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O mal: um desafio à filosofia e à

teologia Paul Ricœur

Genève: Labor et Fides, 2004, trad. P. Simpson


para o curso “A literatura e o mal”, Unesp/2019.

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Que filosofia e teologia encontrem no mal um desafio inigualável, os grandes pensadores de


uma e outra disciplina concordam em confessar, por vezes, com grande lamúria. O importante não é
essa confissão, porém a maneira com que o desafio, ou o fracasso, é recebido: como um convite a
pensar menos ou como uma provocação a pensar mais, ou a pensar de outro modo?
O que o problema assinala é um modo de pensar submetido à exigência de coerência lógica,
isto é, igualmente de não contradição e de totalidade sistemática. É esse modo de pensar que
prevalece nas tentativas de teodiceia, no sentido técnico do termo, que, tão diversas quanto sejam as
respostas, concordam em definir o problema em termos vizinhos, tais como estes: como podemos
afirmar em conjunto, sem contradição, as três proposições seguintes: Deus é todo-poderoso; Deus é
absolutamente bom; no entanto, o mal existe. A teodiceia aparece, então, como um combate a favor
da coerência, em resposta à objeção segundo a qual apenas duas dessas proposições seriam
compatíveis, mas nunca três. O que é pressuposto pelo modo de colocar o problema não é
questionado, isto é, a própria forma proposicional na qual os termos do problema são expressos e a
regra de coerência a que a solução deveria supostamente satisfazer.
Por outro lado, não se leva em conta o fato de que essas proposições exprimem um estado
“onto-teológico” do pensamento que só foi atingido num estágio avançado da especulação e sob a
condição de uma fusão entre a linguagem confessional da religião e um discurso sobre a origem
radical de todas as coisas, na época da metafísica pré-kantiana, como demonstra perfeitamente a
teodiceia de Leibniz. Não se leva em conta, além disso, que a tarefa de pensar — sim, de pensar
Deus e de pensar o mal diante de Deus — talvez não esteja esgotada pelos nossos raciocínios
conformados à não-contradição e por nossa inclinação à totalização sistemática.
Para mostrar o caráter limitado e relativo da posição do problema no âmbito argumentativo
da teodiceia, é importante, em primeiro lugar, mensurar a amplitude e a complexidade do problema
com os recursos de uma fenomenologia da experiência do mal; em seguida, distinguir os níveis do
discurso percorridos pela especulação sobre a origem e a razão de ser do mal; enfim, relacionar o
trabalho do pensamento suscitado pelo enigma do mal com as respostas relativas à ação e ao
sentimento.

I. A experiência do mal: entre a repreensão e a lamentação

O que produz todo o enigma do mal é colocarmos num mesmo termo, ao menos na tradição
do Ocidente judaico-cristão, fenômenos tão díspares, numa primeira aproximação, quanto o pecado,
o sofrimento e a morte. Pode-se mesmo afirmar que é na medida em que o sofrimento é
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constantemente tomado como termo de referência que a questão do mal se distingue daquela do
pecado e da culpabilidade. Antes de afirmar, portanto, o que aponta, no fenômeno do mal cometido
e no do mal sofrido, em direção a uma enigmática profundidade comum, é preciso insistir em sua
disparidade de princípio.
Com o rigor do termo, o mal moral — o pecado, em linguagem religiosa — designa o que
faz da ação humana um objeto de imputação, de acusação e de repreensão. A imputação consiste em
atribuir a um sujeito responsável uma ação suscetível de apreciação moral. A acusação caracteriza a
própria ação como violação do código ético dominante na comunidade considerada. A repreensão
designa o julgamento de condenação em virtude do qual o autor da ação é declarado culpado e
merece ser punido. É aqui que o mal moral se mistura com o sofrimento, na medida em que a
punição é um sofrimento inflingido.
Tomado igualmente com o rigor de seu sentido, o sofrimento se distingue do pecado por
seus traços opostos. Diferentemente da imputação que centraliza o mal moral num agente
responsável, o sofrimento sublinha seu caráter essencialmente sofrido: não o fazemos surgir; ele nos
afeta. Daí a surpreendente variedade de suas causas: adversidade da natureza psíquica, doenças e
enfermidades do corpo e do espírito, aflição produzida pela morte de entes queridos, perspectiva
assustadora da própria mortalidade, sentimento de indignidade pessoal, etc.; em oposição à
acusação que denuncia um desvio moral, o sofrimento se caracteriza como o puro contrário do
prazer, como não-prazer, isto é, como diminuição de nossa integridade física, psíquica, espiritual. À
repreensão, enfim, e sobretudo, o sofrimento opõe a lamentação; pois se o erro torna o homem
culpado, o sofrimento faz dele vítima: é o que a lamentação declara com vigor.
Assim, o que convidaria a filosofia e a teologia, apesar dessa irrecusável polaridade, a
pensar o mal como raiz comum do pecado e do sofrimento? É, antes de tudo, o extraordinário
imbricamento desses dois fenômenos: de um lado, a punição é um sofrimento físico e moral
acrescentado ao mal moral, quer se trate de castigo corporal, de privação de liberdade, de vergonha,
de remorso; é a razão pela qual chamamos a culpabilidade de pena, termo que se sobrepõe à fratura
entre o mal cometido e o mal sofrido; de outro lado, uma causa principal do sofrimento é a
violência exercida sobre o homem pelo homem: na verdade, fazer mal é sempre, de forma direta ou
indireta, fazer mal a alguém, fazê-lo sofrer; em sua estrutura relacional — dialógica — o mal
cometido por um encontra sua réplica no mal sofrido por outro; e é nesse ponto de interseção maior
que o grito de lamento é o mais agudo, quando o homem se sente vítima da maldade do homem;
disso são testemunho tanto os Salmos de Davi quanto a análise de Marx da alienação resultante da
redução do homem ao estado de mercadoria.
Somos levados a um grau mais longe, na direção de um único mistério de iniquidade, pelo
pressentimento de que pecado, sofrimento e morte exprimem de maneira múltipla a condição
humana em sua unidade profunda. De fato, atingimos aqui o ponto em que a fenomenologia do mal
é sucedida por uma hermenêutica dos símbolos e dos mitos, com estes oferecendo a primeira
mediação de linguagem a uma experiência confusa e muda. Dois índices que pertencem à
experiência do mal apontam na direção dessa unidade profunda. Pelo lado do mal moral, a
incriminação de um agente responsável isola de um fundo obscuro a zona mais clara da experiência
de culpabilidade. Esta encobre em sua profundidade o sentimento de ter sido seduzida por forças
superiores, que o mito não terá pena em demonizar. Ao fazê-lo, o mito apenas exprimirá o
sentimento de pertencer a uma história do mal, sempre já presente para cada um. O efeito mais
visível dessa estranha experiência de passividade, no próprio centro do mal-agir, é que o homem se
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sente vítima enquanto é ele mesmo culpado. Apagamento equivalente da fronteira entre culpado e
vítima se observa partindo do outro polo. Já que a punição é um sofrimento que se julga merecido,
quem sabe se todo sofrimento não é, de uma maneira ou de outra, a punição a um erro pessoal ou
coletivo, conhecido ou desconhecido? Essa interrogação, que integra até em nossas sociedades
secularizadas a experiência do luto, de que falaremos ao final, recebe o reforço da demonização
simultânea que faz do sofrimento e do pecado a expressão dos mesmos poderes maléficos. Esse é o
fundo obscuro, nunca completamente desmitificado, que faz do mal um enigma único.

