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Antonio Carlos Banzato Afonso Santos

Filosofia

Revisada por Francis Favato


Apresentação

É com satisfação que a Unisa Digital oferece a você, aluno(a), esta apostila de Filosofia, parte inte-
grante de um conjunto de materiais de pesquisa voltado ao aprendizado dinâmico e autônomo que a
educação a distância exige. O principal objetivo desta apostila é propiciar aos(às) alunos(as) uma apresen-
tação do conteúdo básico da disciplina.
A Unisa Digital oferece outras formas de solidificar seu aprendizado, por meio de recursos multidis-
ciplinares, como chats, fóruns, aulas web, material de apoio e e-mail.
Para enriquecer o seu aprendizado, você ainda pode contar com a Biblioteca Virtual: www.unisa.br,
a Biblioteca Central da Unisa, juntamente às bibliotecas setoriais, que fornecem acervo digital e impresso,
bem como acesso a redes de informação e documentação.
Nesse contexto, os recursos disponíveis e necessários para apoiá-lo(a) no seu estudo são o suple-
mento que a Unisa Digital oferece, tornando seu aprendizado eficiente e prazeroso, concorrendo para
uma formação completa, na qual o conteúdo aprendido influencia sua vida profissional e pessoal.
A Unisa Digital é assim para você: Universidade a qualquer hora e em qualquer lugar!

Unisa Digital
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................................................ 5
1 CONCEITOS BÁSICOS.......................................................................................................................... 7
1.1 A Consciência Mítica.......................................................................................................................................................7
1.2 O Nascimento da Consciência Filosófica: os Pré‑Socráticos............................................................................8
1.3 A Filosofia de Vida e o Rigor do Pensamento Filosófico.................................................................................11
1.4 Dogmatismo, Senso Comum e Pensamento Ideológico...............................................................................13
1.5 Resumo do Capítulo.....................................................................................................................................................14
1.6 Atividades Propostas....................................................................................................................................................15

2 FILOSOFIA ANTIGA E MEDIEVAL............................................................................................... 17


2.1 A Retórica dos Sofistas e as Perguntas de Sócrates..........................................................................................17
2.2 Platão e o Mundo das Ideias......................................................................................................................................19
2.3 A Filosofia Medieval de Agostinho e Tomás de Aquino..................................................................................21
2.4 Resumo do Capítulo.....................................................................................................................................................24
2.5 Atividades Propostas....................................................................................................................................................25

3 FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA................................................................... 27


3.1 O que Significa Modernidade?.................................................................................................................................27
3.2 Racionalismo e Empirismo.........................................................................................................................................27
3.3 O Criticismo de Kant.....................................................................................................................................................31
3.4 O Contratualismo de Hobbes, Locke e Rousseau............................................................................................33
3.5 O Positivismo de Comte..............................................................................................................................................36
3.6 O Materialismo Histórico e Dialético de Marx....................................................................................................37
3.7 Pierre Lévy........................................................................................................................................................................39
3.8 Resumo do Capítulo.....................................................................................................................................................43
3.9 Atividades Propostas....................................................................................................................................................44

RESPOSTAS COMENTADAS DAS ATIVIDADES PROPOSTAS...................................... 45


REFERÊNCIAS.............................................................................................................................................. 49
INTRODUÇÃO

Caro(a) aluno(a),

Bem-vindo(a) a essa nova modalidade de aprendizado.


A Filosofia possui uma quantidade enorme de pensadores, incessantemente questionando, pro-
blematizando e confrontando ideias, destruindo e reconstruindo sistemas de pensamento.
Atendendo ao caráter introdutório do curso, o objetivo é fornecer o panorama do pensamento
filosófico, desde o seu surgimento até os nossos dias.
Estudaremos o nascimento da Filosofia na Grécia Antiga e veremos, logo no início, a importância
do pensamento filosófico no nosso cotidiano. Em seguida, passaremos a estudar as ideias de alguns dos
mais significativos filósofos da Grécia Antiga, da Idade Média, da Era Moderna, e, finalmente, identificare-
mos importantes filósofos contemporâneos.
Nosso ponto de chegada? Esqueça. Filosofar, como já dizia o filósofo alemão Karl Jaspers, é estar
sempre a caminho.
A nossa disciplina tem os objetivos seguintes:

a) diferenciar a consciência mítica da consciência filosófica e identificar a importância do pensa-


mento filosófico em nosso cotidiano;

b) identificar os principais pensadores da Filosofia antiga e medieval, destacando aspectos de


suas teorias sobre política e conhecimento;

c) identificar alguns filósofos do início da Modernidade e contemporâneos, destacando aspectos


de suas teorias sobre conhecimento e política.

Prof. Antonio Carlos Banzato A. Santos

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1 CONCEITOS BÁSICOS

1.1 A Consciência Mítica

Quem nunca se perguntou se o mundo foi ao século VIII a. C., assim como as tribos indígenas
criado por uma mente superior ou se surgiu ao de todo o continente americano – principalmente
acaso? Estamos sós no universo? De onde viemos? antes da chegada dos europeus –, são exemplos
Por que existimos? de culturas que têm na consciência mítica a forma
Quem nunca se espantou diante dos misté- de conhecimento predominante.
rios do mundo? A vida e a morte, os fenômenos Sem acesso à Medicina e à previsão meteoro-
da natureza – às vezes belos, às vezes terríveis –, lógica, por exemplo, qualquer doença ou qualquer
as estações do ano, a contínua alternância entre fenômeno da natureza, como enchentes, eclipses,
o dia e a noite, a infinitude do universo, a finitude falta de chuvas etc., é atribuído aos deuses.
dos seres vivos etc. É extensa a lista do espetáculo E mesmo os rudimentares conhecimentos
cotidiano que a natureza oferece aos nossos olhos, que, geralmente, esses povos têm sobre Astrologia
produzindo os mais variados sentimentos: medo, e o poder de cura de certas ervas medicinais são
resignação, perplexidade, encantamento, incom- sempre marcados por rituais míticos. É sobre esse
preensão e outros. assunto – os mitos – que vamos tratar agora. Um
É bem verdade que o espantoso desenvol- assunto complexo, que faz parte de todas as cultu-
vimento do conhecimento científico, nos últimos ras humanas.
quatro séculos, respondeu a diversas perguntas
que pareceriam impossíveis de serem respondidas Atenção
aos olhos dos antigos. Seria um árduo e imenso
Os mitos expressam os temores e os desejos
trabalho enumerar todas as magníficas descober-
dos seres humanos em face do medo que as
tas científicas ocorridas desde a comprovação, no forças hostis da natureza lhes inspiram. Trata-
século XVII, de que a Terra gira em torno do Sol até -se de uma forma de compreender a realida-
de e de conquistar, pelo menos provisoria-
as atuais e impressionantes descobertas da Enge-
mente, tranquilidade e acomodação em um
nharia Genética e da revolução informática. mundo assustador.
A Ciência, porém, não responde a tudo; di-
versas perguntas permanecem abertas, resguar-
dando insondável mistério. E tudo aquilo que a O pensamento mítico, portanto, é a forma
Ciência não consegue explicar racionalmente, os pela qual uma cultura passa e explica aspectos
seres humanos acabam por explicar miticamente. essenciais da realidade. As perguntas sobre o fun-
Se assim é com a nossa civilização ocidental, cionamento da natureza (que se mostra ameaça-
imagine os povos que nunca tiveram acesso àquilo dora), a origem do mundo, a importância dos va-
que chamamos conhecimento científico. lores que modelam o comportamento do grupo
Os habitantes da Grécia Antiga, do século XX etc. ganham uma resposta mítica, ou seja, uma
resposta que apela ao sobrenatural, ao sagrado,
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à magia. Tudo aquilo que acontece aos homens é como visão de mundo – e, portanto, como “ver-
visto como fruto de uma vontade divina, exterior e dade” – ou o indivíduo não pertence ao grupo e o
superior ao mundo humano, e que apenas os ma- mito perde seu sentido.
gos ou sacerdotes são capazes de interpretar.
Podemos dizer, por isso, que o pensamen- Curiosidade
to mítico tem algo de paradoxal, pois, ao mesmo
tempo em que fornece explicações e respostas a Mito da criação - Mitos na Polinésia con-
perguntas angustiantes, recorre, nessas explica- tam como o deus, Io, criou o mundo. No
início era apenas água e escuridão. Por sua
ções, ao misterioso e sobrenatural, ou seja, àquilo
vontade, Io separou as águas e criou a Ter-
que permanece além da compreensão humana, ra e o céu. Ele disse: “Que as águas sejam
esbarrando, desse modo, na impossibilidade do separadas, que os céus sejam criados, que
a Terra exista.”
desenvolvimento do conhecimento racional.
Outro traço importante das narrativas míti-
cas é que elas não são “inventadas” por ninguém,
não possuem um autor, assim como não têm uma
origem cronológica precisa. Antes disso, são o re-
sultado da tradição cultural de um povo que, na A discussão ou o questionamento dos mitos
maior parte das vezes, é transmitida oralmente. só é possível com o distanciamento do indivíduo
Trata-se, ainda, de uma consciência comunitária, em relação à visão de mundo que o mito repre-
compartilhada por todo o grupo, que aceita a “ver- senta e consagra, mas, para que isso aconteça, é
dade” do mito sem discussões ou comprovações necessária a transformação da própria sociedade.
racionais. Foi exatamente o que começou a acontecer num
É por isso, também, que o mito não pode ser determinado período da Grécia Antiga, como ve-
reduzido a uma “mentira”. Ou o indivíduo faz parte remos a seguir.
de uma determinada cultura e aceita seus mitos

1.2 O Nascimento da Consciência Filosófica: os Pré‑Socráticos

A civilização micênica – que se estendeu do pequenas aldeias tribais. O poder político passou
século XX ao século XII a.C. – era constituída por a ser exercido por uma aristocracia proprietária de
povos guerreiros, que viviam do comércio e das terras. Contudo, a antiga unidade social, anterior-
pilhagens de guerras. Sua organização social era mente encarnada pelo rei, se desfaz e a sociedade
fortemente hierarquizada em torno da família real se torna lugar de desordem e de conflitos entre as
e da aristocracia palaciana, o que se refletia na hie- diversas famílias aristocráticas e entre a aristocra-
rarquia de suas divindades. Uma escrita chegou a cia e as camadas mais pobres da população.
ser desenvolvida nesse período, muito embora seu Muito da tradição mítica da civilização micê-
uso tenha se restringido aos escribas a serviço da nica se perdeu nesse período, sendo que somente
família real. por volta do século IX ou VIII a.C. a escrita reapa-
Por volta do século XII a.C., como resultado rece, resguardando, porém, um caráter sagrado.
das guerras desse período, a civilização micênica A Ilíada e a Odisseia, atribuídas a Homero, e a Teo-
foi destruída e houve uma retração social: o co- gonia, de Hesíodo (escrita no século VIII a.C.), são
mércio cedeu lugar à economia rural, o sistema as maiores fontes do nosso conhecimento sobre
escravista recrudesceu e a escrita desapareceu. os mitos gregos. Isso, como vimos anteriormente,
A vida reorganizou-se no isolamento de clãs e de não significa que Homero ou Hesíodo tenham in-

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ventado os mitos. Na verdade, eles recolheram as mente, as leis que regem o convívio social não são
narrativas míticas dos diversos povos que suces- mais tabus, não são mais expressão da consciência
sivamente habitaram a Grécia desde a civilização mítica, mas o resultado impessoal de uma decisão
micênica e as registraram em versos. coletiva, tomada abertamente após a discussão
Lentamente, algumas transformações de- em praça pública. Todas essas mudanças contri-
cisivas foram se impondo. A partir do século VIII buem de modo decisivo para o desenvolvimento
a.C., já se nota o renascimento do comércio, que do pensamento racional. A ágora é, por excelência,
ganha maior impulso com a invenção da moeda. A o espaço do logos, ou seja, da razão, do discurso,
escrita finalmente deixa de ser privilégio daqueles da palavra. A decisão sobre os assuntos públicos
que detêm poder político ou religioso e, uma vez passa a depender, afinal, da capacidade de per-
dessacralizada, isto é, desligada das questões míti- suasão do orador e não da sua condição social ou
cas, cheias de fórmulas mágicas e inacessíveis aos econômica: vence quem sabe convencer melhor e,
não iniciados, transforma-se em instrumento de para tanto, é preciso valer-se de uma boa exposi-
divulgação de ideias, expandindo o debate social e ção de ideias. Podemos dizer que a política final-
político. As antigas aldeias se unem, obrigando as mente torna-se laica, ou seja, assunto dos homens
diferentes tribos e clãs a conviverem no mesmo es- e não dos deuses.
paço. Assim, nasce a organização social, que é uma É, pois, nesse ambiente de racionalidade que
característica da pólis, a cidade-estado grega. surgem os primeiros filósofos.
Se antes a estabilidade da vida social gravi- Diante das inevitáveis perguntas que o ser
tava em torno da figura do “rei divino”, que encar- humano sempre se fez sobre a origem do univer-
nava a vontade dos deuses, a vida na pólis adquire so, da natureza, da vida, os primeiros filósofos não
nova e decisiva característica, pois o centro da vida se contentam com as explicações oferecidas pelo
social passa a ser a ágora, isto é, a praça pública, pensamento mítico.
onde são realizadas as assembleias e onde, após
ampla discussão e votação, são tomadas as deci-
Multimídia
sões políticas sobre a vida da cidade.
Não há mais um rei e a aristocracia não man- Para conhecer um pouco mais do mun-
da sozinha. O acesso ao poder é estendido a todos do grego antigo, procure assistir ao do-
cumentário realizado pelo canal History
aqueles que são considerados cidadãos, ou seja, Channel Construindo um Império – Gré-
os homens adultos que não são nem estrangeiros cia. Esse documentário pode ser encon-
nem escravos. Ainda que, em Atenas, considerada trado no YouTube.

o modelo da antiga democracia, apenas cerca de


10% da população fosse de cidadãos, é inegável a
novidade política nascente: a aristocracia hereditá-
ria; assim, os comerciantes e as camadas mais po- A palavra grega physis, que é a origem eti-
bres da população se veem indistintamente com mológica de física, é geralmente traduzida por
direito de participar de discussões públicas e de natureza. Seu significado, porém, é mais amplo e
votar, decidindo politicamente sobre o futuro da refere-se ao processo de nascimento, crescimento
cidade. e transformação da natureza. Quem indaga sobre
Em suma, junto à pólis, nasce a democracia, a physis, indaga sobre o princípio ou fundamento
que se constrói no frágil equilíbrio entre as várias de todas as coisas, que os gregos chamavam arché:
camadas sociais que habitam a mesma sociedade. haverá um princípio único que ordene todas as
E mais importante ainda: a política e o governo coisas do mundo?
aparecem, pela primeira vez na história, como cria- A resposta a essa pergunta, oferecida por
ção da vontade humana. O destino, que antes era Hesíodo em sua Teogonia, expressa, ainda, a cons-
traçado inexoravelmente pela vontade dos deuses, ciência mítica: ele narra o nascimento do mundo e
passa a ser responsabilidade dos cidadãos. Final- dos deuses; as forças da natureza são divinizadas e

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ganham contornos humanos: a Terra é Gaia, o Céu do, se possível, outros princípios explicativos. Seus
é Urano, o Tempo é Cronos etc. Esses seres nascem discípulos Anaximandro e, depois, Anaxímenes e
ora pela segregação, ora pela intervenção de Eros, Heráclito são os mais importantes filósofos pré-
responsável por aproximar os opostos. -socráticos da Jônia.
Os primeiros filósofos, porém, insatisfeitos No transcorrer dos séculos VI e V a.C., o pen-
com as explicações míticas, foram buscar uma samento filosófico se difunde na Grécia. Pitágoras
explicação natural – e não sobrenatural – para o de Samos funda uma escola em Crotona, no sul da
princípio de todas as coisas. A chave para a com-
Magna Grécia (atual Itália). Xenófanes, Parmênides
preensão da arché estaria, portanto, na própria na-
e Zenão representam a cidade de Eleia, também da
tureza e não em algo fora do mundo, preso a uma
Magna Grécia. Leucipo e Demócrito são de Abde-
realidade misteriosa e inacessível. A realidade, des-
sa forma, se abre à possibilidade do conhecimento ra; Anaxágoras é de Clazomenas; Empédocles, de
e de explicações racionais. Isso dá origem ao pen- Agrigento.
samento filosófico-científico. Os filósofos opõem a A denominação filósofos pré-socráticos é,
Cosmologia à Cosmogonia dos mitos. ao mesmo tempo, cronológica e temática. Crono-
Ainda que muito dos escritos pré-socráticos lógica porque grande parte desses filósofos viveu
tenham se perdido, restando apenas fragmentos antes de Sócrates, considerado um marco da Filo-
e citações de filósofos posteriores, sabemos que sofia; temática porque sua principal característica
essa nova forma de pensar nasce por volta do sé- é a tentativa de explicação racional da origem do
culo VI a.C., na Jônia, que era uma colônia funda- universo: seu objeto de reflexão é a physis.
da na costa asiática da Grécia, atual Turquia, mais
Em resumo, há uma ruptura entre a cons-
especificamente na cidade de Mileto, que experi-
ciência mítica e a Filosofia nascente. Ao contrário
mentava, então, grande florescimento comercial e
do que acontece com a explicação mítica, que é
cultural. Mileto havia se transformado em centro
cosmopolita, onde conviviam culturas distintas. É aceita pelo indivíduo sem questionamentos, a ex-
possível, assim, que as diversas e contrastantes tra- plicação filosófica é problematizadora e convida à
dições míticas tenham levado os primeiros filóso- discussão. Desse modo, abre-se espaço para a di-
fos à relativização dos mitos. vergência e para o debate. Se Tales afirma que o
elemento primordial de todas as coisas é a água,
Anaxímenes afirma que é o ar. Demócrito, por sua
Multimídia vez, sustenta que é o átomo. Empédocles diz que
são os quatro elementos: terra, ar, água e fogo. E
No YouTube você pode encontrar vá- assim sucessivamente.
rios filósofos tratando da filosofia pré-
-socrática. É interessante observar suas Em oposição à figura do sábio religioso, que
colocações, para se ter uma ideia da detém a verdade do conhecimento mítico, os gre-
importância desses primeiros filósofos.
gos inventam a figura do filósofo. Observa-se aí
uma diferença de atitude diante do saber recebi-
do: no mito, a inteligibilidade é dada; na Filosofia,
ela é procurada.
Tales, nascido em Mileto, é considerado o O filósofo, portanto, não é o dono da verda-
primeiro filósofo. Ao recusar a explicação mítica, de, mas aquele que sai em sua busca, ou, como di-
ele afirma que o princípio da physis é a água. Todo ria Pitágoras, é o amigo (philos) do saber (sophia),
o universo e toda a natureza teriam se originado daí a origem do próprio termo ‘filosofia’: philos +
desse elemento, sendo possível encontrá-lo em sophia.
tudo aquilo que está vivo. É relevante, também, o
caráter crítico do pensamento de Tales: diz-se que
ele não só admitia como estimulava seus discípu-
los a desenvolver outros pontos de vista, adotan-

