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Bien

cinqüenta anos de
internacional de são paulo
ARACY AMARAL
é historiadora da arte,
professora titular
aposentada da FAU/USP,
tendo sido diretora do
Museu de Arte
Contemporânea da USP. É
autora de, entre outros,
Tarsila – Sua Obra e Seu
Tempo.

Bienais ou
Da impossibilidade de
reter o tempo

nal
ARACY AMARAL
M
elancólica a exposição comemo- infernal de ruídos, quando o visitei. Inda-
rativa das Bienais de São Paulo gando dos vigilantes, informaram-me que
no Parque Ibirapuera, mostra que depois da inauguração a retiraram. Soube,
percorri constrangida pelo nível, recentemente, que a recolocaram em local
em museografia espantosa, ver- definitivo frente à entrada do Prédio das
dadeiro parque de diversões, em Bienais.
cuja entrada em letras garrafais Referente a Ciccillo havia apenas um
repetia-se em cartazes o nome do “verbete”, na visualmente confusa Crono-
jornal patrocinador do evento sobrepondo- logia dos 50 anos, em sala que abrigava em
se estrondosamente à entidade que se montagem improvisada e pobre (a lembrar
pretendia celebrar – a Bienal de São Paulo as despretensiosas embora corretas expo-
por seus 50 anos. Se essa exposição expressa sições do MAM em seus primeiros tempos
o que significa nossa criatividade atual nas da Rua Sete de Abril, há mais de 50 anos!),
artes visuais, então salto fora. Não pode obras do acervo precioso do Museu de Arte
ser, temos possibilidade de formular a apre- Contemporânea da USP, cria também de
sentação de nossos valores fora do caos, ou Ciccillo, pois resultante da doação da cole-
paralelo a ele, com dignidade, sem perda ção do Museu de Arte Moderna de São
de fervor ou qualidade. Na verdade, esse Paulo à Universidade – doação equivoca-
evento não passou de uma exposição da, com certeza, parece-me hoje, depois de
coletiva de arte contemporânea, e nada ter dirigido esse museu e constatado a indi-
mais. Até artistas de elevado nível com bons ferença da Universidade por uma ativação
trabalhos, uns poucos, diluíam-se na geléia cultural na área de artes –, no momento em
geral dessa mostra, e nem deveriam ter que Matarazzo desejou se liberar do fardo
aceito dela participar. É difícil a um artista de carregar duas instituições – o MAM e a
rejeitar convite para participar de uma Bienal, e optando por esta última. Eviden-
exposição: é a possibilidade de mostrar seu temente por seu prestígio e repercussão
trabalho, que é sua vida, sua trajetória. internacional.
Porém, freqüentes vezes, por gesto político, Ciccillo afinal mereceria uma homena-
por ética, por um mínimo de coerência, gem mais reflexiva, sobre seu papel como
deveriam declinar quando o evento é mecenas, apesar de seu autoritarismo, de
comprometedor. Uma artista que aceitou sua mão-de-ferro a discordar e entrar em
participar confiou-me ter sido o convite para choque com os vários diretores do Museu
o evento projetado como uma exposição de de Arte Moderna de São Paulo – Dégand,
“arte, arquitetura e design”. E não essa Milliet, Mendes de Almeida, Lourival,
salada inqualificável que vimos de vídeos Pedrosa – que se sucederam nos quinze anos
cansados no tempo e instalações e projetos de existência da entidade (1948-62). Ele
tridimensionais de gigantismo que não dizia claramente e o ouvi dizer textualmen-
conseguem justificar sua presença. te, farto de polêmicas de artistas, mani-
Essa mostra se intitulou pomposamente festos, debates e discussões: “Faço a Bie-
“Bienal 50 anos/ Uma Homenagem a nal de qualquer jeito, com críticos ou sem
Ciccillo Matarazzo”, o mecenas criador do críticos, com os artistas ou sem os artistas”.