II. Os níveis de discurso na especulação sobre o mal

Não podemos nos voltar às teodiceias propriamente ditas, preocupadas com a não-
contradição e a totalização sistemática, sem ter percorrido vários níveis de discurso de onde se
percebe uma racionalidade crescente.

1. O nível do mito

O mito é seguramente a primeira transição maior. E isso por inúmeras razões. Em primeiro
lugar, a ambivalência do sagrado enquanto tremendum fascinosum, segundo Rudolf Otto, confere ao
mito o poder de assumir tanto o lado obscuro quanto o lado luminoso da condição humana. Em
seguida, o mito incorpora a experiência fragmentária do mal em grandes narrativas de origem de
alcance cósmico, no qual a antropogênese se torna uma parte da cosmogênese, como testemunha
toda a obra de Mircea Eliade. Ao afirmar como o mundo começou, o mito assinala como a condição
humana foi engendrada sob sua forma globalmente miserável. As grandes religiões preservaram
dessa pesquisa de inteligibilidade global a função ideológica maior, segundo Clifford Geertz, de
integrar ethos e cosmos a uma visão englobante. É por isso que o problema do mal se tornará, em
estágios ulteriores, a crise maior da religião.
Mas a função de ordem do mito, ligada, segundo Georges Dumézil, a seu alcance cósmico,
tem por corolário e por corretivo a profusão de seus esquemas explicativos. O domínio do mito,
como atestam as literaturas do Antigo Oriente, da Índia e do Extremo Oriente, se revela como um
vasto canteiro de experimentação, mesmo de jogo, com hipóteses as mais variáveis e as mais
fantásticas. Nesse imenso laboratório, não há solução concebível relativa à ordem inteira das coisas,
portanto ao enigma do mal, que não tenha sido tentada. É para controlar essa infinita variedade que
a história comparada das religiões e a antropologia cultural estabelecem tipologias que distribuem
as explicações míticas entre monismo, dualismo, soluções mistas, etc. O caráter abstrato desssas
taxonomias, proveniente de um inevitável artifício metodológico, não deve mascarar as
ambiguidades e os paradoxos, frequentemente calculados, que a maior parte dos mitos cultivam,
precisamente no momento de explicar a origem do mal, como testesmunha a narrativa bíblica da
queda, aberta a várias outras explicações para além daquele que prevaleceu no Ocidente cristão,
principalmente por influência de Santo Agostinho. Essas classificações abstratas não devem
mascarar as grandes oscilações, no próprio interior do domínio mítico, entre representações que
confinam por baixo com narrativas legendárias e com o folcore, por cima, com a especulação
metafísica, como se vê nos grandes tratados do pensamento hindu. Entretanto, é por seu lado
folclórico que o mito recolhe o lado demoníaco da experiência do mal, articulando-o numa
linguagem. Inversamente, é por seu lado especulativo que ele abriu caminho para as teodiceias
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racionais, acentuando os problemas de origem. A questão está colocada para as filosofias e as
teologias: de onde vem o mal?

