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Economia, Relações

Internacionais e
Sociedade
Perspectivas do Capitalismo Global
Projeto Editorial Praxis
http://editorapraxis.cjb.net

Trabalho e Mundialização do Capital – A Nova Trabalho e Educação


Degradação do Trabalho na Era da Globalização Contradições do Capitalismo Global
Giovanni Alves Giovanni Alves (org.), Roberto Batista (Org.) e
Jorge Gonzáles (Org.)
Dimensões da Globalização – O Capital e
Suas Contradições Trabalho e Cinema – O Mundo do Trabalho
Giovanni Alves Através do Cinema – Volume 1
Giovanni Alves
Dialética do Ciberespaço - Trabalho, Tecnologia e
Política no Capitalismo Global
Giovanni Alves (org.) e Vinício Martinez (org.) Série Risco Radical

Limites do Sindicalismo - Marx, Engels e a 1. O Outro Virtual - Ensaios sobre a Internet


Crítica da Economia Política Giovanni Alves, Vinicio Martinez, Marcos Alvarez,
Giovanni Alves Paula Carolei

Novos Desequilibrios Capitalistas Paradoxos do 2. Democracia Virtual - O Nascimento do Cidadão


Capital e Competição Global Fractal
Luciano Vasapollo Vinicio Martinez

Tecnécrates 3. Leviatã - Ensaios de Teoria Política


Antonino Infranca Marcelo Fernandes de Oliveira

Desafios do Trabalho – Capital e Luta de 4. Trabalho e Globalização - A Crise do Sindicalis-


Classes no Século XXI mo Propositivo
Roberto Batista (org.) e Renan Araújo (org.) Ariovaldo de Oliveira Santos

Universidade e Neoliberalismo 5. Concertação Social e Luta de Classes - O Sindi-


O Banco Mundial e a Reforma Universitária na calismo Norte-Americano
Argentina (1989-1999) Ariovaldo Santos
Mario Luiz Neves de Azevedo e Afrânio Mendes Catani

Trabalho, Economia e Tecnologia - Novas Perspec-


tivas para a Sociedade Global
Jorge Machado (org.) parceria com a Editora Tendenz

Pedidos através do e-mail


editorapraxis@uol.com.br
Economia, Relações
Internacionais e
Sociedade
Perspectivas do Capitalismo Global
Organizadores:
Francisco Luiz Corsi
José Marangoni Camargo
Marcos Cordeiro Pires
Rosângela de Lima Vieira

Editora Praxis
2007
Copyright do Autor, 2007
ISBN 85-99728-12-1

Conselho Editorial
Prof. Dr. Antonio Thomaz Júnior – UNESP
Prof. Dr. Ariovaldo de Oliveira Santos – UEL
Prof. Dr. Francisco Luis Corsi – UNESP
Prof. Dr. Jorge Luis Cammarano Gonzáles – UNISO
Prof. Dr. Jorge Machado – USP
Prof. Dr. José Meneleu Neto – UECE
Prof. Dr. Vinício Martinez - UNIVEM

Produção Gráfica
Canal6 Projetos Editoriais
www.canal6.com.br

E17
Economia, relações internacionais e sociedade: pers-
pectivas do capitalismo global / organização de: Fran-
cisco Luiz Corsi, José Marangoni Camargo, Marcos Pires
Cordeiro e Rosangela de Lima Vieira – Londrina: Praxis;
Bauru: Canal 6, 2007.

228 p. ; 21 cm.

Inclui bibliografia.
ISBN 85-99728-12-1

1. Sociologia. 2.Economia. 3. Relações Internacionais. I.


Corsi, Francisco Luiz. II. Camargo, José Marangoni. III. Pires,
Marcos Cordeiro. IV. Vieira, Rosangela de Lima. V. Título.

CDD 301

Projeto Editorial Praxis


Free Press is Underground Press
http://editorapraxis.cjb.net

Impresso no Brasil/Printed in Brazil


2007
Apresentação
Fenomenologia do Capitalismo Global

Giovanni Alves

“O mundo já possui o sonho de um tempo. Para vivê-lo de fato,


deve agora possuir consciência dele.” Guy Debord

O livro “Economia, Relações Internacionais e Sociedade” é produto das ati-


vidades do VI Fórum de Análise de Conjuntura – As Perspectivas do Capitalismo
Global, realizadas na UNESP (Universidade Estadual Paulista) - Campus de Ma-
rilia, no período de 25 a 27 de setembro de 2006. Os Fóruns de Análise de Conjun-
tura são promovidos anualmente pela linha de pesquisa “Economia Política da
Globalização” do Grupo de Pesquisa “Estudos da Globalização” (GPEG) (inscrito
no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), sob a liderança dos Professores Dr.
Giovanni Alves e Dr. Francisco Corsi. Fazem parte ainda do GPEG e colaboraram
com o VI Fórum de Análise de Conjuntura, a Professora Rosangela Vieira (a orga-
nizadora do Fórum) e os Professores Dr. José Marangoni Camargo e Dr. Marcos
Cordeiro Pires (todos da UNESP - Campus de Marilia). Os demais autores do livro
são docentes pesquisadores convidados que colaboraram com o Fórum de Aná-
lise de Conjuntura abrindo novos nichos de reflexão critica. O objetivo do Fórum
nos últimos anos tem sido discutir temas candentes da economia, política e socie-
dade do capitalismo global, com destaque para Brasil e América Latina. Mais do
que nunca, a Universidade pública tem o papel de esclarecer as perspectivas dos
nossos tempos, explicitando as contradições objetivas do mundo do capital. Foi
deveras valioso o apoio dado pela direção da Faculdade de Filosofia e Ciencias da
UNESP-Campus de Marilia à publicação desta coletânea.

 Giovanni Alves é professor de sociologia da UNESP-Marilia, pesquisador do CNPq, Co-


ordenador do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UNESP (Marilia),
líder do Grupo de Pesquisa “Estudos da Globalização” (http://globalization.cjb.net)
e da RET - Rede de Estudos do Trabalho (www.estudosdotrabalho.org). Coordena
também o Projeto de Extensão Tela Critica (www.telacritica.org).
Economia, relações internacionais e sociedade

O livro “Economia, Relações Internacionais e Sociedade” adota uma pers-


pectiva rigorosamente multidisciplinar, reunindo resultados de pesquisa de
docentes de várias áreas das ciências sociais (sociologia, antropologia, econo-
mia, historia, geografia, ciência política e relações internacionais). Além dis-
so, incorpora múltiplas perspectivas político-metodológicas, demonstrando a
riqueza analítica das ciências sociais dos nossos dias. Nenhum autor se propôs a
esgotar o tema de análise. Pelo contrário, o interesse de cada pesquisador é abrir
um campo de interrogação sobre temas candentes e polêmicos da economia,
relações internacionais, imigração, exclusão social e movimentos sociais. Estes
são os grandes temas da contemporaneidade do capital no interior do qual se
desdobram hoje múltiplas contradições sociais.
A gravura da capa do livro intitula-se “O Triunfo da Morte”, de Pieter Brue-
gel, “o Velho”. Foi pintada em 1562. É a expressão fantástica do cenário primordial
do inicio da Idade Moderna, onde pragas, epidemias e guerras religiosas e políticas
assolaram a Europa. Naquele período histórico da “assim chamada acumulação
primitiva” do capital, como diria Karl Marx, falou-se em “castigo divino”, como se
não houvesse possibilidade de salvação para a humanidade. Uma das formas em
que esta visão apocalíptica do futuro proliferou-se foi A Dança da Morte, uma temá-
tica do imaginário popular medieval que gerou inúmeras manifestações populares,
como a cerimônia realizada nos fundos da igreja (cemitério) no século XIV, que era
acompanhada por sermões falando do caráter impiedoso da morte. Os principais
personagens eram “a vítima” e “a morte” (representada por pessoas vestidas com
uma roupa preta e justa, sobre a qual eram pintadas as linhas de um esqueleto, e
usando uma máscara de caveira). Em todos os casos a morte triunfava ao final, cei-
fando a vida da vítima. Na gravura O Triunfo da Morte, de Bruegel, o exército da
morte avança sobre uma paisagem sóbria, exterminando tudo, deixando apenas
destruição e desolação. As cores quentes, sobretudo o ocre, acentuam ainda mais o
aspecto infernal da imagem. Os tons brancos e vermelhos, que salpicam a imagem
em vários pontos, criam contrastes que só acentuam a dramaticidade da cena. O
ângulo do olhar do espectador, direcionado ao chão, reafirma a visão apocalíptica da
imagem. Nesta obra, o conteúdo moral é o da morte impiedosa, que assola a todos,
sem distinção de classe ou posição social - o rei, o bispo, o plebeu, os amantes, nin-
guém escapa. Bruegel mantém nesta obra a fragmentação, característica da obra de
Hieronymus Bosch: o tema é mostrado através de muitas cenas episódicas e a mul-
tiplicação de pequenos objetos ocupam a vastidão do espaço representado. Existem


apresentação

semelhanças entre os dois artistas também na iconografia, pois ambos bebiam do


mesmo imaginário medieval. Apesar das semelhanças com Bosch, o horror presente
no realismo de Bruegel é algo que o seu antecessor não alcançou.
De Brugel aos nossos dias, a modernidade do capital assumiu uma dimen-
são planetária. Ela não se restringe hoje apenas à Europa Ocidental. Com a oci-
dentalização do mundo, a modernidade do capital constituiu o globo. Vivemos
na época da globalização com os interesses dos oligopólios mundiais organizan-
do o espaço-tempo da acumulação de riqueza abstrata e da reprodução social. É
claro que pragas, epidemias e guerras religiosas e políticas não assolam mais o
centro desenvolvido do sistema mundial do capital como nos tempos de Brue-
gel. Depois de pouco mais de quinhentos anos de modernização burguesa, EUA.
União Européia e Japão (e algumas extensões sócio-territoriais da borda peri-
férica industrializada) constituem o centro dinâmico da civilização ocidental.
Entretanto, em grande parte do resto do mundo, com destaque para regiões ex-
tensas da Ásia, Oriente Médio, América do Sul e Caribe, e inclusive em manchas
de pobreza nas regiões metropolitanas do mundo industrializado, viceja o que
podemos denominar de barbárie social. Nesta hinterlândia proto-capitalista
vinculada ao modo planetário de reprodução do metabolismo social do capital,
o “exército da morte” triunfa, com mais de um bilhão de pessoas do mundo sen-
do forçada a reproduzir suas condições de existência de forma desumana.
No recém-lançado livro que leva o título “Flat World, Big Gaps” (Um Mun-
do Plano, Grandes Disparidades, em tradução livre), editado em 2007, por Jomo
Sundaram, secretário-geral adjunto da ONU para o Desenvolvimento Econômi-
co, e Jacques Baudot, economista especializado em temas de globalização, os
dois autores observam que, entre 1980 e 2000, a repartição da riqueza mundial
piorou e os índices de pobreza se mantiveram sem mudanças: “A redução da de-
sigualdade não está separada de questões como a pobreza e a falta de emprego”.
Com a globalização neoliberal, o mundo tornou-se mais rico e mais desigual.
Nas últimas décadas, o capitalismo conseguiu saltos fabulosos na capacidade de
produção de riqueza. No entanto, os autores constatam que a desigualdade na
renda per capita aumentou em vários países da OCDE (Organização para a Co-
operação e o Desenvolvimento Econômico). A desregulação dos mercados teve
como resultado uma maior concentração do poder econômico. O livro indica
que a desigualdade econômica nos países do Oriente Médio e o Norte da África
não mudou, ao contrário da crença generalizada, e pior, aumentou na maioria
dos outros países em desenvolvimento.


Economia, relações internacionais e sociedade

Enfim, em vastas regiões da Terra o “exército da morte” triunfa. Nas úl-


timas décadas, “os trinta anos perversos”, a globalização e a liberalização co-
mercial não ajudaram a reduzir a pobreza e a desigualdade, por exemplo, na
maioria de países da África, uma das regiões do globo “desconectadas” dos
fluxos financeiros mundiais. Apenas uma pequena porção do crescimento da
economia mundial contribuiu na redução da pobreza: “Houve uma tremenda
liberalização financeira e se pensava que o fluxo de capital iria dos países ricos
aos pobres, mas ocorreu o contrário”, anotou Sundaram.
Ora, o que Sundaram e Baudot constatam em 2007 é quase o “obvio ululante”
a respeito de um modo de reprodução do metabolismo social que está conduzindo a
humanidade para situações catastróficas (como indicam hoje os prognósticos sobre
o caos climático produzido pelo aquecimento global que, com certeza, tende a piorar
mais ainda a situação dos pobres do mundo). Por isso, urge capacitar as ciências
sociais com instrumental metodológico capaz de explicitar as múltiplas (e novas)
candentes contradições sociais do sistema mundial do capital. E com certeza, a “pro-
dução destrutiva” do capital, com a vigência da taxa de utilização decrescente do
valor de uso das mercadorias (como nos diz I. Meszáros), tenderá a explicitar numa
dimensão planetária, cenários de morte impiedosa, que, ao contrário da gravura de
Bruguel, irá assolar principalmente os mais pobres (Mészáros, 2003). Neste cenário
de uma sociedade mundial desigual, cindida em classes sociais antagônicas, os mais
atingidos pelo caos climático e pelas incertezas da economia mundial não serão o rei
ou o bispo, mas os bilhões de plebeu que habitam a Terra.
É curioso que num artigo publicado no jornal Le Monde (de 06/02/2007),
Lawrence Summers, secretário de Tesouro do governo Clinton, quando os EUA
nadavam em um ciclo sem precedentes de prosperidade, tenha constatado o que
alguns supostos “radicais” catastrofistas já diziam faz algum tempo: hoje, quando
a maré sobe, nem “todos os barcos sobem juntos”. Agora, “só os iates” o fazem. É
a nova versão de uma das tendências da economia capitalista da era neoliberal: o
jobless growth (crescimento sem emprego) Enfim, mesmo que haja crescimento da
economia, os salários dos menos qualificados caem, a classe média fica estagna-
da, aumenta a desigualdade. Diz ele: “Essa evolução é o problema mais grave dos
países desenvolvidos”. Welcome to XXI century, Mr. Summers!
O geógrafo marxista David Harvey em seu novo livro “O Novo Imperialis-
mo”, salienta que o sistema mundial do capital tende a incrementar cada vez mais,
por conta de alterações em sua dinâmica sistêmica nas últimas décadas, o que


apresentação

ele denomina de “acumulação por espoliação”. É a volta da velha “assim chama-


da acumulação primitiva” do século XVI, motivo oculto da fantasia de horror no
gravura “O triunfo da Morte” de Pieter Brugel. Na acumulação primitiva descrita
por Marx, o autor de “O Capital” revela uma ampla gama de processos. Diz Har-
vey: “Estão aí a mercadificação e a privatização da terra e a expulsão violenta de
populações camponesas; a conversão de várias formas de direitos de propriedade
(comum, coletiva, do Estado, etc) em direitos exclusivos de propriedade privada;
a supressão dos direitos dos camponeses às terras comuns [partilhadas]; a mer-
cadificação da força de trabalho e a supressão de formas alternativas (autócto-
nes) de produção e de consumo; processos coloniais, neocoloniais e imperiais de
apropriação de ativos (inclusive de recursos naturais); a monetização da troca e
a taxação, particularmente da terra; o comércio de escravos; e a usura, a dívida
nacional e em última análise o sistema de crédito como meios radicais de acu-
mulação primitiva.” E mais adiante Harvey destaca: “Todas as características da
acumulação primitiva que Marx menciona permanecem fortemente presentes na
geografia histórica do capitalismo até nossos dias.” (Harvey, 2005).
Além disso, o Estado tem dado apoio crucial à promoção desses processos
em virtude do seu monopólio da violência e suas definições da legalidade. Na
verdade, nos inícios da Idade Moderna (e hoje, com a “acumulação por espo-
liação”), o desenvolvimento capitalista, tanto em sua lógica territorial de po-
der imperialista, quanto em sua lógica de acumulação de capital, dependeu e
continua a depender, de maneira vital, para infelicidade dos ideólogos neolibe-
rais, do agir do Estado. O que significa que, o imaginário fantástico de Pieter
Brugel continua atualíssimo. Enfim, no sistema do capital, a morte impiedosa
continua triunfando sobre as forças humano-civilizatórias, principalmente nas
condições históricas da crise estrutural do capital e do sócio-metabolismo da
barbárie que lança uma nuvem escura sobre o futuro. É claro que, como supu-
nha o imaginário medieval, não se trata de “castigo divino”, mas sim, flagelo
da pletora de capitais financeiros que punem paises e regiões que se recusam a
adotar seu receituário liberal e dos potentados imperiais que se recusam a abrir
mão de seus interesses geopoliticos estratégicos.
O que descrevemos acima é o cenário histórico que organiza as múltiplas im-
pressões, convergentes e divergentes, contidas nos ensaios deste livro. Se tivermos
que destacar um tema crucial da análise de conjuntura que permeia o livro e que irá
marcar o século XXI é, por exemplo, o fortalecimento da China no mercado mun-


Economia, relações internacionais e sociedade

dial. Neste livro, pelo menos dois autores – Francisco Corsi e Marcos Pires Cordeiro,
tratam diretamente das perspectivas da China no cenário mundial do século XXI.
Entretanto, embora a China como nova fronteira de modernização intensiva do ca-
pital, possa deslocar, pelo menos em termos econômicos, o poder hegemônico dos
EUA e da União Européia, a médio ou longo prazo, seu “modelo de desenvolvimento”
não rompe com o modo de reprodução do metabolismo social baseado, por um lado,
na sobreacumulação de valor e superexploração de trabalho vivo e, por outro lado,
na opção irremediável do desenvolvimento centrado no modelo energético vigente
(a queima de combustível fóssil). Portanto, o hiper-industrialismo do capital que se
desenvolve na China é deveras preocupante na perspectiva da ecologia humana (seja
no tocante ao caos climático, seja no tocante a desvalorização da força de trabalho).
O que significa que o século XXI, com certeza, tende a abrir novas (e espeta-
culares) perspectivas de desenvolvimento das contradições objetivas do capitalismo
global, não apenas com o protagonismo da China na economia política mundial, mas
com o surgimento na América Latina de novas experiências reformistas de cunho
nacionalista-democrático (um tema tratado, neste livro, pelos ensaios de Tullo Vi-
gevani e Marcelo Fernandes, um dos contundentes críticos do novo “populismo”
latino-americano). Hoje, a América Latina é o grande celeiro de novas experiências
de organização social contrárias às ortodoxias neoliberais. Por outro lado, ocorrem
novos fenômenos sócio-antropologicos da mais alta relevância, seja no campo da
intensificação de fluxos migratórios da força de trabalho, seja no campo dos mo-
vimentos sociais na cidade e no campo, sob o estigma da exploração e da exclusão
social, com destaque para o Brasil. Com certeza, os ensaios deste livro contribuem
para uma interpretação dos novos tempos do capitalismo global.

Referencias

HARVEY, David (2005) O Novo Imperialismo. Editora Loyola, São Paulo.

MÉSZÁROS, István (2003) O Século XXI – Socialismo ou barbárie? Editora Boitempo, São Paulo.

LE MONDE. “Les pistes de Larry Summers contre les inégalités” , 06.02.07

SUNDARAM, J. e BAUDOT, Jacques (2007). Flat World, Big Gaps: Economic Liberalization, Globalization
and Inequality. Zed Books, New York.

10
Sumário
13 Capitulo 1
A economia mundial no período recente
Francisco Luiz Corsi

31 Capítulo 2
A globalização econômica: uma leitura conjuntural e estrutural
Rosângela de Lima Vieira

41 Capítulo 3
O impacto da presença chinesa sobre o comércio internacional da
América Latina: 2000-2005 (Venezuela, Argentina e Brasil)
Marcos Cordeiro Pires

67 Capítulo 4
Desarrollo económico, capital humano y política educativa en Chile
Juan Carlos Miranda Castillo

85 Capitulo 5
Os novos paradoxos latino-americanos
Tullo Vigevani

101 Capitulo 6
América latina: vulnerabilidade social,
instabilidade democrática e “neopopulismo”
Marcelo Fernandes de Oliveira

113 Capitulo 7
As migrações internas em uma perspectiva histórica:
o caso de Campinas nos séculos xix e xx
Paulo Eduardo Teixeira

11
127 Capitulo 8
Do rural ao urbano: Migrações Internas no Brasil no século XX
Odair da Cruz Paiva

137 Capitulo 9
Migraciones de trabajadores en Europa:
de la política estatal a la comunitária
José Blanes Sala

157 Capitulo 10
Processos de exclusão social no Brasil
Edemir de Carvalho

165 Capitulo 11
Direitos Humanos e luta pela igualdade
José Geraldo A. B. Poker

181 Capitulo 12
Evolução recente da ocupação agrícola no brasil
José Marangoni Camargo

195 Capitulo 13
Entre o local e o global: o Movimento dos Sem Terra,
a Via Campesina e a agricultura brasileira
Mirian Claudia Lourenção Simonetti

205 Capitulo 14
Algumas considerações sobre estratégias identitárias da
militância negra
Andreas Hofbauer
Capitulo 1

A economia mundial no
período recente

Francisco Luiz Corsi

A economia mundial, entre 2003 e 2005, apresentou um crescimento vigoro-


so, cresceu nesse período 4,7% ao ano em média. Desempenho semelhante
à época que Hobsbawm (1995) denominou de “Idade de Ouro do capitalismo”
(1945-1973), quando o PIB mundial cresceu em média 5,0%. Em que medida
esse desempenho teria colocado fim a longa fase de baixo crescimento econômi-
co iniciada em meados da década de 1970? . Será que o capitalismo teria entrado
em uma fase mais dinâmica? Quais seriam as razões dessa mudança?
O presente artigo busca tecer algumas considerações acerca dessas ques-
tões, mas sem a pretensão de uma resposta definitiva, mesmo porque ainda é
muito cedo para chegarmos a conclusões e a insegurança quanto ao futuro vol-
tou rapidamente a rondar a economia mundial. Estimativas de várias institui-
ções, algumas mais otimistas e outras mais pessimista, já advertem para uma
desaceleração da economia.
O texto está dividido em três partes além dessa introdução. O próximo
item busca discutir o lento crescimento econômico que tem caracterizado a
economia mundial n as últimas décadas. O item seguinte discute o padrão de
crescimento do capitalismo global centrado na economia norte-americano. Em
seguida, é abordado o quanto o intenso nível de atividade econômica da China
tem acarretado mudanças nesse padrão de crescimento.
A economia mundial no período recente

1. A longa fase de lento crescimento

Desde a segunda metade da década de 1970, a economia mundial tem apre-


sentado um desempenho sofrível, apesar das profundas transformações que vêm
se processando no sistema capitalista a partir do início dos anos 1980. A restrutu-
ração do capitalismo não conseguiu reverter o quadro de lento crescimento. Con-
tudo, o seu desenvolvimento é bastante desigual. Algumas regiões apresentaram
forte crescimento, enquanto outras apresentam uma performance medíocre.
O G7 (grupo dos sete países mais ricos), na década de 1980, cresceu 3,0% e na
seguinte 2,4%, enquanto que entre 1960 e 1969 cresceu 5,1%.(Brenner, 2003, p. 93)
A Ásia foi uma exceção, cresceu mais na década de 1990 (7,3%) do que entre 1958 e
1973 (5,8%), cabendo destacar a China e a Índia, que cresceram em média por ano
respectivamente, na década de 1990, 10,5% e 5,5%. O Japão entrou em uma fase de
estagnação, cresceu em média 1,3% nesse último período. As demais regiões tam-
bém apresentaram nítida tendência ao baixo crescimento. A Europa Ocidental cres-
ceu, nos anos 1990, 2,0%, enquanto que entre 1958 e 1973 o crescimento médio do

 A reestruturação do sistema capitalista foi, em grande medida, uma resposta à crise de


superprodução aberta nos anos 1970 e à crescente contestação social. A restruturação
seguiu duas linhas mestras. De um lado, buscou-se recompor a rentabilidade do capital
em queda acentuada, reorganizando o processo produtivo. Foram introduzidas novas
tecnologias que poupam trabalho e diferentes formas de reorganização do processo de
trabalho, acompanhadas da desregulamentação do mercado e da precarização das con-
dições de trabalho. Mudanças que contribuíram para fragmentar a classe trabalhadora
e enfraquecer os sindicatos. De outro lado, observa-se rápida e acentuada desregula-
mentação das economias nacionais, caracterizada pela abertura comercial e sobretudo
financeira. A constituição de oligopólios internacionais em importantes setores, apro-
fundando sobremaneira a centralização dos capitais, a abertura das economias nacio-
nais e a formação de amplos mercados regionais também não se mostraram capazes de
recolocar a economia mundial no caminho do crescimento acelerado. Essas transforma-
ções, contudo, tem condicionado profundas alterações nas lutas sociais e na posição das
classes e dos países no capitalismo globalizado (Corsi, 2006).
 Segundo Chesnais (2006, p. 57), “ A economia capitalista sempre exprimentou um
desenvolvimento desigual, mas o crescimento do período 1955 1975 foi marcado
por uma tendência à convergência no plano internacional. O s anos 90 caracteri-
zaram-se pelo retorno a uma configuração de desenvolvimento desigual, com o
crescimento concentrando-se em duas zonas apenas” .

14
Francisco Luiz Corsi

PIB tinha sido de 4,9%. Na Europa Central e Oriental, a situação foi mais dramática
depois da dissolução da URSS. A região apresentou crescimento negativo de 3,2%
entre 1991 e 2000, enquanto que no período 1958-1973 tinha crescido 4,5%. Na Oce-
ania também observamos tendência ao baixo crescimento, com uma média anual
de 3,2% entre 1991-2000. A situação da África também não foge ao quadro geral;
o crescimento médio anual do PIB alcançou a cifra de 2,9% nos anos 1990, contra
um crescimento médio de 4,7% no período 1958-1973 (Gonçalves, 2002, p. 111). O
PIB latino-americano cresceu em média 5,5% por ano na década de 1960 e 5,6%
na década seguinte. Entre 1981 e 1990, esse incremento foi de 0,9%. Entre 1990 e
1997, o crescimento médio anual do PIB foi de 3,3% (Cano, 1999, p. 294-311). Porém,
a melhora observada na primeira metade da década de 1990 sofreu forte reversão.
De 1997 a 2002, quando a economia globalizada entrou em declínio, depois da crise
asiática seguida das crises russa, brasileira e argentina e do lento estouro da bolha
especulativa de Wall Street, segundo dados apresentados pela CEPAL, a economia
latino-americana encontra-se estagnada. No referido período, o PIB da região cres-
ceu em média 1%, enquanto o crescimento demográfico foi de 1,5% , o que acarretou
uma queda do PIB per capita de 1,45% no período. O caso mais grave foi o da Ar-
gentina, que, entre 1999 e 2002, teve uma retração de cerca de 20% do PIB, de 10,9%
só em 2002. Níveis comparáveis aos da Grande Depressão dos anos 1930 (CEPAL,
2003). Entre 1991 e 2003, o crescimento médio anual do PIB da América Latina e do
Caribe, segundo Singh (2005), foi de 2,8%.(Corsi, 2006, p. 24-25).
As causas do largo período de lento crescimento são complexas e polêmi-
cas. Fugiria do escopo dessas breves notas esgotar a questão. Chesnais (2005)

 A partir de 2003, acompanhando a retomada da economia mundial, observa-se uma


recuperação da economia da América Latina. O PIB da região cresceu 1,9% em 2003,
depois de ter apresentado um declínio de 0,5 no ano anterior. O crescimento em 2004
foi mais significativo, alcançou a cifra de 6,0% e, em 2005, foi um pouco menor, 4,5%.
Os países que mais cresceram foram Chile, Uruguai e Argentina. Cabendo destaque
para esse último, que cresceu 8,7% em 2003, 9,0% em 2004 e 9,2% no ano seguinte.
(CEPAL, 2004, 2005; FMI/Perspecticas de la Economía Mundial, 2005)Embora esses
números estejam distorcidos pela profunda crise dos anos anteriores, é preciso ob-
servar que a Argentina rompeu com o ideário do FMI e declarou moratória da dívida
externa, indicando que é possível a implementação de políticas alternativas às estabe-
lecidas pelo Consenso de Washington (Corsi, 2006, p. 25).
 Boa parte dos economistas ortodoxos fecham os olhos as evidências e limitam-se
a sublinhar as conseqüências positivas globalização. Não discutindo diretamen-

15
A economia mundial no período recente

salienta, no artigo “O capital portador de juros: acumulação, internacionaliza-


ção, efeitos econômicos e políticos”, que o lento crescimento, iniciado na dé-
cada de 1970 e que perdura até o momento, resulta do predomínio do capital
financeiro na atual fase de mundialização do capital. A expressão maior desse
capital financeiro é os fundos de investimento, os fundos de pensão e os hed-
ge funds. Essas instituições movimentam enormes volumes de riqueza na sua
forma líquida, visando a sua valorização crescente e no curto prazo. A busca
de resultados de curtíssimo prazo a qualquer preço consiste, sem dúvida, um
dos determinantes centrais da instabilidade e da exacerbada especulação que
caracteriza o atual momento. A lógica dessa fração hegemônica do capital tende
a permear e a condicionar as demais formas de capital.
Esse capital financeiro, segundo Chesnais (2005), sugaria capital da esfera
produtiva para as aplicações financeiras, dificultando dessa maneira a retoma-
da mais vigorosa dos investimentos, apesar das taxas de lucros terem se recupe-
rado a partir de meados dos anos 1980 depois de tenderem a cair desde meados
da década anterior. Estaria aí a causa central do lento crescimento. Através do
controle acionário, a burguesia, que teria se tornado uma classe rentista e que
teria, portanto, passado a apresentar um comportamento patrimonialista, im-
poria uma “forma radical do direito de propriedade” que submeteria as empre-
sas e os assalariados à lógica de rentabilidade do capital financeiro. A majora-
ção dos dividendos e juros exigida pelo capital portador de juros resultaria na
redução dos lucros retidos para financiar os investimentos e levaria a rejeição de
projetos que não assegurassem as taxas requeridas pelos acionistas. A tendência
à redução dos salários somada a queda dos investimentos levaria ao desempe-
nho sofrível de boa parte da economia mundial (Chesnais, 2006, p. 50-58).

Boa parte da explicação desses resultados[o lento crescimento


global desigual] encontra-se do lado da repartição, em suas duas
determinações – divisão entre salários e lucros, e no interior dos

te o problema, embora as vozes discordantes tenham ganho cada vez mais espaço,
mesmo no interior das correntes ortodoxas, com o fracasso dos ajustes neolibe-
rais levados acabo por inúmeras economias periféricas. A obra Os malefícios da
globalização de Stiglits (2002) talvez seja o exemplo mais notório das crescentes
críticas a globalização nas correntes conservadoras. No campo da esquerda também
não há consenso.

16
Francisco Luiz Corsi

lucros, entre a parte não distribuída e reinvestida e a parte distri-


buída em juros, dividendos e ‘restituição do valor’ para os acio-
nistas, notadamente pela recompra de ações. O investimento é a
variável determinante do crescimento no longo prazo. No setor
privado, ele é financiado pelos lucros retidos. A taxa de lucro
necessária para a realização das normas do ‘valor por acionista’
conduz à rejeição de todos os projetos de investimento que ga-
rantirão a taxa exigida. No momento em que a participação dos
salários nos resultados da produção se reduz e a parte dos ren-
dimentos reservada aos investimentos também diminui, a taxa
de investimento é duplamente atingida – pela desaceleração do
consumo dos assalariados e pela reduzida propensão a investir A
taxa de crescimento é lenta e o desemprego aumenta (Chesnais,
2005, p. 58).

Chenais (2005) parece subestimar, nessa obra mais recente, a existência de


uma situação de superprodução crônica em escala mundial nas últimas décadas.
Em artigo anterior, Chesnais (1998) ainda trabalhava com essa hipótese para ex-
plicar, pelo menos em parte, o predomínio do capital financeiro. O próprio exces-
so de capital dinheiro buscando valorizar-se na esfera da circulação é indicativo
de problemas de valorização do capital na produção. Marx (1983) asseverava que
a abundância de capital dinheiro significava excesso de capital aplicado na esfera
produtiva. Ou seja, a existência de capital supérfluo, que enfrenta crescentes difi-
culdades na produção, gera um excesso de capital monetário na circulação. Mais
próximo, nesse ponto, às idéias de Marx, Brenner (2003, 2006) fundamenta sua
análise com base na proposição segundo a qual existiria uma crise crônica de
superprodução no capitalismo.
Para Brenner (2006), o determinante central do lento crescimento seria a
situação de super produção no setor manufatureiro da economia mundial, que
teria se tornada crônica desde a década de 1970 e não teria sido superada até hoje.

 Segundo Brenner (1999), a superprodução tem persistido, até hoje, devido a uma série
de fatores: 1- a existência de enormes montantes de capital fixos não totalmente de-
preciados em vários ramos de produção. Seria irracional destruir esse capital já pago
enquanto fosse possível auferir retornos razoáveis sobre o capital circulante. Desta
forma, as empresas não saem dos ramos em superprodução. 2- As grandes empresas

17
A economia mundial no período recente

Essa situação impediria a retomada vigorosa e generalizada do investimento que


garantisse um crescimento sustentado e estaria na raiz da formação e do estou-
ro das bolhas especulativas que tem caracterizado a economia mundial. O forte
crescimento de algumas regiões e os movimentos cíclicos da economia mundial
no período recente seriam fruto, fundamentalmente, de bolhas especulativas. O
substancial crescimento entre 1994 e 2000 e a retomada do crescimento da econo-
mia norte-americana depois da recessão 2001-2002, que sustentaram em grande
parte o crescimento mundial, residiriam em bolhas especulativas com ações, tí-
tulos e imóveis. Ou seja, a especulação desenfreada que acompanha a valorização
financeira do capital, nas circunstâncias de uma crise crônica de superprodução,
passa a ditar, em grande medida, a dinâmica instável do capitalismo global. Nesse
aspecto, parece haver certa convergência entre Chesnais e Brenner, embora este
último continue a defender a centralidade do capital produtivo.

2. A dinâmica da economia mundial 1990-2005

No período 1990-2005, a economia mundial tem se caracterizado por for-


te instabilidade. Observamos, nesse período, seis crises importantes (recessão

que dominam os mercados mundiais possuem vasta experiência em seus ramos e,


portanto, um enorme capital intangível (conexões com fornecedores e consumidores
e conhecimento tecnológico), que as levam a permanecer nos ramos em que atuam
e a reinvestir, pelo menos parte, dos lucros nesses mesmos setores. 3- A existência de
monopólios tecnológicos permite às empresas auferir temporariamente taxas de lu-
cros elevadas, desestimulando a saída do setor. 4- A relativa estagnação (reduzidos
aumentos de investimentos e salários) restringe o crescimento mais acelerado de
novas linhas de produtos que poderiam atrair maiores montantes de investimentos.
6- Alemanha e particularmente o Japão (décadas de 1960 a 1980) e os países do leste
asiático, especialmente a China no período mais recente, continuaram a investir pe-
sado a partir das vantagens da associação de mão de obra barata com alta tecnologia,
e abocanharam crescentes parcelas do mercado mundial, embora agravassem a crise
de superprodução global do setor manufatureiro. O crescimento da economia norte-
americana nos anos 1990, baseado, em boa medida, no incremento dos investimentos
em alta tecnologia, mídia e telecomunicações, também contribuiu para a persistência
da superprodução, especialmente nesses setores. Todos esses fatores parecem dificul-
tar sobremaneira a superação da crise de superprodução (Corsi, 2002).

18
Francisco Luiz Corsi

1990-1991, México-1994, Sudeste Asiático –1997, Rússia, Brasil e Argentina


1998/1999 e o estouro da bolha da Nasdaq –2000/2001), vinculadas ao predo-
mínio do capital financeiro e a superprodução crônica no setor manufatureiro.
Ao mesmo tempo, observa-se a consolidação de um novo eixo de expansão da
economia global, baseado na forte articulação entre a economia norte-america-
na e as do Leste Asiático.
A economia mundial recuperou-se da recessão 1990/1991 graças à política
monetária e creditícia expansiva adotada tanto pelos EUA quanto pela maior
parte dos países da zona do Euro, cuja conseqüência mais importante foi à ele-
vação da liquidez internacional. Nos EUA, a queda dos juros e a ampliação do
crédito foram fundamentais para a retomada da atividade econômica e para o
estancamento da onda de falências no setor manufatureiro então bastante endi-
vidado. A continuidade do processo de desvalorização do dólar, que se estendia
desde 1985, impulsionou as exportações, o que também contribuiu para a re-
tomada. O resultado foi à elevação dos lucros pelo menos até 1997 e por conse-
guinte dos investimentos que cresceram em média 10,2% ao ano entre 1993 e
1999 e concentraram-se na chamada nova economia, setores de alta tecnologia,
mídia e telecomunicações (Brenner, 2003, p. 88-144) 
De 1995 a 2000, o PIB norte-americano cresceu em média por ano 4,1%. O
crescimento deveu-se sobretudo a essa elevação dos investimentos da chamada
nova economia em um contexto de crédito fácil e taxas declinantes de juros. As
empresas que compunham esse setor conseguiram sustentar altas taxas de in-
vestimento graças a forte capitalização no mercado acionário, que antecipou os
lucros do setor projetados para o futuro. Abriu-se assim uma fase de crescente
especulação nas bolsas de valores, particularmente na Nasdaq, que negociava as
ações da nova economia. O efeito riqueza resultante desse processo inflou ain-
da mais a demanda agregada, com o rápido incremento do consumo. Também

 O crescimento dos lucros basearam-se no modesto crescimento dos salários reais,


cerca de 1,9% ao ano entre 1993 e 2000, e no crescimento robusto da produtividade,
que cresceu em média, no mesmo período, 5,1%, em virtude em virtude do aumento
do ritmo de trabalho, da introdução de formas flexíveis de produção e da aplicação
de novas tecnologias. Observou-se também o avanço da terceirização, do emprego
parcial e temporário e a realocação da força de trabalho para trabalhadores não
sindicalizados, o que contribuiu para arrefecer os movimentos dos trabalhadores
(Brenner, 2003, p. 88-144).

19
A economia mundial no período recente

levou ao crescente endividamento de empresas e famílias. A bolha especulativa,


centrada na especulação com as ações das empresas de alta tecnologia, passou,
em grande medida, a sustentar o boom da economia norte-americana (Brenner,
2003, p, 88-144; Corsi, 2006).
A expansão acelerada da economia norte-americana ampliou os déficits em
transações correntes, que passaram a estimular, em parte, o crescimento do resto
do mundo, especialmente o do Leste da Ásia a partir de suas crescentes exporta-
ções para os EUA. Esse processo ganhou nova força com a retomada da valorização
do dólar depois de 1995. As importações de manufaturados dos EUA elevaram-se
de 480 bilhões de dólares em 1993 para 1 trilhão de dólares em 2000. O déficit
em transações correntes em meados de 2003 era cinco vezes maior que o de 1995,
alcançando a cifra de 544 bilhões de dólares. Esse déficit representou um estímulo
importante para o resto da economia mundial e permitiu que ela enfrentasse em
melhores condições os turbulentos anos 1990, contribuindo para evitar o seu co-
lapso depois da crise de 1997-1998 (Brenner, 2006, p. 141-145).
Contudo, os impactos desses estímulos foram pouco sentidos na zona do
Euro. O PIB da região (Euro-12) cresceu em média por ano apenas 2,0% entre
1990 e 2000. As taxas de desemprego permaneceram elevadas durante todo o
referido período, 9,9% (Euro-15) Os salários reais cresceram 0,6% (euro-11) ao
ano, enquanto a produtividade do trabalho apresentou um incremento anual
médio de 1,7%. Esse desempenho deveu-se sobretudo ao baixo dinamismo da
economia alemã, o centro dinâmico da economia européia, e as regras restri-
tivas impostas pelo Tratado de Maastrich (1992) e pelo Pacto de Estabilidade
e Crescimento(1997) (Brenner, 2003, p. 93). Também se deveu à desvaloriza-
ção do dólar e à conseqüente valorização das moedas Européias(1985-1995),
sobretudo do marco, que atingiu negativamente as exportações da região. A
Alemanha, historicamente, teve um papel importante no comércio regional eu-
ropeu, pois era indutora da atividade econômica regional. No pós-guerra, na
impossibilidade de um projeto centrado em sua economia nacional, a estraté-
gia alemã voltou-se para a Europa unificada e o dinamismo da economia alemã
foi importante para a expansão da economia européia (Braga, 1999; Medeiros,
2004; Corsi, 2006). Mas a baixa performance da economia alemã e as regras

 A Alemanha cresceu em média por ano 1,9% na década de 1990, os salários reais
subiram 0,95%( média anual), a produtividade do trabalho 1,7% e a taxa de desem-
prego situou-se em 8,2% ao longo do período(Brenner, 2003, p. 93; Corsi,2006).

20
Francisco Luiz Corsi

estabelecidas nos tratados que estabeleceram a União Européia bloquearam o


crescimento da região.
O bom desempenho da economia norte-americana e seu efeito estimulan-
te para a economia mundial não foram suficientes para puxar a economia euro-
péia, o que aponta para os limites dos EUA como centro dinâmico da economia
mundial. Não se verificou uma sincronização do ciclo econômico, indicando um
grau de integração menor na atual fase de globalização do que muitos autores
sugerem e a necessidade de levarmos em conta as determinações internas na
análise da economia global.
A América Latina também foi outra região que passou por graves pro-
blemas no período em pauta. A região, que vivia uma situação de estag-
nação econômica e surtos hiperinflacionários, foi impactada pela grande
liquidez vigente no início dos anos 1990. A falta de boas oportunidades de
investimento associada à queda das taxas de juros nos países centrais ge-
rou um volume significativo de capitais em direção à periferia. Recursos
importantes para viabilizarem vários planos de estabilização inspirados no
Consenso de Washington e implementados na América Latina nesse perí-
odo, que acarretavam fortes déficits comerciais devido à valorização das
moedas combinadas à maior abertura da economia e, portanto, dependiam
de um fluxo crescentes de recursos externos para fecharem o balanço de
pagamentos. Porém, essas condições conjunturais, que garantiam um fluxo
volumoso de recursos externos, eram intrinsecamente instáveis (Tavares,
1999; Corsi 2006).
Os programas de estabilização baseados em âncoras cambiais jogaram
esses países em uma armadilha, pois se, de um lado, conseguiram debelar o
processo inflacionário, devido, em grande medida, à entrada maciça de pro-
dutos importados, de outro, dificultavam a retomada do desenvolvimento em

 Os fluxos privados totais (líquido) para os chamados países emergentes foram, em


1990, de US$ 45, 8 bilhões de dólares. Tenderam a subir até 1996, quando atingiram
US$ 224,2 bilhões e caíram após a crise asiática, atingindo a cifra de US$ 32 bilhões
em 2000. Esses fluxos para a América Latina subiram de US$ 10,3 bilhões, em 1990,
para US$ 68,1 bilhões em 1997, passando a declinar a partir daí. Boa parte desse fluxo
era composta por investimentos de porta-fólio, o que indica a vulnerabilidade das eco-
nomias da região. Em 1996, por exemplo, das entradas líquidas de US$ 62, 8 bilhões,
US$ 38,0 corresponderam a esse tipo de investimento. (Carneiro, 202, p. 247-252)

21
A economia mundial no período recente

virtude das altas taxas de juros, necessárias para atrair um volume crescente
de capitais para fecharem os também crescentes déficits em suas contas ex-
ternas. Os resultados de tudo isso, bastante visíveis no México, no Brasil e na
Argentina, foram a crescente vulnerabilidade das economias nacionais ante
as oscilações da economia mundial, o incremento da dependência em relação
ao capital estrangeiro e a estagnação econômica, que implica aumento do de-
semprego e deterioração da situação social de vastas parcelas da população.
A inconsistência da estratégia neoliberal ficou evidente já na crise do México
em 1994 e reforçada nas crises do Brasil e da Argentina a partir de 1998. Essas
crises, fruto em larga medida da própria instabilidade na economia mundial
decorrente dos voláteis fluxos de capitais especulativos, acabaram por poten-
ciar essa mesma instabilidade (Corsi, 2002, 2006).
O impacto dos crescentes déficits em transações correntes e as exporta-
ções de capitais dos EUA foram de grande importância para estimular as eco-
nomias asiáticas. Ásia passou incólume pela crise do México e continuou em
sua trajetória de elevado crescimento, baseada na superexploração da força de
trabalho, na introdução de tecnologia moderna, na sua forte articulação com a
economia norte-americana e em projetos de desenvolvimento que defendiam
uma estratégia voltada para as exportações e ampla ação estatal na economia.
A desvalorização do dólar, iniciada em 1985, beneficiou os países do Leste Asiá-
tico, que tinham atrelado suas moedas à norte-americana, ao propiciar grande
incremento de suas exportações, particularmente para os EUA. Também foram
beneficiados por vultosos investimentos estrangeiros, em busca de valorização
rápida do capital. Ante a valorização do yen imposta pelos EUA e contando com
amplo financiamento dos bancos de seu país, as grandes corporações japonesas
aprofundaram o movimento de expansão de suas empresas na região, em espe-
cial na Coréia e na China. A retomada da economia norte-americana puxou as
economias asiáticas, beneficiando sobretudo a China, que tinha desvalorizado o
yuan em 50% em 1994 e a partir daí manteve o câmbio estável (Corsi, 2006).
A exceção foi à economia japonesa, que permaneceu estagnada até 2003
em decorrência sobretudo da valorização do yen até 1995 e do estouro da bolha
especulativa com ações e imóveis em 1991, que expôs vulnerabilidade do setor

 O PIB dos países em desenvolvimento da Ásia cresceu, entre 1987 e 1996, 7,8% ao
ano. Para o período 1997-2005, esse crescimento médio foi de 5,9% (FMI/perspec-
tivas de la economía mundial, 2005, p. 229).

22
Francisco Luiz Corsi

bancário japonês, atolado em dívidas, muitas delas de solvência duvidosa. A


valorização do dólar a partir de 19995 não alterou essa situação, pois o Japão foi
duramente atingido pela crise asiática de 1997. A desvalorização do yen trouxe
um alívio momentâneo para a economia japonesa, cujas exportações passaram
a crescer em ritmo apreciável. Contudo, o impacto no Sudeste Asiático foi bas-
tante negativo. Vários países da região, entre eles a Coréia, Malásia, Indonésia
e Tailândia, tinham atrelado suas moedas ao dólar. O resultado foi à valoriza-
ção generalizada das moedas da região e, consequentemente, sensível perda de
competitividade. As exportações, elemento decisivo do dinamismo dessas eco-
nomias, fraquejaram. Esses países ficaram encurralados, pois pressionados,
de um lado, pela revigorada concorrência japonesa e, de outro, pela China que
manteve o yuan desvalorizado. O excesso de capacidade produtiva em escala
internacional e a valorização das moedas fizeram os preços dos produtos ma-
nufaturados caírem 2,6 % em 1996 e 7,3% no ano seguinte no mercado mundial,
resultando na queda do valor das exportações e das taxas de lucros. Na Coréia
os lucros declinaram 75% em 1996 e foram negativos nos dois anos seguintes,
com reflexos deletérios para a acumulação de capital (Brenner, 2003, p. 233-34;
Corsi, 2006).
Apesar do nítido enfraquecimento econômico do Leste Asiático, verifi-
cou-se caudaloso fluxo de capitais especulativos para a região, particularmente
vindos dos bancos e fundos do Japão, que esperavam ter enormes lucros ao es-
pecularem com a valorização das moedas. Esse fluxo, facilitado pela desregula-
mentação das economias nacionais da região a partir do final dos anos 1980, era
importante para a solvência do elevado número de empresas altamente endivi-
dadas Desenvolveu-se desenfreada especulação com ações, títulos de dívidas e
imóveis, cujos preços alcançaram níveis estratosféricos. A economia mundial
era sustentada naquele momento por duas bolhas especulativas, uma nos EUA e
outra na Ásia (Brenner, 2003; Corsi, 2006).
A crise teve início na Tailândia, em meados de 1997, e propagou-se ra-
pidamente para a Malásia, Indonésia e Filipinas. O déficit comercial cada vez
mais elevado gerou crescentes problemas de financiamento dos desequilíbrios
externos e forte pressão para a desvalorização do Baht. Em julho, a situação
ficou insustentável e o governo tailandês desvalorizou a moeda desencadeando
uma fuga de capitais de curto prazo e o colapso do câmbio e do mercado finan-
ceiro. A inadimplência generalizada, devido a forte elevação dos custos dos em-
préstimos, gerou a uma onda de falências dos bancos. Dada a situação similar
23
A economia mundial no período recente

de outros países da região e a forte interligação entre eles, a fuga de captais se


generalizou e arrastou um por um para a crise. Logo em seguida a crise atingiu
Taiwan, Singapura, Hong Kong e Coréia.(Chesnais, 1998; Corsi, 2006).
A crise não se alastrou para o conjunto do sistema sobretudo devido à con-
tinuidade da expansão norte-americana, calcada, em grande medida, na espe-
culação com ações e títulos. Os crescentes déficits em transações correntes dos
EUA e a desvalorização das moedas asiáticas permitiram, particularmente de-
vido ao aumento das exportações, a recuperação das economias da região. Mas
o preço pago pelos países da região foi alto. A Coréia comprometeu a partir da
ampla abertura de sua economia, imposta pelo FMI, sua experiência de desen-
volvimento autônomo, que nunca foi acompanhada, é verdade, de autonomia
política. A China, entretanto, não foi abalada e continuou implementando o seu
programa de crescimento acelerado e de grande potência.
Os EUA só puderam aumentar sistematicamente seu déficit em transa-
ções correntes porque o resto do mundo, em especial os países asiáticos, está
disposto a financiá-los. Sem dúvida que fazem isso seguindo seus próprios in-
teresses. O resto do mundo financia o aumento de consumo norte-americano
visando garantir a ampliação de suas exportações e, portanto, da produção. A
entrada de capitais externos na forma de investimento direto e aplicações em
ações e títulos públicos nos EUA têm sido vigorosa nas últimas décadas. Essa
entrada é importante também para garantir a manutenção do dólar em um pa-
tamar valorizado. Entre 1995 e 2000, na fase de grande expansão da economia
norte-americana, o total de ativos brutos norte-americanos nas mãos de estran-
geiros passou de 3,4 trilhões de dólares para 6,4 trilhões, representando 75% do
PIB dos EUA. O declínio da economia norte-americana a partir de fins de 2000
levou a uma diminuição da entrada de capitais, o que levou a uma desvalori-
zação do dólar, sobretudo em relação ao Euro, o que atingiu negativamente as
economias européias e teve conseqüências negativas para a própria economia
norte-americana em virtude da diminuição das importações da Europa (Bellu-
zzo, 2005; Brenner, 2006).
O Leste asiático sofreu relativamente pouco com a recente desvaloriza-
ção do dólar, apesar da região ser responsável por grande parte do déficit em
transações correntes dos EUA. Isto porque os principais países da região, es-
pecialmente Japão, China e Coréia do Sul, adotaram a política de reciclar seus
superávites em transações correntes comprando ativos em dólares, sobretudo

24
Francisco Luiz Corsi

títulos da dívida pública norte-americana. Hoje a região detém cerca de 70%


das reservas mundiais contra 30% em 199010.De um lado, ao adotarem essa
política, contribuem para manter suas moedas desvalorizadas e, de outro, esta-
bilizam a economia norte-americana, permitindo a adoção por parte dos EUA
de políticas expansionistas, que contribuem para impulsionar a economia nor-
te-americana e, portanto, suas próprias exportações e produção. Esta espécie
de simbiose entre as economias do Leste Asiático e os EUA se sustenta em bases
frágeis, pois ao aumentar o fosso entre as importações e exportações e solapar o
setor industrial norte-americano corroeria a capacidade dos EUA de pagar suas
dívidas, com efeitos deletérios para a economia norte-americana e para o resto
da economia mundial (Biancarelli, 2006; Brenner, 2006).
A importância da economia norte-americana para a economia mundial fi-
cou mais uma vez evidente na recessão 2001-2002, gerada pelo estouro da bolha
especulativa na Nasdaq. A recuperação ocorreu a partir da elevação dos gastos
militares com a invasão do Iraque, da política de crédito fácil e da redução das
taxas de juros. A redução dos juros, particularmente os de longo prazo, estimu-
laram uma forte especulação com imóveis. O efeito riqueza decorrente desse
processo estimulou o consumo. Os déficits em transações correntes continua-
ram a aumentar e, portanto, a estimular particularmente o Leste Asiático.
Uma das grandes discussões do momento é até quando esse padrão de
crescimento se sustentaria. Os otimistas consideram que ele poderia se sustentar
por um longo período. A prova disso seria o vigoroso crescimento dos últimos
dois anos da economia mundial, cujas taxas tem se aproximado das do período
1950-1973. Para os pessimistas, como Brenner e Chesnais, fica difícil explicar esse
vigoroso crescimento, embora ganhe terreno as previsões de uma desaceleração
da economia mundial. Um dos problemas das análises de Brenner e Chesnais é
não incorporarem o crescente papel da China na determinação da dinâmica da
economia mundial. O aumento do peso da China não estaria alterando esse pa-
drão de crescimento? As altas taxas de crescimento verificadas recentemente não
resultariam também do estímulo da forte expansão chinesa não só voltada para

10 Observa-se a crescente acumulação de reservas por parte dos países em desenvol-


vimento, obtidas por meio de expressivos saldos comerciais. As reservas desses pa-
íses, em 2005, somaram 2,5 trilhões de dólares, dos quais 1,6 trilhões dos países
asiáticos, montante bastante superior ao total das dívidas dos países em desenvol-
vimento, cerca de 758 bilhões de dólares (2004) (Cintra, 2005).

25
A economia mundial no período recente

as exportações como para seu imenso mercado interno? Várias análises apontam
nesse sentido, procurando mostrar que o eixo dinâmico da economia mundial se
situa nos EUA e nos países em desenvolvimento da Ásia.
Cabe observar que o crescimento verificado a partir de 2003 não se con-
centra mais em duas regiões, Leste da Ásia e EUA, como vinha ocorrendo até a
recessão de 2001/2002, e seus índices são semelhantes aos da chamada idade
de ouro do capitalismo. Entre 2003 e 2005, o incremento médio anual do PIB
da África foi de 4,8%, da Europa Oriental de 5,1%, do Oriente Médio de 5,9%
e da América Latina de 4,1%. Esta última região cresceu sobretudo devido a
forte elevação das exportações de bens primários, decorrentes sobretudo da
expansão chinesa (10,1% em média no referido período) e da onda de especu-
lação com commodites, processos que também impactaram as demais regiões.
Este desempenho sugere uma mudança do padrão de crescimento da economia
mundial (FMI, 2006).

3. A China e a dinâmica da economia mundial

A China vem implementando desde a década largo programa de reformas


em sua economia, capitaneado pelo Estado e baseado em agressiva política ex-
portadora e na atração de investimento e tecnologia para determinadas áreas
abertas ao capital estrangeiro. A China está implementando um projeto nacio-
nal, cujo objetivo é transformá-la em uma grande potência. Segundo Belluzzo
(2005, p. 229): “A ação estatal concentrou-se no estímulo à agricultura familiar,
em maciços investimentos em infra-estrutura e na utilização das empresas pú-
blicas como ‘âncoras’ para a constituição de grandes conglomerados industriais.
Tudo isso foi acompanhado de uma cuidadosa transição do sistema de preços
da antiga economia de comando para a ‘nova’ economia de mercado”.
Essas reformas transformaram a economia chinesa em uma das mais di-
nâmicas do mundo. O crescimento nos últimos vinte anos foi intenso, cerca de
9% ao ano, embora tenha acarretado piora na distribuição da renda, fortes dese-
quilíbrios regionais e degradação ambiental. A participação chinesa nas expor-
tações mundiais cresceu de 1% em 1980 para 6% em 2003. Suas exportações de
bens de maior valor agregado cresceram substantivamente. As importações em
virtude do forte crescimento também dispararam, com reflexos importantes no

26
Francisco Luiz Corsi

mercado mundial de matérias-primas e energia. O elevado nível de importações


tem contribuído significativamente para conter a inflação e sustentar o cresci-
mento, que também tem se voltado para o mercado interno, um imenso espaço
de acumulação de capital A crescente competitividade, sustentada pela baixa
remuneração de sua imensa força de trabalho, pela introdução de novas tecno-
logias e por uma moeda desvalorizada, está a propiciar a China avanços rápidos
no mercado mundial, em especial nos EUA, a partir sobretudo do deslocamento
de outros países asiáticos do mercado. A china tornou-se também a maior re-
ceptora de investimentos externos. Por outro lado, a China absorve quantidades
crescentes de produtos desses países (máquinas, equipamentos, componentes
eletrônicos etc.), constituindo-se no centro da economia regional, deslocando
o Japão desse papel, com uma diferença importante: goza de uma autonomia
política que o Japão não teve pós-guerra e que tem permitido resistir às pressões
norte-americanas pela valorização de sua moeda. A postura chinesa sugere que
mundialização do capital não significa necessariamente o enfraquecimento dos
Estados Nacionais. (Medeiros, 2004; Belluzzo, 2005; Leiva, 2005; Corsi, 2006).
A China vem se transformando em um novo pólo regional e mundial de
crescimento, cada vez mais importante para a reprodução do capitalismo. A
China é, hoje, o maior produtor de manufaturas baratas e grande importador de
máquinas, equipamentos, tecnologia e matérias-primas. Também se observa
grande incremento na produção de bens tecnologicamente mais sofisticados11.
A economia chinesa é o eixo da economia regional, deslocando o Japão desse
papel. Tornou-se grande importadora de produtos da região, não obstante ter
deslocado parcela da produção de outros países asiáticos do mercado mundial.
Tornou-se também grande absorvedora de investimentos externos. As empresas

11 A china consome cerca de 30% do consumo mundial de minério de ferro, 12% do


de platina e 15 % do de alumínio. Em 2002, importou o correspondente a 15% das
importações mundiais de cobre e 20% das de soja. Nesse ano, as importações chi-
nesas aumentaram 21% e 44% no ano seguinte. As importações chinesas provêem
sobretudo de outros países asiáticos, cerca de 58% em 2003, contra 8% dos EUA e
18% do Japão. As exportações chinesas cresceram 22% em 2002 e 35% em 2003, O
destino principais das exportações foram os seguintes Japão (20%), EUA (13%) Eu-
ropa (15) 8% (dados de 2002 e 2003). As inversões estrangeira correspondem a 8%
dos investimentos totais, mas controlam cerca de 40% do produto. A China possui o
segundo maior volume de reservas, só superado pelo Japão (Medeiros, 2004, p.166-
173; Leiva, 2005, p. 66-80).

