crises culturais, do próprio sentido de alienação, do mesmo
afã de romper o círculo vicioso das dicotomias que provocaram o surgimento do movimento
existencialista.
** Divindade grega, filha de Zeus, que saiu completamente armada da cabeça de seu pai.
(N. do T.)
28Sören Kierkegaard, The Sickness Unto Death, trad. De Walter Lowrie, New York,
Doubleday & Co., 1954.
15
existencial?
29Ernest Schachtel, On Affect, Anxiety and the Pleasure Principle, in Metamorphosis. New
York: Basic Books, 1959, pp. 1-69.
16
em máquina, à imagem e semelhança do sistema industrial pelo qual trabalhava, são
aquelas que os primeiros existencialistas combateram com todas as suas forças. Eles
estavam conscientes da aliança entre a razão e o mecanicismo minaria a vitalidade e o
poder de decisão do indivíduo. Sendo assim, predisseram que a razão tendia a tornar-se
uma espécie de técnica.
De fato, os cientistas do nosso tempo não percebem que, em última instância, essa
compartimentalização também era característica das ciências do século passado, cuja
herança recebemos. O século XIX foi a era das “ciências autônomas”, segundo a frase de
Ernest Cassirer. Cada ciência se desenvolvia seguindo um curso próprio; não existia
nenhum princípio unificador, sobretudo em relação ao homem. Naquele período, as
concepções sobre o homem baseavam-se nos resultados empíricos que propiciavam o
avanço das ciências, mas cada teoria “tornava-se um leito de Procusto onde os fatos
empíricos eram estendidos até que se ajustassem ao esquema preconcebido...”. Devido a
estes desvios, nossa moderna teoria sobre o homem perdeu seu centro de gravidade
intelectual. Em contraposição, caímos numa completa anarquia de pensamento... Teólogos,
cientistas, políticos, sociólogos, biólogos, psicólogos, etnólogos, economistas..., todo mundo
abordava os problemas a partir do seu ponto de vista...; em última análise, cada autor
parece inspirar-se em seus valores e concepções particulares sobre a vida humana.30 Não é
de se estranhar que Max Scheler afirmasse que
Em nenhuma outra época do conhecimento humano o homem foi tão
problemático para si mesmo como nos dias de hoje. Possuímos uma
antropologia científica, filosófica e teológica que se desconhecem totalmente
umas das outras. A crescente multiplicidade das ciências particulares
comprometidas com o estudo do homem, contribuiu muito mais para
confundir e obscurecer nossas idéias sobre ele do que para esclarecê-las. 31
Na superfície, o período vitoriano mostrava-se tranqüilo, satisfeito, ordenado; mas essa
placidez aparente se baseava num extenso e profundo sistema de repressão, porém cada
vez mais frágil. Assim como acontece nos neuróticos, essa compartimentalização se tornava
cada vez mais rígida à medida que se aproximava o momento de sua total derrocada: o dia
1o de agosto de 1914.
Devemos ressaltar que essa compartimentalização da vida cultural encontrava um paralelo
psicológico na repressão radical no mundo da personalidade individual. Freud ocupou seu
engenho no desenvolvimento de técnicas científicas para compreender e talvez curar essa
personalidade individual fragmentada; mas não percebeu – ou só o fez mais tarde, quando
reagiu a esse fato com pessimismo e com um desesperado desapego 32 – que as doenças
neuróticas eram apenas uma parte das forças desintegradoras que agitavam a sociedade
como um todo. Da sua parte, Kierkegaard previu o resultado desta desintegração sobre a
vida espiritual e emocional do indivíduo: ansiedade endêmica, solidão, alienação entre os
homens e, finalmente, alienação do homem em relação a si mesmo, o que o levaria ao ápice
do desespero. Mas o mérito de uma descrição mais acurada da situação que se avizinhava
estava reservado para Nietzsche: “Vivemos em um período de átomos, de caos atômico”; e
previu, numa luminosa antevisão do coletivismo do século XX, como surgia desse caos “a
espantosa aparição..., o Estado-Nação..., a caça à felicidade só será menos premente se for
alcançada de hoje para amanhã, porque depois de amanhã poderá ter sido o fim definitivo
de toda e qualquer caça...”.33 Freud viu esta fragmentação da personalidade à luz das
ciências naturais e se esforçou para formular seus aspectos técnicos. Nem Kierkegaard nem
Nietzsche subestimaram a importância da análise psicológica mais específica; mas
30Ernst Cassirer, An Essay on Man. New Haven: Yale University Press, 1944, p. 21.
31Max Scheler, Die Stellung des Menschen im Kosmos. Darmstad: Reichl, 1928, pp. 13ss.
32Cf. Civilization and its Descontents.
33Walter A. Kaufmann, Nietzsche, Philosopher, Psychologist, AntiChrist. Princeton:
Princeton University Press, 1950, p. 140.