2. O estado da sabedoria

Pode o mito responder inteiramente à expectativa dos humanos que agem e sofrem?
Parcialmente, na medida em que vem ao encontro de uma interrogação contida na própria
lamentação: “até quando?”; “por quê?”, para a qual o mito traz apenas a consolação da ordem,
recolocando o lamento do suplicante no âmbito de um universo imenso. Mas o mito deixa sem
resposta uma parte importante: não apenas por quê?, mas por que eu?. Aqui a lamentação se torna
queixa: pede-se que a divindade preste contas. No âmbito bíblico, é uma implicação importante da
Aliança que ela acrescente à dimensão da partilha de papel, aquela do litígio [procès]. Ora, se o
Senhor está em litígio com seu povo, este também está em litígio com seu Deus.
Imediatamente o mito deve mudar de registro: é preciso não apenas contar as origens, para
explicar como a condição humana em geral se tornou o que ela é, mas argumentar, para explicar por
que ela é assim para cada um. É o estado da sabedoria. A primeira e a mais tenaz das explicações
oferecidas pela sabedoria é aquela da retribuição: todo sofrimento é merecido porque ele é a
punição de um pecado individual ou coletivo, conhecido ou desconhecido. Essa explicação tem ao
menos a vantagem de levar a sério o sofrimento enquanto tal, como polo distinto do mal moral. Mas
a explicação se esforça rapidamente para anular essa diferença, fazendo da ordem inteira das coisas
uma ordem moral. Nesse sentido, a teoria da retribuição é a primeira das visões morais do mundo,
para retomar uma expressão que Hegel aplicará a Kant. Ora, a sabedoria, porque ela argumenta,
deveria transformar-se numa imensa constestação consigo mesma, ou num debate dramático dos
sábios no interior de si mesmos. Pois a resposta da retribuição não poderia satisfazer, sabendo que
uma ordem jurídica começava a existir capaz de distinguir os bons dos maus e dedicando-se a medir
a pena em função do grau de culpabilidade de cada um. Ao olhar de um sentido até rudimentar da
justiça, a repartição presente dos males só pode parecer arbitrária, indiscriminada, desproporcional:
por que este em vez deste outro morre de cancer? Por que a morte das crianças? Por que tantos
sofrimentos, em excesso com relação à capacidade ordinária de suportar dos simples mortais?
Se o livro de Jó ocupa na literatura mundial o lugar que conhecemos é, antes de tudo,
porque assume a lamentação que se tornou queixa, e a queixa levada ao nível da contestação.
Tomando como hipótese da fábula a condição de um justo que sofre, de um justo sem falhas
submetido às piores provações, leva ao nível de um diálogo poderosamente argumentado entre Jó e
seus amigos o debate interno da sabedoria incitado pela discordância entre o mal moral e o mal-
sofrimento. Mas o livro de Jó talvez nos comova ainda mais pelo caráter enigmático, e talvez
deliberadamente ambíguo de sua conclusão. Diante de uma teofania final que não traz nenhuma
resposta direta ao sofrimento pessoal de Jó, a especulação permanece aberta a várias direções: a
visão de um criador com desígnios insondáveis, de um arquiteto cujas medidas são incomensuráveis
frente às vicissitudes humanas, pode sugerir ou que a consolação é adiada escatologicamente, ou
que a queixa é deslocada, fora de propósito, para o olhar de um Deus, senhor do bem e do mal
(segundo a fala de Isaías 45-7: “Eu formo a luz e crio as trevas, eu faço a paz e crio o mal), ou a
própria queixa deve passar por uma das provações purificadores que evocaremos na terceira parte; a
última palabra de Jó não é: “Assim retiro minhas palavras, me arrependo sobre a poeira e sobre as
cinzas”? Que arrependimento, senão um arrependimento da própria queixa? E não é em virtude
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desse arrependimento que Jó pode amar Deus por nada, em oposição à aposta de Satã no início do
conto no qual o debate é encaixado?
Nós reencontraremos essas perguntas na terceira parte, e nos limitaremos temporariamente a
seguir o fio da especulação aberta pela sabedoria.

3. O estágio da gnose e da gnose antignóstica.

O pensamento não teria passado da sabedoria à teodiceia se a gnose não tivesse elevado a
especulação ao patamar de uma gigantomaquia, onde as forças do bem são engajadas num combate
sem trégua com os exércitos do mal, com vistas a uma liberação de todas as parcelas de luz
aprisionadas nas trevas da matéria. É a resposta de Agostinho a essa visão trágica — na qual todas
as figuras do mal são assumidas num princípio do mal — que constitituiu um das bases do
pensamento ocidental. Sem tratar aqui do ponto de vista temático do pecado e da culpabilidade, nós
nos limitaremos aos aspectos da doutrina agostiniana que dizem respeito ao lugar do sofrimento
numa interpretação global do mal. É à gnose, com efeito, que o pensamento ocidental é tributário
por ter colocado o problema do mal como uma totalidade problemática: Unde malum? (de onde
vem o mal?).
Se Agostinho pode se opor à visão trágica da gnose (que classificamos normalmente entre as
soluções dualistas sem nos darmos conta do nível epistemológico específico desse dualismo muito
particular), é, antes de tudo, porque pôde tomar de empréstimo à filosofia, ao neoplatonismo, um
aparelho conceitual capaz de minar a aparência conceitual de um mito racionalizado. Dos filósofos,
Agostinho retém apenas que o mal não pode ser tomado por uma substância, porque pensar “ser” é:
pensar “inteligível”, pensar “um”, pensar “bem”. É, portanto, o pensar filosófico que exclui todo
fantasma de um mal substancial. Em contrapartida, uma nova ideia do nada surge, a do ex nihilo,
contido na ideia de uma criação total e sem sobras. Ao mesmo tempo, um outro conceito negativo,
associado ao precedente, toma lugar, o de uma distância ôntica entre o criador e a criatura, que
permite falar de uma deficiência do criado enquanto tal; em virtude dessa deficiência, torna-se
compreensível que criaturas dotadas de livre escolha possam “declinar” [décliner] longe de Deus e
“inclinar” [incliner] na direção do que possui menos ser, na direção do nada.
Esse primeiro traço da doutrina agostiniana merece ser reconhecido como tal, a saber, a
conjunção entre a ontologia e a teologia num discurso de um tipo novo, o de uma onto-teo-logia.
O corolário mais importante dessa negação da substancialidade do mal é que a adesão ao
mal funda uma visão exclusivamente moral do mal. Se a questão: unde malum? perde todo sentido
ontológico, a questão que a substitui: unde malum faciamus? (“de onde vem que façamos o mal?”)
faz pender o problema inteiro do mal à esfera do ato, da vontade, do livre arbítrio. O pecado
introduz um nada de um gênero distinto, um nihil privativum, do qual a queda é inteiramente
responsável, seja ela a do homem ou de criaturas mais elevadas como os anjos. Não se trata de
buscar uma causa desse nada para além de alguma má vontade. O Contra Fortunatum extrai dessa
visão moral do mal a conclusão que mais nos interessa aqui, a de que todo mal é ou peccatum
(pecado), ou poena (pena); uma visão puramente moral do mal leva, por sua vez, a uma visão penal
da história: não há alma injustamente precipitada na infelicidade.
O preço a pagar para a coerência da doutrina é enorme; e sua magnitude ressurgirá no debate
antipelagiano, afastado do debate antimaniqueísta por vários séculos. Para tornar crível a ideia de
que todo sofrimento, por mais injustamente compartilhado ou excessivo, é uma retribuição ao
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pecado, é preciso conferir a este uma dimensão supra-individual: histórica, no limite genérica; é a
isso que responde a doutrina do “pecado original” ou “pecado de natureza”. Não retraçaremos aqui
as linhas de sua constituição (interpretação literal do Gênesis 3, seguida pela ênfase paulina em
Romanos 5, 12-19, justificação do batismo das crianças, etc.) Sublinharemos apenas o estatuto
epistemológico ou o nível de discurso da proposição dogmática sobre o pecado original.
Essencialmente, essa proposição se serve de um aspecto fundamental da experiência do mal, isto é,
a experiência igualmente individual e comunitária da impotência do homem face ao poder
demoníaco de um mal já existente, anterior a toda iniciativa má atribuída a alguma intenção
deliberada. Mas esse enigma do poder do mal já existente é colocado na falsa claridade de uma
explicação aparentemente racional: reunindo no conceito de pecado de natureza duas noções
heterogêneas, a de uma transmissão biológica pelas gerações e a de uma imputação individual de
culpabilidade, a noção de pecado original aparece como um falso conceito que podemos atribuir a
uma gnose antignóstica. O conteúdo da gnose é negado, mas a forma do discurso da gnose é
reconstituída, isto é, a de um mito racionalizado.