27
A economia mundial no período recente

transnacionais investem maciçamente na China não só visando as exportações,


mas também o mercado interno. Parte do grande crescimento observado na eco-
nomia mundial a partir de 2003 está intimamente relacionada à expansão chi-
nesa. Embora as importações sejam cruciais para a continuidade do crescimen-
to acelerado, a China, diferentemente dos outros países da região, não depende
do mercado externo de forma tão dramática, pois possui um mercado interno
enorme, que constitui um fator importante a lhe conferir maior autonomia na
definição de sua política econômica. Dadas as dimensões do mercado potencial
da China, sua expansão poderia significar uma nova fronteira de acumulação
capaz de sustentar um novo ciclo de expansão do capitalismo mundializado.
Desde a crise asiática, o governo chinês vem enfatizando o crescimento voltado
para o mercado interno (Medeiros, 2004; Leiva, 2005; Corsi, 2006).
Esse potencial de crescimento com autonomia abre a possibilidade da Chi-
na vir a se tornar, em um futuro não muito distante, o centro da acumulação de
capital da economia mundial, embora seja cedo para afirmarmos isso e deva-
mos ver com muita cautela as previsões para o futuro, pois a história nos surpre-
ende a todo o momento, constituindo-se em um campo de possibilidades. Mas
parece existir indício consistente para afirmar que o peso econômico e político
da China estão alterando o padrão de crescimento da economia mundial que vi-
gorava desde a década de 1980 e talvez ajude a entender o vigoroso crescimento
recente.

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30
Capítulo 2

A globalização econômica:
uma leitura conjuntural e
estrutural

Rosângela de Lima Vieira

O propósito deste texto consiste em apresentar uma contribuição para as


análises do fenômeno da globalização econômica, tema presente na agen-
da do debate acadêmico e na vida cotidiana.
De início é preciso registrar a complexidade do assunto devido à sua
abrangência e a fato de estarmos imersos nele, não havendo assim as condições
ideais para uma análise mais objetiva. Mesmo assim as várias áreas do conhe-
cimento têm empreendido esforços na análise da globalização econômica. E a
história tem também uma contribuição a dar.
Diversos estudos sobre a globalização econômica estão em sintonia ou di-
vergem entre si; outros se completam e há também aqueles que se opõem fron-
talmente. Serão comentadas aqui duas abordagens divergentes; embora ambas
se oponham à analise neoliberal da globalização econômica. A divergência se
dá, em primeira instância, quanto ao corte temporal proposto ao tema.
Há interpretações conjunturais que analisam o fenômeno da economia
global como decorrente de mudanças profundas, ocorridas na segunda metade
do século XX, qualitativamente distinto, portanto, das fases anteriores do capi-
talismo. Outros estudos o vêem como um processo histórico de longa duração.
Nestes, as análises estruturais apresentam o processo de globalização como ine-
rente ao desenvolvimento capitalista.
A globalização econômica: uma leitura conjuntural e estrutural

A intenção é cotejar os elementos essenciais destas duas abordagens para


buscar compreender melhor o fenômeno na globalização econômica e verificar
se elas são necessariamente excludentes.
De início, pode-se afirmar que as interpretações conjunturais vêem a glo-
balização econômica como uma nova fase do capitalismo. É isso que comprova
algumas reflexões de Octavio Ianni:

A globalização do mundo expressa um novo ciclo de expansão do


capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório de
alcance mundial. Um processo de amplas proporções, envolvendo
nações e nacionalidades, regimes políticos e projetos nacionais,
grupos e classes sociais, economias e sociedades, culturas e civili-
zações. (...) Para reconhecermos essa nova realidade, precisamen-
te no que ela tem de novo, ou desconhecido, torna-se necessário
reconhecer que a trama da história não se desenvolve apenas em
continuidades, seqüências, recorrências. A mesma história adquire
movimentos insuspeitados, surpreendentes. Toda duração se deixa
atravessar por rupturas. (2000, p. 207).

Para Ianni as rupturas levaram o capitalismo a uma nova fase: “o capital


em geral, cada vez mais não só internacional, mas propriamente global, passa a ser
um parâmetro decisivo no modo pelo qual este mesmo capital se produz e reproduz,
em âmbito nacional, regional, setorial e mundial.” (1995, p. 58). Isto porque “sob
certos aspectos, a Guerra Fria, nos anos 1946-89, foi uma época de desenvolvimento
intensivo e extensivo do capitalismo pelo mundo.” (Idem, p. 46).
Ele caracteriza este período: “a rigor, a intensa e generalizada internaciona-
lização do capital ocorre no âmbito da intensa e generalizada internacionalização
do processo produtivo.” (Idem, p. 51-2). E

o capital financeiro parece adquirir mais força do que em qual-


quer época anterior, quando ainda se encontrava enraizado em
centros decisórios nacionais, mais ou menos subordinados ao
Estado-nação. Além da mundialização acelerada e generalizada
das forças produtivas, dos processos econômicos, da nova divi-
são internacional do trabalho, formam-se redes e circuitos in-

32
Rosângela de Lima Vieira

formatizados, por meio dos quais as transnacionais e os bancos


movem o capital por todos os centros do mundo. (Idem, p. 57).

Há outra análise que vê profundas mudanças no capitalismo, sobretudo


num período histórico ainda mais recente. François Chesnais, no livro Mundia-
lização do capital de 1996. Segundo ele

A expressão ‘mundialização do capital’ é a que corresponde mais


exatamente à substância do termo inglês ‘globalização’, que traduz
a capacidade estratégica de todo grande oligopolista, voltado para
a produção manufatureira ou para as principais atividades de ser-
viços, de adotar, por conta própria, um enfoque e conduta ‘globais’.
O mesmo vale, na esfera financeira, para as chamadas operações
de arbitragem. (Chesnais, 1996, p. 17)

Esta perspectiva finca o marco histórico da “mundialização do capital” na


recessão de 1974/1975. A crise foi superada por uma mundialização desigual das
operações industriais e financeiras. O que somente foi possível pelo esforço do
capital em romper com os empecilhos, sobretudo legais, que até então o bloque-
avam. Assim a mundialização das operações industriais e financeiras do capital
possibilitou ao capitalismo superar aquela depressão econômica.
Para Chesnais o capitalismo mundial na década de 90 apresenta as seguintes
características específicas: superação da crise com expansão, aumento da concor-
rência internacional, baixo crescimento, instabilidade, desemprego estrutural,
domínio do capital financeiro e crescimento da marginalização da periferia.
Tais abordagens conjunturais contrastam com a análise estrutural. Nesta
o fenômeno da globalização econômica constitui-se num processo histórico de
longa duração – algo em torno de 500 anos. Aqui a globalização é vista como
inerente ao processo de expansão do capitalismo desde a sua origem; e neste
caso as grandes navegações constituem-se no melhor exemplo. Portanto, é a glo-
balização um elemento estrutural da economia capitalista e conseqüentemente
as mudanças ocorridas na segunda metade do século XX fazem parte de um
mesmo e longo processo histórico.

 François Chesnais, economista é professor de economia internacional na Universi-


dade de Paris XIII.

33
A globalização econômica: uma leitura conjuntural e estrutural

Um dos autores que nos fornece elementos para esta linha interpretativa
é Fernand Braudel, o historiador das diferentes temporalidades: longa, média e
curta durações. O corte temporal para estudo é dado a partir da especificidade
de cada fenômeno histórico, isto é, seu ritmo e velocidade de mudança. Enfim,
a noção de tempo equivale ao conceito de movimento: de mudança ou de não-
mudança. Devemos ainda lembrar que para ele a análise ideal de um processo
histórico deve propor uma dialética temporal, ou seja, buscar elementos dos três
diferentes cortes temporais em cada fenômeno estudado.
A longa duração, por exemplo, apresenta-se própria daqueles fenômenos
históricos que mudam muito lentamente e por permanecerem um longo perío-
do são chamados de estruturais. Na metáfora braudeliana estes são os alicerces
de uma casa; podem ser: a distribuição das terras, uma religião, o capitalismo,
etc. São “ ciclos longos, multisseculares” e “movimentos profundos”. (Braudel,
1989b, vol. 2, p. 7-8). Para ele “... entre o passado, mesmo longínquo, e o presente
nunca há ruptura total, descontinuidade absoluta...” (Braudel, 1985, p.53).
A globalização obviamente não foi tema de suas obras, contudo elas con-
têm contribuições tanto de caráter metodológico como de conteúdo para o estu-
do deste tema, visto como fenômeno de longa duração. É possível demonstrar,
no pensamento braudeliano, que existem elementos constitutivos da globaliza-
ção econômica presentes desde a gênese do capitalismo.
O capitalismo apresenta-se desde seus primórdios mercantis como uma
economia internacionalizada, ainda antes mesmo da chamada formação dos
Estados modernos. Em diversas passagens das principais obras de Braudel: O
Mediterrâneo e o mundo mediterrânico e Civilização Material, Economia e Capi-
talismo, expressões como “unidade marítima”, “tráfego mundial” e “economia
mundial” são recorrentes.
Braudel refere-se ao comércio de longa distância, sobretudo a partir do
século XVI. Este torna-se perceptível no mundo urbano, pois

a cidade é o elemento que começa a ser francamente alheio à


economia local, que sai do seu âmbito restrito e se vincula ao
grande movimento do mundo, recebe dele as mercadorias raras,
preciosas, localmente desconhecidas e as funde por sua vez nos
mercados e lojas inferiores. (Braudel, 1996a, p. 97).

34
Rosângela de Lima Vieira

Em outras palavras, a cidade faz a ponte entre o comércio em largas pro-


porções e o consumo local. Trata-se de uma grande gama de produtos simples
ou sofisticados, cujos lucros habitualmente são muito elevados, em especial
para os atacadistas.
Também as “economias nacionais” vão sendo contaminadas pelo proces-
so de internacionalização da economia: “ cada vez menos, com é natural, ela
está, à medida que os séculos vão passando, ao abrigo de contaminações exterio-
res.” (1995b, p. 154).
Ao explicar os circuitos comerciais Braudel nos dá pistas do quanto eles
já são globais:

... a Companhia holandesa só se dá ao trabalho de conservar Ti-


mor, na Insulíndia, por causa da madeira de sândalo que lá extrai
para transformá-la em moeda de troca na China, onde é muito
apreciada; traz muitas mercadorias para a Índia, para Surate,
que troca por sedas, tecidos de algodão e sobretudo moedas de
prata, indispensáveis a seu comércio em Bengala; no Coroman-
del, onde compra tecidos, sua moeda de troca são as especiarias
das Moluscas e o cobre do Japão, de que tem a exclusividade; no
Sião muito povoado, vende grandes quantidades de tecido de Co-
romandel, quase sem lucro, mas é porque lá encontra peles de
veados procuradas pelo Japão e o estanho de Ligor de que é, por
privilégio, o único comprador e que revende na Índia e na Europa
‘com bastante lucro’. (1996a, p. 118-9).

Outro aspecto apontado pelo autor: o nível de desenvolvimento do comércio


internacional são as Balanças Comerciais. Segundo Braudel estudar caso a caso
tais balanços seria muito difícil, e mais dificultoso ainda seria a tentativa de fazer
uma análise de conjunto. No entanto o historiador alerta os leitores para o fato de
que o equilíbrio entre ativo e passivo, ou de preferência o superávit, preocupa os
europeus comprovadamente desde 1549. Era esta a melhor forma de verificar a
possibilidade de ocorrer transferência metálica, evitada por todos.
Encontra-se mais um argumento a favor da globalização econômica como
fenômeno de longa duração: o desenvolvimento das Bolsas. Lugar de papéis e
jogos financeiros, elas revelam a atividade comercial tanto em larga escala como

35
A globalização econômica: uma leitura conjuntural e estrutural

em longas distâncias, além da própria financeirização de uma parte da econo-


mia. Surgem, com outros nomes, com ou sem lugar definido, mas precocemen-
te: no Mediterrâneo a partir do século XIV, em Piza, Veneza, Florença, Gênova,
Valência e Barcelona; no século seguinte em Bruges, Antuérpia e Lyon e no XVI
em Amsterdam, Londres, Paris e Bordeaux. Assim, Braudel reitera a posição de
que “... com o século XVI, se esboça um mercado mundial...” (1996b, p. 576).
Estes são indícios claros de que o fenômeno da internacionalização da eco-
nomia encontra-se desde a gênese do capitalismo.
Há outros estudiosos que corroboram com esta interpretação. Serge Gru-
zinski ao estudar a passagem do século XV para o XVI – mais especificamente
1480/1520, observa aí as origens da globalização.

A globalização que se esboça entre o fim do século XV e o início


do século XVI corresponde a um fenômeno global de ‘desencra-
vamento’, como bem mostrou Pierre Chaunu quando propôs uma
‘problemática nova e objetiva da comunicação’. (1999, p. 97)

Trata-se do início de um processo em que algumas características são


perceptíveis: “a conquista, a colonização e a ocidentalização do mundo”. O pro-
cesso intensifica-se com o passar do tempo, acelera-se e diversifica-se porque
além de econômico é também cultural. Repousa no desenvolvimento dos meios
de transporte e de comunicação. Para Gruzinski “essa revolução da informação
gera mapas-mundi que não param de registrar os novos conhecimentos...” (Idem,
p.100).
Também para Susan Buck-Morss é preciso fazer um esforço na análise
“...dos primeiros 500 anos de globalização...” (2005, p. 415). Somente assim se
poderá compreender a realidade em que vivemos. Para ela,

De uma perspectiva de esquerda, a importância da distinção


entre duas tarefas, a crítica da economia global e a crítica de

 Serge Gruzinski, historiador, é pesquisador do Centre National de la Recherche


Scientifique, Paris, onde ocupa o cargo de diretor-adjunto do Centro de Pesquisas
sobre o México, a América Central e os Andes.
 Susan Buck-Morss – professora de filosofia política e teoria social na Cornell Uni-
versity, EUA.

36
Rosângela de Lima Vieira

como a criticamos, não pode ser superestimada. O modo de


produção está sofrendo uma mudança fundamental na relação
entre a economia, a ordem política mundial e a cultura mediada
pela tecnologia. Nossa linguagem se debate para acompanhá-la.
Certamente a longa duração do capitalismo global analisada por
Fernand Braudel e outros, estendendo-se das viagens de Colom-
bo ao presente, parece mais relevante para a nossa situação do
que a ênfase marxista clássica na industrialização. (Buck-Morss,
2005, p. 419).

Para completar a seleção de autores que mostram os elementos caracte-


rísticos do capitalismo global desde a sua origem, recorreremos ainda a Marx.
No Manifesto do Partido Comunista ele já comenta a tendência de constante
expansão do mercado capitalista: “A necessidade de um mercado em constante
expansão para os seus produtos persegue a burguesia por todo o globo terrestre.
Tem de se fixar em toda a parte, estabelecer-se em toda a parte, criar ligações em
toda a parte”. (1987, p. 37)
Também as indústrias nascentes têm características muito próximas
àquelas que conhecemos:

As primitivas indústrias nacionais foram aniquiladas, estão ain-


da dia a dia a ser aniquiladas. São desalojadas por novas indús-
trias cuja introdução se torna uma questão de vida ou de morte
para todas as nações civilizadas, por indústrias que já não traba-
lham matérias-primas nacionais, mas matérias-primas oriundas
das zonas mais afastadas, e cujos produtos são consumidos não
só no próprio país mas em todos os continentes ao mesmo tem-
po. (Idem, p. 37-8)

Os mercados consumidores e fornecedores são igualmente globais: “em


lugar das velhas necessidades, satisfeitas pelos produtos do país, surgem necessi-
dades novas que exigem para sua satisfação os produtos dos países e dos climas
mais longínquos” (Idem, p. 38).
Em outro trecho, Marx também contribui para a reflexão do processo de
globalização econômica:

37
A globalização econômica: uma leitura conjuntural e estrutural

Pelo rápido aperfeiçoamento de todos os instrumentos de pro-


dução, pelas comunicações infinitamente facilitadas, a burguesia
arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, para a civiliza-
ção. Os baixos preços das suas mercadorias são a artilharia pesa-
da com que derruba todas as muralhas chinesas, com que força
à capitulação o ódio mais obstinado dos bárbaros estrangeiros.
Compele todas as nações a apropriarem o modo de produção da
burguesia, sob pena de ruína total... (Idem, p. 38).

E ainda sobre as crises, há elementos em Marx a considerar:

E como supera a burguesia as crises? Por um lado, pela destrui-


ção forçada de uma massa de forças produtivas; por outro lado,
pela conquista de novos mercados e pela exploração mais pro-
funda de mercados velhos. (Idem, p. 40).

Como se vê no pensamento de Marx pode-se também apoiar a tese de que a


globalização econômica constitui-se num elemento estrutural do capitalismo.
Diante da exposição de argumentos das análises conjunturais e estrutu-
rais da globalização econômica, uma questão se impõe: estas abordagens são
necessariamente excludentes? Certamente elas possuem elementos em comum:
a internacionalização econômica objetivando as altas taxas de lucro; e o capi-
talismo tendo necessidade de expansão contínua, inclusive para resolver suas
crises. Contudo há também distanciamentos entre elas, não somente no corte
temporal, mas sobretudo no que diz respeito à presença ou ausência de ruptu-
ras. No que toca a este último aspecto, embora sejam perceptíveis mudanças, é
difícil caracterizá-las como rupturas profundas quando se está vivendo o pró-
prio processo histórico como é o caso do fenômeno da globalização.
A utilização apenas de uma das abordagens fornece uma visão incompleta
da globalização econômica. A análise conjuntural, por exemplo, – ao reforçar a
concepção de ruptura, ou seja, a emergência do novo – pode induzir a uma lei-
tura deste fenômeno como se não fosse resultado de um processo histórico com
suas continuidades e heranças. Assim desenraizada, a globalização econômica
identifica-se como um “salto” e assim nega permanências no movimento da his-
tória. A complexidade do fenômeno aponta para uma multiplicidade de fatores e
sujeitos que não são certamente apenas conjunturais.

38
Rosângela de Lima Vieira

Por sua vez, uma análise estrutural, isoladamente, pode transmitir a idéia
de não mudança, de uma história imóvel e sem sujeito. Um eterno continuum
em que não há nada de novo é obviamente inaceitável. Além disso, outros po-
deriam ver na análise estrutural uma leitura teleológica da história, própria da
modernidade, o que também não se apresenta mais como cabível em nosso tem-
po. Neste sentido recomenda-se lembrar que a construção do objeto de estudo
pelo historiador possui necessariamente alguns elementos como corte tempo-
ral, fontes e método de análise. O historiador com esses elementos constrói uma
interpretação lógica daquele processo histórico.
Enfim, é possível uma compreensão mais ampla do fenômeno da globali-
zação econômica a partir do diálogo entre as abordagens conjunturais e estru-
turais. Um exemplo claro é o fato de ambas contribuírem diferentemente para
o entendimento do capitalismo como um fenômeno supranacional. Enquanto
a análise estrutural mostra a internacionalização da economia capitalista an-
tes mesmo da formação de muitas das nações, a visão conjuntural demonstra
claramente o esforço das grandes transações capitalistas de se sobreporem aos
interesses dos Estados nacionais de hoje.
Portanto as abordagens da globalização econômica em conjunto podem
superar as dificuldades detectadas em cada uma delas utilizada isoladamente.
A idéia de que a globalização econômica, ainda que presente desde a gênese do
capitalismo, seja entendida como uma “lei natural” do capitalismo, como vi-
mos, deve ser recusada. Também negar a existência de elementos análogos à
globalização na conjuntura atual, nos séculos iniciais do desenvolvimento capi-
talista seria um desconhecimento histórico. Assim, uma concepção do processo
histórico com continuidades de longa duração e com mudanças conjunturais
parece mais adequada, além de ser mais profícua à complexidade do momento
em que vivemos.

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40
Capítulo 3

O impacto da presença
chinesa sobre o comércio
internacional da
América Latina:
2000-2005 (Venezuela, Argentina e Brasil)

Marcos Cordeiro Pires

Introdução

Na última década, a comunidade internacional vem se deparando com


uma série de notícias sobre o crescimento da participação da República Popular
da China - RPC na economia mundial. De fato, o crescimento médio anual do
Produto, da ordem de 10% nos últimos 25 anos, impressiona por si só. A RPC
tornou-se o terceiro maior “trader” do mundo, atrás de Estados Unidos e Ale-
manha e, ao suplantar a França e a Inglaterra, ascendeu à condição de quarta
economia do planeta. Por conta disso, a RPC já é hoje o maior importador das
principais commodities agrícolas e industriais, excetuando o petróleo, quando
perde para os Estados Unidos.

 Ver: “China ultrapassa EUA como maior consumidor mundial”. BBCBrasil.com. Dis-
ponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2005/02/050217_
chinaeuacg.shtml. visitado em 17/02/2005.
O impacto da presença chinesa sobre o comércio internacional da América Latina:
2000-2005 (Venezuela, Argentina e Brasil)

A diplomacia chinesa tem se esforçado para equiparar a influência política


mundial da RPC ao seu peso econômico. Beijing entrou definitivamente no circui-
to das visitas internacionais de inúmeros chefes de Estado. Os grandes temas que
perturbam a ordem mundial têm na RPC um importante interlocutor. Por outro
lado, Hu Jintao, assim como seu antecessor Jiang Zemin, tem feito diversos giros
pelo mundo. Além de uma questão vital para a política interna chinesa - a afir-
mação do princípio de uma única China e a tentativa de isolar Taiwan e arrefecer
seus ímpetos autonomistas - as delegações chinesas buscam ampliar as relações
comerciais em áreas distantes de sua natural influência, como é o caso da América
do Sul, com vistas a assegurar as bases de seu desenvolvimento econômico.
Em novembro de 2004, o presidente Hu Jintao visitou o Brasil, o Chile, a
Argentina e Cuba. Da mesma forma, os dirigentes Lula da Silva, do Brasil, e Nes-
tor Kirschner, da Argentina, também visitaram a RPC. Naquele ano foram assi-
nados, pelos governos de Brasil e China, 39 convênios de cooperação nas áreas
de comércio, investimentos, aviação, pesquisa espacial, turismo e educação.
A ampliação da presença chinesa tem se refletido de maneira expressiva na
América Latina. As exportações da região para a RPC saltaram de US$ 3 bilhões,
em 1999, para US$ 21,7 bilhões em 2004. Já as exportações chinesas para a região
avançaram de US$ 5,3 bilhões, em 1999, para US$ 18,3 bilhões em 2004. Apesar
de as estatísticas para o ano de 2005 ainda não estarem disponíveis para toda a re-
gião, tudo leva a crer o incremento comercial continuou em forte ritmo nesse ano,
conforme se pode depreender dos dados comerciais brasileiros. Neste particular,
o incremento das exportações saltou de US$ 381 milhões, em 1990, para US$ 1,1
bilhão em 2000, US$ 5,4 bilhões, em 2004 e US$ 6,8 bilhões em 2005. Já as impor-
tações saltaram de US$ 120 milhões, em 1990, para US$ 1,2 bilhão em 2000, US$
3,7 bilhões, em 2004 e US$ 5,3 bilhões. A China se converteu no segundo maior
parceiro comercial do Peru, o terceiro do Chile, com quem, aliás, assinou recen-
temente um tratado de livre comércio-TCL. Nos casos do Brasil e da Argentina, a
China converteu-se rapidamente no quarto parceiro comercial.
É importante ressaltar que do ponto de vista econômico, a América do
Sul tem uma importância marginal no fluxo de comércio chinês, que concentra
seus negócios com a Ásia, União Européia e Estados Unidos. Entretanto, para os

 “Diplomacia china en 2004 se desarrolla girando en torno a construcción econômi-


ca”. Disponível em: http://spanish.peopledaily.com cn//31621/3089868.html. Visi-
tado em 25/08/2005.

42
Marcos Cordeiro Pires

países da região, a demanda chinesa tem um peso muito significativo. Do pon-


to de vista político, particularmente no que tange às negociações no âmbito da
OMC, a RPC tem cerrado fileiras com países em desenvolvimento, como Brasil
e Argentina, para pressionar os países industrializados a flexibilizar políticas
protecionistas no setor agropecuário.
Um outro aspecto que chama atenção diz respeito à participação de in-
vestimentos diretos chineses na região. Conforme salientado, o fluxo comercial
com a América Latina representar apenas 3,5% do total da RPC. No entanto, a
região se tornou o segundo principal destino do investimento direto chinês.
Nesse quesito a região só é suplantada pela Ásia, que recebe 49,2% dos inves-
timentos, enquanto que a América Latina participa com 34,9%. As inversões
chinesas estão relacionadas aos setores comercial, de serviços, manufaturas,
mineração e à produção de insumos industriais. Também abrangem os setores
varejistas e atacadistas, transporte e serviços postais.
A influência da RPC na América do Sul tem causado certa inquietação nos
círculos de poder dos Estados Unidos, tradicional potência hegemônica na região.
De acordo com Peter Hakim, presidente do Inter-American Dialogue, nunca as
relações entre os Estados Unidos e os países latino-americanos estiveram num
ponto tão baixo desde o fim da Guerra Fria. As preocupações com as questões
de segurança, na visão dele, fizeram com que a América Latina deixasse de ser
prioridade na visão dos administradores de Washington. Uma das principais de-
corrências deste fato foi o aumento da presença da RPC na região. Por conta disso,
assinalam Dumbaugh & Sullivan, a política exterior dos Estados Unidos terá que
lidar não só com os chamados líderes “populistas” como o presidente venezuelano
Hugo Chavez, mas também com a potencial ameaça chinesa.
Tendo essas questões como pano de fundo, o objetivo deste artigo é o
de refletir sobre o impacto da presença chinesa, por meio do comércio inter-

 América Latina se erige como segundo destino de las inversiones directas no finan-
cieras de China. Agência Xinhua. Disponível em: http://www.spanish.xinhuanet.
com/spanish/2006-04/26/content_246145.htm. Acessado em: 01;05;2006.
 Ver Kerry Dumbaugh; Mark P. Sullivan,. “China’s Growing Interest in Latin Ameri-
ca”. Washington-DC. CRS Report for Congress. Order Code RS22119, April 20, 2005.
Disponível em: http://www.uspolicy.be/issues/china/china_usgreports.asp. visita-
do em 11/11/2005 e Peter Hakim. “Is Washington Losing Latin America?”. Foreign
Affairs. January/February 2006.

43
O impacto da presença chinesa sobre o comércio internacional da América Latina:
2000-2005 (Venezuela, Argentina e Brasil)

nacional, na economia dos países sul-americanos, particularmente do Brasil,


Argentina, Venezuela. A escolha de tais países obedece aos seguintes critérios:
(a) peso econômico na região (Brasil e Argentina) e (b) aspectos políticos-estra-
tégicos (Venezuela).
A hipótese central deste trabalho é que as relações comerciais entre a
América do Sul e a RPC podem configurar riscos ou oportunidades de acordo
com a forma que cada país queira se inserir na economia mundial. Particular-
mente o Brasil, e em menor escala a Argentina, a estrutura econômica é bastan-
te diversificada, convivendo setores exportadores de commodities (matérias-
primas e alimentos) com um complexo parque industrial local que apresenta
diferentes graus de produtividade. Neste caso, enquanto que o comércio com
a RPC viabiliza ganhos no setor exportador de commodities, a oferta chine-
sa constitui uma séria ameaça para setores da indústria manufatureira, não só
aqueles intensivos em mão-de-obra (calçados, têxteis, confecções, brinquedos
etc.), como também para setores com maior componente tecnológico, como os
complexos eletro-eletrônico, de bens de capital e automotivo. No entanto, para
países onde a indústria local é residual e em que a produção de bens primários
é preponderante, como a Venezuela, Chile e outros países sul-americanos, o co-
mércio com a RPC reveste-se de oportunidade para a pulverização de mercados
e o conseqüente barateamento do custo de vida local por conta das importações
de bens de consumo.

 Tal ameaça vale tanto para a competição no mercado local como para terceiros
mercados, já que produtores instalados no Brasil concorrem com os chineses nos
mercados norte-americano e europeu.
 É importante frisar que Chile e Venezuela tiveram, durante o século XX, trajetórias
bastantes distintas, apesar de se configurarem como exportadores de matérias-pri-
mas (cobre o primeiro, petróleo o segundo). O Chile, pelo menos até 1973, foi um
dos países da região que mais avançou no processo de industrialização por substi-
tuição de importações, enquanto que a Venezuela negligenciou a montagem de uma
estrutura industrail mais ampla por conta das receitas obtidas com a exportação
de petróleo. O Chile, após o golpe de 11 de setembro de 1973, trilhou o caminho da
desindustrialização, priorizando a exportação de minérios e de artigos do chamado
“agronegócio”, enquanto que a Venezuela ensaiou um processo de modernização
após o Primeiro Choque do Petróleo, cujos resultados não permitiram ao país dimi-
nuir sua dependência do setor petrolífero.

44
Marcos Cordeiro Pires

Levando em consideração que as repercussões do nosso objeto de pesqui-


sa ainda estão por ocorrer, dado que os fatos são muito recentes, poucos autores
se debruçaram sobre este tema, tornado esta pesquisa muito mais um ponto de
partida para reflexões ulteriores do que um ponto de chegada. Na fase de levan-
tamento de dados procurou-se extrair agregados macroeconômicos, principal-
mente aqueles ligados ao desempenho do Produto e ao intercâmbio comercial,
junto a fontes oficiais. O embasamento factual foi feito a partir de publicações de
imprensa e “press releases” de órgãos governamentais.
O texto está organizado em duas partes. Na primeira, procura-se traçar uma
visão de abrangente (e logo superficial) do desempenho do comércio exterior chi-
nês no período em tela (2000-2005) e na segunda parte descreve-se o incremento
do intercâmbio comercial de Venezuela, Argentina e Brasil com a RPC, analisando
o volume do comércio e a pauta de mercadorias transacionadas.

1. O Comércio Exterior da RPC

Apesar de possuir grande importância para os países da América do Sul, o in-


tercâmbio comercial entre estes e a RPC tem um peso relativamente pequeno para
o segundo. A tabela 1, a seguir, descreve os principais parceiros comerciais da RPC.
É importante ressaltar que o grupo selecionado representa 83,4% das exportações e
72,3% das importações. Apesar de ser um grande importador de artigos chineses, os
Estados Unidos tem uma participação relativamente pequena no que diz respeito às
vendas para aquele mercado, apenas 7,4%, assim como a região autônoma de Hong
Kong, com 1,8%.
Nota-se a importância da Ásia no comércio exterior chinês. Os vizinhos
do eixo Índico-Pacífico consomem 43,14% das exportações chinesas e são res-
ponsáveis pelo abastecimento de 53,8% dos bens importados. Quanto à Améri-
ca Latina, apesar de se valer de dados estimados, sua importância na balança
comercial chinesa é residual, ao representar 3,5% das exportações e 4,1% das
importações daquele país.

 Merece destaque o estudo publicado pelo BID: CESARIN, Sergio; MONETA, Carlos
(ORG.). China e América Latina: nuevos enfoques de cooperación y desarrollo. Una
segunda Ruta de la Seda? Buenos Aires: BID/INTAL, 2005.

45
O impacto da presença chinesa sobre o comércio internacional da América Latina:
2000-2005 (Venezuela, Argentina e Brasil)

Tabela 1 – Maiores parceiros comerciais da Rep. Popular da China em 2005. Em 100


milhões de US$
Pais ou Região Exportações Participação Importações Participação
Estados Unidos 162,9 21,4% 48,7 7,4%
União Européia 143,7 18,9% 73,6 11,1%
Hong Kong, China 124,5 16,3% 12,2 1,8%
Japão 84,0 11,0% 100,5 15,2%
ASEAN (1) 55,4 7,3% 75,0 11,4%
Coréia do Sul 35,1 4,6% 76,8 11,6%
Taiwan 16,5 2,2% 74,7 11,3%
Rússia 13,2 1,7% 15,9 2,4%
Total do Grupo 635,3 83,4% 477,4 72,3%
América Latina (2) 26,4 3,5% 27,1 4,1%
Total Geral 762,0 100,0% 660,1 100,0%

Fonte: Statistical Communiqué of the People’s Republic of China on the 2005 National Economic and Social
Development. National Bureau of Statistics of China. February 28, 2006. Disponível em: http://www.stats.gov.
cn/english/newsandcomingevents/t20060302_402308116.htm. Acessado em 18/mar/2006.
(1) Associação dos Países do Sudeste Asiático, que engloba, entre outros, Filipinas, Indonésia, Malásia, Tailândia,
Vietnam e Singapura.
(2) Estimativa. Toma-se por base o índice do incremento do intercâmbio entre Brasil e RPC em 2005. No caso,
25,2% para as exportações e 44,27% para as importações.

Outro aspecto a ser analisado sobre o comércio exterior, diz respeito à pauta
comercial da RPC. De acordo com a tabela 2, o país constitui um importante mer-
cado tanto para bens primários, notadamente matérias-primas, como para bens
industrializados, com destaque para equipamentos e materiais de transporte.
Outro aspecto relevante está no incremento do comércio, em termos gerais. Nes-
se ano, a RPC apresentou um crescimento de 28,4% nas exportações e 17,6% nas
importações. Quando se analisa cada uma das principais categorias, verifica-se
um maior aumento nas importações de bens primários (26,8%) do que de bens
manufaturados (15,4%). O inverso ocorre na pauta de exportação: enquanto que
as vendas de bens manufaturados subiram 29%, as vendas de bens primários su-
biram apenas 20,9%.

46
Marcos Cordeiro Pires

Tabela 2 - República Popular da China – Pauta de Exportação e Importação - Varia-


ção sobre o ano anterior – 2005 (em 100 milhões de dólares)
Variação Variação
Categorias Exportação Importação
2004/05 2004/05
I - Produtos Primários 490,4 20,9 1.477,1 26,0
0. Produtos Alimentícios e Ani-
224,8 19,2 93,9 2,6
mais Vivos
1. Bebidas e Tabaco 11,8 (2,5) 7,8 42,8
2. Produtos não-alimentícios
74,9 28,1 702,1 26,8
(excluindo óleos)
3. Óleos minerais, lubrificantes e
176,2 21,7 639,6 33,3
matérias-primas
4. Óleos vegetais e animais,
2,7 80,8 33,7 (20,0)
gorduras e ceras
II – Bens Manufaturados 7.129,0 29,0 5.124,1 15,4
5. Produtos Químicos Acabados e
357,7 35,7 777,4 18,7
Indústrias Conexas
6. Produtos Acabados Classifica-
1.291,3 28,3 811,6 9,7
dos por matérias-primas
7. Maquinários e Equipamentos
3.522,6 31,3 2.906,3 14,9
de Transportes
8. Outros Produtos 1.941,9 24,2 608,7 21,4
9. Mercadorias sem
16,1 44,6 20,1 31,4
classificação
Total 7.620,0 28,4 6.601,2 17,6

Fonte: Network Center of MOFCOM-China. Disponível em: http://english.mofcom.gov.cn/aarticle/statistic/


ie/200603/20060301696922.html. Acessado em 18/mar/2006.

47
O impacto da presença chinesa sobre o comércio internacional da América Latina:
2000-2005 (Venezuela, Argentina e Brasil)

Tabela 3 – República Popular da China – Pauta de Exportação e Importação - Parti-


cipação de cada rubrica no total – 2005 (em 100 milhões de dólares)
Categorias Exportação Par Tot. Importações Par Tot.
I - Produtos Primários 490,4 6,44% 1.477,1 22,38%
0. Produtos Alimentícios e Ani-
224,8 2,95% 93,9 1,42%
mais Vivos
1. Bebidas e Tabaco 11,8 0,15% 7,8 0,12%
2. Produtos não-alimentícios
74,9 0,98% 702,1 10,64%
(excluindo óleos)
3. Óleos minerais, lubrificantes e
176,2 2,31% 639,6 9,69%
matérias-primas
4. Óleos vegetais e animais, gor-
2,7 0,04% 33,7 0,51%
duras e ceras
II - Bens Manufaturados 7.129,0 93,56% 5.124,1 77,62%
5. Produtos Químicos Acabados
357,7 4,69% 777,4 11,78%
e Indústrias Conexas
6. Produtos Acabados Classificados
1.291,3 16,95% 811,6 12,29%
por matérias-primas
7. Maquinários e Equipamentos
3.522,6 46,23% 2.906,3 44,03%
de Transportes
8. Outros Produtos 1.941,9 25,48% 608,7 9,22%
9. Mercadorias sem classificação 16,1 0,21% 20,1 0,30%
Total 7.620,0 100,00% 6.601,2 100,00%

Fonte: Network Center of MOFCOM-China. Disponível em: http://english.mofcom.gov.cn/aarticle/statistic/


ie/200603/20060301696922.html. Acessado em 18/mar/2006.

Quando se analisa a participação de cada rubrica na pauta comercial (ta-


bela 3), nota-se que a RPC tem cada vez mais se especializado na exportação de
bens manufaturados (93,56%) do total, enquanto que as vendas de bens pri-
mários representam apenas 6,44%. O grande nível de produção chinesa se evi-
dencia pela expressiva participação de matérias-primas e combustíveis na pauta
total (20,33%) e também de maquinários e equipamentos industriais (44,03%),
o que dá certa medida do chamado “consumo produtivo”.
Nesse contexto, particularmente no que tange às suas relações comerciais
com a América do Sul, a China se caracteriza como um país “industrializado”
enquanto que os sul-americanos podem ser caracterizados como “primário-ex-

48
Marcos Cordeiro Pires

portadores”, numa situação bastante similar à divisão internacional que precedeu


à Depressão dos anos (19)30. Vejamos a seguir com se dão estas relações ao consi-
derar Venezuela, Argentina e Brasil.

2. O intercâmbio comercial entre a América do Sul e a RPC

Nesta seção serão abordados aspectos da evolução do intercâmbio comer-


cial entre países selecionados da América do Sul e a RPC. Serão analisados, pela
ordem, Venezuela, Argentina e Brasil.

2.1 A Venezuela e a República Popular da China

Quando se volta a atenção para as relações entre China e Venezuela, pode-se


notar dois tipos de interesse. Em primeiro lugar, o governo de Hugo Chavez busca
respaldo político frente à ameaça representada pela atual administração norte-
americana. Ainda estão abertas as feridas provocadas pela tentativa frustrada de
golpe militar, em abril de 2002, na qual o apoio do governo dos EUA esteve patente.
Levando-se em consideração a dependência recíproca entre a Venezuela e os EUA
no mercado de petróleo (o maior mercado para o primeiro e um dos principais
fornecedores para o segundo), as rusgas políticas poderiam levar a uma situação
extrema (seja o boicote, seja uma intervenção militar) . Diante disso, o governo ve-
nezuelano procura ampliar suas relações com outras potências, como a Rússia e a
própria RPC, buscando respaldo político contra eventuais retaliações norte-ame-
ricanas. Não obstante, caso o mercado dos EUA se feche ao petróleo venezuelano
(algo pouco provável num momento de forte procura pelo produto), a Venezuela
teria um novo mercado cativo para sua produção. Nesse processo, o petróleo tor-
na-se peça-chave.

 É interessante observar que nem mesmo a disputa política entre Caracas e Washing-
ton refreou o intercâmbio comercial entre os países. Entre 2003 e 2005 o intercâmbio
comercial cresceu 103,2%, particularmente com a oferta de petróleo por parte da
Venezuela. Ver: GROOSCORS, Rafael E. Informe sobre el comportamiento de inter-
cambio comercial de Venezuela con el resto del mundo. VENAMCHAM. Disponível
em: http://www.venamcham.org/Zip/IC.pdf. Acessado em 22/04/2006.

49
O impacto da presença chinesa sobre o comércio internacional da América Latina:
2000-2005 (Venezuela, Argentina e Brasil)

Do ponto de vista da RPC, conforme assinalamos anteriormente, uma das


principais preocupações de sua diplomacia é a de viabilizar o seu próprio pro-
cesso de desenvolvimento, em que as matérias-primas têm um papel primor-
dial. A manutenção de taxas de crescimento do Produto próximas a 10% a.a.
requer um grande volume de matérias-primas, particularmente o suprimento
de petróleo. Além disso, como grande produtor de bens manufaturados, a RPC
tende a ampliar seus mercados consumidores, mesmo em áreas periféricas,
como a América do Sul. Em relação a este último aspecto, é interessante notar
que a RPC foi, em 2005, a origem de US$ 742 milhões de importações por parte
da Venezuela, colocando-se em sexto lugar, logo atrás de EUA, Colômbia, Brasil,
México e Japão.
Da análise desses dois agregados macroeconômicos da República Boliva-
riana de Venezuela, nota-se a grande dependência que este país tem de seu prin-
cipal produto de exportação, o petróleo. É particularmente no setor petrolífero
em que as relações entre Venezuela e RPC tendem a se aprofundar. Um acordo
assinado entre a Petróleos de Venezuela – PDVSA e a Companhia de Petróleo e
Gás Natural da China – CNOOC, empresa estatal chinesa encarregada do abas-
tecimento interno de derivados de petróleo, em 18 de junho de 2005, acordou a
venda de 30.000 barris diários de petróleo para a RPC. Antes disso, em dezem-
bro de 2004, quando o presidente Hugo Chavez visitou a China, foram firmados
acordos de concessão de exploração de jazidas de petróleo e gás natural vene-
zuelanos à empresas chinesas, particularmente à China Petroleum & Chemical
Corporation - SINOPEC, outra empresa estatal chinesa do setor encarregada do
suprimento de óleo bruto.
Em visita à RPC, em agosto de 2005, o ministro venezuelano Rafael Ra-
mírez ratificou os acordos negociados pelo presidente Hugo Chavez, e estabe-
leceu uma série de compromissos entre ambos os países no setor de petróleo.
Além da abertura de um escritório da PDVSA em Beijing, foram especificados
os blocos de exploração nos quais joint-ventures sino-venezuelanas atuariam.
Também foi mencionada a construção de um oleoduto para escoar a produção

 A esse respeito ver: Venezuela exporta a China millones de barriles de petró-


leo para la producción de asfalto. Disponível em: http://spanish.people.com.
cn/31617/3486022.html. Acesado em 23/11/2005.

50
Marcos Cordeiro Pires

pelo oceano pacífico. Naquele momento, o potencial de exportações de petróleo


venezuelano para a RPC em 300 mil barris diários10.

2.2 A República Argentina e RPC

As relações entre a Argentina e a China apresentaram notável desenvol-


vimento nos últimos cinco anos. Entre 2000 e 2004 o volume do intercâmbio
(exportações + importações) cresceu 98%. A troca de visitas entre Nestor
Kirschner, presidente a República Argentina e Hu Jintao, em 2004, são sinais do
aumento do intercâmbio entre os países. Nesse período, a economia argentina
sofreu bruscas mudanças por conta da débâcle econômica que acompanhou a
desvalorização do peso, o corralito e a moratória de sua dívida externa. Confor-
me veremos amais adiante, essa crise se refletiu diretamente sobre o desempe-
nho da relação comercial entre ambos os países.
Durante os anos (19)90, a economia argentina experimentou as receitas li-
beralizantes preconizadas pelo “Consenso de Washington”. Câmbio valorizado
e atrelado por lei ao dólar norte-americano, abertura comercial, privatizações,
desregulamentação etc., caracterizaram a conjuntura daquele país durante o
governo de Carlos Saul Menem. Durante a década passada a Argentina foi to-
mada por “aluna exemplar” pelas organizações econômicas multilaterais. O ex-
chanceler Guido Di Tella chegou mesmo a relatar as relações de seu país com
os Estados Unidos como “carnais”, fruto da sintonia entre Carlos Menem, Bill
Clinton e a comunidade financeira internacional.
No entanto, a combinação de câmbio valorizado, desindustrialização, défi-
cit nas transações correntes e o financiamento deste déficit com capitais de curto
prazo fragilizaram a economia. As sucessivas crises financeiras dos anos (19)90
minaram a combalida economia do país. O governo de Fernando De La Rua não
conseguiu reverter a situação herdada de Menem, ao contrário, no momento mais
agudo da crise buscou o artífice da política econômica de seu antecessor, Domingo
Cavallo, para tentar reverter a situação. De acordo com Cavallo, a crise não era

10 Ver: Ministro Rafael Ramírez culmina visita oficial a Beijing.Venezuela y Chi-


na fortalecen relaciones estratégicas en el área de hidrocarburos. Disponível
em: http://www.pdvsa.com/index.php?tpl=interface.sp/design/salaprensa/readnew.
tpl.html&newsid_obj_id=529&newsid_temas=1. Acessado em 18/02/2006.

51
O impacto da presença chinesa sobre o comércio internacional da América Latina:
2000-2005 (Venezuela, Argentina e Brasil)

decorrente da política de liberalização, mas ao contrário, da pequena dose em que


ela foi aplicada. O agravamento da crise levou à sua derrubada e o país à beira
do colapso, tanto por conta do bloqueio da poupança da classe média como pelos
elevados níveis de falência e desemprego. De la Rua e Cavallo saíam pela porta dos
fundos da Casa Rosada, enquanto que na frente do palácio milhares de pessoas
pressionavam pela queda do governo.
Esta conjunção de políticas internas pouco eficientes com a reversão no qua-
dro internacional, particularmente após o estouro da bolha especulativa no mercado
acionário dos Estados Unidos, as crises corporativas e ainda os atentados de 11 de
setembro de 2001, levaram a economia argentina a um período de grande instabi-
lidade. Somente no segundo trimestre de 2004, já sob o governo Kirschner, é que o
Produto argentino conseguiu retornar ao nível do segundo trimestre de 2001, reflexo
de um duro programa de ajuste que passou pela flexibilização do câmbio, morató-
ria e posterior renegociação da maior parte da dívida externa, políticas industriali-
zantes e maior presença do setor público na economia. Fator determinante para a
retomada da economia foi o bom desempenho do setor externo, resultado tanto da
desvalorização cambial quanto do aumento da demanda internacional de commo-
dities, cujos preços subiram, entre outros fatores, em decorrência da forte demanda
chinesa por alimentos e matérias-primas.
Quando se observa o gráfico 1, percebe-se que entre 2000 e 2002 as im-
portações tiveram uma brusca queda. Isto se deve à conjunção de dois fatores: a
desvalorização cambial, que reduziu em 66% o poder de compra do peso argen-
tino e a forte recessão interna. A partir de 2003, graças à recuperação econômica
e ao aumento das exportações, a Argentina pôde sua capacidade de compra no
exterior.

52
Marcos Cordeiro Pires

Gráfico 1 – Argentina: Exportações e Importações – 2000-2005 (em bilhões de US$)

Fonte: Centro de Economia Internacional. Séries disponíveis em: http://www.cei.gov.ar/estadistica/internac.


htm. Acessado em 01/05/2006.

A tabela 4 oferece uma visão geral da pauta comercial argentina, em 2005,


e identifica os segmentos em que o país foi superavitário (bens primários) e de-
ficitário (produtos manufaturados de maior componente tecnológico). Mantida
esta tendência para os anos seguintes, a produção industrial argentina pode ser
comprometida pela concorrência externa.
Quando se analisa o intercâmbio comercial entre Argentina e China, en-
tre 2000 e 2004, verifica-se um grande incremento (Gráfico 2). As exportações
tiveram um desempenho ascendente, ao crescer 210% no período. Já as impor-
tações tiveram um desempenho errático, pois entre 2000 e 2002 ocorreu um
decréscimo de aproximadamente 72%. Após a desvalorização do peso e do forte
crescimento do PIB, verificou-se uma forte elevação. Entre 2002 e 2004 o volume
importado cresceu 310%.

53
O impacto da presença chinesa sobre o comércio internacional da América Latina:
2000-2005 (Venezuela, Argentina e Brasil)

Tabela 4 – Argentina: Balança Comercial por Tipo de Mercadoria. 2005 (em milhões
de US$)
2004*
Seccion de la nomenclatura arancelaria Exportación Importación
Saldo
FOB CIF
Total 34.550 22.445 12.105
Productos minerales 6.582 1.251 5.330
Productos de la industrias alimentarias, bebi-
5.443 308 5.135
das, vinagre, tabaco y sucedáneos
Productos del reino vegetal 5.493 388 5.106
Grasas y aceites 3.156 40 3.116
Animales vivos e productos del reino animal 2.515 104 2.411
Pieles, cueros y manufacturas 939 72 868
Metales comunes y sua manufactura 1.707 1.463 244
Madera, carbón vegetal, manufacturas de ma-
277 112 165
dera, corcho y de esparteria o cestaria
Perlas finas e cultivadas 142 30 112
Armas y municiones 9 6 4
Objetos de arte, de colección y antigüedades 3 1 2
Mercancias y productos diversos 215 280 -65
Manufacturas de piedra, yeso, cemento, simi-
125 208 -83
lares y manufacturas de vidro
Calzado 21 155 -134
Pasta de madera, desperdicios de papel y
484 663 -180
cartón
Materias textiles e sus manufacturas 463 761 -299
Instrumentos y aparatos de óptica, fotografia,
127 517 -389
cinematografia y sus accessorios
Plástico, caucho y sus manufacturas 1.128 1.640 -512
Material de transporte 2.103 3.616 -1.513
Productos de las industrias químicas y conexas 2.147 4.223 -2.086
Máquinas y aparatos, material eléctrico 1.058 6.361 -5.303
Transacciones especiales 414 238 176

* datos provisorios
Fonte: Elaborado a partir de IDEC. Disponível em http://www.indec.mecon.ar/default.htm. Acessado em
01/05/2006.

54
Marcos Cordeiro Pires

Gráfico 2 – Argentina x RPC: Intercâmbio Comercial – 2000-2004. Em milhões de US$.

Fonte: INDEC. Disponível em: http://www.indec.mecon.ar/default.htm. Acessado em 30/04/2006.

Quando se detém na composição da pauta comercial bilateral, constata-se


que se matem as mesmas características da pauta geral. Os principais artigos
argentinos de exportação, em 2004, foram grãos oleaginosos (notadamente
soja) óleos vegetais e animais, combustíveis, graxas e óleos minerais, couro e
peles, minerais metálicos, pasta de madeira etc. Essas rubricas foram respon-
sáveis por aproximadamente 90% das exportações argentinas para a RPC . Por
sua vez, as importações oriundas da RPC, em 2004, ficaram concentradas em
segmentos de maior valor agregado, pela ordem: máquinas, artefatos e aparatos
mecânicos; máquinas, aparatos e material eletrônicos; produtos químicos or-
gânicos; jogos eletrônicos; instrumentos e aparatos de óptica e fotografia. Estas
cinco rubricas representaram naquele ano em torno de 67% das importações
vindas da RPC11.

11 A respeito das relações entre Argentina e China, ver: “Comércio bilateral Argentina-
China”. Centro de Estudios para la Producción, Secretaría de Industria, Comercio y
Pyme- Ministerio de Economía y Producción, Abril de 2005. Disponível em: http://
www.industria.gov.ar/cep/pancomexterior/actualidad%20comex/combi_arg_chi-
na.pdf.

55
O impacto da presença chinesa sobre o comércio internacional da América Latina:
2000-2005 (Venezuela, Argentina e Brasil)

2.3 O intercâmbio comercial entre Brasil e a RPC

A economia brasileira apresentou um movimento errático desde a crise da


dívida externa, no começo da década de (19)80 até a primeira metade desta dé-
cada. As flutuações do PIB apresentaram um padrão stop-and-go, ou seja, cur-
tos períodos de crescimento do PIB acompanhados por períodos de estagnação.
As reformas liberalizantes implementadas nos anos (19)90, patrocinadas pelas
instituições financeiras internacionais, não lograram êxito em superar esse es-
tancamento e conferir um padrão de crescimento similar àquele verificado no
período 1930-1980 ou mesmo aquele ocorrido no Extremo Oriente, entre 1980 e
2000. Em termos per capita, a renda brasileira está estagnada desde 1980.
Do ponto de vista do setor externo, após um período de déficit (1995-
1999), decorrentes das mencionadas políticas liberalizantes, a balança comer-
cial apresentou uma contínua melhoria entre 2000 e 2005, quando as exporta-
ções praticamente dobraram, como se pode observar no gráfico 3. Para tanto,
contribuíram fatores como a recuperação da economia mundial, o generalizado
aumento do preço de commodities e a elevada demanda chinesa que, aliás, será
tratada a seguir.

Gráfico 3 – Brasil- Balança Comercial – 1995-2005 (em milhões de US$)

Fonte: BCB Boletim/BP - BPN_SBC. Disponível em: www. ipeadata.gov.br. Acessado em 23/04/2006.

56
Marcos Cordeiro Pires

As relações diplomáticas e comerciais entre o Brasil e a RPC foram con-


dicionadas pelo contexto da Guerra Fria. Somente após o restabelecimento das
relações entre Estados Unidos e RPC, em 1972, e a substituição de Taiwan pela
RPC nas Nações Unidas, foi que o Brasil estreitou laços com o governo daquele
país. Isto pode ser comprovado pela grande lista de protocolos e acordos assina-
dos pelos governos de Brasília e Beijing, que abrangem os campos de economia
e comércio, transporte marítimo, aviação, ciência e tecnologia, uso pacífico de
energia nuclear, cultura e educação12.
Em que pese uma série de acordos bilaterais, as relações comerciais entre
Brasil e RPC se desenvolveram com maior força entre 2000 e 2005, conforme se
pode verificar pela leitura da tabela 5. No período em tela, as exportações brasi-
leiras para a RPC subiram 529%, enquanto que as importações oriundas da RPC
cresceram 337%. Quando se observa o volume transacionado vis-a-vis ao valor
total, verifica-se que o valor unitário (em quilos) das mercadorias brasileiras é
bastante inferior ao das mercadorias chinesas: em 2000 a diferença em favor das
mercadorias chinesas era de 10 vezes superior às brasileiras; em 2005, esta dife-
rença subiu para 21 vezes. De certa forma, isto reflete o grau de desenvolvimento
chinês em segmentos de maior valor agregado, particularmente no segmento de
eletro-eletrônicos. Mais adiante poderá ser verificado que esta discrepância é
ainda maior, quando se abre a pauta comercial.

Tabela 5 – Brasil: Intercâmbio comercial com a República Popular da China – 2000-2005


EXPORT PESO VAL/PES IMPORT PESO VAL/PES SALDO
ANO
US$ Kg US$/Kg US$ Kg US$/Kg US$
2000 1.085.223.878 17.836.673.207 0,061 1.222.294.377 1.963.394.279 0,623 -137.070.499

2001 1.902.093.617 32.813.986.471 0,058 1.328.094.257 2.705.159.656 0,491 573.999.360

2002 2.520.457.098 40.756.615.348 0,062 1.554.012.240 4.488.904.540 0,346 966.444.858


2003 4.532.559.799 52.362.027.981 0,087 2.147.634.974 4.800.284.843 0,447 2.384.924.825
2004 5.439.956.312 64.062.355.426 0,085 3.710.476.817 2.828.509.022 1,312 1.729.479.495
2005 6.833.668.267 72.560.245.308 0,094 5.353.261.623 2.706.674.598 1,978 1.480.406.644

Fonte: Elaborada a partir de: Brasil - Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. SECEX. Dados dis-
poníveis em http://www.desenvolvimento.gov.br.

12 A relação de acordos firmados entre Brasil e RPC desde 1975 até 2000 pode ser con-
sultada em: Embaixada da República Popular da China no Brasil. Disponível em:
http://www.embchina.org.br/por/zbgx/t150683.htm. Acessado em 18/03/2006.