17
interessavam-se principalmente em compreender o homem como o ser que reprime, que faz
uso de sua autoconsciência para proteger-se da realidade, arcando depois com as
conseqüências neuróticas. A questão que intriga é: como se explica que o homem, esse ser-
no-mundo que pode ser consciente de que existe, que pode conhecer sua existência,
escolha ou se veja forçado a optar pela eliminação dessa consciência, sofrendo em troca
com a ansiedade, os impulsos autodestrutivos e o desespero? Kierkegaard e Nietzsche
perceberam que a “doença da alma” do homem ocidental era de uma morbidez muito mais
profunda e extensa do que pudesse ser explicado pelos problemas individuais e sociais.
Existia uma falha radical nas relações do homem para consigo mesmo. Segundo Nietzsche,
“o verdadeiro problema da Europa reside em que perdemos o amor do homem e o temor do
homem: perdemos a confiança no homem e, em verdade, a vontade em relação ao homem”.
34The Meaning of Anxiety, New York, Ronald Press, 1950, pp. 31-45. Recomendam-se
estas páginas como um panorama sobre a importância das idéias de Kierkegaard para os
leitores de mentalidade psicológica. Suas duas obras psicológicas mais importantes são “O
Conceito da Angústia” (traduzido para o inglês sob o título de Concept of Dread, um termo
talvez responda melhor ao sentido original, mas não psicologicamente) e The Sickness Unto
Death. Para um conhecimento mais amplo das obras de Kierkegaard, recomendamos A
Kierkegaard Anthology, editado por Bretall.
18
outro documento que possa antecipar, mais do que este, a interpretação
existencial-analítica da esquizofrenia... Pode-se dizer que neste documento
Kierkegaard reconheceu, num lampejo genial, o advento da esquizofrenia.
Binswanger prossegue observando que mesmo os psiquiatras e psicólogos que não
estiverem de acordo com a interpretação religiosa de Kierkegaard têm, no entanto, que se
reconhecer como “profundamente devedores de sua obra”.35
Ao contrário de Nietzsche, Kierkegaard não quis escrever filosofia nem psicologia. Pretendia
apenas compreender, descobrir, trazer à luz a existência humana. Ele compartilhava com
Freud e Nietzsche um fato significativo: os três baseavam seu conhecimento na análise de
um caso em especial: seus próprios casos. Os livros seminais de Freud, como “A
Interpretação dos Sonhos”, fundavam-se quase exclusivamente em suas próprias
experiências e em seus próprios sonhos. Escreveu textualmente a Fliess que o caso que
mais o preocupava e que constantemente estudava era o de sua própria vida. Todo sistema
de pensamento, dizia Nietzsche,
... limita-se a dizer: este quadro representa a vida em toda a sua grandeza:
mire-se nele, para ver o significado de sua própria vida. E ao contrário: leia
apenas o livro de sua vida e aprenda a decifrar por meio dele os hieróglifos
da vida universal.36
Podemos resumir a preocupação central de Kierkegaard no terreno psicológico sob a
epígrafe da questão que procurou incansavelmente investigar: como pode o homem tornar-
se pessoa? O indivíduo permanecia absorvido pelo aspecto racional do “Todo absoluto”,
imenso e lógico, de Hegel, pelo aspecto econômico da crescente objetivação da pessoa, e
pelo moral e espiritual da morna e insípida religião da época. A Europa estava doente e o
seu estado anêmico tinha muito para piorar, não por falta de conhecimento e de técnica,
mas por falta de paixão e entrega.37 Seu grito era: “Fujam da Especulação! Fujam do
Sistema! Voltem à realidade!”. Estava convencido não só de que o ideal de “pura
objetividade” era inatingível, mas também que, se fosse exeqüível, seria indesejável. Além
de entender que era imoral: nossas vidas estão tão entrelaçadas com as dos demais e com
o mundo que não nos podemos contentar em contemplar a verdade com o coração
desinteressado. Como os demais existencialistas, levou muito à sério a palavra “interesse”
(inter-est).38 Todas as questões afetam “o singular”, isto é, o indivíduo vivo e autoconsciente.
E se não começarmos apreendendo o ser humano aí, estaremos incubando uma
coletividade de robôs com o auxílio de todos nossos avanços técnicos, o que acabará não
exatamente em um vazio, mas no desespero e na autodestruição.
Uma das principais contribuições de Kierkegaard para a posterior psicologia dinâmica foi
sua formulação da verdade-relação. Escreveu no livro que mais tarde viria a ser o manifesto
do existencialismo:
Quando a questão da verdade é estabelecida de maneira objetiva, nossa
reflexão dirige-se objetivamente para a verdade, como um objeto que está
relacionado ao sujeito cognoscente. Só que a reflexão não se fixa na
relação, mas sim em saber se o objeto aludido pelo cognoscente é
35In: May et al., Existencia, Madrid, Gredos, 1977, Capítulo IX.
36Kaufmann, op. cit., p. 135.