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1.3 A Filosofia de Vida e o Rigor do Pensamento Filosófico

Como definir Filosofia? Qual sua utilidade no Por detrás dessas escolhas estão os seus crité-
nosso dia a dia? Qual sua importância para todos rios e os seus valores, que, suponho, foram ponde-
aqueles que não são filósofos e não fazem do pen- rados, pesados, avaliados, até que você chegasse à
samento filosófico um modo de vida? Essas são al- sua decisão. Refletir sobre esses valores, procurar
gumas perguntas frequentes entre os estudantes justificá-los racionalmente, é uma forma de filoso-
de qualquer faculdade. far. Pensar a sua vida não é viver de modo egoísta
Ao invés, porém, de se abrir para o novo, é ou essencialmente introspectivo, mas pensar onde
também significativa a parcela de alunos que re- ela é vivida: na sociedade, na história, no mundo.
solve se proteger da Filosofia, afirmando, do fundo Viver seu pensamento é, na medida do possível,
da sua caverna, que ela é muito subjetiva, é uma agir com autonomia ao invés de sujeitar-se passi-
viagem incompreensível, e não serve para nada vamente ao fluxo dos acontecimentos.
que se relacione à vida prática.
Antes, portanto, de começarmos a estudar Curiosidade
alguns dos mais importantes filósofos desde a
A Filosofia Clínica é parte da filosofia aca-
Antiguidade até nossos dias, vamos procurar res- dêmica direcionada ao consultório, à clíni-
ponder às questões anteriores e desfazer os pre- ca. É uma atividade utilizada em hospitais,
conceitos mais comuns que abalam a já restrita escolas, instituições de todo o país. A par-
tir dos trabalhos do filósofo gaúcho Lúcio
popularidade da Filosofia. Packter, desde o final dos anos 80, essa
Para Kant, não é possível aprender o que é atividade se difundiu no país e no exterior.
a Filosofia, só é possível aprender a filosofar. Mer-
leau-Ponty, por sua vez, afirma que filosofar é rea-
prender a ver o mundo. Segundo Gramsci, “não se
pode pensar em nenhum homem que não seja
também filósofo, que não pense, precisamente
porque pensar é próprio do homem.” Para que serve, então, a Filosofia? Para apri-
morar a reflexão crítica, inerente a todo e qualquer
André Comte-Sponville (2003), finalmente,
ser humano! Pensar melhor, para viver melhor! A
arrisca: “filosofar é pensar sua vida e viver seu pen-
esse pensamento crítico chamamos “filosofia de
samento” e arremata: a filosofia é “uma prática teó-
vida”. Trata-se mais de uma atitude do que de uma
rica (mas não-científica), que tem o todo por obje-
erudição. É isso o que eu procuro fazer na minha
to, a razão por meio e a sabedoria por fim. Trata-se
vida. É isso o que você pode fazer na sua! Basta co-
de pensar melhor, para viver melhor.”
ragem e disposição.
Quem nunca parou para pensar como deve
Por que coragem? Ora, lembre-se dos pré-so-
viver?
cráticos: eles rejeitavam as explicações míticas em
Eis aí uma pergunta filosófica da maior rele- voga na sua época. Isso quer dizer que ousavam
vância, ligada ao cotidiano de qualquer ser huma- questionar aquilo que, para a maioria das pessoas,
no. Se você, às vezes, se faz essa pergunta e procura era uma verdade absoluta, uma certeza, um dog-
respondê-la de um modo inteligente, está, bem ou ma. Certamente encontravam muita resistência, o
mal, filosofando. Por que você resolveu fazer um que, convenhamos, nem sempre é fácil de supor-
curso universitário? Por que optou por este curso tar (Sócrates que o diga!). Há, porém, diferenças
e não por outro? Por que a Unisa? Por que resolveu relevantes entre a filosofia de vida e o pensamento
cursar a disciplina Filosofia pela internet? dos filósofos especialistas. Enquanto a filosofia de

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vida não exige rigor – muito embora exija sempre Ciência, a religião, o Direito, a justiça, os valores, o
espírito crítico! –, a Filosofia propriamente dita se próprio ser humano etc.
manifesta como um gênero à parte. Já que falamos em Ciência, convém, aqui,
O iniciante, às vezes, assusta‑se com a lingua- abrir um parêntese. A partir do século XVII, com a
gem dos filósofos. E alguns deles, principalmente revolução metodológica iniciada por Galileu Gali-
a partir da Modernidade, são de fato difíceis. Mas lei, a Filosofia e a Ciência, que até então andavam
como tantas outras disciplinas, a Filosofia também juntas, separam‑se. Começa a nascer aí a noção
tem o seu rigor próprio, o seu jargão, os seus con- moderna de conhecimento científico. Aos poucos,
ceitos. vão se firmando as ciências particulares – Física,
Em Filosofia, o uso preciso da linguagem é Astronomia, Química, Biologia, Psicologia, Sociolo-
decisivo: é assim que os filósofos fogem da ambi- gia, Economia etc. –, cada uma delas com sua me-
guidade e evitam a subjetividade, não de seu pon- todologia própria de estudo. A Ciência, assim, faz
to de vista, mas de como o expressam. “recortes” do real e tende cada vez mais à especiali-
O filósofo, portanto, está acostumado a pen- zação, ao saber fragmentado, ao estudo da parte e
sar com maior rigor lógico e de um modo mais sis- não do todo. Além disso, a Ciência está preocupada
temático que as pessoas comuns, além de conhe- em fazer juízos de fato, ou seja, pretende descobrir
cer a história e o desenvolvimento do pensamento. como os fenômenos ocorrem, quais suas relações
Esse conhecimento teórico, todavia, é apenas uma e como prevê-los. Os resultados das investigações
parte do filosofar. Ao eleger a dúvida como ele- científicas se pretendem, por isso, impessoais e ob-
mento desencadeador do processo crítico, a Filo- jetivos, tendendo à verificabilidade e à uniformida-
sofia se caracteriza como conhecimento instituin- de das conclusões.
te, capaz de questionar sempre e infinitamente o A Filosofia, por sua vez, não renuncia ao pon-
saber instituído, provocando abalos e mudanças. to de vista da totalidade. Enquanto as ciências se
A Filosofia trai a si mesma quando estanca especializam, a Filosofia levanta problemas cujas
em verdade inquestionável, afinal ela é a procura respostas exigem a capacidade de relacionar diver-
da verdade, não a sua posse. Por isso, como diz Jas- sos aspectos do contexto no qual estão inseridos.
pers, filosofar é estar a caminho: perguntas em Filo- Enquanto os cientistas se limitam a fazer juízos de
sofia são essenciais e cada resposta transforma‑se fato, os filósofos resgatam a dimensão dos juízos de
numa nova pergunta. valor e, com isso, julgam o valor do conhecimento,
preocupando‑se não apenas em saber como é a
É por isso que, ao estudar os clássicos, preci-
experiência vivida, mas também como deveria ser.
samos tomar cuidado. Ler Filosofia não é assimilar
passivamente as ideias dos grandes filósofos como
se fossem um produto pronto e acabado; isso sim
seria erudição estéril. Ler bem é ler antropofagica-
mente: só assim poderemos nos aproximar da Filo-
sofia como processo, como reflexão crítica e autô-
noma da realidade vivida.
O objeto da Filosofia? O todo. Isso não signi-
fica que todos os filósofos pensem sobre todos os
assuntos possíveis, mas qualquer assunto possível
pode ser o objeto de estudo de um filósofo. E, sob
uma perspectiva de conjunto, a Filosofia relacio-
na‑se interdisciplinarmente com todas as formas
do saber e agir humanos.
Os filósofos, assim, podem ter como objeto
de estudo o conhecimento, a política, a Ética, a

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Filosofia

1.4 Dogmatismo, Senso Comum e Pensamento Ideológico

Vamos, afinal, admitir que a Filosofia não é O pensamento ideológico, finalmente, se


uma atividade apenas para iniciados. Muito pelo apresenta muitas vezes como um discurso aparen-
contrário: a filosofia de vida é condição para a au- temente mais bem elaborado do que o dogmatis-
tonomia intelectual de qualquer ser humano. So- mo e o senso comum, por isso exigirá de nós um
mente por meio dela questionamos as verdades atenção um pouco mais detalhada.
sedimentadas e alteramos o rumo de nossa pró- Já vimos que, em Filosofia, um conceito é
pria existência. uma construção que só faz sentido no interior de
Isso, porém, não é fácil. Há diversos obstá- uma teoria, perdendo seu sentido quando inde-
culos que impedem grande parte das pessoas de vidamente transportado para outra teoria. Assim,
abandonar suas pequenas certezas e suas cômo- dois ou mais filósofos podem utilizar-se da mesma
das verdades. O dogmatismo, o senso comum e o palavra para construir conceitos absolutamente
pensamento ideológico são alguns desses obstá- distintos. É exatamente isso o que acontece – ou
culos. Vejamos cada um deles. aconteceu – com a ideologia.
O termo ‘dogma’ possui diversas perspecti- No início do século XIX, certa corrente filosó-
vas. Vejamos algumas delas: fica chamou de ideologia a “ciência das ideias” ou a
“ciência das ciências”, mas esse sentido caiu total-
ƒƒ o dogma mítico-religioso é uma verdade mente em desuso: ninguém, hoje em dia, defende
indiscutível que a razão não precisa ex- a viabilidade de uma ciência das ciências.
plicar; Já no uso cotidiano, chamamos de ideologia
ƒƒ o dogma valorativo deriva da falta de ca- a nossa opinião ou posicionamento sobre deter-
pacidade de um indivíduo de colocar em minado assunto. É assim que falamos em ideologia
xeque seus próprios valores, que passam de esquerda ou de direita, em ideologia libertária
a ser considerados universais; ou repressora, em ideologia democrática ou béli-
ca. Pense, por exemplo, na reeleição de George W.
ƒƒ o dogma político é a maior ameaça às
Bush à presidência dos Estados Unidos; sua cam-
democracias.
panha política foi toda marcada pela ideologia da
guerra como forma de combate ao terrorismo.
Menos intransigente que o dogmatismo, o Há décadas, porém, a palavra é utilizada pela
senso comum é o conhecimento que herdamos maioria dos intelectuais, das mais diversas áreas,
pela tradição e ao qual acrescentamos os frutos em seu sentido marxista. Para entender isso, é pre-
da experiência vivida na coletividade a que per- ciso esquecer os dois sentidos anteriormente men-
tencemos. Trata-se de um conjunto de valores e cionados.
ideias mais ou menos compartilhado socialmente
e que nos permite interpretar a realidade e agir.
Saiba mais
O problema, porém, é que o senso comum não é
resultado da reflexão e pode encontrar-se mistu- A ideologia, afinal, é um conjunto de ideias
rado a crenças e preconceitos. Como primeiro ní- (compostas por valores, princípios, crenças)
vel de conhecimento, é ainda ingênuo, não crítico, que se explicam por suas condições histó-
ricas, ou seja, as ideias que compunham a
fragmentário, assistemático e incoerente, levando,
mentalidade feudal eram diferentes daque-
muitas vezes, à ação conservadora e resistente às las que compõem a sociedade capitalis-
mudanças. O senso comum, todavia, pode ser su- ta. Da mesma forma, há diferenças entre a
perado, não apenas pelas formas mais rigorosas do mentalidade da época da Revolução Indus-
trial e a da revolução informática.
conhecimento, como a Ciência e a Filosofia, mas
também pelo exercício da filosofia de vida.

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Podemos dizer, portanto, que o discurso Outro traço importante da ideologia é que
ideológico nunca é fruto da autonomia do pensa- ela reflete os valores da classe ou do segmento so-
mento, mas resultado de circunstâncias históricas cial dominante. A força do discurso ideológico con-
que modelam – inconsciente e acriticamente – os siste na capacidade de transformar em “universais”
valores e a visão de mundo daquele que fala. O os valores que, no fundo, não passam de interesses
sujeito sequer chega a perceber quais são os seus particulares de um grupo específico. Assim, tan-
próprios valores, limitando-se a repetir como se to dominados quanto dominadores incorporam
fossem suas – e como se fossem naturais e univer- o discurso e acreditam nele, não percebendo as
sais – as ideias que, na verdade, compõem um pen- lacunas que existem no discurso e que ocultam a
samento social localizado no tempo e no espaço. maneira pela qual a realidade social foi produzida.

Multimídia

Assista ao filme Uma Cidade sem Passado, do diretor Michael Verhoe-


ven. O filme conta a história de uma moça, de uma cidade pequena,
que decide escrever um texto sobre a sua cidade na época do na-
zismo para concorrer em um concurso.
Esse filme mostra o papel da ideologia na história.

Depois do que nós estudamos, muito cuida- mesmo tempo, individual, singular, enclausurado
do! Isso não faz da ideologia um conhecimento fal- em si mesmo. Um delírio, porém, transforma-se
so, mentiroso ou delirante, mas ilusório, ou seja: o numa crença quando adquire a força de mover e
discurso ideológico não é uma mentira que alguém comover todo um grupo. A crença, finalmente,
inventa deliberadamente com a oculta intenção de pode engendrar discursos ideológicos, não em
manter os seus privilégios, tampouco se confunde função de sua validade ou falta de validade, mas
com um delírio se o entendemos como um pensa- de sua capacidade de controlar comportamentos
mento desgarrado do real (e, portanto, falso) e, ao coletivos, reforçando crenças e estereótipos.

1.5 Resumo do Capítulo

Neste capítulo observamos, inicialmente, alguns conceitos básicos. O mito, como uma narrativa
primordial, que sedimenta uma representação do mundo, a partir do pensamento mágico, fantástico.
A noção do pensar filosófico como um pensar crítico, que trata o mundo a partir da explicação racional,
marcando uma ruptura com a abordagem mítica. Esse pensar, por ter mais rigor lógico, assume ser dife-
rente da forma de pensar das pessoas comuns, ou seja, assistemático. A filosofia se embasa num conhe-
cimento teórico, rigoroso. Ainda, problematizamos três noções que podem dificultar o exercício do ato
de filosofar: o dogmatismo, o saber comum e o pensamento ideológico.

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Filosofia

1.6 Atividades Propostas

Agora que terminamos este capítulo, vamos verificar se você fixou bem o conteúdo, respondendo
às perguntas a seguir.

1. Quais são as diferenças entre Filosofia e mito?

2. O filósofo francês contemporâneo André Comte-Sponville afirma que “filosofar é pensar sua
vida e viver seu pensamento”. Declara, ainda, que a filosofia é “uma prática teórica (mas não-
-científica), que tem o todo por objeto, a razão por meio e a sabedoria por fim. Trata-se de
pensar melhor, para viver melhor.” O que ele está querendo nos dizer com essa noção de
filosofia?

