Você está na página 1de 5
0 AcE 2. Rio hk feruirc OSTOSn0 200 0 [ aaa UMA DIFICULDADE NA ANALISE DAS MULHERES: ADEVASTAGAO DA RELAGAO COM A MAE" ‘Marie-Filéne Brousse™ ‘A pritica da psicanalise coloca em evidéncia um real clinico que ‘se manifesta no retorno insistente ao mesmo lugar. Este jd era o proce- dimento de Freud no seu “Bate-se numa crianga”. Nos tratamentos de seis unalisandos diferentes, cle constarava a presenga de um mesmo enunciado correlacionado a uma mesma obtengéo de gozo sexual ‘Meu trabalho toma igualmente seu ponto de partida na repet varios tratamentos, de um mesmo elemento: a devastacio mi tal como ela vem povoar a transferéncia.’ Essa questio se revela como ‘uma dificuldade na andlise das mulheres, jéassinalada por Freud, ‘Nos momentos dificeis do processo analitico nos quais arelasgo ddevastadora com a mie vem ao primeiro plano, questio do semblan- teécentral, A firmula de Jacques-Alain Miller, “o ato {analitico] parte do semblante, porém ele ndo tolera 0 sembl: tamente a posigéo subjetiva dos sujeitos cujos tratamentos tropecam na devastagao, “ Teso origsslmente publicado em: Oma, reve du Champ freiea, xP 0, Pais: Navaric-Sui, 2002, pp, 93-0, ~ Membro da Heoe de la Cause Seudienne ~ ECR. " Abordei a questio em uma expos fia na ECF durante «Jornads dos ‘AE, Recebi precios indicasdes de Eric Laurent e Pierre Nevea, » Mile le 20/01/2000", em Quand le enblat sclon.,extoe ‘brepartrios pare as Jornada de escudo ds ECF-ACF em 21 e 22 de outubro de 20, [A vacilagda do semblante € um trago essencial desses momentos ndo e de crise sob transferéncia, o ana‘ista ¢ a ant consisténcia de um teal insuportivel. Colocado a nu, o sem ‘encontra transformado em men-ira ou ¢ rebaixado a um enquadre ue se quebra sob os assaltos desse real, desqualificando a prépria fangio da fala, A zona da devastacio é assim um lugar cletivo devacilagio dos semblantes, o que em si constitui um problema. ‘A “devastagio” do steito feminino, que Lacan menciona em “O Atur- na mulher, [..J a relagdo com sta Jada a0 amor de transferéacia, Freud, utilizando outros termos, aborda essa questio no final da sua obra, Fle sublinha virias versa importincia, que diz haver subes- timado, da relagéo precoce mae-filha. Ele liga a essa relagio primor- dial o ponto de rochedeo de todaanilise de mulher no peniseid, o que Ihe valeu depois os clamores da turba feminista. Podemos reler tam- ‘bém a luz da problemétice da devastagio o artigo tardio de Melanie Klein sobre a inveja. Os exempios sio numerosos na cliniea; os dados que Dominique Laurent resine na expressio “Rainha da noite” (ver ‘em Omnicar? n? 50, seu texto “Désidentification d'une femme”) vem trazer um elemento novo eo problema na sua referéncia ex twansferéncia com 0 analista, ‘Ap6s numerosos anos de trabalho analitico rigorosamente con- dduzido pelas analisandas, trakalho que produziu, de maneira incon- testivel, certas modificagées da posigao subjetiva, ocorre que a devas- a, seja de modo novo, seja de sempre seguindoa veia da l6gi- Bsa experiéncia ques- tagio faga sua entrada na relagéo ‘maneira mais desnudada, obvame! ca precedentemente desenvolvida pelo sui tiona necessariamente 0 desejo do analista tal como Lacan introduzity > Lacan, J. 0 Atardio®, Bn Ostor eros. Rio de Janeiro: Jorge Zabar sites, 2003, p. {IMA DIFICULDADE NA ANALISE DAS MULITERES| este conceito em seu texto “A diregio do tratamento [...", na parte intitulada “Como agir com seu ser?”