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Você é o que você come

Uma pesquisa mostra que a preferência alimentar das bactérias do sistema digestivo pode definir nosso
paladar. Elas escolhem nosso cardápio?

Você é o que você come” é um velho


ditado. Ele lembra que nossa alimentação
diz muito a respeito de quem somos, de
como estamos e de como ficaremos no
futuro. Aquilo que comemos pode fazer
bem ou mal a nossa saúde, reza a crença
popular. Agora, uma pesquisa pioneira
mostra que o ditado é mais verdadeiro do
que imaginamos. O tipo de bactéria que
compõe nossa flora intestinal está
diretamente relacionado a nossa dieta. Até
que ponto os micróbios que vivem dentro
de nós influenciam o que gostamos de
comer?

Dieta
Uma mulher come um sanduíche de cogumelos com salada de folhas. A flora intestinal dos vegetarianos é dominada por bactérias Prevotella, que
ajudam a digerir os vegetais (Foto: Getty Images )

Nossa digestão é o trabalho coletivo de colônias de bactérias. São dezenas de espécies de


micro-organismos e trilhões de bactérias que povoam o sistema digestivo. A começar pela boca,
cuja saliva contém bactérias que iniciam o processo de digestão do alimento mastigado e
engolido. Uma vez no estômago, os ácidos estomacais e outras bactérias completam a
decomposição do alimento que passa então ao intestino. É lá onde se concentram as bactérias
do sistema digestivo. São elas que vão ajudar o organismo a absorver os nutrientes da comida ou
dispensar o que não será usado, na forma de fezes. “Do ponto de vista genético, falar no ser
humano como uma unidade indivisível está caindo em desuso”, diz o biólogo paranaense
Christian Hoffmann, de 34 anos, da Universidade Federal de Goiás, em Goiânia. “Não somos
apenas humanos. Somos metaorganismos. Somos um ecossistema complexo que dividimos com
a flora bacteriana que habita nosso corpo, ou microbioma.”
Em abril, uma equipe multinacional de geneticistas descobriu que a composição do microbioma
que povoa nosso sistema digestivo não é uniforme. Descobriu-se que a humanidade está dividida
em três grupos, segundo a bactéria que prevalece em cada um deles: a Prevotella, a Bacteroides
e a Ruminococcus. Aparentemente, a divisão não obedecia a nenhuma ordem étnica, regional,
cultural, sexual, econômica ou etária. Não se sabia qual era a razão para essa divisão. A resposta
veio num estudo publicado na revista Science na semana passada. O microbioma é dividido
conforme sua predileção alimentar.
Geneticistas da Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia, Estados Unidos, revelaram que existe
uma relação direta entre a dieta de cada um e a composição da fauna bacteriana de seu sistema
digestivo. Nos vegetarianos, a bactéria dominante do microbioma é a Prevotella, especializada
em digerir carboidratos e açúcar de origem vegetal. Entre os carnívoros, é a Bacteroides, que
digere proteína e gordura de origem animal e laticínios. “Há um terceiro grupo cuja participação é
marginal”, diz Hoffmann, que é coautor da pesquisa. “São pessoas que têm na dieta o consumo
elevado de álcool” e de gorduras poli-insaturadas (encontradas em peixes de água fria ou óleo de
girassol e canola). Neste grupo, a bactéria dominante é o Ruminococcus. Os três grupos de
bactérias não são excludentes. Todos eles habitam o intestino de qualquer ser humano. No
entanto, só um é dominante, dependendo da dieta de cada indivíduo.

O estudo foi feito com um grupo de estudantes cuja dieta foi monitorada. Por dez dias, os
carnívoros foram submetidos a uma dieta vegetariana. Os vegetarianos foram obrigados a comer
carne. “Basta um dia da nova dieta para a flora começar a mudar,” diz Hoffmann. “Ao fim dos dez
dias, a mudança foi sensível. Mas não suficiente para destronar a bactéria dominante. Mudar de
um grupo para outro pode levar meses ou anos.”
A pesquisa despertou uma questão. As bactérias influenciam nosso paladar? Ou nossa dieta é
que determina nossa flora intestinal? “É a pergunta que fazemos todos os dias no laboratório”, diz
Hoffmann. Se as bactérias comandam nosso paladar, isso poderia explicar por que é tão difícil
mudar os hábitos alimentares. Quem passou por um processo de reeducação alimentar sabe
como é complicado largar o refrigerante, o doce, a massa, a cervejinha, as frituras e a picanha,
em troca da saladinha e do frango grelhado. Exige disciplina e força de vontade.
Se a culpa for mesmo das bactérias, novos tratamentos, que mudem a composição da flora
intestinal, podem ajudar nas dietas. “Daqui cinco anos, será possível mapear o microbioma de um
paciente e desenvolver tratamentos sob medida para mudar sua composição da flora”, diz
Hoffmann. Outra possibilidade seria usar tratamentos de flora intestinal para eliminar a
intolerância à lactose. A lactose é o açúcar do leite. O sistema digestivo dos bebês é capaz de
digerir a lactose. Mas, quando a criança desmama, a maioria perde essa capacidade. É a
intolerância à lactose. Segundo Hoffmann, essa condição poderá ser atenuada com um
tratamento à base da bactéria Bacteroides especializada em digerir laticínios. “As bactérias
consumirão a lactose, que causa mal-estar, eliminando os sintomas.” No futuro, tratamentos à
base da bactéria Prevotella poderão ajudar os diabéticos a eliminar o açúcar que não conseguem
digerir. Outra hipótese é combater o alcoolismo reduzindo a composição de Ruminococcus no
sistema digestivo. “Mas isso, por enquanto, é uma possibilidade esotérica”, diz Hoffmann.
 

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