3. Por que é tão importante reconhecer/compreender as ideologias?

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2 FILOSOFIA ANTIGA E MEDIEVAL

2.1 A Retórica dos Sofistas e as Perguntas de Sócrates

A cidade de Atenas, no século V a.C., encar- O termo ‘sofistas’ deriva de sophos, que signi-
na o auge da antiga democracia. Isso não é pouco, fica originalmente “sábios”. Como, porém, Sócrates
principalmente se lembrarmos que, no século XII e, mais tarde, Platão e Aristóteles criticaram dura-
a.C., a civilização micênica foi destruída e, como re- mente os sofistas, o termo acabou adquirindo uma
sultado, o comércio e a escrita desapareceram, o conotação pejorativa. Tanto é que chamamos de
sistema escravista recrudesceu e a economia, con- sofisma o argumento que, embora falso, possui a
trolada por uma aristocracia proprietária de terras, aparência da verdade e, portanto, o poder de indu-
voltou a ser fundamentalmente rural. Somente no
zir o outro ao erro. O sofista, nessa visão pejorativa,
século VIII a.C., na transição dos tempos homéricos
é o charlatão que tem por hábito – e por habilida-
para o período arcaico, é que o antigo mundo rural
de – construir argumentos com erros voluntários, a
e aristocrático, assentado em tribos e clãs familia-
res, irá ceder espaço para as primeiras aglomera- fim de enganar ou embaraçar seu interlocutor.
ções urbanas. Hoje em dia, porém, a tendência é reconhe-
Com a lenta formação das pólis assiste-se, cer a importância que os sofistas tiveram na histó-
concomitantemente, ao renascimento do comér- ria da Filosofia. Foram eles, afinal, que justificaram
cio. Uma vez enriquecidos, os comerciantes pas- o ideal democrático do século V a.C., elaborando
sam a defender seus interesses, que, muitas vezes, teorizações que interessavam à nova classe dos co-
se opõem aos da aristocracia. Após algumas im- merciantes.
portantes reformas políticas, será, finalmente, im- Muito embora não tenham constituído uma
plantada a democracia. Esse novo contexto social “escola de pensamento” (pois divergiam muito
e político é fundamental para entender o pensa-
entre si), os sofistas tinham algumas coisas em
mento de Sócrates e a atividade dos sofistas. Com
comum: eram estrangeiros (e, portanto, não eram
eles, houve uma significativa mudança no teor das
considerados cidadãos de Atenas), não descen-
indagações filosóficas, uma vez que os pré-socrá-
ticos perguntavam-se sobre a formação e a trans- diam da aristocracia e não pertenciam a famílias
formação da natureza (physis), buscando respostas de comerciantes enriquecidos. Para sobreviver,
racionais a essas questões (cosmologias). davam aulas e cobravam por isso, ou seja, transfor-
maram o seu saber em ofício, o que causou espan-
to para os padrões da época. Não foram poucos os
Atenção
que acusaram os sofistas de “mercenários do sa-
Sócrates é o primeiro filósofo a eleger pro- ber”. A busca pela verdade – argumentavam seus
blemas éticos e políticos como tema central detratores – não poderia se submeter aos interes-
de seus questionamentos, deslocando o ob- ses daquele que paga, exigindo como condição a
jeto da Filosofia da natureza para o próprio
homem e para a comunidade em que vive.
independência.
Nesse exercício, irá divergir dos sofistas. A contribuição dos sofistas, todavia, reside
no fato de terem sistematizado o ensino, formando
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um currículo de estudos que incluía, entre outros das certezas e das convicções. Está preocupado
pontos, a gramática, a retórica e a dialética. Tais es- em descobrir a essência das coisas e seu primeiro
tudos vinham ao encontro das exigências práticas passo é admitir que não as conhece. É, portanto,
do cidadão de uma sociedade democrática: para um ignorante da essência que procura descobrir.
convencer não basta dizer o que se considera ver- Sua famosa frase “só sei que nada sei” é o ponto
dadeiro, é preciso demonstrá-lo pelo raciocínio e, de partida para a procura, para a pesquisa. Sócra-
para demonstrá-lo, é preciso falar bem, é preciso tes resolve, então, interrogar todos aqueles que se
persuadir. consideram sábios. Porém, com suas hábeis e irô-
Preocupados com a coerência lógica e com nicas perguntas, põe a nu a ilusão do conhecimen-
o rigor dos argumentos e dando mais importância to, revelando que as pessoas se passam por sábias
à forma da exposição do que ao próprio conteú- sem de fato o serem. Sua habilidade questionadora
do, os sofistas se encarregam de iniciar os jovens nada mais é do que uma imensa capacidade de co-
na arte da retórica, instrumento que se torna indis- locar em xeque as crenças, os dogmas, as opiniões
pensável na assembleia democrática. e o senso comum de seus interlocutores.
Se os sofistas preocupavam-se mais com a Essa fase inicial da investigação socrática tem
forma do que com o conteúdo dos argumentos, por objetivo demonstrar que o nosso primeiro ní-
isso não se devia a uma falha de seu caráter. Sua vel de conhecimento – que é prático, intuitivo e
intenção não era mentir deliberadamente, não era imediato – se revela, muitas vezes, insuficiente e
enganar o interlocutor (ou, pelo menos, isso não se inadequado, sendo possível aprimorá-lo e aper-
aplica à maioria dos sofistas e, se eventualmente feiçoá-lo por meio da reflexão. O aprimoramento
ocorreu, foi uma exceção). da reflexão, por sua vez, dá-se por meio daquilo
Antes disso, os sofistas compartilham a ideia que Sócrates chamou maiêutica. Não se assuste
de que não há no mundo um único princípio que com essa palavra grega, que significa literalmente
a tudo comande. Para eles, tudo resulta de con- “a arte de fazer o parto”. Filho de uma parteira, Só-
venções, inclusive os valores e a própria verdade. crates fez uma simples analogia entre o seu ofício
Quando Protágoras – considerado o primeiro so- e o ofício da mãe. Assim como ela ajudava outras
fista – afirma que o homem é a medida de todas as mulheres a darem à luz uma criança, ele ajudava
coisas, está querendo dizer que, se existe um con- outros homens a darem à luz suas próprias ideias.
senso entre os homens, este resulta da convenção. Sócrates, com isso, quer reforçar que não é
A verdade, portanto, é vista como resultado dono da verdade: ao destruir a ilusão do conheci-
de uma construção humana e não como a desco- mento de seu interlocutor, não aponta onde está o
berta de algo absoluto. conhecimento verdadeiro (que ele também igno-
ra), apenas aponta para a deficiência do conheci-
Sócrates (470-399 a.C.) nada deixou escrito.
mento do outro, estimulando-o a aprimorar suas
Tudo o que sabemos dele se deve aos relatos de
próprias reflexões por meio da dialética, isto é, pela
seus discípulos, sendo Platão o mais importante de
discussão no diálogo; assim, o papel do filósofo
todos. Pela análise desses escritos, porém, é possí-
não é transmitir um saber pronto e acabado.
vel identificar alguns dos mais importantes traços
da filosofia socrática. Não podemos concluir daí que Sócrates acei-
ta qualquer ponto de vista e que toda e qualquer
Os sofistas, como acabamos de ver, ensina-
opinião deve ser respeitada. A Filosofia, para Só-
vam a arte da retórica, ou seja, ensinavam o orador
crates, nada tem a ver com o exercício da subjeti-
a expor seu ponto de vista com coerência e brilhan-
vidade do indivíduo. Antes disso, ele (ao contrário
tismo, a fim de convencer seus interlocutores de
dos sofistas) preocupa-se em descobrir um conhe-
que realmente tinham razão (o que, aliás, continua
cimento que seja universal. Dessa preocupação,
sendo útil em se tratando de assuntos políticos e
decorre a importância fundamental do conceito.
jurídicos). Sócrates, por sua vez, faz exatamente o
contrário: desenvolve um método de destruição

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Filosofia

Não foi por outro motivo que Sócrates tanto


Multimídia
criticou os sofistas. Argumentava que as decisões
políticas nas assembleias estavam sendo tomadas
Assista ao filme Só-
crates, do diretor não com base em um saber, mas por influência dos
Roberto Rossellini. O mais hábeis em retórica, que poderiam não ser os
filme aborda o final
mais sábios ou virtuosos.
da vida de Sócrates,
em especial seu jul- Sua postura de incansável perguntador ren-
gamento e sua con- deu-lhe, porém, diversos inimigos: os poderosos,
denação à morte.
afinal, não gostavam nem um pouco de se verem
expostos em sua ignorância. Em resumo, foi acusa-
do de corromper a juventude e de ensinar crenças
contrárias à religião do Estado e, num julgamento
Somente o exercício intelectual que leva à político e injusto, foi condenado à morte.
definição de um conceito poderia exprimir a es- Curiosamente a execução de Sócrates, quan-
sência ou a natureza de uma coisa, aquilo que a do ele contava 70 anos, coincide com a decadên-
coisa é verdadeiramente. Para Sócrates, não bas- cia da democracia ateniense, enfraquecida por in-
tam exemplos do que é ser corajoso ou do que é trigas, conspirações, corrupção e por uma crise de
ser virtuoso, ele quer saber o que é a coragem ou a valores políticos e morais.
virtude em si mesmas.

2.2 Platão e o Mundo das Ideias

Platão (428‑347 a.C.) era um jovem de 29 a ilusão do saber, levando seus interlocutores a ad-
anos quando Sócrates foi executado. A decepção mitir que não conheciam a essência daquilo sobre
com o regime democrático, que, já em declínio, o que falavam. Em suma, levava‑os a reconhecer
acabou por condenar seu mestre à morte, irá trans- que não sabiam coisa alguma.
parecer em toda a sua obra. Platão, contudo, dá um passo além de seu
O verdadeiro nome de Platão era Arístocles. mestre e ousa elaborar um “saber positivo”, capaz
Ateniense de família aristocrática, recebeu o ape- de garantir a certeza do conhecimento e, conse-
lido pelo qual ficou famoso por ter os ombros lar- quentemente, de orientar a ação ética e política.
gos (os ossos que formam os ombros chamam-se Vejamos, então, algumas das perguntas que
omoplatas). Fiel a Sócrates, Platão comprou a briga Platão procura responder: como podemos conhe-
com os sofistas e continuou denunciando aquilo
cer a realidade? Qual o método, quer dizer, qual o
que acreditava ser o falso saber dos homens, prin-
caminho capaz de garantir que o conhecimento
cipalmente no que se refere aos valores humanos.
é válido e verdadeiro? Quais são os instrumentos
Desiludido, porém, com a democracia, afastou‑se
mais adequados de que dispomos para chegar
da participação política e elaborou aquilo que viria
ao conhecimento: os sentidos ou a razão? O que
a ser considerada a primeira grande sistematização
queremos conhecer: o mundo material, mutável e
do pensamento filosófico.
perecível, ou a realidade superior, a essência eter-
Enquanto os sofistas defendiam que a verda-
na e imutável? Finalmente: é possível conhecer a
de era fruto da convenção humana e ensinavam
realidade, o mundo tal qual ele é?
os homens a defender com brilhantismo qualquer
ponto de vista, Sócrates – preocupado em des- Para responder a essas questões, Platão
cobrir a essência das coisas – se empenhava na preocupa‑se desde o início com a clareza: é preciso
produção de um “saber negativo”, isto é, destruía criar definições; é preciso estabelecer com preci-

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são o significado do que se diz, o significado das das opiniões e dos sentidos sujeitos ao engano,
palavras; é preciso, em suma, criar conceitos. é o mundo do falso conhecimento dos sofistas; o
O método que Platão utilizou para criar con- mundo superior, das essências, por sua vez, é o que
ceitos foi a dialética. A dialética, portanto, respon- Platão almeja conhecer pela razão.
de à primeira pergunta: é o método platônico de E como, afinal, é possível conhecer a realida-
superação da opinião (em grego, doxa). E qual o de, o mundo tal qual ele é? Para responder, Pla-
problema da opinião? É que ela expressa um pon- tão desenvolve a teoria das ideias. Teoria, nesse
to de vista baseado num juízo insuficiente (tenha- contexto, significa a capacidade de ver a “natureza
-se ou não consciência dessa insuficiência); é mais essencial” das coisas em seu sentido eterno e imu-
uma crença do que um conhecimento, ou, se pre- tável; é, pois, o caminho para conhecer a verdade.
ferir, é um conhecimento falso, preconceituoso, A “natureza essencial” de alguma coisa, por sua vez,
sem um fundamento sólido. corresponde àquilo que Platão chama “ideia”.
Os sofistas – critica Platão – defendem sem Na alegoria da caverna, Platão faz uma metá-
pudor qualquer ponto de vista, isto é, qualquer fora: o mundo no interior da caverna corresponde
opinião. Mas Platão não quer se limitar às opiniões, ao mundo sensível, isto é, ao mundo mutável dos
pois elas são múltiplas e podem variar de indivíduo fenômenos, da multiplicidade e do movimento. É
para indivíduo. Ademais, algumas de nossas opi- um mundo ilusório e sujeito ao engano, pura som-
niões decorrem dos sentidos, que, muitas vezes, bra do verdadeiro mundo.
nos enganam. Os homens que passam entre a fogueira e
O conhecimento verdadeiro, por sua vez, é os prisioneiros carregando objetos cujas sombras
aquele que corresponde à essência das coisas, é o se projetam no fundo da caverna, criando a ilusão
único apto a responder o que é algo. Deve ser, por- de que a projeção é a própria realidade, são os so-
tanto, universal, aceito por todos, independente- fistas e os políticos atenienses, que manipulam as
mente de origem, classe, função ou interesses indi- opiniões dos homens comuns. Finalmente, aquele
viduais. Esse conhecimento é chamado por Platão homem que se liberta e sai da caverna é o filósofo.
de ciência (ou, em grego, episteme). O mundo externo é a metáfora do mundo
A admirável novidade expressa pelo pensa- inteligível ou mundo das ideias, ou, ainda, se você
mento de Platão é que ele não adota como ponto preferir, mundo das essências. A teoria filosófica é o
de partida do seu sistema filosófico uma revela- único caminho para a depuração dos sentidos, que
ção externa, uma autoridade divina ou algo que permite ao homem aproximar‑se da contempla-
seja sobrenatural. Antes disso, parte da própria ção das essências imutáveis. Para Platão, as ideias
opinião, submetendo-a, porém, a um reexame crí- são as únicas verdades. O mundo dos fenômenos
tico (lembre-se da dialética). Em seguida, leva às em que vivemos, portanto, é apenas a cópia do
últimas consequências o discurso reflexivo, isto é, mundo superior. Um exemplo: há diversos tipos de
o discurso capaz de se voltar sobre o próprio dis- abelhas: grandes, pequenas, amarelas, negras etc.,
curso, preocupado em justificar-se e legitimar-se, mas essas variações só existem no mundo sensível,
chegando finalmente à verdade pela clareza, pela que é mutável e múltiplo; a essência ou ideia da
razão. abelha, porém, é una, única, imutável e faz parte
A filosofia se converte, assim, numa análise do mundo das ideias.
crítica dos fundamentos, do discurso legitimador Como é possível, contudo, ultrapassar a fron-
do conhecimento como “posse de uma represen- teira que separa esses dois mundos? Platão, para
tação correta do real”. Com isso, respondemos à se- justificar tal dualismo, elabora a teoria da reminis-
gunda questão: a razão é mais refinada do que os cência, na qual supõe que o puro espírito já teria
sentidos para chegar ao verdadeiro conhecimento. contemplado o mundo das ideias, mas tudo esque-
Se você reparar, respondemos também à terceira ce quando se degrada, ao se tornar prisioneiro do
questão: o mundo material é mutável, é o mundo corpo, nascendo em nosso mundo. Assim, conclui

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Filosofia

Platão, conhecer é lembrar. A função dos sentidos, manipulado e enganado pelos políticos. A opinião,
por sua vez, é despertar a alma para as lembranças por mais equivocada que seja, parece a expressão
adormecidas. da verdade quando bem defendida por um hábil
Antes de encerrarmos, chamo a atenção para orador e, assim, faz prevalecer interesses particula-
um detalhe importante. Na alegoria da caverna, o res em detrimento de interesses comuns.
filósofo que se aproximou do mundo das ideias A tirania (governo violento e arbitrário) e a
volta, em seguida, ao mundo sensível. Que conclu- oligarquia (governo de uma minoria poderosa)
sões podemos tirar disso? Como vimos no início, também são rejeitadas, pois, além de não garanti-
as corrupções que marcaram o declínio da demo- rem decisões sábias, representavam uma volta in-
cracia ateniense e a execução de Sócrates produzi- desejada ao passado. Como solução, Platão defen-
ram em Platão uma enorme decepção, levando-o a de a construção de uma “sofocracia” (sophos, como
afastar-se da política. Esse afastamento, no entan- já vimos, significa saber; krátos é governo; sofo-
to, não foi definitivo. Para Platão, a prática filosófi- cracia é, literalmente, governo dos sábios). Nesse
ca representa o “abandono provisório” do mundo caso, sábios são os próprios filósofos que saem da
sensível e a busca do mundo das ideias: se não caverna e, quando voltam, devem transformar‑se
temos condições de avaliar com clareza e eficá- nos governantes dos homens comuns, vítimas
cia a nossa prática quando nela estamos imersos, do conhecimento imperfeito, ou, nas palavras do
é preciso romper com ela, olhá‑la de outra esfera, próprio Platão: “Os males não cessarão para os ho-
avaliá‑la de longe, para, somente depois, retornar mens antes que a raça dos puros e autênticos filó-
com maior clareza. sofos chegue ao poder.” (Carta VII).
Com a filosofia, é certo, Platão enfatiza a teo- Na sociedade imaginada por Platão, a família
ria, mas não deixa que ela se transforme num fim e a propriedade deveriam ser eliminadas e a edu-
em si mesma, colocando‑a a serviço de uma aplica- cação ficaria a cargo do Estado. As funções sociais
ção prática, baseada em princípios que vão além do de cada indivíduo seriam decididas de acordo com
imediato, da opinião. A filosofia se converte, desse suas aptidões. Assim, os indivíduos com “alma de
modo, em condição racional da ação, conservando bronze”, isto é, de sensibilidade mais grosseira, cui-
um interesse prático muito claro: a dimensão ética dariam da subsistência da cidade, dedicando‑se ao
e política da existência humana. O filósofo, portan- artesanato, ao comércio e à agricultura. Os indiví-
to, é, para Platão, aquele que sai da “caverna”, mas duos com “alma de prata”, considerados os mais
não esquece o compromisso de retornar para al- corajosos, cuidariam da defesa da cidade. Por fim,
terar as relações humanas, conduzindo-as o mais os indivíduos com “alma de ouro” seriam instruídos
próximo possível da verdade. A caverna, afinal, na arte de pensar a dois, isto é, na arte de dialogar.
apesar de inferior, é o próprio mundo humano. Estudariam Filosofia até os cinquenta anos, quan-
Platão, finalmente, manifesta‑se contrário à do, então, seriam admitidos no corpo supremo dos
democracia, pois entende que o povo será sempre magistrados, a quem caberia o governo da cidade.