É por isso que Agostinho parece mais profundo do que Pelágio, porque percebeu que o nada
da privação é ao mesmo tempo um poder superior a cada vontade individual e a cada volição
singular. Em contrapartida, Pelágio parece mais verídico, porque deixa cada ser livre diante de sua
própria responsabilidade, como Jeremias e Ezequiel outrora ao negar que as crianças pagassem
pelos erros dos pais.
De forma mais grave, Agostinho e Pelágio, ao oferecerem duas versões opostas de uma
visão estritamente moral do mal, deixam sem resposta o protesto pelo sofrimento injusto, o primeiro
ao condená-lo em silêncio em nome de uma inculpação em massa do gênero humano, o segundo, ao
ignorá-lo em nome de uma preocupação vigorosamente ética pela responsabilidade.

4. O estágio da teodiceia

Temos o direito de falar de teodiceia apenas: a) quando o enunciado do problema do mal


situa-se sobre proposições que visam à univocidade; é o caso das três asserções geralmente
consideradas: Deus é todo-poderoso; sua bondade é infinita; o mal existe; b) quando o objetivo da
argumentação é claramente apologético: Deus não é responsável pelo mal; c) quando os meios
empregados supostamente satisfazem a lógica da não-contradição e da totalização sistemática. Ora,
essas condições só foram cumpridas no âmbito da onto-teologia, reunindo termos emprestados ao
discurso religioso, essencialmente Deus, e termos provenientes da metafísica (por exemplo,
platônica ou cartesiana), tais como ser, nada, causa primeira, finalidade, infinito, finito, etc. A
teodiceia, em sentido estrito, é o florão da onto-teologia.
Nesse sentido, a Teodiceia de Leibniz segue sendo o modelo do gênero. Por um lado, todas
as formas do mal, e não apenas o mal moral (como na tradição agostiniana), mas também o
sofrimento e a morte, são levadas em consideração e colocadas sob a denominação de mal
metafísico, que é o defeito inelutável de todo ser criado, se é verdade que Deus não conseguiria
criar um outro Deus. Por outro lado, algo enriquecedor é trazido à lógica clássica, acrescentando ao
princípio da não-contradição o princípio da razão suficiente, que se enuncia como princípio do
melhor, tão logo concebamos a criação como resultado de uma competição no entendimento divino
entre uma multiplicidade de modelos de mundo dos quais um só reúne o máximo de perfeições com
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o mínimo de defeitos. A noção de melhor dos mundos possíveis, tanto criticada por Voltaire em
Cândido após o desastre do terremoto de Lisboa, não é compreendida enquanto não percebemos o
nervo racional, a saber, o cálculo de máximo e de mínimo do qual o nosso modelo de mundo é o
resultado. É dessa maneira que o princípio da razão suficiente pode preencher o abismo entre o
possível lógico, isto é, o não-impossível, e o contingente, isto é, o que poderia suceder de outra
maneira.
O fracasso da Teodiceia, no próprio espaço do pensamento delimitado pela onto-teologia,
resulta do fato de que um entendimento finito, não podendo aceder aos dados desse cálculo
grandioso, só pode reunir os signos esparsos do excesso das perfeições com relação às imperfeições
na balança do bem e do mal. É preciso, então, um robusto otimismo humano para afirmar que o
resultado é, no fim das contas, positivo. E, como nunca temos mais do que migalhas do princípio do
melhor, devemos nos contentar com seu corolário estético, em virtude do qual o contraste entre o
negativo e o positivo concorreria para a harmonia do conjunto. É precisamente essa pretensão de
estabelecer um resultado positivo da balança dos bens e dos males numa base quase estética que
fracassa tão logo somos confrontados a dores, sofrimentos, cujo excesso não parece poder ser
compensado por nenhuma perfeição conhecida. É, ainda uma vez, a lamentação, a queixa do justo
que sofre que põe por terra a noção de uma compensação do mal pelo bem, como já havia feito com
a ideia de retribuição.