37Desta maneira, o próprio incremento da verdade pode deixar os seres humanos mais
inseguros, se permitirem que o incremento objetivo da verdade aja como substituto de sua
própria entrega e de suas próprias relações com a verdade através de sua própria
experiência. “Aquele que observou a geração contemporânea”, observou Kierkegaard, “não
poderá negar que sua incoerência e a razão de sua ansiedade e inquietação reside neste
fenômeno paradoxal: enquanto por um lado a verdade aumenta em extensão, massa e
mesmo em clareza abstrata, por outro as certezas vão diminuindo progressivamente”.
38Vide Walter Lowrie, A Short Life of Kierkegaard, Princeton, Princeton University Press,
1942.
19
verdadeiro. Somente quando este objeto for verdade, entende-se que o
sujeito reside na verdade. Quando a questão da verdade é estabelecida
subjetivamente, a reflexão orienta-se subjetivamente em direção à natureza
da relação do indivíduo; somente se o modo desta relação for verdadeiro, o
indivíduo se encontrará na verdade, ainda que estivesse relacionado com
um objeto que não fosse verdade.39
Seria difícil exagerar o caráter revolucionário destas proposições, ainda presente aos olhos
da moderna civilização em geral e da psicologia em particular. Temos aqui a declaração
radical e original da verdade relacional. Aqui está a origem da ênfase da filosofia
existencialista em buscar a verdade na interioridade, ou em palavras de Heidegger, na
liberdade.40 E aqui também encontramos a profecia daquilo que mais tarde apareceria na
física do século XX, a saber, o pólo oposto do princípio de Copérnico. Segundo este, a
melhor maneira de descobrir a verdade em toda sua plenitude consistia em isolar o homem,
o observador. Kierkegaard antecipa o ponto de vista de Bohr, Heisenberg e outros físicos
contemporâneos, que afirmam ser, na atualidade, impossível sustentar a teoria de
Copérnico sobre poder separar o homem da natureza. Segundo Heisenberg, o “ideal de
uma ciência independente do homem [i. e., totalmente objetiva] é uma ilusão”. 41 Na citação
de Kierkegaard podemos perceber o precursor da relatividade e de outros sistemas, nos
quais o ser humano mergulhado no estudo dos fenômenos naturais encontra-se numa
relação particular e significativa com os objetos que constituem seu estudo e deve incluir a si
próprio como parte da equação. Isto é, que o homem, sujeito, nunca pode se desvincular do
objeto que observa. Percebe-se claramente que o câncer do pensamento ocidental – essa
bipolaridade sujeito-objeto – recebeu um golpe decisivo com esta análise de Kierkegaard.
Mas as conseqüências desta intuição de Kierkegaard no campo da psicologia são ainda
mais específicas e incisivas. Liberta-nos da escravidão do dogma segundo o qual a verdade
só pode ser entendida em relação a objetos externos. Abre amplas perspectivas sobre as
realidades interiores, subjetivas, ensinando-nos que tais realidades podem ser verdade
ainda que estejam em contradição com certos fatos objetivos. Esta é a descoberta feita
tempos depois por Freud quando, um pouco a contragosto, comprovou que as
reminiscências sobre ser “molestado na infância”, confessadas por muitos pacientes,
geralmente eram, do ponto de vista objetivo, mentiras, já que tais pacientes nunca foram de
fato molestados. Mas essa experiência ainda assim mostrava-se extremamente forte, ainda
que existisse apenas no terreno da fantasia, o que implicava em que a questão fundamental
fosse averiguar como o paciente reagia a essa experiência, e não se ela era, objetivamente,
verdadeira ou falsa. Descortina-se neste momento todo um continente de novos
conhecimentos sobre a dinâmica interior, no momento em que adotamos o princípio de que
o que há de significativo no paciente ou na pessoa que estamos estudando é sua relação
42Deveria ser possível demonstrar – se é que isso não já foi feito –, nas experiências sobre
percepção, que o interesse e a implicação do observador aumentam a precisão da
percepção. Já existem indícios nas respostas do teste de Rorschach de que nas lâminas
que despertam maior interesse emocional do indivíduo, sua percepção da forma torna-se
mais apurada, e não o contrário. (Obviamente não estamos falando de emoções neuróticas,
pois estas trazem consigo aspectos totalmente diferentes.)
21
pacientes intelectuais e profissionais, essa mesma verborréia, ainda que disfarçada na
intenção de investigar imparcial e objetivamente o que está ocorrendo, com muita freqüência
não passa de um recurso para encobrir a verdade e não se comprometer, sendo também
uma artimanha defensiva contra a própria vitalidade. Essa fala do paciente não o ajudará a
penetrar na realidade até o momento em que vivencie alguma coisa, em que surja alguma
situação que lhe desperte algum interesse imediato e absoluto. Esta idéia costuma ser
expressa através de uma frase estereotipada, a de que “é preciso provocar ansiedade no
paciente”. Penso que isto é simplificar as coisas em excesso, enfocando-as de maneira
fragmentária. Não seria mais importante que o paciente encontrasse ou descobrisse em sua
existência algum ponto onde se apoiar antes mesmo de permitir-se ver a verdade daquilo
que está fazendo? Isto é o que Kierkegaard entende por “paixão” e “entrega” ou
“compromisso”, em contraposição à observação objetiva e desinteressada. Um corolário
desta necessidade de entrega é o fenômeno admitido pela maioria de que é impossível
penetrar no âmago dos problemas de alguém através de experimentos de laboratório;
apenas quando a própria pessoa espera conseguir algum alívio em seu sofrimento e
desespero, assim como receber qualquer ajuda para solucionar seus problemas, estará
disposta a submeter-se ao doloroso de desmascarar suas ilusões, defesas e
racionalizações.