57
O impacto da presença chinesa sobre o comércio internacional da América Latina:
2000-2005 (Venezuela, Argentina e Brasil)

É importante observar que apenas em 2000 a balança comercial foi favorá-


vel à RPC. Nos demais anos da série, verifica-se um superávit brasileiro, se bem
que decrescente a partir de 2004. Um dos fatores que seguramente influenciou
nesta situação foi a grande apreciação da moeda brasileira frente ao dólar ao
longo deste período, em que passou da média de R$ 3,50, em 2003, para a média
de R$ 2,40, em 2005. A seguir será feita uma análise da pauta comercial entre
ambos os países.
Quando se faz a análise das exportações em 2005 (Tabela 6) constata-se que
a economia brasileira tem um papel complementar para a economia chinesa ao
fornecer alimentos, minérios e matérias-primas industriais. Particularmente o
complexo soja reponde sozinho por 27,12% das exportações, seguido pelos mi-
nérios de ferro, com 26,13% e óleos brutos de petróleo, com 7,93%. Além disso,
nota-se que há uma concentração na pauta, uma vez que os 20 principais artigos
correspondem a 80,5% do total.
Já as importações oriundas da China (conforme a tabela 7) mostraram-
se mais diversificadas, pois os 20 itens mais vendidos representaram apenas
36,93% do total. Excetuando o item coque de hulha, a única matéria-prima rela-
cionada entre os 20 itens mais vendidos, a pauta chinesa é marcada por artigos
industrializados, como componentes eletrônicos, circuitos integrados e têxteis.

Tabela 6 – 20 principais mercadorias exportadas pelo Brasil para a RPC


Val/
Mercadoria Valor (us$) % Peso (kg)
pes
Outros grãos de sója, mesmo tri-
1 1.716.921.127 25,1 7.157.545.807 0,240
turados
Minérios de férro não aglomerados
2 1.242.540.969 18,2 50.257.364.660 0,025
e seus concentrados
Minérios de férro aglomerados e
3 542.090.156 7,93 8.804.343.303 0,062
seus concentrados
4 Óleos brutos de petróleo 541.629.596 7,93 1.859.420.046 0,291
Fumo n/manuf. total/parc. destal.
5 246.666.746 3,61 62.220.600 3,964
fls. secas, etc. virginia
Pasta quim. madeira de n/ conif.
6 230.104.456 3,37 625.802.075 0,368
A sóda/sulfáto, semi/branq
Lamin. ferro/aço, a frio, l>= 6dm,
7 165.024.471 2,41 318.137.331 0,519
em rolos, 0.5Mm<=e<= 1mm
Óleo de sója, em bruto, mesmo de-
8 144.044.173 2,11 315.496.980 0,457
gomado

58
Marcos Cordeiro Pires

Outras madeiras serradas/cortadas


9 100.579.491 1,47 180.706.948 0,557
em folhas, etc. Esp>6mm
Pedaços e miudezas, comest. de ga-
10 78.305.568 1,15 115.846.285 0,676
los/galinhas, congelados
11 Ferroniobio 76.290.596 1,12 9.144.000 8,343
Algodão simplesmente debulhado,
12 62.541.996 0,92 54.038.208 1,157
não cardado nem penteado
Outs. couros/peles bovinos, secos,
13 60.530.195 0,89 4.899.194 12,355
pena flor
Máquinas ferram. p/ estampar
14 48.413.663 0,71 7.365.854 6,573
metais, c/ comando numerico
Granito cortado em blocos ou
15 46.194.058 0,68 323.436.083 0,143
placas
16 Alumina calcinada 40.348.830 0,59 122.085.721 0,330
Outs. couros bovinos, incl. bufalos,
17 40.220.673 0,59 20.485.914 1,963
n/ div. umid. pena flor
Pasta quimica de madeira, para
18 39.946.925 0,58 72.226.201 0,553
dissolução
19 Sulfetos de minérios de cobre 39.512.964 0,58 48.538.000 0,814
Sucos de laranjas, congelados, não
20 37.159.765 0,54 49.394.190 0,752
fermentados
Total 20 princípais mercadorias 5.499.066.418 80,5 70.408.497.400 0,078
Total geral 6.833.668.267 100 72.560.245.308 0,094

Fonte: Elaborada a partir de: Brasil - Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. SECEX. Dados dis-
poníveis em http://www.desenvolvimento.gov.br.

Tabela 7 – 20 principais mercadorias importadas pelo Brasil da RPC


Mercadorias Valor (us$) % Peso (kg) V/p
Outras partes p/aparelhos transmissores/
1 396.487.975 7,4 1.208.073 328,20
receptores
2 Dispositivos de cristais liquidos (lcd) 255.936.201 4,8 723.474 353,76
3 Coques de hulha,de linhita ou de turfa 163.572.577 3,1 737.469.794 0,22
Outros aparelhos videofônicos de grava-
4 121.186.164 2,3 10.373.150 11,68
ção/reprodução
5 Terminais portateis de telefonia celular 101.972.689 1,9 142.712 714,53
Outs. partes p/ aparelhos recept.radiodif.
6 90.829.821 1,7 7.878.092 11,53
televisão, etc.
Tecido de filam. poliester textur>=85%,
7 74.345.394 1,4 24.583.117 3,02
tintos, s/borracha
8 Circuito impresso 69.576.855 1,3 2.335.845 29,79
9 Outros acumuladores elétricos 58.877.925 1,1 859.203 68,53

59
O impacto da presença chinesa sobre o comércio internacional da América Latina:
2000-2005 (Venezuela, Argentina e Brasil)

Mecanismos toca-discos, mesmo c/cam-


10 58.595.829 1,1 1.841.237 31,82
biador, p/ apars. reprod.
Outs.Circuitos integrados monolit. Mon-
11 47.838.784 0,9 71.729 666,94
tados
Placas-mãe montad. p/maqs. proc.dados
12 44.980.088 0,8 550.560 81,70
(circuito impresso)

13 Outras camêras de video 43.712.424 0,8 643.666 67,91


Outs. apars. recept. radiodif. comb.apars.
14 37.868.305 0,7 6.250.766 6,06
som, pilha/eletr.
Outs. memórias montadas p/montag.
15 36.529.755 0,7 17.671 2067,21
superf.
Tecido de filam. de poliester não texturi-
16 35.812.339 0,7 8.186.850 4,37
zado>=85%
17 Circuito impresso montado p/telefonia, etc. 35.299.308 0,7 160.548 219,87
Lâmpadas/tubos descarga, fluorescente, de
34.300.490 0,6 7.833.410 4,38
18 catodo quente
Outs. partes e acess. p/aparelhos de grava-
19 34.020.123 0,6 2.369.481 14,36
ção/reprodução
Gabinete c/fonte de aliment. p/maqs.
20 32.986.416 0,6 7.249.697 4,55
automat. proc. dados
Total 20 princípais mercadorias 1.774.729.462 33 820.749.075 2,16
Total geral (importações) 5.353.261.623 100 2.706.674.598 1,98
Fonte: Elaborada a partir de: Brasil - Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. SECEX. Dados dis-
poníveis em http://www.desenvolvimento.gov.br.

O problema de se concentrar as exportações em bens primários e/ou semi-


manufaturados está no baixo valor agregado desses bens. Enquanto que o preço
por quilo do total dos bens importados da China se situava em torno de U$1,98,
a mesma relação para os bens exportados pelo Brasil era de US$ 0,094. Ao se re-
tirar o único artigo primário listado entre as 20 principais mercadorias, no caso
coques de hulha (carvão mineral), o preço do quilo exportado pela RPC subiria
para aproximadamente U$19,40.
Um aspecto deve ser ressaltado: a produção chinesa ameaça diretamente a
indústria local. De um lado, existe a concorrência no mercado interno em seto-
res como têxteis, confecções, eletro-eletrônicos e calçados. Porém, em terceiros
mercados, a concorrência chinesa também ameaça os exportadores brasileiros
nesses mesmos segmentos13. Um setor que está por sofrer forte concorrência é o

13 Veja-se a opinião de uma organização de classe sobre a concorrência chinesa:“... o

60
Marcos Cordeiro Pires

automotivo. Isto porque, as multinacionais que antes utilizavam suas unidades


brasileiras como plataforma de exportação, estão deslocando suas unidades para
a RPC onde, por meio de joint-ventures com empresas chinesas, estabelecem a
produção de veículos até então produzidos no Brasil. O caso da Volkswagen é
sintomático. Enquanto que enxuga suas linhas no Brasil, amplia a produção de
veículos como os modelos Santana, Gol e Pólo, destinados tanto para o consumo
interno da China quanto para a exportação14.
Já não é de hoje que os empresários brasileiros pressionam o governo para
coibir as importações chinesas. De acordo com Cláudia Trevisan:

A indústria brasileira articula uma reação à entrada de produtos


chineses no Brasil, e não apenas nos setores tradicionalmente
vulneráveis à concorrência asiática, como têxtil e calçados. Fabri-
cantes de máquinas, baterias e produtos eletroeletrônicos come-
çam a levantar dados para pedir ao governo a adoção de medidas
que restrinjam importações chinesas.(...) A China tem uma pauta
completa de exportação e compete com a indústria brasileira em
vários setores”, afirma o presidente do Ciesp (Centro das Indús-
trias do Estado de São Paulo), Cláudio Vaz, que aponta problemas
em setores que vão de bulbos de garrafas térmicas a aparelhos
de ar-condicionado. (...) Empresários e economistas repetem o
mesmo discurso ao apontar as condições de concorrência mais
vantajosas dos chineses: câmbio desvalorizado e atrelado ao
dólar há dez anos; juros inferiores a 6%; financiamento estatal

acirramento da concorrência com os produtos importados do Sudeste Asiá-


tico, principalmente da China, esteve entre os problemas mais graves apon-
tados pelos empresários. No ano de 2005 as importações de produtos elé-
tricos e eletrônicos daquela região, conforme o Sistema Siscomex do MDIC
- Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior - deverão
somar US$ 8,4 bilhões, 36% acima das realizadas em 2004. A China já re-
presenta 35% deste montante, cujo crescimento no mesmo período deverá
atingir 53%”. ABINEE. Desempenho Setorial. Disponível em: http://www.abinee.
org.br/abinee/decon/decon15.htm . Acessado em 04/05/2006.
14 Uma de suas subsidiárias, a fábrica de automóveis de luxo AUDI, deixou de produzir
no Brasil o modelo A3, na cidade de São José do Pinhal-PR, em setembro de 2006.

61
O impacto da presença chinesa sobre o comércio internacional da América Latina:
2000-2005 (Venezuela, Argentina e Brasil)

abundante; escala dada por uma população de 1,3 bilhão de pes-


soas e salários que são quase um quarto dos pagos no Brasil 15.

Este quadro apontado pelos empresários industriais é agravado pelas


idiossincrasias da economia brasileira, como juros elevados, pequeno mercado
de consumo, deficiências na infra-estrutura, câmbio valorizado, baixo nível de
desenvolvimento tecnológico, ausência de marcas globais, entre outros.
Aquilo que para os setores exportadores de commodities torna-se uma
grande oportunidade, torna-se em risco para os setores industriais, pois o in-
tercâmbio com a RPC reveste-se em séria ameaça para os industriais brasileiros
e também para todos os produtores industriais do mundo, de países desenvol-
vidos ou não.

Considerações Finais

O intercâmbio comercial entre a RPC e a América do Sul, tido por alguns


governantes como a oportunidade de se criar uma aliança Sul-Sul frente ao de-
sigual comércio Norte-Sul, não se configura (por ora) como uma alternativa real
para o desenvolvimento dos países sul-americanos e para contribuir para uma
inserção menos subordinada na ordem internacional.
As exportações dos países da América do Sul refletem “vantagens compa-
rativas” tradicionais, baseadas no clima tropical ou na ocorrência de minerais
estratégicos. Estas vantagens refletem também uma estrutura social bastante
desigual, uma vez que a posse da terra é concentrada nas mãos de poucas fa-
mílias e a produção de matérias-primas está concentrada em poucas, porém gi-
gantescas, empresas de extração ou transformação, como petroleiras, minera-
doras, siderúrgicas, papeleiras etc. Os baixos índices de agregação de valor, por
outro lado, impedem a formação de quadros profissionais mais qualificados, da
mesma forma que inviabiliza o desenvolvimento de um setor de serviços mais
complexo. A renda se concentra e a estagnação econômica persiste.

15 TREVISAN, Cláudia. Indústria articula reação contra a China. Folha de São Paulo,
05/06/2005.

62
Marcos Cordeiro Pires

Do lado da RPC, as relações comerciais com a América do Sul atendem


a três tipos de necessidades: (a) compra de matérias-primas e alimentos; (b)
ampliação de mercado consumidor para bens manufaturados; e (c) espaço para
a realização de investimentos diretos. Essa atuação está em consonância com
uma estratégia de desenvolvimento nacional. Sua estrutura econômica dual
(um setor rural pouco capitalizado e um setor urbano em franca expansão)
permite a produção de bens de baixa intensidade tecnológica, onde a vantagem
está no enorme estoque de mão-de-obra barata e também a produção de bens
de alta tecnologia, uma vez que o país tem formado quadros técnicos de grande
capacitação.
É preciso relativizar a fórmula do sucesso chinês por conta de suas especi-
ficidades. A população de 1,3 bilhão de pessoas, uma sociedade com 5 mil anos
e história, a estrutura política que combina um poder regido pelos princípios
do marxismo-leninismo convivendo com a acumulação privada, o papel do Es-
tado em barganhar vantagens frente às empresas multinacionais, um imenso
mercado de trabalho que lhe permite produzir bens a baixos custos sem o risco
de pressões salariais, o controle e a disciplina da mão-de-obra, tudo isso faz do
caso chinês algo excepcional.
No entanto, cabe aos países sul-americanos estruturar um projeto nacio-
nal de inserção internacional baseada na diversificação da pauta comercial e na
agregação de valor em toda a cadeia produtiva. Para tanto, uma ação mais efe-
tiva do Estado Nacional é urgente, assim como estruturar um completo sistema
de desenvolvimento científico e tecnológico. Este foi o caminho trilhado pelos
recentes países industrializados, outros caminhos podem ser criados.

Referências

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63
O impacto da presença chinesa sobre o comércio internacional da América Latina:
2000-2005 (Venezuela, Argentina e Brasil)

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65
Capítulo 4

Desarrollo económico,
capital humano y política
educativa en Chile
Juan Carlos Miranda Castillo

I. Introducción

En el ámbito del Estado, el progreso social depende, sustancialmente, aun-


que no de forma exclusiva, de las políticas públicas y, en especial, de aquellas que
generan una dinámica en la sociedad, como son la innovación, la reducción de
costes y la capacidad y voluntad emprendedora. Bajo estas condiciones, se ha po-
dido comprobar que la potencia de esa dinámica nos permite evaluar el grado de
justicia social y de equidad logradas. Esta situación se produce principalmente en
países con economías de mercado libre, abiertas al comercio internacional, dota-
das de instituciones que protejan y estimulen el derecho de propiedad, con prácti-
cas políticas que consigan un equilibrio macroeconómico (tales como las políticas
de estabilidad de precios, de desarrollo económico y de redistribución de los ingre-
sos, determina una distribución de costes y beneficios entre los grupos económi-
cos), que sean sociedades democráticas y que siendo estados de tamaño limitado
permitan su gobernabilidad y estimulen la creatividad (Dagum, 1999: 22).
Para lograr las condiciones expuestas anteriormente, es necesario aplicar
como complemento a la política económica neoliberal el acompañamiento de polí-
ticas sociales con rostro más humano, que tengan como máxima moral la justicia
Desarrollo económico, capital humano y política educativa en Chile

social y el reparto solidario. En consecuencia, para crecer se requiere un Estado


potenciador del crecimiento económico sostenido, que consiga un ambiente que
estimule sinérgicamente las reformas macro y microeconómicas, tales como una
reforma educacional que enfatice la formación de recursos humanos con calidad,
la creación de nuevas empresas y que mejore la eficiencia del Estado.
Dar respuestas nos va a permitir adentrarnos en las políticas de educación
para poder verificar sí éstas están contribuyendo a asumir los nuevos desafí-
os del desarrollo económico y, para ello establecemos las siguientes preguntas:
¿Para qué sirve la educación? ¿Qué pretendemos con la educación? ¿Para qué
queremos educar? ¿Cómo orientar a los alumnos para un aprendizaje eficaz?
¿Qué tipo de educación se precisa en los países en desarrollo en un contexto
de mundialización y cambio? ¿Por qué es necesaria una política de educación?
¿Cómo aseguramos un desarrollo económico que trate de consolidar la demo-
cracia, la cohesión social y la equidad a través de la educación?
A modo de reflexión, podemos señalar que nuestras escuelas siguen ancla-
das en tiempos pasados y los niños en sus aulas permanecen pasivos y aburridos
durante el proceso de aprendizaje, obligados por la aplicación de un modelo ino-
perante, en el que los profesores se muestran poco receptivos al cambio que pro-
pugna que: “no basta enseñar bien; además es preciso que el alumno aprenda”.
En este mismo sentido se manifiesta Capra (1996: 31), cuando afirma que “el
cambio de paradigmas requiere una expansión no sólo de nuestras percepciones y
modos de pensar, sino también de nuestros valores”.
En conjunto, partiendo de que el conocimiento es universal y constituye
una parte del Patrimonio de la Humanidad, y que el acceso tanto al conocimien-
to como al saber no ha sido siempre fácil, el orden político actual debe estar a
la altura para promover una educación que incluya a todos durante toda la vida
y a todas las actividades en las que participan los seres humanos. El papel que
pueden desempeñar las políticas educativas en el progreso social que fuera de
toda duda sobre todo si asumimos que éste es producto de tres factores básicos:
“una política social de largo plazo, destinada a incrementar la equidad y garan-
tizar la inclusión; un crecimiento económico que genere un volumen adecuado de
empleos de calidad, y una reducción de la heterogeneidad estructural de los secto-
res productivos que reduzca las brechas entre distintas actividades económicas y
distintos agentes” (Ocampo, 2001: 15). Así, las políticas educativas deben conso-
lidar una educación más flexible a través de la eficiencia, la calidad y la equidad,

68
Juan Carlos Miranda Castillo

en una sociedad post industrial en constante riesgo, marcada por el signo del
miedo: mercados que se hunden; dominio de la carencia en la sobreabundancia;
gobiernos que tiemblan; y votantes indecisos que huyen (Beck, 1998: 11-14).

II. Educación y desarrollo económico

Algunos autores han argumentado la gran importancia que reviste el


surgimiento de la teoría del capital humano desarrollada por los economistas
Schultz, Becker y Mincer. Cuando comenzaron los estudios sobre las causas
de la gran diferencia de la riqueza entre las naciones, a comienzos de la dé-
cada de los años 60, cuando se compararon los países más desarrollados con
aquellos menos desarrollados lo que se llevó a cabo teniendo como punto de
partida el análisis económico entre la relación de la productividad de los tra-
bajadores, como masa salarial, y el nivel educativo de los individuos. Por ende,
desde el punto de vista de la inversión y el crecimiento económico (Fernández
Díaz (Dir), 1998: 371), la educación es considerada como una inversión en ca-
pital humano. De esta forma, la educación contribuye a lograr el aumento de
la productividad y el crecimiento económico y es, a la vez, fuente de mayores
ingresos futuros.
Precisamente, como señalan Stiglitz (1997: 411-413), Fernández Díaz
(1998: 373), Samuelson y Nordhaus (1999: 534-535), Blanchard y Pérez (2000:
514-516) y CEPAL (1992: 83-90), los beneficios relativos a la inversión en capital
humano ocasionan externalidades, de forma económica y social, que pueden
resumirse de la forma siguiente:
• La esperanza de vida, el aprovechamiento de la jornada laboral y la
renta del trabajo mejoran cuando los individuos están más cualifi-
cados, lo que se traduce en menores costes para la sociedad.
• En una sociedad más y mejorar educada la participación y la calidad de
las decisiones en la sociedad civil serán superiores cuanto mayor sea la
profundización de la educación dentro de ella.
• Existen beneficios intergeneracionales transmitidos de padres a hi-
jos, más aún, cuando la feminización de la educación está presente,
por ser este un factor relevante para el desarrollo de las familias.

69
Desarrollo económico, capital humano y política educativa en Chile

• Cuanto mayor sea el nivel de estudios en una sociedad mayor serán


los beneficios en su conjunto en el largo plazo.
La teoría del crecimiento económico11 destaca como características más
importantes de los países menos desarrollados: su baja renta per cápita; la baja
esperanza de vida al nacer; un bajo nivel de estudios; y, altas tasas de desnutri-
ción de la población. Asimismo, los indicadores socioeconómicos son bajos y
reflejo del escaso nivel de inversión en capital humano cuando se comparan con
el éxito de los países más industrializados. Esta brecha entre ambos bloques de
países seguirá marcando, en el futuro, la distancia entre los países ricos y pobres
(Salmuelson y Nordhaus, 1999: 532-533 y PNUD, 1990: 271-278).
De acuerdo con lo anterior, la educación se enfrenta a enormes de-
safíos. Por un lado, las partidas del gasto público son frenadas ante la
necesidad de reducir los niveles de déficit. Por otro, la educación se ha
visto sometida a constantes críticas sobre la eficiencia en la asignación de
los recursos. Por último, se observa lo mismo en relación con las mejoras
en la distribución de la renta y la riqueza nacional por parte del sector
público . Igualmente, Stiglitz (1986: 403) plantea varias cuestiones que
subyacen en este debate: ¿Cuánta equidad estamos dispuestos a sacrificar
en aras de la eficiencia? ¿Mejora realmente la calidad de la educación en el
largo plazo? ¿Cuál debería ser el papel del Estado y el sector privado en la
producción y financiación de la educación?
En este contexto, se han identificado tres tipos de problemas a los que se
enfrentan estas políticas en la actualidad: primero, la dificultad del mercado de
trabajo para incorporar a la población joven; segundo, la necesidad de nuevas
cualificaciones demandadas por las actuales características del mercado; y, ter-
cero, la gran dificultad que presenta la financiación de los sistemas educativos
ante las propuestas formuladas en el marco teórico de la educación sobre los
procesos de enseñanza y aprendizaje (Aranda, 2000: 643-647).

 Según Musgrave la única función de la política presupuestaria debe ser la asigna-


ción de recursos y la producción de servicios públicos, dados sus efectos sociales y
económicos (Cabrillo y Albert, 2001: 5).
 Desde un enfoque postkeynesiano sobre el crecimiento y el desarrollo económico, se
ha reducido la relevancia de la política fiscal como instrumento estabilizador, según
la experiencia observada en países menos desarrollados donde su efecto ha tenido
poco impacto.

70
Juan Carlos Miranda Castillo

En este contexto, Chile, país que hemos considerado como caso de estudio
a los efectos de la presente investigación, se ha propuesto como desafío para los
próximos años: fomentar la educación en todos los niveles y promover el desar-
rollo integral de todas las personas a través de un sistema educativo que asegure
la igualdad de oportunidades, el aprendizaje activo y la calidad a todos los niños
con independencia de su edad y sexo, otorgándoles una educación humanista,
democrática y abierta al mundo, garantizando el derecho a la educación y velan-
do por el buen uso de los recursos públicos.

III. El contexto político y económico chileno

Paralelamente al proceso de construcción de vida republicana, Chile vive


uno de los grandes hitos de su historia democrática, que corresponde a la quie-
bra de la institucionalidad en el año 1973, hecho que se produjo debido a un
conjunto de factores que ayudan a explicar en parte la profunda crisis política
y económica, que aparece sobre un fondo complejo y polémico como consta-
tan todos los estudiosos sobre el tema. No obstante, nosotros, ciudadanos que
vivimos el golpe militar a una temprana edad y que, por tanto, nos mataron
nuestros grandes sueños, sobre todo la capacidad de asombro, comprobamos no
sin estupor que hemos vuelto a creer en los mismos actores políticos una vez que
recuperamos la democracia. Este hecho tiene una causa muy concreta y es la in-
tervención del Gobierno del Presidente Richard Nixon desde el mismo momento
que el Presidente Salvador Allende (coalición socialista-comunista y radical)
fuera electo en las urnas con el tercio del total de electores y dictado por la lógica

 Acerca de la crisis y el agotamiento del orden constitucional e intervención militar


en el poder político, en Hernández-Blanco (1992: 423) hay tres factores, por lo me-
nos, que inciden en la quiebra del orden Jurídico-político existente hasta 1973: i)
orden constitucional instaurado por la Constitución de 1925, ii) la incorporación de
crecientes sectores sociales como actores políticos capaces de una relativa autono-
mía en el esquema socio-político, iii) la incorporación de los campesinos, a través
de sindicatos y partidos, desligados de tutela patronal y iv) el aumento de poderío
político de los obreros sindicalizados, lo suficiente para elegir sus propios represen-
tantes parlamentarios o para aspirar al poder político. En suma, la vida política en
Chile se hizo súbitamente más democrática y a la vez más masiva.

71
Desarrollo económico, capital humano y política educativa en Chile

de la Seguridad Nacional que fue impulsada por el Departamento de Estado.


También incidió en ello la crisis política que vivió el país en los años 1972 y 1973.
Esta última es quizás la más importante ya que fueron cruciales las posiciones
de la clase política que no llegaron acuerdos, por un lado, los partidarios del
gobierno y, por otro, los de la oposición. Los dos tuvieron ideas diametralmente
opuestas para salir de la gran crisis y convulsión social, consiguiendo así que se
declarará la ilegalidad todos los actos del gobierno.
El papel activo de los principales partidos políticos de la oposición, que
venían sosteniendo públicamente en algunos círculos, en medio de la crítica si-
tuación política y la necesidad de la intervención de los militares por considerar
que el único poder capaz de restituir la legalidad que echaban de menos, en el
entendido que los militares tomaban el poder y la creencia de que en breve plazo
llamarían a elecciones libres, grosso error con la historia. Para no repetir más
esta situación, hoy en día existe el fuerte compromiso entre la clase política bajo
el principio del nunca más repetir los hechos del pasado, para así asegurar la
estabilidad económica y la gobernabilidad política, generando de este modo el
sentido de la responsabilidad en los consensos políticos.
En consecuencia, el 11 de septiembre de 1973 se cerró una etapa de la vida
republicana y se abrió otra cuando las instituciones militares encabezadas por
el General Augusto Pinochet y otros jefes de las ramas castrenses y de la policía
uniformada formaron la Junta de Gobierno. Esta Junta declaró el estado de sitio
y asumió el control político del país, proclamándose como constituyente al cerrar
el Congreso Nacional y declarar en receso a los partidos políticos como activistas
en la vida política. Este total control político del país permaneció hasta marzo de
1990, año que asume el poder el primer gobierno democráticamente elegido en
las urnas gracias a un plebiscito ordenado por el propio General Pinochet, que en
opinión de sus asesores más cercanos, él ganaba el referéndum convocado el día 5
de octubre de 1988, y se mantendría por ocho años más en el poder (Hernández-
Blanco, 1992: 425), Sin embargo, el resultado del plebiscito “dijo no a la propuesta
del General” y con ello nos permitió volver a la vida democrática, que tanto presti-
gio nos brindo en el pasado a través de nuestra historia republicana.
Desde el retorno a la democracia en 1990, Chile ha vivido un período de
gran estabilidad política durante el cual se han consolidado el Estado de Dere-
cho y las libertades políticas. La coalición de centro-izquierda, Concertación de
Partidos por la Democracia, creada a fines de la década de los ochenta, gobierna

72
Juan Carlos Miranda Castillo

el país desde 1990; en tanto, la oposición está representada por una coalición
conservadora centro-derecha llamada Alianza por Chile y por varios partidos
minoritarios, incluidos el Comunista. Estos partidos minoritarios participan en
las elecciones representando los intereses de sus afiliados, aunque sin ninguna
representación parlamentaria por lo difícil que resulta a los partidos pequeños
elegir a sus candidatos bajo un sistema electoral binominal que es el que se
viene aplicando en Chile desde su promulgación en 1989. De esta forma se elige
al Presidente de la República, Senadores, Diputados, Alcaldes y Concejales. La
situación anteriormente descrita se produce porque se permite que un partido
con el 60% de los votos y otro partido con el 40% tengan la misma representaci-
ón en un distrito electoral.
Los derechos políticos y económicos están ampliamente garantizados por
un sistema judicial independiente, el cual está en proceso de modernización
(Nueva Reforma Procesal Penal) con el fin de hacer más expedito el acceso a la
justicia y reducir el tiempo de los procesos. Además, desde 1990 se han elimina-
do las restricciones a la libertad de prensa así como la censura cinematográfica
al tiempo que las libertades individuales han sido fortalecidas.

 Para Navia (2001: 3) más que no presentar efectivamente a las mayorías, el siste-
ma binominal incentiva a los partidos a alejarse más que buscar el voto de cen-
tro. Los candidatos precisan sólo obtener un 33,4% (33,333333%+1 en estricto
rigor) de los votos para asegurarse un escaño en la Cámara de Diputados o en el
Senado, y por lo tanto cualquier esfuerzo adicional que hagan para superar esa
votación responde a incentivos externos y ajenos a los de la ley electoral, como
pueden ser una coalición de partidos políticos a través de pactos o subpactos
a la hora de competir. En suma, en el sistema electoral binominal basta con un
tercio de los votos para alcanzar el 50% de los escaños en cada distrito. Ade-
más, no refleja adecuadamente las preferencias del electorado, e incentiva la
polarización del espectro político, ya que resulta difícil a los partidos pequeños
obtener representación en el parlamento. Por tanto, en el sistema chileno para
ser elegido Diputado o Senador debe obtener el 34,4% de los votos, y para ser
electo Presidente de la República se requiere del 50%+1.
 En el mundo contemporáneo, la democracia es el reconocimiento de la dignidad
de las personas humanas y es la forma de organización social y política que mejor
garantiza el respeto, el ejercicio y promoción de los Derechos Humanos, y más un, la
democracia, al igual que los hombres y las mujeres, siempre es perfectible. Abraham
Lincoln, en 1863, definió a la democracia como forma de gobierno, “el gobierno del

73
Desarrollo económico, capital humano y política educativa en Chile

En cuanto a libertad y transformación económica, es uno de los hechos


más relevante de la década de los ochenta bajo el Gobierno autoritario del Ge-
neral Pinochet, que fue impulsada por los economistas influenciados por la Es-
cuela de Chicago muy cercana al gobierno. De esta manera, Chile fue pionera
en América Latina en materia de reformas estructurales al privatizar varias
empresas estatales y establecer un sistema privado de fondos de pensión que,
posteriormente, fue adoptado por otros países de América Latina e, incluso,
por el resto del mundo. Luego, a partir de 1990, y hasta la fecha, continuaron
las privatizaciones, se lanzó un programa de concesiones para atraer capitales
privados para la construcción y operación de grandes obras de infraestructuras
públicas, se redujeron los aranceles, se negociaron varios acuerdos de libre co-
mercio y, más recientemente, se impulsó una importante reforma en dos etapas
que apunta a flexibilizar aún más el mercado laboral y de capitales.
Precisamente, llevando a cabo un análisis del Balance preliminar de las
economías de América Latina y el Caribe realizado por la CEPAL (2004: 84-85),
analizan nuestras economías afirmando que crecieron un promedio de 5,5% al
2004, superando los pronósticos más optimista, mientras que PIB per cápita de
la región se incrementaría alrededor del 4%, lo que traduciría una recuperación
del PIB por habitantes: Argentina (8,2%); Brasil (5,2%), Chile (5,8%), Colom-
bia (3,3%), Perú (4,6%), y Venezuela (18%). Estos países han sido los motores
del cambio. Sin embargo, como la expansión de Argentina y Venezuela se debió
en gran medida a la baja base de comparación del 2004, en rigor, creemos que
Chile es uno de los países más dinámicos de la región. La principal economía de
América Latina, Brasil, tuvo un final feliz, ya que por segunda vez en veinte años
produjo una tasa de crecimiento positiva, lo que ocurrió en 1997 y ahora.
En resumen, el buen desempeño de la economía regional se vincula a la
economía internacional, principalmente, por estados Unidos y China que son
los motores del crecimiento comercial en el mundo, al incidir en el aumento
de los precios de productos básicos al beneficiar a varios países, en especial,
América del sur.

pueblo, por el pueblo y para el pueblo”. Desde una perspectiva histórica tiene su ori-
gen en el siglo V antes de Cristo, para designar la forma de organización política que
adopta la polis de Atenas, y etimológicamente, la palabra democracia se compone
de dos palabras griegas: Demos, que significa pueblo, población, gente y Kratos, que
significa poder, superioridad, autoridad.

74
Juan Carlos Miranda Castillo

Chile, para mantener la confianza en la globalización practicó la política


arancelaria que se viene aplicando y que consiste en la rebaja de los aranceles de
las importaciones a partir de 1998. Esta política se lleva a cabo de forma unilateral
de 11% a 6% parejo y se finalizó con un programa fijado de cinco años plazo, a
razón de un 1% anual. Ya a fines del año 2003 el arancel efectivo era del 3%, lo
que convierte a Chile en una de las economías más abiertas del mundo. Por tanto,
para compensar la pérdida de recaudación fiscal por dicho concepto, se aumentó
el impuesto específico a la gasolina automotriz, a los cigarrillos y al tabaco, y se
aumentó el impuesto a la Ley de timbre y estampillas. Además, el gobierno logró la
aprobación de un alza transitoria de un 1% en la tasa del impuesto al valor agrega-
do (IVA) del 19% a partir del primero de octubre del 2003.
Seguidamente, y de acuerdo con el informe de Desarrollo Humano 2004
(IDH), preparado por el programa de las Naciones Unidas (PNUD, 2004: 139-140),
Chile se ubica en el puesto 43° entre 175 países evaluados, quedando en el grupo
de las 55 economías con desarrollo humano alto, junto a España (20°), Singapur
(25°), Corea (28°), Argentina (34°), Hungría (38°) y Uruguay (46°) (ver Tabla 1).
En este sentido, una evolución del IDH desde el año 1975 hasta nuestros días, el
país muestra una mejora del citado índice, pasando de una clasificación para un
índice de desarrollo humano medio a alto (véase Tabla 2). En materia de educaci-
ón, el citado informe destaca el hecho de que la mayor parte de la inversión públi-
ca en educación se destina al 20% de la población más pobre, enfatizado además
que el país ha logrado impresionantes avances hacia la cobertura universal de la
educación primaria que bordea el 98,6%, mientras que la educación secundaria y
superior, alcanzan cobertura del 90,0% y 31,4% respectivamente.

Tabla 1 – Informe de desarrollo humano 2004: algunos países seleccionados


Ranking Algunos País
1 Noruega
3 Australia
8 Estados Unidos
20 España
43 Chile
46 Uruguay
59 Malasia
72 Brasil
Fuente: Elaboración propia sobre la base de los Resultado presentado programa de las Naciones Unidas para el
Desarrollo (2004: 139-140).

75
Desarrollo económico, capital humano y política educativa en Chile

Tabla 2 – Tendencia del índice de desarrollo humano: período 1975-2002


1975 1990 2000 2002
Chile
0,703 0,784 0,835 0,839

Fuente: Elaboración propia sobre la base de los resultado presentado programa de las Naciones Unidas para el
Desarrollo (2004: 143).

En cuanto al contexto macroeconómico de los últimos dos años y el mejor


escenario económico positivo que se avecina en el 2006, podemos señalar como
lenta la recuperación de las economías industrializadas. Los niveles altos de los
precios de sus principales productos primarios de exportación (commoditties)
como son la celulosa, pulpa, frutas, cobre, salmones y harina de pescado. Debido
a estas circunstancias y a la desaceleración mundial que repercutió severamente
en los términos de intercambio, disminuyeron los precios en un 8,7%, por lo que
el ingreso nacional disminuyó en 0,5% y la tasa de crecimiento pasa de un 4.4%
en el año 2000 a una de 2.8% en el 2001. El crecimiento promedio fue de un 3%
en el período 1998-2001, lo que contrasta con una tasa cercana al 7% entre 1986
y 1997, en tanto que la inflación en un período de doce meses fue de 2, 6%, el
déficit externo ascendió al 1, 2% del PIB y el déficit público representó el 0, 3%
del mismo indicador. No obstante, pese a lo adverso de la coyuntura interna-
cional, el alza del tipo de cambio y la reducción de la tasa de interés de política
monetaria crearon condiciones monetarias claramente reactivadoras desde una
perspectiva a mediano plazo (CEPAL, 2002: 129).
Detengámonos algo más en esta formulación de políticas macroeconómicas
puestas en marcha ante repetidos choques externos que está frenando el crecimien-
to en Chile así como el resto de las economías emergentes, en orden a presentar un
resumen de los principales logros económicos. No puede ser tan optimista en su re-
lación con las estructuras socioeconómicas (CEPAL, 2002: 131-135), ya que no están
libres de juicios evaluativos ni de imaginar una estrategia de desarrollos distintos,
sin alterar significativamente el modelo que puede resumirse como sigue:
a) Política fiscal, cumplir la meta de superávit estructural de 1% del PIB,
como herramienta anticíclica que define el gasto público. Lo que exige un fuerte
ajuste, del orden de 0,8% del mismo indicador; aumentar los ingresos vía recau-
dación fiscal a través del descenso de la evasión tributaria como consecuencia
de una mayor intensificación de la fiscalización; moderación de los gastos públi-
cos de operación (personal y bienes y servicios de consumo), a fin de financiar

76
Juan Carlos Miranda Castillo

con el grueso de los recursos al Fondo de contingencia contra el desempleo y la


iniciación de programas de empleo público directo o de subsidio para mitigar
el deterioro del mercado laboral; se colocaron los bonos soberanos a 20 años
plazos (debido a las mejores condiciones en los mercados financieros interna-
cionales y el bajo riesgo país) por más de mil millones de dólares a una tasa de
7,2% y con un diferencial (spread) que bordea los 134 puntos base. Con ello se
pretendía destinar los fondos al pago anticipado de deuda externa, a financiar
el déficit fiscal y a financiar posibles déficit públicos. Y esto se llevaría a cabo
aunque el precio del cobre se mantuviera más bajo al fijado en la formulación de
la Ley de Presupuestos.
b) Política monetaria, mantener la inflación dentro de un rango de 2% a
4%.El Consejo del Banco Central autónomo que ha reducido la tasa de interés,
a través de la tasa de política monetaria (TPM) de un 6, 5% nominal anual en
diciembre de 2001 a un 2, 5% anual en diciembre de 2003. Cabe señalar que
la reducción en términos reales ha sido bastante menor debido a una inflación
inferior a la esperada, a la aprobación de un alza transitoria de un 1% en la tasa
de Impuesto al Valor Agregado (19%) a partir de octubre del 2003, siendo ésta
una forma de compensar la pérdida estimada en la recaudación derivada de los
nuevos tratados de libre comercio firmados con la Unión Europea –vigente des-
de 2003. –Estados Unidos -operativo desde el 1 de enero de 2004, - y Corea del
Sur –operativo desde 1 de abril de 2004. Lo que permitirá esperar un mayor y
más fluido intercambio con estos bloques comerciales; un aumento de la de-
manda por saldo monetarios reales. Por ello la tasa de variación interanual de
los medios de pago de particulares (M1) creció, a partir de octubre de 2003 con
relación al mismo mes de 2002, casi un 14% en términos reales. No obstante, el
aumento en la demanda de dinero no tuvo contrapartida en una mayor deman-

 El presupuesto del sector público es uno de los instrumentos más importantes a tra-
vés de los cuales se orienta y se enmarca la actividad del aparato del Estado. Es decir,
se asignan los recursos, obtenidos por la recaudación tributaria, para distribuir a
múltiples fines. De este modo, el presupuesto, afecta doblemente el bienestar de la
ciudadanía: directamente, asignando recursos para la satisfacción de necesidades
de la población incorporadas a las obligaciones o prioridades de las intenciones
públicas, e indirectamente, generando condiciones para un crecimiento estable y
sostenido, que facilite la inversión, el empleo y el mejoramiento en las condiciones
de vida (Albi y González-Páramo, 2000: 99).

77
Desarrollo económico, capital humano y política educativa en Chile

da de circulante. Por su parte, la tasa de interés pasiva se ubicó apenas en 3, 48%


nominal anual, lo que puede explicar la caída de M2 cercana al medio punto
porcentual en términos reales observado en los 12 meses (octubre a octubre).
c) Política cambiaria, en el marco de un esquema de tipo de cambio flexi-
ble implementado a fines de 1999, y del incremento del precio internacional del
cobre junto a mayores retornos de las exportaciones y el ingreso de capitales fi-
nancieros, se ve como, necesariamente, ha desembocado en una fuerte afluencia
de dólares y una apreciación sostenida de la moneda nacional, la cual se apreció
casi un 20% en el año 2003, con un Banco Central reafirmó su decisión de no
intervenir. Es esta etapa la de la apreciación del peso, estableciéndose con ello,
que una intervención se reserva para cuando el tipo de cambio alcance niveles
muy altos y de forma acelerada. En el 2005 la tasa de crecimiento del PIB alcan-
zó por segundo año consecutivo el 6% anual, lo que consolida la recuperación
económica del país. Los precios aumentaron debido principalmente al impacto
del precio del petróleo, lo que traduce hasta octubre, el índice de precios al con-
sumidor mostrará un incremento del 4,1%, ubicándose levemente por encima
del rango de la meta inflacionaria establecida por el banco Central. La tasa de
desempleo bajó paulatinamente y, si bien aún exhibe un nivel elevado, se espera
que alcance el 8%. Tal y como se recogen en la Tabla 3.
d) Reformas estructurales. El Congreso aprobó varias leyes por iniciativa
del gobierno a las que se asigna gran importancia. Estas leyes son: la Ley de Seguro
de Cesantía que contempla la creación de fondos individuales con financiación
tripartita (gobierno, empresa y trabajador), de forma que quien quede cesante
pueda contar por cinco meses con un seguro de desempleo cuyo monto va dismi-
nuyendo progresivamente. La Ley de Vigencia de la Reforma Laboral que implica
un aumento de la fiscalización y un aumento moderado en el encarecimiento del
costo de despido de los trabajadores. La de Reforma tributaria que es una ley que
refuerza la fiscalización y que a mediano plazo debería reducir la evasión en poco
más de un punto del PIB; Estas leyes conducen a la modificación de la estructura
de impuesto de la renta, tanto de personas naturales como jurídicas:
• En el primer caso, disminuye la tasa marginal de los tramos impo-
nibles medios y altos, ampliándose el tramo de exención y se reduce
gradualmente la tasa marginal superior de 45% a 40%.
• En el segundo caso, se prevé un aumento de la tasa de impuesto a las
utilidades de las empresas de 15% a 17% en un plazo de tres años.

78
Juan Carlos Miranda Castillo

Tabla 3 – Principales indicadores económicos para chile


2003 2004 2005 a
INDICADORES
Tasas de variación anual
Producto interno bruto 3,7 6,1 6,2
Precio al consumidor 1,1 2,4 3,7
Salario real c 0,9 1,8 1,9
Dinero (M1) 14,6 15,2 15,9d
Tipo de cambio real efectivo e 5,0 -6,7 -3,5d
Relación de intercambio 5,8 21,5 7,4
Porcentajes promedios anual
Tasa de paro urbano 8,5 8,8 8,0
Resultado fiscal del gobierno central / PIB -0,4 2,2 3,4
Tasa de interés pasiva nominal 3,2 2,4 4,4f
Tasa de interés activa nominal 13,0 11,0 13,5f
Millones de dólares
Exportaciones de bienes FOB y servicios 26 473 37 981 46 951
Importaciones de bienes FOB y servicios 23 588 29 542 38 375
Saldo de cuenta corriente -1 102 1 390 269
Cuenta de capital y financiera 737 -1 580 3
Balanza global -306 -191 273

Nota:
a
: Estimaciones preliminares.
b
: Variación en 12 meses hasta noviembre del 2005.
c
: Índice general de remuneraciones por hora.
d
: Variación promedio de enero a octubre del 2005, respecto del mismo período del año anterior.
e
:Una tasa negativa significa una apreciación real
f
:Datos anualizados hasta noviembre.
Fuente: Elaboración propia a partir (CEPAL, 2005: 115).

Es necesario tener en mente que la modesta recuperación del crecimiento


económico no fue suficiente para mejorar la situación del mercado de trabajo.
La tasa de paro promedio al año 2004 fue de 9,4% de la fuerza de trabajo; este
porcentaje supera el 8,8% registrado en el mismo período del 2003. Con estos
datos podemos afirmar que los salarios reflejaron la debilidad de la demanda
laboral y que en términos reales, prevalecieron situaciones de caída o estanca-
miento, lo que no contribuye a aumentar el poder de compra de los hogares.
En suma, Chile puede mostrar al mundo más dinámico del comercio mun-
dial, que tiene como activos intangibles –la seriedad, -Estado de Derecho, -la

79
Desarrollo económico, capital humano y política educativa en Chile

institucionalidad –y los tangibles –el turismo, -recursos forestales, -pesqueros,


-viñas, entre otros. Además, el país esta preparado para ser plataforma para que
las grandes inversiones se instalen en Chile como trampolín hacia el mercado
latinoamericano, desde una visión o plataforma empresarial. Otro aspecto del
capital político y económico, es el de ser el país con más apertura comercial en
el mundo. El poseer la capacidad de ser transparentes en las cuentas públicas y
negocios privados, además, ser líderes en facilitar el comercio y las inversiones.
Chile es pues, un país modelo para el resto de la economía latinoamericana. Para
el presente año, y a 10 años de su entrada como miembro de la APEC, presidió
la cumbre de los presidentes de la APEC durante los días 19 y 21 de noviembre
del 2004, en Santiago.
Sin embargo, el comercio internacional no esta libre de problemas y nue-
vos desafíos para nuestras economías emergentes, toda vez, que las grandes po-
tencias chocan con los intereses de nuestros países, sobre todo en temas de pro-
teccionismo, como subsidios agrícolas y el trato a las inversiones extranjeras. De
ahí, el fracaso de las negociaciones sobre los acuerdos comerciales. En la última
conferencia ministerial en Cancún (septiembre del 2003), surgió el grupo de los
“G-21” para hacer frente a las economías más desarrolladas, en el marco de la
Organización Mundial de Comercio (OMC) .

 APEC (Foro de Cooperación Económica del Asia Pacífico), es una instancia que re-
úne a 21 economías, lo que permite incluir a Hong Kong y Taiwán. Estas, junto a
Australia, Singapur, EE.UU. y China, entre otros, se funda en 1989. Chile entra en
1994. Sus principios se resumen en tres pilares:
1) Liberalización del comercio y la inversión
2) Facilitación de estos, y
3) Cooperación técnica y económica
En la cumbre de 1994 en Bogor, Indonesia, se definieron metas para el 2010, en don-
de las economías desarrolladas deben estar completamente abiertas al comercio y
a la inversión. Mientras que aquellos países miembros en vías de desarrollo, tienen
plazo hasta 2020.
 La OMC fue creada en 1995, vela por reglas de intercambio comercial entre 146 paí-
ses que son miembros. Esto da seguridad a los consumidores, productores y expor-
tadores porque implica una oferta segura y variada de bienes y servicios, y posibilita
que los mercados extranjeros estén abiertos. El gran sueño de la OMC es alcanzar un
mundo libre de aranceles y, en ese marco, grupos regionales como APEC se organi-
zan para que su intercambio comercial sea fluido.

80
Juan Carlos Miranda Castillo

Por consiguiente, el enfoque de desarrollo seguido por Chile y descrito


anteriormente, ha sido muy exitoso en expandir la actividad económica integra-
da fuertemente en una economía global sin restricciones al comercio y al flujo
de capitales. Así se impulsará la producción industrial, lo que probablemente
incrementará el consumo de recursos para pode hacer frente a la integración
internacional. No obstante, persisten grandes desafíos frente a las asimetrías
en la permanente ampliación de las desigualdades, lo que se traduce en falta
de una verdadera igualdad de oportunidades, lo que se viene observando tanto
en el plano nacional como internacional, y donde los mecanismos de mercado
tienden a reproducir, e incluso a ampliar, las desigualdades existentes (Ocampo
y Martín, 2003: 117).
Igualmente es objeto de preocupación determinar cómo enfrentarse a la
sustentabilidad ambiental que ha dejado en evidencia la debilidad de los mo-
delos convencionales, toda vez que el acelerado consumo de recursos que ha
sostenido el rápido crecimiento económico ha degradado los bosques, los sue-
los, el agua, el aire y la biodiversidad del planeta, se ha de asumir con decisión

 Desde la perspectiva de la necesidad urgente de preservar nuestros medios natu-


rales, un informe presentado a la Honorable Cámara del Senado de la República,
en agosto del 2002, en el que un grupo de parlamentario (senadores y diputados),
dentro de la Concertación de partidos del gobierno, expusieron ante la opinión de
sus pares la cruda realidad de la sobre explotación de recursos naturales en Chile,
que han servido como una de las fuentes principales del acelerado crecimiento eco-
nómico entre 1990 y el 2000 (Cámara de Senado, 2002: 6 y 7). Dicho crecimiento
no ha sido benigno con relación a la base de recursos en lo que se sustentó, dado
que se ha producido una fuerte sobre explotación de estos. A modo de ejemplo, el
sector pesquero ha tenido un crecimiento explosivo desde 1990, con un crecimiento
anual de 33% hasta el 2000, lo que provocó un efecto contractivo en la existencia de
peces naturales. La minería del cobre, entre 1990 y el año 2000, los aumentos de la
producción han impactado negativamente en los precios de la principal riqueza de
Chile y, por esa vía, a los beneficios sociales que posibilitan los ingresos fiscales que
aporta la empresa CODELCO (propiedad de todos los chilenos) han disminuido a
un tercio de lo que fueron en 1991. El sector forestal, la depredación de recursos pú-
blicos como el bosque nativo ha sido práctica más recurrente, y que en término de
superficie, en 1985 se estimaba que el bosque nativo productivo cubría 7,6 millones
de hectáreas, posteriormente en 1996 dicha estimación sólo alcanzaba a 5,6 millo-
nes de hectárea, disminución que fue sustituida por el aumento en las plantaciones
forestales introducida, como el pinus radiata y eucalipto, entre otras especies.

81
Desarrollo económico, capital humano y política educativa en Chile

el tomar iniciativas efectivas que estimulen e involucren a la sociedad civil en la


evaluación de estrategias, y en el monitoreo del progreso para revertir el deterio-
ro ecológico (Schatan, 1998: 77). Estas son y serán las grandes tareas pendientes
en pro de la sustentabilidad, que debemos tener presente para garantizar a las
mujeres y hombres del mañana la responsabilidad frente al cambio, y se logrará
sólo si ejecutan acciones políticas capaces de reducir la Huella Ecológica10 de la
sociedad, que responda a un amplio rango de contextos desde tema tecnológi-
cos, políticos y ambiental (Wackernagel y Rees, 2001: 116).

IV. Conclusiones

En este sentido, en el país debe aplicar la experiencia de los países que han
generado procesos de crecimiento sostenidos y debe apuntar a una combinación
de políticas públicas como efecto cruzado más bien heterodoxas. Debe promo-
ver inversiones en nuevos sectores, en una alianza estratégica entre el Estado y
los empresarios locales, e involucrarse en la innovación. Igualmente, debe tener
en cuenta los altos costos privados que dichas actividades originan, lo que en
muchas ocasiones conduce a que normalmente se concentren en sectores tra-
dicionales. El sector privado debe también incorporarse activamente y con me-
nores riesgos, en los nuevos procesos productivos. Así, los lineamientos básicos
para una agenda global deberían apuntar, tal y como ha quedado de manifiesto
en diversos informes del Senado de la República, y proponemos las siguientes
acciones hacia el pro crecimiento:
I. Avanzar hacia una segunda fase en el desarrollo exportador basado
en un mayor valor agregado.
II. Incorporar a la pequeña y mediana empresa en el desarrollo expor-
tador.

10 Como enfatiza Wackernagel y Rees (2001:115), el análisis de la Huella Ecológica


muestra claramente que el crecimiento económico, si bien políticamente es atrac-
tivo, acarrea costos ocultos, pero potencialmente mayores a largo plazo. Luego, la
opción de desarrollo debe pensar en mejoras tecnológicas, ya que el futuro del
bienestar y seguridad humana depende de la capacidad de los stocks restantes del
capital natural para proveer los flujos adecuados de bienes esenciales y servicios de
soporte vital.

82
Juan Carlos Miranda Castillo

III. Elevar sustancialmente la calidad de la educación, especialmente la


básica, así como mejorar el conocimiento en ciencia aplicada y for-
talecer el reentrenamiento de la mano de obra.
IV. Avanzar hacia una descentralización efectiva y real otorgándole
autonomía a las regiones tanto en inversión como la promoción de
nuevas actividades económicas.
V. Acotar los fenómenos de concentración económica, y
VI. Avanzar en una adecuada red de apoyo social.