. A comunicagio de Dominique Laurent assimcomo a narrativa de certas analisandas, que vieram me procurar apéso rompimento do lago transferencial com seu homem ou mulher) que havia assumido para elas a figura da devas glo, mostram < que ponto a part sta Além dos elemen- tos anedéticos analisiveis em termos de contratransferéncia e, por- de resisténcia do an 1 essa dificuldade assinala um ponto de clinice qu exige do anata um erxtament sie, tog et ral. Por que hi antagonismo entre esse tipo de relacio com a mae, do per Lacan de devastago e ja ider ado sob outras ex- [A devastago seria entéo uma das modalidades do penionid tal como ele se manifestarié na andlise. Certamente Freud fez do penineidasaida do complexe de Fdipo na menina no momento da fase fica: “Ela nota o pénis, grande ¢ bem visivel de um irméo ou companheiro de brincadei- vas imediatamenteo reconhece como aéplica superior de eu préprio ‘rgio, pequeno ¢ escondido ¢, a partir de entio, cai vitima da inveja do penis| wbequendoa teme quer t-o”‘E convenient dar 20 termo “eseandido” todo o seu peso. A menina o tem 20 seu medo eé sob esse modo que o ter entra para ela na problemétia do feminino, problemitice que também tes sa mie. Os objets precosos da me cstio escondidos: armétios fechados, gavetas secretas, objetos fora da ‘toca ciumentamente guardados pela mae para seu prprio gozo. Froud faz sexaalidade feminina derivar da inveja do pénis, sublinhando as suas “miltipas conseqincias psiquicas, de grande alcance”. A primeira conseaiiéncis éa“cicatriz: trata-se da marca do nareisismo feminino, Podemos ver nela a marca de fibrica da relagdo queuma mulher mantém como corpo feminino,colocando aferida, a fends, no cerne da imagem sob a forma do que asutura. A segundaéo ime: segundo Freud, éa marca defibrica da fantasia “Bate-se numa tianga”, por ele atribusda ness texto sujeitoferninino como “ref duo da fase fica”, Segundo ele, 0 ponto recoastruido na anilise é 0 ‘pai como aquele que zat e, consequentemente, fantasia faz passar da rie 20 pai. A tercera conseqléncia se refere & relagio com a mie a falta da filba, da qual ela suposta- ‘mente goza: trata-se da “devasteglo”. A quarta é a reagio contra 0 designada como responsivel onanismo que, seguado Freud, abre a via para a sexualidade feminina deacordo com 0 famoso deslocamento dos objetos: trata-se do “deslo- camento” dos objetes fermi recendo-se mais através da metonimia do que da meéfora¢ da subst 1s, deslocamento no €a troca, escla- muito. Noartigo seguinte sobre “A sexualidade feminina”®, Freud tam- bem acentua a raivaem relagéo A mae, constituida por diversas censu- ras centre as quais a de sedugio, explicando a intensidade dessa raiva pela intensidade doamor quea precede e pela decepcio. Para Freud,a dcvastagio é portarto estritamente correlacionada ao destino do falo ‘Bo mesmo temo “inveja” que Melanie Klein retoma em seu ‘volume Jnveja e grutidéo para caracterizar 0 ponto de impossivel na ‘se com um pessimismo que se apéia em uma faléncia originéria da sclagéo com o Outro materno,faléncia de acento parandico: “morder 0 Em: Otrat compas, Rio de Janeiro: Image, 1968, wl. XXE, pp. 251-279. 206 a [UMA DIFICULDADE NA ANALISE DAS MULIIERES seio que nutre”, morder a mio que autre ¢, fazendo is entradaa relacio com o Outro no qual o sujeito poderia se sustentar. ses diferentes elements ireudianos si refomados de manei- ra depurada por Lacan no Senindro 5 particularmente nos capstuos XIV, XV ¢ XIV! Ele coloca novamente em questdo a fase filica, na seafdnia da sua modalizago dos rts tempos do Edipo, Oenquadreé de sfds stud: aquele do deseo que ¢ ordenado pela ei do si cane, na medida em que ele“puricipa de urna aventura primo aque ext nel inserit e que se articla, que sempre relacionamos« algumacoist de original que te pasou n infiniae qu fo eclcad, [...] A aventura primordial do que se passou em torno do desejo infan- til, do desejo essencial, que € 0 desejo do desejo do Outro, ou desejo de ter destado, O que se insreve no susito ao longo dessa aventura, permancce fae bjacente”.” A relago com esse Outro primordial que i a “economia das gratificagées, dos cuidados, das fixagdcs, das agressoes” — reconhecemos nisto Melanie Klein —e centraro destino do sujeito na “dependéncia primordial do sujeito em relacdoao desejo do Outro. )]Eis o que vai sendo inscrito, ao mesmo tempo ¢& proporgao da histéris do sujeito, cm sua estrutura: as peripé- cas, os avatares da constituigio desse desejo, na medida em