Voltemos agora a Friedrich Nietzsche (1844-1900). Tinha um temperamento muito diferente
ao de Kierkegaard, e como viveu quatro décadas depois, reflete uma fase diferente da
cultura do século XIX. Nunca leu Kierkegaard; apenas dois anos antes de sua morte é que
seu amigo Brandes lhe chamou a atenção sobre o autor dinamarquês; tarde demais para
que conhecera as obras do seu predecessor, tão diferente na superfície, mas tão parecido
nas questões mais profundas. Ambos representam fundamentalmente o surgimento da
concepção existencial sobre a vida humana. Costuma-se citá-los como os pensadores que
penetraram mais profundamente – e predisseram com maior precisão – o estado psicológico
e espiritual do homem ocidental no século XX. Nietzsche, assim como Kierkegaard, não era
um anti-racionalista, nem deve ser confundido com os “filósofos do sentimento” ou com os
arautos do “retorno à natureza”. Não atacou a razão, tão só a mera razão e as formas
áridas, fragmentadas, racionalizadoras que ela adotara naquela época. Queria levar a
reflexão aos seus limites – nova coincidência com Kierkegaard – para descobrir a realidade
latente tanto na razão quanto na desrazão. Porque, no fim de tudo, a reflexão é um voltar-se
sobre si mesmo, olhar-se no próprio espelho, e o importante para a pessoa vívida,
existencial, é ver o que está sendo refletido; caso contrário, a reflexão seca a vitalidade da
pessoa.43 Tal qual os psicólogos das profundezas que haveriam de seguir seus passos,
Nietzsche buscava lançar luz sobre os aspectos inconscientes e irracionais da grandeza e
das forças humanas, tanto quanto sobre seus aspectos doentios e autodestruidores.
Outra afinidade significativa entre estes dois personagens e a psicologia profunda é que
ambos deram muita ênfase às atividades autoconscientes. Perceberam claramente que a
perda mais devastadora que assolou aquela civilização objetivista foi a perda da consciência
individual – uma perda que tempos depois Freud expressaria simbolicamente através de um
43Tanto Kierkegaard quanto Nietzsche sabiam que “o homem não pode cair num
imediatismo irrefletido sem perder a si próprio; mas pode seguir por esse caminho até o fim,
sem destruir a reflexão, mas chegando à própria base onde a reflexão se encontra
enraizada”. Assim fala Karl Jaspers em seu brilhante estudo sobre os pontos de
convergência entre Nietzsche e Kierkegaard, aos que considera como os luminares do
século XIX. Ver seu livro Reason and Existence, cap. I, Origin of the Contemporary
Philosophic Situation (The Historical Meaning of Kierkegaard and Nietzsche, The Noonday
Press, 1955, trad. da edição alemã de 1935 por William Earle). Este capítulo foi reimpresso
num livro em brochura da ed. Meridian, Existentialism form Dostoievski to Sartre, Walter
Kaufmann, 1956.
22
eu frágil e passivo, “vivido pelo isso”,* por ter perdido seu poder de autodeterminação. 44
Kierkegaard escrevera: “Quanto mais consciência, mais personalidade”; uma afirmação que
Sullivan reproduziria em outros termos um século depois, e que se veria em Freud ao dizer
que o objetivo de sua técnica era a ampliação da esfera da consciência: “onde está o isso,
deverá estar o eu”*. Mas nem Kierkegaard nem Nietzsche puderam escapar, em seus
respectivos contextos históricos, das conseqüências trágicas da intensificação de suas
próprias consciências. Ambos eram solitários, cem por cento inconformistas, e
experimentaram as mais profundas formas de ansiedade, desespero e solidão. E é com
conhecimento de causa que puderam falar dessas crises psicológicas.45
Nietzsche afirmava que cada um deveria experimentar a verdade não apenas no laboratório,
mas na própria carne; cada verdade deve ser contrastada com a pergunta: “eu poderei vivê-
la?” “Todas as verdades – disse – são verdades cruentas para mim.” De onde se depreende
sua famosa frase: “O erro é covardia.” Ao atacar os chefes religiosos acusando-os de falta
de honradez intelectual, joga-lhes na cara fato de nunca transformarem “suas experiências
em objeto de reflexão para aprofundar seu conhecimento. O que experimentei realmente? A
partir disso, o que ocorreu comigo e ao meu redor? Minha razão estava suficientemente
lúcida? Minha vontade está alerta contra qualquer decepção?... Nenhum deles se fazia
essas perguntas... Enquanto nós, que temos sede de razão, queremos ficar cara a cara com
nossas experiências, com todo o rigor de uma experiência científica... Nós queremos ser o
nosso próprio material de experimentação e nossos próprios ratos de laboratório”. 46 Nem
Kierkegaard nem Nietzsche tiveram o menor interesse em fundar um movimento – ou um
novo sistema –: bastava essa idéia para que se sentissem ofendidos. Ambos proclamavam
aquele lema de Nietzsche: “Não sigas a mim, mas a ti”.