2.3 A Filosofia Medieval de Agostinho e Tomás de Aquino

No século II a.C., a Grécia se encontrava sob o No plano político, porém, a vida sob o do-
domínio do Império Romano. A perda da autono- mínio do Império foi drasticamente alterada: o ci-
mia das cidades gregas, contudo, não significou o dadão não era mais aquele que participava cole-
aniquilamento de sua cultura, mas, curiosamente, tivamente das decisões políticas em praça pública,
a sua expansão: os romanos reconheceram e difun- redigindo leis e votando. Em Roma, diferentemen-
diram o pensamento filosófico da Grécia Antiga. te, eram poucos os que detinham poder político.

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Tal fato acabou por gerar uma mudança no enfo- (354‑430). Nascido em Hipona, uma província
que da Filosofia, que, ao deixar de lado os proble- pertencente ao Império Romano, converte‑se ao
mas políticos, volta‑se para o interior do homem, cristianismo aos 32 anos e, em 395, torna‑se bispo.
preocupando‑se fundamentalmente com a vida Quando morre, na primeira metade do século V,
privada e com as regras de conduta sociais des- sua cidade já está cercada pelos vândalos: é a dis-
tinadas ao bom viver. No campo da ética, os filó- solução do Império. Cronologicamente, Agostinho
sofos romanos não chegaram perto da grandeza é, ainda, um pensador do período antigo. Sua obra,
e originalidade dos gregos. Sua grande contribui- porém, reflete as mudanças históricas de sua épo-
ção, contudo, refere‑se ao Direito. Foram eles os ca e prenuncia o importante papel cultural exer-
responsáveis – ainda sob a influência da filosofia cido pelo cristianismo ao longo da Idade Média,
grega – por elaborar um sistema jurídico impes- além de contribuir para a consolidação da filosofia
soal, sistemático e técnico. cristã. Após sua morte, foi canonizado pela Igreja,
É ainda sob o domínio do Império Romano passando a ser chamado pelos cristãos de Santo
que nascerá Jesus. Após sua crucificação, surgem Agostinho.
diversos seguidores de Cristo, todos inicialmente A aproximação rigorosa e sistemática que
combatidos pelo Império. Lentamente, o cristia- Agostinho elaborou entre o cristianismo e a filo-
nismo, tornado religião, foi se difundindo em di- sofia de Platão ficou conhecida como platonismo
versas comunidades, sem, contudo, possuir uma cristão. O dualismo característico da teoria das
unidade. Ameaçado não apenas pelo Império, mas ideias e da teoria da reminiscência é recuperado e
também pelas divergências internas, foi necessária transformado por Agostinho na teoria da ilumina-
a criação de uma unidade institucional que desse ção, da qual decorre a noção de interioridade, que
à nova religião a identidade capaz de proporcionar prenuncia o conceito de subjetividade do mundo
maior integração entre as comunidades cristãs. moderno. Para Agostinho – assim como para Pla-
Nesse processo, a filosofia grega terá importância tão –, o conhecimento supõe algo anterior aos sen-
fundamental, contribuindo com a formulação de tidos e à própria linguagem. No lugar, porém, do
uma doutrina única ou ortodoxa, que significa, li- mundo das ideias, Agostinho coloca Deus. A teoria
teralmente, doutrina correta, rechaçando‑se as da reminiscência, por sua vez, é substituída pela
doutrinas divergentes como heréticas, isto é, que teoria da iluminação. Vejamos como.
contrariam os dogmas da Igreja. Platão argumenta que não é possível ensinar
Diversos teólogos se opõem à utilização da a virtude, trata‑se, antes, de “lembrar” sua essên-
filosofia grega, alegando tratar‑se de um pensa- cia (contemplada no mundo das ideias por todo
mento pagão, ou seja, alheio à mensagem cristã ser humano antes de nascer). Agostinho concorda
e, portanto, pernicioso, perigoso. Outros teólogos, com Platão que a virtude não pode ser ensinada!
por sua vez, sustentam que a filosofia grega é uma Veja o que diz o filósofo cristão sobre o conheci-
preparação racional para a fé, podendo desempe- mento:
nhar um papel legítimo, desde que submetida aos
textos sagrados. Essa tensão que se estabeleceu
entre a Teologia e a Filosofia ficou conhecida como No que diz respeito a todas as coisas que
compreendemos, não consultamos a voz
o conflito entre razão e fé e permeou as discussões
de quem fala, a qual soa por fora, mas a
religiosas entre os séculos II e V da nossa era, mar- verdade que dentro de nós preside à pró-
cando, também, a decadência do Império Romano. pria mente, incitados talvez pelas palavras
A patrística, surgida nesse contexto, é a fi- a consultá‑la. Quem é consultado [...] é
losofia dos padres da Igreja, também conhecidos Cristo, que habita [...] no homem interior.
como apologistas. Seu objetivo: combater as he-
resias e justificar a fé. Sua estratégia: mesclar fé e E ainda: “[...] quem nos ouve conhece o que
razão, subordinando esta àquela. eu digo por sua própria contemplação e não atra-
O principal nome da patrística é Agostinho vés de minhas palavras.”

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Filosofia

Em sua última obra, A cidade de Deus, Agos- disputas políticas entre duques, condes e barões,
tinho formula uma concepção histórica com um que montam suas próprias milícias e, muitas ve-
sentido, com uma direção, com início, meio e fim. zes, detêm mais poder que o próprio rei. Em um
O evento inicial da história é a criação, seguida por mundo assim fragmentado, a Igreja representa um
sucessivas rupturas e alianças com o Criador, desde elemento agregador e de forte influência. Grande
a expulsão e queda de Adão e Eva do Paraíso até o parte da cultura greco‑romana, afinal, é conserva-
da nos mosteiros e os monges, os únicos letrados
juízo final e a redenção. A aliança entre Deus e o
da Idade Média, tornam‑se os responsáveis por
homem é representada pela cidade divina, que, ao
elaborar a fundamentação religiosa dos princípios
final, prevalecerá, pois é a finalidade da história. Os
morais, políticos e jurídicos da sociedade medieval.
momentos de ruptura da aliança correspondem
No século XIII, quando nasce Tomás de Aqui-
à prevalência provisória da cidade terrena, que é
no (1225‑1274), o panorama medieval se encontra
também a cidade do pecado.
em franca transformação, pois o renascimento do
comércio estimula o surgimento de novos núcleos
Multimídia urbanos. Desde a criação da Universidade de Di-
reito de Bolonha, em 1088, não cessam de surgir
novas universidades espalhadas pela Europa. A de-
Assista ao filme manda por educação aumenta consideravelmente,
Santo Agostinho,
do diretor italiano atendendo não apenas aos anseios eclesiásticos,
Roberto Rossellini. visando à formação de uma elite para combater
Esse filme focaliza os “hereges”, mas também civis, pois a vida urbana
a principal fase da exige pessoas qualificadas para ocupar os cargos
vida e da obra de
Santo Agostinho: do governo e da administração pública.
o momento em que se torna bispo de Quando as dificuldades decorrentes da ten-
Hipona. O filme mostra seu combate são entre a teologia cristã e a filosofia grega trans-
aos heréticos donatistas, a sua famosa
oratória, suas ideias e realizações. formam‑se em assuntos universitários, tem início
a escolástica ou, literalmente, doutrina da escola,
marcada, a princípio, pelo platonismo agostiniano.
Todavia, o renascimento do comércio inten-
sifica as viagens e, com isso, o contato com outras
A influência de Agostinho é fundamental culturas. A filosofia árabe, bastante avançada para
para a consolidação da Igreja, que, menos preo- a época, traz ao ocidente cristão a obra de Aristó-
cupada em combater os bárbaros (até porque não teles. A novidade intelectual, porém, é vista pela
possuía condições de derrotá‑los pelas armas), Igreja com severas restrições – a concepção filo-
passa a convertê‑los, iniciando o processo de cris- sófica do estagirita é, ao mesmo tempo, rigorosa
tianização da Europa ocidental. É também com o e divergente da teologia elaborada até então, que,
auxílio do pensamento agostiniano que a Igreja, a ameaçada, apressa‑se em condenar trechos dos
“detentora terrestre das chaves da cidade de Deus”, textos aristotélicos. Não obstante, seu pensamen-
mantém a supremacia do poder espiritual sobre o to é bem acolhido no ambiente universitário, que
poder temporal durante a Idade Média. procura desenvolver‑se com liberdade e autono-
mia. A obra de Tomás da Aquino é resultado de
O poder temporal, aliás, sem a centralização
sua carreira como professor universitário. Seduzi-
anteriormente proporcionada pelo Império, se
do pela obra de Aristóteles, procura demonstrar a
fragmenta. Com isso, as cidades transformam‑se
sua compatibilidade com a filosofia cristã, tornan-
em lugares inseguros. As pessoas refugiam‑se no
do‑se, assim, o maior nome da escolástica.
campo e deixam de fazer viagens. O comércio prati-
camente desaparece. A economia torna‑se agrária
e de subsistência. A população, de servos a nobres,
torna‑se cada vez mais analfabeta. Acentuam‑se as

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dos: por meio deles, todo e qualquer ser humano


Multimídia apreende a existência autoevidente do movimento
das coisas, como, por exemplo, um dado inegável
Assista ao filme da realidade. O movimento, contudo, é sempre
O Nome da Rosa, causado por alguma outra coisa e, para que a série
do diretor Jean-
-Jacques Annaud. das causas não se estenda ao infinito e possa ser
Na Itália medieval, compreendida pela razão, é preciso chegar à noção
monges francisca- de causa primeira. É aí que o frade dominicano, ao
nos são chamados
para debater com se deixar influenciar pela obra de Aristóteles, adap-
monges de outras ta‑a ao cristianismo: a primeira causa eficiente do
ordens se a Igreja movimento de todo o universo, e que é também a
deve ou não ser pobre. Belos debates
vão ocorrer nesse monastério. sua causa primeira, é Deus.
Além de produzir uma síntese da obra aris-
totélica, adaptando‑a aos dogmas cristãos, Tomás
de Aquino influencia‑se também pela visão políti-
ca do filósofo grego, estudando questões como a
Como cristão, Tomás de Aquino se revela um
natureza do poder e das leis. Chega, ao final, à con-
pensador racionalista e extremamente rigoroso. A
clusão de que a realização humana se aprimora na
função da Filosofia, contudo, continua sendo a de
cidade e que o plano político é a instância possível
servir à fé. Seu propósito intelectual é provar racio-
para o governo não tirânico aliar ordem e justiça.
nalmente a existência de Deus. Para tanto, argu-
Ainda que Tomás de Aquino faça a ressalva de
menta que a definição de Deus como sendo a pró-
que o Estado conduz o ser humano até certo ponto
pria perfeição nada prova, pois a definição é uma
e que, a partir daí, é necessária a atuação indispen-
ideia e nada garante que ela exista de fato na rea-
sável da Igreja, mantendo, portanto, o poder tem-
lidade. Argumenta, ainda, que a existência divina
poral da Igreja acima do poder temporal dos reis, já
não é autoevidente, mas precisa ser demonstrada.
se nota uma atenuação dessa hierarquia. Não deixa
O ponto de partida para o conhecimento
de ser um prenúncio da desarticulação entre políti-
racional sobre Deus é, de acordo com Tomás de
ca e religião, que ocorrerá no Renascimento, como
Aquino, o mundo sensível, percebido pelos senti-
veremos no próximo tema.

2.4 Resumo do Capítulo

Neste capítulo tratamos do início e do desenvolvimento da filosofia. Nos ocupamos com dois mun-
dos: o grego e o medieval. No universo grego, abordamos o pensamento pré-socrático, as filosofias so-
crática e platônica. Na Idade Média, duas grandes figuras da filosofia: Santo Agostinho e São Tomás de
Aquino. Com os pré-socráticos encontramos a primeira forma genuína de filosofia, porque eles rompem
com os mitos e pensam o mundo e suas coisas a partir dos fenômenos desse mesmo mundo. Privilegiam
a explicação racional, criando convenções – não verdades eternas – , e a retórica – a arte de bem falar.
Combatendo os pré-socráticos, Sócrates sustenta a validade de um pensamento que pode atingir
a verdade das coisas. Como método, esse filósofo emprega a ironia e a maiêutica. A ironia para quebrar
as verdades supostamente estabelecidas, e a maiêutica para fazer nascer aquele que pensa. Sua maior
preocupação: a ética.
Com Platão, discípulo de Sócrates, o conhecimento é divido em dois, em sensível e inteligível. E,
para ele, a verdade se encontra no mundo inteligível, das ideias. As ideias guardam a “natureza essencial”

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Filosofia

das coisas em seu sentido eterno e imutável; é, pois, o caminho para conhecer a verdade. Para exemplifi-
car esse pensamento, utiliza o Mito da Caverna.
Na Idade Média, com Santo Agostinho, temos o aparecimento da Patrística, ou seja, a filosofia dos
padres da Igreja. Seu objetivo: combater as heresias e justificar a fé. Sua estratégia: mesclar fé e razão, su-
bordinando esta àquela. Com São Tomás de Aquino, temos a Escolástica, a doutrina da escola. De acordo
com São Tomás, o ponto de partida para o conhecimento racional sobre Deus é o mundo sensível, perce-
bido pelos sentidos: por meio deles, todo e qualquer ser humano apreende a existência autoevidente do
movimento das coisas, como, por exemplo, um dado inegável da realidade. Mas esse movimento é regido
por uma cauda primeira. Por isso, se se quer compreender essas causas é necessário chegar à noção de
causa primeira. É aí que o frade dominicano, ao se deixar influenciar pela obra de Aristóteles, adapta‑a ao
cristianismo: a primeira causa eficiente do movimento de todo o universo, e que é também a sua causa
primeira, é Deus.

2.5 Atividades Propostas

1. A quem pertence a célebre frase: “Conhece-te a ti mesmo”? Qual a forma desenvolvida por esse
pensador para expor as suas ideias?

2. Qual pensador elaborou o teoria das ideias? O que essa teoria procurava explicar?

3. Para Platão, qual é o conhecimento verdadeiro?

4. O que acontece com a filosofia na Idade Média?

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FILOSOFIA MODERNA E
3 CONTEMPORÂNEA

3.1 O que Significa Modernidade?

A Idade Média estendeu‑se do século V ao prepara o terreno para o desenvolvimento da Mo-


século XIV da nossa era; mil anos, portanto. A partir dernidade nos séculos XVII e XVIII.
do século XV, a Igreja começa a perder parte de seu Se, porém, o termo ‘Renascimento’ remete à
poder para os reis, cada vez mais fortes; Inglaterra, retomada de algumas ideias e valores da Antigui-
França, Portugal e Espanha se constituem em mo- dade, o conceito de Modernidade merece maior
narquias nacionais. A perda de influência da nobre- atenção. Ao que tudo indica, a origem etimológi-
za e do clero corresponde à ascensão de uma nova ca do vocábulo ‘moderno’ deriva do advérbio lati-
classe social: a burguesia. Dedicados às finanças e no ‘modo’, que significa agora, neste instante, no
ao comércio, os burgueses passam a apoiar a coroa momento, ou seja, designa o que nos é contem-
em troca de proteção aos seus negócios. porâneo. Por isso, nos habituamos a relacionar o
Os séculos XV e XVI constituem, assim, o Re- conceito de Modernidade àquilo que é novo, que
nascimento, período de intensas transformações. rompe com a tradição. No dia a dia, o termo ‘mo-
Uma das mais notáveis é o declínio da perspectiva derno’ adquire um sentido positivo de mudança,
teocêntrica – tipicamente medieval – e o desenvol- transformação, progresso (um cinema moderno,
vimento da mentalidade antropocêntrica, de for- por exemplo, é um cinema bem equipado, com
ma que o indivíduo volta a ser valorizado em sua tecnologia de última geração e design arrojado).
integralidade. Historicamente, contudo, a Modernidade é o pe-
O humanismo renascentista, ao defender a ríodo compreendido entre os séculos XVII e XVIII;
independência e a liberdade de pensamento e ao trata‑se de um período diretamente relacionado
retomar sob uma nova perspectiva algumas ideias à supervalorização do indivíduo e da ideia de pro-
e valores da Antiguidade greco‑romana, rompe gresso.
com a visão filosófico‑religiosa da Idade Média e

3.2 Racionalismo e Empirismo

O francês René Descartes (1596‑1650) nasceu


Atenção
numa época de transição, em meio ao “fogo cruza-
do” de um novo pensamento que se anunciava e De acordo com Descartes, nada garante que
o saber cotidiano, adquirido pela tradição ou
do pensamento tradicional, que ainda sobrevivia
pela experiência, sem maiores preocupações
de maneira muito forte. com o método, seja de fato um conhecimen-
to verdadeiro.