Museu de Arte Moderna de São Paulo e das Ele detinha o poder, o contato com as esferas
Bienais, mas, na verdade, nenhuma home- que tornavam possível a preparação das
nagem lhe era prestada nesse evento, fora Bienais, e exercia esse poder com a aisance
a intenção ou o título. Pensei que houvesse de um administrador experimentado frente
uma exposição de documentação histórica, a seus empreendimentos. Mesmo que no
a lembrar um tempo, mas nada. Parece que fundo não tivesse interesse algum pela arte
um livro está sendo previsto. E nem a es- dita “moderna”. “Venha”, me disse certa
cultura, ou “estátua” de Ciccillo, no sentido vez, “diga-me o que quer dizer isto aqui”,
mais acadêmico do termo, que estaria lá, e assinalava incrédulo com sua bengala
não comparecia no espaço tumultuado, aquela arte estranha que se expunha.

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No entanto, possuía um faro, uma in- seu continente, e em que vivíamos um perí-
tuição, uma familiaridade com as coisas da odo otimista de desenvolvimentismo.
cultura. Não foi por acaso presidente do Mas não se creia que as Bienais surgiram
Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), o pri- bem-vindas por todos, desvestidas de
meiro teatro profissional no Brasil a partir polêmicas. Ao contrário. Aliás, São Paulo
de fins dos anos 40, assim como foi fundador já possuía o perfil para um evento interna-
da Companhia Cinematográfica Vera Cruz. cional desse porte. O contingente imigra-
É indubitável que a presença sedutora, a tório em nosso estado, inédito no Brasil por
seu lado, de uma figura como Yolanda sua multiplicidade étnico-cultural, já o
Penteado foi fundamental. Mesmo apesar previa. O nacionalismo internacionalista do
de sua evidente frivolidade, ele lhe deve, modernismo dos anos 20 igualmente já o
ou ela foi credora por seu savoir-faire, seu anunciara, assim como os contatos de Flá-
Francisco
interesse pelas coisas da cultura, sua faci- vio de Carvalho no III Salão de Maio de
lidade comunicativa com o meio artístico 1939 com a presença de artistas internacio- Matarazzo
nos primeiros anos do MAM e na implan- nais, abstratos, das mais variadas origens, Sobrinho e
tação das Bienais internacionais. Yolanda, significando um prenúncio seguro. E, no-
que por vezes viajava com Maria Martins, vamente, o crescimento urbano da capital,
Yolanda
contatava artistas e comissários estrangei- sua efervescência enquanto iniciativa, só Penteado
ros na Europa, era embaixadora cultural do
Brasil, com carta de apresentação de Getú-
Arquivo de Arte da Fundação Bienal de São Paulo
lio Vargas para esse fim, na articulação com
vários países, para a II Bienal, tal como
hoje atuam os curadores. Ciccillo teve
também papel importante na possibilida-
de da aquisição do Sítio Santo Antonio de
São Roque, monumento de nosso patri-
mônio, pelo Iphan em seus primeiros anos.
Assim como foi o dinâmico presidente da
comissão do celebradíssimo IV Centenário
da cidade de São Paulo em 1954. Como
não homenageá-lo, e ao casal Penteado-
Matarazzo Sobrinho devidamente?
Depois de implantado com êxito o
Museu de Arte Moderna (que estrategica-
mente se vinculou ao MAM do Rio de Ja-
neiro, conforme a orientação do primeiro
diretor Léon Dégand, para a possibilidade
de fazer circular exposições vindas de fora
do país), pouco importa hoje se a idéia da
criação das Bienais foi-lhe assoprada por
Danilo Di Prete, conforme recentemente
se levantou, ou se resultou de uma “compe-
tição” entre o MAM-SP e o Masp de Cha-
teaubriand dirigido por Bardi que também
teria idéias similares. O importante é que
Ciccillo teve a coragem de topar a emprei-
tada, nesse pós-guerra economicamente
interessante para o Brasil, que exportava
muito café e outras matérias-primas, im-
plantava indústrias, atraía europeus qualifi-
cados desesperançados com a guerra em

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podia apontar nessa direção. E não esque- sou a ocorrer bienalmente. Começávamos
çamos, também, a “guerra fria”. Em depoi- a ver, em casa, o que se passava na cena de