que ele é submetido a lei do desejo do Outro”* Eassim que Lacan reformula a questio da relagio primordial com a mie: parao sujeito, “o que conta é fazé-lo reconhecer, em relagao 0 que é um x de desejo na mac, de que modo ele foi levado a se tornar ou néo aquele que tende a esse desejo, a se tornar ou nfo o ser deseja- do”. Tornar-se ou nio 0 ser desejado, este é um dos aspectos da aposta. ‘Lacan, J: O Semin, lw 5: As formes do inconsiemte. Rio de Janeiro Jorge Zar edits, 1998. ” Rem, p. 282 * hem, p. 282 207 Feria ‘O sujeito procura sabero que orienta o desejo da mie e calcula af seu ‘ugar, Essa dialética comporta um terceiro, o pai, “presenca de um per~ sonagem, desejado ou rival”. Esse terceiro termo permite ou no & crianca ser uma “crianga demandada ou no”; além da cativacao imaginéria, algo permite @ crianga ser significada. Esse algo € um simbolo, um significante por meio dc qual o sujeito se faz reconhecer. Lacan retoma entio a questio do penisrid neladiferenciando trés modalidades: 1)no sentido da fantasia, deseo de que oc 6 amputagéo simbélica de um objeto imagingrio; 2) inveja do pénis do pai, ou sea, fustracao de um objeto real jadeum filho do pai,ou seja, privacio real relativa a um objeto simbolico. Para cada uma dessas ‘modalidades o agente da falta tem sua importncia, A crianga entra naestrutura significante As avessas da passagem da mulher na dialética social como objeto. Dai a dedugio de Lacan: ou a crianga abandona esses objetos, fazendo de si mesma objeto de ‘roca, ou ela guarda esses objetos, além do seu valor de troca. O falo € centio a barreira’ satisfardo de ser o objeto exclusivo do dese Formagio do ideal do en, por um lado, gozo constituindo 0 objeto que €amie, por outro, Tanto em Freud como em Lacan, trata-se de um modelo que recebe valores singularss segundo a hist6ria do sujeito. No entanto, «em todos os casos possiveis, arelacdo mie-filha continua a ser centra- lizada na reivindicacao félica Nessa perspectiva,o que é a devastacio? A mée, subsistindo como ‘0 Outro inatingfvel pela troca filica e pela lei simbélica, permanece ‘como 0 objeto imico deuma crianga tinica. Uma resposta con: ser o fetiche da mae. Porém esse fetiche € sempre supé Outro traumético (ou seja, o Outro da satisfagio sexual) é completo. ‘Uma outra resposta coasiste em arrancar da mée o que de qualquer forma néo entrara na toca que ndo existe e que, a0 ser arrancado, se converte em um dejeto LUMA DIFICULDADE Na ANALISE DAS MULETERES Em todos 0s casos, a devastagio esté relacionada & impossivel, alguma coisa na mae tendo escapado a lei simbél que everia ter feito dela objeto na estrutura da troca, Porisso, cla tende a Petmanecer como um Outro real, ela 6 interpretada como Outro do ozo. Ela convocs entdo seja a fusdo impossive, seja a perseguigao, Em cada sujeito que responde 2 essa conjuntura, a origem, ou ainda © que Lacan nomeia de aventura primordial do que se passou em torao do desejo ini il, que ésempreo mesmo, é diferente. Nessa jo provém de uma faltaque tocou, no que Lacan chamade triad a fala A devastagto se situa no campo da relacio entre 0 sujeito ¢ a ‘mic, 0 tito campo incluindo o Outro da linguagem e relagéo com a fala. Esse campo, chamado por Lacan de “desejo da mae”, que deve ser ‘entendido segundo as duas modalidades do genitivo em francés, com- Porta uma zona obscura, nao saturada pelo Nome-do-Pai, e como tal ‘sem litrite definido, Niose trata portanto de reduzira devastagio a relago dual com ‘a méc. Freud jé havia tomado posigdo sobre esse ponto, mas Lacan veio esclarecer ainda mais as coisas ao demonstrar que a telacio mie- filha € de saida situada no campo esse ponto, paisa va na direydo de uma relagio au ‘mie © a erianga permanece uma via que, Por ser sem safda porque falsa, na> é menos freqitentada Desde o Fort-Da, o Outro esté 14, Ele também e ‘Augustiniana freqlientemente citada por Lacan, uma vez que a referén- cia A nic-palavra introduz ali a prépria ordem da linguagem. A