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Não é exagero dizer que a filosofia cartesia- ainda não se impôs, é compreensível que a maio-
na inaugura o pensamento moderno. Situando‑se, ria das pessoas se sinta mergulhada num mar de
porém, num período de transição, ela possui, ao incertezas. Daí a simpatia que seus contemporâ-
mesmo tempo, elementos de ruptura e de conti- neos nutrem pelos filósofos céticos da Antiguida-
nuidade em relação à filosofia antiga e medieval. de. Descartes, ao contrário, pretende encontrar
Importante deixar bem claro que a ruptura com a uma certeza básica e absoluta, imune às dúvidas
tradição não significa que o filósofo a ignora, mas céticas. A etapa inicial da argumentação cartesiana
sim a critica, ou melhor, ele aborda os temas da fi- elege a dúvida como recurso metodológico. A cha-
losofia tradicional sob uma nova perspectiva. mada dúvida metódica coloca tudo em xeque: as
De acordo com Descartes, nada garante crenças, as opiniões, os sentidos, o conhecimento
que o saber cotidiano, adquirido pela tradição ou adquirido pela tradição, pela experiência, pela au-
pela experiência, sem maiores preocupações com toridade etc. Descartes chega, então, a criar a “dú-
o método, seja de fato um conhecimento verda- vida hiperbólica” (exagerada): e se a realidade for
deiro. Antes disso, pode tratar‑se apenas da con- uma ilusão; e se o mundo foi criado por um gênio
solidação de erros acumulados através dos anos. maligno ou por um deus enganador que se diverte
Não foi outra coisa, a propósito, o que Descartes brincando de enganar meus sentidos?
testemunhou em sua época: a ciência de inspira- Ao elevar a dúvida até o limite, Descartes
ção aristotélica havia perdurado por, aproximada- abre o caminho para chegar à sua primeira certeza:
mente, dois mil anos, mas ruiu aos pés do mode- se existe um gênio maligno que gosta de me ilu-
lo de ciência inaugurado por Copérnico, Galileu e dir, é necessário, então, que eu exista e, por mais
Kepler, desautorizando, inclusive, o discurso oficial que o gênio maligno me engane, jamais poderá fa-
da Igreja, cuja autoridade ficou irremediavelmente zer com que eu não seja nada. Sendo assim, se eu
abalada. duvido, é porque eu penso. Se eu penso, é porque
Como, a partir de então, seria possível garan- eu existo. Daí, sua celebre afirmação: “penso, logo
tir a certeza do conhecimento? Descartes volta‑se existo” (em latim, cogito, ergo sum). Resumindo,
para dentro de si mesmo; ele aposta no poder crí- para duvidar é necessário pensar. A existência do
tico da razão. Logo no início de uma de suas mais ser pensante, portanto, não está sujeita à dúvida;
importantes obras, o Discurso do método, ele afir- trata‑se de uma certeza básica, originária.
ma que o bom-senso é natural ao homem e com-
partilhado por todos. O erro, por sua vez, resulta do Multimídia
mau uso da razão. Para evitá‑lo, conclui, é preciso
desenvolver um método, isto é, um caminho, um Assista ao filme
procedimento capaz de garantir a certeza do co- Descartes, do dire-
tor Roberto Ros-
nhecimento. sellini. Em qua-
Fascinado pela Matemática, devido à sua cer- se três horas de
filme, Rossellini
teza e ao seu caráter autoevidente (a verdade ma- realiza, com seu
temática mostra em si mesma o seu próprio funda- realismo caracte-
mento), Descartes a elege como modelo metódico rístico, um retrato
fascinante da vida
para chegar à certeza também em outras esferas de Descartes e sua busca incessante
do saber, como a Física, a Moral e a Metafísica. Em pelo conhecimento.
outras palavras, seu objetivo é alargar o campo de
eficácia da razão por meio de um método de apli-
cação universal, capaz de fundamentar a unidade
do saber.
Em certo sentido, Descartes se coloca na Ao atingir, porém, a certeza da existência
da substância pensante, Descartes continua duvi-
contramão de seu tempo. Nos períodos de crise,
dando do corpo. Ter certeza sobre a existência do
em que a tradição ainda não morreu e a novidade
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Filosofia

corpo significaria ir além do pensamento puro, de- Não podemos esquecer, contudo, que o ob-
penderia dos sentidos, da experiência, do conheci- jetivo de Descartes é fundamentar a possibilidade
mento adquirido. Mas nada disso pode ser garan- do conhecimento científico. Afirmar a existência
tido pela certeza do cogito, isto é, do pensamento. de Deus foi o modo que encontrou para superar
Difícil, aliás, não lembrar aqui do filme Matrix. seu idealismo em direção a uma filosofia realista,
Para garantir a passagem do mundo interno capaz de estabelecer a ponte entre o mundo inte-
para o externo, Descartes lança mão da chamada rior e o exterior e, com isso, fundamentar o conhe-
“prova ontológica da existência de Deus”. A exis- cimento científico.
tência da dúvida, argumenta o filósofo, prova a Em suma, Descartes rompe com a tradição
carência de conhecimento do ser humano, que se filosófica ao preocupar‑se com o desenvolvimen-
percebe imperfeito e finito. Assim, dúvida é igual a to de uma metodologia rigorosa, capaz de funda-
imperfeição e finitude humanas. mentar a ciência nascente, e, nesse sentido, se faz
As ideias de perfeição e infinitude, por sua moderno. Todavia, ao invocar Deus para não cair
vez, não podem ser fruto da mente humana, afi- no ceticismo que pretendia refutar, conserva um
nal a razão e o bom-senso garantem que uma ideia aspecto da filosofia tradicional, qual seja, o recurso
nunca pode ser maior do que a sua causa. Desse à metafísica.
modo, um ser finito não pode causar a si mesmo Por sua vez, John Locke (1632-1704) defendia
a ideia de infinitude. Assim, perfeição e infinitude uma teoria do conhecimento, que, posteriormen-
são ideias inatas, causadas nos homens por um ser te, ficou conhecida como empirismo. A palavra
perfeito e infinito, ou seja, Deus. Se Deus possui ‘empeiria’ vem do grego e significa “experiência”.
todas as perfeições em grau infinito, deve possuir Em sua obra Ensaios sobre o entendimento humano,
também o atributo da existência, portanto, con- opõe‑se a Descartes e combate a tese das ideias
clui Descartes, Deus existe (pensar em Deus como inatas. Para o filósofo inglês, o processo de conhe-
inexistente seria, para Descartes, pensá‑lo sem um cimento nunca é anterior à experiência. Antes o
atributo da perfeição, o que é impossível para o ra- contrário, é sempre o resultado das elaborações
ciocínio por ele sustentado). Nesse sentido, Deus é que fazemos de nossa experiência, sentidos e im-
igual a perfeição e infinitude. pressões sobre o real.
Uma vez comprovada racionalmente a exis-
tência de Deus, bem como sua perfeição e infi- Dicionário
nitude, conclui‑se que Deus é bom e não pode
produzir um mundo que seja uma ilusão. Os erros Empeiria: palavra que vem do grego e que sig-
nifica experiência. Aplica-se ao que tem origem
do entendimento humano decorrem de nossas na experiência (por oposição ao conhecimento
imperfeições, que, apesar de tudo, podem ser ate- racional ou a priori).
nuadas por um método rigoroso. Deus é, assim, a
ponte que leva das ideias ao real. Locke, portanto, não adota uma abordagem
A filosofia cartesiana é, portanto, uma filoso- racionalista, ou seja, o ponto de partida do conhe-
fia dualista, que separa corpo e mente. A realidade cimento não é a razão. Antes disso, ele afirma que
da alma – que Descartes chama substância pen- a mente do ser humano, ao nascer, é uma tábula
sante – é completamente separada da realidade rasa, isto é, uma folha em branco, vazia, e que a
experiência vai, aos poucos, fornecendo os dados
do corpo – a substância extensa. É, também, uma
para a futura elaboração do conhecimento. Se não
filosofia idealista e racionalista: a desconfiança que
fosse assim, as crianças já estariam aptas a encontrar
nutre pelos sentidos leva‑o a recusá‑los como pon-
em si as ideias inatas. Ademais, observa Locke, a
to de partida do conhecimento; este, por sua vez, ideia de Deus não se encontra em toda parte ou,
se constitui a partir das ideias, submetidas sempre no mínimo, há povos que não desenvolvem a re-
ao crivo da razão. Há, assim, isolamento do “eu” presentação de um Deus como ser perfeito.
(solipsismo) em relação a todo o mundo externo, Sendo assim, sustenta que há duas fontes
incluindo o próprio corpo: a consciência está con- possíveis para o desenvolvimento do conhecimen-
denada à certeza solitária de si mesma. to: a sensação e a reflexão. A sensação é resultado

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dos estímulos externos e fornece elementos para o O conhecimento, pode‑se argumentar, ini-
desenvolvimento das ideias simples. A reflexão, por cia‑se na experiência e depende de nossa capaci-
seu turno, se reduz à elaboração interna das sen- dade racional de compreender as relações de cau-
sações, produzindo as ideias complexas. As ideias sa e efeito da natureza. Hume, porém, coloca sob
simples são as que resultam da percepção da qua- suspeita as relações de causa e efeito que pensa-
lidade das coisas, como solidez, extensão, cor, som, mos encontrar na natureza.
sabor etc., que é relativa e subjetiva, podendo va- O fogo queima? É o que a experiência nos
riar de sujeito para sujeito. Finalmente, por meio da confirma. A regularidade da natureza e as relações
análise, o sujeito ata e desata as ideias simples, pro- de causa e efeito dos fenômenos naturais, contudo,
duzindo ideias complexas, as quais são formadas não existem senão em nossa mente. Não se trata
exclusivamente pelo intelecto e não têm validade de uma verdade absoluta, mas de um pressuposto
objetiva; são nomes que criamos para ordenar as indispensável ao processo de conhecimento.
coisas. Seu valor é prático e não cognitivo. Se, todas as vezes que me encostei ao fogo,
Ao aceitar a sensibilidade como ponto de queimei-me, se o mesmo aconteceu com todas as
partida do conhecimento, Locke rejeita a Metafísi- outras pessoas, sou capaz de prever, pressupondo
ca e conclui que não podemos conhecer as coisas a regularidade da natureza, que, no futuro, se en-
em sua essência. Em outras palavras, podemos ter trar novamente em contato com o fogo, mais uma
opiniões sobre o mundo natural, mas não conheci- vez me queimarei. O hábito, e nada mais do que
mento verdadeiro. o hábito, nos leva a formular a noção de causa e
Se compararmos o racionalismo cartesiano efeito, que, todavia, não é um dado da natureza. A
com o empirismo de Locke, podemos dizer que este razão, portanto, é limitada para conhecer as coisas.
privilegia a experiência sensível como fonte inicial O máximo que ela consegue é fazer relações a par-
do processo de conhecimento enquanto Descartes tir do hábito.
privilegia a razão. Isso não quer dizer que o racio- Nesse caso, caro(a) aluno(a), observe bem: o
nalismo despreza a experiência sensível, mas que verdadeiro e o absoluto são inatingíveis. E mais, as
ela está sujeita a enganos e, portanto, o verdadeiro afirmações metafísicas carecem de provas e funda-
conhecimento se elabora no espírito. O empirismo, mentos. Reside nisso, aliás, o ceticismo de Hume.
por sua vez, não despreza o uso da razão, apenas Uma certeza é um conhecimento plenamen-
subordina o seu uso ao resultado da experiência. te demonstrado, que não admite dúvidas. Mas o
As consequências de se adotar uma teoria que não admite dúvidas? Tudo o que conhecemos
ou outra são enormes. Os racionalistas confiam na depende da nossa sensibilidade, dos nossos instru-
possibilidade de se atingir verdades universais e mentos de medição, de teorias, de conceitos. O co-
eternas. Já os empiristas admitem que o conheci- nhecimento humano começa e termina no mesmo
mento se inicia sempre a partir de uma realidade lugar:
em constante transformação e, com isso, acabam
por questionar o caráter absoluto da verdade, con-
cluindo que tudo é relativo ao espaço, ao tempo, a) todo conhecimento parte necessaria-
ao humano. mente dos sentidos e da razão;
Foi, contudo, o filósofo escocês David Hume b) toda certeza esbarra, necessariamente,
(1711‑1776) quem levou ao limite o pensamen- nas limitações dos sentidos e da razão.
to empirista. Assim como Locke, Hume descarta a
possibilidade de se conhecer a essência das coisas.
O espírito, ou a essência do ser humano,
enquanto algo imutável, não pode ser conhecido.
Não há metafísica possível. Tudo que resta é a na-
tureza humana, entendida não como substância,
mas reduzida às maneiras pelas quais a mente as-
socia ideias. O que importa, para Hume, é investi-
gar como se dão tais associações.

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Filosofia

3.3 O Criticismo de Kant

Immanuel Kant (1724‑1804) foi um dos prin- A “revolução copernicana” em Filosofia in-
cipais nomes do iluminismo alemão. De início, se- verteu o jogo, deslocando os objetos do centro
duzido pelo racionalismo, torna‑se leitor de Hume do processo de conhecimento e, em seu lugar, co-
e compreende que não só é possível como acon- locando o próprio sujeito do conhecimento. Ora,
selhável colocar a razão em dúvida, chegando, por se o iluminismo procurou elevar a razão ao status
isso, a dizer que Hume o despertou de seu “sono de “Sol”, capaz de iluminar as trevas da ignorância,
dogmático”. cumpria colocar esse “Sol” no centro do conheci-
Dogmático é aquele que aceita, sem questio- mento e indagar:
namentos – sem crítica, portanto –, algumas ideias.
É nesse sentido, denuncia Kant, que toda a Filosofia a) o que é a razão?
anterior a Hume incorreu no erro dogmático, pois b) o que é a experiência?
aceitou, sem questionar, sem criticar, que concei-
c) o que elas podem e não podem conhe-
tos como Deus, alma, infinito e finito, causa e efei-
cer?
to, matéria e forma, substância etc. pudessem ter
uma realidade em si mesmos, que fosse, de algum
modo, apreensível pela razão. Ou, dito de modo O erro dos racionalistas (entre eles Descar-
inverso, nada prova que as ideias produzidas por tes) foi supor que as ideias são inatas, o que não se
nossa razão correspondam exatamente a uma pode provar; o erro dos empiristas (entre eles Loc-
realidade externa, que existe em si e por si. Dessa ke e o próprio Hume) foi supor que a “estrutura da
forma, ao elaborar a sua teoria do conhecimento, razão” é adquirida pela experiência. Kant procura
Kant coloca a razão em um “tribunal”, a fim de ava- superar o impasse. A razão, afirma, é uma estrutu-
liar cuidadosamente o que pode ser conhecido de ra vazia, sem conteúdo, pura forma. Essa estrutura
modo legítimo e qual o tipo de conhecimento que não é adquirida pela experiência nem é subjetiva.
não tem fundamento. Antes disso, é inata (todo ser humano nasce com
ela) e, assim, universal. A estrutura da razão, por-
Sua crítica da razão pura, como o nome indi-
tanto, é anterior à experiência ou, como diz Kant,
ca, tem o objetivo de avaliar criticamente até que
usando um termo latino, é a priori: é uma condição
ponto é possível falar em “razão pura”, independen-
para que, posteriormente, o conhecimento seja
temente da experiência individual. Por esse moti-
atingido.
vo, aliás, seu método é conhecido como criticismo.
Se a razão é uma estrutura formal, a expe-
A ambição filosófica de Kant é superar a di-
riência, por sua vez, fornecerá a matéria, isto é, o
cotomia entre o racionalismo e o empirismo. Para
conteúdo (variável) do conhecimento, ou melhor,
tanto, propõe aquilo que ele mesmo chama uma
o conhecimento racional é a síntese que a razão
“revolução copernicana” em Filosofia. De acordo
realiza entre uma forma universal inata e um deter-
com Kant, toda Filosofia anterior, incluindo racio-
minado conteúdo oferecido pela experiência.
nalistas e empiristas, cometeram o mesmo erro:
elaboraram teorias do conhecimento partindo da De acordo com Kant, a estrutura a priori da ra-
realidade (podemos dizer: dos objetos, das coisas) zão é constituída pela forma da sensibilidade (isto
e não da razão, ou seja, colocaram os objetos no é, a capacidade da percepção sensorial) e pela for-
centro do processo de conhecimento e deixaram ma do entendimento (isto é, a capacidade da inteli-
os sujeitos girando em torno deles. Acreditaram, gência ou do intelecto). A função da razão, separa-
ainda, que a realidade era racional, podendo ser da da sensibilidade e do intelecto, não é conhecer
conhecida integralmente pelas ideias da razão. coisa alguma, mas regular e controlar a sensibilida-

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de e o intelecto. A partir dos dados da experiência associativos de nossa mente (por exemplo: “a água
(conteúdo variável), colhidos pela sensibilidade e ferve toda vez que chega aos 100 graus centígra-
pelo intelecto (estrutura inata e universal), a razão dos”) foram colocados sob suspeita desde Hume e
produz uma síntese, quer dizer, organiza as percep- Kant, por sua vez, admite a insuficiência do hábito
ções, transformando‑as em conhecimentos inte- – e, portanto, da experiência – para se atingir um
lectuais ou conceitos. conhecimento verdadeiro, universal e necessário.
Para superar o impasse, Kant introduz a ideia
Curiosidade de juízo sintético a priori, isto é, um tipo de juízo
cuja síntese depende da estrutura universal e ne-
A vida de Kant foi austera (e regular como cessária da razão e não da variabilidade das expe-
um relógio). Levantava-se às 5 horas da riências individuais. A noção de causalidade, por
manhã, deitava-se todas as noites às 22 ho-
ras e seguia o mesmo itinerário para ir de exemplo (assim como a de quantidade e de qua-
sua casa à Universidade. Diziam até que as lidade, entre outras), não é dada pelos sentidos.
mulheres de Königsberg – cidade onde vi- Trata‑se, como diz Kant, de uma categoria do en-
via – acertavam seus relógios quando Kant
passeava. Duas circunstâncias fizeram-no tendimento, ou seja, a causalidade não tem uma
perder a hora: a publicação do Contrato existência em si mesma, ela não está na natureza;
Social de Rousseau, de 1762, e a notícia da antes disso, faz parte da estrutura a priori da razão.
vitória francesa em Valmy, em 1792.
Ou, ainda, a noção de causalidade é uma síntese
a priori feita pela razão humana e que permite a
elaboração de enunciados universalmente válidos,
independentemente da experiência.
Concluindo, todo conhecimento começa
Para se explicar melhor, Kant desenvolve os pela experiência, mas resulta, em última instân-
conceitos de juízo analítico, juízo sintético e juízo cia, das relações estabelecidas entre as impressões
sintético a priori. No juízo analítico, o predicado, (que possibilitam a experiência) e a estrutura a
isto é, a qualidade, a característica, faz parte da priori da razão (que permite a elaboração do juízo
própria existência do sujeito; ele não produz co- sintético a priori), ou seja, o conhecimento é uma
nhecimento, apenas descreve o próprio sujeito. composição entre a matéria (resultado da expe-
Por exemplo: o triângulo possui três lados. O predi- riência) e a forma (estrutura a priori da razão). Ao
cado ‘três lados’ independe da experiência, sendo levar seu rigoroso raciocínio às últimas consequên-
universal e necessário; é, como diz Kant, a priori. cias, Kant conclui pela impossibilidade de conhe-
Outros exemplos: “o calor é uma medida de tem- cermos os seres da metafísica, afinal, não temos
peratura dos corpos”; “a água é um elemento”. qualquer experiência sensível sobre eles.
Quando, porém, o predicado nos dá novas
informações sobre o sujeito e permite a síntese
entre ambos, fazemos um juízo sintético. Veja: “o Dicionário
calor dilata os corpos” ou “a água ferve a 100 graus a priori: o a priori, em Kant, é os elementos de
centígrados”. O que acontece nesses enunciados? conhecimento (intuições, conceitos, julgamen-
Os predicados ‘dilata os corpos’ e ‘ferve a 100 graus’ tos) independentes de qualquer experiência.
são informações novas sobre os sujeitos ‘corpos’ e
‘água’, respectivamente. No juízo sintético, portan-
Assim, finaliza Kant, não podemos conhecer
to, nota‑se uma relação causal entre sujeito e pre-
a coisa em si, não podemos conhecer a essência, a
dicado.
substância (o noumenon, como diz o filósofo) das
Em resumo, o juízo analítico é uma verdade coisas. Tudo o que podemos conhecer são os fenô-
da razão. O juízo sintético, porém, não pode ser menos (phainomenon), isto é, aquilo que “aparece”
considerado uma verdade de fato, pois os hábitos para nós. A realidade, portanto, não é exterior ao