mento tomado a dona Yolanda Penteado em arte do mundo. E assistíamos a um fenô-
1982 – ao começar a dirigir o MAC da USP meno curioso: o que uma Bienal mostrava,
–, perguntei-lhe das razões que teriam internacionalmente, víamos aparecer nas
impulsionado Ciccillo a fundar o MAM-SP tendências de muitos dos artistas brasileiros
e indaguei se ocorrera alguma pressão po- – e latino-americanos que regularmente
lítica por parte de Nelson Rockefeller nesse vinham visitá-la, como os argentinos e uru-
sentido. Ela respondeu-me com simplici- guaios – na Bienal seguinte. Atropelou,
dade que era evidente que havendo um mu- desfigurou a trajetória de nossa arte? Ou
seu aqui implantado que traria exposições dinamizou nosso meio? A resposta depen-
internacionais da mais alta e diversa quali- dia da postura de cada artista, de sua posi-
dade, abrindo janelas, os artistas locais ção política ou apolítica em plena época da
naturalmente se distanciariam de idéias po- guerra fria. Não se tratava apenas de uma
líticas que somente os faziam conglomerar- luta entre pró-abstracionismo e pró-figu-
se em debates prejudiciais... Não me re- rativismo. Já no ano mesmo da implantação
cordo literalmente de suas palavras, mas o da primeira Bienal, em dezembro de 1951,
teor de sua resposta foi claramente esse. a mídia impressa – Folha da Noite, Cor-
Logo, havia razões políticas também reio Paulistano, O Cruzeiro – não deixou
para o apoio de Rockefeller ao simbolica- de registrar debates a propósito do surgi-
mente doar, pelo MoMA, pouco mais de mento da Bienal. Assim, ao mesmo tempo
uma dezena de obras ao MAM-SP nascente. que artistas jovens de esquerda, reacioná-
Doações que nem se comparariam à qua- rios às novas tendências, alegavam que a
lidade das obras que posteriormente o casal primeira Bienal era vista como “infame pro-
Yolanda Penteado-Ciccillo Matarazzo paganda da arte abstrata desligada de nossa
doaria ao Museu cuja coleção depois cairia vida e das nossas tradições” (Manifesto
no regaço da USP, que ao largo de quarenta Conseqüência), o crítico carioca Marc
anos nunca soube avaliar de fato o valor do Berkowitz já se interrogava: “que influência
acervo precioso que lhe chegara às mãos. E teve ou terá a Bienal sobre a cultura e o
que nunca teve a visão para a criação de um ambiente artístico do País?”.
Instituto de História da Arte através dos Mario Pedrosa, nosso grande crítico dos
diversos reitores à frente da USP, para a anos 50 e 60, porém, não tem dúvidas em
formação de historiadores de arte para o afirmar, em relação à exposição do Trianon,
país, conforme já havia se pronunciado em São Paulo, em 1951, que esse evento
sobre sua necessidade para a Universidade “marca uma data na evolução das artes no
de São Paulo o crítico Mario Pedrosa em Brasil. Trata-se de um acontecimento de
1963. Assim como posteriormente confi- âmbito internacional e com repercussões
gurou-se como uma batalha – perdida – para culturais incalculáveis. Não somente para
historiadores como Walter Zanini e Ulpiano o Brasil como para nosso continente e
Bezerra de Menezes. mesmo para a velha Europa”. E acrescenta:
“Para nós, brasileiros, sua importância é
decisiva”. Pois, segundo ele, a Bienal trouxe
uma verdadeira “revisão de valores”, pois
A INSURGÊNCIA CONTRA A estávamos, em 1951, atrasados trinta anos
no que respeita às tendências artísticas (“A
IMPLANTAÇÃO DAS BIENAIS primeira Bienal-I”, in Jornal do Brasil, 27/
out./1951, apud Pedrosa, Dos Murais de
As Bienais do Museu de Arte Moderna Portinari aos Espaços de Brasília).
de São Paulo trouxeram uma mudança fun- Essa afirmação vem colocar a impor-
damental em nosso meio artístico. O are- tância da Bienal lado a lado do marco que
jamento das idéias e das informações pas- significou a Semana de Arte Moderna e o

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Modernismo entre nós nos anos 20, como sível, não se pode ser, a outras culturas.
alteradora de tendências em nosso meio Pode-se apreciar uma qualidade criativa,
artístico. Por outro lado, os artistas favorá- ou artesanal, e encontrá-la diferenciada.