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84
Capitulo 5

Os novos paradoxos
latino-americanos

Tullo Vigevani

Aspectos gerais

A chegada de personagens novas no cenário político latino-americano, parece


ser um fato inquestionável. Os últimos anos do século XX e a primeira década do sé-
culo XXI trazem sinais claros, simbolizam a emergência de populações que
anteriormente não tiveram acesso ao Estado, ou o tiveram de forma bastante limi-
tada. Como acontece em outros continentes, essa emergência apresenta-se sobretudo
como grito de resgate da dignidade. Quaisquer que sejam os desdobramentos, possui
essa força simbólica. A simbologia vale para figuras política e ideologicamente tão
díspares como Lula da Silva, no Brasil, e Alejandro Toledo, no Peru. Se o acesso ao
Estado por parte dessas populações se tornará realidade e se consolidará em formas
democráticas estáveis, com instituições fortes, é outra questão, que apenas o futuro
poderá responder. Apenas nos próximos anos poderemos medir a capacidade de tra-
zer melhoras efetivas, de longo prazo, no que tange à situação econômica e social dos
povos. Em alguns casos, poderá haver vantagens sociais temporárias, se em razão de
circunstâncias econômicas especificamente favoráveis, o Estado puder agir aumen-
tando a distribuição de benefícios e de recursos, com vantagem para ensino, saúde,

 Uma versão anterior deste texto foi publicada na Revista Política Externa de junho
de 2006.
Os novos paradoxos latino-americanos

etc. Melhoras sociais estáveis, aumento da renda e da produtividade dependem da


capacidade do Estado, do crescimento, de políticas industriais e de ciência e tecnolo-
gia, juntamente com o combate à desigualdade e à concentração da riqueza. A emer-
gência apresenta-se com características específicas, distintas, das apresentadas por
movimentos populares e mesmo revolucionários de décadas passadas. No tocante ao
programa político e econômico, estão sendo consideradas propostas parecidas a al-
gumas muito anteriores, que foram centrais em movimentos ocorridos desde o início
do século XX, como seria a da nacionalização das riquezas naturais. Mas a emergên-
cia de grupos historicamente marginalizados nunca havia se dado com o impacto a
que estamos assistindo hoje em alguns países, como no Equador e na Bolívia.
Predizer se os governos que surgem no bojo dos movimentos sociais em
curso e como resultado de circunstâncias especiais, sobretudo as do cansaço em
relação às formas tradicionais da representação, serão capazes de atender às ex-
pectativas, é questão mais difícil de ser respondida. Desde logo, sugerimos que
o voluntarismo e a vontade política podem ser um fator importante na abertura
de novos horizontes, mas sozinhos não devem ser considerados solucionadores
de todos os problemas. A experiência brasileira sugere que melhorar a situação
de extrema pobreza é um processo complexo, que exige decisões de longo prazo
e um radical reordenamento do aparelho de Estado. A possibilidade de melhora
relaciona-se com a vontade política, as escolhas governamentais, mas também
com desenvolvimento e crescimento, objetivos complexos. A vontade política
pode ter um notável papel de alavanca, viabilizar a ruptura com as formas tradi-
cionais de incompetência, irresponsabilidade e arrogância de partes das elites.
Ao mesmo tempo, para assegurar resultados efetivos, mudanças que a América
Latina ao longo do século XX teve dificuldade em realizar, são necessários mais
requisitos; entre eles, a noção de realidade, nacional, regional e internacional
tem papel relevante, assim como a capacidade de articulação política e a busca
da competência.
Em alguns casos, o cansaço e uma desilusão muito forte com partidos tradi-
cionais, que jogaram papéis historicamente relevantes em seus respectivos países,
explica parte dos acontecimentos em curso. O Partido Revolucionário Institucio-
nal (PRI), no México, a Ação Democrática (AD) e o Partido Democrata-Cristão
(Copei), na Venezuela, assim como a Aliança Popular Revolucionaria America-
na (Apra) e a Ação Popular (AP), no Peru, seriam exemplos de grupos políticos
constituídos há muitas décadas, transformados em articulações de poder, sem ca-

86
Tullo Vigevani

pacidade de renovação, catalisadores de tendências fechadas, que não souberam


captar as mudanças culturais e sociais que se produziam em seus respectivos pa-
íses. O Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) da Bolívia pode ser visto
da mesma forma. Não cabem generalizações abstratas. No Chile, velhos partidos,
como o socialista, com raízes no século XIX, têm mostrado vitalidade e renovação.
O peronismo, formação dos anos de 1940, continua sendo matriz de importantes
forças argentinas, ainda que apresentando grandes diferenças em relação ao mo-
vimento originário. Experiências de governos militares de esquerda, como o de
Velasco Alvarado no Peru, no final dos anos de 1960, também se encerraram com
a reabsorção do movimento pelas forças políticas tradicionais.
Evo Morales surge como representação abrangente dessa emergência de
multidões que, ativas ou passivas, ao longo dos séculos, não puderam fazer sen-
tir sua voz, ao menos não a puderam fazer sentir de forma contínua. Na Bolívia,
os acontecimentos dos anos de 1940 e a revolução liderada pelo Movimento Na-
cionalista Revolucionário (MNR) de 1952 demonstraram a força e a capacidade
de grupos sociais não dominantes. Mas aquela emergência esgotou-se em pouco
tempo. Boa parte das características dos movimentos sociais hoje mobilizados
são diferentes daquelas anteriormente existentes. Em 1952, a força social que
deu base à revolução na Bolívia era o movimento operário e os sindicatos. Ago-
ra, a componente étnica e cultural, seus crivos, são de grande significado. Os
índios pobres e camponeses são os atores centrais, os crivos de classe no sentido
sociológico parecem pesar menos, os valores simbólicos são de grande signi-
ficado. Não é por acaso que a reivindicação do direito de produzir coca para o
consumo local e doméstico acabou simbolizando boa parte do processo político.
Governos e movimentos até aceitam a idéia de que o excesso não deve ser comer-
cializado, deixando espaço para negociações com os norte-americanos e mesmo
com os europeus.
Não é possível prever se, de agora em diante, haverá mudanças estruturais
nas formas de pertencimento da população à nação, isto é, se os valores demo-
cráticos da plena cidadania política e social poderão se estabelecer. A diferença
em relação às esperanças do passado dependerá da capacidade dos dirigentes
políticos, muitos dos quais, na América Latina, terão que conjugar vontade po-
pular, anseios, com ação de governo, em que os constrangimentos são limites
penosos, em geral não superáveis em prazos curtos. A capacidade de superá-los
é o que viabiliza a superação da pobreza, do atraso, do subdesenvolvimento em

87
Os novos paradoxos latino-americanos

que as populações se encontram. Indo além das experiências da região, olhando


para trás, para a História, lembremos das frustrações, a partir dos anos de 1950,
nos de 1960 e 1970, ocorridas em Estados da África e da Ásia, onde a indepen-
dência fizera desabrochar grandes esperanças e importantes lideranças: Sukar-
no, Nehru, N’Krumak, Lumumba, Ben Bella, Agostinho Neto e tantos outros.
No dia 21 de janeiro de 2006, com forte sentido simbólico, Evo Morales e seu
vice- presidente Alvaro Garcia Linera, com um colar de folhas de coca e outro de
flores, entraram em Tiwanaku, centro cerimonial da civilização originária do pla-
nalto boliviano. Estavam milhares de indígenas com suas autoridades e com seus
trajes tradicionais. Foi empossado segundo os rituais aymaras. Fez discurso falando
de igualdade, de justiça e do regresso dos indígenas ao comando da nação depois
da derrota de Atahualpa e de Huáscar há 500 anos, pelas armas dos conquistado-
res espanhóis. As idéias que levaram o Movimento ao Socialismo (MAS) e Morales
ao governo são as da refundação e do resgate da dignidade. Independentemente da
orientação política concreta que prevalecer, essas idéias estão presentes na Venezue-
la, no Equador, Peru e também no Brasil. Provavelmente, e essa é uma debilidade e
um paradoxo, não seja plenamente claro como chegar à refundação e ao resgate.
Há idéias igualitárias, valores místicos, a busca de reconstrução de formas po-
líticas das civilizações incas, astecas ou maias, a reconjunção com o passado,
a crença no socialismo entendido como modo de alcançar a justiça social. Re-
formas constitucionais ocorridas na Bolívia, na década de 1990, reconheceram
e instituíram formas de organização local de acordo com a tradição aymara. O
poder local retomou formas de organização política do período inca. Tudo isso
conflui na crença de que a vontade social tem a força necessária para superar os
obstáculos existentes.
A convocação de uma Assembléia Constituinte, que em diferentes países
foi inúmeras vezes bandeira liberal e socialista, surge como o caminho para a
refundação nacional. No caso boliviano, trata-se de reconstituir formas de or-
ganização política aymara e quéchua, objetivo que ganhou raízes fortes ao longo
dos anos de 1990. Os indígenas participaram das lutas pela independência, mas
foram excluídos em 1825, ao fundar-se a república. Morales lembrou, em sua
posse, Tupaj Katari e Bartolina Sisa, que dirigiram a insurreição indígena de
1781. Paradoxalmente, como no caso dos zapatistas no México, a globalização, a
valorização das culturas locais, o reconhecimento do papel das diferenças, ob-
jetivos incentivados por instituições tão diferentes como a Unesco e a Fundação

88
Tullo Vigevani

Ford, tiveram resultados concretos. Por isso, a utilização da Internet e dos meios
de comunicação mais modernos conflui com a valorização do tradicional.
Na Bolívia, esse sentir profundo de povos latino-americanos pareceu ma-
nifestar-se com mais intensidade nesses últimos anos, refletindo, com mani-
festações específicas, uma sensação de protesto contra a indiferença dos países
centrais e das elites locais. Há algo parecido na Venezuela, onde o apoio popular
que o governo Hugo Chávez desfruta sugere uma forma de protesto contra a in-
diferença. Políticas sociais parcialmente distributivas, quando possíveis, dão
sustentação a dirigentes carismáticos. As constantes mobilizações indígenas
no Equador devem ser vistas na mesma perspectiva: a busca do resgate da
dignidade, ainda quando não se traduzam em projetos políticos abrangentes.
De modo muito diferente, refletindo situações que não permitem comparações
simplificadoras, em vista da formação cultural dos povos, do estágio alcançado
por suas economias, da inserção no mundo, governos como os de Néstor Kirch-
ner, Lula da Silva e Tabaré Vasquez também refletem a busca de emergência de
grupos que estavam longe do poder, muitas vezes política e socialmente margi-
nalizados. Nos casos de Argentina, Brasil, Uruguai, além das citadas diferenças,
é importante registrar a existência de um aparelho estatal mais consolidado e,
não menos importante, experiências recentes de funcionamento democrático,
com institucionalidade provada por sérias crises políticas. Tem especificidades
o caso chileno, onde a estabilidade institucional e um sistema partidário mais
consolidado, tem evitado o surgimento de figuras extrapartidárias, de radical
ruptura com a história política anterior. De forma semelhante aos outros paí-
ses da região, a questão da desigualdade ganhou importância numa campanha
eleitoral, a de Michelle Bachelet, em que um governo socialista sucedeu a outro
do mesmo partido. O relatório de Latinobarómetro relativo ao período de 1995
a 2005 mostra que a adesão à democracia tem sido razoável na América Latina,
inclusive nos países onde as lideranças carismáticas ganharam importância,
como na Venezuela. Há um reconhecimento explícito de seu significado, ain-
da que os índices de indiferença sejam significativos. Em alguns países haveria
menor adesão. De todo modo, a adesão se demonstra pelo alto índice atribuído
à democracia entendida como sistema de eleições livres. Essa percepção tem se
mantido tendência estável ao longo dos anos, ainda que se reduzindo o reconhe-
cimento em alguns países, como o Peru.

89
Os novos paradoxos latino-americanos

O papel das instituições

Antes de indicar alguns fatos estruturais da situação sul-americana ou


mesmo latino-americana, registramos cinco pontos que nos parecem da maior
importância, merecedores de análises aprofundadas.
O primeiro ponto refere-se à questão do papel da democracia como ins-
trumento de vontade popular. Como retomaremos adiante, tem crescido na
região –, talvez seja um fenômeno internacional –, uma razoável dúvida sobre
a capacidade dos sistemas democráticos de enfrentar positivamente os proble-
mas do desenvolvimento e da igualdade. Em nossa região, isso se deveria ao
fato de que experiências democráticas que vêm consolidando-se há vinte anos
ou mais, não conseguiram avançar na resolução das expectativas econômicas e
sociais básicas da maioria da população. Esse tema coloca-se em países como
Argentina e Brasil. Paradoxais são os exemplos das democracias mais velhas na
América do Sul, Colômbia e Venezuela, onde a relativa normalidade democrá-
tica ocorre desde 1958. Mesmo, como afirma a pesquisa de Latino-barómetro,
com o reconhecimento do papel da democracia, isso leva a sinais de descrença,
estimulando fenômenos de anomia. Em face de Estados débeis, ao menos em
sua capacidade de promover o desenvolvimento, surgiram sinais de agregação
social fora do Estado e contra o Estado, de modo apolítico, portanto, sem apre-
sentação de qualquer projeto. Exemplos conhecidos dessa evolução são as gan-
gues de delinqüência juvenil existentes na Guatemala, Honduras e El Salvador.
O fato de que nas eleições de diferentes países possam ganhar, ou aproximar-se
disso, candidatos externos ao establishment tradicional, que ascendem ao poder
na esteira de movimentos que se consideram historicamente marginalizados,
poderia levar a uma nova fase de fortalecimento democrático do Estado. Poderia-
se desenvolver um movimento centrípeto, levando ao reconhecimento do papel
do Estado de parte de grupos que vinham dele se afastando. Se o Estado não
se mostra plenamente legítimo, pode-se fortalecer a cultura, o meio ambiente
favorável à atomização da sociedade. A legitimidade se comprovaria por uma
democracia que possibilita não apenas alternância, mas também emergência
dos despossuídos. Portanto, em princípio, forças políticas com origem em mo-
vimentos sociais radicalizados, quando passam a exercer o governo ou dele se
aproximam pela apropriação do espaço público, pela inserção nas instituições,

90
Tullo Vigevani

no Parlamento, governando Estados ou municípios, podem contribuir para re-


duzir os riscos de anomia.
O segundo ponto refere-se à questão da governabilidade. Algumas experi-
ências, de governos nacionais ou regionais, indicam que a chegada ao poder de
forças políticas com origem em movimentos populares de contestação não levam
à instabilidade. Em certos casos, há a incorporação e mesmo a coptação de diri-
gentes dos movimentos sociais ao Estado. Foi assim no governo do Distrito Fede-
ral do México, dirigido pelo Partido Revolucionário Democrático (PRD). Temos
situações parecidas no Brasil e na Argentina. Nesta última, piqueteros passaram a
integrar o governo Kirchner, ocupando altos escalões, encarregando-se das políti-
cas de emprego, habitação ou de distribuição de renda. Utilizando a formulação de
Max Weber, podemos estar diante de uma evolução da ética da convicção à ética
da responsabilidade, sem abandono da primeira, mas um aprendizado das neces-
sidades de governo. As responsabilidades de governo levam à necessidade de re-
solver os problemas, de indicar soluções. A evolução em direção à governabilidade
não é certa. O que é certo é que os dirigentes políticos que governam, ao buscarem
o sucesso de seus projetos, o atendimento dos anseios dos seus representados e
a continuidade de seu poder ou do poder de suas tendências e movimentos, são
levados necessariamente à busca do êxito. Podem, ante o tema da governabilidade,
apresentar tendências opostas. Por um lado, a busca do êxito político-administra-
tivo, visto como atendimento das demandas sociais e da demanda de desenvol-
vimento do país – isso exige competência e eficiência. Por outro lado, a repetição
de dificuldades no exercício administrativo, a verificação da impossibilidade de
atendimento das expectativas pode levar à busca do apoio popular por meio de
fughe in avanti, isto é, pela reiteração de promessas, pela criação de miragens futu-
ras. Como analisou um diplomata brasileiro, a catarse de uma sociedade pode ser
necessária, como caminho inevitável para a instauração de democracia política
e social. Em seguida, haveria um movimento de assentamento que, ao longo da
História, produziu muitos Thermidors. Pode ser que, no caso de alguns países da
América Latina, vistas as anteriores experiências revolucionárias, haja menos afã
e maior preocupação por uma governabilidade que assegure avanços econômicos
e sociais estáveis.
O terceiro ponto também tem a ver com democracia, mas vista de outro ân-
gulo. As qualificações de democracia têm sido variadas ao longo do tempo e, em
todo o século XX, repetiram-se debates a seu respeito. Para Rosa Luxemburgo,

91
Os novos paradoxos latino-americanos

democracia socialista é a garantia de poder divergir, de poder defender as pró-


prias idéias e de lutar em igualdade de condições para ganhar o apoio da maioria.
Joseph Schumpeter afirmou que democracia é o respeito das regras para a esco-
lha dos que devem ter o mando, sinalizando fortemente o aspecto institucional.
Para Robert Dahl, dois fatores são importantes: o direito à competição e a maior
participação dos cidadãos na vida pública. No populismo tradicional da América
Latina, dos anos de 1940 e 1950, muitos governos chamados populistas, como o
de Perón, não levaram à ditadura. As liberdades democráticas em boa medida
permaneceram. O que caracterizou o populismo foi a relação do dirigente po-
lítico com a população. Essa relação surgia como direta, sem a intermediação
de partidos e sobretudo de instituições. Na atual situação da região, o papel das
instituições será decisivo para o fortalecimento da democracia, assim como o res-
peito do estado de direito.
Como dissemos, a forma como ocorre a emergência de populações histo-
ricamente à margem é um fato novo, e pode ter grande significado para toda a
humanidade. Nunca as populações indígenas haviam irrompido na cena da His-
tória como hoje surge no Equador, Peru e Bolívia. Antes, as oligarquias não as
deixavam emergir e havia debilidade, de parte dessas populações, na capacidade
de formulação de propostas políticas que as alçassem à hegemonia na sociedade
e ao controle do Estado. Nem mesmo os movimentos populares e de esquerda ao
longo do século XX haviam plenamente encampado a reivindicação do resgate e
da dignidade da forma como surgiu na década de 1990 e agora no século XXI. A
questão surgira na revolução mexicana dos anos de 1910, nos momentos de maior
força do Apra ou do MNR. Nesses casos, com o tempo, os grupos guindados ao
poder acabaram sendo reabsorvidos pelas estruturas não integralmente muda-
das. Em certas situações, surgiram com força as massas marginalizadas, mas o
momento da emergência foi breve, nunca sepultando plenamente a estratificação
que vinha do período colonial e pós-colonial. Peronismo e getulismo viabiliza-
ram a emergência, deram papel sobretudo aos trabalhadores urbanos, mas não
criaram instituições democráticas e participativas. Não se desenvolveram ór-
gãos democráticos, com instrumentos representativos e de democracia direta. A
representação se fazia, no populismo, sobretudo sob forma plebiscitária. A con-
figuração das relações internacionais tampouco contribuiu para a consolidação
dos momentos da emergência popular. Os grupos dirigentes acabaram partici-
pando da política e evoluindo em formas semelhantes às descritas por Robert

92
Tullo Vigevani

Michels, no início do século XX, que estudou os partidos socialistas, e por Leon
Trotsky, em sua análise da burocratização stalinista. As estruturas envolviam
as pessoas e os símbolos erguidos pela emergência popular, e essas estruturas
acabaram erguendo-se acima da emergência. A globalização, a participação da
sociedade civil em escala mundial, os chamados valores politicamente corretos,
ainda que paradoxalmente, tudo contribui para que hoje, no século XXI, haja
uma forte atenção para o respeito às instituições. Assim como a democracia tem
sido o instrumento da emergência, a sua consolidação depende da continuidade
do interesse pela política de parte da população mas também do respeito pelas
instituições do estado de direito. A construção de instituições democráticas fortes,
entre elas a possibilidade de partidos representativos e de movimentos sociais, e o
estado de direito definirão se a emergência se consolida na plena vida democrática.
Nas últimas décadas, a experiência de países como Argentina, Brasil, Uruguai e
Chile sugerem haver razões para acreditar na consolidação da democracia. O
interesse pela política deve ter continuidade. A mobilização militante acontece
em momentos de grande tensão, mas não é continua.
O quarto ponto que incidirá no caráter do regime político é o da capa-
cidade de produzir resultados sociais e econômicos significativos. Democracia é
o governo do povo. Uma determinada população pode acreditar que o melhor
para si seja a autarquia, o isolamento ante o mundo externo. Tem o direito de
agir conforme essa convicção, eventualmente majoritária. A experiência do sé-
culo XX, até mesmo a dos países socialistas, indica que a desconexão, ainda que
parcial, diante da economia internacional pode trazer sérias conseqüências ne-
gativas para os Estados. Desconexão não significa falta de democracia. Depende
da concepção de mundo que cada povo tem. Parte das forças que têm impor-
tância na emergência das populações da América Latina busca a reconstrução
do mundo anterior, do mundo dos antepassados, de suas instituições. No caso
boliviano, a experiência mostrou que não foi suficiente a cidadania alcançada
em 1952; agora é necessária a construção da identidade índia da Bolívia. O mes-
mo vale para o Peru, sobretudo para o sul do país. O mesmo para o Equador e
para a Guatemala. Com as ressalvas que a questão merece, pode-se dizer que
não há reconhecimento – de parte das populações indígenas – dos Estados cria-
dos pela independência alcançada pelas oligarquias criollas no início do século
XIX. Coloca-se a possibilidade de fechar o ciclo de estrangeirização do índio,

93
Os novos paradoxos latino-americanos

como indicado no Manifesto de Tihauanaco. Trata-se de um direito que deve ser


plenamente reconhecido.
Muitos falam em Estados plurinacionais. A novidade é que se reivindica,
agora com força política e social real, como discute Aníbal Quijano, um Estado
que possa representar mais de uma nação, a criação de uma múltipla cidadania.
Os aymaras, por exemplo, vivem em cinco Estados. O sistema internacional parece
ter pela frente a necessidade de construir relações de não fácil formatação. A mo-
dernidade implica conexões amplas, fluxos comerciais, culturais, tecnológicos,
financeiros, mas também o reconhecimento das diferenças nacionais e locais. Se
os governos com base em movimentos populares quiserem alcançar êxito social
e econômico, terão que compatibilizar a refundação com uma adequada relação
com o mundo exterior. Esse tema é de grande importância para a política externa
do Brasil. Para obter resultados econômicos e sociais significativos, o laissez-faire,
a crença fundamentalista no mercado, mas também o espontaneismo localista,
não parecem ser o caminho. A atribuição dos ministérios que se ocupam das ri-
quezas do subsolo, dos hidrocarburetos, petróleo e gás – nos governos de Hugo
Chávez e de Evo Morales – a ministros de comprovada competência, sugere preo-
cupação pela execução de políticas econômicas adequadas ao mundo contempo-
râneo. O paradoxo dos governos democráticos originados na revolta popular – no
repúdio ao Estado – é que ao buscarem o desenvolvimento social e econômico,
perceberão a necessidade de um Estado moderno, competente. Estado que garanta
direitos e diferenças, que incorpore visão de mundo com múltiplas cidadanias,
talvez multinacional, sabendo sobrepor-se aos interesses imediatos ou corporati-
vos, que possa agir de forma decidida.
O quinto ponto, de interesse para a ciência política, refere-se a possíveis
novas utilizações dos instrumentos democráticos e do Estado liberal. As formas
representativas, as eleições, partindo da análise liberal clássica – de John Locke a
Edmund Burke – deveriam favorecer o espírito conciliador, o diálogo, a negocia-
ção, a tolerância, o centro político. Os movimentos revolucionários jacobinos ou
socialistas muitas vezes rejeitaram a forma representativa por entender que ela fa-
vorece a reprodução do poder e da dominação existentes, preferindo a democracia
direta. O exercício da democracia em alguns países latino-americanos, mas não
apenas nesta região, parece estar fazendo surgir um novo paradoxo. A democra-
cia vem possibilitando nos últimos anos o ascenso de forças anti-sistêmicas que
assim afirmam sua legitimidade. Parece que os fatos em curso em alguns países

94
Tullo Vigevani

latino-americanos serão laboratórios de experiências democráticas, de onde pode-


rão surgir dados inovadores. A radicalidade de alguns programas de governo ou o
discurso agressivo – por exemplo, em relação ao sistema de poder internacional,
aos Estados Unidos – surgem como compatíveis com a democracia e com o desen-
volvimento. Veremos como essas novas situações poderão ser compatibilizadas
e absorvidas no campo das relações internacionais. Será preciso observar se as
políticas autônomas ou mesmo contrapostas a interesses dos países centrais, em
alguns casos mesmo a países como o Brasil e a Argentina, combinarão com a plena
manutenção do estado de direito e da democracia.
Nesses anos, foram eleitos democraticamente governos que se insurgem
contra dominações históricas, portanto, haveria razão para supor que a demo-
cracia se enraíza profundamente na sociedade e passa a ser um instrumento re-
conhecido de emancipação dos excluídos que, ao se apropriarem dela, tornariam-
na um instrumento ao mesmo tempo libertador e garantista. Seria um fato novo,
da maior importância, cujas conseqüências não podem ser agora medidas e que
diferencia a maioria desses movimentos de cunho popular dos ocorridos no passa-
do. A capacidade democrática, o reconhecimento dos direitos de todos, as garantias,
também serviriam para evitar a tentação de romper, a partir de posições regionais,
o poder do governo nacional. No caso da Bolívia, assim como acontece no Brasil, o
poder do governo central é politicamente equilibrado pelo papel do Parlamento e da
Justiça, mas também por resultados eleitorais que mostram diversidade partidária.
Enquanto em Chuquisaca, Oruro e Potosí ganha o MAS, o partido Podemos, de Jorge
Quiroga, vence em La Paz, Pando e Beni. Em outras províncias, ganham partidos
regionais, inclusive o Autonomia para Bolívia, independentista, em Santa Cruz. Tam-
bém em Tarija e Cochabamba ganham forças locais. Se esse laboratório de experiên-
cias democráticas tiver êxito, haverá comprovação empírica de que a estrutura do
Estado democrático é adequada à incorporação de todo o povo também em países
pobres, abrindo, ao menos em princípio, o caminho para governos que atendam aos
interesses de camadas maiores da população.

Questões estruturais não resolvidas

Os parâmetros políticos que vão se desenhando na região devem ser com-


preendidos no contexto de deterioração estrutural que se acentuam desde os

95
Os novos paradoxos latino-americanos

anos de 1970 e 1980. Esse contexto não pode ser alterado a curto prazo como
resultado do surgimento de governos que recolhem, ou parecem recolher, o des-
contentamento popular. Joan Prats afirma que um dos desafios do novo gover-
no boliviano é o de impulsionar políticas de desenvolvimento sustentável com
eqüidade. Sabemos como isso é difícil, mesmo quando o grupo dirigente do Es-
tado dispõe da vontade de trabalhar nessa direção.
Na América Latina, encontramo-nos em situação onde pode se aplicar a
idéia de vulnerabilidade social elaborada pela Cepal (Comissão Econômica para
a América Latina e o Caribe, das Nações Unidas), para explicar as conseqüên-
cias sociais do modelo econômico prevalentemente vigente aplicado nas duas
últimas décadas. O conceito busca retratar a situação de precariedade econômi-
ca e social de boa parte da população latino-americana. Em razão do aumento
da pobreza e da indigência e, conseqüentemente da fome, do desemprego e da
informalidade no mercado de trabalho, aumentaram as condições sub-huma-
nas de existência na infância, piorou a concentração de renda e tornou quase
impossível a elevação das condições sociais.
Usando os conceitos de Emile Durkeim, essa situação parece dificultar a
manutenção da solidariedade mecânica, comprometendo a existência de soli-
dariedade orgânica na sociedade. A dificuldade ou a incapacidade do Estado e
da sociedade civil estruturada em promover a solidariedade produz em grupos
específicos novas formas de agregação social. Um dos aspectos visíveis é o au-
mento da violência aparentemente despolitizada em algumas áreas urbanas, o
mesmo se dando em algumas áreas rurais, e a questão do narcotráfico acaba
ganhando destaque, como é o caso de algumas regiões colombianas. Essas ma-
nifestações nem sempre têm semelhanças nos diferentes países, mas acabam
por incidir sobre a vida política dos Estados. E podem criar um caldo de cultura
favorável a situações localizadas de anomia. A expectativa que se forma, com o
surgimento de governos – ao menos inicialmente, com forte sustentação popu-
lar – é a da reabsorção dos sinais de anomia que se apresentam em diferentes
países. Esses sinais não significam oposição à democracia nem ameaças a ela,
mas sim o enfraquecimento de sua sustentação ativa, porque o Estado surge
como um aparelho sem capacidade de resolver problemas, crescendo as dife-
rentes manifestações de distanciamento em relação a ele. Governos como o de
Evo Morales criam a expectativa de adesão da sociedade ao Estado; podem, se

96
Tullo Vigevani

forem bem-sucedidos, marcar uma tendência – ainda que lenta – de reversão


da anomia.
Dentro da mesma perspectiva, cabe uma interrogação também no que
respeita ao tipo de democracia que surgiria na América Latina. Para Guiller-
mo O’Donnell, as democracias emergentes da América Latina constituíram-se
como um novo tipo de poliarquia que incorporou as regras fundamentais das
poliarquias clássicas, sobretudo eleições efetivas, mas deixam a desejar quando
se trata dos outros critérios, principalmente direitos de segunda, terceira e quar-
ta gerações, ou seja, direitos econômicos, sociais e os derivados das novas tec-
nologias. Esses novos tipos de poliarquia, distintos das democracias represen-
tativas ocidentais, poderiam ser caracterizados como democracias delegativas.
Democracias delegativas se caracterizariam pela funcionalidade de uma concepção
parcialmente cesarista, bonapartista ou plebiscitária. No caso latino-americano, em
algumas situações, ela tomaria a forma de populismo. O governante eleito se percebe
investido do poder de governo em vista do grau de apoio popular que lhe dá susten-
tação, constrangido apenas pelas relações de poder existentes e pelo tempo constitu-
cionalmente limitado do seu mandato. Inversamente, num contexto de certa debili-
dade das instituições, a diminuição dos índices de popularidade poderia abrir crises
institucionais. Este modelo combinaria eleições livres, competitivas e formalmente
institucionalizadas, com instituições políticas relativamente fracas. De acordo com
relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de 2004,
a democracia formal levaria ao risco de “democracias irrelevantes”.
Sendo assim, longe de seguir o modelo de poliarquia clássica, as demo-
cracias latino-americanas parecem tender a institucionalizar um modelo de de-
mocracia bastante peculiar, que mescla aspectos centralistas com níveis baixos
de exercício democrático: baixo acesso de parte da população às instituições,
baixa capacidade de controle, desconfiança em relação à justiça e ao poder de
polícia, imaginário de corrupção, etc. Alguns governos recentemente surgidos,
ou que poderão surgir, trazem uma carga de mobilização significativa. Para a
estabilidade democrática, e para evitar o caminho do populismo, que alguns
apontavam como inevitável, o papel das instituições parece tornar-se uma
questão-chave. Segundo Nelly Arenas, os sinais de populismo no governo Hugo
Chávez originam-se exatamente na crença de que qualquer salvação dependeria
da figura do presidente. Quanto mais absorvidos os valores democráticos na
prática política das lideranças, principalmente do presidente e do núcleo central

97
Os novos paradoxos latino-americanos

do poder, menor a probabilidade das paixões públicas tenderem para o autorita-


rismo. Inversamente, quanto mais centralista, bonapartista ou tendencialmente
plebiscitária a liderança, maior a tendência das paixões públicas aceitarem prá-
ticas não convencionais. Disso surge o papel importante das instituições, que
podem canalizar adequadamente as eventuais virtudes carismáticas.
A busca de compreender o impacto que a vulnerabilidade social e os sinto-
mas de anomia têm sobre o sistema político latino-americano, leva à reflexão so-
bre as razões pelas quais o relativo fortalecimento do Poder Executivo encontram
acolhida no sistema partidário e na sociedade. O fenômeno pode fortalecer-se no
quadro de contextos políticos distintos como os da Colômbia e da Venezuela. Inte-
ressante chamar a atenção a respeito do caso argentino, onde há tradição de forças
políticas organizadas, justicialistas, radicais e esquerda. Neste caso, nem mesmo o
capital cultural acumulado pôde impedir que o equilíbrio da política nacional es-
tivesse fortemente vinculado ao papel da presidência, como acontece desde 1983,
quando se encerrou o ciclo de governos militares. O papel de Carlos Menem na
década de noventa, mas também o de Nestor Kirchner atualmente, está indicando
a reiteração de situações onde as instituições mostram relativa debilidade perante
personalidades marcantes.

Em conclusão

Até recentemente, em meados da primeira década do século XXI, assistía-


mos na América Latina a um movimento de acomodação que permitiu a perma-
nência, até mesmo a relativa estabilidade, de instituições políticas democráticas,
paralelamente à deterioração do tecido social; este convívio não ameaçava a or-
dem existente no seu conjunto: isto é, o Estado mantinha a sua rotina e, ao mesmo
tempo, ampliava-se uma situação em que grupos, classes, etnias, a vida da popu-
lação em áreas particulares articulam-se independentemente dele. O que surge
como fato novo, recente, ainda que gestado nas entranhas da sociedade há tempo,
particularmente a partir dos anos de 1990, é que parte dos atores que foram ao
longo dos séculos marginalizados, desconhecidos, ressurgem, emergem, tentam o
resgate de sua própria dignidade. A vulnerabilidade social e a anomia impactam
o Estado. Agora, de modo inédito, constituindo-se um fenômeno novo – ainda
que com algumas semelhanças a experiências do século XX – emergem com força

98
Tullo Vigevani

grupos, setores, etnias, classes externas ao Estado. A simbologia, o significado do


império inca, o Tawantinsuyu exercem papel importante nos países andinos, no
Peru, na Bolívia, no Equador. Essas sociedades, esses povos buscam conectar-se
com as estruturas sociopolíticas do passado. Para alcançar o desenvolvimento,
a dignidade – que significa também condições de vida compatíveis com a mo-
dernidade, maior riqueza, aproveitamento dos recursos para o beneficio de todos
– deverão refundar o Estado de forma a que ele também busque a eficiência, num
quadro democrático que ultrapasse o formalismo.
As políticas de desconstrução do Estado e a crença fundamentalista nos po-
deres do mercado contribuíram, ao menos nas décadas de 1980 e 1990, para o au-
mento da vulnerabilidade social na região, portanto, para o aumento de excluídos.
A partir daí cria-se uma situação em que as promessas de um mundo melhor ga-
nham peso político, ganham força real, tornando-se tangíveis e capazes de mudar
relações seculares. Desenvolvem-se formas inovadoras de emergência política e
social, como as representadas pelo vigor de movimentos indígenas, de populações
camponesas, de massas urbanas relegadas à extrema pobreza. A desconstrução e
a crença fundamentalista acabam redundando em pressão por políticas de atendi-
mento emergencial. Nos anos de 1950 e 1960 a mobilização política multiclassista
ocorria em troca de amplos benefícios. Governos como os de Domingos Perón e
Getúlio Vargas trouxeram benefícios tangíveis, não mais alcançados. Hoje, parece
ressurgir a disponibilidade popular para programas distributivos, mas os cons-
trangimentos locais e internacionais resultam em balizas às quais é díficil fugir.
Na atualidade, a redistribuição de renda não sustentada por um plane-
jamento econômico de longo prazo – ou o discurso a seu respeito – tem ba-
ses estreitas, em vista das restrições e dos condicionamentos da globalização.
A dimensão redistributiva parece limitada. Sem dúvida, o tema está posto não
apenas pela observação empírica de processos em curso nos anos de 1990, mas
também em razão da base objetiva que estimula lideranças a capitalizar a ex-
pectativa de esperança difusa. A partir dessas limitações, partidos e forças so-
ciais ativas e bem estruturadas podem consolidar formas democráticas recons-
truindo o Estado, compatibilizando o resgate da dignidade e a emergência de
populações até hoje externas ao Estado com um desenvolvimento sustentado? A
superação do aparente paradoxo abriria uma nova etapa na região.
Enfim, a América Latina estaria demonstrando que o apego das pessoas
à democracia é mais complexo do que se imaginava. De acordo com Omar En-

99
Os novos paradoxos latino-americanos

carnación, o medo da perda da liberdade política e da volta do autoritarismo,


com todas as suas atrocidades, seria o principal pilar dos regimes democráti-
cos na região. Contudo, o autor aponta que esse medo do regresso autoritário
pode prejudicar o aprofundamento da democracia, pois desencoraja reformas
econômicas, sociais e institucionais mais ousadas e necessárias para o desen-
volvimento regional. Esse paradoxo pode ser resolvido por governos como o de
Evo Morales? A escassa confiança nas instituições e no governo resultou, pelo
menos em parte, do fato de a democracia não ter sido capaz de promover mais
justiça social.
Poderia a memória, a revalorização das instituições ancestrais, do mes-
mo modo que o resgate das autonomias locais em outras latitudes, revigorar a
democracia, dando-lhe maior legitimidade em face dos descaminhos trazidos
pelo esvaziamento produzido pelo laissez faire? Lembremos que as pessoas são
importantes, mas o que define as perspectivas futuras são as instituições; isto é,
Parlamento, Judiciário, partidos, movimentos sociais fortes e aptos ao diálogo e
o estado de direito. Trata-se, como se vê, de um enorme desafio.

100
Capitulo 6

América latina:
vulnerabilidade social,
instabilidade democrática e
“neopopulismo”
Marcelo Fernandes de Oliveira

O conceito de vulnerabilidade social foi elaborado pela CEPAL para explicar


as conseqüências sociais da aplicação do modelo econômico neoliberal
nas duas últimas décadas na América Latina. Ele busca retratar a situação de
precariedade econômica e social de boa parte da população latino-americana.
Devido, entre outros fatores, ao aumento da pobreza e da indigência e, conse-
qüentemente da fome, do desemprego e da informalidade no mercado de traba-
lho, o aumento das condições sub-humanas de existência na infância, a piora na
concentração de renda, a quase impossibilidade de elevação social e a ampliação
dos níveis de violência.
Esta situação de “vulnerabilidade social” dificulta a manutenção de soli-
dariedade mecânica no seio da família e compromete a existência de solidarie-
dade orgânica na sociedade. Isso porque há indícios de que essa realidade vem

 Segundo Durkheim (1985), a solidariedade mecânica apesar de ser uma ca-


racterística da fase primitiva da organização social tende a persistir na insti-
tuição família na medida em que emerge das semelhanças psíquicas e sociais
(e, até mesmo, físicas) entre os membros individuais em busca de proteção
mútua contra as ameaças externas ao grupo.
 Segundo Durkheim (1985), a solidariedade orgânica é baseada na complementação
América latina: vulnerabilidade social, instabilidade democrática e “neopopulismo”

produzindo aumento da violência na área urbana e conflitos sócio-econômicos


difusos na área rural. O que tende a gerar uma maior sensação de insegurança
na população, em grande medida, ampliada pela violência provocada pela ques-
tão das drogas na região. Entrevistas de opinião pública realizadas pela CEPAL
mostram que “(...) porcentajes crecientes de la pobración declaran sentirse so-
metidas a condiciones de riesgo, inseguridad e indefensión” (Panorama Social
de América Latina 1999-2000, 2000: 13).
A conseqüência mais evidente dessa situação é a exposição da família a ris-
cos de todas as formas e graus, a geração de uma espiral negativa que aumenta
crescentemente a percepção de insegurança no seio da sociedade que combina-
da às taxas mais elevadas de desigualdade econômica e social do globo terrestre
poderá no aspecto hemisférico gerar uma situação de anomia. O crescimento
de protestos sociais violentos são traços indicativos dessa tendência que possui
bases bastante concretas ao produzir dificuldades em aspectos chaves da vida
cotidiana de grandes parcelas da população sul-americana como foi, por exem-
plo, os casos na Bolívia, no Peru e no Equador.

de partes diversificadas. O encontro de interesses complementares cria um laço so-


cial novo, ou seja, um outro tipo de princípio de solidariedade, com moral própria, e
que dá origem a uma nova organização social. Sendo seu fundamento a diversidade,
a solidariedade orgânica implica uma maior autonomia, com uma consciência in-
dividual mais livre. Entretanto, o pano de fundo para a garantia de bem estar social
entre os indivíduos exige a existência de ordem para o progresso. Ou seja, Estado e
sociedade em ordem maiores possibilidades para o progresso e, por conseguinte,
crescimento, desenvolvimento e distribuição de riqueza. O que na atualidade não
ocorre na maioria dos países latino-americanos. A conseqüência é desordem e falta
de progresso que contribuem para o rompimento da solidariedade entre os indiví-
duos, abrindo assim, a possibilidade de enfrentamento violento entre os mesmos.
 Segundo Durkheim (1985), anomia significa ausência de normas. Pode ser utili-
zada tanto à sociedade como para indivíduos. Enfim, caracteriza uma situação de
desorganização social ou individual ocasionada pela ausência ou aparente ausência
de normas. A anomia é “uma condição social em que as normas reguladoras do
comportamento das pessoas perderam sua validade. Uma garantia dessa validade
consiste na força presente e clara de sanções. Onde prevalece a impunidade, a efi-
cácia das normas está em perigo. Nesse sentido, a anomia descreve um estado de
coisas em que as violações de normas não são punidas”.

102
Marcelo Fernandes de Oliveira

Para o combate desta realidade se faz necessário a recuperação da capaci-


dade de ação do Estado de direito na região para a promoção de políticas públicas
para a geração de bem estar social difuso. Isso porque parcelas significativas da
sociedade sul-americana estão buscando sua sustentação em grupos “fora da lei”,
deslegitimando a figura do Estado e seus governantes, os quais, sem condições à
ação tendem a estarem mais suscetíveis a utilização dos discursos “neopopulis-
tas” na arena política. Em outras palavras, as condições de deterioração sócio-
econômicas – vulnerabilidade social - que vive hoje boa parte da população sul-
americana vem se tornando uma ameaça crescente ao produzir uma situação de
anomia endêmica que poderá ter sérios impactos sobre a democracia.
Prova disso, é a ampliação do descontentamento da opinião pública lati-
no-americana com a democracia. Nessa direção, parece se cristalizar na região
uma percepção negativa do Estado e das suas instituições políticas em decor-
rência da vulnerabilidade social. A população parece estar frustrada com os
resultados econômicos produzidos pela democracia. No caso do Brasil, 65% de
entrevistados pela pesquisa Latinobarometro 2003 não se importaria com o ca-
ráter anti-democrático do governo desde que ele solucionasse seus problemas
econômicos cotidianos. Isso significa que a maioria da população pode estar
disposta a ceder seus direitos políticos reconquistados na década de 1980 em
troca da ampliação de direitos econômicos e culturais.
A base do crescimento dessa percepção coletiva encontra-se no seguinte tri-
pé: a) a existência de eleições livres e transparentes (direitos políticos e civis) em
b) um contexto de profundas desigualdades econômicas, sociais e culturais (au-
sência de direitos econômicos e culturais) somado a c) existência de mecanismos
institucionais que permitem a concentração de poder nas mãos do executivo.
O´Donnel (1994) considera ser essa combinação uma democracia dele-
gativa. E se caracteriza pela funcionalidade de uma concepção parcialmente
cesarista, bonapartista ou plebiscitária. No caso sul-americano, em algumas si-
tuações tomaria a forma de populismo ou “neopopulismo”. O governante eleito
se percebe investido do poder de governo em vista do grau de apoio popular
que lhe dá sustentação, constrangido apenas pelas relações de poder existentes
e o tempo constitucionalmente limitado do seu mandato. Inversamente, num
contexto bonapartista, de certa debilidade das instituições, a diminuição dos
índices de popularidade poderia abrir crises institucionais. Seriam os casos da
Bolívia em 2003 com a crise do governo De Lozada, ou do Peru no governo Tole-

103
América latina: vulnerabilidade social, instabilidade democrática e “neopopulismo”

do. Este modelo combinaria eleições livres, competitivas e formalmente institu-


cionalizadas com instituições políticas relativamente fracas.
É ainda O’Donnell (1993; 1998) quem chama a atenção para o fato de que
as afinidades eletivas entre o particularismo, a quase falta de “prestação de con-
tas horizontal” entre as agências públicas, a pouca transparência dos processos
de tomada de decisão das políticas governamentais, a distância entre as normas
formais e o funcionamento concreto da maioria das instituições e as concepções
e as práticas delegativas e não representativas de autoridade política terminam
por reviver e acentuar parte das características do antigo autoritarismo.
Sendo assim, longe de seguir o modelo de poliarquia clássica, como for-
mulado pela ciência política contemporânea, as democracias sul-americanas
tendem a institucionalizar um modelo de democracia bastante peculiar, que
mescla aspectos autoritários com níveis democráticos reduzidos. Desse modo, a
inclinação política do presidente eleito ganha relevância. Quanto mais absorvi-
dos os valores democráticos na prática política das lideranças, principalmente
do presidente e do núcleo central do poder, menor a probabilidade das paixões
públicas tenderem para o autoritarismo. Inversamente, quanto mais centralis-
ta, bonapartista ou tendencialmente plebiscitária a liderança, maior a tendência
das paixões públicas aceitarem práticas não convencionais.
Essa realidade tende a produzir um solo fértil para discursos neopopulis-
tas. Nessa perspectiva, a realização de eleições em contexto de profundas desi-
gualdades econômicas e sociais, de vulnerabilidade social pode levar a maioria
dos eleitores a optarem por novas alternativas, elegendo uma série de novos
dirigentes menos comprometidos com as práticas democráticas. Dito de outro
modo, um novo fenômeno político, o neopopulismo, poderá emergir nos países
latino-americanos. Devido, sobretudo, as dificuldades sociais e econômicas que
passa a população para a qual a democracia foi vendida como solução de todos
seus males, mas até o momento, apesar de liberdades individuais e coletivas,
que são fundamentais, não foi capaz de garantir desenvolvimento econômico e
redução das desigualdades sociais, as quais ainda alimentam a formulação de
soluções autoritárias na região.
Pode-se dizer que essa onda neopopulista contemporânea prospera, em
grande medida, devido a esse fator. Além disso, lideranças políticas “neopo-
pulistas” vêm conquistando o poder em pleitos eleitorais transparentes porque
tem se apropriado das bandeiras históricas de igualdade econômica abando-

104
Marcelo Fernandes de Oliveira

nadas pela esquerda e pela social-democracia latino-americana. Isso porque


ambas incorporaram no discurso e na prática o modelo de gestão pública neoli-
beral que tantas mazelas sociais têm produzido na região. Em outras palavras,
ao abandonar suas bandeiras históricas, a esquerda e a social-democracia sul-
americana abriram um vácuo discursivo que vem sendo paulatinamente ocupa-
do por políticos capazes de canalizar o descontentamento popular e traduzi-lo
em votos durante as eleições.
Após o triunfo eleitoral, os políticos “neopopulistas”, por um lado, tendem
a radicalizar o modus operandi das democracias delegativas com a finalidade de
concentrar poder vis-à-vis a democratização do sistema político. E, por outro
lado, buscam criar arremedo de políticas públicas paliativas que tem como foco
distribuir benesses econômicas e definir os atores a serem beneficiados por elas
conforme suas respectivas densidades eleitorais. O objetivo é a perpetuação do
líder “neopopulista” no poder. Em um primeiro momento, aproveitando-se do
direito à reeleição. Depois, da tentativa de um terceiro mandato que quando ne-
gado pode conduzir “neopopulistas” a aventuras golpistas.
Chamamos de “neopoulismo” um fenômeno contemporâneo que possui
cinco atributos definidores: 1) liderança política personalizada e paternalista;
2) coalizão de apoio multiclassista, de setores populares urbanos ou rurais,
sindicalizados ou informais, contra a burguesia globalizada; 3) mobilização
política vertical que submete e subordina instituições políticas democráticas;
4) ideologia eclética e contra o status quo; 5) uso de métodos redistributivos e
clientelistas para obter apoio político de setores populares excluídos dos ganhos
da globalização (ROBERTS, 1995, p.85-89). Em resumo, os políticos “neopopu-
listas” são aqueles que elaboram um discurso redistributivista com a finalidade
de conquistar votos de segmentos do eleitorado prejudicado pelas restrições e
condicionamentos da globalização. Eles buscam capitalizar a expectativa de es-
perança difusa com promessas vazias que se traduzem no que vem se denomi-
nando no Brasil como “fraude eleitoral” com danos imensuráveis sobre a gestão
democrática.
Portanto, podemos afirmar que a deterioração sócio-econômica que leva
a condição de vulnerabilidade social, por um lado, vem contribuindo para rom-
per os laços de solidariedade orgânica e mecânica presentes nas sociedades sul-
americanas, as quais parecem estar caminhando para um processo de anomia
endêmica. E, como resultado, por outro lado, parece por em xeque o processo

105
América latina: vulnerabilidade social, instabilidade democrática e “neopopulismo”

de consolidação da democracia ao estilo dahlsiano na região. Fazendo emergir


um modelo político de democracia sul-americano concentracionista de poder
na figura do presidente que, em muitas ocasiões, conduzirá o Estado de acordo
com seus interesses particulares e do grupo que o cerca. Mais precisamente, o
contexto sul-americano colocará a necessidade do aprofundamento da demo-
cracia, do retorno de formas “neopopulistas”, do desenvolvimento de forças po-
líticas inovadoras – tais como os movimentos indígena e camponês - ou ainda
a deterioração lenta, convivendo altos graus de vulnerabilidade social e anomia
com regimes democráticos.
Nesta perspectiva, pode-se concluir que o crescimento econômico irregu-
lar na América do Sul nas duas últimas décadas agravou as condições sócio-eco-
nômicas da sua população. O conceito cepalino de vulnerabilidade social ilustra
bem essa realidade. A falta de perspectiva derivada desse cenário tem levado
parcelas da população latino-americana a identificar em grupos ilegítimos fon-
te provedora de recursos mínimos para sua sobrevivência. Como conseqüência,
o Estado perde parcialmente sua capacidade de exercer o monopólio legítimo da
violência. Isso pode conduzir ao fortalecimento de sinais de anomia.
A ineficácia do Estado em solucionar problemas tende a consolidar uma
visão negativa da sociedade sobre o desempenho da democracia na geração de
bem estar social difuso. Consolida-se então um descontentamento na opinião
pública sul-americana com a qualidade e com a incapacidade da democracia em
gerar ganhos econômicos e melhoras sociais. Generalizando-se a percepção de
que os governantes latino-americanos da era democrática não têm poder para
lidar com as expectativas criadas e alimentadas por eles mesmos.
Nesse quadro, a democracia dahlsiana subsistiria apenas parcialmente,
enfraquecendo-se sua consolidação. A tendência a um modelo concentracionista
de poder na figura do presidente nos países sul-americanos como, por exemplo,
a democracia delegativa poderia ser explicada como resultado da necessidade de
compatibilização da agenda liberal com necessidade de oferecer saídas, ainda
que pontuais, a expectativas crescentemente fortes na população. A questão se
torna ainda mais complexa quando, paralelamente, emerge lideranças políti-
cas com características “neopopulistas” dispostas a capitalizar a expectativa de
esperança difusa realizando promessas de um mundo melhor, as quais nesse
contexto ganham maior importância política, em pleitos eleitorais livres com o
único objetivo de alcançar o poder. Quando isso ocorre os “neopopulistas” ins-

106
Marcelo Fernandes de Oliveira

trumentalizam a democracia delegativa visando se perpetuarem no poder em


benefício de seus colaboradores e de grupos privados interessados em negócios
com o Estado.
A experiência da Venezuela no governo Chávez parece ser ilustrativa das
hipóteses desenhadas acima. Isso porque a ascensão eleitoral de Cháves ocor-
reu em virtude do seu grupo político ter captado as “vozes roucas” da rua, as
quais clamavam pela realização de mudanças políticas radicais que, na realida-
de, significava afastar do poder os grupos tradicionais como forma de puni-los
pela promessa de redistribuição de renda não cumprida. Em outras palavras,
a demanda popular venezuelana era por uma liderança forte que distribuísse
renda do petróleo aos mais pobres e não uma liderança revolucionária. Entre-
tanto, após assumir o cargo, a presidência Chávez fortaleceu o poder presiden-
cial em razão da dinâmica das próprias relações políticas, sobretudo de uma
ação agressiva e desestabilizadora de parte da oposição, a qual classificou como
“oligarca”. Cháves terminou por fortalecer-se em razão do apelo à mobilização
popular para consolidar o próprio poder, mas também em virtude de políticas
distributivas sustentadas pelos ganhos da exportação de petróleo que alcança-
ram algum êxito para os setores mais pobres da população, o qual chamou de
“patriotas”. As principais políticas de redistribuição de renda aos “patriotas”
são chamadas como “missões” e consistem na criação de supermercados po-
pulares, no incentivo e no apoio ao cultivo de alimentos no fundo do quintal,
mutirões para derrotar o analfabetismo com concessão de bolsas de estudos se-
cundários, construção de centros universitários, cooperação técnica horizontal
com Cuba para garantir tratamento médico aos mais pobres, etc. Simultanea-
mente, o papel carismático do presidente ganhou evidência, mostrando-se con-
junturalmente um fato político de grande relevância. Mas, a oposição critica que
“o estilo autoritário e impositivo desmente o caráter democrático que pretende
manter” no seu governo, pois, na verdade, o que prevalece é a concentração de
poder nas mãos do presidente como instrumento de ataque as elites, desqualifi-
cando-a como alternativa política junto ao eleitoriado em prol da consolidação
do próprio poder, transformando assim, a Venezuela em uma ditadura socialis-
ta. O próximo passo seria exportá-la para outros países da América do Sul.
O mesmo problema pode também ser colocado para a gestão Lula. Pois, o
governo parece ter aderiu à lógica do denominado presidencialismo de coalizão
– eufemismo de democracia delegativa -, inovando o processo de distribuição

107
América latina: vulnerabilidade social, instabilidade democrática e “neopopulismo”

dos “benefícios”, supostamente, segundo o ex-aliado deputado federal Roberto


Jeferson (PTB/RJ), por meio da locação de parlamentares mediante o pagamen-
to de um “mensalão”. O objetivo seria garantir apoio irrestrito da Câmara dos
Deputados à agenda do governo Lula para a distribuição paliativa de recursos
aos grupos da população em vulnerabilidade social por meio de Programas
como Bolsa Escola, visando capitanear votos à reeleição de Lula. No ápice da
crise do seu governo Lula buscou demonstrar a oposição que sua capacidade de
mobilização das massas continuava forte. Fez indicações públicas de que por
meio do carisma poderia mobilizar a sociedade civil contra o Legislativo com o
intuito de disciplinar os parlamentares oposicionistas.
No caso da Argentina, muitos analistas referem-se a um modelo de “de-
mocracia exclusionaria”. Este modelo se caracteriza pela legitimação de uma
forma de fazer política altamente discriminatória. Ao atribuir-se a culpa pela
crise econômica aos regimes “inclusionarios”, sugere-se que o modelo de de-
mocracia necessário à região deve pautar-se em um executivo com muita au-
toridade, denominado como “Ejecutivo elevado”, que se encarregará de dirigir
as transformações liberais necessárias. No governo Menem o poder de decreto
“transformou os poderes legislativos do presidente argentino de ‘reativos’ em
‘tencialmente dominantes’” (JONES, 1997:288). A constituição argentina de
1994 fortaleceu a concentração de poder no Executivo. A autoridade de decreto,
até então delegada, legitimou- se por meio da constitucionalização, coroando
o processo histórico do fortalecimento do poder da presidência. Em seguida,
a crise do governo de De La Rua o demonstraria, a articulação da vida política
nacional manteve-se centrada no Poder Executivo. Sua capacidade ou sua debi-
lidade, importantes em qualquer situação, no caso argentino acabaram sendo
um fator institucionalmente decisivo, não havendo outras estruturas do Estado
aptas ao exercício pleno dos próprios poderes. No caso de De La Rua sua inca-
pacidade em contornar a crise econômica, política e social do país desaguou na
sua renúncia em dezembro de 2001, inaugurando um período de intensa ins-
tabilidade. Em duas semanas, o país teve cinco presidentes. Na efêmera gestão
de Rodréguez Saá foi decretada a suspensão do pagamento da dívida externa, a
qual foi mantida pelos seus sucessores. Duhalde assumiu a presidência, rompeu
com a política de câmbio fixo e, depois de relativamente controlar o caos, con-
vocou eleições presidenciais.

108
Marcelo Fernandes de Oliveira

Num pleito conturbando em abril de 2003, Néstor Kirchner venceu as elei-


ções e apresentou-se como o único capaz de solucionar os impasses argentinos,
configurando-se como o “neopopulista” argentino. No discurso de posse, curto
e energético, o novo presidente prometeu um novo modelo de desenvolvimento
no qual “(...) o governo não pagará a dívida externa às custas do empobreci-
mento da nação”. Os laços com o Mercosul seriam reforçados, as relações com
os EUA seriam mais “sérias” e os credores “(...) terão que entender que só rece-
berão aquilo que a Argentina puder pagar. (...). Não se trata de não pagar, mas
não vamos pagar às custas de que cada vez mais argentinos não tenham acesso à
educação, à saúde e a um emprego digno”. Enfim, seu governo iria “reconstruir
a Argentina para os argentinos”. Na prática, na esfera internacional, isso signifi-
cou tensas negociações com credores externos e FMI, sendo o fim da moratória
Argentina decretado depois de 76% dos títulos públicos terem sido renegociados
com descontos próximos a 70%. No Mercosul, Kirchner se irritou com a falta
de apoio do Brasil no episódio com o FMI. Em seguida, implementou medidas
protecionistas a produtos da pauta exportadora brasileira, especificamente de
eletrodomésticos, em prol da indústria nacional. Além disso, não apoiou o can-
didato brasileiro à direção da OMC, apresentou proposta oposta de reforma do
Conselho de Segurança da ONU, se opôs ao asilo concedido ao ex-presidente
Gutierrez do Equador e não recebeu missão da Comunidade Sul Americana de
Nações na Argentina. Freqüentemente, Kichner divulga não gostar de reuniões
presidenciais, que prefere solucionar os problemas de uma cidade Argentina a
receber autoridades de outros países.
Em suma, o estilo K de governar combina momentos de contestação ve-
emente e enfrentamento aos atores da ordem mundial, mas sem desdobrar em
rompimentos definitivos, bem como fricções nas relações com os parceiros do
Mercosul com tentativas de neutralizar a liderança brasileira na América do Sul.
Alicerçado sobre um crescimento substancial da economia Argentina nos últimos
anos, o estilo K poderá se tornar um modelo alternativo de comportamento inter-
nacional para os países latino-americanos, conduzindo-os a afirmação de suas so-
beranias nacionais já residuais vis-à-vis o imperativo da integração sul-americana
como instrumento para enfrentar eficazmente os atores e as forças transnacionais
emergentes. Entretanto, sem escapar a pecha de “neopopulista”.
Em suma, cabe aos intelectuais sul-americanos responder as seguintes in-
dagações: em que medida o nexo causal entre vulnerabilidade social e lideranças

109
América latina: vulnerabilidade social, instabilidade democrática e “neopopulismo”

“neopopulistas” pode ameaçar a consolidação da democracia ao estilo dahlsiano


na América do Sul? Que tipo de democracia vem sendo elaborado na região no
bojo da acentuação da concentração de poder presente nas democracias delegati-
vas? Seria esse novo modelo de democracia algo imperativo na era da globaliza-
ção? Quais os novos perfis de lideranças que parecem se consolidar na América
do Sul? Contestação ao status quo por vias “neopopulistas”? Imobilismo com ins-
tabilidade democrática? Lideranças conservadoras neoliberais? Como construir
alternativas e soluções democráticas a realidade sul-americana contemporânea?
Há hoje no cenário regional experiências bem sucedidas nesse sentido?
Como pode ser observado, essas questões são complexas e de difícil solu-
ção. Mas, vale a pena ressaltar que é necessário serem enfrentadas desde já, pois
respondê-las adequadamente pode evitar a repetição de experiências traumá-
ticas contra a democracia na América do Sul. Pois, numa perspectiva otimista,
a alternativa aos “neopopulistas” é o retorno do conservadorismo de direita. O
triunfo de Uribe e García na Colômbia e Venezuela representa essa possível infle-
xão política. Na medida em que ambos aprofundarão o alinhamento automáti-
co desses países a política norte-americana. Entretanto, por motivos diferentes.
Uribe foi reeleito com uma plataforma eleitoral pautada na eficácia dos gastos
militares contra os ataques dos “narco-terroristas”. Supostamente, depois do
seu governo, a infra-estrutura do país passou a ser preservada, diminuindo os
custos de produção, o que teria tornado o país mais atrativo aos investimen-
tos internacionais. O aprofundamento da agenda neoliberal seria suficiente à
solução dos problemas econômicos e sociais. Mudar essa rota é praticamente
impossível, na medida em que Uribe conquistou ampla base de apoio na Câmara
e no Senado. Dificultando assim um “(...) debate mais amplo sobre as reformas
sócio-econômicas necessárias para uma resolução sustentável da violência na
Colômbia” (Leite, 2006). Já García prometeu afastar as influências externas nos
assuntos peruanos, especificamente de Chavez, preferindo acreditar “na gran-
deza do nosso país e no nosso próprio nacionalismo”. Entretanto, a maioria le-
gislativa é dos seus adversários, apoiados por Chavez. A forma como a polariza-
ção eleitoral ocorreu conduziu García a buscar apoio em partidos políticos com
bandeira social débil. O presidente eleito saiu do pleito falando em governo de
conciliação, no qual, os espaços para a elaboração de projetos que solucionem a
pobreza no país serão pequenos. Em síntese, a probabilidade da agenda social e
econômica ser protelada em favor da governabilidade amplia-se, paralelamente,

110
Marcelo Fernandes de Oliveira

a ausência de ensaios de renovação das lideranças políticas. Em outras palavras,


ambos representariam o retorno ao conservadorismo de direita. Como diz o di-
tado, ruim com os “neopopulistas” pior sem eles.