Os dois percebiam que a desintegração psicológica e emocional, descrita por ambos como
endêmica – ainda que latente –, estava relacionada ao fato de que o homem tinha perdido a
fé em sua dignidade essencial, em sua humanidade. Com isto fizeram um diagnóstico que
foi muito pouco notado pelas escolas de psicoterapia até a última década, onde se começou
a perceber essa perda da fé na própria dignidade e humanidade como um dos aspectos
mais sérios e reais dentre os problemas do homem na atualidade. Por sua vez, esta perda
estava relacionada ao enfraquecimento das duas tradições que fundamentaram os valores
da sociedade ocidental, a tradição judaico-cristã e a humanista. Isto se nota na vigorosa
parábola de Nietzsche: “Deus está morto”. Kierkegaard havia denunciado com veemência as
** O id (N. do T.).
44Considerados em bloco, os pensadores existencialistas entendem esta perda de
consciência como o problema fundamental e trágico de nossos dias, que de forma alguma
se limita ao campo psicológico das neuroses. De fato, Jaspers acredita que as forças que
hoje em dia destroem a consciência pessoal, esses processos catastróficos denominados
conformismo e coletivismo, certamente poderiam levar a uma perda mais radical da
consciência individual do homem moderno.
** Também conhecida como “Onde está o id, deverá estar o ego” (N. do T.)
45Tanto Kierkegaard quanto Nietzsche compartilharam da duvidosa honra de serem
rechaçados, em certos círculos que se dizem científicos, por serem considerados figuras
patológicas. Suponho que não seja mais necessário insistir neste assunto; num dos ensaios
que se seguem [no livro Existencia], Binswanger cita Marcel a respeito daqueles que
discordam de Nietzsche sob o pretexto de sua psicose: “Todo mundo é livre para
permanecer em sua própria ignorância, se assim desejar”. Se quisermos considerar as
crises psicológicas de Kierkegaard e Nietzsche, podemos seguir um caminho mais
proveitoso, que é o de perguntar-nos se os seres humanos são capazes de suportar
indefinidamente uma alta tensão de autoconsciência, e se a criatividade – que é uma
manifestação dessa autoconsciência – não compensa suficientemente esse colapso
psicológico.
46Kaufman, op. cit., p. 93.
23
tendências insípidas, mornas e anêmicas do Cristianismo, ainda que poucos se dessem ao
trabalho de escutá-lo. No tempo de Nietzsche as formas decadentes de teísmo e as práticas
emocionalmente insinceras da religião tinham se tornado parte da própria doença e tinham
que morrer.47 Grosso modo, diríamos que Kierkegaard fala de uma época em que Deus
estava agonizando, enquanto Nietzsche refere-se a uma época onde Deus está morto. A
vida de ambos era essencialmente dedicada ao enobrecimento do homem, procurando uma
base sobre a qual se pudesse restabelecer essa dignidade e humanidade. Este é o sentido
do “super-homem” de Nietzsche e do “verdadeiro indivíduo” de Kierkegaard.
Um dos motivos pelos quais a influência de Nietzsche na psicologia e na psiquiatria tem sido
tão esporádica, limitando-se a citações de alguns aforismos aqui ou ali, é justamente a
incrível fecundidade de sua mente, o brilho constante de suas intuições. O leitor deve
permanecer atento para não se deixar levar por uma admiração acrítica, nem subestimar a
real importância de Nietzsche pelo fato de que a riqueza do seu pensamento transborda
todas as nossas elegantes categorias. Por isso tentaremos esclarecer de forma breve porém
sistemática algumas de suas idéias fundamentais.
Seu conceito da “vontade de potência” implica no sujeito relacionar-se ao máximo com suas
potencialidades, exigindo que, em sua existência particular, ele as viva com todo valor.
Nietzsche, como todos os existencialistas, abstém-se de empregar termos psicológicos para
descrever atributos ou faculdades psicológicas ou um simples esquema de comportamento
– por exemplo, a agressão ou poder sobre alguém. No caso da vontade de potência, esta se
constitui numa categoria ontológica, isto é, um aspecto inseparável do ser. Não significa
agressividade, afã de competir ou qualquer outro mecanismo semelhante; trata do sujeito
que afirma seus direitos, sua existência e suas potencialidades; denota “o valor de ser uma
pessoa”, como observa Tillich em seu estudo sobre Nietzsche. Este emprega a palavra
“poder” no sentido clássico de potentia, dynamis. A crença de Nietzsche sobre este ponto é
resumida brevemente por Kaufmann:
A tarefa do homem é bem simples: deve impedir que a sua “existência” seja
um “acidente impensado”. Não apenas o uso da palavra “existência”, mas a
própria idéia sobre ela indica o quanto [este ensaio] se afina com o que hoje
se denomina filosofia existencial. O problema fundamental do homem
consiste em realizar a sua verdadeira “existência”, em vez de deixar que a
vida siga ao sabor do acaso. Em A Gaia Ciência, Nietzsche encontrou uma
fórmula que revela o paradoxo essencial de qualquer distinção entre o eu e
o verdadeiro eu: ”O que diz a sua consciência? – Tu serás o que es”.