O golpe mais duro, embora não fatal, seria trazido por Kant contra a própria base do
discurso onto-teológico sobre a qual a Teodiceia havia sido edificada de Agostinho a Leibniz.
Conhecemos o implacável desmantelamento da teologia racional operada pela Crítica da razão
pura em sua parte Dialética. Privada do suporte ontológico, a teodiceia cai na rubrica da “Ilusão
transcendental”. Não quer dizer que o problema do mal desapareça da cena filosófica, pelo
contrário. Mas passa a fazer parte apenas da esfera prática, como o que não deve ser e que a ação
deve combater. O pensamento se encontra, assim, numa situação comparável à de Agostinho: não
podemos mais perguntar de onde vem o mal, mas de onde vem que o façamos. Como no tempo de
Agostinho, o problema do sofrimento é sacrificado em função do problema do mal moral. Apesar
disso, há duas diferenças.
Por um lado, o sofrimento deixa de estar ligado à esfera da moralidade enquanto punição.
Provém no máximo do julgamento teleológico da Crítica do juízo, que, aliás, autoriza uma
apreciação relativamente otimista das disposições das quais o homem é dotado por natureza, como a
disposição à sociabilidade e à personalidade, disposições que o homem é convidado a cultivar. É
com relação a essa tarefa moral que o sofrimento é levado obliquamente em consideração no nível
individual, evidentemente, mas sobretudo no plano que Kant chama de cosmopolítico. Quanto à
origem do mal-sofrimento, esta perdeu toda pertinência filosófica.
Por outro lado, a problemática do mal radical, com a qual se abre a Religião nos limites da
simples razão, rompe abertamente com aquela do pecado original, apesar de algumas semelhanças.
Além do fato de que nenhum recurso a esquemas jurídicos e biológicos venha conferir ao mal uma
inteligibilidade enganosa (Kant, nesse sentido, seria mais pelagiano do que agostiniano), o princípio
do mal não é de nenhum modo uma origem, no sentido temporal do termo: é apenas a máxima
suprema que serve como fundamento subjetivo último a todas as máximas más de nosso livre
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arbítrio; essa máxima suprema funda a propensão (Hang) ao mal no conjunto do gênero humano
(nesse sentido, Kant se reaproxima de Agostinho), ao encontro da predisposição (Anlage) ao bem,
constitutiva da boa vontade. Mas a razão de ser desse mal radical é “inescrutável” (unerforschbar):
“não existe para nós razão compreensível para saber de onde o mal moral teria podia inicialmente
vir até nós”. Como Karl Jaspers, admiro essa última confissão: como Agostinho, e talvez como o
pensamento mítico, ele percebe o fundo demoníaco da liberdade humana, mas com a sobriedade de
um pensamento sempre atento a não transgredir os limites do conhecimento e a preservar a distância
entre pensar e conhecer por meio de objeto.
Apesar disso, o pensamento especulativo não se desarma diante do problema do mal. Kant
não pôs fim à teologia racional: ele a obrigou a servir-se de outras fontes desse pensamento —
desse Denken — que a limitação do conhecimento por objeto deixava de lado. É testemunho disso a
extraordinária multiplicação de sistemas durante o idealismo alemão: Fichte, Schelling, Hegel, para
não falar de outros gigantes como Hamann, Jacobi, Novalis.
O exemplo de Hegel é notável do ponto de vista dos níveis de discurso que é aqui o nosso,
pelo papel que desempenha nele o modo de pensamento dialético, e, na dialética, a negatividade que
lhe assegura o dinamismo. A negatividade é, em todos os níveis, o que força cada figura do Espírito
a virar o seu contrário e a engendrar uma nova figura que, igualmente, suprime e conserva a
precedente, conforme o sentido duplo da Aufhebung hegeliana. A dialética faz assim coincidirem
em todas as coisas o trágico e o lógico: é preciso que alguma coisa morra para que alguma coisa
nasça. Nesse sentido, a infelicidade está em todo lugar, mas sempre ultrapassada, na medida em que
a reconciliação triunfa sobre o dilaceramento. Assim, Hegel pode retomar o problema da teodiceia
no ponto em que Leibniz o havia deixado sem outro recurso senão o princípio da razão suficiente.
Dois textos são, nesse sentido, significativos. O primeiro está no capítulo VI da
Fenomenologia do Espírito e diz respeito à dissolução da visão moral do mundo; não é fortuito que
ele se situe ao final de uma longa sessão intitulada “o espírito que é certo de si mesmo” (Der seiner
selbst gewisse Geist, ed. Hoffmeister, p.423 e ss.), e antes do capítulo VIII: Religião. Esse texto está
intitulado: “O mal e seu perdão”. Ele mostra o espírito dividido no interior de si mesmo entre a
“convicção” (Ueberzeugung), que anima os grandes homens de ação e se encarna em suas paixões
(“sem a qual nada de grande se realiza na história”!) e a “consciência julgante”, figurada pela “bela
alma”, que se dirá mais tarde que tem as mãos limpas, mas não tem mãos. A consciência julgante
denuncia a violência do homem de convicção, que resulta da particularidade, da contingência e do
arbitrário de seu gênio. Mas ela deve confessar também a sua própria finitude, sua particularidade
dissimulada em sua pretensão à universalidade, e finalmente a hipocrisia de uma defesa do ideal
moral que se refugia apenas na palavra. Nessa unilateralidade, nessa dureza de coração, a
consciência julgante descobre um mal igual àquele da consciência agente. Antecipando a
Genealogia da moral de Nietzsche, Hegel percebe o mal contido na própria acusação de onde nasce
a visão moral do mal. Em que consiste então o “perdão”?: na renúncia paralela dos dois momentos
do espírito, no reconhecimento mútuo de suas particularidades e na reconciliação entre eles. Essa
reconciliação não é outra senão “o espírito (enfim) certo de si mesmo”. Como em São Paulo, a
justificativa nasce da destruição do julgamento da condenação. Mas, diferentemente de Paulo, o
espírito é indistintamente humano e divino, ao menos nesse estado da dialética. As últimas palavras
do capítulo se leem assim: “O Sim da reconciliação, no qual os dois EUs renunciam a seus estar-aí
opostos, é estar-aí do Eu estendido até a dualidade, Eu que nisso permanece igual a si mesmo, e que
na sua completa alienação e em seu contrário completo tem a certeza de si mesmo; ele é Deus
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manifestando-se no meio daqueles que se sabem como o puro saber” (trad. da trad. J. Hyppolite, II,
p.200).
A questão é então saber se essa dialética não reconstitui, com outros recursos lógicos de que
dispunha Leibniz, um otimismo resultado da mesma audácia, mas também de uma hybris racional
possivelmente ainda maior. Que destino, com efeito, está reservado ao sofrimento das vítimas numa
visão do mundo em que o pantragismo é incessantemente recuperado pelo panlogismo?
O segundo texto responde mais diretamente a essa questão, dissociando radicalmente a
reconciliação, de que acabamos de tratar, de toda consolação que se dirigiria ao homem enquanto
vítima. Trata-se da seção bem conhecida da Introdução à Filosofia da História, consagrada à
“astúcia da razão”, que constitui talvez, ela própria, a última astúcia da teodiceia. Que seja no
âmbito de uma filosofia da história que esse tema apareça, isso já nos adverte sobre o fato de que o
destino dos indivíduos está inteiramente subordinado ao destino do espírito de um povo (Volksgeist)
e àquele do espírito do mundo (Weltgeist). É mesmo mais precisamente no Estado moderno ainda
nascente que o objetivo final (Endzweck) do espírito, isto é, a atualização integral (Verwirklichung)
da liberdade, se permite discernir. A astúcia da razão consiste no fato de que o espírito do mundo se
serve das paixões que animam os grandes homens que fazem história e desdobra, à revelia destes,
uma intenção segunda, dissimulada na intenção primeira dos objetivos egoístas que suas paixões os
faziam perseguir. São os efeitos indesejados da ação individual que servem aos planos do Weltgeist,
por meio da contribuição desta ação aos objetivos mais próximos perseguidos fora de cada “espírito
do povo” e encarnados no Estado correspondente.
A ironia da filosofia hegeliana da história reside no fato de que, supondo que ela ofereça um
sentido inteligível aos grandes movimentos da história — questão que não discutimos aqui — é
muito exatamente na medida em que a questão da felicidade e do mal é abolida. A história, afirma-
se, “não é o lugar da felicidade” (trad. da trad. Papaioannou, p.116). Se os grandes homens da
história têm a felicidade frustrada pela história que se faz deles, o que dizer das vítimas anônimas?
Para nós que lemos Hegel após as catástrofes e os inúmeros sofrimentos do século, a dissociação
operada pela filosofia da história entre consolação e reconciliação tornou-se uma grande fonte de
perplexidade: quanto mais o sistema prospera, mais as vítimas são marginalizadas. O sucesso do
sistema resulta em seu fracasso. O sofrimento, pela voz da lamentação, é o que se exclui do sistema.
Precisamos então renunciar a pensar o mal? A teodiceia atingiu um primeiro ápice com o
princípio do melhor de Leibniz e um segundo com a dialética de Hegel. Não haveria um outro uso
da dialética que não fosse a dialética totalisante?
Essa questão, nós a levaremos à teologia cristã, mais precisamente a uma teologia que teria
rompido com a confusão do humano e do divino sob o título ambíguo de espírito (Geist), que teria,
além disso, rompido com a mistura do discurso religioso e do discurso filosófico na onto-teologia,
enfim, que teria renunciado ao próprio projeto da teodiceia. O exemplo que nós retivemos é o de
Karl Barth, que nos pareceu replicar a Hegel, como Paul Tillich, num outro estudo que não o nosso,
teria replicado a Schelling.

