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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO
LARGO DE SÃO FRANCISCO

LUCAS BUENO MARINHO DE MOURA

JUSTIÇA RESTAURATIVA – O PARADIGMA PUNITIVO BRASILEIRO


E O NOVO PROCESSO COLABORATIVO

SÃO PAULO
2011

1
LUCAS BUENO MARINHO DE MOURA

JUSTIÇA RESTAURATIVA – O PARADIGMA PUNITIVO BRASILEIRO


E O NOVO PROCESSO COLABORATIVO

Tese de Láurea apresentada ao Departamento


de Direito Penal, Medicina Forense e
Criminologia da Universidade de São Paulo.

Orientador: Pr. Dr. Pierpaolo Cruz Bottini

SÃO PAULO
2011

2
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Moura, Lucas Bueno Marinho de, 1987-


Justiça Restaurativa – O Paradigma Punitivo Brasileiro e o
Novo Processo Colaborativo / Lucas Bueno Marinho de Moura;
Orientador Pierpaolo Cruz Bottini. – São Paulo, 2011.

Tese de Láurea (Graduação). Universidade de São Paulo, 2011.

1. Justiça Restaurativa. 2. Justiça Restaurativa – Brasil. 3. Reparação


(Direito).

3
Nome: MOURA, Lucas Bueno Marinho de
Título: Justiça Restaurativa – O Paradigma Punitivo Brasileiro e o Novo Processo
Colaborativo

Tese de Láurea apresentada ao Departamento


de Direito Penal, Medicina Forense e
Criminologia da Universidade de São Paulo.

Aprovado em: _____________

Examinador: Prof. Dr. Pierpaolo Cruz Bottini


Instituição: Faculdade de Deito do Largo de São Francisco (FD/USP)
Julgamento: _____________
Assinatura: _____________

4
SUMÁRIO
PREFÁCIO ......................................................................................................................... 6
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 8
2. O SISTEMA RETRIBUTIVO EM CRISE ..................................................................... 11
2.1. A questão da pena reclusiva ........................................................................................ 22
2.2. A questão das penas alternativas ................................................................................. 25
3. JUSTIÇA RESTAURATIVA - SURGE UM NOVO MODELO .................................... 27
3.1. Influências ao modelo restaurativo .............................................................................. 27
3.2. As Nações Unidas e a Justiça Restaurativa .................................................................. 34
4. CONCEITUANDO A JUSTIÇA RESTAURATIVA ..................................................... 43
4.1. Valores restaurativos ................................................................................................... 52
4.2. A experiência restaurativa na Nova Zelândia ............................................................... 54
5. A JUSTIÇA RESTAURATIVA NUM CONTEXTO LATINO-AMERICANO ............. 61
6. A JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL ............................................................... 70
6.1. A aplicabilidade da Justiça Restaurativa no Brasil ....................................................... 78
6.2. O Projeto de Lei nº 7.006/06 e algumas considerações ................................................ 87
7. CONCLUSÃO ............................................................................................................... 98
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 101

5
PREFÁCIO
Em que pese o fato de o Estado deter o monopólio do poder de punir, a maioria
dos sistemas penais admite que tal poder seja limitado, seja por vontade da vítima ou por
haver modalidades de solução de conflitos baseadas no consenso e oportunidades que afastam
a punição, quanto esta acarrete mais desvantagens que benefícios – principalmente, na prática,
quando o autor é menor de idade ou quando o crime apresenta baixo potencial ofensivo.

Em contrapartida ao sistema tradicional de justiça criminal, de caráter puramente


punitivo e retributivo, podemos identificar, a partir de meados da década 1970, o surgimento
do movimento conhecido como Justiça Restaurativa.

Diferentemente do modelo clássico – que trata o delito como um conflito entre o


Estado e o ofensor, apenas –, a Justiça Restaurativa entende que o ato criminoso se inicia a
partir de um conflito ocorrido entre o infrator e a vítima, pessoa física que efetivamente sofreu
o ato criminoso, o que permite certo afastamento do monopólio do Estado, seja como
acusador, seja como julgador.

A natureza do pensamento restaurativo é restitutiva, na medida em que as


respostas ao ato criminoso são voltadas, principalmente, à compensação do mal causado à
vítima do crime e à reintegração das partes na comunidade.

Na singela explicação de Nelnie Lorenzoni, a Justiça Restaurativa propicia o


“encontro entre as pessoas que estão direta e indiretamente ligadas a um conflito para em
conjunto se compreenderem, responsabilizarem e acordarem a respeito de como e o que fazer
para restaurar as relações rompidas” 1.

Uma importante diferenciação é que a justiça tradicional pune o criminoso,


tentando como que compensar o mal por ele causado mediante outro mal considerado
juridicamente compatível, enquanto a Justiça Restaurativa, a seu turno, busca a inclusão direta
da vítima da infração no processo de recuperação do status quo ante.

