Cildo Meireles: “A arte é
prostituta. Ela esta onde o dinheiro
esta”
Mostra convida a um passeio poético e sinestésico por
150 obras do artista carioca, a maior no pais desde
2000. 'Entrevendo' abre ao publico nesta quinta no Sesc
Pompeia
Cildo Meireles na instala¢ao 'Entrevento', exposta no Sesc Pompeia, em Sio
Paulo. EVERTON BALLARDIN (DIVULGACAO)
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JOANA OLIVEIRASao Paulo - 25 SEP 2019 - 22:08BRT
Cildo Meireles (Rio de Janeiro, 1948) descobriu a arte quando,
aos 12 anos, ganhou do pai um album com a obra do pintor
espanhol Francisco Goya. "De uma certa maneira, ele foi um
mestre para mim, porque eu ficava desenhando, copiando seus
tragos", conta ao EL PAIS, em uma entrevista no Sesc Pompeia,
em Sao Paulo, espago que exibe, a partir desta quinta-feira, 150
obras do artista, na exposigdo Entrevendo. Seis décadas depois
daquele presente, ele converteu-se no maior expoente da arte
contemporanea brasileira no mundo, ao ponto de que o titulo de
um livro sobre seu trabalho dispense sobrenome —como
em Cildo: estudos, espagos, tempo, publicano no ano passado pela
editora Ubu—.
No Brasil, no entanto, ha pelo menos duas geragdes que nao
conhecem sua obra, ja que a ultima grande exposic¢ao do artista foi
em 2000, nos Museus de Arte Moderna (MAM) de Sao Paulo e
do Rio de Janeiro, com trabalhos expostos no New Museum, de
Nova York. Foi precisamente pensando em aproximar Cildo desse
publico que os curadores Julia Rebougas e Diego Matos
selecionaram as obras de mais de 50 anos de carreira que
ocuparao, até fevereiro de 2020, mais de trés mil metros
quadrados do centro cultural paulistano."Nao queriamos fazer uma retrospectiva.
Primeiro, porque nao teriamos condigdes
materiais e fisicas para isso e, depois, porque
ele ¢ um artista em plena atividade", explica
Matos. O proprio Cildo conta que gosta de
pensar em uma espécie de antologia postica e,
centrada na percep¢ao de sentido (que passa,
as vezes, pelo
subconsciente), Entrevendo convida o publico
a um passeio poético por obras sinestésicas
que agucam sentidos como faro e senso de
localizagao.
Ja de entrada, 0 visitante é recepcionado por
uma espécie de oca construida com cédulas
de paises latino-americanos, construida sobre
MAIS INFORMAGOES
Censura, um efeito
cascata que corrdi
a arte no Brasil de
Bolsonaro
“Marighella’, na
zona cinzenta entre
cortes, problemas
na Ancine e
censura sob
Bolsonaro
ossos (de boi) e rodeada por uma grande cerca de velas. Dentro da
estrutura, soa uma motosserra. Essa é Olvido, a interpretagdo de
Cildo do processo de colonizagao no continente. Ao lado, esta a
obra que da nome a exposigo e que convida o publico a caminhar
por uma instalagao cilindrica de madeira com dois gelos na boca
—um de agua salgada, o outro, de agua doce— enquanto um
grande ventilador sopra calor em sua diregao.- oo ns ale i i5& WS SAY
'Entrevendo', de Cildo Meireles. EVERTON BALLARDIN (DIVULGAGAO)
Outros destaques sao algumas obras inéditas no pais,
como Amerikkka (1991/2013), que faz nascer um continente a
partir de aproximadamente 17 mil ovos de madeira e 33 mil balas
de armas de fogo, e Eureka/Blindhotland (1970-2018), montada
por primeira vez em sua totalidade. Esta ultima, composta por trés
instalagdes de esferas do mesmo tamanho e de diferentes pesos
que enganam os olhos —o conceito é acionar outros sentidos além
da visdo, para perceber o entorno— contara com uma insercéo em
um jornal (nado se sabe bem o qué, nem quando, nem onde).