veis ao abstracionismo, o grupo de Walde- Mas excepcionalmente ocorre a empatia, a
mar Cordeiro, com o Manifesto Ruptura ponto de se sentir motivado por ela. Às
(1952), que prenunciava o movimento de vezes, pode-se até sofrer a influência de
arte concreta depois da forte delegação suíça outra linguagem, ou forma expressiva,
à I Bienal, expressava seu entusiasmo pela como os cubistas o foram pela máscara
chegada de novos parâmetros de expressão africana e os impressionistas pela gravura
distantes do figurativismo fatigado. Por- japonesa. Porém são intercâmbios naturais
tanto, as Bienais não surgiram com a unani- na história das culturas e não significam
midade de todo o meio artístico. Lembro- que ocorra regularmente uma comunhão
me de já ter registrado o dito por Paulo ou um desejo de articulação de um meio
Mendes de Almeida, de que o mal que as artístico com o outro. Apenas uma emula-
Bienais causaram à arte no Brasil só é ção, ou a apreciação de um profissional
comparável ao bem que elas trouxeram. surpreso por outro em quem percebe uma
Talvez sejam hoje inúteis esses co- instigação ou a mesma qualidade. Mas
mentários. As Bienais vieram e tiveram seu inexiste o diálogo.
papel. Abriram janelas, trouxeram dados Em debate sobre a II Bienal de São Paulo
novos, se bem que não existiu nunca – a e seu regulamento, os artistas se revolta-
não ser na última década – a recíproca de vam até em relação à concessão de prêmios:
que nossos artistas viam a arte feita no segundo eles, esses prêmios “tiveram por
exterior e a arte brasileira passava a ser vista objetivo desviar os artistas da realidade na
pelos críticos e diretores de museus do qual vive mergulhado o artista” . Assim,
exterior. Inverdade. Sempre, regularmente, finalizavam que “o regulamento da II Bienal
fora uns poucos críticos interessados em do MAM de São Paulo não oferece garantias
ver o que se passa aqui, artistas e críticos aos artistas, como elementos de uma cate-
estrangeiros sempre vieram para ser vistos, goria profissional, e nem à cultura, como
nunca para ver. Nunca lhes interessou, a expressão do progresso artístico nacional”.
não ser, como disse, aqueles que tinham O que viria acalmar a muitos e entu-
uma relação particular, pessoal, com um siasmar a outros tantos seria a realização da
grupo ou alguns artistas. A maior parte, em própria II Bienal, grandiosa, verdadeiro
geral até hoje, chega dez ou quinze dias museu moderno vivo, com obras desde o
antes da abertura da Bienal, monta suas cubismo até Henry Moore, De Kooning,
salas, dá uma ou outra entrevista e freqüen- Calder, Kokoschka, Mondrian, trazendo a
temente vai embora antes mesmo da aber- um país novo e inculto, porém atrevido,
tura do evento. Não lhes interessa, sim- como o Brasil, a famosa “Guernica” , grito
plesmente. Isso não ocorre somente em São de guerra de Picasso, e, assim, levantando
Paulo. Em qualquer parte do mundo o artista polêmicas, não mais sobre a legitimidade
somente se interessa por seu trabalho. Cabe da realização das Bienais, porém já sobre a
aos críticos, teóricos e historiadores, a estes arte mesma. Ou seja: a Bienal, enquanto
sim, o olhar interessado pelo conjunto ou iniciativa, evento, tinha vencido a parada.
pelos artistas em geral. Na verdade, como Nos anos 70, contudo, Matarazzo come-
considerava Ulpiano Bezerra de Menezes çou a se apoiar não mais em críticos ou
em recente simpósio do CBHA no Rio de personalidades respeitáveis, como Wanda
Janeiro, não existe uma estética universal. Svevo, que faleceu tragicamente em aci-
É uma falácia que sempre nos enfiaram dente aéreo no Peru ao viajar para contato
garganta abaixo. Se você não possui o re- para a Bienal, porém em pessoas de sua
pertório não tem como decodificar o que vê amizade, como Rodrigues Alves, total-
de outros países. Além do mais, não pos- mente despreparado para conceber uma
suindo o mesmo repertório, você não é sen- Bienal. Assim é que nos anos 70 chegou-se

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México, que por sua vez despertaria muita
polêmica. Quando convidada a ser curadora
da Bienal seguinte, em 1980, por Luís
Villares, enfrentei um dilema frente às di-
ficuldades financeiras da entidade: a Bienal
Latino-Americana tinha sido para valer ou
fora apenas um evento esporádico? Debatia-
me também, frente a meu interesse pela
expressão artística do continente e suas ca-
racterísticas, pensando em como projetar a
produção de qualidade da América Latina,
e transformar – por que não? – o evento
Bienal de São Paulo em um evento latino-
americano, com artistas convidados inter-
nacionais e observadores críticos de todos
os continentes que se reuniriam em São
Paulo, em vez da indiferença frente às salas
do Ceilão, da Indonésia, do Egito, da
Iugoslávia, da África do Sul, do Canadá,
como um must que nunca poderíamos di-
gerir exatamente pela dificuldade ou im-
possibilidade de ter um repertório comum
(embora para Matarazzo Sobrinho o impor-
tante tenha sido sempre ostentar o maior
número de bandeiras na fachada do prédio
da Bienal, e ver publicado em manchetes
“12 quilômetros de arte”, por exemplo,
Arquivo de Arte da Fundação Bienal de São Paulo pelos jornais).