Embora a implantação institucionalizada do sistema restaurativo não seja uma


realidade no direito nacional, seus conceitos parecem ser compatíveis com a realidade do país,
notadamente se levarmos em conta a crise atual que enfrenta a justiça penal brasileira,

1
LORENZONI, Nelnie. Oportunizando o Encontro entre as Pessoas, pp. 3-4. Relatório publicado no website do
“Projeto Justiça para o Século 21”, disponível em <http://www.justica21.org.br/webcontrol/upl/bib_409.pdf>.
Acesso em 25/8/2011.

6
refletida na sobrecarga de processos judiciais, na superlotação do sistema penitenciário e no
aumento da criminalidade e da sensação de insegurança pela população.

Para melhor compreendermos a correta forma de atuação da Justiça Restaurativa,


exploraremos suas bases, seus conceitos e valores, seu histórico, as experiências práticas deste
modelo, suas implicações, assim como a possibilidade e os desafios de sua aplicação num
contexto brasileiro – com a análise de experiências práticas e também do Projeto de Lei
7.006/06 –, para que concluamos a respeito de sua viabilidade ou não, dado o contexto social,
jurídico e político de nosso país.

7
1. INTRODUÇÃO
Desde Michel Foucault (1926-1984), um dos pensadores mais relevantes do
século XIX, têm-se levantado questões quanto a uma iminente falência do modelo de justiça
criminal mais amplamente adotado na maioria das culturas ao redor do mundo: o sistema
retributivo, com suas variáveis. De acordo com teóricos, sociólogos, juristas e estudiosos, os
problemas deste modelo remetem à época de seu surgimento, sendo evidente que a adoção,
pelo Estado, de práticas retribucionistas tem afastado o Direito Penal, com o passar das
décadas, de seus objetivos elementares.

No Brasil, pelo que temos do Código Penal ora vigente, adota-se um modelo
retribucionista não-puro, de modo a haver outros pilares punitivos que não apenas a questão
da proporcionalidade – que recebe total destaque no modelo puro, kantiano.

O art. 59 do Decreto-Lei nº 2.848 de 1940 – Código Penal Brasileiro, com redação


dada pela Lei nº 7.209 de 1984, reza:

O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à


personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do
crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja
necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:

I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;

II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;

III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;

IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra


espécie de pena, se cabível. (grifo nosso)

Assim, pelo que se vê, o sistema brasileiro segue modelo misto, que visa propiciar
tanto a proporcional contrapartida ao causador do delito (retribuição), quanto a redução da
criminalidade (prevenção geral) e a prevenção da reincidência (prevenção especial).

Some-se a isto, o conceito transcrito pelo legislador no art. 1º do Decreto-Lei nº


7.210, também de 1984 – Lei de Execução Penal, que demonstra a preocupação com a
(re)inserção social do criminoso:

A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou


decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração
social do condenado e do internado. (grifo nosso)

8
Fato é que, como vínhamos dizendo, não poucos especialistas já constataram que,
na prática, nosso modelo de justiça criminal tem atingindo resultados diretamente opostos
àqueles aos quais, inicialmente e essencialmente, se propôs.

Ao que se pode constatar de diversas maneiras, o modelo punitivo adotado no


Brasil – e, destacadamente, sua manifestação no sistema penitenciário –, não alcança a visada
redução da criminalidade, seja por prevenção especial ou geral, nem mesmo consegue
retribuir justamente os delinquentes sob sua custódia, ou, menos ainda, facilitar sua reinserção
à vida em comunidade. É este o pensamento, inclusive, do mestre Cezar Roberto Bitencourt,
expresso em seu Tratado de Direito Penal2.

Pelo contrário, o que se tem visto na realidade penal brasileira são os altos índices
de reincidência – pois o criminoso submetido ao sistema não é efetivamente recuperado –, o
aumento da criminalidade – que gera a sensação de impunidade (frise-se, sensação), pois o
estado não consegue controlar nem mesmo os criminosos que estão sob seus cuidados, quanto
menos os que estão nas ruas –, o crescimento das organizações criminosas – fundadas,
mantidas e gerenciadas principalmente, e ironicamente, do interior de unidades prisionais –, o
aumento da estigmatização do indivíduo – ou seja, seu total afastamento da sociedade, mesmo
quando livre do cárcere e, como consequência última, o aumento da miséria e a total
desestruturação familiar –, e, por fim, a patente violação de direitos humanos e outros
princípios constitucionalmente impostos – justiça, dignidade da pessoa humana, legalidade,
presunção de inocência, liberdade etc.

Em suma, trata-se de um sistema precário, ineficaz e inconsistente, e que não


produz justiça – o que desconstrói até mesmo a denominação “sistema” 3, e lhe priva de
parcela vultosa de sua legitimidade.