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Filosofia

intelecto. Antes o contrário, o mundo dos fenôme- experiência como fornecedora da matéria do co-
nos só existe na medida em que “aparece” para nós nhecimento, é a razão, com sua estrutura a priori,
e, nesse sentido, participamos de sua construção. que constrói a ordem do universo.
A filosofia de Kant, com isso, esbarra no idea-
lismo, pois, ainda que reconheça a importância da

3.4 O Contratualismo de Hobbes, Locke e Rousseau

A Modernidade foi, também, um período de tado de coisas, um homem será sempre um inimi-
intensas transformações políticas e, apesar das di- go em potencial de outro homem. As frequentes e
ferenças, às vezes radicais, que diferenciam os pen- infindáveis disputas provocam a guerra de todos
sadores modernos entre si, há elementos que os contra todos e, assim, o homem se faz o “lobo” –
unem em uma mesma constelação intelectual. ou seja, o predador – do próprio homem. Ao invés
A descoberta do Novo Mundo e das tribos da paz e da segurança, predominam a angústia, o
selvagens no início do século XVI, a revolução medo e a insegurança constantes. Ao invés do de-
científica que amadurece no início do século XVII, a senvolvimento da ciência e do progresso, capazes
ambição de dominar e controlar a natureza e cons- de fornecer conforto a todos, a vida permanece
truir uma ordem social racional capaz de proteger precária e incerta.
a vida contra a agressão dos outros dão o tom do Os seres humanos, continua Hobbes, não são
pensamento político moderno, marcado, sobre- sociáveis por natureza. Entretanto, são capazes de
tudo, pela crítica contundente à ideia de “origem perceber, pelo uso da razão, que podem encontrar
divina do poder dos reis”, revelando, também na melhores meios de afastar o medo e assegurar a
política, a tendência de laicização do pensamento. autopreservação. Quando, com tal objetivo, resol-
É igualmente comum entre os pensadores moder- vem criar uma nova ordem, na qual todos abdicam
nos a utilização de alguns conceitos, tais como: di- de sua vontade em favor de um homem ou de uma
reito natural, Estado de natureza e contrato social. assembleia de representantes, estão, na verdade,
No embate entre as novas exigências cien- celebrando um contrato, um pacto, e, assim, criam
tíficas e os extremados anseios políticos e sociais uma sociabilidade artificial, mais interessante e efi-
de um mundo em franca transformação, as teorias caz do que a vida no precário Estado de natureza.
jurídico‑políticas dos séculos XVII e XVIII apresen- O contrato social de Hobbes resume‑se, des-
tam uma tensão peculiar: ora legitimam o abso- se modo, à seguinte fórmula: os súditos cedem
lutismo e o despotismo, ora defendem as ideias toda sua liberdade ao soberano, que, por sua vez,
liberais, que, mais tarde, conduziriam à Revolução garante paz e segurança a seus súditos. Conclu‑
Francesa. É nesse ambiente que se dá a elaboração são, o poder soberano deve ser:
do pensamento de Hobbes, Locke e Rousseau.
O inglês Thomas Hobbes (1588‑1679) é o au- a) absoluto (o Estado está “absolvido” de
tor da célebre frase “o homem é o lobo do homem”. qualquer constrangimento, não poden-
No Estado de natureza, carente de organização do ser contestado);
política, todo ser humano é absolutamente livre b) ilimitado (a violência é monopolizada
para fazer aquilo que quiser. Mas a liberdade des- pelo Estado, que pode usá‑la a fim de ga-
medida, argumenta Hobbes, é ruim, pois todos fa- rantir a segurança dos súditos);
rão qualquer coisa que estiver ao alcance para sa-
c) indivisível (cabe ao Estado administrar,
tisfazer seus desejos egoístas e preservar a própria
legislar e julgar; decidir o que é justo e
vida, sem se preocupar com os demais. Num tal es-
injusto).

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Todo esse poder estatal resulta da autoridade dade, proporcionando tranquilidade e segurança a
que lhe foi consentida pelo súdito. Frise‑se, por fim, todos.
que Hobbes não é defensor do absolutismo real, A constituição de um corpo político é uma
mas de um Estado forte, que pode ser tanto mo- estratégia para melhor preservação desses direi-
nárquico quanto constituído por uma assembleia. tos. O poder, então, é delegado por consentimento
É significativo, nesse sentido, o nome da principal a uma assembleia ou soberano. Do mesmo modo
obra política de Hobbes: Leviatã. que o poder foi delegado por consentimento, po-
Apesar do viés absolutista da filosofia de derá ser retirado daqueles que não governam no
Hobbes, já é possível notar em seu pensamento interesse da maioria ou que violam a liberdade e os
alguns valores liberais que prevalecerão daí em direitos dos indivíduos (novamente Locke diverge
diante: a valorização do individualismo, a garantia de Hobbes).
da propriedade privada e a preservação da paz e da O contrato preconizado por Locke é, portan-
segurança como atributos indispensáveis à realiza- to, um pacto de consentimento e não de submis-
ção dos negócios burgueses. são. Os direitos naturais do homem, argumenta,
Os anseios liberais irão, finalmente, se mos- não desaparecem com a criação do Estado. Antes
trar com toda força no pensamento de outro in- disso, justificam a sua criação e limitam o seu po-
glês: John Locke (1632‑1704). Suas ideias políticas der.
contribuem para o amadurecimento das revolu- Enquanto Hobbes defende a soberania abso-
ções liberais ocorridas na Europa e nas Américas. luta e indivisível, para Locke o legislativo é o poder
supremo, devendo permanecer acima do poder
Atenção executivo (observe que, até esse momento, não se
desenvolveu ainda a teoria da divisão dos três po-
O contrato preconizado por Locke é, por- deres, o que ocorrerá somente no século XVIII, com
tanto, um pacto de consentimento e não de
submissão. Os direitos naturais do homem, Montesquieu).
argumenta, não desaparecem com a criação O suíço Jean‑Jacques Rousseau (1712‑1778),
do Estado. Antes disso, justificam a sua cria-
ção e limitam o seu poder. finalmente, defenderá a soberania inalienável do
povo. O estado de natureza imaginado por Rous-
seau é diferente daquele imaginado por Hobbes e
Ao contrário de Hobbes, Locke não descreve mesmo por Locke. Segundo o pensador suíço, os
o Estado de natureza como um ambiente de egoís- seres humanos, no estado de natureza, são bons,
mo e guerra generalizada. De acordo com ele, os felizes, vivem bem e sadios, cuidando de sua pró-
seres humanos são por natureza livres, iguais, in- pria subsistência, garantida por uma natureza pró-
dependentes e, sobretudo, racionais. Liberdade diga.
não significa, em hipótese alguma, liberdade de Esse estado ideal acabou no momento em
prejudicar os outros. A agressão, antes de tudo, que surgiu a propriedade privada e, com ela, a
tem um caráter insensato e irracional. O agressor é, desigualdade, a diferenciação entre rico e pobre,
portanto, um criminoso que viola leis da natureza poderoso e fraco, senhor e escravo. “O verdadeiro
humana e, como tal, merece ser punido. fundador da sociedade civil foi o primeiro que, ten-
O problema do estado de natureza, contudo, do cercado um terreno, lembrou‑se de dizer isto é
é que não há nele nenhuma instância de poder meu e encontrou pessoas suficientemente simples
acima dos próprios indivíduos. Cada um é juiz em para acreditá‑lo”, lamenta Rousseau na segunda
causa própria. Os riscos das paixões e da parciali- parte de seu Discurso sobre a origem e os funda-
dade são muito grandes e podem desestabilizar as mentos da desigualdade entre os homens.
relações, produzindo conflitos. O contrato social
surge, assim, como a reunião de indivíduos cujo
objetivo é garantir a vida, a propriedade e a liber-

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O indivíduo que surge da desigualdade é cor- O povo, em sua soberania ativa, é considera-
rompido pelo poder e esmagado pela violência. “O do cidadão. Seu papel é redigir, votar e promulgar
homem nasce livre, e por toda a parte encontra‑se leis. Em sua soberania passiva, o povo é considera-
a ferros. O que se crê senhor dos demais não deixa do súdito. Seu papel: submeter‑se às leis que ele
de ser mais escravo do que eles”, sentencia no Ca- próprio redigiu. Com isso, o indivíduo que adere ao
pítulo I de sua mais importante obra, Do contrato contrato social pode abdicar sem medo de sua li-
social. berdade, afinal, obedecer como súdito à lei que ele
mesmo prescreveu na qualidade de cidadão nada
Multimídia mais é do que preservar a própria liberdade.
Como podemos, no entanto, garantir que
Assista ao filme essa lei promulgada pelo povo seja adequada e,
Caindo no Ridículo, ainda por cima, preserve a liberdade do indivíduo?
do diretor Patrice Para resolver o problema, Rousseau distingue pes-
Leconte. É a histó-
ria de um jovem soa pública (cidadão ou súdito) de pessoa priva-
que sai do interior da. A pessoa privada tem uma vontade individual,
da França e vai geralmente ligada a interesses egoístas e à gestão
para Paris em bus-
ca de ajuda para a de bens particulares. Quando uma decisão políti-
sua aldeia. Mostra ca basear‑se na soma de interesses individuais, te-
a hipocrisia, o jogo mos a expressão da vontade de todos. Mas cada
de aparências e as frivolidades que do-
minavam a vida da nobreza antes da re- indivíduo particular também pertence ao espaço
volução, em 1789. público, ou seja, faz parte de um corpo coletivo
com interesses comuns e cuja vontade só pode
ser expressa pela vontade geral. No entanto, nem
sempre o interesse privado coincide com o públi-
co. Aliás, aquilo que beneficia uma pessoa indivi-
Um contrato social como esse, argumenta dual pode prejudicar o coletivo. Por isso, a vontade
Rousseau, é, na verdade, um falso contrato, cujo de todos não deve ser confundida com a vontade
objetivo é colocar as pessoas sob grilhões. O que geral.
Rousseau pretende é a elaboração de um contra- A beleza do pensamento de Rousseau é tam-
to verdadeiro e legítimo, originado pelo consenti- bém a sua fragilidade: é sempre possível a con-
mento do povo. fluência de interesses particulares se sobrepor ao
Enquanto Hobbes defende a alienação da li- interesse comum, fazendo‑se predominar o inte-
berdade em troca de segurança (e, nesse sentido, é resse da maioria. Em todo caso, Rousseau aposta
um defensor do fortalecimento do Estado) e Locke na autonomia e liberdade do ser humano, enten-
sustenta, com outras palavras, que a liberdade de didas como a superação da arbitrariedade e sub-
um termina onde começa a do outro e que o Esta- missão a uma lei erguida acima de si, mas por si
do deve respeitar as liberdades individuais (e, nes- mesma.
se sentido, é um defensor da economia burguesa),
Rousseau propõe outra noção de liberdade, que
dê conta de garantir o exercício democrático. A
liberdade, continua, só pode ser integralmente vi-
venciada em uma sociedade que garanta a parti-
cipação política de todos os cidadãos por meio de
assembleias frequentes (trata‑se daquilo que, mais
tarde, viria a ser chamado democracia direta ou
participativa).

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3.5 O Positivismo de Comte

O francês Augusto Comte (1798‑1857) foi o


Curiosidade
inaugurador do positivismo filosófico. De acordo
com seu sistema, o conhecimento deve basear‑se
exclusivamente nos fatos e nas ciências, renuncian- A Escola positivista de Auguste Comte
do à metafísica. Cabe à razão descobrir as relações exerceu tanta influência nas elites brasi-
leiras no final do século XIX e início do XX
necessárias entre os fenômenos naturais e formu- que, ao definirem um dos símbolos nacio-
lar as leis invariáveis que os regem. A grande novi- nais, a nossa bandeira, colocaram como
dade da filosofia comteana, porém, é a pretensão seu lema, o lema do positivismo: ORDEM
E PROGRESSO.
de estudar os fenômenos humanos com o mesmo
rigor que se estudam os fenômenos da natureza.
De início, Comte afirma que a humanida-
de passou por três estados históricos diferentes:
o teológico, o metafísico e o positivo. No estado
Comte pretende, também, encontrar uma
teológico, os fenômenos físicos são explicados de
ordem social permanente que apresente a mesma
um modo sobrenatural, recorrendo‑se à tradição
certeza e invariabilidade encontradas na ordem
mítico‑religiosa. Nas sociedades tribais, por exem-
natural. Com esse objetivo, elabora uma classifica-
plo, a queda dos corpos é explicada pela ação dos
ção cronológica e, consequentemente, hierárquica
deuses.
daquilo que considera uma evolução científica e,
No estado metafísico, os seres sobrenaturais portanto, humana. Em primeiro lugar, reconhece
são substituídos por forças abstratas e noções ab- na Matemática uma ciência à parte e uma espécie
solutas, que, todavia, conservam muito do pensa- de instrumento de todas as outras. Em seguida,
mento suprassensível. Aristóteles, por exemplo, distingue cinco ciências, partindo da mais antiga e
procura explicar o porquê da queda dos corpos; de geral até a mais nova e complexa: Astronomia, Físi-
acordo com sua teoria, não são os deuses, mas sim ca, Química, Fisiologia (Biologia) e Sociologia (que
a própria “essência pesada” dos corpos que os im- Comte chama sugestivamente “física social”).
pele para baixo, para o seu “lugar natural”.
A Sociologia, da qual Comte se diz fundador,
Por fim, o estado positivo é o estado da ma- é por ele considerada o poder dominante em rela-
turidade humana e decorre do desenvolvimento ção à totalidade do saber científico. Sua pretensão
das ciências; as ilusões são superadas pelo conhe- sociológica, afinal, não é nada modesta: ao tomar
cimento das relações causais e invariáveis dos fa- os modelos da Biologia para explicar a sociedade
tos, cujas leis são descobertas pela observação e como um organismo, o pai do positivismo quer
raciocínio metódicos. Galileu não indaga mais o descobrir as leis necessárias capazes de garantir o
porquê dos fenômenos (não procura as suas cau- “progresso dentro da ordem”.
sas primeiras, o “motor imóvel” de Aristóteles),
A ordem social procurada por Comte é uma
mas contenta‑se em descrever como o fenômeno
ordem invariável, equivalente à ordem natural. Já
ocorre. O termo ‘positivo’ designa, nesse contexto,
seu sistema filosófico tem uma finalidade política:
o real em oposição à ilusão, a certeza em oposição
organizar a sociedade com base na metodologia
ao incerto, o preciso em oposição ao vago.
das ciências positivas, a fim de garantir o desenvol-
vimento da sociedade industrial sem a turbulência
das revoluções.

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Atenção No Brasil, o positivismo exerceu considerável


influência sobre líderes republicanos que se forma-
A ordem social procurada por Comte é uma ram na Escola Politécnica de Paris, devendo‑se a
ordem invariável, equivalente à ordem natu-
ral. eles o lema comteano reproduzido em nossa ban-
deira: Ordem e Progresso.