sin- sulatidade nio deve se portanto buscada a partir de uma relagio que escaparis an discurso, e que, porisso mesmo, estariaem contato direto com 0 real, o que levaria necessariamente a identificar devastagio e Psicose. Ela impele sobretudo a especificaro tipo de emergéncia si 209 Penso neste comentério de Lacan: rao como wa inguagem. Com uma rave: oqus ction esa? a mancira pela qual alinguagem emerge desaida em um ser hurano.E, ‘emtltima andlise,o que nos permite falar deestrutura”? Ele prossegue: “As Linguagens tm algo em comum ~talvez nem todas, uma vez 2 rio podemos conhecé-las todas ¢ talvez heja excegies ~ mas isso verdade nas linguagens que encontramos ao tratar dos sujeitos que vem nos procurar, As vezes cles guardaram a lembranca ce ‘uma primeira Tinguagem, diferente daquela que cles acabam falando”.Certamente a continuagéo do texto e sua referéncia ao artigo de Freud sobre fetichismo indicam que ele pensa nas linguas estrangeiras, mas também podemos dara isso sus radicalidade considerando que todo sujeito lou ‘nguagem, mesmo que seja na mesma lingua. A devasta~ fo se articula & mancira particular pela qual @inguagem emergiu em 10, Ela toca portanto nos confins da inscrigio simbélica: € minha primeira hipétese. Os tratamentos nos quais me instrue me per como ela traz a marea da re- Essa emergéncia pode se dar sob a forma do insulto. Jean-Claude Milner'® escreveu a respeito do insulto que “o sujeito € convocado a pértar um nome cujo contetido de propriedade se resume apenas 20 Ele é apenas aquele que se nomcia ato de proferit”, E acrescenta: Fulano, ¢ s6 0 é no instante em que é nomeado. A propriedade nfo subsiste fora da nomeacio”. Vemos a falta de perenidade, ¢ nos os timos com 0 equivoco que desliza nessa falta de pai, de um nome desse que no tem outro recurso Seno 20 objeto para alcangar uma ccerta estabilidade. Assim é possivel escutar 0 objeto em diversas injé- dans les universités aoed-américaines" 1 Mies J-C. Les mone indi. Pais: Seip. 108, 240 LUMA DIFICULDADE NA ANKLIS® Das MULEIERES rias, como: “bost basta, ver se subs scanagemt, merda”, etc. Ao invés de um ponto de ira fixidez de um objeto de gozo que bloqueia, impede, a deriva metaforica dos significantes-mestres, e conduz.0 su- jeito ao ser de objeto que ele foi para o Outro: negagio da falta-a-sere intimagio a ser um objeto rebotalho, Emergéncia sob forma da critica da linguagem apreendida pela crianga num outro critica que retorna como insulto. Emergéncia sob forma de uma recusa: “Isso que esta diante de mim, nao é mais minha filha’, que riscou do mundo dos vivos, para 0 sueito visado, a filha ‘querida da mamde que ela descobriria ter sido no momento em que deixou de sé-lo. Emergéncia ainda sob a forma do imperativo do cio de um dedo colocado sobre a boca, que se associa a0 golpe que veio ‘castigar o que permanece fora da fala. ‘Oponto comum dessas emergéncias, por outro lado diferentes e tendo dado lugar a dest distintos, é em primeiro lugar a conexiio dessas experi ‘como sexual como traumético, portanto com a experiéncia pulsional do sujeito. Em todas essas ocorréncias, a fala do Outro materno esti associada & descoberta de uma experiéncia de gozo. Mas ~ segunda caracteristica ~ essa emergéncia que tem como pano de fundo um 4g0z0 sexual traumético, ou seja, de inscrigao do corpo por um siguifi- cante, se realiza no momento em que surge a diferenca dos sexes, no scio da funcio félica, sob a forma de um enigma, Enfim, essa emergén- cia consagra a crenga inabalivel na onipoténcia de um Outro nao castrado, de uma mae escapando falta da castracio e que apresenta a0 sujeito uma alternativa mortal: ou 0 dejeto ou a reintegracio pela genitora do seu produto, Em cada sujeito respondendo a essa conjuntura, “a aventura primordial do que se passou em torno do desejo infa Para Freud, a devastacto esti estritamente correlacionada ao destino do falo materno na menina. A categoria da demanda, diferen-

Você também pode gostar