Ideias assim sao intrinsecas ao trabalho de Cildo, que, entre 1970
e 1975, produziu uma série de trabalhos que imprimiam frasesconsideradas subversivas em cédulas de dinheiro e garrafas de
Coca-Cola. A arte do cotidiano, e nado do metafisico, é sua
esséncia. "Quando fiz as primeiras insergdes, passei um tempo
num certo impasse, porque nao queria fazer daquilo um estilo,
essa coisa de que o mercado tanto gosta, de converter sua obra em
uma embalagem", conta. "Depois desse periodo de
crise rimbaudiana, comecei a pensar cada vez mais em pecas
imersivas, que fossem feitas para uma pessoa, pelo tempo que ela
quisesse. O espaco aqui oferece isso, nao é tao volatil. Vocé pode
chegar, entrar, ficar quanto quiser", acrescenta.
Arte e critica social
Cildo Meireles detesta conversar. Diz que sé gosta de falar
"abobrinhas, e de futebol, sempre". Com uma voz quase inaudivel
e tom pausado, aceita, no entanto, desvelar um pouco de seu
meétodo de trabalho. Ou a falta dele. "Eu gosto de usar a ideia de
relampago: passa alguma coisa na tua cabega, e 0 propdsito pode
estar na politica, no cinema, em alguma coisa que vocé nao sabe
precisar que forma tem, que cor, que tamanho. E, aos poucos,
vocé vai se aproximando até materializar isso. Meu método de
trabalho sempre foi esse. De uma certa maneira, quase que
independe de uma realidade imediata. Eu continuo tomando notas.
As vezes, passo anos, décadas, fazendo essas anotagdes", conta.Como exemplo, cita a que seja, quigd, a obra mais conhecida do
publico brasileiro, Desvio para o Vermelho, exposta na galeria
que leva seu nome em Inhotim. "A primeira anotagao dessa obra
é de 1967. Naquele momento, eu estava mais interessado nos
espagos virtuais, nas maquetes... Mas so realizei ela em 1984, no
MAM do Rio", lembra. "Tem outros trabalhos que sao de 1969 e
que s6 montei pela primeira vez em 2004, 35 anos depois. Eu
gosto, inclusive, de deixar maturar, até porque pode ser que, nesse
meio tempo, algum outro artista faga e me poupe", sorri.
Cildo referencia-se no conceito de arte cunhado pelo artista
plastico estadounidense Carl André. "Ele dizia que 'o homem sobe
a montanha porque ela esta 1a. E 0 artista faz a obra de arte porque
ela nao esta la’. A arte é uma inutilidade, em principio, mas é
indispensavel", afirma.Perguntado a que atribui a recente valorizagao da arte brasileira
no mercado internacional, ele é categérico: "A arte é prostituta.
Ela esta onde o dinheiro esta". Mas matiza: "No final dos anos
1980, comegou-se a encarar a produgao periférica. Houve o
momento da arte da Unido Soviética, da arte japonesa, e, no final
dessa década, descobriram a arte brasileira contemporanea. Hoje,é inimaginavel uma grande exposicao de arte contemporanea em
qualquer lugar do mundo sem um artista brasileiro".
O artista rebate a afirmacdo de que sua arte é essencialmente
critica social. No ano passado, no entanto, ele atualizou uma das
suas intervengdes mais famosas —a das cédulas de dinheiro—
para carimbar nelas o rosto de Marielle Franco, vereadora
assassinada no Rio de Janeiro no dia 14 de margo de 2018.
Pergunto-lhe se, de haver comegado alguns meses mais tarde, 0
publico também veria em Entrevendo cédulas com 0 nome ou 0
rosto de Agatha Félix, de 12 anos, também assassinada capital
carioca, com um tiro de fuzil, na ultima sexta-feira. "O problema
é que o Brasil sempre se supera. Infelizmente, ja deve estar
acontecendo outra coisa tao terrivel quanto isso".
Entrevendo, com 150 obras de Cildo Meireles. Visitagao gratuita no Sesc
Pompeia, de 26 de setembro a 2 de fevereiro de 2020.