Referências

Panorama Social de América Latina. Santiago: Cepal, 2000. Disponível em: www.cepal.org.

DUPAS, G (org.). América Latina: perspectivas econômicas, sociais e políticas para o século XXI. São
Paulo: Unesp, 2005.

DURKHEIM, E. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Le système totémique en Australie. Paris:
PUF, 1985.

LATINBARÓMETRO. Encuesta 2003. Santiago do Chile, 2003.

O’DONNELL, G. “Poliarquias e a (in) efetividade da lei na América Latina”, Novos Estudos Cebrap 51,
Cebrap, p. 37-62, 1998.

O’DONNELL, G. “Delegative Democracy?” Journal of Democracy, vol. 5, nº 1, pp. 55-69, 1994.

O’DONNELL, G. “On the State, democratization and some conceptual problems: a Latin American
View with clances at some postcommunist countries”, World Development, vol. 21, nº 8, 1993.

PNUD (Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo). “La democracia en America Latina”.
New York, Naciones Unidas, 2004.

ROBERTS, K. “Neoliberalism and the transformation of populism in Latin American: the Peruvian
case. World Politics 48 (1), p. 82-116, 1995.

111
Capitulo 7

As migrações internas em uma


perspectiva histórica: o caso de
Campinas nos séculos xix e xx
Paulo Eduardo Teixeira

Introdução

Este artigo visa levar-nos a refletir sobre o processo de povoamento ocor-


rido em São Paulo a partir do final do século XVIII e início do século XIX, tendo
em mente a expansão econômica advinda com o açúcar e posteriormente o café,
que proporcionou a ocupação populacional das paragens do Oeste paulista.
A partir de fontes documentais como as Listas Nominativas de Habitan-
tes, as quais informavam a naturalidade de cada indivíduo dentro dos domicí-
lios, faremos uma análise visando entender como se deu o processo de ocupação
das terras campineiras.
Por outro lado, através do Censo Demográfico 2000 realizado pelo IBGE,
referente aos processos migratórios, iremos mostrar que a principal parcela re-
sidente em Campinas, ainda é oriunda de São Paulo, como a cerca de duzentos
anos atrás.
Isso pode nos ajudar a entender melhor os processos de deslocamentos
populacionais, não somente do passado brasileiro, mas também o processo atu-
al de migração interna, principalmente em área de fronteira econômica, como a
atual região do norte do Mato Grosso.
As migrações internas em uma perspectiva histórica:
o caso de campinas nos séculos xix e xx

O início do povoamento de Campinas

A fundação oficial de Campinas ocorreu a partir de 1774, quando a mesma


foi elevada à condição de Freguesia, com o nome de N. Sr.ª da Conceição das
Campinas, ainda sobre as ordens do Morgado de Mateus. Pouco mais de vinte
anos, e a nova freguesia tornava-se vila de São Carlos, através da determinação
do governador, recém empossado, Manuel de Melo Castro e Mendonça, no ano
de 1797. O período da vila de São Carlos findou quando em 1842 a localidade
foi elevada a condição de cidade, quando então seu nome de origem voltou a ser
restaurado: Campinas.
A Tabela 1 nos mostra a evolução da população em Campinas nos seus
primeiros anos de existência, bem como ao longo do século XIX, vejamos:

Tabela 1 – População total - Campinas: 1767 – 1829


N.º total de N.º total de N.º Médio de Pessoas
Ano*
Domicílios Habitantes por Domicílios
1767 53 268 5,1
1770 59 261 4,4
1774 57 475 8,3
1778 67 448 6,7
1782 93 560 6,1
1786 111 691 6,2
1790 177 1.138 6,4
1794 249 1.862 7,5
1798 368 2.508 6,8
1814 717 5.593 7,8
1829 950 8.545 8,9
1854 - 14.201 -
1886 - 41.253 -

Fonte: Listas Nominativas de Campinas (Arquivo Edgargd Leuenroth [AEL] – UNICAMP).


*Os dados para o ano de 1798 foram coletados em EISENBERG, 1989, p.358; Para os anos de 1854 e 1886 os
dados são de BASSANEZI (org>). 1998, v. II, p.298.

Utilizando as Listas Nominativas de Habitantes de Campinas estudare-


mos algumas informações contidas nestes documentos com o propósito de en-
tender as transformações operadas na estrutura demográfica da população de
Campinas nestes anos iniciais.

114
Paulo Eduardo Teixeira

Observando a tabela 1, somos informados que enquanto houve um au-


mento do número de domicílios e de habitantes, o número médio de pessoas
permaneceu praticamente constante, sem sofrer grandes variações, ao menos
enquanto examinamos a totalidade dos números em geral, pois o número mé-
dio de habitantes camufla um processo de queda na participação da popula-
ção livre no decorrer dos anos, cuja diminuição chega ao seu ponto mínimo em
1829, onde grande parte das famílias de livres eram constituídas de 3 a 4 pesso-
as em média. A variação decrescente sofrida pela população livre indica que a
sociedade campineira sofreu uma transformação significativa, deixando de ser
uma sociedade “rural de autoconsumo” – com um elevado índice de livres, para
ser uma região de “agricultura voltada para a comercialização”, onde a presença
de escravos, principalmente, tornou-se preponderante.
Na base dessa sociedade, o escravo passou a ganhar maior importância
para o estabelecimento de uma economia agrária voltada ao comércio, e em
1814, quando a vila de Campinas não tinha completado vinte anos de existência,
a mesma já despontava como uma região com forte presença de mão de obra
escrava, para em 1829 superar a antiga vila de Itu, e muitas outras.
Mas é quando estudamos a população propriamente dita livre que pas-
samos a entender melhor o processo de povoamento desencadeado na região
de Campinas, pois ela é a responsável por abrigar tanto os agregados quanto
os escravos. Assim, se entre 1814 e 1829 houve um aumento da população de
escravos, é porque uma parcela da população livre tinha condições e interesses
para que essa importação de escravos fosse incrementada. Portanto, qual o per-

 COSTA, Iraci Del N. Minas Gerais: estruturas populacionais típicas. Edec:


São Paulo, 1982, p.90, 91. Nesse estudo de diversas localidades mineiras do início do
século XIX, o professor Costa propõe quatro categorias para a classificação de loca-
lidades: Urbana, Intermédia, Rural de Autoconsumo e, Rural-Mineradora. Embora
o nosso estudo seja de apenas uma sociedade, o longo período permitiu visualizar,
pelo menos, duas estruturas bem distintas em Campinas: Rural de Autoconsumo e
Rural-Mineradora.
 Luna e Klein, estudando a posse de escravos em algumas localidades de São Paulo
em 1829, apontaram para as seguintes médias de escravos por proprietário: Itu =
11,0; Mogi = 4,6; São Paulo = 4,9. Em Campinas, nesse ano a média foi de 14,7.
In: Escravos e senhores no Brasil no início do século XIX: São Paulo em
1829. Estudos Econômicos, São Paulo, v.20, n.3, set-dez, 1990, p.370.

115
As migrações internas em uma perspectiva histórica:
o caso de campinas nos séculos xix e xx

fil da população livre que se estabeleceu em Campinas nas décadas iniciais do


século XIX? Quais eram seus interesses? Para tentar responder a estas questões,
trataremos de destacar os seguintes aspectos: raça, naturalidade e atividades
econômicas.
Pela tabela 2, notamos que em 1814, quase a metade do número de chefes
de domicílios (45%) foram declarados “pardos” pelos recenseadores, e a grande
maioria era proveniente das principais localidades que forneceram habitantes
para Campinas, e nos casos de Nazaré, Bragança, São João e Mogi, estas exporta-
ram mais pardos que brancos. Portanto percebemos que a imigração foi impor-
tante no processo de ocupação da terra.
Por outro lado, no ano de 1829, a presença de imigrantes pardos oriundos
das principais localidades não chegou a 1/3, e apenas Nazaré e Bragança perma-
neceram entre as principais regiões fornecedoras de migrantes, e mesmo nesses
dois casos, a vinda maior foram de pessoas brancas. Esses resultados mostram
que nesse momento, a vila funcionou como centro de dispersão da população
mestiça, tal como ocorreu numa área de expansão agrícola argentina.

Tabela 2 – Principais localidades de origem - Pela raça do chefe de domicílio - Cam-


pinas: 1814 e 1829
Principais Raça
Localidades Branco Pardo Negro Total
Nazaré 62 67 129
Campinas 46 21 67
Atibaia 37 29 66
1 Itu 33 29 62
8
São Paulo 33 17 50
1
4 Jundiaí 30 18 48
Bragança 20 21 41
São João 15 18 33
Mogi 13 17 30
TOTAL 289 237 0 526

 Cf. FABERMAN, Judith. Familia, ciclo de vida y economía doméstica. El caso de Sa-
lavina, Santiago Del Estero, en 1819. In Boletín del Instituto de História Argentina
y Americana “Dr. Emilio Ravignani”. Facultad de Filosofia y Letras Universidad de
Buenos Aires e Fondo de Cultura Economica. Tercera serie, n.12, II semestre, 1995,
p.36.

116
Paulo Eduardo Teixeira

Principais Raça
Localidades Branco Pardo Negro Total
Campinas 142 30 1 173
Itu 69 11 1 81
Jundiaí 46 22 2 70
1
8 Nazaré 38 17 55
2 São Paulo 31 13 3 47
9 Atibaia 33 4 37
Bragança 24 11 35
Parnaíba 15 10 25
Santo Amaro 18 5 23
TOTAL 416 123 7 546

FONTE: (AEL – UNICAMP) Lista Nominativa de Campinas.

Notamos ainda que Campinas passou a ser a primeira localidade, indivi-


dualmente falando, a gerar um maior número de chefes de domicílio brancos,
seguida por Itu e Jundiaí, duas das mais antigas vilas do velho Oeste paulista, e
portanto berço de importantes famílias que investiram em terras campineiras.
Em outras palavras, queremos dizer que nesse período a concentração de rique-
za nas mãos de brancos, representada pela posse das terras e de escravos, foi res-
ponsável não só pela saída de muitas pessoas do campo, como também impediu
o estabelecimento de outros que tinham condições econômicas desfavoráveis.
Essa transformação está associada à menor importância que os agricul-
tores passaram a representar no quadro da economia local após 1814, onde a
produção de açúcar ultrapassou todas as demais.
Em Campinas, esse período correspondeu àquele momento referido por
Amaral Lapa em que se fundiram as fronteiras, demográfica e econômica, re-
sultando na etapa de superação da produção de subsistência pela atividade prin-
cipal: a produção açucareira.

 Analisando a posse de escravos e a participação dos agricultores não vinculados à


produção do açúcar em 1804, Luna e Costa constataram que em Campinas os domi-
cílios de agricultores era parcela majoritária, detendo expressiva massa de cativos.
Como podemos perceber, este padrão se assemelha ao do ano de 1814. Cf. LUNA &
COSTA, Iraci del Nero. Posse de escravos em São Paulo no início do século
XIX. in Separata da Revista Estudos Econômicos, 13 [1]: jan./abr., USP, 1983.

117
As migrações internas em uma perspectiva histórica:
o caso de campinas nos séculos xix e xx

Os domicílios durante o período da freguesia de Campinas estavam divi-


didos pelas Companhias ou bairros rurais, entretanto, os mesmos não apresen-
tam sua localização geográfica, restando-nos apenas o conhecimento de que a
1.ª Companhia de 1814 e 1829, e a 7.ª Companhia deste último ano, correspon-
diam à parte central da vila. Contudo, podemos aproveitar essas informações
realizando a distribuição dos habitantes pelas companhias, e tentar perceber
um aspecto importante do povoamento em Campinas: as redes de apoio.

Tabela 3 – Naturalidade dos chefes de domicílio de acordo com a sua distribuição


pelas companhias – Campinas: 1814
COMPANHIAS
LOCAL
1 2 3 4 5 6 TOTAL
Campinas 13 5 15 11 10 13 67
Nazaré 6 6 5 70 40 3 130
Atibaia 11 29 12 14 66
Itu 7 4 8 6 24 13 62
São Paulo 18 4 5 22 1 50
Jundiaí 4 7 16 15 1 5 48
Bragança 3 3 11 4 14 6 41
São João 7 2 21 3 33
Mogi 6 1 2 4 5 12 30
TOTAL 68 37 93 122 137 70 527

FONTE: (AEL – UNICAMP) Lista Nominativa de Campinas.

A tabela 3 ilustra a divisão feita para 1814, e mostra que as famílias de


migrantes procuravam se organizar de forma tal que podiam compartilhar a
solidariedade de outras famílias que tinham na localidade de origem algo em
comum. Este tipo de migração, segundo Darroch, consistiria na participação de
parentes e amigos que financiavam e assistiam ao migrante. Pelas Listas Nomi-
nativas, também podemos notar que muitos sobrenomes de fogos vizinhos re-

 DARROCH, A. Gordon. Migrants in the nineteenth century: fugitives or families in


motion? In Journal of Family History. National Council on Family Relations: Clark
University, v. 6, n.3, fall, 1981, p.260

118
Paulo Eduardo Teixeira

presentavam a associação de seus moradores a um clã maior. A origem familiar


de um bairro foi “tendência visível por todo o povoamento de São Paulo antes da
imigração estrangeira”, já dizia Antonio Candido.
Assim, notamos 70 famílias de Nazaré morando na 4.ª Cia, e 40 na 5.ª Cia,
ao lado de 24 chefes de domicílios vindos de Itu e 22 de São Paulo. Estes indí-
cios permitem-nos ver a articulação entre as várias famílias através das redes
de parentesco, ampliando assim o conceito de família. Em 1829, o quadro foi
alterado, dando lugar a um maior equilíbrio entre os migrantes de diferentes
lugares, demonstrando talvez que o período de grande migração para as áreas
rurais estivesse chegando ao fim, pois como poderemos perceber o processo de
ocupação das melhores terras já havia se efetivado neste ano, e a produção do
açúcar alcançava os mais elevados índices, indicando a existência de grandes
propriedades. Ainda assim, em 1829, a 3.ª Cia abrigava 23 chefes de domicílio
provenientes de Jundiaí, e 20 de Atibaia, enquanto na 4.ª Cia ainda podíamos
achar 28 famílias de Nazaré, conforme nos mostra a tabela 4.
No caso dos migrantes que vieram de São Paulo, podemos perceber que
em 1829 os mesmos se instalaram preferencialmente na 1.ª e 7.ª Cia, ou seja, as
regiões centrais da vila onde haviam possibilidades para as atividades ligadas
ao pequeno comércio e a prestação de serviços, com as quais provavelmente es-
tavam acostumados, pois o estudo de Maria Odila sobre as mulheres daquela
cidade, mostra que muitas delas viviam de suas vendas, de suas agências e dos
jornais de escravos. Dar continuidade a um trabalho já conhecido poderia ser
um caminho mais fácil a adaptação e sobrevivência desses migrantes.

Tabela 4 – Naturalidade dos chefes de domicílio de acordo com a sua distribuição


pelas companhias – Campinas: 1829
COMPANHIAS
LOCAL
1 2 3 4 5 6 7 TOTAL
Campinas 10 19 30 31 15 25 43 173

 CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. 5.ª ed. São Paulo: Duas Cidades,
1979, p.76.
 Cf. VELHO, Gilberto. Família e subjetividade. ALMEIDA, Angela Mendes...et al. Pen-
sando a família no Brasil: da colônia à modernidade. Rio de Janeiro: Espaço e Tem-
po: UFRRJ, 1987. p.82.

119
As migrações internas em uma perspectiva histórica:
o caso de campinas nos séculos xix e xx

Itu 9 6 14 12 6 13 21 81
Jundiaí 5 3 23 12 1 6 21 71
Nazaré 3 2 3 28 3 5 11 55
São Paulo 17 6 1 1 1 21 47
Atibaia 20 2 15 37
Bragança 3 5 7 5 5 3 7 35
Parnaíba 8 3 3 2 1 8 25
Sto Amaro 4 2 3 1 2 11 23
TOTAL 59 46 104 92 30 58 158 547

FONTE: (AEL – UNICAMP) Lista Nominativa de Campinas.

Até 1814 esse processo de crescimento baseado na migração de pessoas


oriundas de localidades diversas, parece ter favorecido o crescimento da popu-
lação livre de um modo geral. A partir do momento que esse processo sofreu
um arrefecimento, a população livre não acompanhou o aumento da população
escrava, que a ultrapassou em 1829 (Cf. Tabela 5).

Tabela 5 – Distribuição da população nos domicílios de senhores de escravos por


condição social – Campinas: 1774, 1794, 1814 e 1829
CONDIÇÃO SOCIAL
ESCRAVOS
ANO
LIVRES ESCRAVOS AGREGADOS DOS AGREGADOS
F. Ab. F. Rel. F. Ab. F. Rel. F. Ab. F. Rel. F. Ab. F. Rel.
1774 176 61,3% 87 30,3% 24 8,4% 0 0
1794 361 38,7% 498 53,4% 74 7,9% 0 0
1814 941 30,0% 1893 60,3% 265 8,4% 42 1,3%
1829 1300 20,4% 4799 75,2% 214 3,4% 66 1,0%

FONTE: (AEL – UNICAMP) Listas Nominativas de Campinas.

Estas idéias sugerem que enquanto havia terras disponíveis e de fácil aces-
so à população de outros lugares, estas, incentivadas por parentes ou amigos,
vinham e se instalavam, contribuindo assim com o crescimento de livres. Po-
rém, nos anos sucessivos, em que as grandes fazendas passaram a ocupar cada
vez mais espaço para ampliarem sua produção, e a importação de escravos se fez

120
Paulo Eduardo Teixeira

mais necessária, notamos que a população dependente de domicílios sem escra-


vos, portanto livre, não só estabilizou-se como, a partir de 1814, decresceu.
Em suma, era a população livre e sem escravos proveniente de um pro-
cesso migratório originado a partir de uma política de povoamento baseada no
estímulo ao comércio que Campinas viu o grande crescimento populacional da
freguesia e vila, porém a partir da primeira década do século XIX, a economia
açucareira determinou uma mudança profunda no perfil demográfico, impor-
tando mais escravos e dificultando a entrada do contingente populacional livre
de pardos e brancos pobres, que passaram a ir mais para o Oeste aonde a terra
de boa qualidade e associada a outros estímulos atraíram os novos moradores.
Assim, lugares como Piracicaba, Rio Claro, Araraquara e outros, devem ter so-
frido processo colonizador semelhante.
Reiteramos nossa idéia de que especialmente na década de 1820 o proces-
so migratório de livres em direção a Campinas estagnou, e sofreu uma inversão.
A diminuição da população livre, parece ter ocorrido pela saída dessas pessoas
para outras áreas. Se a Freguesia de Campinas foi beneficiada com a vinda de
muitos casais para o fortalecimento de seu núcleo populacional durante vários
anos, nesse momento era ela quem começava a contribuir para a formação de
novas vilas.
Ao consultar o recenseamento de 1822, referente a Rio Claro, Warren
Dean comentou que dos 231 domicílios existentes, quase a metade dos chefes
de família

tinham nascido fora do povoado, em locais geralmente próximos


e um pouco distanciados das regiões ainda inexploradas. A maio-
ria tinha vindo de Mogi-Mirim, Bragança e Nazaré, municípios a
sudeste, com uma alta proporção de pequenas propriedades em
declínio. Alguns eram de Campinas e Itu, ao sul, uns poucos eram
oriundos de municípios mais distantes [...]

 DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-


1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, pp. 27, 32, 33, 36, 40, 183.
 DEAN, Warren.Op. cit, p. 22. Ao observarmos essas informações, notamos que em
1814, Nazaré foi a localidade que mais forneceu moradores para Campinas, enquan-
to que em 1829, os moradores daquela Freguesia estavam se dirigindo mais para o
Oeste, no caso específico, Rio Claro.

121
As migrações internas em uma perspectiva histórica:
o caso de campinas nos séculos xix e xx

Em suma, o povoamento inicial para Campinas se deu através de um pro-


cesso migratório regional de livres, onde as populações das vilas mais antigas
foram as matrizes responsáveis pela formação demográfica campineira, confor-
me podemos observar pelo mapa 1.

Mapa 1 – Capitania de São Paulo, 1765.

Fonte: RANGEL, Armênio Souza. Escravismo e riqueza: a formação da economia cafeeira em Taubaté (1776-
1836). São Paulo: IPE/USP, 1990, p. 44.

O crescimento populacional de Campinas no século xx

Com a passagem do Império para a República e o fim do sistema escravis-


ta, se impõe uma nova dinâmica populacional, onde a distinção livre/escravo
deixa de existir. No plano econômico, Campinas ainda se manteve por muitos
anos como área ligada a cafeicultura, porém, com a crise de 1929 o setor indus-
trial e de serviços se ampliou.
Em relação ao seu território, Campinas teve sua primeira perda com o des-
membramento de Americana no ano de 1924, seguido por Cosmópolis em 1944,
Sumaré e Valinhos em 1953, e finalmente a área referente à Paulínia em 1964.
Apesar dessa diminuição territorial, os anos de 1970 e 1980 foram de in-
tenso aumento populacional em virtude dos processos migratórios internos.

122
Paulo Eduardo Teixeira

A Tabela 6 nos possibilita uma visão dessas mudanças operadas na cidade de


Campinas ao longo do século XX.
Em virtude dos desmembramentos ocorridos, a atual área metropolitana
de Campinas corresponde em boa medida no que correspondeu ao seu território
original durante o século XIX, assim, embora a população do município cam-
pineiro seja responsável por 1/3 da população total dessa área metropolitana,
acabamos por adotar os dados globais para essa região em virtude de procurar
entender melhor os processos migratórios mais recentes.

Tabela 6 – População total – Campinas: 1900-2000


N.º total de N.º total de N.º Médio de Pessoas
Ano
Domicílios Habitantes por Domicílios
1900 - 67.694 -
1920 - 115.602 -
1940 - 129.940 -
1960 - 217.219 -
1980 172.722 661.992 3,8
2000 289.291 969.396 3,4
Fonte: Fundação SEADE. Fundação IBGE. Censos Demográficos de 1980 e 1991 e Resultados Preliminares da
Contagem Populacional de 1996

Com base no Censo de 2000, realizado pelo IBGE, analisamos a origem


dos moradores da Região Metropolitana de Campinas, ou seja, sua naturalida-
de, tendo em mente perceber os possíveis deslocamentos migratórios. Os Gráfi-
cos de 1 a 5 retratam a origem dos residentes pelas regiões brasileiras, vejamos:

Gráfico 1 – Migrantes da Região Norte

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000 – Migração.

123
As migrações internas em uma perspectiva histórica:
o caso de campinas nos séculos xix e xx

Ao analisarmos a origem dos residentes que vieram da região Norte do


Brasil (Gráfico 1), notamos que dois são os estados que mais contribuíram: Pará
e Rondônia, embora os números absolutos atestem a pouca expressão que essa
região teve no cenário migratório campineiro.
O Gráfico 2 apresenta os dados para a região Nordeste, tida freqüente-
mente como grande área de expulsão de trabalhadores para a região Sudeste,
notamos que no caso de Campinas, o predomínio recai sobre os nordestinos de
origem baiana (37%) e pernambucana (19%).

Gráfico 2 – Migrantes da Região Nordeste

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000 – Migração.

Pelo Gráfico 3, que representa a região Sudeste, vemos que principalmente


São Paulo (90,3%) e Minas (8,9%) são os estados com a maior participação de
residentes em Campinas, ou seja, se o povoamento inicial no século XVIII e XIX
recaiu sobre a responsabilidade dos paulistas, podemos dizer que o processo ain-
da se baseia nos mesmos pressupostos, ou seja, de que as pessoas tendem a mudar
para áreas próximas de sua origem.

124
Paulo Eduardo Teixeira

Gráfico 3 – Migrantes da Região Sudeste

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000 – Migração.

O Gráfico 4 ilustra a participação da região Sul nesse processo, e é interes-


sante notar a grande presença de paranaenses (95%) em Campinas.

Gráfico 4 – Migrantes da Região Sul

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000 – Migração.

Gráfico 5 – Migrantes da Região Centro-Oeste

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000 – Migração.

125
As migrações internas em uma perspectiva histórica:
o caso de campinas nos séculos xix e xx

O Gráfico 5 nos mostra a participação da população originária da região


Centro Oeste em Campinas, e que não chega a compor 1% da população total, o
que pode ser justificado por ser esta na realidade a grande frente de expansão
demográfica na atualidade.
O Gráfico 6 resume a proporcionalidade da origem dos habitantes da região
metropolitana de Campinas, mostrando que a maior parcela é originária da região
Sudeste do Brasil, e como já salientamos quando analisamos essa região, a maior
parte das pessoas residentes na grande Campinas são nascidos no próprio esta-
do de São Paulo (76,83%). Além desses residentes, podemos destacar os mineiros
(7,54%), os paranaenses (6,14%), os baianos (2,55%) e pernambucanos (1,34%)
como os principais grupos de migrantes que se instalaram em Campinas.

Gráfico 6 – Origem da população de Campinas por região

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000 – Migração.

Considerações finais

Notamos que a ocupação do espaço paulista ocorreu essencialmente com pes-


soas oriundas de um processo migratório de curtas distâncias, advindas de vilas
e cidades que estavam relativamente próximas de suas terras natais. A busca por
melhores oportunidades, ainda hoje, parece ser o alvo dos migrantes, porém, sem
dúvida outros fatores existentes, não só no passado, indicam que as redes de apoio,
e a proximidade com seus lugares de origem, proporcionam aos migrantes a certeza
de que se não der certo, o caminho de volta para casa pode ser uma outra opção.

126
Capitulo 8

Do rural ao urbano:
Migrações Internas no Brasil no século XX

Odair da Cruz Paiva

O título deste artigo nos remete à reflexão sobre um questão candente para a
compreensão da realidade brasileira contemporânea. O tema das migrações
internas passa a ser algo de relevância na literatura acadêmica e mesmo oficial a
partir dos anos 1950. Uma série de estudos provenientes principalmente da socio-
logia e da geografia e mesmo de caráter oficial , revelavam àquela época a necessi-
dade em se (re) conhecer um fenômeno que ganhava proporções até então desco-
nhecidas e que estava profundamente marcado pelo deslocamento de migrantes
oriundos do Nordeste para as grandes cidades do centro-sul, notadamente Rio de
Janeiro e São Paulo. Na filmografia brasileira do período Nicola D´aversa dirigiu a
película intitulada Seara Vermelha, filme que tratou das agruras da migração de
uma família nordestina para São Paulo.
Para se ter uma idéia da magnitude deste deslocamento, o Estado de São
Paulo recebeu ente 1827 e 1960, pouco mais 2 milhões e novecentos mil imigran-

 Dentre eles, aponto apenas alguns dos de caráter oficial - exceção feita à menção do Bole-
tim de Geografia - e publicados na década de 1950. ALMEIDA, Vicente Unzer de. Migração
Rural-Urbana. Aspectos da convergência de população do interior e outras localidades para a
capital do Estado de São Paulo. Diretoria de Publicidade Agrícola, 1951; BARROS, Souza. Êxo-
do e Fixação. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura, 1953; CAMARGO, J.F. de. Migrações
Internas e o Desenvolvimento Econômico no Brasil. In: Boletim de Geografia, 1958; FICHLO-
WITZ, Estanislau. Principais Problemas da Migração Nordestina. Rio de Janeiro: Ministério
da Educação e Cultura, 1959. Vale recordar que os Boletins do Departamento de Imigração
e Colonização da Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo são, igualmente, lugar
privilegiado para se avaliar a reflexão oficial sobre a questão das migrações internas.
Do rural ao urbano:
Migrações Internas no Brasil no século XX

tes. Num tempo muito mais exíguo, qual seja, entre as décadas de 1930 e 1960
adentraram ao Estado de São Paulo aproximadamente 2 milhões e seiscentos
mil migrantes oriundos de praticamente todos os recantos do país mas, de for-
ma preponderante, provenientes do nordeste. Não existem estatísticas confiá-
veis a partir dos anos 1960, mas de certo, as migrações internas só demonstra-
ram sinais de arrefecimento a partir da década de 1990.
Tentar decodificar seus elementos constitutivos, implica num exercício com-
plexo dadas as implicações de caráter teórico, empírico e temático que conformam
a problemática das migrações internas em nosso país e também a multiplicidade
de variações possíveis e necessárias para uma compreensão que, mesmo assim,
será sempre parcial e provisória. Apontadas estas primeiras limitações da nossa
lógica formal na decodificação de um processo tão dinâmico, multifacetado e plu-
riforme como o das migrações, devemos ter a ousadia da escolha de um caminho
possível. Utilizando a alegoria da esfinge, “decifra-me ou te devoro” proponho
para esta nossa breve reflexão, pensar o tema a partir de três enfoques.
O primeiro deles buscará, nos elementos amplamente conhecidos sobre
a questão da migração rural-urbana, algumas das questões explicativas do
sentido autoritário da formação social brasileira, expresso particularmente na
relação entre os setores populares e sua inserção no território. O segundo enfo-
que procurará exercitar um outro olhar também necessário sobre as migrações
internas que continuaram durante todo o século XX e que conformaram uma
dinâmica rural-rural. Por fim, como terceiro enfoque, uma crítica à um senti-
mento que terá sido deixado pelos dois enfoques anteriores, qual seja, a idéia da
migração como trauma.
O primeiro enfoque parte de um diagnóstico amplamente conhecido. Os
censos populacionais produzidos em nosso país nos últimos 50 anos, apontam
para uma tendência crescente do peso da população urbana sobre a rural. O
marco de início deste processo - como já explicitado anteriormente - é também
relativamente consensual qual seja, a década de 1950. Àquela época, a popula-
ção rural representava 64% da população brasileira enquanto que os restantes
36% estavam nas cidades. O censo de 2000 contabilizou, por seu turno, 18,8%
de brasileiros vivendo em zonas rurais e 81,2% em zonas urbanas. Trata-se de
um fenômeno mundial, entretanto, tendo em vista o enfoque aqui proposto, não
vou tecer maiores considerações.

128
Odair da Cruz Paiva

Quadro - Evolução da População Rural e Urbana no Brasil - 1950/2000


Censo População Rural (%) População Urbana (%)
1950 64 36
1960 55 45
1970 44 56
1980 32 68
1990 25 75
2000 18,8 81,2

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

Em realidade, a tendência a uma concentração populacional de matiz ur-


bana já era identificada a partir dos anos 1930. Aponto este elemento por que nos
anos 30 um novo padrão de modernização conservadora da economia brasileira
começou a se estabelecer. Utilizo aqui a expressão modernização conservadora
na mesma perspectiva de Peter Eisember em seu trabalho intitulado Moderni-
zação sem Mudança: a indústria açucareira em Pernambuco, 1840-1910. 
O locus da reprodução da economia capitalista no Brasil passou - após a
crise de 1929 - a ser a indústria e sua localização territorial, a cidade. Tratava-se
da escolha por esta forma de modernização não apenas na medida em que os
setores agro-exportadores (notadamente a cafeicultura) não viabilizavam com
segurança a reprodução ampliada do capital, mas fundamentalmente, por que
o padrão industrial consolidou-se a partir da fragilização de outras alternativas
nas atividades agrárias.
Em outros termos, o novo locus de reprodução do capital no país assentava-
se na fragilização das possibilidades de permanência das populações rurais como
os pequenos proprietários, meeiros, foreiros e agregados. Ao lado da indústria, o

 Para Eisemberg, a modernização sem mudanças existe do ponto de vista de da


ausência de uma transformação radical e ou positiva das condições materiais das
classes populares. Ver: EISEMBERG, Peter.Modernização sem Mudança: a indústria
açucareira em Pernambuco, 1840-1910. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Campinas: UNI-
CAMP, 1977.
 Nos anos 1930 houve um intenso debate sobre o cooperativismo e associativismo,
além de propostas de fomento à pequena e média propriedades. Ver: PAIVA, Odair
da Cruz. Caminhos Cruzados. Baurú: Edusc, 2004

129
Do rural ao urbano:
Migrações Internas no Brasil no século XX

Estado brasileiro manteve incentivos para que o campo continuasse a ser produtor
de mercadorias exportáveis como o algodão e o café. Sem apoio, grande parte da
população camponesa - em seus mais variados extratos e formas - não teve outra
alternativa senão migrar para as cidades e, dessa maneira, inserir-se nas ativida-
des urbano-industriais. Este tema é candente na literatura econômica brasileira e
cito aqui apenas uma referência, a obra já clássica de Francisco de Oliveira intitu-
lada A Economia Brasileira: crítica à razão dualista.
Em linhas gerais, esta é, nos limites de nossa reflexão, a explicação pos-
sível e mais amplamente conhecida para a mudança radical do perfil da popu-
lação brasileira nos últimos 50 anos. Assim, o que identificamos a partir dos
anos 1950, fazia parte de uma opção de modernização da economia que se as-
sentou, dentre outros elementos, na produção de uma massa de trabalhadores
à disposição do capital aplicado nas atividades industriais e urbanas. Por outro
lado, evidentemente, este processo se acirrou nos anos 1950 como resultado do
desenvolvimentismo de J.K. e também dos projetos de desenvolvimento imple-
mentados pelos governos militares.
Neste particular, os anos 1960 e 1970 foram expoentes importantes na
modernização da infra-estrutura do país. Construção de estradas e barragens
para usinas hidroelétricas - a Transamazônica e a Usina de Itaipú são, talvez
os exemplos mais emblemáticos - projetos de desenvolvimento agropecuário
e aberturas de frentes de expansão - como teremos oportunidade de abordar
mais adiante -interferiram diretamente no vivido de muitas populações rurais
no pais como um todo. Os estudos de José de Souza Martins e José Graziano da
Silva sobre a problemática agrária neste período, embora guardem diferenças de
método entre si, são referências obrigatórias.
A inserção destas populações no contexto urbano nos coloca ainda um
sub-tema dentro deste primeiro enfoque. A migração rural urbana explicita a
impossibilidade da permanência e reprodução de um modus vivendi camponês.
Se preferirmos, o ato de migrar, por si, já representa viver a exclusão, e funda-
mentalmente, a negação de direitos, de escolha e de autonomia. Estes elementos
constitutivos do migrar acompanharão as populações rurais em seu novo vivido
citadino. O vivido precário nas periferias e favelas das grandes e médias cidades

 OLIVEIRA, Francisco. A Economia Brasileira: Crítica à Razão Dualista. Petrópolis:


Vozes, 1982

130
Odair da Cruz Paiva

brasileiras, a ausência de infra-estrutura básica de transporte, moradia, saúde,


saneamento básico ou escola - ausências particularmente graves nas décadas de
1970 a 1990 - constituem um outro lado da modernização conservadora. O mundo
do consumo das mercadorias e a partilha dos supostos benefícios da sociedade ur-
bana moderna, foram e continuam sendo sistematicamente negados àqueles que
foram obrigados a inserir-se num novo lugar.
Dessa forma, a migração rural urbana em nosso país no século XX produziu
chagas em ambos os pólos deste binômio. No campo, acirrou e fomentou o pro-
cesso de concentração fundiária e os conflitos agrários, ao passo que nas cidades,
foi auxiliar na produção do caos urbano que reiteradas vezes nos é apresentado
- como talvez nos dissesse Guy Debord  - pela televisão e jornais como forma de
espetáculo. Em outros termos, penso que vivemos neste princípio de novo século
dilemas e questões produzidas em nosso passado recente. Durante o século XX
presenciamos a produção de vivido autoritário, opressor e excludente no que tan-
ge a relação da população com o território. Tanto no espaço urbano quanto no ru-
ral houve sistematicamente a negativa da produção de um viver e de um vivido que
não fosse submetido ou subalternizado à lógica da modernização capitalista. No
que compete à cidade, a obra de Teresa Pires Caldeira intitulada Cidade de Muros,
é uma referência importante e bastante contemporânea para compreendermos a
lógica e o sentido da exclusão em formas bastante variadas.
Para nós que vivemos na cidade e fazemos dela o lugar do olhar sobre as
migrações, percebemos com cada vez mais clareza, que por detrás da construção
dos condomínios de luxo, dos processos de revitalização dos centros das cida-
des, da melhoria e ampliação dos corredores de circulação de automóveis ou da
construção de novas linhas de metro, expressam-se com toda a força e violência,
formas citadinas de expansão do latifúndio sobre a pequena propriedade. Para
finalizar este primeiro enfoque, quero propor como um primeiro elemento para
nossa reflexão a necessidade da crítica a algo que tem se tornado consensual en-
tre nós, qual seja, a mítica da revitalização urbana. Por detrás dela esconde-se a
valorização da renda da terra ocupada pela classe média e pelo capital e seu con-

 DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Comentarios sobre a sociedade do espetá-


culo. São Paulo: Contraponto Editora, 1997
 CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros. Crime, segregação e cidadania em
São Paulo. São Paulo: Ed. 34/Edusp. 2003

131
Do rural ao urbano:
Migrações Internas no Brasil no século XX

traponto, a expulsão de moradores em sua maioria pessoas pobres que em muitos


casos já viveram a exclusão no campo. Numa alegoria condomínio de luxo = lati-
fúndio, há a necessidade de uma autocrítica sobre a forma como a modernidade
conservadora já está profundamente arraigada entre nós. Lembrando da obra de
Sidney Chalhoub Cidade Febril , na maioria das vezes não questionamos a lógica
que está implícita na idéia da cidade limpa, ordenada, coesa, asséptica, que repre-
senta a reedição do projeto republicano de limpeza do espaço urbano das marcas
das classes perigosas.
Com relação ao segundo enfoque que o tema das migrações sugere, que-
ro discorrer sobre a permanência - concomitante à dinâmica rural urbana - de
migrações internas que mantiveram durante todo o século XX um sentido ru-
ral-rural. Este sentido nos obriga a agregar outros elementos explicativos para
as migrações em nosso país, particularmente no que compete aos movimentos
migratórios ocorridos na anterioridade dos anos 1930.

Século XIX. Ciclo da Borracha Migrações Nordeste /


Amazônia

A migração do nordeste para a Amazônia nas últimas décadas do século


XIX é um bom exemplo. A grande seca de 1877 foi um dos elementos explicati-
vos principais para a produção de uma população que seria absorvida pela ex-
tração da borracha na Amazônia. Sorvedouro de milhares de vidas aniquiladas
pela fome e por toda sorte de doenças tropicais como a malária, a indústria do
látex foi o prenúncio de apropriação do fenômeno da seca como um mote para a
produção de deslocamentos populacionais cada vez maiores durante todo o sé-
culo XX. Não podemos esquecer em absoluto a construção da ferrovia Madeira
Mamoré que, igualmente a borracha, sugou milhares de vidas de trabalhadores
nordestinos, barbadianos e chineses. A obra de Francisco Foot Hardman  Trem
Fantasma continua sendo uma das referências mais importantes sobre os des-
caminhos da modernidade na selva.

 CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
 HARDMAN, Francisco Foot. Trem Fantasma. A modernidade na Selva. São Paulo:
Cia das Letras, 1988

132
Odair da Cruz Paiva

Primeira Metade do Século XX. Migrações - Nordeste /


Amazônia e Nordeste / Sudeste (SP)

A grande seca de 1915, retratada de forma magistral porém dramática


por Rachel de Queiroz em seu romance O Quinze reforçou o mito de que con-
tra ela não há alternativa senão a migração e o abandono da terra. Nesta pers-
pectiva o Estado desobrigava-se de políticas públicas no sentido de promover
meios para a permanência do sertanejo em sua terra.
De camponês a retirante, o homem do campo no nordeste foi utilizado
como moeda de troca no fomento a outras atividades agrárias mais dinâmi-
cas ao passo que sua expulsão distencionava tensões oriundas da fome e da
miséria no sertão nordestino. Sobre este particular, a construção de campos
de concentração em 1915 e 1933 são emblemáticos e foram analisados por
Frederico de Castro Neves em seu trabalho Imagens do Nordeste. 10 A gran-
de seca de 1933 11 mais uma vez reforçou a idéia de um fenômeno natural e
intransponível, utilizado como mote para incentivar a migração de milhares
de nordestinos para São Paulo, que, desta vez seriam sorvidos pela cambale-
ante cultura cafeicultura, pela nascente cotonicultura paulista e, em seguida,
seriam novamente incorporados pela processo de industrialização 12 iniciado
nos anos 1930 e já referido anteriormente.

Final dos Anos 1960 e Anos 1970. Migrações Sul / Centro-


Oeste Amazônia e Paraguai. Migrações Nordeste / Sudeste

Durante a ditadura militar, a dinâmica rural-rural das migrações desenvol-


veu-se paralelamente à dinâmica rural-urbana. Entre o final dos anos 1960 e anos
1970, a malfadada conquista do Centro-Oeste e da Amazônia, tão bem decantada

 QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. São Paulo, Siciliano, 2002


10 NEVES, Frederico de Castro. Imagens do Nordeste. A construção da memória regio-
nal. Fortaleza: Secult, 1994 (Coleção: Teses Cearenses)
11 NEVES, Frederico de Castro. Op. Cit.
12 Sobre esta questão ver: PAIVA, Odair da Cruz. Op. Cit.

133
Do rural ao urbano:
Migrações Internas no Brasil no século XX

pelo programa Amaral Neto o Repórter - que encantava minha geração nos finais
de semana - compassava, por um lado, as necessidades de distensionamento so-
cial no campo com a abertura de frentes pioneiras em áreas consideradas vazias.
Uma nova reedição da Marcha para Oeste de Cassiano Ricardo esteve em curso.
Expulsos de suas terras, camponeses do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Para-
ná e São Paulo foram incentivados a adquirir terras em Mato Grosso, Goiás, Acre,
Rondônia e posteriormente Paraguai. A nova frente pioneira seguia o esteio dos
interesses da soja ou da busca ao Eldorado nas jazidas de Carajás.
Conflitos agrários entre camponeses expropriados que buscavam uma
nova reincorporação ao território e as comunidades indígenas, proliferaram so-
bre os olhos do Estado e do grande capital agropecuário. Este último aguardava
- tal como abutre - apenas a derrota física e financeira dos excluídos para se
apropriarem das terras e erigirem seus impérios sobre os cadáveres de cam-
poneses e índios. José de Souza Martins, Otávio Guilherme Velho ou Ariovaldo
Umbelino de Olivera foram muitos dos que a partir da sociologia ou geografia
iniciaram no final dos anos 1970 uma reflexão sobre esta questão13.
Nos anos 1980 e, pela primeira vez no século XX, um outro tipo de migra-
ção rural-rural se punha em curso. A luta pela reforma agrária, o surgimento
do MST e os ventos da democratização do Estado animaram a luta pelo reincor-
poração das territorialidades perdidas 14. O fracasso da experiência amazônica
serviu de incentivo para que muitos camponeses oriundos do sul do Brasil retor-
nassem, ao passo que muitos igualmente enfrentassem o desafio de permanecer
na terra. Para minha geração a Encruzilhada do Natalino foi emblemática neste
sentido. A dinâmica do regresso e a luta pela manutenção do camponês em seu
território animou um movimento migratório notadamente rural-rural que - ei-
vado pelo lema da luta pela reforma agrária - impôs e ainda impõe uma crítica
radical ao modelo de desenvolvimento econômico conservador e excludente vi-
gente em nosso país.

13 Há muitos trabalhos sobre este tema, cito a título de uma primeira aproximação:
MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil. Rio de Janeiro: Vo-
zes, 1986; GUILHERME VELHO, Otávio. Capitalismo Autoritário e Campesinato. São
Paulo: Difel, 1979 e OLIVERA, Ariovaldo Umbelino de. A Geografia das Lutas no
Campo. São Paulo: Contexto, 1990
14 Ver: MARTINS, José de Souza. A Reforma Agrária e os Limites da Nova República.
São Paulo: Hucitec, 1986

134
Odair da Cruz Paiva

Anos 1980 e 1990 - Retorno Parcial Às Regiões de Origem

Mesmo assim, nos anos 1980 e também no presente, encontramos outras


formas da migração rural-rural que ainda expõem as dificuldades da perma-
nência do camponês em sua terra. Exemplos delas são o trabalho sazonal para
o corte da cana que, infelizmente continua presente nos canaviais do Estado de
São Paulo e o trabalho escravo. Ambos exemplos expõem o lado perverso da
complementaridade - já trabalhada, por exemplo, por Francisco de Oliveira15 -
entre o arcaico e o moderno. Para finalizar este segundo enfoque, quero propor
uma segunda questão para nossa reflexão.
A permanência da dinâmica rural-rural das migrações no Brasil no século
XX expõe os diferentes tempos da nossa modernização. Em outros termos, não se
trata de uma modernização em um único pólo, qual seja, o urbano industrial, mas
também uma modernização conservadora do campo que avança, para impedir
quaisquer lutas sociais no sentido da reforma agrária. Como no primeiro enfoque,
há que se questionar outra mitificação. No discurso do Estado, somos conven-
cidos do nosso potencial de país agrário que deve concorrer com a produção de
outros países emergentes. Num histrionismo televisivo e radiofônico, propala-se
- até mesmo pelo governo de esquerda do Presidente Lula - a necessidade da Eu-
ropa, do Japão e dos Estados Unidos em abrirem suas fronteiras agrícolas e ,nessa
abertura o país ganharia um lugar de merecimento no grande circo do comércio
internacional. Será que a inclusão de nossa produção agrícola em outros países
não representa a exclusão de nossos camponeses de suas terras?
Como terceiro e último enfoque, quero expor aqui um pouco de minha
subjetividade. Confesso não incorporar totalmente a idéia de que a migração é
sempre um processo vivido como trauma por aqueles que migram. Não se trata
de uma teoria do contente expressa em Pollyanna de Eleanor H. Poter, mas de
questionar se a dimensão do trauma, de fato, acompanha por toda a vida e para
sempre, o vivido dos que se deslocam. Esta perspectiva é compartilhada por es-
tudos como o de Ely Souza Estrela intitulado Os Sampauleiros16 . Como filho de
migrantes e migrante sazonal que sou, penso que as migrações no Brasil confor-

15 OLIVEIRA, Francisco, op. cit.


16 ESTRELA, Ely Souza. Os Sampauleiros. Cotidiano e representações. São Paulo: Huma-
nitas / FFLCH - USP, 2003

135
Do rural ao urbano:
Migrações Internas no Brasil no século XX

maram elementos da realidade e da paisagem que buscam superar a condição


de exclusão e subalternidade dos que, em algum momento, foram obrigados a
deixar seu lugar de origem.
Estou aqui pensando na periferia paulistana, que para além das casas de
auto-construção e da dureza e precariedade da vida, apresenta em sua paisa-
gem as Casas do Norte e os salões de Forró. Todo um conjunto de sociabilidade
foi (re)criado por aqueles que de algum modo se sentiram estrangeiros em sua
própria terra, sociabilidade esta vivida na alegria das festas, expressa por sorrisos
largos e expontâneos, expressa na esperança no futuro e na superação do passado,
apesar das agruras do presente. Todo um conjunto de lutas sociais foi (re) criado
por esses sujeitos. Nos anos 1970, 1980 e 1990 estes recém instalados na cidade
de São Paulo empreenderam lutas por moradia, habitação, educação, transpor-
te. Todo um conjunto de representações simbólicas sobre a condição pretérita foi
(re) criado. Lembro-me de minha mãe, migrante nordestina que durante minha
infância procurava ressignificar suas agruras passadas, para a construção de uma
fortaleza que enfrentava os dramas cotidianos do vivido na periferia.
Para finalizar, o que gostaria de propor como terceiro elemento para nos-
sa reflexão, é que a idéia da migração compreendida apenas como trauma nos
impede de engendrar novas lutas. Dessa forma, e apesar da modernização con-
servadora, apesar da exclusão, apesar das práticas autoritárias, os migrantes em
muitas de suas ações cotidianas - da periferia das cidades, aos acampamentos
do MST - nos ensinam que a história está sempre aberta ao novo e que derrotas
podem servir de alimento para novos desafios.
Procurei com estes três enfoques apontar que existem muitos latifúndios a
serem extintos, se há o latifúndio rural, também há o urbano e também a aquele
que muitas vezes está dentro de nós. A luta pela extinção destas múltiplas formas
de latifúndio pode ser um caminho para a construção de uma nova realidade e,
quem sabe um dia, este tema possa deixar de fazer parte de um fórum de conjun-
tura e passe - por que superado - para o campo das curiosidades da história.

136
Capitulo 9

Migraciones de
trabajadores en Europa:
de la política estatal a la comunitária

José Blanes Sala

L as migraciones humanas son un fenómeno constante a lo largo de la his-


toria europea, comenta MALGESINI: “Desde 1750 más de 350 millones
de personas han abandonado sus países de origen para instalarse en otro, y la
mitad de ellos eran europeos.”
No obstante, las circunstancias actuales han cambiado radicalmente con
relación a un pasado no tan remoto. Sin ir más lejos, Europa protagonizó un gran
movimiento migratorio hacia el exterior, sobre todo hacia el continente ameri-
cano, con ocasión de las dos guerras mundiales y de la guerra civil española. Se
trataba de una migración de carácter permanente o de largo plazo, como se ve-
rifica aún -en escala mucho menor que en la primera mitad del siglo- en países
receptores como Estados Unidos, Canadá, Australia y Nueva Zelanda.
Europa, sin embargo, ha pasado de ser un continente emisor a receptor,
especialmente Europa occidental. La gran mayoría de inmigrantes que llegan,
lo hacen con permisos temporales de residencia y de trabajo, o con el ‘status’
de refugiado, sujeto a revisión por parte de las autoridades.

 MALGESINI, Graciela. “Dilemas de la movilidad: inmigración y refugiados en Es-


paña y la CE”. in Anuario CIP (Centro de Investigación para la Paz), 1992-1993.
Barcelona, 1993. pág.235.
 MALGESINI, Graciela. op. cit. pág.237.
Migraciones de trabajadores en Europa:
de la política estatal a la comunitária

CHESNAIS describe este cambio aludiendo a dos grandes flujos de presión


migratoria. Uno inmediato, inesperado, violento, procedente del Este después
de la desintegración del bloque soviético. Y el otro, más silencioso, más pro-
fundo, más potente y duradero, proveniente del Sur. Pero los intereses -e in-
versiones- de la Europa rica habrán de concentrarse principalmente sobre los
parientes pobres del Este que sobre los desheredados sureños.
La verdad es que, hasta ahora, la Europa rica de que habla CHESNAIS,
ha conseguido atajar con habilidad la presión migratoria que parecía pro-
venir del Este; ya sea celebrando convenios de cooperación, o bien con la
efectiva adhesión a la Unión Europea. No obstante, el flujo de los que él
denomina desheredados se ha mantenido constante, a pesar de los esfuerzos
europeos por controlar las fronteras. Sobre todo turcos, marroquíes, argeli-
nos y tunecinos, continúan entrando ininterrumpidamente.
Se trata del fenómeno que LANFRANCHI denomina como ‘migraciones de
trabajo’. La Europa de las grandes regiones industriales fue y continúa siendo un
gran polo de atracción para la mano de obra excedente de los Estados y regiones
situadas en la periferia de la Comunidad Europea.
Al término de la segunda guerra mundial, la reconstrucción de los paí-
ses devastados por ella originó una gran demanda en los mercados de trabajo
del norte de Europa, a la que concurrieron principalmente trabajadores de los
países del sur de Europa (España, Italia, Grecia y Portugal). Las legislaciones
sobre extranjería favorecían en aquel momento la llegada y establecimiento de
los migrantes.
Tal estado de cosas varía a mediados de los años setenta. La crisis eco-
nómica y las consecuencias que conlleva hacen que los países receptores de
migrantes decidan cerrar sus fronteras a nuevos contingentes de trabajadores
provenientes del extranjero.
Esta decisión, en un primer momento, produce el efecto contrario, tradu-
ciéndose en un aumento de los extranjeros. Y es que aquellos trabajadores que

 CHESNAIS, J.C. “Immigrés: la ruée vers l’Ouest” in Politique internationale. nº 51,


1991. pp.371-385.
 LANFRANCHI, Marie-Pierre. Droit Communautaire et travailleurs migrants des
États Tiers. Entrée et circulation dans la Communauté Européenne. Edit. Economica.
Paris, 1994. pág.7.

138
José Blanes Sala

viajaban regularmente a sus países de origen para visitar a sus familias, ante el
miedo de perder el puesto, traen a sus allegados para vivir consigo. A este fenó-
meno se le denominó reagrupación familiar, y supuso una serie de consecuen-
cias sociales y económicas, así como jurídicas. En algunos países aparecen nor-
mas para los extranjeros y sus familias ya presentes, así como, en contrapartida,
también surgen regímenes jurídicos de extranjería muy restrictivos, incluyendo
rigurosas medidas de control de los nuevos flujos, como permisos de entrada,
residencia y empleo, o reglas para la expulsión.
Como apuntan ORAA ORAA, RUIZ VIEYTEZ y GIL BAZO, durante estos
años de cierre de fronteras surgen vías alternativas de entrada: la inmigración
clandestina y la solicitud del estatuto del refugiado, cuyo régimen resultaba mu-
cho más liberal. Por ello, resaltan estos autores, “(...) las solicitudes han aumenta-
do enormemente en la última década, encontrándose con procedimientos que no
estaban concebidos para gestionar tal cantidad de demandas. Las respuestas de
los gobiernos a esta situación es el endurecimiento de las legislaciones relativas al
asilo (no respetando en muchos casos el límite puesto por los derechos constitu-
cionales o por los instrumentos internacionales relativos a los derechos humanos),
que tiene como resultado un perjuicio para los legítimos destinatarios de las medi-
das de asilo, así como una deformación de la política migratoria.”
Los acontecimientos de la segunda mitad de la década de ochenta han sido
decisivos para configurar un panorama que perdura hasta el final del milenio.
FINOCCHIARO habla de un nuevo flujo migratorio, caracterizado por la plura-
lidad de orígenes de llegada (del Este europeo, sobre todo la ex-Yugoslavia; de
Asia; del medio Oriente; del Africa magrebina; etc.), aliado a una nueva expan-
sión del area comunitaria (lo cual no deja de ser un factor atractivo, correspon-
diéndose con un consecuente aumento del mercado de trabajo), y la aparición de
lo que él denomina “(...)della vera e propria xenofobia”.

 ORAA ORAA, Jaime, RUIZ VIEYTEZ, Eduardo y GIL BAZO, María Teresa.“El extran-
jero ante el derecho” in El extranjero en la cultura europea de nuestros días. Universi-
dad de Deusto. Bilbao, 1997. pág.286.
 FINOCCHIARO, Giuseppe. op. cit. pág.17.
Ver también: PANADERO MOYA, Miguel. “Las nuevas realidades de las migraciones
extranjeras en la Europa comunitaria.”in Migraciones extranjeras en la Unión Eu-
ropea. Ediciones de la Universidad Castilla-La Mancha. Cuenca, 1997. pág.17: “(...)
en los últimos años, los movimientos migratorios en Europa se han distanciado del

139
Migraciones de trabajadores en Europa:
de la política estatal a la comunitária

Sin duda, para la caracterización de este nuevo flujo, han sido decisivos
también tanto el fin de la guerra fría como el paulatino incremento de las dife-
rencias económicas Norte-Sur.
Esta nueva onda coincide con un momento de recesión económica y altas
tasas de paro en el occidente europeo. Empiezan a crearse bolsas de margina-
lidad, el sector informal de la economía parece ir en aumento, así como la pre-
carización de las condiciones de trabajo. En fin, todo parece configurar, como
comentan ORAA ORAA, RUIZ VIEYTEZ y GIL BAZO, una “(...) amenaza al sis-
tema del bienestar europeo”.
Esta nueva onda migratoria dista mucho de parecerse a una invasión, o
incluso de amenazar los logros sociales obtenidos, pero el estado psicológico co-
lectivo del occidente europeo parece tener esta sensación en muchos sectores de
la sociedad. Los fenómenos del racismo y la xenofobia entre la población nativa
no han hecho sino crecer durante los últimos años. Si, por un lado, es eviden-
te que los recientes movimientos migratorios traen consigo un impacto de tipo
cultural y religioso, especialmente en todo lo que se refiere al Islam, cuya pene-
tración resulta obvia. También es verdad que, en algunos casos, Europa parece
reaccionar de una forma intolerante y abiertamente hostil.
El capítulo 5 del sondeo de opinión Eurobarómetro 47.1 de 1997 se refiere
a los inmigrantes de origen no europeo. Su presencia se considera beneficiosa
en los países de la Unión Europea por el 40% de los interrogados, pero el 48%
opina que sería mejor estar sin ellos (contra el 40% que se había pronunciado
en este sentido en 1988). Un 37% de la población piensa que los inmigrantes
extracomunitarios legalmente establecidos que se quedan sin empleo deberían
ser reenviados a sus países de origen, y un 21,5% creen que deberían ser todos
repatriados sin más, incluso los hijos nacidos en la UE. El dossier llega a la con-

modelo conocido de las décadas pasadas. Su origen está, sobre todo, en países del
Tercer Mundo. A pesar de las medidas restrictivas implantadas por los respectivos
Gobiernos de la CE, el flujo de entradas es difícilmente contenible y sus componen-
tes han venido a engrosar mayoritariamente el conjunto de población ilegalmente
establecida en el interior de la Comunidad.”
 ORAA ORAA, Jaime; RUIZ VIEYTEZ, Eduardo y GIL BAZO, María Teresa. op. cit.
pág.286.