5. O estágio da dialética “quebrada”

No início do famoso artigo da Dogmática intitulado “Deus e o Nada” (Gott und das
Nichtige, vol. III, tome 3, §50, trad. da trad. fr. por F. Ryser, Genebra, Labor et Fides, 1963, vol.14,
p.1-81), Barth afirma que só uma teologia “quebrada”, isto é, uma teologia que teria renunciado à
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totalização sistemática, pode se engajar na via temerosa de pensar o mal. O problema será saber se
ele permaneceu fiel até o fim a esse propósito inicial.
Quebrada é, de fato, a teologia que reconhece no mal uma realidade inconciliável com a
bondade de Deus e com a bondade da criação. A essa realidade Barth reserva o termo das Nichtige
afim de distingui-la radicalmente do lado negativo da experiência humana, só levada em
consideração por Leibniz e Hegel. É preciso pensar um nada hostil a Deus, um nada não apenas de
deficiência e privação, mas de corrupção e destruição. Assim fazemos justiça não apenas à
instituição de Kant do caráter inescrutável do mal moral, entendido como mal radical, mas do
protesto do sofrimento humano que recusa deixar-se incluir no ciclo do mal moral a título de
retribuição, e mesmo de deixar-se arregimentar sob a bandeira da providência, outro nome da
bondade e da criação. Sendo esse o ponto de partida, como pensar mais que as teodiceias clássicas?
Pensando de outro modo. E como pensar de outro modo? Buscando na cristologia o nexo doutrinal.
Reconhecemos bem aí a intransigência de Barth: o nada foi o que o Cristo venceu ao aniquilar-se a
si mesmo na Cruz1 . Remontando do Cristo a Deus, é preciso dizer que em Jesus Cristo Deus
encontrou e combateu o nada, e que assim nós “conhecemos” o nada. Uma nota de esperança é,
assim, incluída: sendo a controvérsia com o nada um assunto do próprio Deus, nossos combates
contra o mal fazem de nós co-beligerantes. Bem mais, se acreditamos que em Cristo Deus venceu o
mal, devemos crer também que o mal não pode nos aniquilar: não é permitido mais falar dele como
se ele ainda tivesse poder, como se a vitória fosse somente futura. É a razão pela qual o mesmo
pensamento que se fez grave ao atestar a realidade do mal, deveria se tornar leve e mesmo alegre ao
atestar que ele já foi vencido. A única coisa que falta é a plena manifestação de sua eliminação.
(Notemos de passagem que é apenas para designar a distância entre a vitória já alcançada e a vitória
manifestada que Barth dedica um lugar à ideia de permissio da antiga dogmática: Deus “permite”
que nós não vejamos ainda seu reino e que sejamos ainda ameaçados pelo nada.) Na verdade, o
inimigo já se tornou servidor — “um servidor bem estranho na verdade, que continuará a sê-
lo” (ibid., p.81).
Se interrompêssemos aqui a exposição da doutrina barthesiana do mal, não mostraríamos em
que sentido essa dialética, embora quebrada, merece o nome de dialética.
Com efeito, Barth se arrisca a dizer mais, alguns dirão demais. O que mais ele afirma sobre
a relação entre Deus e o nada que não esteja contido na confissão de que em Cristo Deus encontrou
e venceu o mal? O fato de que o nada também provém de Deus, mas em sentido completamente
distinto da boa criação, isto é, para Deus, eleger, no sentido da eleição bíblica, é rejeitar algo que,
por ser rejeitado, existe sobre o modo do nada. Esse lado da rejeição é, em certo sentido, “a mão
esquerda” de Deus. “O nada é o que Deus não quis. Ele só existe porque Deus não o quis” (ibid, p.
64).
Estranho pensamento, de fato, essa coordenação sem conciliação entre mão direita e mão
esquerda de Deus. Podemos nos perguntar, de início, se, no último momento, Barth não quis
responder ao dilema que pôs em movimento a teodiceia. Se, de fato, a bondade de Deus se mostra
no combate ao mal desde a criação, como sugere a referência ao caos original na narrativa do
Gênesis, o poder de Deus não é sacrificado à sua bondade? Em sentido oposto, se Deus é Senhor
“com mão esquerda também”, sua bondade não é limitada por sua coléra, por sua rejeição, fosse
esta identificada a um não-querer?