Como resultante dessa encruzilhada,
minha idéia foi a convocação de uma reu-
a organizar uma Bienal cujo “tema”, di- nião de críticos e historiadores de todos os
Calder,
gamos assim, foi trazer em salas especiais países da América Latina para que, num
II Bienal de São artistas que tinham sido os grandes prêmios debate de três dias, se discutisse e votasse
Paulo, 1953 das Bienais até aquela data. Ou seja, uma a vocação, o destino das Bienais de São
Bienal celebrativa, de retrospecto, e não Paulo: tornar-se uma Bienal Latino-Ame-
assinalando as novas tendências emergentes ricana como referido acima ou decidida-
na arte contemporânea. mente permanecer uma Bienal Interna-
Nas décadas de 50 e 60 as Bienais de cional como até então fora (esquecendo-
São Paulo tinham sido realmente a vitrine, nos de uma seqüência para a Bienal da
para os artistas do Brasil e da América América Latina). Foi esforço penoso e
Latina que para cá vinham, do que se difícil. No debate sugerido, uma das alter-
passava em arte no mundo. No entanto, os nativas que eu sugeria figurava igualmente
anos de ferro da ditadura, anos 70, por essas – embora precisasse posteriormente ser
razões mesmas apontadas, foram, a meu apoiada pelo grande Conselho da Bienal
entender, os “anos baixos” das Bienais de em votação – uma modificação da perio-
São Paulo; o evento decaiu em qualidade, dicidade das Bienais: por que não passar a
e se tornou morno. Surgiu nesse período, ser trienal ou quadrienal, posto que para a
por outro lado, como fruto de inquietações maioria dos países era tão difícil finan-
de vários lados, em 1978, a Bienal de Arte ceiramente arcar com suas participações?
Latino-Americana, sob a curadoria de Juan O resultado não foi favorável a minhas
Acha, crítico e teórico peruano radicado no idéias pois críticos e animadores culturais

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fundamentais como Glusberg, da Argen- que jamais teríamos acesso por nossos pró-
tina, ou Gloria Zea, da Colômbia, uniram- prios meios. Por que se aboliram os prê-
se numa frente em prol de uma Bienal mios? Sob a alegação de que os júris de
Internacional. O comentário, um ano de- premiação das Bienais, e a própria entidade,
pois, de Juan Acha, foi que eu quisera ser ficavam muito à mercê do mercado de arte
muito democrática ao convidar personali- que exercia pressão para beneficiar seus
dades de todas as facções, mas fora politi- artistas. Na verdade, a partir de então,
camente inábil. O desgaste não me permi- privaram-se nossas coleções de arte brasi-
tiu ter vontade de continuar à frente da leiras de possuir artistas (como os do mo-
Bienal como curadora da Bienal de 1981 e vimento pop norte-americano, e depois os
demiti-me do cargo – ou seja, perdi a contemporâneos), posto que nossos meios
oportunidade de organizar uma Bienal, econômicos nunca poderiam arcar com
porque tudo tem seu tempo na vida, e me esses custos. No entanto, como vimos nas
recusei a realizar essa empreitada. Me últimas Bienais de São Paulo, nos anos 90,
arrependi durante um tempo, hoje não o um marchand como Marcantonio Villaça
lamento (minha paixão estaria concentrada também foi mencionado como influindo na
no que pude realizar no MAC-USP durante presença de seus artistas – e na verdade, os
o quadriênio 1982-86). melhores do país – e, portanto, exercendo
Luís Villares convidou então para esse igualmente um certo tipo de pressão não
evento Walter Zanini, que organizou uma muito diferenciada daquela rejeitada nos
Bienal com múltiplas curadorias, um cole- anos 60 quando se tratava de aquisição de
giado internacional que repartiu entre si as obras.
diversas áreas de ação, postura que seria
seguida, a da curadoria compartilhada, nas
edições seguintes da Bienal nos anos 90,
em franca recuperação enquanto evento QUAL O SENTIDO DE UMA BIENAL
Pablo Picasso,
vivo.