140
José Blanes Sala

clusión de que el miedo al paro y el pesimismo ante el futuro son los factores
clave para el desarrollo de los sentimientos racistas.
A todo esto, si en un primer momento los diversos Estados cierran unilate-
ralmente las fronteras y empiezan a adoptar legislaciones de control restrictivas,
considerando la cuestión como de competencia exclusiva, al llegar a la década de
los noventa el enfoque político y jurídico empieza a cambiar de forma radical.
Efectivamente, como dice LANFRANCHI, la cuestión interesa -y mu-
cho- a la construcción europea. La consecución de un mercado común que
se apoya en el libre ejercicio de las actividades económicas, la evolución hacia
un mercado único que supone la desaparición de sus fronteras interiores, el
nacimiento de una Unión política y consecuentemente, con un alargamiento
de competencias, sobretodo en el campo social, el conjunto de estas realiza-
ciones, no podían permanecer indiferentes ante la movilidad de la mano de
obra de países terceros.
Tal mudanza se viene produciendo de manera lenta y sumamente caute-
losa. Todavía hoy muchos sectores consideran que el control de movimientos
de personas, la entrada en el territorio nacional y el acceso al empleo por parte
de los extranjeros forman parte de las prerrogativas indisolubles de un Estado
soberano.
Lo cierto es que, por otro lado, los cambios introducidos en las legislacio-
nes nacionales muchas veces muy divergentes entre ellas, crean el temor por
parte de los Estados miembros de que las restricciones en el acceso a los países
del entorno tengan como consecuencia una mayor afluencia de inmigrantes ha-
cia aquellos países con una legislación más permisiva10. De forma que, además
del recelo mutuo, ante los logros del mercado interior comunitario, cada vez era
más evidente la necesidad de que hubiese una política europea coordinada.
El tema empezó a debatirse en el foro de las instituciones europeas. Al-
gunos Estados realizaron por su cuenta, al margen del control comunitario,

 COMISSION EUROPÉENNE. Racisme et xénophobie en Europe. Sondage d’opinion


Eurobaromètre 47.1. Office des publications officielles des Communautés européen-
nes. Luxemburg, 1998. pp.24-28.
 LANFRANCHI, Marie Pierre. op. cit. pág.9.
10 ORAA ORAA, Jaime; RUIZ VIEYTEZ, Eduardo y GIL BAZO, María Teresa. op. cit.
pág.287.

141
Migraciones de trabajadores en Europa:
de la política estatal a la comunitária

acuerdos de carácter intergubernamental, como el de Schengen en 1985 y el de


Dublín en 1990, con el fin de establecer una coordinación en materia de cruce de
fronteras exteriores, política de inmigración y política de asilo.
En diciembre de 1992, el Consejo Europeo de Edimburgo aprobó una de-
claración de principios, pronunciándose a favor de un control efectivo de los
movimientos migratorios en los Estados miembros de la Unión Europea y pro-
poniendo una serie de medidas. Aquel mismo año, el Tratado de Maastricht
situaba las anteriores materias -cruce de fronteras exteriores, política de inmi-
gración y política de asilo- en el ámbito de la cooperación intergubernamental.
Desde entonces se crearon diversos grupos de estudio y de trabajo. Pero estas
medidas no se tradujeron en actuaciones comunitarias concretas.
Finalmente, en 1998 la aprobación del Tratado de Amsterdam creó un nue-
vo marco jurídico para las tres materias mencionadas al fijar un plazo para su
definitiva comunitarización y para la absorción legal del Acuerdo de Schengen.
A partir del Tratado de Ámsterdam, la Unión se propone convertirse en
un espacio de libertad, seguridad y justicia, donde uno de los puntos principales
resulta en una política comunitaria de inmigración, así lo define en el Título IV
del Tratado CE denominado “visado, asilo, inmigración y otras políticas relacio-
nadas con la libre circulación de personas”.
Para la realización de estos objetivos el Consejo Europeo de Tampere, re-
alizado en octubre de 1999, fijó las directrices principales y en junio de 2002 el
Consejo Europeo de Sevilla buscó, al decir de JIMENEZ PIERNAS11, un mínimo
compromiso formal para poner definitivamente en marcha la referida política.
En 2003 el Consejo Europeo se reunió de nuevo en Salónica y después en Bruse-
las con el intuito de reforzar las prioridades estratégicas.
Para organizar de forma lógica la exposición tendremos que dividirla distin-
guiendo entre las disposiciones relativas a la entrada de los trabajadores asalaria-
dos extracomunitarios y las disposiciones relativas a su libertad de circulación.
Con relación a la entrada, en realidad, será necesario de nuevo dividir el
asunto entre dos importantes temas de naturaleza diferente, objeto de apre-
ciación tanto por el derecho originario (los tratados), como por las recientes

11 JIMENEZ PIERNAS, Carlos. “La comunitarización de las políticas de inmigración y


extranjería” in Revista de Derecho Comunitario Europeo nº 13. Septiembre/Diciem-
bre 2002. pág.870.

142
José Blanes Sala

creaciones del derecho derivado (reglamentos y directivas), a saber, visados e


inmigración ilegal.
Ya en lo que respecta a la libertad de circulación cabe comentar el concep-
to de inmigración legal, el cual ha sido objeto de reciente reglamentación.
De cualquier forma, estamos de acuerdo con MARTIN Y PEREZ DE NAN-
CLARES12 cuando pondera que el proceso de comunitarización presenta una
excesiva confusión y complejidad jurídica porque en el título correspondiente
del Tratado de Ámsterdam se mezcla la regulación de asilo y refugio, los visados,
la inmigración y la extranjería, además de tener en cuenta que la materia puede
verse alterada por siete protocolos, diecisiete declaraciones anexas al Acta Final,
más cuatro declaraciones de Estados Miembros en la Conferencia.
A pesar de todo, estamos ante una nueva etapa representada por un avan-
ce cualitativo. Así lo expresa BLAZQUEZ RODRIGUEZ13 considerando que, con
el trasvase del tercer pilar para el primer pilar, se intenta luchar con energías
renovadas frente al anquilosamiento puesto de relieve durante los años de vi-
gencia del Tratado de Maastricht.
Del nuevo título IV del TCE, para el análisis de la entrada del trabajador asa-
lariado extracomunitario, nos interesan específicamente las reglas que se refieren
al cruce de las fronteras exteriores y también las que se refieren a la expulsión y
combate a la inmigración ilegal. Todas ellas se someten a una adopción progresiva,
o sea, no inmediata, conforme a una serie de tiempos y procedimientos.
Cabe resaltar, sobre todo con relación a estas medidas, determinado
aspecto del Tratado al que MARIÑO MENENDEZ denomina, con justicia, de
“previsión general, respetuosa con el núcleo duro de la soberanía, de que las
disposiciones del Título no afectarán al ejercicio de las responsabilidades que
competen a los Estados miembros para el mantenimiento del orden público y la
salvaguardia de la seguridad interior;(...)”.14

12 MARTÍN Y PEREZ DE NANCLARES, Javier. La inmigración y el asilo en la Unión


Europea. Hacia un nuevo espacio de libertad, seguridad y justicia. Madrid, 2002.
pp.64-66.
13 BLAZQUEZ ROGRUIGUEZ, Irene. Los nacionales de terceros países en la Unión Eu-
ropea. p.75.
14 MARIÑO MENÉNDEZ, Fernando. “Una Unión al servicio del ciudadano: un espacio
de libertad, de seguridad y de justicia” in El Tratado de Ámsterdam, análisis y comen-

143
Migraciones de trabajadores en Europa:
de la política estatal a la comunitária

Efectivamente, en el artículo 64 TCE, se deja claro que el nuevo título debe


interpretarse siempre bajo la clave estatal de la seguridad y orden pública. Por si
fuera poco, la Declaración nº 19 referente al citado artículo alarga todavía más
la capacidad interpretativa al enunciar que los Estados miembros podrán tener
en cuenta consideraciones de política exterior al ejercer sus responsabilidades.
Es lo que se desprende de la hipótesis prevista en el segundo apartado del mismo
artículo, cuando el Consejo, por mayoría cualificada y a propuesta de la Comisi-
ón, puede adoptar medidas provisionales por un plazo máximo de seis meses en
favor de los Estados miembros que se enfrenten a una situación de emergencia
por la llegada repentina de nacionales de un tercer país.
Por otro lado, también se verifica la adopción de una medida que responde
al principio de progresividad, como lo define OLESTI: “Desde los orígenes, pero
también cada vez que se ha modificado de una forma muy significativa los tra-
tados constitutivos, se ha implantado la instauración progresiva de alguna de las
finalidades clave en el ideal de la integración europea(...) con la firma del Tratado
de Amsterdam se dispone también la necesidad de que en un plazo de tiempo de-
terminado se establezca para los Estados miembros de la Unión Europea la progre-
siva instauración de un espacio de seguridad, libertad y justicia.”15
De esta forma, en el nuevo artículo 61 a. TCE se da un plazo de 5 años, a par-
tir de la entrada en vigor del Tratado de Amsterdam, para que el Consejo adopte
las medidas pertinentes a los temas relativos al cruce de fronteras exteriores, y de
expulsión y combate a la inmigración. También para las medidas sobre residencia
y circulación de extracomunitarios.
Los procedimientos que las instituciones comunitarias deben seguir para
la edición de las medidas durante, o al término, del plazo estipulado. Se pueden
dividir en tres grupos:
• De una forma general, durante este período de cinco años el Consejo de-
cidirá por unanimidad, a propuesta de la Comisión o a iniciativa de un
Estado miembro y previa consulta al Parlamento Europeo, las medidas
adecuadas para fomentar e intensificar la cooperación administrativa
(arts. 61 d., 66 y 67 1. TCE);

tarios. Mc Graw Hill. Madrid, 1998. vol. I pág.269.


15 OLESTI RAYO, Andreu. Los principios del Tratado de la Unión Europea. Ariel Dere-
cho. Barcelona, 1998. pp.129-130.

144
José Blanes Sala

• Tras dicho período la Comisión estudiará cualquier petición que le haga


un Estado miembro para que presente una propuesta al Consejo con el
fin de que este decida (art. 67 2. TCE);
• Tras dicho período también, el Consejo -por unanimidad y pre-
via consulta al Parlamento- deberá emitir una decisión con vistas
a adoptar el procedimiento previsto en el artículo 251 TCE -cuya
esencia consiste en la decisión por mayoría cualificada- y las dis-
posiciones relativas a las competencias del Tribunal de Justicia (art.
67 2. TCE);
Expresivo el comentario de MARIÑO MENENDEZ sobre estas disposiciones
procedimentales: “Las grandes cautelas que los Estados miembros han tomado
para evitar una “comunitarización súbita” del conjunto de los indicados ámbitos
materiales se muestran en todo su esplendor en el artículo 67 del TCE, que regula
el procedimiento para la adopción de las medidas.”16
Se trata, pues, de un proceder más intergubernamental que comunitario al
determinar el sistema de la unanimidad. Además, pasados los cinco años, y a pesar
de que la Comisión recupere la autonomía de acción, el sistema de la unanimidad
puede perdurar indefinidamente. Así lo corrobora LABAYLE: “Au fond, le premier
paragraphe de l’article 67 met en place un régime intérimaire, mixant des élements
d’intergouvernamental et de communautaire. A l’intergouvernamental, évidem-
ment, appartient le maintien de la règle de l’unanimité pour toutes les décisions
du Conseil(...)A l’expiration de la transition de cinq ans, le paragraphe second de
l’article 67 a vocation à jouer. La Comissión y retrouve son monopole d’initiative
mais demeure tenue d’examiner toute demande de proposition d’un Etat et le sché-
ma décisionel à l’unanimité este maintenu.”17
La verdad es que la intergubernamentalidad del proceder contrasta con el
nuevo ‘status’ de derecho originario. El único esfuerzo para dejar de lado tanta
cautela lo protagonizó Alemania al pedir la inclusión de la Declaración nº 21
en el Acta Final del Tratado, relativa a la referida decisión del Consejo para el
cambio de procedimiento -de unanimidad a mayoría-, donde se establece que el
examen de los elementos para la decisión (art. 67. 2 2º TCE) se efectúe antes de

16 MARIÑO MENÉNDEZ, Fernando. op. cit. pág.273.


17 LABAYLE, Henri. op. cit. pp.152-153.

145
Migraciones de trabajadores en Europa:
de la política estatal a la comunitária

que finalice el período de los cinco años, con el fin de poder aplicarla de forma
inmediata una vez transcurrido dicho período.
Se hacen dos excepciones a los plazos y procedimientos propuestos:
• Por un lado, el modelo uniforme de visado y la lista de los terceros paí-
ses cuyos nacionales tengan la obligación de ser titulares de visado para
cruzar la frontera exterior deben ser adoptados a partir de la entrada en
vigor del Tratado, por el procedimiento habitual de mayoría cualificada
(arts. 67 3. y 62 2. b. i y iii TCE);
• Y por otro, las normas para un visado uniforme y los procedimientos
y condiciones para la expedición de visados por los Estados miem-
bros, tras el período de 5 años, no necesitan aguardar una decisión del
Consejo para seguir automáticamente el procedimiento de mayoría
cualificada del art. 251 TCE (arts. 67 4. y 62 2. b. ii y iv TCE).
Con base en estas disposiciones el Consejo ha adoptado el Reglamento CE
539/2001, de 15 de marzo de 200118, por el que se establece la lista de terceros
países cuyos nacionales están sometidos a la obligación de visado, así como otra
lista de terceros países cuyos nacionales están exentos de esta obligación siem-
pre que la duración de su estancia no supere los tres meses.
No obstante, con razón comenta JIMENEZ PIERNAS19, que la ausencia de
una coordinación efectiva entre los Estados miembros viene posibilitando que
un extranjero consiga un visado en un consulado tras haber sido rechazado en
otro u otros; de ahí que ahora se persiga el objetivo de crear un visado común
con un banco de datos común que combata con eficacia el visa shopping, o lo que
es lo mismo, seguir avanzando en la comunitarización de esta política pública,
con el fin evitar que los visados de corta duración se conviertan en un aliviadero
para la inmigración ilegal.
En este sentido, vienen siendo adoptadas por el Consejo una serie de me-
didas importantes para la expedición de visados: Reglamento CE 789/2001, de
24 de abril de 200120, por el que el Consejo se reserva competencias de ejecución
en relación con determinadas disposiciones detalladas y procedimientos prác-
ticos de examen de solicitudes de visado; Reglamento 790/2001, de 24 de abril

18 DOCE L 81, de 21.3.2001.


19 JIMENEZ PIERNAS, Carlos. op. cit. p.877.
20 DOCE L 116, de 26.4.2001.

146
José Blanes Sala

de 200121, por el que el Consejo se reserva competencias de ejecución en relación


con determinadas disposiciones detalladas y procedimientos prácticos relativos
a la puesta en práctica del control y de la vigilancia de fronteras; Reglamento
1091/2001 de 28 de mayo de 200122, relativo a la libre circulación con visado para
estancias de larga duración; Reglamento 333/2002 de 18 de febrero de 200223,
sobre un modelo uniforme de impreso para la colocación del visado expedido
por los Estados miembros a titulares de un documento de viaje no reconocido
por el Estado miembro que expide el impreso; Reglamento 334/2002 de 18 de
febrero de 200224, que modifica el Reglamento 1683/95 de 29 de mayo de 199525
por el que se establece un modelo uniforme de visado. Además, por Decisión
del Consejo 463/2002 de 13 de junio de 200226, basada en el artículo 66 del TCE,
se adopta un programa de acción relativo a la cooperación administrativa en
los ámbitos de las fronteras exteriores, visados, asilo e inmigración (programa
ARGO). Finalmente, otra serie de decisiones muy variadas modifican el conte-
nido del Manual común sobre controles en las fronteras exteriores y de la Ins-
trucción consular común sobre visados27.
Sobre las disposiciones relativas a la expulsión y combate a la inmigración
ilegal se determina que siguiendo el procedimiento del art. 67 1 y 2. TCE el Con-
sejo podrá adoptar, en el plazo de 5 años a partir de la entrada en vigor del Tra-
tado de Amsterdam, otras medidas sobre la inmigración y la residencia ilegales,
incluida la repatriación de residentes ilegales (arts. 61 b. y 63 3. b. TCE).
De esta forma, se fija una clara base jurídica28 para la adopción por parte
de la Comunidad Europea de medidas generales sobre el retorno de las perso-
nas que se encuentren ilegalmente en territorio comunitario y la celebración de
Acuerdos de readmisión con terceros Estados.

21 DOCE L 116, de 26 de abril de 2001.


22 DOCE L 150, de 6 de junio de 2001.
23 DOCE L 53, de 23 de febrero de 2002.
24 DOCE L 53, de 23 de febrero de 2002.
25 DOCE L 164, de 14 de julio de 1995.
26 DOCE L 161, de 19 de junio de 2002.
27 DOCE L 239, de 22 de septiembre de 2000.
28 JIMENEZ PIERNAS, Carlos. op. cit. p.879.

147
Migraciones de trabajadores en Europa:
de la política estatal a la comunitária

Desde entonces la Comisión viene trabajando sobre este asunto y elaboró


un “Libro Verde relativo a una política comunitaria de retorno de los residentes
ilegales”29 en el contexto de la política global de inmigración. Meses más tarde el
Consejo Europeo de Sevilla corrobora las propuestas del Libro Verde al aprobar
en sus conclusiones un programa de repatriación de inmigrantes ilegales me-
diante la celebración de acuerdos de readmisión o bien la inserción de cláusulas
modelo en los acuerdos de asociación o cooperación que la Unión celebre con
terceros Estados o grupos de Estados30.
Con base en las decisiones del Consejo Europeo de Sevilla la Comisión
elabora nueva Comunicación a finales del 2002 en la cual analiza, en primer
lugar, los efectos que la inmigración internacional tiene sobre los países en vías
de desarrollo y cómo puede ayudárseles a gestionar los flujos migratorios y, en
segundo lugar, la eficacia de los recursos económicos financieros disponibles a
escala comunitaria para la repatriación de inmigrantes y solicitantes de asilo
rechazados, la gestión de las fronteras exteriores y los proyectos de asilo y mi-
gración en países terceros.
Finalmente, el desarrollo normativo de algunas de las propuestas recogi-
das en la mencionada Comunicación se ha plasmado en el reciente Reglamento
491/2004, de 10 de marzo de 200431, por el que se establece un programa de asis-
tencia financiera y técnica a los terceros países en los ámbitos de la migración y
el asilo (programa AENEAS)32.
Por otro lado, en materia de inmigración ilegal, no se puede olvidar que
también existen las medidas de cooperación intergubernamental previstas en el

29 COM(2002) 175 final, de 10 de abril de 2002.


30 Sin embargo, la Comisión esclarece que encuentra muchas dificultades para avanzar
en las negociaciones de acuerdos de readmisión ante la imposibilidad de ofrecer
contrapartidas de interés a los terceros Estados, recomendando la complementarie-
dad con otras políticas comunitarias a fin de alcanzar los objetivos propuestos sobre
retorno y readmisión.
31 DOCE L 80, de 18 de marzo de 2004.
32 En vigor hasta el 31 de diciembre de 2008, regula un programa plurianual dotado
con 250 millones de euros, y tiene como objetivo la elevación, tanto en los países de
origen como de acogida, del grado de conciencia que la ciudadanía debe tener acer-
ca de las ventajas de la migración legal y las consecuencias de la migración ilegal.

148
José Blanes Sala

Tratado de Ámsterdam dentro del Título VI (cooperación policial y judicial en


materia penal) en los artículos 29, 31 e) y 34.2 b), que establecen la adopción de
medidas para reducir la inmigración ilegal y especialmente combatir las redes
organizadas (mafias) dedicadas a este tráfico y a la trata de seres humanos.
En este sentido, cabe destacar la Decisión Marco 2002/946/JAI del Consejo
de 28 de noviembre de 200233 que regula el reforzamiento del marco penal para
la represión de la ayuda a la entrada, a la circulación y a la estancia de migrantes
irregulares. Se trata de una norma que complementa otros instrumentos comu-
nitarios adoptados para combatir la inmigración clandestina, el empleo ilegal, la
trata de seres humanos y la explotación sexual de los niños, estableciendo unas
normas mínimas para las sanciones, la responsabilidad de las personas jurídicas
y la competencia.
Tras el examen de las normas sobre la entrada de los extracomunitarios
asalariados, cabe ahora el examen de las disposiciones sobre la libertad de cir-
culación de los mismos, lo que, en realidad, debemos considerar de forma más
apropiada bajo el concepto de inmigración legal.
El artículo 61 b) TCE se encadena al 63 3) a) y 4) TCE determinando que
“A fin de establecer progresivamente un espacio de libertad, de seguridad y de
justicia el Consejo adoptará medidas en los ámbitos de asilo, la inmigración y la
protección de los derechos de los nacionales de terceros países, de conformidad
con lo dispuesto en el artículo 63;” el cual establece que “El Consejo, con arreglo
al procedimiento previsto en el artículo 67, adoptará, en el plazo de 5 años a
partir de la fecha de entrada en vigor del Tratado de Amsterdam, medidas sobre
política de inmigración en las condiciones de entrada y de residencia, y normas
sobre procedimientos de expedición por los Estados miembros de visados de
larga duración y de permisos de residencia(...); bien como medidas que definan
los derechos y las condiciones con arreglo a los cuales los nacionales de terceros
países que residan legalmente en un Estado miembro puedan residir en otros
Estados miembros.”
Es decir, estamos hablando no tan solo de inmigración en sentido genérico
sino de ‘protección de los derechos de los nacionales de terceros países’. Nos parece
de fundamental importancia la expresión utilizada porque, en primer lugar, bajo ella
se contiene el reconocimiento expreso de una serie de derechos a personas de las

33 DOCE L 328, de 5 de diciembre de 2002.

149
Migraciones de trabajadores en Europa:
de la política estatal a la comunitária

cuales hasta este momento mal se hacía mención en el mismo derecho originario.
Derechos sobre los cuales será necesario determinar con precisión su alcance y su
contenido jurídico.
Si, como reconoce ESPADA RAMOS, hasta Amsterdam “la situación legal
es de cierto reconocimiento de “beneficios” y no de “derechos” para los traba-
jadores no comunitarios, en el contexto de los principios jurídicos formales y
sustantivos del Derecho comunitario”34, a partir de Amsterdam, aunque aún de
forma inconcreta y ambigua, se empieza a hablar de derechos.
Y en segundo lugar, porque el Tratado habla de protección a estos dere-
chos, lo cual entraña la creación de un sistema jurídico que garantice su respeto
y aplicación.
En los artículos mencionados el contenido de los derechos se centra so-
bretodo en la obtención de la residencia por parte de los extracomunitarios sea
a través de visados de larga duración o de permisos de residencia, o bien incluso
sobre el cambio de residencia para otros Estados miembros.
Sin embargo, el artículo 63 TCE hace una importante excepción: “Las me-
didas adoptadas por el Consejo en virtud de los puntos 3 y 4 no impedirán a
cualquier Estado miembro mantener o introducir en los ámbitos de que se trate
disposiciones nacionales que sean compatibles con el presente Tratado y con los
acuerdos internacionales”. De este modo se mantiene la competencia concur-
rente a pesar de la ‘comunitarización’ de la materia.
En esta materia, a pesar de la excepción mencionada prevista en el Tra-
tado, el Consejo Europeo de Tampere, realizado en 1999, deja clara la opinión
mayoritária de los Estados miembros al pronunciarse a favor de una armoniza-
ción de las legislaciones relativas a las condiciones de admisión y de residencia
de los nacionales de terceros países, a partir de una gestión eficaz de los flujos
migratórios. Para tal, se considera oportuna una política más enérgica en mate-
ria de integración dirigida a la fijación de derechos y obligaciones similares a los
de los nacionales de los Estados miembros de la UE y a favorecer paralelamente
la no discriminación y la puesta en práctica de medidas de lucha contra el racis-
mo y la xenofobia.

34 ESPADA RAMOS, Maria Luisa. ¿Europa, ciudad abierta? La inmigración y el asilo en


la Unión Europea. Edit. Instituto Municipal de Formación y Empleo. Granada, 1997.
pág.60.

150
José Blanes Sala

Resulta significativa la afirmación de la conclusión núm. 21 al establecer


que a una persona que haya residido legalmente en un Estado miembro durante
un periodo de tiempo por determinar y que cuente con un permiso de residencia
de larga duración “se le debería conceder en ese Estado miembro un conjunto
de derechos de carácter uniforme, lo más cercanos posibles al de los ciudadanos
de la Unión, que contenga por ejemplo el derecho a residir, recibir educación y
trabajar por cuenta ajena o propia, sin olvidar el principio de no discriminación
respecto de los ciudadanos del Estado de residencia”.
A tenor de estas orientaciones surge la importante Directiva 2003/109/CE
del Consejo, de 25 de noviembre de 200335 relativa al Estatuto de los nacionales
de terceros países residentes de larga duración, cuyo objetivo consiste en la in-
tegración de las referidas personas como elemento clave para promover la cohe-
sión económica y social.
Dicha integración se alcanzará después de un período ininterrumpido de
residencia a lo largo de cinco años, además de comprobar que se dispone de
recursos suficientes y de un seguro de enfermedad para evitar convertirse en
una carga para los Estados. Estas personas tampoco deberán representar una
amenaza actual ni al orden público ni a la seguridad pública interior. De cual-
quier modo, la Directiva posibilita a los Estados miembros que requieran a los
nacionales de terceros países que cumplan las medidas de integración de con-
formidad con la legislación nacional.
No faltarán críticas en los recientes trabajos36 de análisis sobre la mencionada
Directiva que, a pesar de ser pionera y proponerse aplicar el principio de igualdad de
trato, en la práctica, establece algunas restricciones.
A efectos de inmigración legal cabe también, por oportuno, destacar la
existencia del Reglamento 1030/2002 de 13 de junio de 200237, por el que se
establece un modelo uniforme de permiso de residencia para nacionales de
terceros países.

35 DOCE L 16/44, de 23 de enero de 2004.


36 Ver los comentarios y conclusiones de la tercera ponencia presentada en el II Con-
grés de la Immigració a Catalunya: “Inmigración y marco jurídico. Por un marco
jurídico estable y coherente” presentada por la Cátedra d’Immigració, Drets i Ciuta-
dania de la Universitat de Girona en Reus del 17 al 18 de abril de 2004.
37 DOCE L 157, de 15 de junio de 2002.

151
Migraciones de trabajadores en Europa:
de la política estatal a la comunitária

Para concluir este apartado, a fin de obtener una visión completa de las
disposiciones de Ámsterdam hay que tener en cuenta la presencia de varios pro-
tocolos anexos al Tratado que completan lo mencionado hasta ahora.
En primer lugar, el protocolo por el que se integra el acervo Schengen38 en
el marco de la Unión Europea, en lo que se refiere a la supresión gradual de los
controles de las fronteras comunes entre los Estados miembros de la Unión y los
terceros Estados miembros del ‘espacio Schengen’.
En segundo lugar, otros dos protocolos relativos a la posición específica
respecto a la JAI del Reino Unido e Irlanda, por un lado, y de Dinamarca, por
otro.
A este respecto, GONZALEZ SANCHEZ39 explica con pertinencia que la
existencia del Acuerdo Schengen y de los protocolos indicados implica una di-

38 El acuerdo Schengen se inspira en el sistema del BENELUX (Bélgica, Países Bajos y


Luxemburgo) que desde 1960 había suprimido el control de sus fronteras, aplicando
una política migratoria común. El buen resultado de esta experiencia llevó a que Ale-
mania y Francia se unieran a esa supresión gradual de los controles aduaneros y mi-
gratorios, lo cual se logró mediante el citado acuerdo el 14 de junio de 1985. Con ello se
dio el paso definitivo para el camino hacia la libre circulación de personas en la Europa
comunitaria y la posibilidad de una mayor cooperación transfronteriza. La clave del
éxito se debió, en buena parte, a que el Acuerdo hace una distinción esencial entre la
libre circulación de bienes y servicios y la libre circulación de personas, permitiendo así
un ritmo diferente de medidas y adecuaciones.
Para la libre circulación de bienes y servicios el Acuerdo creaba medidas de corto
plazo, pero las medidas referentes a la libre circulación de personas, que consistí-
an en la supresión de los controles migratorios internos, quedaban para un largo
plazo. Su complejidad exigió la firma de un Tratado complementario en 1990, el
Convenio de Aplicación del Acuerdo de Schengen. En él se establecieron las medidas
pertinentes al aflujo de extracomunitarios y, en concreto, para el objeto de nuestro
trabajo nos interesan la política común de visados, las medidas de reforzamiento de
las fronteras exteriores y la lucha contra la inmigración ilegal.
Ver las decisiones del Consejo de 20 de mayo de 1999 (DOCE L 176, de 10 de julio de
1999) que hacen referencia a la definición del Acervo de Schengen y a la fijación de la
base jurídica de cada una de las disposiciones que lo constituyen. Las disposiciones
constitutivas del Acervo de Schengen desde la firma del acuerdo en 1985 hasta la entra-
da en vigor del Tratado de Ámsterdam aparecen publicadas en DOCE L 239, de 22 de
septiembre de 2000.
39 GONZALEZ SANCHEZ, Enrique. “Asilo e inmigración en la Unión Europea”. in De-

152
José Blanes Sala

versidad institucional que se refleja en la diversidad de estatutos de los diferen-


tes países. En efecto, solo doce países miembros de la Unión (Bélgica, Alemania,
Grecia, España, Finlandia, Francia, Italia, Luxemburgo, Austria, Países Bajos,
Portugal, Suecia) aplican globamente el contenido del título IV del TCE. Irlanda
y el Reino Unido aunque no aplican ‘a priori’ el título IV, tienen la posibilidad
de participar en dicha política si así lo desean (“opting in”). Los otros doce más
Dinamarca llevan a cabo una ‘cooperación reforzada’ en el ámbito Schengen,
en la que participan también Islandia y Noruega40. A efecto de asociar estos dos
países al procedimiento decisorio en materias Schengen, un Comité mixto, que
se reúne a diferentes niveles, constituye el marco formal para el tratamiento de
dichos temas. En su seno, Islandia y Noruega hacen oir su voz (“decision sha-
ping”), si bien la decisión final (“decision making”) corresponde a los Estados
miembros de la Unión.
Proclamada en Niza el 7 de diciembre del 2000 con motivo del Consejo
Europeo de Niza, la Carta de los Derechos Fundamentales de la Unión, al decir
de FONSECA MORILLO41 está directamente vinculada al mantenimiento y de-
sarrollo de un espacio de libertad, seguridad y justicia. Según este autor, está
claro que, a partir del momento en que la Unión comienza a desarrollar políticas
que afectan a ámbitos tan sensibles como el derecho de asilo, la inmigración y,
de forma general, los derechos de los nacionales de los terceros países, se hace
necesario expresarse de forma clara y estructurada en materia de derechos fun-
damentales.
En este sentido, estamos de acuerdo con el citado autor al considerar la Carta
como la enumeración de las libertades y derechos fundamentales que deben ser
respetados por las autoridades públicas de la Unión en sus relaciones no solo con
los ciudadanos europeos, sino también con los nacionales de terceros países que se
encuentren en el territorio de la Unión.

recho Comunitario Europeo. Núm.13. septiembre/diciembre 2002. pág.838.


40 Acuerdo de 18 de mayo de 1999 entre el Consejo de la Unión Europea, Islandia y
Noruega (DOCE L 176, de 10 de julio de 1999).
41 FONSECA MORILLO, Francisco J. “Los derechos de los nacionales de terceros países
en la Unión Europea. Situación jurídico-política tras la proclamación de la Carta de
los Derechos Fundamentales de la Unión” in Revista CIDOB d’Afers Internacionals.
núm.53. mayo/junio de 2001. pág.80.

153
Migraciones de trabajadores en Europa:
de la política estatal a la comunitária

Efectivamente, queda patente en la Carta el respeto por el principio de


la indivisibilidad de los valores, al recoger todos los derechos fundamentales,
así como el principio de la universalidad de los mismos, al colocar a la persona
como el centro de su actuación, sin distinción de nacionalidad o residencia42.
Sin embargo, el hecho de que la misma Carta no haya designado titulares
precisos para los referidos principios y derechos puede dar margen a interpreta-
ciones más restrictivas, sobretodo cuando en algunos artículos se hace remisión a
las legislaciones nacionales para determinar el campo preciso de la protección.
El 29 de octubre de 2004 los representantes de los gobiernos de los Estados
miembros de la Unión firman en Roma un nuevo Tratado por el que se estable-
ce una Constitución para Europa, de forma a organizar y sustituir los Tratados
anteriores, acumulados desde hace 50 años, excepto el Tratado EURATOM. Para
que el nuevo Tratado entre en vigor se hace necesaria su ratificación por parte
de todos los Estados miembros y, aunque este proceso estaba previsto para unos
dos años, con las recientes negativas en los referendos de Francia y Holanda, ya
no se pueden estimar previsiones a corto plazo.
De cualquier forma creemos importante mencionar el trato que la política
migratoria recibe en este documento, teniendo en cuenta que, por su actualidad
y carácter polémico, estará sujeto a alteraciones más o menos sustanciales.
Al cuidar de las políticas y acciones internas en el título III, el nuevo Tratado
encaja las “Políticas sobre controles en la fronteras, asilo e inmigración” en el
capítulo IV del referido título relativo al espacio de libertad, seguridad y justicia.
En los artículos de las disposiciones generales del capítulo, el documento
esclarece que la mencionada política deberá estar basada en la solidaridad entre
los Estados miembros y deberá ser equitativa respecto a los nacionales de ter-
ceros países (artículo III-257, 2). Entendemos que aunque no se utilicen las ya
consagradas expresiones “igualdad de trato” o “no discriminación”, la palabra
“equitativa” no puede suponer una lectura menos intensa o una interpretación
diferente de la que hasta ahora venía dandose, pues, a final de cuentas, estamos

42 Resulta oportuno, en este sentido, reproducir el segundo apartado del preámbulo


de la Carta: “Consciente de su patrimonio espiritual y moral, la Unión está fundada
sobre los valores indivisibles y universales de la dignidad humana, la libertad, la
igualdad y la solidaridad, y se basa en los principios de la democracia y del Estado
de derecho. Al instituir la ciudadanía de la Unión y crear un espacio de libertad,
seguridad y justicia, sitúa a la persona en el centro de su actuación.”

154
José Blanes Sala

de acuerdo con JIMENEZ PIERNAS al considerar el principio de no discrimina-


ción como clave de bóveda del régimen de extranjería43.
En estos mismos artículos se insiste, como en Ámsterdam, que el espacio
de libertad, seguridad y justicia deberá entenderse sin perjuicio del ejercicio de
las responsabilidades que incumben a los Estados miembros en cuanto al man-
tenimiento del orden público y la salvaguardia de la seguridad interior (artículo
III-262), manteniendo así la previsión general respetuosa con el núcleo duro de la
soberanía de los Estados miembros.
Al llegar a la Sección 2 donde cuida específicamente de las políticas sobre con-
troles en las fronteras, asilo e inmigración, en el artículo III-265 describe los objetivos
para el cruce de las fronteras exteriores, haciendo mención a las medidas que la ley o
ley marco europea deberá establecer44, y en el artículo III-267 describe en qué consiste
la política común de inmigración, así como las medidas que la ley o ley marco europea
deberá establecer también en este sentido45.
La descripción de la política común da muestra de que no hay noveda-
des con relación al Tratado de Amsterdam, pues mantiene su foco en la gestión
eficaz de los flujos migratórios, en un trato equitativo de los nacionales de ter-

43 JIMENEZ PIERNAS, Carlos. op. cit. pág.882.


44 a) la política común de visados y otros permisos de corta duración;
b) los controles a los cuales se someterá a las personas que crucen las fronteras
exteriores;
c) las condiciones en las que los nacionales de terceros países podrán circular libre-
mente por la Unión durante un corto período;
d) cualquier medida necesaria para el establecimiento progresivo de un sistema in-
tegrado de gestión en las fronteras exteriores;
e) la ausencia de controles de las personas, sea cual sea su nacionalidad, cuando
crucen las fronteras interiores.
45 a) las condiciones de entrada y residencia y las normas relativas a la expedición
por los Estados miembros de visados y permisos de residencia de larga duración,
incluidos los destinados a la reagrupación familiar;
b) la definición de los derechos de los nacionales de terceros países que residan legal-
mente en un Estado miembro, con inclusión de las condiciones que rigen la libertad de
circulación y de residencia en los demás Estados miembros;
c) la inmigración y residencia ilegales, incluidas la expulsión y la repatriación de
residentes en situación ilegal;
d) la lucha contra la trata de seres humanos, en particular de mujeres y niños.

155
Migraciones de trabajadores en Europa:
de la política estatal a la comunitária

ceros países que residan legalmente en los Estados miembros, así como en una
prevención de la inmigración ilegal y de la trata de seres humanos y una lucha
reforzada contra ambas. Así como tampoco hay novedades en las medidas pro-
puestas que ya se vienen concretando desde Amsterdam.
Eso sí, se hace hincapié en la posibilidad de celebrar acuerdos para la readmisión
de nacionales de terceros países en sus naciones de origen o procedencia y el derecho de
los Estados miembros a establecer volúmenes de admisión.
Por ese motivo, no parece tan descabida la opinión, un tanto cuanto escépti-
ca, de PEDROL y PISARELLO al afirmar que “conociendo el historial de la Unión
en matéria de políticas migratórias cuesta realizar una lectura inocente de estas
previsiones. ¿Cómo confiar, en efecto, en una política que sobredimensiona el
papel de la lucha contra la inmigración clandestina (ficheros Eurodac, Acuerdos
Schengen, Europol, coordinación para la vigilancia de frontera, sanciones para los
transportistas, políticas comunes de readmisión, expulsión, repatriación) y presta
escasa atención a las políticas de integración política, social y laboral de los recién
llegados? ¿Qué esperar de un texto parco y contenido en materia de derechos que
sin embargo se preocupa en recordar que la Unión celebrará acuerdos de readmi-
sión con los países de procedencia de los flujos migratórios, a fin de facilitar las
medidas de expulsión y repatriación de extranjeros ilegales?”46

46 PEDROL, Xavier y PISARELLO, Gerardo. La Constitución furtiva. Por una construc-


ción social y democrática de Europa. Icaria editorial. Barcelona, 2004. página 95.

156
Capitulo 10

Processos de exclusão social


no Brasil

Edemir de Carvalho

A globalização, como fenômeno global, faz com que os chamados bens du-
ráveis de consumo, dentro dos quais se incluem os aparelhos de televisão,
rádios, vídeos, computadores transformaram-se em bens de consumo de mas-
sa, desejados, em escala planetária, por todos os grupos sociais, independente
de seus níveis de renda.
A globalização é talvez um processo de unificação dos mercados mundiais
ou a integração dos povos, de suas economias, constituindo-se em requisitos
básicos e necessários para que haja sempre o progresso da produção global em
todas as economias, além de propiciar constantemente espaços interativos para
a troca de idéias, transmissão tecnológica e mercados transacionais proporcio-
nando, invariavelmente, o desenvolvimento e a construção do mundo neste sé-
culo XXI.
Podemos observar que a expansão da globalização ocorre nos decênios
dos anos 90 de maneira bastante acelerada, devido o grande avanço tecnológi-
co ao que se refere principalmente à área das comunicações, nas indústrias de
transformação (reguladas pela automação). Hoje com o advento dos sistemas de
transmissão de dados e informações através da internet é possível sabermos o
que está ocorrendo de forma simultânea, qualquer tipo de atividade, seja de or-
dem econômica, política ou social, até mesmo os acontecimentos sem relevância
do mundo, do planeta.
Conforme colocado anteriormente, está claro que a globalização tem a
pretensão de ser hegemônica, uma vez que sua presença se faz obrigatória em
Processos de exclusão social no Brasil

todos os lugares e continentes, carregando consigo a promessa de que a constru-


ção do mundo só é possível se estiver incluso nesse movimento.
Os efeitos da globalização tendem a homogeneizar os espaços nacionais,
mas são diferenciados em cada nação, região e, até mesmo pelas características
locais, ou seja, as condições históricas e estruturais dos diferentes países e cidades
– pesam na configuração das desigualdades sócio-espaciais, nos vínculos e rela-
ções de sociabilidade como as associativas, de segregação e/ou diferenciação.
Até o momento séc. XXI, o que assistimos cotidianamente é o aumento das
desigualdades, segundo (Santos, 1996a), renova disparidades e cria novas desigual-
dades, o que é devido à violência dos seus processos fundadores, todos praticamente
indiferentes às realidades locais. A aplicação brutal de princípios gerais a situações
tão diversas é criadora de desordem.
Observamos que a globalização está beneficiando apenas uma parcela
limitada de atores sociais, uma vez que causa enormes transtornos e danos à
maioria da população e às empresas.
Entendemos que a pobreza não é apenas uma questão econômica, mas
multidimensional. Ela está ligada a exclusão, ao seu não reconhecimento como
também à violência, à vitimização, o crescimento urbano desordenado acompa-
nhado da ausência dos meios de consumo coletivos necessários à subsistência.
Os pobres são excluídos do processo produtivo, não têm sequer conheci-
mento dos seus direitos e deveres, não possuem segurança e também não têm
sua própria identidade e são indivíduos totalmente sem espaço no poder, fato
que está extremamente ligado ao acesso às informações e aos financiamentos, à
visibilidade e a força política. Existe em nossa sociedade uma barreira cultural
que impede com que os pobres os quais são considerados sem cultura e ignoran-
tes, escutem e possam enxergar e serem ouvidos.
Os principais determinantes da desigualdade no Brasil, além de diferenciar
as desigualdades de condições, desigualdade de oportunidades e desigualdade de
resultados, é importante identificar como cada um desses conceitos de desigual-
dade tem evoluído: no tempo; e como se altera (ou não) a relação entre elas.
O Brasil é um dos maiores países do mundo e a oitava economia mundial.
No entanto, essa riqueza aparente vive em total contraste com um lado obscuro:
o Brasil é o país com a maior desigualdade do mundo. Dados oficiais mostram
que mais de 32 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza, o que

158
Edemir de Carvalho

significa mais que toda a população do Canadá. Fala-se em “apartheid social”


quando sequer descrever a situação daqueles que vivem na miséria.
• 29% da população vivem com menos de US$ l por dia.
• O salário mínimo compra menos que 1% da cesta básica, o que
significa que centenas de pessoas não ganham o suficiente para se
alimentar.
• 41% das crianças de 6 a 24 meses se encontram em estado de des-
nutrição;
• uma em cada 16 crianças morre antes de completar 5 anos de idade,
muitas vezes por causa de doenças que poderiam ser prevenidas;
• são 14 milhões de pessoas não sabem ler nem escrever;
• as áreas mais pobres do Brasil ainda são as zonas rurais, o cresci-
mento urbano desordenado implicou numa grande concentração de
famílias pobres vivendo em favelas de cidades como o Rio de Janeiro
e São Paulo; 80% dos brasileiros vivem hoje em áreas urbanas.
Apesar do Brasil possuir uma economia forte e seu PIB per-capita ser no
valor de US$ 3.640 (1995), o Brasil é um dos países mais desiguais e com o maior
número de pobres no mundo. A taxa média de desenvolvimento humano, no
critério do PNUD (dados de 1997), é de 0,739. No ranking do Índice de Desen-
volvimento Humano do PNUD, o Brasil ficou na 79ª posição.
A causa principal da pobreza, da miséria no Brasil é a distribuição absur-
damente desequilibrada de riqueza e de renda. Isto tem profundas raízes histó-
ricas. Se examinarmos, por exemplo, a questão da concentração de terra apre-
senta imensas disparidades. Três milhões de pequenos agricultores com menos
de 10 hectares por família representam 53% dos agricultores, mas todos eles
juntos possuem apenas 3% da terra. Na outra ponta, os 50 mil maiores donos de
terra representam somente 0,83% dos agricultores, mas detém 43,5% da terra.
Quando falamos de pobreza estamos falando de desigualdade e certamen-
te nos referindo à questão da exclusão social. O termo exclusão social surgiu
na década de 60, mas a partir da crise dos anos 80 passou a ser intensamente
utilizado, integrando discursos oficiais para designar as novas feições da po-
breza nos últimos anos. A expressão, por ser relativamente recente, está longe
de ser unívoca mas está sempre relacionada às concepções de cidadania e inte-
gração social. Normalmente é empregado para designar a forma de apropriação
dos frutos da riqueza de uma sociedade e do desenvolvimento econômico ou

159
Processos de exclusão social no Brasil

o processo de distanciamento do âmbito dos direitos, em especial dos direitos


humanos.
Enquanto a pobreza constitui eixo temático das discussões anglo-ameri-
canas, a exclusão social passou a centralizar as discussões no continente eu-
ropeu, particularmente na França. Há autores que entendem que a distinção
entre os dois conceitos está relacionada ao modo de se abordar a questão da
desigualdade. Segundo essa perspectiva, a noção de pobreza focaliza aspectos
distributivos, como indica uma de suas definições mais comuns “a falta de re-
cursos à disposição de um indivíduo ou de uma família”. A idéia de exclusão so-
cial, por sua vez, está centrada nos aspectos relacionais, isto é, “na participação
social inadequada, a ausência de protesto social, ausência de integração social e
ausência de poder”; como outros autores, por outro lado, passaram a perceber
também a pobreza como resultado de certo padrão de relações entre as pessoas
e não simplesmente uma acumulação insuficiente de produtos ou bens.
Hoje no Brasil falar da exclusão social tornou-se natural, para abordar
uma série de temas e problemas. O conceito mais conhecido e utilizado na Fran-
ça, recoloca algumas das questões abordadas no tema de underclass, sem os
pressupostos teóricos e as conseqüências deste último, de inspiração e uso esta-
dunidense. Autores como Sassen (1998)¸ Castells (1995, 1997) e Harvey (1998),
mais recentemente têm discutido a respeito das cidades globais ou duais, tendo
a classe como referência principal na medida em que reflete sobre o que falta,
por comparação com a classe operária, aos pobres que não têm emprego regular,
vivem em guetos, fazem parte de famílias desagregadas, estão submetidos à de-
pendência de drogas ilícitas e têm vizinhanças com altas taxas de criminalidade
e de baixíssima qualidade de vida.
A cada dia cresce o número de pessoas vivendo em condições precárias:
com pouco acesso à informação e aos serviços básicos de saúde, sobrevi-
vendo e comprimidas em barracos que chegam a abrigar mais de 5 (cinco)
pessoas em um único cômodo, construído em vielas sem saneamento básico,
por vezes, debaixo de perigosas redes de eletrificação pública, crianças sem
escola e abandonadas a mercê da violência das ruas e exploração do trabalho
precoce. Sondagens já realizadas em algumas dessas favelas, constatam altos
índices de abandono escolar e desemprego, desqualificação profissional de jo-
vens e adultos.

160
Edemir de Carvalho

Os fenômenos, pelo visto, não estão isolados, compartilham das causas e


conseqüências da mesma fonte geradora: uma cidadania, no mínimo, esquizo-
frênica, já que não consegue ser extensiva a todos cidadãos que, ora se mostra
democrática, ora discriminadora.
A questão implícita das afirmações acima colocadas, não diz respeito so-
mente ao papel do Estado frente às necessidades e de satisfação das crescentes
demandas sociais, mas aos espectros sociais mais amplos como a relação dos
limites da cidadania, nos estreitos cenários onde se realizam as práticas gover-
namentais e a concretização dos resultados de atendimento dessa população,
com a efetiva melhoria da qualidade de vida e da garantia de uma cidadania
ampla e digna.
Tomar a exclusão social como eixo articulador das diversas questões de-
correntes das desigualdades sociais é reconhecer a íntima imbricação das pre-
cárias condições de vida de amplos segmentos sociais. Já não é mais possível
compreender ou tentar discutir isoladamente qualquer problema social, princi-
palmente quando o que está em questão são os limites da cidadania e, conse-
qüentemente, os da qualidade de vida.
Por conseguinte, podemos adotar o conceito de qualidade de vida que mais
se aproxima da discussão, acima elaborada, ou seja, aquele já indicado em outro
texto, “... a qualidade e a democratização dos acessos às condições de preserva-
ção do homem, da natureza e do meio ambiente...”(Sposati, 1996, p. 71). Assim,
o desenvolvimento humano para que possa ser “...a possibilidade de todos os
cidadãos de uma sociedade, melhor desenvolverem seus potenciais com menor
grau possível de privação e sofrimento e da possibilidade da sociedade usufruir
coletivamente do mais alto grau da capacidade humana.” (Sposati, 1996, p. 89).
Isto só pode ser alcançado por qualquer sociedade, se tomarmos em considera-
ção a idéia de eqüidade, a partir do que nos sugere Sposati: “o reconhecimento e
a efetivação, com igualdade, dos direitos da população, sem restringir o acesso a
eles, nem estigmatizar as diferenças que conformam os diversos segmentos que
a compõem.” (1996, p.105).
Assim ao pensarmos em qualidade de vida, necessariamente, a inaceitável
eqüidade existente entre desigualdade e pobreza tem que ser levada em conside-
ração, em quaisquer medições da qualidade de vida da população no Brasil.
O conceito guarda proximidades teóricas importantes com as teorias
desenvolvidas na América Latina a respeito do mercado informal e da margi-

161
Processos de exclusão social no Brasil

nalidade, vinculando, sobretudo, o econômico ao social.. Uma das conseqü-


ências dessas contradições sociais e territoriais é a violência e a insegurança,
cuja existência ou explicação, na América Latina, não está subordinada apenas
e exclusivamente com a incapacidade das polícias em controlar os crimes, mas
devem ser associadas, também, pela ausência de políticas sociais urbanas mais
eficazes.

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163
Capitulo 11

Direitos Humanos e luta pela


igualdade

José Geraldo A. B. Poker

D e início, é preciso posicionar o leitor quanto às dificuldades inerentes a execução


da tarefa proposta neste artigo. A primeira dificuldade consiste na utilização da
referência Direitos Humanos, devido à carga de críticas e preconceitos de origens as
mais diversas que recobrem a temática.
Depois, a outra dificuldade consiste em não poder entrar diretamente
no assunto. Antes de partir para uma análise conjuntural no âmbito do tema
proposto, convém considerar um aspecto estrutural, sobre o qual tentar-se-á
sustentar o raciocínio da análise que se segue. Trata-se da estrutura valorativa
que sustenta o Estado Democrático de Direito, característico da sociedade oci-
dental moderna. Isto é importante porque assume-se o postulado de que uma
parte considerável dos desafios e problemas da atualidade são provocados por
demandas diretamente influenciadas pelos desdobramentos da modernidade.
Defende-se aqui que a preocupação com os fatos e fatores econômicos
da vida não ocupam mais a posição de centralidade inquestionável de tempos
atrás, concentrando-se em si o dispêndio de todas as energias individuais e so-
ciais para equacionamento ou solução. Muitos dos problemas e desafios atuais
não se vinculam diretamente à satisfação das necessidades materiais. Eles são,
em parte, de ordem valorativa, e isto significa que a forma de tratamento deles
deve considerar a complexidade do contexto conceitual dentro do qual emer-
gem. Mais ainda, como são de ordem valorativa e não exclusivamente materiais,
nada garante que as novas demandas possam ser plenamente atendidas, ou que
Direitos Humanos e luta pela igualdade

os problemas provenientes do desdobramento da modernidade possam ser re-


solvidos de uma vez para sempre.
Para tratar disso, é preciso mencionar alguns fatores de ordem estrutural,
sem os quais torna-se difícil compreender as lutas sociais atuais respeitando
a complexidade a elas inerente. A relação entre Direitos Humanos e luta pela
igualdade será apresentada em três partes. Na primeira, aborda-se as caracte-
rísticas da modernidade, que é o cenário que envolve os problemas atuais. Em
seguida, apresenta-se a forma pela qual Habermas identifica os desafios atuais.
Por fim, na terceira e última parte, enfoca-se a apropriação dos princípios cons-
titutivos dos Direitos Humanos pelos movimentos sociais.

1. Poder público e sociedade na modernidade

O primeiro ponto a ser mencionado é o de que as lutas e conflitos sociais


implicam a afirmação e o desdobramento das categoriais mentais e represen-
tativas que a literatura das Ciências Sociais e da Filosofia classificam como
próprias da modernidade. Rapidamente considerando, tal estrutura se funda-
menta nos conceitos de individualidade, racionalidade, liberdade e igualdade.
Na sociedade ocidental, a partir da modernidade, desenvolveu-se a noção de
individualidade, que implicou na maior de todas as distinções que se pode es-
tabelecer entre este modelo de sociedade e os outros existentes. Por individuali-
dade, deve ser entendida a maneira peculiar de interpretação existencial do ser
humano, na qual considera-se a dimensão da singularidade de todo ser, que se
torna por isso irredutível a qualquer outro, igual apenas a si mesmo. Nas teorias
do conhecimento modernas, sejam elas o racionalismo, o empirismo ou o cog-
nitivismo, enfatiza-se o indivíduo como ser que conhece, e que, portanto, todo
conhecimento é antes de tudo, individual. Da mesma forma, nas teorias políti-
cas modernas, sejam elas organicistas, realistas ou contratualistas, importou
definir o indivíduo como sujeito da história, e isso implicou na construção de
uma nova forma de explicação para a existência de fenômenos coletivos, como
o Estado, a Sociedade e o Direito. Tudo isto precisou ser re-explicado, toman-
do como ponto de partida a intencionalidade individual. Ao mesmo tempo, a
intencionalidade individual tornou-se o elemento de legitimação exclusivo em

166
José Geraldo A. B. Poker

qualquer situação de relacionamento, seja entre indivíduos, seja entre indivíduo


e coletividade, seja entre grupos de indivíduos numa sociedade.
Segundo este princípio, qualquer ação de um indivíduo em relação a outro
somente pode ser válido ou aceitável se ocorrer mediado pelo consentimento
das partes envolvidas. Assim se define a legitimidade da autoridade dos agentes
do poder publico, a legitimidade das leis, a atuação das instituições sociais e
políticas, a validade dos casamentos, das transações comerciais, etc.
Além de centros produtores de conhecimento, os indivíduos são reconhe-
cidos como centros de produção de interesses. Possuindo interesses próprios, os
indivíduos tornam-se rivais da coletividade, que igualmente possui interesses, e
se tornam diferentes, ou até contrários, dos interesses individuais.
Pela primeira vez na história humana tornou-se possível observar a exis-
tência de uma relação de fato entre indivíduo e coletividade, na forma de uma
relação entre dois seres distintos, que se insinuam como totalidades em si mes-
mos. Estava pronto, e empiricamente observável, o problema básico do conjunto
de conhecimentos que foi organizado com o nome de Sociologia, em meados do
século XIX, na França.
Dependendo da matriz ideológica, utilizada para compor modelos de So-
ciedades e Estados ideais, enfatiza-se mais um ou outro dos conceitos, e isto
varia conforme concepções de Estado e Sociedade ideais. Na doutrina liberal,
de inspiração lockeana, por exemplo, privilegia-se o exercício racional da li-
berdade individual, que se constitui no fundamento da aquisição de mérito, que
culmina na legitimação do direito à propriedade privada.
Ao contrário, na doutrina chamada social, de inspiração rousseauniana,
prioriza-se a dimensão da igualdade, que é vista como condição da liberdade.
Neste caso, argumenta-se que na ausência de uma situação de igualdade entre
indivíduos, também não haverá liberdade, porque os que têm menos se voltarão
contra os que têm mais. Por isso, torna-se tarefa do poder público encontrar
meios de promover políticas de distribuição de renda, afim de proporcionar as
condições para a existência de uma ordem social justa, em que todos os indi-
víduos da sociedade sejam efetivamente contemplados com a situação de igual-
dade de oportunidades.
No entanto, a despeito das preferências recaírem sobre um ou outro fator,
interessa ressaltar que individualidade, liberdade, racionalidade e igualdade
tornaram-se os ingredientes sobre os quais também se construiu o sistema de

167
Direitos Humanos e luta pela igualdade

Direito que regula e orienta todos os tipos de relacionamento inter-individuais,


inter-grupais e políticos na sociedade ocidental moderna. Este sistema de Di-
reito é composto por princípios, normas e instituições que se articulam e fun-
cionam de maneira a proporcionar e prescrever o exercício da cidadania. Nas
sociedades reguladas pelo Estado de Direito, e sobretudo pelo Estado de Direito
Democrático, cidadania é a expressão que designa um modo de convivência ide-
al, racionalmente proposto para proporcionar a plena realização das situações
de igualdade e de liberdade necessários ao desenvolvimento da individualidade
e de tudo que é a ela correlato.
Para proporcionar o exercício da cidadania tornou-se necessário construir
um complicado sistema jurídico, que se materializa sobretudo por meio das ins-
tituições do Estado, que visam garantir a distribuição dos direitos básicos para
que todos os integrantes da sociedade e habitantes do território do Estado pos-
sam viver e conviver como cidadãos, quer dizer, como sujeitos que se reconhe-
cem mutuamente na condição de indivíduos racionais, livres e iguais.
A despeito da forma que tenham, ou dos ideais sob os quais foram con-
cebidos, cada tipo real de Estado existente na sociedade ocidental moderna é
constituído como um poder público necessário à assegurar as condições para
que todos os integrantes se tornem cidadãos. A legitimidade de todos os mode-
los de Estado é buscada na combinação dos elementos soberania popular e di-
reitos fundamentais. Para os teóricos de orientação republicana, basta como
elemento de legitimação ser o poder público instituído pela vontade soberana
de um povo, constituído sob a forma homogênea da nação. No entanto, para os
liberais, é preciso vincular o poder público instituído a obrigação de respeitar
limites de atuação, que condicionam o exercício da soberania ao respeito à indi-
vidualidade dos cidadãos.
A composição dos direitos de cidadania e as formas de seu exercício va-
riam conforme a estrutura valorativa típica de cada sociedade e da configura-
ção do Estado, conforme a combinação de soberania e direitos fundamentais.
Assim, pode-se encontrar formas simples e formas complexas de cidadania. Há
sociedades nas quais o maior valor é o da segurança pública, e dessa forma in-
teressa estabelecer a condição de igualdade mediante a rigorosa obediência dos
indivíduos às leis. Em situações assim, a cidadania se resume ao cumprimento
do dever, e os direitos são oferecidos como recompensa.