1 N.T.: Há aqui um jogo de palavras em francês entre néant e anéantir.


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Se seguíssemos essa linha de interpretação, seria preciso afirmar que Barth não saiu da
teodiceia e de sua lógica de conciliação. Em vez de um dialética quebrada, só teríamos um
compromisso frágil. Uma outra interpretação se propõe, a saber, se Barth aceitou o dilema que
suscitou a teodiceia, ele recusou a lógica da não-contradição e da totalização sistemática que
orientou todas as soluções da teodiceia. É preciso então ler todas as proposições segundo a lógica
kierkegaardiana do paradoxo e eliminar toda sombra de conciliação de suas fórmulas enigmáticas.
Mas pode-se propor uma pergunta mais radical: Barth não excedeu os limites que ele mesmo
se havia imposto de um discurso rigorosamente cristológico? E não teria ele reaberto assim o
caminho às especulações dos pensadores do Renascimento, retomados — com que potência! — por
Schelling, sobre o lado demoníaco da deidade? Paul Tillich não teve medo de dar esse passo que
Barth encoraja e recusa. Mas, então, como o pensamento se protegerá contra os excessos de
embriaguez que Kant denunciava ao final de Schwärmerei, que significa igualmente entusiasmo e
loucura mística? A sabedoria não é reconhecer o caráter aporético do pensamento do mal, caráter
aporético conquistado pelo próprio esforço para pensar mais e de outro modo?

III. Pensar, agir, sentir

Em conclusão, gostaria de sublinhar que o problema do mal não é apenas um problema


especulativo: ele exige a convergência entre pensamento, ação (no sentido moral e político) e uma
transformação espiritual dos sentimentos.

1. Pensar

No plano do pensamento, sobre o qual nos mantivemos desde que deixamos o estágio do
mito, o problema do mal merece ser chamado de desafio, mas num sentido que não para de
enriquecer-se. Um desafio é alternadamente um fracaço para sínteses sempre prematuras, e uma
provocação a pensar mais e de outro modo. Da velha teoria da retribuição de Hegel a Barth, o
trabalho do pensamento não parou de se enriquecer sob o estímulo da pergunta “por quê?” contida
no lamento das vítimas; mas, no entanto, vimos fracassarem as onto-teologias de todas as épocas;
porém esse fracasso nunca convidou a uma rendição pura e simples, mas a um refinamento da
lógica especulativa; a dialética triunfante de Hegel e a dialética quebrada de Barth são, nesse
sentido, instrutivas; o enigma é uma dificuldade inicial, próxima do grito da lamentação; a aporia é
uma dificuldade terminal, produzida pelo próprio trabalho do pensamento; esse trabalho não é
abolido, mas incluído na aporia.
É a essa aporia que a ação e a espiritualidade são chamadas para dar não apenas uma
solução, mas uma resposta destinada a tornar a aporia produtiva, isto é, a continuar o trabalho do
pensamento no registro do agir e do sentir.

2. Agir

Para a ação, o mal é antes de tudo o que não deveria ser e que deve ser combatido. Nesse
sentido, a ação inverte a orientação do olhar. Sob a influência do mito, o pensamento especulativo é
conduzido retrospectivamente à origem: “de onde vem o mal?”, pergunta. A resposta — não a

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solução — da ação é: “o que fazer contra o mal?” O olhar é assim dirigido ao futuro, pela ideia de
uma tarefa a cumprir, que replica aquela de uma origem a descobrir.
Que não se acredite que ao colocar a ênfase na luta prática contra o mal, perdemos de vista,
mais uma vez, o sofrimento. Diferentemente, todo mal cometido por alguém, como assinalamos, é
um mal sofrido pelo outro. Fazer o mal é fazer alguém sofrer. A violência não para de reforçar a
unidade entre o mal moral e o mal sofrido. Assim, toda ação, ética ou política, que diminua a
quantidade de violência exercida pelos homens uns contra os outros diminui o nível de sofrimento
no mundo. Que se substraia o sofrimento inflingido aos homens pelos homens e veremos o que
restará de sofrimento no mundo; para dizer a verdade, não o sabemos, tanto a violência impregna o
sofrimento.
Essa resposta prática não deixa de ter efeito no plano especulativo: antes de acusar Deus ou
de especular sobre uma origem demoníaca do mal no próprio Deus, devemos agir eticamente e
politicamente contra o mal.
Talvez se afirme que a resposta prática não basta; de início, o sofrimento inflingido pelos
homens é, como se afirmou no início, repartido de forma arbitrária e indiscriminada, de modo que,
para muitos, é sentido como imerecido; a ideia permanece de que há vítimas inocentes, como ilustra
cruelmente o mecanismo do bode espiatório descrito por René Girard. Além disso, há um tipo de
sofrimento fora da ação injusta dos homens uns contra os outros; catástrofes naturais (não
esqueçamos a disputa desencadeada pelo terremoto de Lisboa), doenças e epidemias (pensemos nos
desastres demográficos produzidos pela peste, a cólera, e, hoje ainda, pela lepra, para não falar do
câncer), envelhecimento e morte. A questão, então, se torna: não “por quê?” mas “por que eu?”. A
resposta prática não basta mais.