Nietzsche sustentou esta idéia até o fim; o título completo de sua última
obra é: Ecce homo, Wie man wird was man ist: Como chegar a ser o que
é.48
Nietzsche sustenta, com uma vasta gama de expressões, que essa potência, essa
expansão, esse desenvolvimento, essa realização das potencialidades internas através das
ações constitui a dinâmica e a necessidade essenciais à vida. Nesse sentido, sua obra
vincula-se diretamente à questão psicológica sobre o que fundamentalmente impulsiona os
organismos, e cuja repressão desencadeia as neuroses: não se trata de um afã de prazer,
de diminuir uma tensão libidinal, nem do equilíbrio ou da adaptação. O impulso fundamental
consiste em viver a própria potentia. “O homem não almeja o prazer, mas sim o poder”,
afirma Nietzsche.49 De fato, a felicidade não consiste na ausência de dor, mas no “mais vivo
sentimento de poder”,50 e o gozo é uma “supra-sensação de poder”. 51 Considera também
que a saúde é um subproduto do uso do poder, entendido como a faculdade de superar a
47Ver a nota 18, onde Tillich alude ao “Deus está morto” de Nietzsche.
48Kaufmann, op. cit., pp. 133-34.
49Ibid., p. 229.
50Ibid., p. 168.
51Ibid., p. 239.
24
doença e o sofrimento.52
Nietzsche era um naturalista, no sentido de sempre tentar integrar toda manifestação vital
ao curso da natureza como um todo; mas é justamente aqui que ele deixa claro que a
psicologia é sempre algo mais do que a biologia. Um dos aspectos existenciais e
fundamentais ressaltados por ele é o de que os valores da vida humana não ocorrem
automaticamente. O ser humano pode perder o seu próprio ser por sua própria escolha, algo
que uma árvore ou uma pedra não podem fazer. A afirmação do ser cria os valores da vida.
“A individualidade, o mérito e a dignidade não são coisas que recebemos por obra da
natureza (gegeben), mas nos são impostas como uma tarefa a realizar por nós mesmos
(aufgegeben)”.53 Esta é uma idéia presente também na doutrina de Tillich, segundo a qual o
valor abre os caminhos do ser: se você não tiver “o valor de ser”, perderá o seu próprio ser.
Aparece também na expressão radical de Sartre: você é sua escolha.
Em quase toda a obra de Nietzsche encontramos intuições psicológicas agudas e
penetrantes, além de assombrosamente próximas aos mecanismos psicanalíticos
formulados por Freud dez anos mais tarde. Se examinarmos a Genealogia da Moral, por
exemplo, escrita em 1887, encontraremos a seguinte afirmação: “O instinto que não for
deixado livre, volta-se para dentro. A isto chamo de interiorização do homem”.54 O leitor se
surpreenderá ao notar esta curiosa coincidência, quase profética, com a futura idéia
freudiana de recalque. O eterno propósito de Nietzsche era desmascarar a autodecepção.
Ao longo do ensaio anteriormente mencionado, ele desenvolve a tese de que o altruísmo e a
moralidade são o resultado da hostilidade e do rancor recalcados, e que quando a potentia
do indivíduo se contrai dentro dele, produz-se a má consciência. Nietzsche descreve em
tons fortes as pessoas “impotentes”, “cheias de agressão tamponada: sua felicidade é
puramente passiva e revestida de uma tranqüilidade narcotizada, que consiste em
espreguiçar-se, bocejar, na paz, no descanso dominical (sabbath), na preguiça emocional”.55
Esta agressividade interiorizada se manifesta explosivamente em forma de sádicas
exigências para com os outros – processo que em psicanálise viria a denominar-se
formação de sintoma. Tais exigências são camufladas pela moralidade – o que mais tarde
Freud chamaria de formação reativa –. Em palavras de Nietzsche: “Em sua expressão
primeira, a má consciência é tão somente o instinto de liberdade, que ao ver-se obrigado a
se contrair e se esconder sob a terra, sente-se impelido a descarregar sua energia sobre si
mesmo”. Em outras passagens de suas obras, damos de cara com fórmulas
impressionantes sobre a sublimação, um conceito concretamente desenvolvido por
Nietzsche. Referindo-se à conexão entre a energia artística de uma pessoa e a sexualidade,
afirma: “pode muito bem acontecer que o surgimento da atividade estética não suspenda a
sensualidade, tal como pensava Schopenhauer, mas que a transforme, de maneira tal que
ela não mais seja vivenciada como incentivo sexual”.56
A partir do acima exposto, o que devemos concluir desse curioso paralelo entre as idéias de
Nietzsche e Freud? Os círculos próximos a Freud conheciam esta analogia. Em certa tarde
de 1908, constou no programa da Sociedade Psicanalítica de Viena um debate sobre a
Genealogia da Moral, de Nietzsche. Freud mencionou ter tentado ler Nietzsche, mas que o
achou tão prolífero de idéias que desistiu desse projeto. Afirmou então que “Nietzsche
chegou a um conhecimento de si mais penetrante do que qualquer homem do passado, e
provavelmente do futuro, já alcançou”.57 Jones observa que esta opinião, tantas vezes
52Ibid., p. 169.