3.6 O Materialismo Histórico e Dialético de Marx

Karl Marx (1818‑1883) radicaliza a crítica a Marx, auxiliado por seu inseparável colabo-
todos os filósofos que lhe são anteriores, acusan- rador Friedrich Engels (1820‑1895), elabora, assim,
do‑os de apenas interpretar o mundo, quando o uma crítica ao idealismo hegeliano. A interpreta-
mais importante seria transformá‑lo. A busca de ção do processo histórico e da formação da cons-
uma verdade objetiva, segundo Marx, não tem fi- ciência proposta por Hegel restringe‑se ao plano
nalidade teórica, mas prática. Isso, contudo, não das ideias e representações, do saber e da cultura,
significa que Marx dispensou a reflexão teórica. e não leva em conta as bases materiais da socieda-
Antes o contrário, sua obra não deixa de ser inspi-
de em que essas ideias e esse saber são produzidos
rada pela tradição moderna da filosofia crítica.
e pelas quais a consciência individual é formada.
Do mesmo modo que Hegel criticou Kant,
Marx e Engels invertem esse idealismo e ele-
que havia criticado os racionalistas e os empiristas,
Marx também critica seu antecessor Hegel, consi- gem as bases materiais da sociedade como ponto
derando‑o insuficientemente crítico. Um de seus de partida da sua filosofia, que chamam de mate-
principais objetivos – combater as ilusões da cons- rialismo dialético. De acordo com o próprio Engels,
ciência e libertar o homem – não é, afinal, nenhu- “a dialética de Hegel foi colocada com a cabeça
ma novidade para o pensamento moderno. Contu- para cima ou, dizendo melhor, ela, que se tinha
do, se a crítica que Marx faz a Hegel situa‑o, por um apoiado exclusivamente sobre sua cabeça, foi de
lado, na tradição moderna, por outro demonstra novo reposta sobre seus pés.”
seu caráter inovador, capaz de alterar ainda mais Para a longa tradição idealista, é a razão que
os rumos dessa tradição. constrói o tecido do real, ou seja, o mundo mate-
A teoria hegeliana do desenvolvimento do rial é visto como a encarnação da consciência. Para
espírito humano não consegue – denuncia Marx – os materialistas, ao contrário, o mundo material
explicar as contradições da vida social. A principal é anterior à consciência e esta é um reflexo, uma
delas, o avanço técnico, que representa o aumento
derivação da matéria. Todavia, o materialismo dia-
do poder humano sobre a natureza, gerando enri-
lético não considera a consciência um receptáculo
quecimento e progresso, se faz acompanhar pelo
passivo que funciona a partir do estímulo da maté-
crescente empobrecimento da classe operária.
ria. A consciência humana, ainda que determinada
pelas suas condições materiais e históricas, é capaz
Curiosidade
de discernir aquilo que a determina e de agir sobre
Você sabia que nenhum autor teve mais o mundo, possibilitando, inclusive, a ação revolu-
leitores, nenhum revolucionário atraiu cionária.
mais esperanças, nenhum ideólogo me-
receu tantos estudos como Karl Marx no A partir da noção de materialismo dialético,
século XX. Marx formula a sua teoria do materialismo históri-
co. Como o próprio nome já indica, a história passa
a ser explicada por fatores materiais. Muito mais
importante do que a ação dos “grandes vultos da

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história” (de Alexandre, o Grande, a Napoleão Bona- A Moral e o Direito, por exemplo, como ma-
parte e assim por diante) é a forma pela qual uma nifestações da superestrutura, são determinados
sociedade reproduz suas condições de existên- pelas alterações da infraestrutura (e não o contrá-
cia. Isso quer dizer que as transformações sociais rio), decorrentes da passagem de um sistema eco-
decorrem da luta de classes, ou seja, das tensões nômico para outro. Só assim é possível compreen-
e contradições dialéticas surgidas dos processos der que a Moral medieval valorizava a coragem e a
econômicos e técnicos que estruturam o modo de ociosidade da nobreza guerreira e o Direito, num
produção social, isto é, a maneira pela qual as for- mundo cuja riqueza era representada pela posse
ças produtivas se organizam em determinadas re- de terras, considerava ilegal o empréstimo a juros.
lações de produção num dado momento histórico. Já na Idade Moderna, ao contrário, o trabalho é
Das contradições e conflitos que opõem es- moralmente valorizado e a ociosidade condena-
sas duas classes, surge uma nova figura: o burguês, da; do mesmo modo, a cobrança de empréstimo
habitante dos burgos construídos pelos servos a juros passa a ser uma prática legal e moralmente
que se dedicavam ao comércio e ao artesanato e aceita, afinal a riqueza já não é mais medida pela
que, aos poucos, foram comprando sua liberdade posse de terras e sim pelo acúmulo de capital.
pessoal e das cidades. Para entender a sociedade, afirma Marx, é
O modo de produção capitalista surge, as- mais importante estudar a forma como os indiví-
sim, das ruínas do sistema feudal, que opôs os se- duos produzem os bens materiais necessários à
nhores (tese) aos servos (antítese), fazendo nascer subsistência do que saber como pensam, o que di-
o burguês (síntese). Uma vez constituído o novo zem e imaginam. O pensamento, afinal, como ma-
modo de produção, o burguês, dono do capital, nifestação da superestrutura, é determinado pelas
passa a ser a tese e a ele se opõe uma nova antíte- bases econômicas, isto é, pela infraestrutura. Não
se: o proletariado, que nada possui a não ser a sua podemos esquecer, contudo, que o ser humano,
força de trabalho, vendida ao capitalista em troca ao tomar conhecimento das contradições sociais,
de sua subsistência. pode agir ativamente sobre aquilo que o determi-
Ainda de acordo com na. Essa ação transfor-
Marx, podemos dizer que a Multimídia madora da realidade é
sociedade se estrutura em chamada práxis.
dois níveis. O primeiro deles No entanto, con-
Assista ao filme tinua Marx, perceber as
é a infraestrutura, ou seja,
Daens – Um grito de
a base econômica que en- liberdade, do diretor condições materiais e
globa as relações do ser hu- Stijn Coninx. Esse fil- históricas que influem
me fala sobre a terrí- na determinação da
mano com a natureza a fim
vel realidade dos tra-
de produzir a própria sub- balhadores na cidade consciência é um pro-
sistência e as relações entre de Aalst, Bélgica, e cesso difícil, pois o co-
a atuação do padre nhecimento, muitas
os indivíduos e os objetos
Daens, que procura
de trabalho (isto é, as rela- lutar contra essa injusta realidade. vezes, se constrói de
ções entre proprietários e modo distorcido e ilu-
não proprietários). O segun- sório ou, se quisermos,
do nível é a superestrutura, ideológico. Isso significa
constituída pela estrutura que as concepções éti-
jurídico‑política – represen- cas, filosóficas, políticas,
tada pelo Estado e pelo Direito, e pela estrutura estéticas e religiosas da burguesia são estendidas
ideológica –, referente às formas da consciência ao proletariado como se fossem valores naturais e
social, como religião, leis, educação, Filosofia, Ciên- universais, o que acaba por impedir que a classe
cia, arte, Direito, Moral etc. submetida desenvolva sua própria visão de mun-
do e lute por sua autonomia.

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Por que é tão difícil assim que o dominado chama fetichismo da mercadoria, ou seja, a merca-
perceba a sua condição subalterna, aceitando pas- doria se “anima”, se “humaniza”, obrigando o indiví-
sivamente como se fossem seus os valores que, na duo a sucumbir às forças, muitas vezes perversas,
verdade, são daqueles que exploram sua força de da lei do mercado, que propiciam ciclos de crises,
trabalho? Segundo Marx, isso é resultado da alie- guerras e desemprego.
nação e da mais‑valia. A mais‑valia é, em resumo, o Ao fetichismo da mercadoria corresponde si-
trabalho excedente e não pago ao operário. metricamente a reificação humana, isto é, o ser hu-
Como isso é possível? É simples: o trabalha- mano se “coisifica” (res, em latim, significa “coisa”),
dor vende ao capitalista a sua força de trabalho e se desumaniza, se aliena. O que faz com que a rei-
produz certa quantidade de mercadorias. Em tro- ficação não seja percebida é a ideologia: ela camu-
ca, recebe um salário suficiente para garantir sua fla a luta de classes, representando o corpo social
subsistência. O capitalista, por sua vez, vende a como uno e harmônico, e dissimula a real função
mercadoria por um preço superior ao salário pago, do Estado, que não é representar o bem comum,
permanecendo com a diferença daí obtida, isto é, mas proteger os interesses da classe dominante.
o lucro. Todavia, com o aumento da capacidade de Se a tradição jusnaturalista da Modernidade
produção (geralmente obtido com a implantação viu no Estado a condição de sociabilidade humana
de novas tecnologias), o operário passa a produ- e Hegel defendeu‑o como o “deus terreno”, Marx,
zir mais mercadorias no mesmo período. Seu sa- por seu turno, considerou‑o um mal a ser extirpa-
lário, entretanto, continua o mesmo, enquanto o do por meio da revolução. Para tanto, a classe ope-
excedente do capitalista aumenta. Trata‑se, afirma rária deveria organizar um partido revolucionário,
Marx, de uma forma de exploração camuflada de capaz de destruir o Estado burguês e criar um Es-
lucro. tado provisório, a fim de suprimir a propriedade
A alienação, por sua vez, é resultado desse privada dos meios de produção.
processo de venda da força de trabalho: o operário Num primeiro momento, chamado socialis-
não mais projeta ou concebe aquilo que executa mo, se estabeleceria a ditadura do proletariado,
(exige‑se que ele faça e não que pense); o acele- que supõe, ainda, a existência do aparelho estatal,
ramento da produção provoca a mecanização do da burocracia, do aparelho repressivo e jurídico,
trabalho, executado cada vez mais por partes; a a fim de evitar a contrarrevolução. Num segundo
cadência do trabalho é ditada exteriormente, não momento, chamado comunismo, haveria a supres-
obedecendo ao ritmo natural do corpo. Em suma, são da luta de classes e, consequentemente, o de-
o produto que resulta do esforço do operário não saparecimento do Estado e do Direito, levando a
mais lhe pertence e adquire uma existência inde- humanidade à “era da abundância”.
pendente. A essa existência independente Marx

3.7 Pierre Lévy

Em todo ato de aprendizagem, está presen- memorização que interferem profundamente nas
te o processo de comunicação e, nesse sentido, se atividades cognitivas.
pode afirmar que o modo de comunicar e o modo O desenvolvimento da comunicação me-
de conhecer são dois aspectos de uma mesma diada por redes digitais planetárias constitui nova
ação. forma de inteligência coletiva, mais flexível, mais
Essa afirmativa remete à consideração do democrática, fundada na base da reciprocidade
intrincado tema da virtualização da inteligência, à e do respeito às singularidades. Essa premissa do
análise dos procedimentos e dos modos de funcio- pensamento de Pierre Lévy, evocando a inteligên-
namento da mente humana e sua resposta às ins- cia coletiva, a define como uma inteligência que
tituições, às linguagens, aos sistemas de signos, e se distribui em todos os sentidos, continuamente
às técnicas de comunicação, de representação e de valorizada e colocada em sinergia em tempo real,
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reorientando as ciências cognitivas para questões pletamente nova. Nesse sentido, Lévy considera
referentes a novos aspectos da inteligência. que o papel do docente se transforma em ser um
Esse pensamento, portanto, permite com- real ativador da inteligência coletiva nos alunos,
preender a comunicação digital e sua dimensão da dirigindo a aquisição desse conhecimento e incen-
inteligência coletiva, transformando o ensino, para tivando-o, deixando de ser aquele que o detém e
que passe a conceber a ideia do uso de novas for- passando a ser o que oferece, provê e favorece a
mas de comunicação, que permitam a produção e construção de novos conhecimentos (LÉVY, 2007).
a distribuição coletiva do conhecimento. Portanto, considera Lévy que o ciberespaço
é o local da inteligência coletiva, no qual se depo-
sita a inteligência coletiva da humanidade, e que
O Pensamento de Pierre Lévy – Comunicação e
o trabalho do navegador consiste em filtrar, esco-
Ensino
lher e selecionar, junto a outros internautas, o que
realmente interessa em relação a um determinado
sujeito ou tema buscado, investigado (LÉVY, 2005).
De acordo com o que defende Pierre Lévy,
o verdadeiro, o autêntico ato de comunicação é Sobre essa constatação, também aduz o au-
aquele que consiste em construir, cooperativa- tor que
mente, um universo de significados comuns, no
qual todos possam situar-se. Considera, assim, que na base está tudo o que é concreto, físi-
é necessário reconhecer que a inteligência coletiva co, material e que constitui as condições
de possibilidade do resto, porque se não
se encontra em qualquer lugar onde houver hu-
temos as cidades, as ruas, os veículos, os
manidade e que, assim distribuída, pode ser reva- meios de comunicação, provavelmente a
lorizada ao máximo, mediante a evolução de novas inteligência coletiva rapidamente encon-
técnicas e tecnologias. Sustenta que, atualmente, trará limites. É preciso que muitas pessoas
se duas pessoas distantes conhecem duas coisas estejam em relação intensa umas com
as outras para que cheguemos ao grau
complementares, através das novas tecnologias, de cultura e civilização em que estamos,
podem verdadeiramente entrar em comunicação por mais limitado que esse grau seja,
uma com a outra, intercambiando seu saber coo- pois existem piores. Esse capital técnico
perativamente. é a condição do capital social. [...] Esses
novos meios de comunicação oferecem
Esta é, em essência, a inteligência coletiva, condições ao desenvolvimento do capi-
definida pelo autor como aquela que se distribui tal social. Oferecem condições, também,
para todos os lugares, valorizada pela democra- ao desenvolvimento do capital cultural,
cia em tempo real, produto da nova estética e da já que nunca houve tanta informação ou
conhecimento que foi publicado ‘on line’.
nova economia humana; multidimensional e mul-
Além disso, essas informações e conheci-
tissensual, ligada ao corpo e a terra, preocupada mentos têm ‘links’, hipertextos entre si. O
em rematerializar e não em desmaterializar; e que capital técnico oferece, pois, as condições
comunica as capacidades mentais, de imaginação, de um aprimoramento do capital cultural.
as competências que permitem aos indivíduos co- (LÉVY, 2004, p. 12).
laborar, trabalhar e aprender juntos (LÉVY, 2007).
O que se depreende dessa ponderação é Para que essa cultura produza os efeitos de-
que, em função do desenvolvimento de novos ins- sejados, deve se basear na reconstituição das in-
trumentos de conhecimento e de comunicação, formações e dos ensinamentos disponíveis, o que
pendentes da evolução do conceito do saber na se torna viável a partir de um “mediador”, que é
era da informação, o que mais profundamente tem representado pelo professor, como orientador do
se modificado é a relação do homem com o co- processo de análise e adoção de posicionamento
nhecimento, do que decorre o dever de aprender crítico frente ao ensino proposto.
a construir uma relação com o conhecimento com- Ainda, a crescente utilização da tecnologia

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da informação sinaliza a necessidade de se estar Considera, ainda, Lévy (2004) que, graças às
capacitado para desempenhar atividades utilizan- redes digitais, as pessoas trocam entre si todo tipo
do essas novas ferramentas. De acordo com Lévy de mensagens, participam de conferências eletrô-
(2004), o ciberespaço que assim se constrói e se nicas, têm acesso às informações públicas que são
consolida, desenvolvendo-se e evoluindo com in- colocadas em rede, dispõem da força de cálculo
tensa rapidez, será brevemente o principal equipa- de máquinas situadas a milhares de quilômetros,
constroem mundos virtuais lúdicos, passando a
mento coletivo internacional da memória, do pen-
constituir, uns para os outros, uma imensa enciclo-
samento e da comunicação.
pédia viva.
Em sua evolução, a linguagem digital criou
O Novo Espaço Civilizador da Cibercultura novas formas de comunicação e de conexão mun-
dial, revolucionando a tecnologia da escrita e da
Considera Lévy que esse novo espaço é um imprensa, da palavra, do som e da linguagem. Com
espaço invisível de conhecimento, de saberes essa nova linguagem, tornou-se possível transfor-
potenciais de pensamento, do qual nascem e se mar em números (dígitos) a palavra escrita e im-
transformam em qualidades do ser novas manei- pressa, a palavra falada, os sons, os gráficos, os de-
ras de construir a sociedade, espaço qualitativo, senhos, as imagens estáticas e as que se encontram
dinâmico, vivo da humanidade em vias de se au- em movimento. A partir disso, tudo se torna núme-
toinventar, produzindo seu mundo (LÉVY, 2004). ro, submetido a cálculos manipulados por compu-
Configurando o novo espaço de informação tadores, podendo ser transmitido à velocidade da
se encontra a internet, o ciberespaço, a cibercultu- luz, para qualquer parte do mundo (LÉVY, 2004).
ra e, em última análise, estabelece-se a revolução Pouco a pouco, essas tecnologias atingem a fase
digital, que é a etapa final de desenvolvimento das da eletrônica digital, com o ordenador colocando
tecnologias da informação e da comunicação. à disposição as informações de modo multissenso-
Atualmente, assiste-se à constituição de um rial, integrado e integrativo, surgindo a multimídia
novo meio de comunicação, de pensamento e como “mega-meio” de comunicação (LÉVY, 2004).
de trabalho nas sociedades humanas; conexões
Esse vasto labirinto da comunicação de redes
telefônicas entre terminais e memórias informati-
conectadas em todo o mundo através da internet
zadas e extensão de redes digitais de transmissão
é um meio privilegiado de informação, cujas técni-
ampliam a cada dia um ciberespaço mundial, no
qual todo elemento de informação se encontra em cas de transmissão e tratamento da comunicação
contato virtual com todos. Outros textos, imagens, manifestam a sua diversidade máxima e criam um
sons e mensagens são digitalizados e passam a fa- novo espaço incorpóreo e abstrato, “desterritoria-
zer parte da grande rede de informações, como um lizado” e sem limites: o ciberespaço, a região do
fenômeno de avanço da comunicação informatiza- mundo virtual, a diversidade infinita do ser huma-
da ou telemática, como um fenômeno econômico no (LÉVY, 2005).
e cultural em escala planetária (LÉVY, 2004). Os desafios colocados pelo mundo digital e
pelas redes de comunicação planetária oferecem,
Multimídia portanto, elementos para um novo paradigma
também ao ensino, que dá novo sentido à edu-
No YouTube, é possível encontrar vários cação e gera novos modos de pensar e conhecer,
vídeos explicando o que é filosofia e, transformando o ritmo e a modalidade das rela-
mesmo, vários filósofos discutindo suas
ideias. Inclusive uma bela entrevista do
ções pessoais e redefinindo as relações institucio-
filósofo Pierre Lévy, no programa Roda nais e a própria construção do conhecimento.
Vida, em 08/01/2001. Para Lévy (2004), a sociedade contemporâ-
nea vivenciou três grandes revoluções da infor-
mação, que são a oralidade, a escrita/impressão e
as redes digitais. O aparecimento de novas mídias