Mas a Bienal já mudara também quando, HOJE? “Guernica”,
em fins dos anos 60, eliminara os prêmios (detalhe),
de aquisição, que permaneciam no Brasil e Hoje a Bienal é indiscutivelmente um
beneficiavam o MAM de São Paulo e depois evento internacional aguardado, tanto como
II Bienal de São
o MAC-USP, seu herdeiro, com obras a a Bienal de Veneza ou a Documenta de Paulo, 1953

Arquivo de Arte da Fundação Bienal de São Paulo

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Kassel. Porém proliferaram as Bienais. Não fato por seus autores/artistas.
é somente Veneza e São Paulo. Mesmo No entanto, por ser um evento esperado,
depois de encerrada a Bienal dos Jovens foi lamentável o adiamento da Bienal de
em Paris vigente nos anos 60, surgiram São Paulo, pela primeira vez em sua história,
bienais de Havana à África do Sul, de exatamente quando completaria 50 anos de
Istambul a Sidney, e hoje várias cidades existência de edições ininterruptas. Des-
tanto do Hemisfério Sul como do Norte respeitoso, politicamente incorreto, inde-
querem sediar uma Bienal, internacional pendente de ser a Bienal hoje mais ou menos
ou regional (como a de Cuenca, no Equador, relevante para o meio artístico.
de Lima, no Peru, ou Porto Alegre, do O nomadismo artístico pressupõe simul-
Mercosul, de Lyon na França, como Pon- taneidade de aparições, o artista e o curador
tevedra ou Valência, na Espanha, e como a internacional em trânsito constante por
Trienal de Yokohama, hoje). aeroportos, este último produzindo textos
A partir de inícios dos anos 80 a Bienal rápidos, que digita em apartamentos de
adquire um novo caráter internacionalista, hotel, enviando-os por e-mail, repetindo a
por ser palco – ou vitrine, novamente – das escolha de artistas que reaparecem nas
tendências globalizantes a que assistimos, sucessivas Bienais do mundo, concebendo
com as transvanguardas, com o retorno da “idéias” expositivas mais que projetando
pintura por toda a parte, como um movi- obras de arte de autoria singular. Afinal,
mento único, de vocabulário similar; porém talentos não surgem a todo momento, e os
suplantada depois da segunda metade dessa “clássicos” da contemporaneidade são
década de 80 pelas instalações, fotografia, aqueles mesmos que todos nós conhecemos
videoarte e seus congêneres, e, entre nós, e estão há anos nas Bienais, passando-nos
pelo quase desaparecimento da pintura. Os a impressão de que a renovação é parca,
artistas jovens brasileiros dos anos 80 e 90 difícil.
passaram a ser observados com maior O Brasil é um país rico de artistas. Na
cuidado por sua criatividade, improvisa- América Latina é sem dúvida o país onde
ção, senso de humor, recorrência inusitada ocorre mais renovação. Ainda assim, todos
a novos materiais e sua manipulação, com- sabemos dos nomes que continuam sendo
petindo com artistas do Primeiro Mundo, convidados – quase os mesmos de sempre
mantidas sempre as limitações de projeção – para os eventos mais badalados do mun-
que se impõem aos artistas de países do, por uma razão muito simples: são
emergentes como o Brasil. conhecidos. Há sempre implícito, nos
Percebe-se aos poucos, contudo, que curadores, o que pode ser natural, uma certa
pouca coisa há de novo no meio das artes. insegurança, ou o temor pelo desconhecido.
É só olhar o catálogo de “Information”, Assim, é melhor apostar naqueles que já
exposição ocorrida no MOMA, em Nova foram ratificados internacionalmente.