53Ibid., p. 136.
54Genealogy of Morals, p. 217.
55Ibid., p. 102.
56Ibid., p. 247.
57The Life and Work of Sigmund Freud, de Ernest Jones, Basic Books, Inc., vol. II, p. 344. O
doutor Ellenberger acrescenta, a propósito das afinidades entre Nietzsche e a psicanálise:
25
repetida, não foi apenas uma simples cortesia do criador da psicanálise. Freud sempre
sentiu um forte interesse pela filosofia, ainda que ambivalente; nutria por ela desconfiança e
temor.58 Jones acrescenta que tal receio tinha um fundamento tanto pessoal quanto
intelectual. Um dos motivos era sua suspeita em relação às áridas especulações intelectuais
– algo com o que Kierkegaard, Nietzsche e outros existencialistas concordariam com prazer.
Em todo caso, Freud acreditava que a sua propensão potencial em direção à filosofia
“precisava de potentes freios e, para isso, escolheu o método mais eficiente: a disciplina
científica”.59 Jones comenta, em outra passagem: “Os questionamentos mais recentes da
filosofia ecoavam em seu espírito, apesar do seu esforço para manter uma respeitável
distância deles, e de desconfiar de sua própria capacidade de resolvê-los”.60
Talvez as obras de Nietzsche não tenham exercido uma influência direta sobre Freud, mas é
certo que indiretamente sim. É evidente que as idéias consolidadas anos mais tarde na
psicanálise já pairavam no ambiente do fim do século XIX. O fato de Kierkegaard, Nietzsche
e Freud terem tratado em suas obras da angústia, do desespero, da fragmentação da
personalidade e de seus respectivos sintomas, demonstra a nossa tese de que a maneira
com que psicanalistas e existencialistas abordavam as crises humanas correspondia às
exigências daquela época. Não é nenhum demérito para a genialidade de Freud afirmar que
provavelmente as principais articulações da psicanálise já se viam com maior amplitude em
Nietzsche e com mais profundidade em Kierkegaard. O mérito especial de Freud reside em
ter incorporado essas profundas intuições psicológicas à estrutura das ciências naturais do
seu tempo. Demonstrava um admirável preparo para essa tarefa: possuía um temperamento
altamente objetivo e controlado pela razão, além de uma incansável capacidade de suportar
e superar as infinitas dificuldades inerentes a essa tarefa de sistematização. Sua realização
foi inédita: incorporou novos conceitos psicológicos à doutrina científica do ocidente, de
maneira a que se pudesse estudá-los com alguma objetividade, e estruturá-los e ensiná-los
dentro de certos parâmetros.
Entretanto, não seria esse mesmo talento de Freud e dos psicanalistas a sua maior fonte de
erros? Traduzir as intuições da psicologia profunda nos termos da ciência objetiva levou a
resultados que poderiam ter sido previstos. Um deles foi que o âmbito das investigações
sobre o homem terminou circunscrito aos esquemas de tal ciência. Num dos capítulos deste
livro, Binswanger observa que Freud tratou apenas do homo natura, e que apesar de seus
procedimentos terem facilitado enormemente a exploração do Umwelt – o mundo do homem
em seu ambiente biológico –, acabaram impedindo a plena compreensão do Mitwelt – o
mundo das inter-relações humanas – e do Eigenwelt – a esfera das relações do homem
consigo mesmo.61 O resultado prático mais grave – que abordaremos mais à frente, quando
discutirmos os conceitos de determinismo e de passividade do eu – foi uma nova tendência
de objetivação da personalidade, contribuindo para desenvolver justamente aqueles
“De fato, as analogias são tão surpreendentes que custo a acreditar que Freud nunca o
tenha lido, como afirmou. Talvez tenha se esquecido de que o leu, ou então teve que lê-lo
indiretamente. Naquela época, Nietzsche era tão debatido, citado em tantos livros, revistas,
jornais e conversas cotidianas que é quase impossível que Freud pudesse deixar de captar
suas idéias, de um jeito ou de outro”. Seja qual for a opinião que se tenha sobre o assunto,
certamente Freud o leu, como conta Kris a Edward Von Hartmann, autor do livro A Filosofia
do Inconsciente. Tanto Hartmann quanto Nietzsche tiraram suas idéias sobre o inconsciente
de Schopenhauer, cujas obras são consideradas em boa parte como sendo da linha
existencial.