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modifica toda a estrutura relacional das socieda- mas que também inclua problemas metodológi-
des, promovendo modificações na forma de ver e cos, pessoais e sociais, que continuamente se en-
pensar o mundo. trelaçam com as situações de ensino. A inovação
A noção de tempo é configurada de acordo tecnológica pressupõe, assim, uma inovação educa-
com o ambiente de uma sociedade cultural, sen- tiva, exigindo a abordagem de problemas coletivos,
do que cada revolução da informação transforma a reflexão sobre os êxitos e as dificuldades, adap-
essa visão social, que é uma ilusão historicamente tando as práticas de intervenção – objetivos, méto-
construída. As sociedades orais caracterizavam- dos e conteúdos – a essa nova realidade mundial.
-se pelo tempo presente, cíclico, proveniente das É necessário, também, refletir sobre o para-
narrativas míticas, que sustentavam a memória so- digma atual, que se caracteriza por ser um para-
cial e eram o único registro da cultura vigente. As digma comunicacional, concebendo não somente
narrativas eram recontadas no presente, como um o sujeito que adquire o conhecimento, mas o sujei-
eterno retorno, caracterizando o tempo como um to construtor desse conhecimento. Na sociedade
círculo. Por sua vez, as sociedades da escrita e da da informação, o conhecimento é uma aventura
impressão inauguram a possibilidade de acumu- incerta, que comporta o risco da ilusão e do erro,
lação de conhecimento, de forma que o tempo se a incerteza, pressupondo não apenas novos co-
torna cronológico, linear, e as noções de progresso nhecimentos, mas também o desenvolvimento de
e de futuro permeiam as atividades dos homens. Já capacidades e competências básicas e específicas,
as sociedades digitais instauram um novo tempo, baseadas em relações interpessoais mais sólidas,
mais veloz. Através das redes, ele se torna pluride- consistentes e autênticas. Exige, portanto, que o
terminado, pois vários acontecimentos ocorrem professor seja o mobilizador de conhecimentos e
simultaneamente nas encruzilhadas das teias vir- de capacidades, o supervisor, o desenvolvedor das
tuais. Assim, a imprevisibilidade é a ordem e qual- tarefas de aprendizagem, o guia, o ativador, o pro-
quer ação feita em um ponto da rede reverbera, motor, o monitor e o tutor.
produzindo efeitos inusitados provenientes de
qualquer ponto do planeta (LÉVY, 2004).
Atenção
A inovação tecnológica pressupõe uma ino-
Finalizando as Ideias de Pierre Lévy vação educativa, exigindo a abordagem de
problemas coletivos, a reflexão sobre os êxi-
tos e as dificuldades, adaptando as práticas
A reflexão sobre o pensamento de Pierre de intervenção – objetivos, métodos e con-
teúdos – a essa nova realidade mundial.
Lévy e sua implicação quanto à comunicação e ao
ensino ressalta a nova função da educação e do
professor, que passa, necessariamente, pela ques- Finalmente, é necessário que a escola e o
tão da formação, a qual deve deixar de enfatizar as- professor atentem para uma característica da revo-
pectos cognitivos e voltar-se para uma preparação lução da informática que não deve ser desconside-
que enfatize as relações humanas e a organização rada, por implicar mudanças radicais no modo pelo
dos conhecimentos. qual a escola se organiza e exerce a comunicação
Desse modo, não existe defasagem docente do conhecimento: a forma como o conhecimento
quanto ao domínio dos conteúdos de ensino, mas se encontra disponível a todos, pressupondo uma
sim quanto à dinâmica da classe e sua organização, nova epistemologia didática. Esse é, entre todos
diante dos desafios da Pós-Modernidade e das no- os aspectos do pensamento de Lévy, o que maior
vas linguagens, no cotidiano escolar. incidência tem sobre as mudanças necessárias ao
A ideia de uma formação permanente pro- ensino, porque a tecnologia, a informação dispo-
porcionada pelo ensino deve construir-se, portan- nível, principalmente através da internet, possibi-
to, a partir de uma rede de comunicação, que não lita diferentes formas de acesso ao conhecimento,
se reduza ao âmbito dos conteúdos acadêmicos, através de hipertextos variados.

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Filosofia

As mudanças profundas na Didática, tendo sino-aprendizagem como um ato de comunicação


em vista a necessidade de desenvolver a inteligên- midiatizado, como processo de transposição didá-
cia coletiva, são indispensáveis para a compreen- tica e tecnológica, e da tecnologia e do ciberespaço
são do cenário de relações existentes entre essa como dispositivos midiáticos que supõem intera-
grande quantidade de informação e a contextua- ções e incluem os âmbitos pedagógico, tecnológi-
lização desses conhecimentos, para que o ensino co e comunicacional, como um novo espaço social,
acompanhe a evolução dos códigos e linguagens cultural e tecnológico em cujo contexto surge, se
da tecnologia e suas expressões. Isso pressupõe, delineia e se determina a prática pedagógica.
conclusivamente, a compreensão do processo en-

3.8 Resumo do Capítulo

Iniciamos este capítulo abordando a questão do movimento renascentista, que marca uma grande
ruptura entre a filosofia medieval e a moderna. Esse movimento, que assinalou declínio da perspectiva
teocêntrica – tipicamente medieval – e o desenvolvimento da mentalidade antropocêntrica, possibilita o
pensamento dito moderno. Moderno como modus, novo. Ou seja, algo novo aparecia nesse momento. E
a maior novidade é a revalorização da razão, do pensamento racional.
Marcando o início da filosofia moderna, estudamos dois movimentos: o racionalista e o empiricista.
O racionalismo, que tem com figura central o filósofo René Descartes, estabelece que podemos conhecer
a verdade. Para o racionalismo, o pensamento é capaz de alcançar a verdade absoluta na medida em
que as suas leis são igualmente aquelas às quais o real obedece. Ou seja, não deixa lugar à experiência,
e tudo o que existe depende da razão. O empiricismo – ‘empeiria’ vem do grego e significa “experiência”
–, refuta o argumento das ideias inatas. Para os empiricistas, como Locke e Hobbes, o conhecimento
humano deduz seus princípios, objetos e conteúdos da experiência. Os empiricistas tomam-na por base
e não desprezam a razão, apenas subordinam o seu uso ao resultado da experiência. Acompanhando
essa discussão, temos o racionalismo de Kant. Analisando as filosofias anteriores a ele, critica as verdades
estabelecidas independentemente da experiência individual. Por esse motivo, seu método é conhecido
como criticismo. Para Kant o erro dos racionalistas (entre eles Descartes) foi supor que as ideias são ina-
tas, o que não se pode provar; o erro dos empiristas (entre eles Locke e o próprio Hume) foi supor que a
“estrutura da razão” é adquirida pela experiência. O que faz? Coloca no centro de todo debate a figura do
sujeito, do sujeito racional. Defende que todo conhecimento começa pela experiência, mas resulta das
relações estabelecidas entre as impressões (que possibilitam a experiência) e a estrutura a priori da razão
(que permite a elaboração do juízo sintético a priori), ou seja, o conhecimento é uma composição entre a
matéria (resultado da experiência) e a forma (estrutura a priori da razão). Ao levar seu rigoroso raciocínio
às últimas consequências, Kant conclui pela impossibilidade de conhecermos os seres da metafísica, afi-
nal, não temos qualquer experiência sensível sobre eles.
Observamos, também, a questão do contratualismo em Locke, Hobbes e Rousseau. Como pensa-
dores modernos, eles se preocupavam com a organização do Estado e como o seu poder era constituído.
Discutem, por isso, a necessidade de se estabelecer um contrato – por isso, contratualismo – entre o povo
que deve escolher seus governantes e aquele que vai governar. E vimos que há variações nas formas de
contrato propostas.
Em Auguste Comte, problematizamos a questão do pensamento positivista, que tanto valoriza a
ciência. De acordo com seu sistema, o conhecimento deve basear‑se exclusivamente nos fatos e nas

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ciências, renunciando à metafísica. Para Comte, temos três estágios do pensamento, o que implica etapas
evolutivas, uma sendo superior à outra. São eles: o estado teológico, metafísico e, por último, o positivo.
Com o materialismo histórico e o pensamento de Marx, observamos como as correntes idealistas,
que desprezavam as bases materiais da existência, serão combatidas. O eixo, aqui, foi o de apresentar
como materialismo histórico e sua dialética estabelecem novas forças para se observar como a sociedade
se desenvolve e se estrutura. Suas bases: forças conflitantes. Patrões e empregados; Estado e sociedade
etc. Forças que, partindo de um grupo que possui os meios de produção – a burguesia –, vão alienar o
trabalhador e seu trabalho. Para superar essas contradições, Marx propõe a queda do Estado capitalista
através de uma revolução proletária – dos operários.
Por fim, observamos o pensamento do filósofo Pierre Lévy e suas preocupações referentes ao mun-
do contemporâneo e, especialmente, em relação às mídias. Como teórico da Cibercultura e do Ciberespa-
ço, Lévy estabelece que a sociedade contemporânea vivenciou três grandes revoluções da informação,
que são a oralidade, a escrita/impressão e as redes digitais. O aparecimento de novas mídias modifica
toda a estrutura relacional das sociedades, promovendo modificações na forma de ver e pensar o mun-
do. Dessa forma, precisamos, diante dessas transformações, refletir sobre elas.

3.9 Atividades Propostas

Agora que terminamos este capítulo, vamos verificar se você fixou bem o conteúdo, respondendo
às perguntas a seguir.

1. A quem pertence a célebre conclusão: “Cogito ergo sum” ou “Penso, logo existo”? Explique o que
o pensador queria dizer com a afirmação.

2. O que foi o positivismo?

3. O que é o materialismo dialético?

4. Qual é o significado do conceito de alienação para o marxismo?

5. Para o filósofo Pierre Lévy, o que é o ciberespaço?

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RESPOSTAS COMENTADAS DAS
ATIVIDADES PROPOSTAS

Capítulo 1

1. Podemos apontar três como as mais importantes:

a) o mito pretende narrar como as coisas eram ou tinham sido no passado imemorial, longín-
quo e fabuloso, voltando-se para o que era antes que tudo existisse tal como no presente.
A filosofia, ao contrário, preocupa-se em explicar como e por que, no passado, no presente
e no futuro (isto é, na totalidade do tempo), as coisas são como são;
b) o mito narra a origem, através de genealogias e rivalidades ou alianças entre forças divinas
sobrenaturais e personalizadas, enquanto a Filosofia explica a produção natural das coisas
por elementos e causas naturais e impessoais. O mito fala em Urano, Ponto e Gaia; a Filosofia
fala em céu, mar e terra. O mito narra a origem dos seres celestes (os astros), terrestres (plan-
tas, animais, homens) e marinhos pelo casamento de Gaia com Urano e Ponto. A Filosofia
explica o surgimento desses seres por composição, combinação e separação dos quatro ele-
mentos – úmido e seco, quente e frio ou água, terra, fogo e ar;
c) o mito não se importa com contradições, o fabuloso e o incompreensível, não só porque
esses são traços próprios da narrativa mítica, como também porque a confiança e a crença
no mito vêm da autoridade religiosa do narrador. A Filosofia, ao contrário, não admite con-
tradições, fabulação e coisas incompreensíveis, mas exige que a explicação seja coerente,
lógica e racional; além disso, a autoridade da explicação não vem da pessoa do filósofo, mas
da razão, que é a mesma em todos os seres humanos.

2. Que a filosofia procura entender o mundo, refletindo sobre os seus fenômenos. E quando o
homem pensa o mundo e suas coisas – objetos, seres etc. –, ele acaba pensando a sua própria
vida, porque ele está neste mundo pensado por ele. E se ele – homem – reflete sobre a vida,
acaba por pensar as suas próprias ideias e por compreender melhor o seu próprio pensamento.
Vamos refletir juntos!!! Não há filosofia sem o animal humano. A filosofia é criada por ele, assim
como seu método, seus campos, seus objetos. Assim, quando usamos a filosofia – que reflete
ideias – e nos aproximamos mais da compreensão do mundo, isso nos leva à possibilidade de
saber escolher melhor. E se escolhemos melhor, podemos ter uma vida também melhor, por-
que percebemos um pouco mais do mundo para agir sobre ele, e isso pode possibilitar uma
aproximação maior com as outras pessoas... com a vida em geral.

3. Porque as ideologias – como conjuntos de ideias – sempre são criadas/projetadas para nos
enquadrar num tipo de pensamento, de olhar, de aceitação de um tipo de vida ou de mundo.
Observe bem! Quando nascemos já existe um mundo pronto, com suas ideias –ideologias. E
no início, ainda quando somos jovens, não conseguimos olhar criticamente para os valores e
conceitos que nossos pais, a escola, a religião ou o Estado nos induzem a pensar. Ou seja, no

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início, não pensamos por nossas ideias, mas através das ideias dos outros, de suas ideologias.
Percebeu, então, a importância de se reconhecer as ideologias? Se um indivíduo deseja ser
livre e, assim, realizar as suas próprias escolhas, ele precisa saber sobre as ideias de seu tempo e
o que elas querem dele. Se não for assim, o homem – como indivíduo – será sempre uma presa
fácil para os mecanismos ideológicos.

Capítulo 2

1. Pertence a Sócrates, de Atenas. Ele desenvolveu o diálogo crítico, que se divide em dois mo-
mentos: ironia (leva o interlocutor a confessar suas próprias contradições e ignorância) e maiêu-
tica (ajuda o interlocutor a conceber suas próprias ideias).

2. Platão, de Atenas, elaborou a teoria das ideias, pela qual procurou explicar o processo do co-
nhecimento como a passagem do mundo das sombras e aparências ao mundo das ideias e
essências. Nesse sentido, os objetos sensíveis geram as opiniões e o conhecimento é formado
no mundo racional das ideias, onde o ser é absoluto, eterno e imutável.

3. Para Platão, ao contrário de seus predecessores que tanto valorizavam o conhecimento sensí-
vel, o conhecimento verdadeiro é aquele que corresponde à essência das coisas (as ideias); sen-
do este o único apto a responder o que é algo. Deve ser, portanto, universal, aceito por todos,
independentemente de origem, classe, função ou interesses individuais. Esse conhecimento é
chamado por Platão de ciência (ou, em grego, episteme). Ou seja, o único conhecimento capaz
de ser universal e que pode corresponder à essência das coisas é, para Platão, o mundo das
ideias.

4. A filosofia deixa de ser independente, livre, como era no exercício de pensar dos filósofos gre-
gos. A partir de agora, em função do domínio da Igreja Católica Apostólica Romana, a filosofia,
ou as suas formas de pensar, se submete à fé. A filosofia passa a ser um instrumento auxiliar da
teologia, para justificar Deus e a Fé.

Capítulo 3

1. A célebre frase ou conclusão pertence a René Descartes. Para ele, esta é uma verdade absolu-
tamente firme, certa e segura, que, por isso mesmo, deveria ser adotada como princípio básico
de toda a sua filosofia. Da afirmação cartesiana, que ficou conhecida como cogito, podemos
extrair a importante consequência: o pensamento (consciência) é algo mais certo do que a
existência (matéria corporal). Note-se que é a partir do “penso” que ele conclui “logo, existo”.

2. Filosofia desenvolvida por Augusto Comte. Expressa um tom geral de confiança nos benefícios
da industrialização e de otimismo em relação ao progresso capitalista. Cultua a ciência e valo-
riza o método científico.

3. Inicialmente, um conceito, que coloca em cheque o idealismo dialético. Para o idealismo, o


ponto de partida da filosofia estava em suas bases ideais, não no mundo material. Com esse
conceito, isso se inverte. Não é mais a razão que constrói o tecido do real, e nem se vê mais o
mundo material como encarnação da consciência. Segundo o materialismo dialético, o mundo
material é anterior à consciência e esta é um reflexo, uma derivação da matéria. E ainda, e muito
importante, a compreensão do materialismo dialético do que é a consciência. No idealismo, a
consciência é passiva. No materialismo dialético, a consciência não é mais passiva, mas o pro-
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duto da história, num dado tempo. E ainda que determinada pelas suas condições materiais e
históricas, é capaz de discernir aquilo que a determina e de agir sobre o mundo, possibilitando,
inclusive, a ação revolucionária.

4. Para o marxismo, alienação é a perda do domínio do trabalhador sobre os frutos de seu esforço
produtivo. Quando ele, operário, não mais projeta ou concebe aquilo que executa (exige‑se
que ele faça e não que pense). Nesse caso, a sua força de trabalho já não lhe pertence e se deixa
sobre o domínio daquele que possui todos os meios de produção.
A palavra em si, significa: aquele que não pertence a si mesmo. E no processo do trabalho
industrial, o homem deixou de pertencer a si mesmo.

5. O ciberespaço é o local da inteligência coletiva, no qual se deposita a inteligência coletiva da


humanidade, e que o trabalho do navegador consiste em filtrar, escolher e selecionar, junto a
outros internautas, o que realmente interessa em relação a um determinado sujeito ou tema
buscado, investigado. Segundo o próprio Lévy, “é um objecto comum, dinâmico, construído,
(ou, pelo menos, alimentado) por todos aqueles que o usam. Adquiriu este carácter de ‘não
separação’ por ter sido fabricado, aumentado, melhorado pelos informáticos que foram, ini-
cialmente, os seus principais utilizadores. Ela é uma ponte entre o objecto comum dos seus
produtores e dos seus exploradores.”

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REFERÊNCIAS

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