Somem-se a isto os altos custos financeiros – investimentos governamentais em


infraestrutura, gastos com indenizações, transporte, alimentação, tratamento médico de
detentos – e custos humanos – tais como: mortes, doenças, envolvimento em organizações
criminosas, enfim, a degradação do indivíduo, enquanto ser humano –, característicos do
sistema punitivo tradicionalmente adotado no Brasil.

Raffaella da Porciuncula Pallamolla, Mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS


e Mestre em Criminologia pela Universidad Autónoma de Barcelona, desenvolveu a tese

2
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 11ª edição, 2007, p. 103.
3
ROLIM, Marcos. A Síndrome da Rainha Vermelha: Policiamento e Segurança Pública no Séc. XXI. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed.; Oxford, Inglaterra: University of Oxford, Centre for Brazilian Studies, 2006, p. 233.

9
“Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática”4, vencedora do 13º Concurso de Monografias de
Ciências Criminais do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCrim, de grande
relevância para a discussão do tema, e que servirá como um dos principais guias de nosso
estudo na presente monografia.

A autora aponta, na introdução ao Capítulo I de seu livro, que as respostas


comumente dadas aos fracassos do sistema criminal, e principalmente à crise do modelo
prisional, têm sempre caráter “autorreferencial” – ou seja, apegam-se a sugerir um constante
aperfeiçoamento do modelo atual, com o consequente aumento do campo de controle formal
do Estado sobre a vida dos indivíduos, sem levar em conta a possibilidade de uma redução de
tal controle5.

Foi assim durante toda a evolução histórica das penas: mesmo quando se aceitou a
introdução de regimes mais brandos para cumprimento de reprimendas corporais (como o
livramento condicional, o regime o semiaberto e o aberto) e as penas alternativas (multa,
prestação de serviços, prestação pecuniária, dentre outras), em nenhum momento sequer foi
levantada a hipótese de se afastar o Estado do monopólio sobre a vida da pessoa submetida a
seu controle penal. Pelo contrário, o que se vê na prática é o aumento do controle formal
estatal, que, no entanto, não tem efeito perceptível sobre a criminalidade, conforme Zehr 6.

O sistema retributivo, como já visto, tem como paradigma a atribuição da culpa a


qualquer preço, mediante a imposição de uma penitência – cuja expressão máxima é a prisão
–, por meio de um processo rígido e formal ocorrido sempre diante do Poder Judiciário, e
provoca estigmatização do acusado sem dar a devida atenção à vítima. No capítulo que segue,
aprofundaremos nosso estudo sobre este sistema e suas bases lógicas.

4
PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática. São Paulo: IBCCrim,
2009, pp. 9-210.
5
PALLAMOLLA. Op. cit., pp. 31-32.
6
ZEHR, Howard. Trocando as Lentes: Um Novo Foco Sobre o Crime e a Justiça. São Paulo: Palas Athena,
2008, p. 89.

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2. O SISTEMA RETRIBUTIVO EM CRISE
“No coração de toda crise, há uma nova oportunidade.” (Provérbio Chinês)

O sistema punitivo estatal é uma das mais patentes e abertas demonstrações do


uso de mecanismos de controle social nas sociedades humanas – notadamente, nas que
adotam o modo de produção capitalista. Segundo Marcelo Saliba, Mestre em Ciências
Jurídicas pela Universidade Estadual do Norte do Paraná, a força do controle social na
imposição de sanções, determina o grau de autoritarismo ou democracia de determinada
sociedade7.

Marcelo cita importante fala de Aniyar de Castro, que compreende o modelo


normativo de controle como sendo um conjunto de sistemas normativos
[...] cujos portadores, através de processos seletivos (estereotipia e
criminalização) e estratégias de socialização (primária ou secundária) ou
substitutiva), estabelecem uma rede de contenções que garantem a
fidelidade (ou, no fracasso dela, a submissão) das massas aos valores do
sistema de dominação8.

Ressalta o autor que, inseridos nesta ampla normatividade, encontram-se a


religião, a educação, e principalmente o Direito. No âmbito deste último, encontra-se o
Direito Penal, que institucionaliza o uso da violência pelo Estado, como forma especial de
contenção social, impondo sanções em reação aos desvios comportamentais dos indivíduos a
ele submetidos, tendo como referência a lei penal, imposta por membros da sociedade que
detêm o poder de instituir padrões.

Saliba se presta a uma breve digressão histórica, retomando que, no Período


Moderno, a razão ganha força e é colocada no centro do pensamento humano, juntamente
com o homem e sua realidade externa. Tal mudança de pensamento colocou a razão como
meio para se atingir a ordem, com o desenvolvimento de formas racionais de organização
social9.