168
José Geraldo A. B. Poker

As formas mais complexas de cidadania são elaboradas a partir da aplica-


ção da lógica aos princípios racionais do Direito que consubstanciam e definem
a individualidade, a racionalidade, a liberdade e a igualdade. A lógica aplica-
da às condições de realização de todos estes predicados leva à identificação de
contradições nas situações fáticas de convivência e no sistema normativo, cuja
superação exige o desenvolvimento da racionalidade do Direito, o que resulta na
efetivação de novas garantias institucionais aos cidadãos. De maneira geral, tais
garantias são sistemas de proteção que cercam os indivíduos nas relações inter-
individuais e inter-grupais e que avançam sobretudo para o campo das relações
do indivíduo com a coletividade.
Em toda sua extensão, a proteção em que consiste a cidadania implica na
construção de um espaço imaginário no qual apenas o indivíduo exerce o poder
de sua vontade sobre si mesmo. Por isso, esse espaço deve ser resguardado pelo
poder público para que não seja molestado por outros indivíduos, por grupos
ou mesmo pelo próprio poder público. Nos Estados Democráticos de Direito,
chama-se tais molestações de violência, quer dizer, a situação na qual um indi-
víduo é constrangido por diversos meios a agir de uma forma não determinada
pela sua livre vontade; ou ainda a situação em que alguém é forçado a uma atitu-
de sob a ameaça do risco de morte. Por isto mesmo é que se torna imprescindível
estabelecer os limites da extensão do poder do Estado em relação aos cidadãos,
e dos cidadãos entre si.
Mas há situações de violência que não são provocadas pela força física,
propriamente. Há situações de constrangimento provocadas pela discrimina-
ção. Chama-se assim a todas as formas não físicas de impedimento de alguém
ao exercício de um direito, o que ocorre quase sempre nas situações de convi-
vência devido à influência de fatores de ordem tradicional ou irracional nos
relacionamentos, como diria Max Weber.
Embora pareça uma fórmula simples, a de que o desenvolvimento da ci-
dadania está vinculado ao desenvolvimento do Direito, e isto se consegue me-
diante a aplicação da lógica racional às normas e às relações sociais, tal processo
somente pode ser desencadeado mediante a adoção de um princípio valorativo,
que tenha a potencialidade de obrigar a construção de vinculações não contra-
ditórias entre os termos de um raciocínio jurídico.
Nos Estados Democráticos de Direito, o princípio empregado na avaliação
das relações sociais e identificação das contradições nelas contido é aquele cha-

169
Direitos Humanos e luta pela igualdade

mado de princípio da dignidade, cuja definição é buscada na filosofia humanis-


ta de I. Kant (2005).
Segundo Kant, no reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade, e
quando algo não tem equivalente em outra coisa, esta coisa possui dignidade,
quer dizer, não pode ser convertida ou trocada por qualquer outra. Assim, o
ser racional não encontra equivalente em nenhum outro ser ou coisa, e deve,
portanto, ser considerado como um fim em si mesmo. Ou ainda, conforme a
fórmula proposta por Kant, na qual deve-se agir tratando a humanidade em si e
no outro sempre como fim e nunca como meio.
Ainda recorrendo à teoria kantiana, é preciso salientar que a realização da
dignidade requer uma condição de relacionamento em que indivíduos conside-
rem-se a si mesmos e sejam considerados pela coletividade como seres detento-
res de uma vontade autônoma. Isso significa que para ter dignidade, todo indi-
víduo precisa ser reconhecido como sujeito apto à liberdade, porque consegue
estatuir regras para si mesmo e agir segundo elas.
Em qualquer ordenamento jurídico inspirado nos pressupostos mencio-
nados existem princípios e leis destinados a garantir e proteger os direitos vin-
culados a este tipo de cidadania. No entanto, a estrutura normativa apenas não
basta para que os direitos sejam efetivados. Para isto, orientado pela finalidade
programática da leis, o poder público cria instituições, com a incumbência de
proporcionar as formas adequadas para que todos os cidadãos tenham o devido
acesso às formas de usufruir dos direitos e exercer a cidadania.

2. Estado e Sociedade no mundo globalizado

Dentre as principais teorias produzidas com a finalidade de compreender os


problemas da atualidade, encontra-se aquela desenvolvida por Habermas. Em sua
análise, ele elege como problemas centrais os que se referem à ação desintegradora
da globalização, que em princípio destrói as formas tradicionais de solidariedade
e dissolve as formas consensuais agrupadas sob o sentimento de nação, neces-
sárias à construção da identidade cultural sobre a qual se constitui o sentido de
interesse público.
Segundo Habermas (2001), a globalização uniformiza pessoas do mundo
todo em torno da produção e consumo de mercadorias materiais e simbólicas,

170
José Geraldo A. B. Poker

criando a possibilidade de uma universalização cultural nunca antes existente.


E ao mesmo tempo em que uniformiza culturalmente, a globalização também
individualiza, à medida que sobrepõe a condição de consumidor a todas as
outras formas de status de regulação de relações sociais em qualquer matriz
cultural.
Por outro lado, na descrição de Habermas (2001, p. 100) a globalização tam-
bém produz os fatores de enfraquecimento do Estado, à medida que as decisões
de agentes econômicos transnacionais praticamente desconhecem as limitações
estatais como parâmetros de regulação. O modelo de Estado Social construído na
modernidade está seriamente abalado pelas forças do mercado global, que atuam
seguindo uma lógica contrária ao direito constitutivo do poder público, apontando
sempre para a concentração e nunca no sentido da distribuição eqüitativa dos re-
cursos e oportunidades necessária à manutenção de uma sociedade democrática.
A lógica inerente às decisões econômicas tomadas em âmbito global es-
tabelece um padrão de concorrência que obriga todas as empresas a ajustes
organizacionais constantes, cujas conseqüências imediatas são o aumento da
produtividade com a diminuição dos postos de trabalho e demanda crescen-
te por vantagens decorrentes da desoneração fiscal nos territórios em que se
localizam. Disso, Habermas conclui não ser “mais possível o ‘keynesianismo’
em um país” (2001, p. 100). A agenda da globalização determina ao Estado a
mudança de foco no planejamento e execução de políticas públicas.
A crise fiscal do Estado Social resultante da globalização se desdobra na
crise de legitimidade e incapacidade de atender às demandas sociais produzidas
pelas mudanças estruturais do capitalismo, em que o desenvolvimento econô-
mico ocorre produzindo desemprego. A constante busca por melhores opor-
tunidades de trabalho e vida provoca o deslocamento de pessoas entre países,
acompanhando o fluxo de investimentos do capitalismo transnacional.
Notadamente, o resultado do processo migratório acentuado é o apare-
cimento de aglomerados humanos configurados como coleção desconexa de
matrizes e identidades culturais as mais diversas, e que precisam ser acertados
de alguma forma para que tais aglomerados possam tomar a forma de socie-
dade, quer dizer, de um sistema de relações sociais em que sejam possíveis a
cooperação e as trocas. Por causa disto, acrescenta-se à crise do Estado Social
o conjunto de demandas e as cobranças por políticas de inclusão ou reconhe-
cimento decorrentes do surgimento das sociedades multiculturais. Quer dizer,

171
Direitos Humanos e luta pela igualdade

coletividades constituídas por diferentes formas culturais entrecortadas e par-


ticulares de vinculação, que geram múltiplas formas de subjetividade, cada uma
delas reivindicando legitimidade para si em relação às outras.
O resultado do enfraquecimento do Estado, da homogeneização das for-
mas de produção e consumo e da diferenciação decorrente do processo migra-
tório, segundo o raciocínio de Habermas, é uma enorme crise de legitimidade
que atinge frontalmente o Direito, cujas bases lógica, formal e normativa não
correspondem à complexidade dos novos conflitos sociais e inter-individuais,
nem se prestam a fornecer a estrutura simbólica sobre as quais sejam formula-
das novas demandas políticas.
A despeito do cenário montado ser catastrófico e geral, porque todos os
participantes das Nações Unidas são Estados e são atingidos da mesma forma
pelos efeitos da globalização e do capitalismo transnacional, Habermas perma-
nece otimista quanto à possibilidade da busca de solução para todos os pro-
blemas apontados. Segundo ele, de início as soluções podem ser buscadas na
afirmação do princípio básico de legitimação do Estado Moderno, qual seja a
conjugação entre soberania popular e direitos humanos. Isto significa que
o Direito pode ser reconstruído mediante o processo de autolegislação, como
defendeu Rousseau, mas isso deve ser feito tendo como parâmetro os direitos
fundamentais contidos na Declaração dos Direitos Humanos, o que garantiria
os elementos de justiça e de universalidade à regulamentação de situações de
convivência na extrema diversidade cultural/subjetiva, na forma como ocorrem
atualmente.
Para tanto, dois conjuntos de medidas são necessárias, um de ordem ex-
terna e outro de ordem interna nos Estados. No aspecto externo, recorrendo à
fórmula de Kant, Habermas considera que, como os problemas provocados pela
globalização e pelo capitalismo são planetários, o enfrentamento deles exige a
construção de instituições políticas internacionais democráticas que permitam
uma governança supra-nacional, alicerçada conceitualmente sobre uma re-
publica mundial, cujas decisões reconheçam a condição de cidadania cosmo-
polita de todos as pessoas, por buscarem legitimação nos Direitos Humanos. E
para atingir este objetivo, novas instituições supra-nacionais devem ser criadas.
O modelo da Organização das Nações Unidas não serve, por não se constituir
num espaço de debate e de deliberação verdadeiramente democrático, avalia
Habermas.

172
José Geraldo A. B. Poker

No aspecto interno, quer dizer, dentro dos Estados, retomando as teses da


teoria da ação comunicativa, Habermas sugere a criação de formas de exercí-
cio de cidadania deliberativa na esfera pública. Ou seja, devem ser estabelecidos
lugares em que pessoas das mais diferentes vinculações culturais possam se en-
contrar para debater democraticamente acerca de um único problema:“cidadãos
livres e iguais devem se conceder quais direitos fundamentais, se quiserem re-
gulamentar a sua vida em comum por meio do direito positivo?”.(Habermas,
2001, p. 147).
Para Habermas, em âmbitos assim constituídos, os discursos podem con-
duzir à formulação de um sistema de direitos e de uma vontade política racio-
nal vinculados à uma concepção de solidariedade cívica ou de patriotismo
constitucional, que são necessários à elaboração de complexas soluções para os
complicados conflitos decorrentes da convivência num contexto de diversidade
multicultural.
Ao mesmo tempo em que os discursos proferidos em espaços destinados à
ação comunicativa se constituem no exercício efetivo da soberania popular, eles
também produzem concepções intersubjetivas de direitos fundamentais sobre
as quais torna-se possível reconstruir a legitimidade dos Direitos Humanos na
condição de serem afirmados como direitos fundamentais universais, superan-
do a conotação de direitos ocidentais que pesa sobre eles.
Tendo em conta a diversidade como característica a ser mantida nas novas
sociedades, sem que ocorra a reconstrução da pretensão de validade universal
dos Direitos Humanos, muito dificilmente os diferentes modos de vida pode-
riam ser afirmados e reconhecidos como legítimos no interior de uma mesma
coletividade. Na ausência de uma referência que permita substituir as formas de
solidariedade de base étnicas pela solidariedade cívica, não há como produzir as
categorias conceituais exigidas para fundamentar a atitude de reconhecimen-
to diante das diversas formas de vida possíveis numa situação de convivência
multicultual. Isto porque a solidariedade sustentada em fatores étnicos incide
sobre a homogeneização de padrões estéticos e conceituais, criando identidades
pessoais que se reconhecem reciprocamente apenas na condição de serem per-
tencentes a um mesmo conjunto de referências.
Em se tratando de sociedades multiculturais, as exigências de reconheci-
mento devem considerar a presença de referências culturais alternativas que se
posicionam umas em relação às outras pretendendo a mesma legitimidade. A

173
Direitos Humanos e luta pela igualdade

condição de igualdade pretendida nas democracias atuais depende da valida-


ção de inúmeras formas de diferenciação pessoal, evitando ao mesmo tempo
que delas decorram discriminações ou quaisquer outros mecanismos sociais
de inferiorização.
Por isso mesmo que as sociedades que se desenvolvem juntamente com
os novos modelos de Estado não podem mais pretender-se como derivadas do
sentimento de nação, da crença na existência de uma base cultural homogenei-
zadora que vincula todos os integrantes e da qual são obtidos os regulamentos
norteadores de todas as atitudes e condutas. São os Estados pós-nacionais.
A inexistência de um sentimento de nação se torna um problema para os
Estados porque afeta diretamente a legitimação da ordem política. Como de-
monstra Habermas (2001, p. 143), a legitimação dos Estados nacionais se baseia
na legalidade sustentada no pressuposto de atender a uma vontade unificada
pelos mesmos objetivos e ratificada pela soberania popular. Mas a ausência do
sentimento de nação se torna problema também do ponto de vista do exercício
convencional da soberania popular, que encontra obstáculos para se compor
como tal devido à dificuldade de se chegar a um consenso, dada a quantidade
de referências culturais e suas discrepâncias presentes no interior da sociedade.
Isso dificulta a composição da esfera pública e a busca de soluções para os pro-
blemas e conflitos por intermédio da política.
Embora tudo pareça conspirar contra a manutenção das conquistas his-
tóricas ocidentais, efetivadas pelo Estado de Direito e Social, Habermas apre-
senta uma saída teórica. Isto começa com a associação do exercício da sobe-
rania popular, por meio da ação comunicativa em ambientes democráticos, ao
desenvolvimento dos meios adequados à construção de uma sociedade possa se
constituir para além das vinculações decorrentes de mecanismos identitários
derivados do sentimento de comunidade próprio do conceito de nação. A ação
comunicativa tem a potencialidade de produzir uma cultura política, por meio
da qual as pessoas se vinculem umas às outras, consigam conviver e ter o do-
mínio dos rumos da coletividade sem precisarem compartilhar de tradições e
memória comuns.
Para que isto aconteça, isto é, para que a cultura política criada pela
ação comunicativa substitua o sentimento de nação, é preciso ampliar os es-
paços democráticos no interior da sociedade. Na concepção de Habermas, a
democracia é a configuração do ambiente ideal à ação comunicativa, porque

174
José Geraldo A. B. Poker

proporciona a possibilidade de que a comunicação ocorra livre de coações de


quaisquer naturezas.
De outro modo, superar a legitimidade dependente apenas da nacionali-
dade implica liberar a sociedade de amarras que impedem a expansão do con-
ceito de igualdade. Quando isso ocorre, o resultado obtido é o do nascimento
de sociedades mais democráticas, quer dizer, mais aptas ao reconhecimento
recíproco de variações nas formas do ser social dos integrantes, uns em relação
aos outros. É isto propriamente que Habermas nomeia como sociedade inclu-
siva, um tipo específico de sociedade que busca a construção da legitimidade
necessária às práticas normativas da convivência apenas nas qualidades proce-
durais do processo democrático. As vantagens de uma sociedade assim consti-
tuída são várias. Primeiro, pode-se citar a característica de abertura provocada
pela extensão da igualdade que resulta no grau de reconhecimento exigido pela
convivência entre atores sociais marcados por diversidades culturais. A mul-
ticulturalidade deixa de ser um problema, porque na sociedade abre-se consi-
deravelmente a possibilidade de escolhas válidas que indivíduos possam fazer
sobre si mesmos e sobre a coletividade. Depois, há que se pensar que a ausência
de fatores de homogeneidade cultural podem ser totalmente substituídos pela
condição de racionalidade que designa a igualdade contida nas qualidades pro-
cedurais do processo democrático, que nomeia os participantes como compa-
nheiros de direitos, ao invés de companheiros de destino.
Por fim, se for assegurada a manutenção do processo democrático incre-
mentado pela ação comunicativa, realizada sob o entorno da moldura dos Direi-
tos Humanos, os fatores desintegradores da globalização e da multiculturalida-
de podem ser revertidos positivamente.
A expansão do conceito de igualdade requerida pelo reconhecimento das
diversidades existentes no interior de sociedades multiculturais e possibilitada
pela lógica contida nos Direitos Humanos, proporciona não apenas a liberação da
coletividade em relação às muitas prisões advindas da identidade sustentada nos
elementos tradicionais compartilhados em situações de homogeneidade cultural.
Implica isto no desenvolvimento de formas de convivência, estratégias de relacio-
namento e práticas de deliberação que somente são possíveis pelo desenvolvimen-
to da racionalidade.
A racionalidade que libera a sociedade e que proporciona a abertura para
experiências multiculturais de existências pessoais não se restringe à fórmula we-

175
Direitos Humanos e luta pela igualdade

beriana. Na teoria de Weber, Habermas (1997b, p. 197 - 198) identifica três tipos
de racionalidade: a racionalidade instrumental (técnica, adequação fins e meios),
a racionalidade valorativa (escolha dos fins) e a racionalidade científica.
Apreciando a teoria weberiana, Habermas salienta que a racionalidade do
Direito tornou-se fundamental para a construção das instituições típicas da so-
ciedade ocidental. O Direito possibilitou à civilização ocidental desenvolver saídas
para as limitações lógicas-organizacionais presentes nas formas tradicionais de
dominação ao conseguir afirmar a legalidade como fundamento de legitimidade.
Esse artifício tornou possível a edificação de instituições sociais e políticas que fun-
cionam mediante a burocracia, quer dizer, o conjunto formado por um quadro de fun-
cionários que cumprem determinadas tarefas seguindo regras que lhes são impostas. A
burocracia garante a igualdade à medida que permite a distribuição impessoal do Direito,
e esta é a marca própria das instituições da sociedade ocidental, incluindo o Estado, que
para Weber também é uma instituição.
No entanto, apesar de a definição de Weber abranger aspectos importantes,
como a extensão da razão do campo do conhecimento para a aplicação, decorren-
do disto a organização de regulamentos e instituições, a definição não é suficiente
para deslocar a centralidade da razão, que continua sendo um predicado exclusivo
do sujeito, que pode fazer suas escolhas orientado pela racionalidade, pela afetivi-
dade ou pelas tradições.
Não é essa a racionalidade observada por Habermas como componente intrín-
seco da ação comunicativa. A racionalidade centrada no sujeito não seria suficiente
para possibilitar a busca de soluções adequadas aos problemas decorrentes da glo-
balização num contexto de multiculturalidade. Para tanto, não basta a oferta do Di-
reito na forma institucional da impessoalidade, e emanado das instâncias do Estado.
Trata-se de algo para além disso: da possibilidade de produção de novos tipos de
Direito, provenientes dos espaços democráticos instituídos dentro da sociedade para
esse fim, adequados à convivência na diversidade e que sejam correspondentes às
delimitações propostas pelos Direitos Humanos, para não permitir inferioridades.

3. Direitos Humanos e movimentos sociais

Em 1984, foi publicado no Brasil um artigo que causou polêmica no âmbi-


to das Ciências Sociais. Trata-se de Identidade, a face oculta dos novos mo-

176
José Geraldo A. B. Poker

vimentos sociais, de Tilman Evers (1984). A polêmica incidiu sobre dois pontos
fundamentais: a utilização da nomenclatura novos movimentos sociais, e a
proposição de uma forma alternativa de tratamento para um velho objeto: a
possibilidade de observar os movimentos sociais, sobretudo os chamados no-
vos, como resultantes da tentativa de afirmação de identidades, quer dizer, de
valores e representações compartilhado por determinado grupo de pessoas, que
faz deste ethos um forte elemento de mobilização e definição de projetos de luta
política.
As consequências da proposição logo apareceram. De imediato, abriu-se
um caminho para que os movimentos sociais pudessem ser compreendidos
como algo mais complexo, algo mais do que atores sociais reunidos por reivin-
dicações vinculadas exclusivamente aos interesses econômicos. Mais ainda, a
mudança de enfoque permitiu melhor entender a racionalidade contida nos mo-
vimentos sociais. Para além da instrumentalidade dos interesses econômicos,
pode-se perceber orientações puramente valorativas nas demandas, algumas
delas derivadas de componentes irracionais, provenientes da religião ou outras
motivações de ordem tradicional. Constatou-se que fatores valorativos podem
ser transformados em elementos de mobilização e levados a se constituir sob
a forma da racionalidade necessária a substanciar estratégias de luta política.
Dentro desse enfoque, a luta pela terra organizada pelo Movimento dos Traba-
lhadores Rurais Sem Terra (MST) é um bom exemplo.
É precisamente isto que alguns pesquisadores estão identificando nos mo-
vimentos sociais atuais. Lutas sindicais, movimentos pela igualdade entre gê-
neros, movimentos étnico-raciais, movimentos ambientalistas, todos eles tra-
zem consigo a dualidade de serem a um só tempo movimentos que pretendem
conquistas econômicas e valorativas, cuja racionalidade incorpora não apenas a
legitimação pela formulação de ideologias, mas avança pelo terreno do Direito,
sobretudo pelo campo dos Direitos Humanos.
Nesta perspectiva, a legitimidade para as pretensões em grande parte ad-
vém de institutos jurídicos e princípios normativos constitucionais típicos das
sociedades ocidentais, tais como a igualdade e a dignidade. Na conjuntura
atual, movimentos sociais se formam quando sujeitos identificam a ocorrência
de uma injustiça que os envolve direta ou indiretamente. A justificativa de ser
vitima de injustiça tornou-se imprescindível ao Movimentos Sociais, tanto que
os interesses puramente econômicos têm de ser expressos mediante este signo.

177
Direitos Humanos e luta pela igualdade

Tomando os institutos e princípios do Direito ocidental como instrumento


de interpretação das relações sociais do cotidiano, pessoas comuns podem vir a
ser sujeitos de movimentos sociais à medida que conseguem se indignar diante
dos tratamentos recebidos de outras pessoas ou de agentes públicos, desde que
observam não serem tratados dentro das condições da igualdade, ou de não rece-
berem do Estado os benefícios suficientes para alcançar a situação de dignidade.
No primeiro caso, quando se busca a efetivação da condição de igualdade
prevista como direito fundamental, as demandas tomam a forma de lutas por
reconhecimento. É por meio desta nomenclatura que alguns cientistas sociais
e filósofos vêm se dedicando à análise dos movimentos sociais atuais. Além de
Habermas, citado anteriormente, dentre os pesquisadores mais conhecidos des-
sa problemática podem ser mencionados Nancy Fraser (2001), Axel Honneth e
Charles Taylor (2000).
Na segunda possibilidade, quando as reivindicações giram em torno de
interesses econômicos, formuladas que são pela utilização da linguagem e do
raciocínio dos direitos fundamentais, elas tomam a forma de lutas pela redistri-
buição mais equitativa dos benefícios derivados da riqueza social.
Muito embora este tema seja tratado por Honneth e Taylor, pela con-
tingência de espaço, ecolheu-se aqui sintetizar a análise de Nancy Fraser. No
artigo Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era
pós socialista (2001), Fraser argumenta que as demandas por reconhecimento
são algo recente na sociedade, e de maneira parecida com a análise de Giddens
(1997), salienta que tais demandas, por suas características, são compostas por
causa do processo de evolução da sociedade capitalista, desdobrado na era pós-
socialista. As características deste contexto são o capitalismo transnacional, a
globalização e a sociedade multicultural.
Em sua análise, Fraser insiste num aspecto que acredita ser o mais im-
portante no estudo das demandas recentes: a dissociação entre as dimensões
econômica (redistribuição) e cultural (reconhecimento) dos conflitos sociais.
Nesse sentido, as demandas tendem a enfocar mais um aspecto do que outro,
o que implica no desafio a ser superado pelos movimentos sociais atuais, que
é o de conseguir formular reivindicações por meio da combinação da luta pelo
reconhecimento cultural e igualdade social. Para Fraser, esta deve ser a forma
correta das demandas, porque os conflitos culturais são ao mesmo tempo con-
flitos econômicos.

178
José Geraldo A. B. Poker

Os exemplos da indissociabilidade dos fatores culturais e econômicos são


as lutas pela igualdade étnica e de gênero. A inferioridade das mulheres diante
dos homens tem causas culturais e se mantém no âmbito econômico. A mesma
situação é vivida pela população não-branca: o preconceito produz discrimina-
ção, que afeta a premiação do desempenho na ordem econômica.
Neste ponto, vale retomar a análise de Habermas, reproduzida no item an-
terior. A complexidade das novas demandas se refere à complexidade da organi-
zação multicultural da sociedade, combinada com o enfraquecimento do Estado
no tocante ao cumprimento das antigas atribuições, da garantia ao exercício da
individualidade, da racionalidade, da liberdade e da igualdade.
Por isso, as demandas dirigem-se a um só tempo para a exigência da
igualdade e a afirmação das diferenças. Pretende-se a igualdade quando a desi-
gualdade gera inferiorizações que dificultam a atuação do indivíduo como ser
livre e racional diante de outro. Pretende-se a diferença quando a igualdade,
empregada na forma da universalidade, provoca a homegenização e não permite
a convivência das diferenças culturais existentes na sociedade.
A novas demandas resultantes dos conflitos avançam sobre o Direito, à me-
dida que as exigências de reconhecimento e redistribuição forçam a expansão de
dois princípios jurídicos de distribuição de benefícios que não são corresponden-
tes: o mérito, utilizado peara a premiação do desempenho, e a fragilidade, empre-
gada para identificar os destinatários de benefícios adicionais dentro da rede de
proteção criada pelas políticas públicas emanadas do Estado. No caso do Brasil,
isto se pode verificar empiricamente por meio da chamada questão das cotas, que
não se resume à reserva de vagas para negros nas universidades públicas.
Também avançam sobre os princípios de distribuição do Direito a nova
forma de luta dos movimentos ambientalistas. Em oposição à racionalidade ins-
trumental utilizada pela empresa capitalista, que gera desastres ambientais, a
nova forma da demanda para proteção insiste na inclusão da natureza e de todos
os seres vivos como integrantes do contrato social, quer dizer como merecedo-
res dos mesmos direitos concedidos apenas aos seres humanos.
A justificação para tal pretensão incide na expansão dos princípios da digni-
dade e da fragilidade. No primeiro aspecto, argumenta-se que a consecução da dig-
nidade humana depende da integridade do ambiente natural, ou que a sobrevivência
da espécie humana está condicionada ao reconhecimento da dignidade de tudo que
é natureza. No segundo, trata-se de defender a concessão de benefícios que não estão

179
Direitos Humanos e luta pela igualdade

vinculados à prestação de obrigações, da mesma forma como ocorre com os direitos


dirigidos à crianças, idosos, deficientes, entre outros. Neste caso, tem-se uma situação
de universalidade radical que compreende também todas as diferenças: todos os se-
res vivos seriam titulares de direitos, sem que para isso precisassem ser devedores de
obrigações. O mesmo raciocínio pode ser utilizado para combater os efeitos perversos
da lógica instrumental típica da economia, que apenas protege aquilo que é útil, quer
dizer, aquilo que pode gerar riqueza material/monetária.
E a pretexto de oferecer elementos para análise de uma conjuntura, os ar-
gumentos elencados nesta exposição seguramente apontam para uma tendência
inequívoca, que é esta: a despeito da complexidade dos problemas e dos desafios
a serem enfrentados por aquilo que se pode chamar de sociedade contemporâ-
nea, mais do que nunca a solução de todos eles encontra-se na dependência do
desdobramento dos postulados da modernidade, da possibilidade do desenvol-
vimento social conseguido mediante a aposta no Direito Racional e na Demo-
cracia, velhos conhecidos da civilização ocidental.

Referências

EVERS, T. Identidade: a face oculta dos novos movimentos sociais. Novos Estudos CEBRAP, vol.
2 - 4. São Paulo : Abril, 1984.

FRASER, N. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós socialista. In: SOUZA,
J. (org.) Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília : UnB,
2001.

GIDDENS, A., BECK, U. e LASH, S. A modernização reflexiva. São Paulo : UNESP, 1997.

HABERMAS, J. A constelação pós-nacional. São Paulo : Littera Mundi, 2001.

_______. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1989.

_______ O discurso filosófico da modernidade. Lisboa : Dom Quixote, 1990.

HONNETH, A. Luta por reconhecimento. São Paulo : Editora 34, 2003.

KANT, I. A metafísica dos costumes. Lisboa : Calouste Goulbenkian, 2005.

TAYLOR, C. Argumentos filosóficos. São Paulo : Loyola, 2000.

WEBER, M. Economia y Sociedad. México : Fondo de Cultura Econômica, 1997.

180
Capitulo 12

Evolução recente da ocupação


agrícola no brasil

José Marangoni Camargo

Introdução

Este trabalho tem como objetivo principal analisar a ocupação agrícola no


Brasil a partir da década de 90, tendo como cenário as transformações estruturais
que afetaram a agricultura e a economia brasileira em geral. Como já demonstra-
ram diversos estudos (Sorj, 1980; Graziano da Silva, 1981; Muller, 1981 e
Delgado, 1985), a agricultura brasileira desde os anos 60 tem sofrido profundas
transformações técnico-produtivas, cuja tônica é a elevação significativa da uti-
lização de insumos modernos, o atrelamento mais forte com a indústria proces-
sadora e também as alterações nas relações sociais de produção, acentuando o
caráter capitalista da produção. Estas mudanças acarretaram entre outros efeitos,
uma redução do volume da ocupação na agropecuária, reforçando a tendência his-
tórica de queda de participação do setor no emprego total.
Este comportamento vem confirmar um padrão de transformação es-
trutural esperado, em que historicamente a agropecuária tende a perder par-
ticipação no total das ocupações, assim como na produção e na renda geradas
relativamente aos demais setores de atividade econômica. Portanto, a priori não
se espera que o setor agropecuário gere uma quantidade de novos postos sufi-
ciente para compensar eventuais reduções nos demais setores, particularmente
na indústria, que no período mais recente, começa também a sofrer uma perda
Evolução recente da ocupação agrícola no brasil

relativa tanto no emprego como no PIB, resultantes de um processo de desin-


dustrialização precoce (Freitas e Barbosa, 2005).
Historicamente, sempre tivemos um excedente estrutural de mão-de-
obra, resultante de uma combinação de fatores, como a existência de uma es-
trutura agrária centrada na grande propriedade, com elevada concentração da
terra, reforçado pelo processo conservador da modernização da agricultura,
com repercussões negativas sobre a ocupação agrícola. A permanência de uma
estrutura fundiária extremamente concentrada associada à adoção de técnicas
mais modernas de produção no campo, que tendem a substituir trabalhadores
por meios de produção, estão entre as causas mais
importantes do explosivo processo de êxodo rural verificado no Brasil, so-
bretudo a partir dos anos 50. Apenas entre 1950 e 1980, mais de 40 milhões de
pessoas migraram do campo para as cidades, o que configura um dos processos
de urbanização mais rápidos e intensos verificados em todo o mundo.
Nos centros urbanos, em que pese a acelerada industrialização do país entre
1930 e 1980, o setor industrial não foi capaz de gerar postos de trabalho suficientes
para absorver este excedente estrutural de mão-de-obra. O padrão de industriali-
zação tardia que caracteriza o desenvolvimento do setor pós-30, mais intensivo em
capital, trouxe resultados ocupacionais mais modestos relativamente aos países de
industrialização mais madura. Enquanto na Alemanha e na Inglaterra quase 40%
dos empregos existentes chegaram a ser de responsabilidade do setor industrial,
no Brasil a indústria de transformação respondia por 20% do total da ocupação
no auge da expansão do emprego industrial em fins dos anos 70. Daí a ainda forte
presença do campo no total das ocupações e uma participação cada vez maior do
setor de serviços na ocupação total. O intenso êxodo rural e a insuficiência de pos-
tos de trabalho criados pelo setor industrial fazem com que o setor terciário repre-
sente um escoadouro para a força de trabalho que não acha mais espaço nos outros
dois setores. Isso faz com que haja uma hipertrofia deste setor, caracterizado pela
proliferação de ocupações precárias e descontínuas, grande parte informais, so-
bretudo nas atividades comerciais (Pochmann, 2001; Cano, 1996).
Ainda assim, as elevadas taxas de expansão econômica verificadas no pe-
ríodo entre1930 e 1980 possibilitaram uma progressiva conformação de uma so-
ciedade salarial, isto é, apoiada na ampla difusão do emprego assalariado. Como
afirma Pochmann (2001), entre os anos 40 e 70, quando o PIB registrou um cres-
cimento médio de 7% ao ano, de cada 10 novos postos de trabalho, 8 eram assa-

182
José Marangoni Camargo

lariados, sendo 7 com vínculos formais de emprego. Enquanto a População Eco-


nomicamente Ativa se expandia a um ritmo de 2,56% ao ano e a ocupação crescia
2,65% ao ano neste período, o emprego assalariado aumentou 6,2% ao ano entre
1940 e 1980, especialmente as ocupações assalariadas formais. No entanto, ape-
sar da crescente importância do trabalho assalariado no conjunto das ocupações,
a participação deste, mesmo nos anos 80 quando alcançou os maiores valores
relativos, ficou bastante aquém do observado nos países centrais. Ademais, não
obstante ter ocorrido uma ampliação do assalariamento e da formalização das
relações de trabalho, com um núcleo de trabalhadores com vínculos mais estáveis
e direitos trabalhistas, reproduziam-se formas precárias de inserção no mercado
de trabalho, representadas pelos trabalhadores por conta própria e assalariados
sem carteira, com ocupações descontínuas e instáveis.
Esse processo, por sua vez, é acompanhado por uma ampliação das desigual-
dades sociais e de renda, resultantes do não enfrentamento dos problemas estruturais,
como a concentração fundiária e a reprodução de uma força de trabalho com baixos ní-
veis de remuneração, reforçado por um cenário onde as condições políticas foram des-
favoráveis, particularmente entre os anos 60 e 80 (Baltar et al., 1996). Ademais, as
políticas sociais, além de se desenvolverem tardiamente, se caracterizaram pelas suas
formas poucas cidadãs e universais, contribuindo para o aumento da desigualdade no
acesso à educação, saúde, previdência e assistência social. Assim, em vez de atenuar as
desigualdades existentes, as políticas sociais implementadas ao longo do período de in-
dustrialização do país, acabaram reforçando ainda mais os processos de concentração
de renda e de desigualdade social (MATTOSO, 1999).
Este quadro de profundas diferenças sociais se agravou com a crise do pa-
drão de desenvolvimento pós-30, com ampliação da pobreza, redução dos níveis
de renda e aumento da precarização das condições de trabalho, a partir da década
de 80 e que se acentuaram desde o início dos anos 90. A economia brasileira apre-
sentou uma expansão de apenas 2,2% ao ano na década de 80 (a chamada década
perdida) e 2,3% a.a. entre 1990 e 2003, muito inferiores às taxas verificadas entre
1930 e 1980 (Freitas e Barbosa, 2005). Esse rebaixamento da capacidade de
crescimento da economia vai impactar negativamente sobre o mercado de traba-
lho, gerando uma expansão mais lenta do trabalho assalariado e uma deterioração
das relações de trabalho. Segundo Pochmann (2001), durante a década de 90, a
cada 10 empregos criados, apenas 2 eram assalariados, mas sem registro formal.
Ou seja, configura-se no período recente uma tendência de desestruturação do

183
Evolução recente da ocupação agrícola no brasil

mercado de trabalho, com perda da importância do trabalho assalariado e um au-


mento das ocupações por conta própria e assalariadas sem registro, com amplia-
ção da precarização das condições e relações de trabalho. Proliferam-se ocupações
não-assalariadas, com baixos níveis de produtividade e de rendimentos, que na
realidade representam mais estratégias de sobrevivência e de subemprego ou de-
semprego disfarçado. Além da piora da qualidade dos postos de trabalho gerados,
o baixo crescimento econômico resultou em um aumento do desemprego aberto,
onde as taxas de desocupação quase dobraram no período (Pochmann, 2001).

Evolução recente do setor agropecuário no Brasil

É nesse contexto mais geral que é possível entender as transformações que


afetaram especificamente a ocupação agrícola no Brasil nas últimas décadas.
Com a industrialização da agricultura, esta deixou de ser um setor produtivo
relativamente autárquico e autônomo em relação aos demais setores, estreitan-
do os seus vínculos com os segmentos que lhe fornecem máquinas e insumos
modernos, empresas prestadoras de serviços e com as agroindústrias beneficia-
doras ou os mercados externos (Graziano da Silva, 1996; Mattei, 1998). O
próprio mercado de trabalho não pode mais ser entendido de forma isolada, na
medida em que parte expressiva dos trabalhadores agrícolas passa a residir nos
centros urbanos ou alternam ocupações no campo e nas cidades. A heterogenei-
dade estrutural da economia e da sociedade brasileira também está presente no
campo, onde o processo de modernização acirrou as desigualdades regionais
e entre os produtores ou trabalhadores. Aqui também se observa a existência
de um núcleo de trabalhadores assalariados com vínculos mais estáveis e um
maior grau de formalização, coexistindo com modalidades de trabalho precá-
rias, ocasionais, sem direitos trabalhistas e com baixos níveis de remuneração,
como por exemplo, a categoria volante ou bóia-fria.
Um dos traços marcantes do processo de modernização conservadora da
agricultura brasileira, portanto, é o seu caráter bastante desigual em termos
regionais, centrando-se fundamentalmente na Região Centro-Sul do país, ace-
lerando as desigualdades pré-existentes. Como afirma Kageyama (1987:102),
“esse processo originou novos tipos de desigualdades regionais, tendendo a se
concentrar em áreas previamente industrializadas ou naquelas em que os capi-

184
José Marangoni Camargo

tais (agrários e/ou industriais) possuíam um porte mínimo que os qualificava a


participar das novas estruturas de mercado típicas desses complexos”. As infor-
mações do Censo Agropecuário de 1995/96 mostram que houve uma diminui-
ção pouco expressiva das diferenças regionais, medidas por indicadores como
índices de tecnificação ou padrão das despesas dos estabelecimentos agrícolas,
perpetuando as desigualdades regionais.
O comportamento da produção agropecuária a partir dos anos 90 vai ser
por sua vez, afetado pela rápida abertura da economia brasileira a partir des-
se período. A maior exposição das empresas brasileiras à concorrência externa
fazia parte de um programa mais amplo de liberalização econômica, que tinha
como objetivos a estabilidade monetária e implementar um “choque de compe-
titividade”, obrigando os produtores domésticos a se tornarem mais eficientes
e competitivos, dada a maior concorrência externa. Esse conjunto de reformas,
implantadas em diversos países latino-americanos, e que ficaram conhecidas
como “Consenso de Washington” , previam, entre outras, medidas como corte
dos gastos públicos, administração das taxas de câmbio e de juros, abertura do
mercado interno, com o fim de barreiras restritivas ao comércio, livre movi-
mentação de capitais e de investimentos externos, redução do papel do Estado,
via privatização de empresas estatais e desregulamentação econômica, etc.
No caso específico do mercado agrícola brasileiro, a liberalização comer-
cial inicia já em 1987, quando o governo criou normas para a abertura dos mer-
cados agrícolas. A maioria das reformas foi implantada a partir de 1990 e 1991,
quando se estabeleceu um cronograma de redução tarifária. Produtos como o
açúcar e leite passariam a ter tarifas de importação de 20%, a do trigo sofreria
uma redução de 25% para 15% e o algodão ficou sem nenhuma proteção. Má-
quinas agrícolas ficaram mais protegidas, enquanto os fertilizantes químicos
já tiveram tarifas significativamente reduzidas. Em média, estabeleceu-se uma
redução das tarifas de 32,2% para 14,2% para produtos agrícolas, insumos e
equipamentos, a ser implementada ao longo de três anos, a partir de 1991 (GAS-
QUES, et al., 2004).
A velocidade que as reformas foram implementadas, além de uma redu-
ção dos volumes de crédito rural, as altas taxas de juros que incidiam sobre os
financiamentos agrícolas e a valorização cambial a partir de 1994 resultaram
em uma estagnação da área cultivada de grãos no Brasil ao longo dos anos 90,
como se pode observar pelos dados da Tabela 1. Ao mesmo tempo, aumentaram

185
Evolução recente da ocupação agrícola no brasil

de forma significativa as importações de produtos agrícolas nesse período e


caíram as exportações do agronegócio em relação ao PIB entre 1995 e 1999.
Entre as safras de1990/91 e 2000/01, a área plantada com grãos e olea-
ginosas praticamente não sofre alterações, mas com comportamentos diferen-
ciados por culturas. Enquanto a soja apresentou uma expansão de mais de 43%
nesse período, outros produtos como milho, algodão, feijão e arroz reduziram
suas áreas entre 1990 e 2000. Por outro lado, a agricultura se beneficiou da
queda dos índices de inflação a partir do Plano Real, passando a conviver com
um ambiente macroeconômico mais estável, levando inclusive, a um momento
de euforia no biênio 1994/95, seguido de uma crise decorrente do aumento do
endividamento agrícola, o que desencadeou uma operação de renegociação da
dívida agrícola em 1995 (GASQUES, et al., 2004).

Tabela 1 – Área plantada e variação da área plantada por culturas entre anos agrí-
colas selecionados
Área plantada (1000 ha)
Produtos Variação 2000/01 Variação 2003/04
1990/91 2000/01 2003/04
e 1990/91% e 2000/01%
Soja 9.743 13.970 43,4 21.244 52,1
Milho 1ª safra 12.652 10.546 -16,6 9.457 -10,3
Feijão1ª safra 1.881 1.285 -31,7 1.371 6,7
Algodão 1.939 868 -55,2 1.069 23,0
Arroz 4.233 3.249 -23,3 3.598 10,7
Milho2ª safra 800 2.426 203,5 3.668 51,2
Trigo 2.146 1.710 -20,3 2.727 59,5
Feijão 2 e 3ª safras 3.624 2.594 -28,4 2.886 11,3
Total das lavouras 51.800 51.600 -0,4 60.640 13,1

Fontes: CONAB e IBGE, in Brandão et al. (2005)

A valorização do Real, por sua vez, apesar de afetar a rentabilidade das


exportações agrícolas, permitiu por outro lado, baratear os preços dos insumos
utilizados pelo setor, como defensivos e fertilizantes, já que estes eram em gran-
de parte importados ou usavam uma parte expressiva de componentes trazidos
de fora. O consumo de fertilizantes e defensivos agrícolas aumentou de forma
expressiva na segunda metade dos anos 90 em relação à década anterior e à pri-
meira metade da década de 90, estimulado pelos preços artificialmente baixos

186
José Marangoni Camargo

desses insumos, decorrentes da valorização da moeda até o início de 1999. Além


disso, apesar da acentuada redução dos recursos destinados ao crédito rural
oficial, especialmente ao destinado às despesas de custeio, aumentaram de for-
ma expressiva os financiamentos para a compra de insumos, concedidos pelas
agroindústrias fornecedoras e compradoras e pelas cooperativas. mais recente-
mente, ocorreu uma retomada do crédito de investimento a partir da criação do
Moderfrota em 2000, instituído pelo BNDES, com taxas de juros mais favoráveis
e que foi determinante para o aumento da demanda por máquinas agrícolas a
partir do final dos anos 90 (Gasques et al., 2004).
É nesse sentido que se entende que, apesar da estagnação das áreas de la-
vouras de grãos nos anos 90, a maior utilização de insumos modernos e máqui-
nas e equipamentos agrícolas permitiu uma expansão da produção, baseada na
intensificação da produção das áreas já ocupadas. A produção de grãos cresceu
mais de 90% entre as safras de 1990/91 e 2000/01, em função basicamente dos
incrementos da produtividade do trabalho e do maior rendimento por hectare,
resultantes do maior grau de tecnificação das culturas, mas também decorrentes
das condições climáticas extremamente favoráveis nesta última safra (Tabela 2).

Tabela 2 – Evolução da produção brasileira de grãos – safras 1990/91, 2000/01 e


2003/04
Safra agrícola (em 1000 t)
Produtos Variação 2000/01 Variação 2003/04
1990/91 2000/01 2003/04
e 1990/91% e 2000/01%
Soja 15.394 37.683 144,8 49.550 31,5
Milho 24.096 41.439 72,0 41.788 0,8
Feijão 2.806 2.436 -13,2 2.967 21,8
Algodão 1.346 2.640 96,1 3.798 43,9
Arroz 9.997 11.135 11,4 13.277 19,2
Amendoim 145 198 36,6 236 19,2
Trigo 3.078 3.261 5,9 5.818 78,4
Mamona 135 81 -40,0 139 71,6
Sorgo 294 905 207,8 2.159 138,6
Aveia 386 333 -13,7 460 38,1
Centeio 8 8 0,0 4 -50,0
Cevada 113 287 154,0 397 38,3
Total 51.800 99.469 92,0 120.593 21,2

Fontes: CONAB e IBGE

187
Evolução recente da ocupação agrícola no brasil

O avanço da produção e da tecnificação da agricultura brasileira na década


de 90, mesmo em um cenário adverso, incluindo o fim da política de subsídio ao
crédito, pode ser avaliado também como resultado não só de um processo de ajus-
tamento do setor a uma nova realidade, mas também a modificações de caráter
estrutural por que passou a agricultura. Políticas públicas para o setor levadas
a cabo desde os anos 70 conformaram cadeias de produção consolidadas, tendo
como núcleos dinâmicos a agroindústria processadora, os complexos cooperati-
vos ou as modernas empresas comerciais. Com grande capacidade de resposta a
políticas comerciais ativas, como as de exportação a partir da segunda metade da
década de 80, estas cadeias produtivas expandiram a produção usando capacida-
de instalada ou mesmo aumentando-a, aproveitando o parque produtivo de meios
de produção para a agricultura, que tinha sido superdimensionado na década de
70, alavancando a produção agrícola (Gonçalves e Souza, 2000). O crescimen-
to da produção agrícola, por sua vez, foi resultado, em grande parte, do aumento
da produtividade agrícola, na medida em que, como foi visto, a área destinada às
culturas praticamente se manteve estagnada na década de 90. Esse crescimento
da produtividade agrícola deve-se não apenas ao maior uso de insumos modernos
e ao avanço da mecanização, mas também e associado a estes fatores, a geração e
difusão de inovações para o setor, por parte de instituições de pesquisa. Destaca-
se neste sentido, o esforço inovativo desenvolvido pela Embrapa, responsável não
apenas pela criação de tecnologias adequadas para o cerrado, base da expansão de
uma agropecuária moderna no Centro-Oeste no período recente, como também
pela modernização da agropecuária nas áreas tradicionais no Sul e Sudeste, e por
instituições estaduais de pesquisa.
Ainda assim, a conjugação de taxas de juros elevadas, rápida abertura
econômica e câmbio valorizado acarretaram efeitos negativos para o setor, que
implicaram em uma perda de competitividade dos produtos brasileiros, refor-
çado pela continuidade do protecionismo agrícola dos países mais ricos. Esses
fatores levaram a uma queda da participação do país no mercado internacional
de produtos agrícolas na segunda metade da década de 90. Aumentou de for-
ma expressiva também a importação de alimentos e matérias-primas de origem
agrícola, como algodão, arroz, produtos lácteos, frutas, etc. No caso do algo-
dão, a valorização cambial e a ausência de proteção tarifária levaram o país
a se tornar um grande importador do produto na segunda metade da década
de 90. Em estados produtores tradicionais como São Paulo e Paraná, a cultu-
ra praticamente desaparece nesse período, com impactos importantes sobre a

188
José Marangoni Camargo

ocupação agrícola. Apenas na década atual há um revigoramento do algodão,


agora no Centro-Oeste, especialmente em Mato Grosso, mas com base em um
novo padrão tecnológico, altamente mecanizado e em grande escala, com baixo
impacto sobre a ocupação agrícola.
A mudança da política cambial em 1999, com a desvalorização do Real em
janeiro deste ano, deveria alterar este quadro, melhorando a rentabilidade das
culturas e aumentando a competitividade dos produtores agrícolas domésticos.
Mas a desvalorização cambial coincidiu com uma fase de queda dos preços in-
ternacionais de grãos, que perdurou até 2002, o que acabou anulando em parte
o estímulo resultante da mudança cambial. A partir desse último ano até 2004,
ocorreu um novo ciclo de preços internacionais elevados, que gerou um gran-
de dinamismo para a agricultura brasileira (BRANDÃO, et al., 2005). A área
plantada com grãos em apenas três anos agrícolas, entre 2000/01 e 2003/04,
expandiu-se em mais de 13%. A produção por sua vez, cresceu mais de 21%.
Este cenário internacional mais favorável as commodities agrícolas, que vai se
traduzir em uma expansão das áreas de lavouras e da produção, também vai
gerar estímulos para as vendas internas de máquinas agrícolas favorecidas tam-
bém pelas condições mais vantajosas de financiamento a partir da criação do
Moderfrota em 2000. As vendas de máquinas agrícolas para o mercado interno
passaram de 24 mil unidades em 1999 para mais de 42 mil unidades em 2002 e
38 mil em 2003 e 2004 (VEGRO, 2004; 2006).
Em linhas gerais, o desempenho do setor agropecuário foi mais satisfatório
que para a economia como um todo a partir de 1990. Enquanto o PIB agropecuário
expandiu a uma taxa média anual próxima a 3,5% entre 1990 e 2004, o PIB total
evoluiu apenas 2,5% ao ano neste período. Como resultado desse comportamento
mais favorável da agricultura “vis-à-vis” os demais setores, ocorreu nesse período
um estancamento ou mesmo uma leve reversão da tendência histórica de perda de
participação do setor no PIB total.(CARVALHO e SILVA, 2006). A agricultura, que
representava um quarto do PIB brasileiro em 1950, chegou a um mínimo de 7,6%
do PIB em 1993 e, a partir daí, ao crescer a um ritmo superior ao do restante da
economia, vê a sua participação superar 10% do PIB em 2004, apesar de ocorrer
uma queda entre 1994 e 2000, por conta sobretudo da rápida abertura comercial e
da valorização cambial nesse período. No entanto, a partir de 2004, a conjugação
de uma nova fase de preços internacionais em declínio e taxa de câmbio valoriza-
da têm levado a uma queda da rentabilidade agrícola e a uma crise financeira dos

189
Evolução recente da ocupação agrícola no brasil

produtores, em função do alto nível de endividamento contraído nos anos anterio-


res de preços favoráveis (BRANDÃO, et al., 2005). Este comportamento adverso já
se traduziu, por exemplo, na redução acentuada das vendas de máquinas agrícolas
no mercado interno, com uma queda de quase 40% em 2005 em relação ao ano
anterior (VEGRO, 2006).

Evolução da ocupação agrícola no período de 1993 a 2004

O desempenho mais favorável da agricultura, onde a renda do setor cres-


ceu a um ritmo médio superior ao dos demais setores, não trouxe os mesmos
resultados do ponto de vista da ocupação. Desde 1993, portanto um pouco antes
do Plano Real, até 2004, a agropecuária teve um comportamento negativo no
tocante a geração de emprego, uma vez que quase 1,2 milhão de vagas desapare-
ceram no campo nestes 11 anos (Tabela 3). Essa queda ocorreu em um contexto
onde a área de lavouras de grãos expandiu-se em 17% entre 1990/91 e 2003/2004
e a produção aumentou em mais de 135% nesse período. O setor agrícola, que
respondia por 27,5% do total da PEA ocupada no país em 1993, passa a repre-
sentar apenas 21% do total em 2004. A intensificação da produção, com a utili-
zação de inovações tecnológicas e novas formas de organização de produção e de
trabalho, possibilitou ganhos expressivos de produtividade, que anularam, do
ponto de vista do emprego, os incrementos de área e de produção verificados no
período. Enquanto a taxa anual de crescimento da produtividade da economia
brasileira foi de apenas 1,1% entre 1990 e 2003, na agricultura a expansão foi
de 4,7% ao ano desde 1990 (FREITAS e BARBOSA, 2005). Os incrementos de
produtividade da mão-de-obra, que foram de 3,1% ao ano entre 1990 e 1999, au-
mentaram para 6,45% anuais entre 200 e 2002, segundo Gasques et al. (2005).
No entanto, o crescimento do produto agrícola simultaneamente à redução
da mão-de-obra no setor, não se verifica em todas as regiões do país. São justa-
mente nas regiões de agricultura mais avançada, como no Sul e Sudeste, onde a
queda da ocupação agrícola foi mais acentuada. Enquanto para o Brasil ocorreu
um declínio de 10,6% da ocupação agrícola entre 1993 e 2004, no Sudeste e no
Sul a redução foi de 24,4% e de 16,2% nesse período, respectivamente. Mesmo
no Centro-Oeste, região que se observou as maiores taxas de expansão da área
plantada e de produção, constituindo uma nova frente de expansão agrícola, a

190
José Marangoni Camargo

ocupação agrícola sofreu uma redução de mais de 18% entre 1993 e 2004, resul-
tante da implantação de um modelo baseado na grande propriedade altamente
tecnificada e elevada escala de produção.

Tabela 3 - Número de pessoas de 10 anos ou mais ocupadas em atividades agrícolas


segundo as regiões e Brasil – 1993 e 2004
Região (1) 1993 % 2004 % % entre 1993 e 2004
Nordeste 8.000.290 45,0 8.111.827 51,1 1,4
Sudeste 4.671.930 26,3 3.533.351 22,2 -24,4
Sul 3.795.630 21,4 3.182.434 20,0 -16,2
Centro-Oeste 1.303.780 7,3 1.061.511 6,7 -18,6
Brasil 17.771.630 100,0 15.889.123 100,0 -10,6

Fonte: Pnads/IBGE
(1) Exclui-se a Região Norte, porque a Pnad até 2003 não estimava a população rural ocupada nesta região.

A única região a apresentar uma evolução favorável em termos de ocupa-


ção agrícola foi o Nordeste, apesar da expansão do emprego ter sido de apenas
1,4% entre 1993 e 2004. Dessa forma, a região passa a ser responsável por mais
de 51% do total da ocupação agrícola do país, contra uma participação de 45%
em 1993. Apesar dos baixíssimos níveis de renda e de produtividade de boa par-
te dos produtores rurais nordestinos e das enormes dificuldades de garantir o
seu sustento, a produção familiar, relativamente mais importante nesta região
em relação às demais, tem conseguido se manter em função de determinados
fatores. Entre estes, destaca-se a extensão dos direitos previdenciários aos tra-
balhadores rurais, principalmente ao segmento familiar, a partir de 1990. Entre
1991 e 2003, quase dobra o número de benefícios de previdência rural no Brasil,
passando de 4 milhões de pessoas para 7 milhões, sendo que metade deles está
no Nordeste. Essa modalidade de política social representa uma forma adicional
de complementação de renda que pode significar melhores chances de sobrevi-
vência de parcela importante dessa categoria. Ela possibilita, segundo Delgado
e Cardoso Jr.(2001), ampliar as oportunidades de manutenção de atividades
voltadas para o autoconsumo familiar ou a geração de pequenos excedentes co-
mercializáveis. Dessa forma, a regularidade, a segurança e a liquidez monetária
decorrentes dos pagamentos previdenciários podem estar associados a perma-
nência da ocupação agrícola no Nordeste, garantindo a reprodução de parcela
importante da produção agrícola familiar, como afirmam os autores.

191
Evolução recente da ocupação agrícola no brasil

Em síntese, pode-se concluir que o nível de ocupação agrícola no Brasil apre-


senta perspectivas pouco alentadoras. Em um quadro de reestruturação produti-
va das empresas agrícolas, da implementação de novas formas de organização do
trabalho no campo e do avanço da tecnificação dos processos produtivos, pode-se
esperar um aprofundamento da tendência de redução da ocupação agrícola no país
nos próximos anos. A continuidade da mecanização dos processos produtivos tende
a substituir ainda mais trabalho por meios de produção. O impacto das novas má-
quinas utilizadas na colheita de culturas onde a utilização de mão-de-obra ainda é
significativa seria extremamente negativa. Por exemplo, a mecanização da colheita
da cana-de-açúcar e do feijão significaria uma substituição de 100 a 120 trabalhado-
res, no algodão uma colheitadeira implica no desaparecimento de 80 a 150 vagas de
trabalho e no café ela pode substituir até 160 pessoas, segundo Balsadi et al.(2002).
Daí a necessidade de se implementar políticas que possibilitem criar condições mais
favoráveis de geração de emprego no campo para contrabalançar as tendências de-
sagregadoras da modernização conservadora da agricultura brasileira. Entre elas,
políticas que, a exemplo da previdência rural, permitam a sobrevivência da produ-
ção familiar. A reforma agrária também é uma política que pode vir nessa direção.
Como afirma Carvalho, Filho (2001), o Brasil, ao contrário de muitos outros países,
conta com a possibilidade de gerar empregos no campo, onde a produção familiar é
viável, desde que haja políticas públicas adequadas. A reforma agrária teria efeitos
positivos, dinamizando as economias locais. O acesso a terra, por sua vez, garantiria
a segurança alimentar das populações assentadas, e viabilizaria a produção e a ren-
da do assentado, criando condições para o desenvolvimento rural no sentido mais
amplo, possibilitando, além da ocupação, distribuição e redução das desigualdades
sociais e regionais.