58Ibid., vol. II, p. 344.
59Ibid., vol. I, p. 295.
60The Life and Work of Sigmund Freud, de Ernest Jones, Basic Books, Inc., vol. II, p. 432.
61Binswanger abordou o fato de Freud ter se restringido ao homo natura, em uma palestra
em Viena, por ocasião da homenagem ao aniversário de 80 anos de Freud, a qual fora
expressamente convidado.
26
elementos, da cultura dessa época, responsáveis pelas próprias dificuldades que se
buscava remediar.
Chegamos então a um problema crucial. Para compreendê-lo, é preciso que façamos outra
distinção preliminar. Refiro-me à “razão”, tal como era entendida no século XVII e no século
das luzes, comparada à “razão técnica” dos nossos dias. O conceito de razão utilizado por
Freud provinha diretamente da ilustração*, isto é, da “razão extática”, que ele identificava à
ciência. Como se pode ver em Spinoza e em vários pensadores dos séculos XVII e XVIII, o
uso da razão implica na confiança de que ela possa, por si só, compreender todos os
problemas. No entanto, esses pensadores incluíam na razão a capacidade de transcender
situações imediatas, de perceber o conjunto, sem excluir dela a intuição, a penetração, a
percepção poética... Além do mais, implicava também na ética: a razão, no século das luzes,
era sinônimo de justiça, de eqüidade. Em outras palavras, era uma noção de razão que
incluía muitas coisas “irracionais”. Isso explica a enorme e entusiástica fé que nela se
depositava. Como bem demonstrou Tillich, no fim do século XIX esse caráter extático da
razão foi abandonado, dando espaço para uma “razão técnica”: a razão de mãos dadas com
a técnica, alcançando o seu máximo rendimento quando aplicada a problemas isolados, um
instrumento do progresso industrial técnico, razão divorciada da emoção e da vontade, e
contrapondo-se de fato à existência: enfim, a razão que foi tão implacavelmente atacada por
Kierkegaard e Nietzsche.
Algumas vezes Freud refere-se à razão em seu sentido extático, quando fala, por exemplo,
que ela é “a nossa salvação”, “nosso único recurso” etc. Lendo-o, tem-se uma sensação
anacrônica de que essas frases vieram diretamente de Spinoza ou de qualquer outro autor
da ilustração. Referindo-se a ela dessa maneira, Freud tenta salvar a concepção extática,
assim como a idéia de um homem e de uma razão que transcendem a técnica. Porém,
quando identifica a razão com a ciência, transforma-a em razão técnica. Sua grande
contribuição foi o seu esforço para superar a fragmentação do homem, iluminando suas
tendências irracionais, fazendo com que a consciência aflorasse e que aceitasse os
aspectos inconscientes, dispersos e reprimidos de sua personalidade. Entretanto, em
oposição ao anterior, ao identificar a psicanálise com a razão técnica, se expressa em sua
obra a própria desintegração que pretendia curar. Não é exagero dizer que a tendência
predominante no desenvolvimento da psicanálise durante as últimas décadas,
principalmente após a morte de Freud, tem sido rejeitar seus esforços para salvar o caráter
extático da razão e aceitar exclusivamente o seu caráter técnico. Essa linha freqüentemente
passa inadvertida, pois se encaixa perfeitamente nas tendências dominantes de toda nossa
civilização. Já advertimos que um dos fatores fundamentais da compartimentalização do
homem contemporâneo consiste justamente em tratar desse homem e de suas funções sob
o aspecto técnico. Estamos diante de um dilema tanto crítico quanto sério. Teoricamente, a
psicanálise (e outras formas de psicologia, na medida em que estão vinculadas à razão
técnica) aumentam a confusão na nossa teoria de homem, tanto filosófica quanto científica,
de que nos falaram anteriormente Cassirer e Scheler. 62 Na prática, existe a séria ameaça de
que a psicanálise, tanto quanto outras formas de psicoterapia e ajustamento psicológico, se
tornem novas versões da desintegração do homem, sendo mais um caso da perda da
vitalidade e da significação do indivíduo, que essas novas técnicas contribuam para
padronizar e sancionar culturalmente a alienação do homem de si mesmo, em vez de
resolvê-la, que se tornem expressões da nova mecanização do homem, agora calculada e
controlada com maior precisão psicológica e numa escala mais vasta, abrangendo as
dimensões inconscientes e profundas – que tanto a psicanálise quanto as psicoterapias em
geral sejam parte mais da neurose de nossos dias do que propriamente elemento de cura.
Isto seria realmente a suprema ironia da história. Apontar essas tendências – algumas das
quais já se encontram em nosso meio –, não é sinal de alarmismo nem excesso de zelo;
trata-se simplesmente de olhar o nosso contexto histórico de frente, extraindo dele suas
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