3. Sentir

A resposta emocional que quero acrescentar à resposta prática diz respeito às transformações
pelas quais os sentimentos que alimentam a lamentação e a queixa podem subsumir-se aos efeitos
da sabedoria enriquecido pela meditação filosófica e teológica. Tomarei como modelo as
transformações do trabalho do luto, tal qual descrito por Freud num famoso ensaio intitulado “Luto
e melancolia”. O luto é descrito aí como um desatar, um a um, de todos os nós que nos fazem sentir
a perda de um objeto de amor como uma perda de nós mesmos. Esse desatar que Freud chama de
trabalho do luto nos torna livres para novos investimentos afetivos.
Gostaria de considerar a sabedoria, com seus prolongamentos filosóficos e teológicos, como
uma ajuda espiritual ao trabalho do luto, visando a uma mudança qualitativa da lamentação e da
queixa. O itinerário que vou descrever não pretende nenhuma exemplaridade. Ele representa um dos
caminhos possíveis ao longo do qual o pensamento, a ação e o sentimento podem caminhar lado a
lado.
A primeira maneira de tornar a aporia produtiva é integrar a ignorância que ela engendra no
trabalho do luto. À tendência dos sobreviventes de se sentirem culpados pela morte do objeto de
amor, ou pior, à tendência das vítimas de se acusarem e entrarem no jogo cruel da vítima expiatória,
é preciso responder: não, Deus não quis isso; ainda menos quis me punir. Aqui o fracasso da teoria
da retribuição, no plano especulativo, deve ser integrado ao trabalho do luto, como uma liberação da
acusação, que expõe de algum modo o sofrimento enquanto imerecido. (Nesse sentido, o pequeno
livro do rabino Harold S. Kushner When bad things happen to good people, Schocken Books, 1981,
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é de grande alcance pastoral). Dizer “não sei por quê”, “as coisas acontecem”, “existe acaso no
mundo” é o grau zero da espiritualização da queixa, devolvida simplesmente a ela mesma.
Um segundo estágio da espiritualização da lamentação é deixá-la expandir-se numa queixa
contra Deus. Essa via é aquela na qual toda a obra de Elie Wiesel se engajou. A própria relação da
Aliança, na medida em que ela é um processo mútuo que Deus e o homem intentam para si, convida
a se engajar nessa via, até articular uma “teologia do protesto” (como a de John K. Roth em
Encountering Evil, John Knox Press, 1981). Isso contra o qual ela protesta é a ideia da “permissão”
divina, que serve de expediente a tantas teodiceias e que o próprio Barth se esforçou para repensar
quando distinguiu a vitória já alcançada sobre o mal da plena manifestação dessa vitória. A
acusação contra Deus é aqui a impaciência da esperança. Ela tem a sua origem no grito do
psalmista: “Até quando, Senhor?”.
Um terceiro estágio da espiritualização da lamentação, instruído pela aporia da especulação,
é descobrir que as razões para crer em Deus não têm nada em comum com a necessidade de
explicar a origem do sofrimento. O sofrimento só é um escândalo para quem compreende Deus
como fonte de tudo o que é bom na criação, inclusive a indignação contra o mal, a coragem de
suportá-lo e o movimento de simpatia para com as vítimas; então, nós cremos em Deus a despeito
do mal (conheço a confissão de fé de uma denominação cristã na qual cada um dos artigos,
seguindo um plano trinitário, começa com palavra apesar). Crer em Deus, apesar… é uma das
maneiras de integrar a aporia especulativa ao trabalho do luto.
Para além desse limite, alguns sábios avançam solitários no caminho que conduz a uma
renúncia completa da própria queixa. Alguns chegam a discernir no sofrimento um valor educativo
e purgativo. Mas é preciso afirmar imediatamente que esse sentido não pode ser ensinado: só pode
ser encontrado ou reencontrado; e é talvez uma preocupação pastoral legítima impedir que esse
sentido assumido pela vítima a reconduza à auto-acusação e à auto-destruição. Outros, mais
avançados ainda no caminho da renúncia à queixa, encontram um consolo inigualável na ideia de
que o próprio Deus sofre e que a Aliança, para além de seus aspectos conflituosos, culmina numa
participação no curvar-se do Cristo das dores. A teologia da Cruz — isto é, a teologia segundo a
qual o próprio Deus morreu em Cristo — não significa nada fora de uma transmutação
correspondente da lamentação. O horizonte para o qual se dirige essa sabedoria me parece ser uma
renúncia aos próprios desejos cuja ferida engendra a queixa: renúncia, antes de tudo, ao desejo de
ser recompensado por suas virtudes, renúncia ao desejo de ser poupado do sofrimento, renúncia ao
componente infantil de imortalidade, que faria aceitar a própria morte como um aspecto dessa parte
do negativo, da qual K. Barth distinguia cuidadosamente o nada agressivo, das Nichtige. Uma
sabedoria desse tipo está talvez esboçada no final do livro de Jó, quando se afirma que Jó chegou a
amar a Deus por nada, fazendo com que Satã perdesse sua aposta inicial. Amar a Deus por nada é
sair completamente do ciclo da retribuição, ao qual o lamento permanece preso enquanto a vítima se
queixa da injustiça de seu destino.
Talvez o horizonte da sabedoria, no Ocidente judaico-cristão, cruze o caminho da sabedoria
búdica em algum lugar que só um diálogo prolongado entre judeo-cristianismo e budismo poderia
identificar.
Não gostaria de separar essas experiêcias solitárias da sabedoria da luta ética e política
contra o mal, que pode reunir todos os homens de boa vontade. Em relação a essa luta, essas
experiências são, como ações de resistência não violenta, antecipações em forma de parábolas de

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uma condição humana onde, com a violência suprimida, o enigma do verdadeiro sofrimento, do
irredutível sofrimento, se desnudaria.

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