York, no verão de 1970 – e da qual par- Na verdade, longe de possuir um caráter
ticiparam brasileiros como Oiticica, Cildo inovador como pólo informativo, como há
Meirelles, Barrio, Guilherme Magalhães 40 ou 50 anos, todas as Bienais e Docu-
Vaz. A partir desse catálogo, hoje lembran- mentas hoje existentes se tornaram, pela
ça viva, percebemos que, do ponto de vista característica global da época, verdadeiros
formal, a arte teve pouco a avançar, se salões. Ou exposições coletivas internacio-
pensarmos em termos de conquistas for- nais. Se a informação rola com quase
mais. Como se tudo já tivesse sido realizado. simultaneidade em todos os campos da vida
Cabe aguardar apenas que uns poucos de nosso tempo, sua presença pressionante
iluminados tragam contribuições inéditas, compromete também a reflexão sobre arte,
o que vemos com rara freqüência. Ocorrem, que deixa de existir, pela própria neces-
isso sim, apropriações, remanejamentos, sidade da informação mais recente.
muita coisa reformulada, anteriormente Os curadores se associam, repartem suas
criada, mesmo com desconhecimento desse atividades e viagens culturais, fazem con-

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tatos e estabelecem articulações para Georges Pompidou (claro que sob a ótica
eventuais ações futuras, ou presença, em francesa, a desejar provar inequivocamen-
encontros de teóricos. Os artistas, por outro te que os franceses estavam lado a lado, ou
lado, no mundo de hoje, permanecem à simultaneamente com os Estados Unidos,
parte, desvinculados dos eventos, a não ser nas experimentações do pop, neo dada ou
como matéria-prima bruta, focalizados ou nouveau réalisme, em inícios dos anos 60).
contatados através de suas obras existentes No entanto, exposição impecável, sobre-
em museus, coleções particulares ou mes- tudo do ponto de vista museográfico,
mo em seus próprios ateliês, mas apenas mostrando a alta tecnologia a serviço da
como fornecedores da matéria-prima. Des- cultura, sem alardes.
faz-se, dessa forma, a ligação crítico-artista, O que seria necessário é que esses
como existira em outras décadas para a eventos fossem visíveis em outras capitais
reflexão ou troca de idéias. Já as entidades, do país, que houvesse um circuito interno
mesmo se acéfalas culturalmente falando, para sua circulação – o que evidentemente
mas desde que possuam ligações com pressupõe patrocínios em cada local – pois
patrocinadores de eventos, são as que exer- temos várias capitais com equipamento
cem a parcela mais dinâmica do processo condizente com o acolhimento que se impõe
de montagem de um evento do mundo das para exposições de nível internacional. Por
artes visuais. A esses produtores de eventos, outro lado, é raríssimo vermos hoje artistas
em geral financistas, cabe o levantamento participando de uma mesa-redonda, em
de fundos e, embora não sejam intelectuais, debate sobre sua obra ou movimento,
a escolha de curadores para seus desígnios, dialogando com críticos. Ocorreu um di-
para a concepção e seleção de obras para vórcio, implantou-se um paralelismo de
seus eventos. funções que somente pulverizou a riqueza
A Bienal hoje é apenas um evento a mais, da discussão sobre a criação artística con-
e não “o evento”, como ocorreu há 50 anos. temporânea. Talvez seja um sinal de nosso
Porque devemos reconhecer que o Brasil tempo. Talvez seja uma circunstância da
hoje está de certa forma inserido em certo qual não possamos escapar.
circuito de exposições internacionais, o que Hoje exibem-se grandes produções, e
não deixa de ser um avanço, nem que todas não mais realizações reflexivas ou revolu-
essas mostras sejam excepcionais. Mas cionárias. O escândalo é cada dia mais raro.
podemos hoje ver “em casa”, pelo menos Porque, além do mais, independentemente
em duas capitais do Brasil, como São Paulo da teatralização das exposições, do recurso
e Rio de Janeiro, eventos impensáveis há à cenografia impositiva a fim de atrair
50 anos, fora do âmbito exclusivo da Bienal. público e, assim, justificar os investimentos,
Prova inegável dessa afirmação é a chocante mesmo hoje é só o espanto
sofisticada exposição “Parade”, agora no terrificante do mundo diante da televisão –
Parque Ibirapuera, antológica mostra sobre ou ao vivo – com a queda das duas torres do
a criatividade no século XX nas artes World Trade Center em Nova York a 11 de
visuais, a partir do acervo do Centro setembro último.

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