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192
José Marangoni Camargo

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194
Capitulo 13

Entre o local e o global:


o Movimento dos Sem Terra, a
Via Campesina e a agricultura
brasileira

Mirian Claudia Lourenção Simonetti

E ste texto analisa a inserção política do Movimento dos Sem Terra do Brasil
ao movimento social Via Campesina. A temática é relevante visto que a
Via Campesina se constituiu num movimento internacional que congrega or-
ganizações camponesas e comunidades indígenas, com o objetivo de promover
as relações econômicas de igualdade e justiça social, a preservação da terra, a
soberania alimentar e a igualdade baseada na produção. A vinculação ao movi-
mento internacional permite a participação do MST nas ações e debates sobre
as questões mais amplas que afetam o campesinato no Brasil e, em diferentes
lugares do mundo.
A pesquisa verificou que o movimento de luta pela terra, seja por suas
ações nos assentamentos de reforma agrária, onde ocorrem práticas de resistên-
cia aos processos de dominação locais, seja através de sua inserção nas questões
políticas mais amplas, cujos temas extrapolam os limites nacionais, praticam
ações de oposição ao processo de globalização capitalista.
O processo atual de mundialização se cartografa pelo embate entre o pro-
cesso de globalização e às vezes despercebidas manifestações locais. Vivencia-
se uma condição planetária pontuada por intervenções locais, regionais, cujas
intensas variações determinam a imbricação do local e global. O lugar se recria
na articulação do mundial. Do lugar fluem as diferenças e ao lugar reflui simul-
Entre o local e o global: O Movimento dos Sem Terra,
a Via Campesina e a agricultura brasileira

taneamente a mundialização. Cada lugar se faz segundo as formas e os ritmos


próprios do ambiente, da vida econômica, política, social e cultural. É do lugar
e das micro-políticas criadas pelos sujeitos nos diversos modos de viver, sen-
tir, pensar, falar e projetar o futuro, que crescem as demandas e constroem-se
novas relações. Assim, através do estudo dos movimentos de luta pela terra no
Brasil e suas ações nos acampamentos ou assentamentos de reforma agrária,
verifica-se um processo amplo que pode ser lido em diferentes escalas. Ou seja,
desde a reprodução da vida, do habitar, do trabalho, do mundo dos afetos e das
trocas, até os aspectos mais amplos onde os conflitos e as disputas revelam os
movimentos de resistências às situações de exclusão e falta de direitos que ali-
menta as lutas de resistência à nova ordem global.
Na sociedade contemporânea a revolução da tecnologia da informação e a
reestruturação do capitalismo introduziram um novo momento que se caracteriza
pela crescente transnacionalização das relações econômicas, sociais, políticas e
culturais. Também se caracteriza por sua forma de organização em redes; pela
flexibilidade e instabilidade do emprego; por uma cultura construída a partir de
um sistema de mídia onipresente; por uma alteração na base técnica da produção.
Esse processo vem transformando as bases materiais da vida, abalando institui-
ções, transformando culturas, criando riqueza e aumentando o consumismo, am-
pliando e induzindo a pobreza, incitando a ganância e a inovação.
Juntamente com a revolução tecnológica e a transformação do capitalismo,
vivencia-se no último quarto do século, o avanço poderoso de expressões sociais
que desafiam a globalização. Essas expressões encerram grandes diversidades
culturais e uma ampla gama de movimentos reativos de resistência que vão des-
de aqueles mais amplos e diversos tais como àqueles contra a nova ordem global
e a pobreza no mundo, aos organizados localmente, de resistência ‘as questões
internas nos seus países tais como o MST, que ao lutar contra as desigualdades
internas no Brasil também se opõe ‘a nova ordem global.
Não pretendo aqui debater acerca da concepção dos movimentos sociais,
mas situar, de maneira ampla, meu entendimento acerca dos mesmos. Consi-
dero que são ações coletivas de caráter sócio-político e cultural que viabilizam
distintas formas das populações se organizarem e demandarem seus direitos.
Na atualidade, atuam por meio de redes sociais locais, regionais, regionais, na-
cionais e internacionais e utilizam-se das novas tecnologias de comunicação e
informação. Suas ações vão desde a denuncia, até às ações diretas, tais como

196
Mirian Claudia Lourenção Simonetti

mobilizações, grandes marchas, concentrações e demais enfrentamentos aos


poderes constituídos.(Gohn: 2003)
Há no mundo uma ampla gama de movimentos que se opõe ‘a nova ordem
global, dentre os quais destaco a Via Campesina e o Movimento dos Sem terra
tanto pela sua articulação, como pela amplitude de sua intervenção na socieda-
de contemporânea. A Via Campesina é um movimento coletivo internacional
que coordena organizações camponesas, pequenos e médios produtores, orga-
nizações rurais de mulheres, comunidades indígenas organizações de Sem Ter-
ra, organizações da Juventude rural e trabalhadores agrícolas migrantes. (Via
Campesina: 1996)
Em seus documentos se identificam como um movimento autônomo, plu-
ral e independente. Objetivam influenciar governos e instituições multilaterais,
visando mudar as políticas econômicas e agrícolas que afetam a agricultura
camponesa. As organizações que formam a Via Campesina situam-se em 56
países da Ásia, África, Europa e do continente Americano, organizadas em oito
regiões: Europa, leste, sudeste e sul da Ásia, América do Norte, Caribe, América
Central, América do sul e África. (Via Campesina: 1996)
Essa organização foi fundada em abril de 1992, a partir de reunião realiza-
da em Manágua, Nicaragua no Congresso pela União Nacional dos Agricultores
de Grãos (UNAG). Em maio de 1993, essa organização realizou em Mons/Bélgi-
ca sua primeira conferência, onde foi constituída como organização mundial.
Também constitui nessa ocasião sua estrutura, pauta de estratégicas de luta. A
Segunda Conferência Internacional teve lugar em Tlaxcala, México, em abril de
1996, aonde participaram 69 organizações de 37 países, para analisar as temá-
ticas importantes para os pequenos e médios produtores, tais como: soberania
alimentar, reforma agrária, créditos, dívida externa, tecnologia, participação
das mulheres e desenvolvimento rural, dentre outros temas. No Brasil, par-
ticipam desse movimento o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
– MST; Movimento dos Pequenos Agricultores - MPA; Movimento dos Atingi-
dos por Barragens - MAB, Comissão Pastoral da Terra - CPT e Movimento das
Mulheres Camponesas - MMC. (Via Campesina: 1996)
A Via Campesina encontra-se em processo de consolidação, se colocando
como um movimento pluralista, democrático e multicultural. Sua estrutura baseia-
se nas conferencias realizadas de quatro em quatro anos e nos encontros das orga-
nizações regionais. Localiza-se em uma ampla área geográfica o que lhe confere a

197
Entre o local e o global: O Movimento dos Sem Terra,
a Via Campesina e a agricultura brasileira

condição de movimento social mais representativo do campesinato do mundo atual.


Seu objetivo principal é, em linhas gerais, desenvolver a solidariedade e a unidade
dentro da diversidade das organizações camponesas e indígenas, para promover
as relações econômicas de igualdade e justiça social, a preservação da terra, a so-
berania alimentar, a produção agrícola sustentável e a igualdade baseada na pro-
dução de pequena e média escala. (Via Campesina: 1996)
Essas questões vão ao encontro das demandas do Movimento dos Sem Ter-
ra. O MST, desde os anos 80 até os dias atuais, constituiu-se no movimento so-
cial de maior visibilidade no país. Tem por característica realizar ações através
da ocupação de terras públicas ou privadas e de prédios públicos (INCRA, órgãos
governamentais etc.), e também grandes caminhadas e manifestações pelas prin-
cipais cidades do país, objetivando ganhar espaço na mídia visando denunciar as
desigualdades sociais e a sua proposta de reforma agrária. (Simonetti: 1999)
Resulta das mudanças políticas e econômicas operadas no país nos últi-
mos anos, que ampliaram as desigualdades sociais no país. Essas mudanças
econômicas se vinculam ‘a globalização financeira, realizada através de ajuste
estrutural adotadas por diferentes governos do país, preconizadas pelo Fundo
Monetário Internacional, que integraram-no aos circuitos financeiros interna-
cionais. Tal política econômica tornou o país vulnerável às crises financeiras
e, conseqüentemente a recessão, ao desemprego, a pobreza e ao aumento das
desigualdades sociais.
A forma como o país se integrou ao processo de globalização capitalis-
ta, potencializou e acirrou as suas contradições internas. Fruto desse processo
está ‘a política agrária que, ao ser adotada, beneficiou os grandes empresários
e proprietários de terra em detrimento dos camponeses, o que levou o país, ao
segundo lugar com relação ao índice de concentração de terras do planeta.
O processo de internacionalização da economia brasileira revela que o
desenvolvimento do capitalismo na agricultura tem sido marcado pela sua in-
dustrialização. Para viabilizar esse processo, diferentes governos emprestaram
dinheiro no mercado internacional. Para pagar a dívida o país teve que exportar,
sobretudo produtos agrícolas. È por isso que nas ultimas décadas ocorreu no
Brasil uma rápida expansão das culturas de produtos agrícolas pra exportação.
Café, cana-de-açucar, soja, laranja e eucalipto se expandiram e foram incenti-
vados em detrimento dos produtos alimentícios destinados ao mercado interno.
Isso acarretou uma série de transformações profundas no campo brasileiro e

198
Mirian Claudia Lourenção Simonetti

com ela um aumento significativo dos movimentos sociais rurais em luta pela
terra ou por melhores condições de trabalho, dentre ele o MST.
A organização do MST resultou do processo de resistência às mudanças po-
líticas e econômicas operadas no país nas últimas décadas e, decorreu da junção
de várias lutas pontuais ocorridas por todo país em fins da década de 70. Sua arti-
culação se deu através do apoio político do clero progressista, que disponibilizou
sua infra-estrutura e auxiliou na articulação das lideranças e seus encontros. Em
1984, realizaram o 1º Encontro Nacional dos Sem terra de onde surgiu o movi-
mento institucionalizado e onde definiram suas primeiras diretrizes políticas,
bem como a definição do seu nome – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
terra. Desde então, o MST criou um espaço comunicativo e organizativo tais como,
encontros ou congressos locais, estaduais e nacionais, onde definem suas diretri-
zes políticas, seus princípios e ações. (Simonetti: 1999)
Constitui-se de uma população heterogênea que reúne camponeses com
pouca terra e seus filhos, camponeses sem terra, assalariados do campo e outras
categorias de trabalhadores rurais ou urbanos. Integram-no também intelec-
tuais, técnicos, professores e ex-integrantes do clero católico. Dentre os vários
grupos sociais em luta pela terra no país, o MST se diferencia deles devido a sua
prática territorial. A maior parte dos movimentos sociais constituídos em torno
da luta pela terra se esgota a partir da conquista da terra ou do fim do conflito. O
MST tem gerado um processo de (re)territorialização de trabalhadores nas ter-
ras conquistadas, que tem gerado continuadamente novas demandas baseadas
na tríade ocupação/acampamento/assentamento. (Simonetti: 1999)
Desde o momento de sua gestação até hoje a luta pela terra vem sendo cons-
tituída por ações que visam a impulsionar a reforma agrária e a ocupação tem sido
o instrumento destas ações. A ocupação tem resultado no acampamento, que é a
materialização dos sujeitos em ação, em luta. O assentamento representa o resulta-
do do processo, a terra conquistada - a apropriação do território capitalista aquele
sob hegemonia capitalista que é apropriado pelos camponeses. A apropriação do
território, materializada no assentamento, não esgota o processo de luta. Desdo-
bra-se em outras lutas para a conquista de crédito, infra-estrutura e demais con-
dições necessárias para viabilizar a produção e a vida nos assentamentos, como
escola para as crianças, postos de saúde, cooperativas, associações etc. Assim, os
camponeses continuam vinculados ao MST, mesmo depois de assentados, tanto
para possibilitar as diversas lutas nos assentamentos, quanto outras lutas mais

199
Entre o local e o global: O Movimento dos Sem Terra,
a Via Campesina e a agricultura brasileira

gerais, dentre elas a conquista de novas terras e de políticas agrícolas. O resultado


da luta pela terra, seja organizado pelo MST, seja por outros movimentos de luta
pela Terra, pode ser observado através do número de assentamentos localizados
por todo país. Verifica-se no período entre 1979 a 2000, aproximadamente 569.733
famílias assentadas, em 5.200 Assentamentos. (MST: 2006)
A importância do MST na sociedade brasileira se deve, em grande parte,
a forma como o movimento pratica ações visando dar visibilidade ‘a luta pela
terra. Até então, comunidades indígenas, camponeses e trabalhadores rurais vi-
venciavam conflitos em torno da questão da terra, no interior do país, e pouco se
sabia sobre as situações de exclusão, violência e assassinatos. O MST trouxe para
a cidade e para a mídia, esta luta. A sua organização assumiu uma dimensão
extraordinária graças a sua organização interna e de suas práticas territoriais
e políticas, que foram sendo construídas ao longo da sua formação e trajetória.
A capacidade de organização e de integração de novos Sem Terra nessa luta,
bem como as grandes manifestações, grandes caminhadas, ocupações de pré-
dios públicos e praças, mostra a singularidade desse movimento na sociedade
brasileira. (Simonetti: 1999)
A luta pela terra e as transformações decorrentes desse processo, visto em
seu conjunto, vêm possibilitando mudanças, ainda que pequenas, na sociedade
brasileira. Pode-se medir sua importância sob duas óticas: aquela que permite
às famílias assentadas melhores condições de vida e percepção de que têm di-
reitos, possibilitando-lhes romper com as redes de dominação e subserviência
à classe dominante. E aquela, mais ampla que possibilita o questionamento do
direito de propriedade, propondo um modelo diverso àquele da propriedade
capitalista, o que tem implicações em mudanças de poder. Esta é ao meu ver
a questão mais importante, uma vez que há no Brasil um verdadeiro pacto de
classes que exclui da cena política os trabalhadores e camponeses, como meio
de protelar uma transformação no direito de propriedade, que alteraria as bases
de sustentação dos grandes latifundiários, das classes dominantes e da forma
brutal que a exploração do trabalho e a acumulação do capital assumem no País.
(Simonetti: 1999)
O MST tem tido uma capacidade surpreendente de se reinventar politica-
mente segundo as variações conjunturais. Através de suas ações têm conseguido
manter-se na mídia e seu desafio principal é pressionar socialmente para alterar o
padrão de terra estruturado no país. A sua eficácia política pode ser visto através

200
Mirian Claudia Lourenção Simonetti

desses pontos: vem colocando na agenda política de diferentes governos brasilei-


ros a temática da terra e da reforma agrária; vem possibilitando o acesso a terra
a um número significativo de famílias, permitindo melhorar suas condições de
vida; a democratização da vida política e a dinamização econômica de vários mu-
nicípios onde o assentamento se insere. Além disso, vem possibilitando e a criação
de um espaço comunicativo que pode ser verificado nas escalas local, nacional e
internacional, e objetiva segundo o MST, dar visibilidade a sua luta bem como a
outras temáticas políticas. Seu vinculo ao movimento internacional de luta - Via
Campesina – vem possibilitando a sua articulação com o movimento camponês
em âmbito mundial. (Simonetti: 1999)
Ao utilizar-se dos recursos modernos dos meios de comunicação para dar
visibilidade às suas lutas e conquistas, o MST redimensionou a sua luta. Ou seja,
a luta pela terra, embora localizada territorialmente consegue dialogar com a
sociedade civil tanto do país como do mundo. Ao se juntar a Via Campesina,
o MST vem juntar as suas demandas as questões priorizadas pelas políticas da
Via Campesina tais como: 1- a soberania alimentar entendida como o direito
dos povos de decidir sobre sua própria política agrícola e alimentar; 2- a bio-
diversidade que tem como base fundamental o reconhecimento da diversidade
humana; 3- a reforma agrária, apreendida como aquela que permite o acesso a
terra por parte dos camponeses, como uma forma de garantia de valorização de
sua cultura, da autonomia das comunidades e de uma nova visão de preserva-
ção dos recursos naturais, para a humanidade e para as gerações futuras. (Via
Campesina: 1996)
Além dos pontos arrolados anteriormente, todos coincidentes com as pro-
postas do MST, a Via Campesina têm princípios similares aos do movimento
brasileiro: 1. Todas as famílias que querem viver, morar e trabalhar na terra têm
direito de amar e preservar a terra e os seres da natureza em benefício de todos;
2. Produzir prioritariamente alimentos para eliminar a fome da humanidade e
melhorar as condições de vida e alimentação; 3. Preservar as florestas existentes
e reflorestar as áreas degradadas; 4. Proteger as águas, suas fontes, rios e lagos.
Lutar contra a privatização e comercialização das águas; 5. Evitar a monocultu-
ra depredadora e o uso de venenos e agrotóxicos. Tratar adequadamente nossos
lixos e combater qualquer prática de contaminação e agressão ao meio ambien-
te; 6. Lutar contra o latifúndio e repudiar as políticas implementadas pelo Banco
Mundial e empresas multinacionais, com relação à Reforma Agrária; repudiar

201
Entre o local e o global: O Movimento dos Sem Terra,
a Via Campesina e a agricultura brasileira

as empresas que monopolizam as tecnologias, as agroindústrias que nos explo-


ram, e os organismos internacionais, (como FMI, OMC, G–7, que só se articu-
lam em função dos interesses do capital); 7. Aperfeiçoar sempre o conhecimento
sobre a natureza e a agricultura, e transmitir aos jovens, motivando-os a con-
tinuar no meio rural; 8. Praticar a solidariedade e indignar-se contra qualquer
injustiça, agressão e exploração praticada contra qualquer pessoa, comunidade
e natureza, em qualquer parte do mundo; 9. Lutar e defender a igualdade en-
tre homens e mulheres. Combater todo tipo de discriminação racial e sexual.
Criar oportunidades efetivas para que ninguém seja discriminado e excluído
por questões de gênero e raça; 10. Embelezar nossas comunidades, cuidando
e plantando árvores, flores, ervas medicinais e hortaliças; 11. Jamais vender a
terra conquistada. A terra é um bem supremo e deve garantir a sobrevivência
das futuras gerações; 12. Pronunciar–se pelo não pagamento da dívida externa,
para que esses recursos sejam destinados a cobrir as dívidas que os camponeses
têm com bancos. (Via Campesina: 1996)
O MST e a Via campesina iniciaram, em 2006, várias ações conjuntas no
Brasil, dentre elas a ocupação da Fazenda da ARACRUZ Celulose, em Barra do
Ribeiro (RS). No dia 08 de março de 2006, 02 mil mulheres da Via Campesina Bra-
sil/MST ocuparam a citada fazenda com o objetivo de demonstrar a mercantiliza-
ção da agricultura e da natureza, em curso hoje no mundo. A data e o lugar - sede
da II Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural
da FAO – foram simbolicamente escolhidos objetivando denunciar os interesses
econômicos das grandes empresas internacionais e a privatização dos recursos
naturais tais como a terra, as águas, as sementes, o ar e as matas. (MST: 2006)
Para seus integrantes, sob o argumento de reflorestamento, criaram-se verda-
deiros desertos verdes de produção de madeira para fábricas de celulose. Consideram
que o eucalipto é a principal espécie dessa estratégia e danifica o solo de forma irre-
parável: uma vez plantado, não é possível retomar a fertilidade da terra e seus mine-
rais. Além disso, as raízes do eucalipto penetram nos lençóis freáticos, prejudicando o
abastecimento de água das regiões. Cada pé de eucalipto é capaz de consumir 30 litros
de água por dia. A maior proprietária nessa empreitada é a Aracruz Celulose, que tem
250 mil hectares plantados em terras próprias, 50 mil só no Rio Grande do Sul. Suas
fábricas produzem 2,4 milhões de toneladas de celulose branqueada por ano, gerando
contaminação no ar e na água, além e prejudicar a saúde humana. (MST: 2006)
Também no mês de março de 2006, 250 membros do MST e da organiza-
ção internacional Via Campesina participaram do encontro das Nações Unidas - 8ª
202
Mirian Claudia Lourenção Simonetti

Conferência das Partes da Convenção Internacional da Diversidade Biológica (COP


8), realizada no Brasil, na cidade de Pinhais, na região metropolitana de Curiti-
ba, com o objetivo de denunciar à pesquisa, plantio e comercialização das semen-
tes transgênicas. Para a Via Campesina, a difusão dessas sementes pode represen-
tar um desastre para os agricultores, porque terão que comprá-las todos os anos.
A Via Campesina, que tem feito protestos ao redor do mundo, defendendo a manutenção
da moratória dos testes com a semente “Terminator” (que se auto-destrói após o primeiro
plantio), proibida desde os 2000.
A vinculação ao movimento internacional permite a participação do MST
nas ações e debates sobre as questões mais amplas que afetam tanto o campesi-
nato e as comunidades indígenas, quanto as diferentes sociedades em diferentes
lugares do mundo. Em contrapartida, permite a Via Campesina intervenções
locais, regionais, cujas intensas variações determinam a imbricação do local e
global. O lugar se recria a partir da articulação do movimento local ao mundial.
As lutas se definem em cada lugar segundo as formas e os ritmos próprios dos
movimentos sociais e das ações políticas criadas pelos sujeitos a partir de suas
realidades e demandas.
Essas ações indicam a importância da articulação desses movimentos so-
ciais na sociedade contemporânea. Com seus fluxos e refluxos, são um campo de
força sóciopolítica e suas ações impulsionam mudanças sociais diversas. Uma das
questões fundamentais desse movimento é a crítica que ele faz a cultura do lucro,
da mercantilização da vida e as suas conseqüências tais como impactos nocivos ao
meio ambiente e o desrespeito aos direito humanos. Em oposição, defendem que ela
deva ser substituída pela cultura da ética, do direito ‘a vida, e do respeito aos direitos
fundamentais.

Referências

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GOHN, Maria da Glória Movimentos sociais no início do Século XXI - Antigos e novos atores. Petrópolis.
Vozes. 2003.

203
Entre o local e o global: O Movimento dos Sem Terra,
a Via Campesina e a agricultura brasileira

GRZYBOWSKI, C. Caminhos e descaminhos dos movimentos sociais no campo. Petrópolis: FASE, Vozes,
1987.

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______ A chegada do estranho. São Paulo: Hucitec, 1993.

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SIMONETTI, MIRIAN C. L. A longa caminhada – a reconstrução do território camponês em Promissão.


Tese de Doutorado. FFLCH-USP. São Paulo. 1999.

VIA CAMPESINA. Linhas Políticas. s.n.t.

VIA CAMPESINA. Memoria de la II Conferência Internacional de la Via Campesina. Tlaxcala, 1996.

204
Capitulo 14

Algumas considerações sobre


estratégias identitárias da
militância negra

Andreas Hofbauer

V ivemos um momento ímpar na história do Brasil no que diz respeito à


questão racial. O tema da discriminação racial entrou definitivamente na
pauta do dia. Está sendo debatido na mídia, nos grandes jornais, nas TVs e dei-
xou de ser uma questão discutida somente nos círculos de militantes negros e
analisado por um grupo pequeno de especialistas acadêmicos. Aliás, sabemos,
que na própria academia, pesquisas sobre o racismo foram marginalizadas du-
rante muito tempo.
Hoje podemos perceber que a pressão de uma intelectualidade negra está
conseguindo, aos poucos, consolidar um campo acadêmico próprio. O sucesso
dos Congressos dos Pesquisadores Negros é, certamente, sinal desta mudança.
Ou seja, notamos que a “questão racial” está, aos poucos, deixando de ser uma
“questão socialmente invisível” para ser reconhecida – cada vez mais – como
um “problema social” que diz respeito à toda sociedade brasileira.
Pode-se afirmar que, de certo modo, a sociedade brasileira começou a se
debater com a discriminação racial. O “brasileiro comum” reconhece hoje que
a sociedade brasileira não está livre da pecha do racismo. Pesquisas recentes
(Datafolha; 1995; Fundação Perseu Abramo; 2003) mostraram que cerca de 90
% dos brasileiros afirmam que existe “preconceito racial” no Brasil.
Diante das estatísticas atuais da discriminação, podemos chegar à con-
clusão de que pouco mudou nas últimas décadas. Os dados do IBGE continuam
Algumas considerações sobre estratégias identitárias da militância negra

revelando fortes discriminações do grupo dos “pretos” e “pardos” em relação


aos “brancos” em todos os âmbitos da vida social. Sabemos, por exemplo, que
o trabalhador negro, com o mesmo nível de formação, ganha cerca de 50% a
menos que os trabalhadores brancos. As mulheres negras recebem, na média,
menos dinheiro pelos mesmos serviços e enfrentam ainda jornadas de traba-
lho mais longas; elas são também maioria entre os trabalhadores sem carteira,
entre os empregados domésticos e maioria entre aquelas pessoas que executam
trabalhos familiares não-remunerados, etc.
Se compararmos os dados sociológicos da discriminação dos negros (afro-
descendentes) do início do séc. XXI com aqueles de 20, 30 anos atrás, podemos
constatar que não houve mudanças substanciais na pirâmide social. No topo
encontramos uma grande maioria de brancos, na base uma grande maioria de
negros. Há, porém, uma pequena mudança, um “dado novo” que é significati-
vo. Está crescendo e se estabelecendo uma pequena “classe média negra”. Há
estudos que indicam que durante os anos 1990 a classe média negra teria tido
um crescimento relativo de 10 % nas capitais brasileiras, onde já representaria
quase um terço de toda a classe média (Pinheiro, 1999). São pessoas que têm um
nível de escolaridade relativamente elevado, que atuam nas mais diversas pro-
fissões liberais e que conseguem articular melhor do que os negros que vivem
na periferia os seus interesses sociais e políticos. E, juntamente com este “dado
novo”, ocorre uma outra mudança que é igualmente significativa e que, parece,
vai aos poucos envolvendo toda a sociedade brasileira: a percepção da questão
racial, a percepção do racismo.
Esta mudança pode ter várias causas. Se olharmos para a história do Oci-
dente, para o processo de modernização, as imposições do mundo do trabalho ca-
pitalista, poderíamos talvez fazer a seguinte “análise sistêmica”: parece lícito afir-
mar que, de certo modo, o capitalismo tem contribuído para deixar mais claras as
fronteiras entre incluídos e excluídos. Ao formalizar e burocratizar as fronteiras
(por exemplo, entre aqueles que têm carteira assinada e aqueles que não a têm),
as relações de produção capitalista têm o potencial de acabar com certas “zonas
cinzentas” do patrimonialismo que sustenta redes de dependência e de proteção
e, portanto, ambigüidades nos processos de inclusão e exclusão. Se focarmos o
caso do Brasil, temos de reconhecer, porém, que o processo de modernização
não eliminou totalmente todas formas tradicionais (“arcaicas”) de sociabilidade.
Acredito que continuamos vivendo uma realidade complexa em que a “lógica” do

206
Andreas Hofbauer

patrimonialismo não desapareceu, mas se articula, se mescla com a “lógica” do


capitalismo moderno.
O que quero dizer com isto? Constatamos hoje certas transformações na ma-
neira como no Brasil as questões étnicas estão sendo vivenciadas e abordadas. Pas-
samos por uma fase de certa efervescência das “etnicidades” e parece-me que tais
processos não devem ser analisados de forma totalmente desconexa de transforma-
ções de ordem macro-econômica que no mundo inteiro têm agravado desigualdades
socioeconômicas, e, desta maneira, contribuído para aprofundar conflitos já exis-
tentes e para torná-los mais explícitos. Sem querer promover análises mecanicistas e
reducionistas, penso que podemos admitir que tais processo têm seus reflexos tam-
bém sobre o mundo simbólico, ou seja, sobre a maneira como os grupos interpretam
e re-interpretam suas tradições culturais e re-inventam suas identidades.
Sabemos que aqueles processos, que comumente são descritos como “globa-
lização” e que têm contribuído para enfraquecer e estabilizar as instituições repre-
sentativas clássicas dos Estados-nação, tendem a induzir também as pessoas a se
articularem em “grupos de pressão”, criando um cenário em que um grupo com-
pete com outro para obter certos “benefícios”, ou seja, tudo aquilo que até pouco
tempo atrás era tido como “direitos do cidadão”. Diante do desmoronamento de
velhas estruturas político-institucionais e de antigas garantias, certezas e idéias,
as pessoas parecem voltar-se para aquilo que acreditam ainda ser “essencialmente
seu” — uma espécie de autodefesa articulada como uma resposta, de certo modo,
sistêmica a inseguranças geradas pelas drásticas transformações econômicas e
sociais que têm ocorrido em todo o globo. Dito isto, não quero, evidentemente,
diminuir o mérito e o esforço da militância negra. Penso que o grande impulso
na mudança da percepção do racismo no Brasil provém sobretudo da atuação do
movimento negro, da intelectualidade negra.
Gostaria agora de apontar para algumas mudanças-chave que ocorreram na
perspectiva da militância negra ao longo do tempo. Quero analisar rapidamente
algumas etapas – que me parecem importantes – na história do anti-racismo no
Brasil, isto é, quero mostrar como, em diferentes contextos históricos, mudam as
(auto-)avaliações do grupo (por exemplo, do papel do negro na história do Brasil,
a importância atribuída às tradições culturais africanas), mudam os discursos, a
pauta de reivindicações e, juntamente com isto, as “estratégias identitárias”.
Num artigo recente, Célia Maria Marinho de Azevedo recupera parte da his-
tória de um novo tipo de imprensa que surgia na década de 1830 e que a historio-

207
Algumas considerações sobre estratégias identitárias da militância negra

grafia tem chamado de “imprensa mulata”. Ela destaca dois jornais editados no
Rio de Janeiro (“O homem de Côr”; mais tarde chamado de “O mulato ou o homem
de Côr” e “O crioulinho”; ambos fundados em 1833). A novidade destes jornais foi,
segundo esta historiadora, exatamente a preocupação em denunciar o preconceito
contra “pessoas de cor”. A estratégia para combater a discriminação e conquistar
respeito na sociedade teria sido a defesa da cidadania de todos os homens livres
(Azevedo, 2005, p. 303). Para exemplificar esta atitude, Azevedo analisa a capa do
primeiro número do “O homem de Côr”. A primeira página deste jornal apresen-
tava o trecho da Constituição de 1824 que definia os direitos civis e políticos dos
cidadãos brasileiros e, numa coluna ao lado, lia-se um ofício do presidente de Per-
nambuco que condenava a miscigenação e sugeria, entre outras coisas, a criação
de batalhões segundo cores de pele. O artigo que segue critica veementemente esta
posição. A base da argumentação é a própria Constituição que, como ressalta o
redator, não distingue “o roxo do amarelo, o vermelho do preto” (idem, 303, 304).
Azevedo chama ainda a atenção para a atuação política de um “homem de
cor”, Francisco Gê Acayaba Montezuma (1794-1870), deputado constituinte baia-
no e posteriormente deputado no Rio de Janeiro, que, como outros não-brancos
livres da época, denunciava os maus tratos que os negros e mulatos sofriam nos
EUA. Em seu livro A liberdade das repúblicas (1834) critica a visão do presidente
Jefferson, segundo a qual “as duas raças branca e de cor, não podem viver juntas,
e igualmente livres na Republica Federativa dos Estados Unidos”, para lhe opor
a Constituição brasileira que “nenhuma distincção faz do homem branco, e do
Homem de cor: todos são filhos do Pai: todos são igualmente Cidadãos do Estado;
todos gozão dos mesmos Direitos”. Diferentemente da república norte-americana,
a monarquia brasileira “nada recea da mais illimitada IGUALDADE perante a Lei”
(apud Azevedo, 2005, p. 309,310).
Aliás, Azevedo vê na atuação daqueles homens de cor, livres e libertos,
que se empenharam, na década de 1830, em defender a igualdade formal para
todos os brasileiros livres, um primeiro passo para a construção do mito do
paraíso racial. Evidentemente não foi apenas este grupo responsável pela con-
solidação deste ideário. Num outro artigo, Azevedo já tinha apontado para
a importância do discurso dos abolicionistas norte-americanos, que teriam
“usado” o Brasil como um contra-exemplo positivo para criticar e atacar –
com mais legitimidade moral – a situação discriminatória nos EUA. E, em
pouco tempo, mais especificamente, a partir de 1860, esta visão idealizadas

208
Andreas Hofbauer

das relações entre senhores e escravos no Brasil teria sido incorporada no dis-
curso dos abolicionistas locais (Azevedo, 2003, p. 161).
De acordo com Azevedo, a aposta da elite negra na primeira parte do século
XIX teria sido a de que, com o decorrer do tempo, mais e mais escravos poderiam
adquirir o status de livre e, com isto, conquistar os direitos plenos de cidadania.
Agora, a defesa da Constituição de 1824 implicava também a defesa das bases eco-
nômica e política da monarquia que eram o latifúndio e a instituição da escravi-
dão. Azevedo argumenta, portanto, que o reverso da estratégia de luta desta elite
mulata (negra) contra a discriminação e por plenos direitos de cidadão era uma
atitude que não tocava no direito da posse de escravos e visava àquilo que a autora
chama de “não reconhecimento público das raças” (Azevedo, 2005, p. 312). Aze-
vedo caracteriza esta postura, que induziu a prática de não se referir à cor daquele
que conseguiu “passar” para o mundo “dos de cima” (idem, p. 312, 313), como
um anti-racismo universalista de inspiração liberal que não atingia a população
escrava. Não falar das raças, das diferenças de cor, opor-se a qualquer menção às
raças e à cor em textos legais era uma espécie de estratégia que tinha como objeti-
vo conquistar os mesmos direitos dos cidadãos brancos.
Em artigo recente (2005/2006), a historiadora Hebe Mattos chega a uma
conclusão semelhante: Ela descreve o “silêncio sobre a cor” como símbolo da cida-
dania naquele período, uma atitude que teria sido construída nas “lutas anti-ra-
cistas do século XIX, que combatiam as hierarquias de cor entre a população livre”
(Mattos, 2005/2006, p. 111). Segundo Mattos, toda uma geração de intelectuais
negros teria sido formada a partir deste liberalismo anti-racista. Para a autora,
esta atitude – “a ética do silêncio sobre as cores” – criou um beco sem saída, já que
na época todo não-branco, mesmo aquele que era dono de escravos, dependia de
um reconhecimento público de sua condição de “livre”. É que, na prática, precisa-
va da proteção de um senhor influente que comprovasse o seu status de livre, caso
contrário podia correr o risco de ser re-escravizado. Percebe-se, portanto, que, na
prática, no imaginário das pessoas, a cor (“raça”) continuava (como continua ain-
da hoje) funcionando como um fator (argumento) que tinha o poder simbólico de
discriminar e de excluir.
Quero agora revisitar a década de 30 do século XX, quando o país, sobretudo
o Sudeste, foi envolvido por uma primeira onda de modernização no âmbito da
produção capitalista que fez crescer certas indústrias e estimulou migrações de
áreas rurais para centros urbanos. Em busca de emprego, muitos negros fixar-se-

209
Algumas considerações sobre estratégias identitárias da militância negra

iam nas periferias de Campinas e São Paulo em situações extremamente precárias


(em cortiços, porões). No mercado de trabalho enfrentavam a concorrência não
apenas de brasileiros não-negros, mas também de milhares de imigrantes euro-
peus que geralmente eram preferidos pelos empregadores. Foi neste momento, em
que a política nacional começava a assumir um tom cada vez mais nacionalista,
que se articulariam vários jornais e entidades negras, entre elas, a mais famosa,
a Frente Negra Brasileira (1931-1937). Esta organização, que ganharia grande im-
portância social e política, buscava representar a comunidade negra e defender os
seus interesses junto aos órgãos públicos. Em vários momentos, a Frente Negra
Brasileira (FNB) seria tratada, de fato, por autoridades públicas, sobretudo da área
militar, mas também pela grande imprensa, como representante legítima da po-
pulação negra (cf. Domingues, 2005, p. 185, 318).
A FNB lutava contra o “preconceito de cor” no mercado de trabalho e empe-
nhava-se em desenvolver estratégias para empregar seus filiados. Os frentenegri-
nos apostavam, em primeiro lugar, na formação dos negros. É por isto também que
a FNB criou diferentes cursos (por exemplo, cursos de alfabetização para adultos,
cursos profissionalizantes; na sede da organização havia oficinas de costura, uma
banca de marceneiro). Para os líderes, o trabalho constituía um valor em si, uma
atividade que dignificava o ser humano. A dedicação ao trabalho era considerado
o “meio” pelo qual o negro deveria ascender socialmente e também a estratégia
apropriada para enfrentar e quiçá superar o preconceito: “Os meios de ação, para
termos bons cidadãos, é formar a orientação profissional, o gosto pelo trabalho, a
vontade de produzir”, lê-se num dos artigos publicados no órgão oficial da FNB, A
Voz da Raça (n° 39, 1934). E Francisco Lucrécio, secretário-geral da FNB, ressalta:
“[S]omente pelo trabalho puro e convicto é que podemos triunfar em todos os
nossos objetivos” (AvdR, n° 65, 1937).
A defesa deste tipo de “ideologia do trabalho” fazia também com que a FNB
atacasse qualquer tipo de comportamento que pudesse ser prejudicial para a ima-
gem de “bom trabalhador”, de “trabalhador honesto”. Não é de estranhar que um
tema recorrente nas publicações da FNB foi o ataque ao alcoolismo e ao problema
da “vadiagem”. Assim, os líderes da FNB assumiriam uma postura que alguns
autores (por exemplo Bastide) chamaram de “puritana”. A preocupação em usar
vestimentas adequadas, e também de cuidar do cabelo crespo, seguia “modelos
brancos” ocidentais. Anúncios como este não eram raros em toda a Imprensa Ne-

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Andreas Hofbauer

gra da época: “Frente-Negrinas — Quereis ter os vossos cabelos lisos e sedosos! a


preços razoaveis? Procurai a cabelizadeira Frente-Negrina”. (AvdR, nº 4, 1933).
Esta “política comportamental” visava a aplainar o caminho para uma in-
tegração efetiva dos negros na “grande nação brasileira”. Fazia parte da estratégia
identitária dos frentenegrinos destacar e exaltar tanto o pertencimento à raça ne-
gra como o pertencimento à nação brasileira. Um discurso proferido pelo presi-
dente Arlindo Veiga dos Santos em 1933 elucida bem esta aposta frentenegrina:
“Se o Brasil não tem um tipo racial, tem todavia UMA RAÇA. Essa precisa ser
defendida, valorizada, educada, melhorada por si-mesma e não por transfusões
de outros sangues, apenas teoricamente melhores. Dessa Raça Brasileira, é a Gente
Negra Brasileira uma distinção e não uma separação. [...] É, pois, a OBRA FREN-
TENEGRINA uma afirmação cálida e violenta, se assim quizerem, de BRASILI-
DADE e de RAÇA” (AvdR, nº 49, 1935).
Percebe-se que a postura anti-racista promovida por este movimento não
fez surgir nenhuma oposição ou crítica ao projeto nacional, nenhuma tentativa
de delimitar-se dos valores da população branca que formava a classe dominante.
Entendia-se que havia um objetivo comum que era o progresso da nação; e defen-
dia-se a idéia de que o negro podia e devia dar a sua contribuição para o projeto
nacional. Os líderes avaliavam que, para atingir este objetivo, os negros teriam
de se educar, se “elevar” via um processo de “aprendizagem cultural”. O artigo 3º
dos Estatutos definiu os objetivos principais da FNB com as seguintes palavras:
“a elevação moral, intelectual, artística, técnica, profissional e física; assistência,
proteção e defesa social, jurídica, econômica e do trabalho da Gente Negra”.
As lideranças do movimento apostavam, portanto, numa participação ativa
no desenvolvimento da nação brasileira, que concebiam como parte da civilização
ocidental. O fato de que o catolicismo era encarado não apenas como um “elemen-
to civilizatório” valioso mas também como um fator unificador importante para
a criação de um espírito nacional torna compreensível a proximidade entre FNB
e Igreja Católica (vários líderes ocupavam funções importantes em instituições
da Igreja Católica). Fronteiras e delimitações rígidas foram erguidas, de um lado,
contra idéias esquerdistas (comunismo, socialismo) e, de outro, contra “estran-
geiros”, os maiores concorrentes no mercado de trabalho. É com este espírito que
o presidente Veiga dos Santos defendia a “INTEGRALIZAÇÃO ABSOLUTA, COM-
PLETA, DO NEGRO, EM TODA A VIDA BRASILEIRA — política, social, religio-
sa, econômica, operaria, militar, diplomática, etc.” e ressaltava que os esforços da

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Algumas considerações sobre estratégias identitárias da militância negra

FNB deveriam também constituir “a defesa acérrima das nossas tradições totais,
dentro da civilização ocidental” (AvdR, n° 49, 1935).
Assim, explica-se também a postura dos frentenegrinos em relação àquilo
que hoje entendemos como “cultura negra” (afro-brasileira). Sabe-se que os líde-
res faziam campanhas para afastar os seus afiliados do batuque, da macumba etc.
E, para isto, usavam, por vezes, uma linguagem que – segundo os padrões atuais
– poderia ser avaliada como “discriminatória”. Ao comentar os atos comemorati-
vos do 13 de Maio (Dia da Abolição) de 1933, A Voz da Raça formulou seu protesto
contra o “péssimo costume de certos festeiros em instituírem o samba, o batuque,
na frente das igrejas onde a nossa gente negra inconsciente é tratada a cachaça,
para no fim surgir toda sorte de escândalos que envergonharia a própria pena si
tentássemos descrevê-las”. E o autor do artigo reclama: “(...) é preciso acabar com
o bombo e o pandeiro porque isso por aí é um toque de guerra contra os frentene-
grinos” (AvdR, nº 10, 1933). Este tipo de apelo repete-se também num editorial do
jornal (29/06/1935): “homens de cor, quase na sua maioria, ainda continuam in-
diferentes ao desenvolvimento moral e intelectual da nossa raça, entretidos talvez
com coisas fúteis, como as danças exóticas – congo, samba, fox, etc.” (apud Do-
mingues, 2005, p. 226). Mais de uma vez os redatores d´ A Voz da Raça chegam a
responsabilizar os próprios negros pela situação precária em que se encontram: “O
que mais tem prejudicado a raça negra no Brasil, na sua marcha para o progresso”,
explica o artigo, “não é o que pensamos, EM PARTE, o descaso dos responsaveis
pelos destinos da patria, não. Os únicos culpados são os próprios negros que ainda
não sabem ser disciplinados, para o seu próprio bem. Sem disciplina, o homem é
como navio sem bússola: no mar ao sabor da tormenta” (AvdR, nº 12, 1933).
Queria ainda, neste contexto, chamar a atenção para uma outra questão. A
idéia da “democracia racial” não foi, durante muito tempo, alvo de crítica e de
ataques dos movimentos negros. Até o grande líder Abdias do Nascimento, que
militou em vários grupos (fundou o Teatro Experimental do Negro) e seria um
dos responsáveis pela disseminação de idéias pan-africanistas no Brasil, via ini-
cialmente na “democracia racial” um ideário que seria compartilhado por todos
os brasileiros e que valia a pena ser defendido. Numa Declaração de Princípios
emitida pelo Teatro Experimental do Negro, o Brasil é caracterizado como “uma
comunidade nacional onde têm vigência os mais avançados padrões de democra-
cia racial, apesar da sobrevivência, entre nós, de alguns restos de discriminação”.
E afirma-se ainda que “[é] desejável que o governo brasileiro apóie os grupos e

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as instituições nacionais que, pelos seus requisitos de idoneidade científica, in-


telectual e moral possam contribuir para a preservação das sadias tradições de
democracia racial no Brasil (...)”(apud Nascimento, 1982, p. 105, 106).
A revista “Quilombo”, órgão oficial deste movimento, mantinha, inclusi-
ve, uma coluna com o nome “Democracia Racial” e, num dos números (9 de de-
zembro de 1948), o próprio Gilberto Freyre publicou um artigo em que exalta a
importância da coesão nacional. “Devemos estar vigilantes”, escreve Freyre, “os
brasileiros de qualquer origem, sangue ou cor, contra qualquer tentativa que hoje
se esboce no sentido de separar, no Brasil, ´brancos´ de ´africanos´; ´ou ´euro-
peus´ de ´vermelhos´, de ´pardos´ ou de ´amarelos´, como se o descendente de
africano devesse se comportar aqui como um neo-africano diante de inimigos, e
o descendente de europeus como um neo-europeu civilizado diante de bárbaros”
(Quilombo, n°1, p. 8; 1948).
Foi no fim da ditadura, na época da redemocratização e da abertura políti-
ca que a militância negra conseguiu se organizar de novo e fundar importantes
organizações políticas. Mais que o frentenegrinos, os ativistas dos “novos” mo-
vimentos negros, criados a partir do final da década de 1970, representam um
grupo — ainda minoritário — de pessoas de cor de pele negra que fazem parte
da classe média urbana ou que buscam inserir-se nela. Na sua luta por ascensão
social, muitos negros passaram por experiências pessoais dolorosas de discrimi-
nação e exclusão. Para este grupo, com grau de educação formal acima da média,
tornou-se evidente que apostar na formação profissional e/ou intelectual não é
suficiente para ser tratado da mesma forma como pessoas com cor de pele clara
no mercado do trabalho.
Podemos perceber que nesta nova fase do movimento negro ocorre uma re-
orientação em termos de estratégias identitárias. Num primeiro momento, a atu-
ação do Movimento Negro Unificado (fundado em 1978) – o segundo grande mo-
vimento negro que se projeta com a proposta de unir todas as forças negras numa
única organização nacional –, seria marcada profundamente por ideais marxistas.
A orientação ideológica dos idealizadores do Movimento Negro Unificado (MNU),
juntamente com suas concepções de “raça”, “cultura” e “identidade”, fez surgir
uma idéia de negro que se distingue substancialmente do modelo propagado pela
FNB. Conseqüentemente, as interpretações a respeito da “história do negro” no
Brasil e as reivindicações políticas do MNU parecem, em muitos pontos, diame-
tralmente opostas ao ideário da FNB. Diferentemente dos movimentos dos anos

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Algumas considerações sobre estratégias identitárias da militância negra

20 e 30, as reflexões dos militantes do MNU partem de uma crítica ao regime polí-
tico-econômico do país. Não se concebe mais o próprio negro como “culpado” pela
sua situação desprivilegiada: ao entender o sistema capitalista como o responsável
pela miséria e pela marginalização de grande parte da população, a questão da
discriminação racial passa a ser tratada como um fenômeno diretamente ligado
à exploração da mão-de-obra negra, ao “sistema econômico explorador” e/ou à
“civilização branco-européia”.
Uma das primeiras ações do MNU voltava-se contra as comemorações do
13 de Maio – Dia da Abolição, que era ainda muito festejado pelos frentenegri-
nos, – porque entendia-se que o ato formal da abolição em nada mudou a situação
dos negros. Ao proclamar o dia da morte de Zumbi “Dia Nacional da Consciên-
cia Negra” buscava-se criar não apenas uma nova data simbólica da liberdade,
mas também um símbolo essencialmente negro. Como outra bandeira de luta o
MNU escolheu o ataque à “democracia racial”. Da mesma maneira que Florestan
Fernandes, os militantes têm argumentado que a noção da “democracia racial”
encobre a realidade discriminatória. Observa-se, portanto, que no discurso do
movimento negro ocorreu uma mudança substancial no que diz respeito à ava-
liação da relação entre população negra e projeto nacional. O MNU não esconde
sua relação conflituosa com as instituições do Estado e com a Igreja Católica. Di-
ferentemente da perspectiva nacionalista da FNB, o novo movimento busca agora
fortalecer laços com outros grupos diaspóricos e aposta na articulação de redes
negras transnacionais.
Mais recentemente, a partir da década de 1990, podemos perceber que a
argumentação de orientação marxista perde importância nas análises do MNU
e de outros grupos políticos negros. Um documento deliberado no X Congresso
Nacional do MNU (1993) revela bem esta tendência: “Para o MNU, RAÇA é o de-
terminante principal da classificação social de grupos e indivíduos no interior
da sociedade”. E continua: “No limite, é a Raça que permite entender melhor a
natureza das relações de classe em sociedades multirraciais, bem como os dese-
quilíbrios sócio-econômicos a nível regional e a distribuição de poder decorrente
destes arranjos” (Jornal Nacional do MNU, nº 22, 1993, p. 6, 7).
Em alguns textos, opõe-se explicitamente o projeto dos militantes negros
à “civilização branca”. Diferentemente da FNB, que se via como parte da “civi-
lização ocidental”, busca-se aqui um rompimento com a “civilização branca”. E
alguns militantes reivindicam explicitamente que se abandone modelos analíticos

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Andreas Hofbauer

marxistas para poder desenvolver uma “maneira negra de fazer política”. Escreve
Josafá Mota, militante de Pernambuco no órgão oficial do MNU: “O povo brasi-
leiro não passa fome; quem passa fome é parte desse povo, que somos nós, a civi-
lização negra. A outra parte, a branca, só a provoca. [...] Temos que entender que
somos legítimos representantes de nossa civilização, [e] que o Movimento Negro
não irá a lugar algum sem incorporar na sua prática a filosofia libertadora do Pan-
Africanismo (...) (Jornal Nacional do MNU, nº 18, 1991, p.11 - 1991).
Neste contexto, em que se busca fundamentar um “projeto político do povo
negro para o Brasil, do ponto de vista do povo negro” ocorre, portanto, mais uma
reavaliação fundamental, a qual refere à importância, ao papel das tradições cul-
turais negras no processo histórico do Brasil. Esta reavaliação já teve início, no
mínimo, em meados do século XX, mas é agora que ela se transforma em bandeira
política do movimento e se traduz em primeiras conquistas legais. Uma vez que a
“cultura negra” é interpretada como baluarte de resistência contra quase quinhen-
tos anos de opressão, a nova militância elabora estratégias que visam a defender
as diferentes tradições culturais negras (assim, os militantes empenham-se, por
exemplo, na defesa do candomblé contra os ataques das Igrejas Pentecostais e na
luta dos remanescentes dos quilombos por seus títulos de terra). A África ganha
grande importância simbólica, diferentemente da década de 1930 quando os fren-
tenegrinos voltavam, de certo modo, as costas a este continente.
Percebe-se, portanto, que os novos movimentos negros dos anos 1970, 1980
e 1990 já não defendem a “assimilação” e “aculturação”. A busca de delimitação
reflete-se também na criação de uma nova estética. Inspiradas em modelos afri-
canos e norte-americanos, são lançadas novas modas de roupa e, sobretudo, de
cortes de cabelo. No lugar das “cabelisadeiras” dos anos 30, surgem salões espe-
cializados em “cabelo afro” e tranças e penteados “rastafari”. Além disso, propõe-
se dar um nome africano aos filhos, em vez de batizá-los com nomes cristãos. Para
facilitar a escolha, foram elaboradas listas (publicadas em revistas e cadernos) que
indicam a origem e ainda a pronúncia correta dos nomes.
Penso que, na luta recente contra a discriminação racial, podemos destacar
dois marcos, que constituem também duas conquistas importantes. Em primeiro
lugar, a Constituição de 1988, que definiu o racismo como um crime inafiançável
e imprescritível e reconhece (artigo 68) aos remanescentes das comunidades de
quilombos a propriedade definitiva de suas terras (atribuindo ao Estado o dever
de lhes emitir os títulos respectivos). Um segundo grande marco foi certamente

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Algumas considerações sobre estratégias identitárias da militância negra

a Terceira Conferência Mundial contra Racismo e Xenofobia, ocorrida em 2001,


na cidade de Durban (África do Sul) e os seus desdobramentos políticos. Estes,
de certo modo, deram um impulso decisivo e, para muitos, inclusive militantes,
inesperado ao projeto de implantação de Ações Afirmativas nas universidades
brasileiras. Sabemos que desde 1998 tramita no Congresso Nacional o chamado
Estatuto da Igualdade Racial (Projeto de Lei 6264/05), que prevê uma série de
Ações Afirmativas, não apenas a implementação de sistemas de cotas (para ne-
gros e índios) em instituições de ensino superior. Determina, entre outras coisas,
a introdução da disciplina História Geral da África e do Negro no Brasil nos currí-
culos do ensino fundamental e médio, reivindicação esta que já foi sancionada em
2003 pela lei 10.639. Além disso, o Estatuto da Igualdade Racial prevê ainda uma
quantidade mínima (20% do total) de imagens de pessoas negras em programas
televisivos e anúncios publicitários, propõe medidas para garantir a liberdade re-
ligiosa às religiões de matriz africana, que vêm sofrendo veementes ataques so-
bretudo das igrejas pentecostais, e reforça também o direito à titulação das terras
remanescentes de quilombos, já garantido pela Constituição de 1988.
Ao olharmos para a história recente do movimento anti-racista, para as es-
tratégias de luta dos movimentos negros, podemos talvez concluir o seguinte: a
idéia de unir todas as forças, como o MNU pretendia inicialmente, não se concre-
tizou. Há vários fatores que levaram a uma certa fragmentação do projeto inicial.
Além de divergências de ordem ideológica, a militância negra passou por trans-
formações que deram uma nova qualidade ao movimento. Trata-se de processos
que afetaram, de certo modo, todos os movimentos sociais. Podemos constatar
que uma boa parte da militância se profissionalizou. Muitos trabalham hoje em
organizações não-governamentais, outros atuam em partidos políticos (câmaras
de vereadores ou de deputados, Secretarias de Estado); não são poucos os que se
tornaram professores universitários ou advogados (vários deles atuam, inclusive,
como especialistas em assuntos de discriminação racial).
Percebe-se, portanto, que – e isto é um dado que me parece fundamental
para o futuro de toda a questão racial – está-se firmando cada vez mais uma
“intelectualidade negra”, a qual ocupa cargos importantes em diferentes posi-
ções estratégicas das instituições brasileiras. E como reflexo, notamos que esta
ainda minoria de intelectuais negros está conseguindo articular as suas reivin-
dicações junto aos organismos governamentais, está conseguindo transformar
pelo menos algumas de suas reivindicações em políticas públicas, evidentemen-

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Andreas Hofbauer

te com as mais diversas dificuldades, com avanços e retrocessos, enfrentando


contra-reações, etc.
Observa-se também que a posição de onde fala esta militância mudou em
relação aos militantes da década de 1970, que se encontravam, na sua grande
maioria, fora das instituições brasileiras. Naquele momento, não era incomum, no
meio da militância, ouvir quem questionasse e muitas vezes criticasse abertamen-
te aqueles companheiros que apostaram em inserir-se no mundo acadêmico, em
partidos políticos, prefeituras, Secretarias de Estado, ministérios etc.
De certa forma, a reorientação ideológica pela qual uma série de militan-
tes passou –distanciando-se de críticas sistêmicas inspiradas no marxismo para
abraçar projetos multiculturalistas –, parece-me ser um reflexo deste processo de
transformação. Observa-se que na década de 1990 agrega-se e, em alguns momen-
tos, sobrepõe-se à reivindicação do direito à igualdade uma outra reivindicação: a
do reconhecimento da diferença. Fortalece-se uma atitude em sintonia com orien-
tações multiculturalistas que, de certo modo, incorporam matrizes liberais no que
diz respeito à política social.
Em outras palavras, acredita-se na possibilidade de conquistar espaços dentro
da sociedade capitalista para, desta maneira, empurrar o “seu” grupo em “condições
de igualdade” em relação ao grupo dominante, “condições de igualdade” pensadas,
em primeiro lugar, em termos socioeconômicos. É um caminho que aposta sobretu-
do em projetos normativos e, para isto, investe numa espécie de “engenharia social”
a ser efetivada por intervenções institucionais, por políticas do Estado.
Esta aposta, de certo modo, deixa em segundo plano as históricas discus-
sões sobre as “causas” da discriminação, as peculiaridades do racismo brasileiro
ou ainda a relação entre capitalismo e racismo. Parece que passou a “fase revo-
lucionária” dos anos 1970 e 1980, quando não poucos militantes desconfiavam
do “sistema” e desacreditavam que “as instituições do Estado” fossem o locus
adequado para conduzir o combate à discriminação racial. O que parece predo-
minar hoje – na nova militância – é uma atitude mais realista, mais pragmática
que alguns entendem talvez como “reformista”. Depois de uma longa história em
que vários projetos ideológicos e diferentes estratégias identitárias foram experi-
mentadas, parece que as forças do anti-racismo voltam-se hoje para a elaboração
de “projetos pontuais, mas viáveis”, ou seja, procuram apoiar medidas de alcance
delimitado que possam trazer resultados concretos, mesmo que se reconheça que
não resolverão, de vez, toda a complexidade do racismo.

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Algumas considerações sobre estratégias identitárias da militância negra

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