A ordem, a sua vez, foi conciliada com o progresso, e foi deste novo paradigma
que derivou o positivismo jurídico, que, por sua essência, identifica de maneira irrevogável o

7
SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo. Curitiba: Juruá, 2009, p. 31.
8
CASTRO, Lola Aniyar. Criminologia da Libertação. Trad. Sylvia Moretzsohn. Rio de Janeiro: Revan, 2005,
pp. 54-55.
9
SALIBA. Op. cit., pp. 32-24.

11
Direito com a própria noção de Estado – e este, por sua vez, é quem detém o monopólio da
produção normativa. O Estado depende do direito posto, adotando a psicologia capitalista
como referencial ideológico e identificando-se como “a tendência do homem (razão) para a
segurança (ordem)”10.

É nesse contexto que o Direito atinge um status determinante para a “docilização


dos corpos”11, submissos às instituições disciplinares. Assim é que, no âmbito do Estado,
chamado Estado de Direito, a relação entre as instituições disciplinares e o Direito é inerente,
à medida que é este que fornece o aparato para a existência e atuação daquelas.

É relevante a análise desta evolução histórica, pois, como bem aponta Saliba, esta
afirmação do Direito, que gerou o monopólio estatal sobre a produção normativa, fez com que
este se tornasse autorreferencial, dando atenção apenas às fontes formais de produção e
preterindo as fontes espontâneas – neste entendimento, a única realidade jurídica é a que se
contém na lei positivada 12.

É na modernidade, portanto, que o Direito, notadamente o Direito Penal, torna-se


determinante para a manutenção da ordem, por intermédio de controle social e dominação.

Como afirma o autor: “O sistema retributivo, então, não constitui fato isolado no
conjunto histórico e político, nem destoa da ideologia dominante, mas faz parte desse projeto
maior, denominado modernidade” 13.

Já na pós-modernidade, revela Saliba, inicia-se uma grande ruptura paradigmática.


Faz-se necessário um novo contrato de cidadania, pelo qual se almeja o combate à exclusão, e
enfatiza-se a diversidade em detrimento dos valores absolutos, destacando-se a reciprocidade
entre os cidadãos, e entre estes e o Estado, no que se refere à fixação de metas sociais e
mudanças institucionais14.

BASES IDEOLÓGICAS
“As execuções penais na atualidade ainda retratam a obra kafkiana, talvez
hoje com pouco menos de exposição pública, mas com igual sofrimento,
estigmatização, desproporção, exclusão e busca incessante da Justiça.

10
SALIBA. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo, pp. 35-36.
11
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão de Segurança Jurídica: Do Controle da Violência à Violência
do Controle Penal. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2003, p. 196, apud SALIBA. Justiça Restaurativa e
Paradigma Punitivo, p. 40.
12
SALIBA. Op. cit., p. 37.
13
SALIBA. Op. cit., p. 39.
14
SALIBA. Op. cit., pp. 38-39.

12
Hodiernamente, o flagelo do corpo humano se dá no sistema carcerário,
oculto aos olhos dos demais membros do corpo social, que não veem e não
querem ver a atuação do carrasco, mas creem na sua messiânica missão.”15

O modelo retributivo, conforme afirma Saliba, supervaloriza a pena como


instrumento de controle. Mais radical sanção formal imposta pelo Estado interventor –
detentor do poder punitivo – como resposta ao crime, a pena é meio de controle por sua força
coercitiva, e por passar a sensação de manutenção da ordem, da pureza e da razão, e passa a
ser vista como indispensável à resolução dos conflitos sociais, propiciadora da convivência
pacífica, notadamente se considerados efetivos os seus escopos – a retribuição e a prevenção.
Sobre isso, traremos mais detalhes no próximo ponto.

Nesse sentido, Zaffaroni leciona que, notadamente durante os anos sessenta,


foram desmistificados os fins manifestos da pena e evidenciada a assepsia do sistema penal,
procedendo-se a “uma severa deslegitimação da função que a razão instrumental concedia ao
poder punitivo, que colocou em crise os próprios argumentos instrumentais” de contenção e
prevenção da criminalidade16.

Quanto a isso, é relevante que apliquemos alguns parágrafos numa digressão


sobre a punição e as teorias da pena que permeiam os sistemas penais vigentes.

A PENA E SUAS TEORIAS

Como bem afirma nosso autor, a relação entre Direito Penal e pena tornou-se tão
intrínseca ao ponto de ser impossível se desvincular um conceito do outro. Adotado este
entendimento pelos operadores do Direito moderno, passou-se a discutir os fins da pena, de
modo a legitimar sua aplicação como reação ao crime, já que, no consenso geral, nenhuma
outra resposta seria mais aceita ou mais correta. Com tudo isso, “ao determinar a pena como
único remédio para o controle social nas condutas incriminadas, a modernidade indica querer
punição e vigilância, e não pacificação social”17.

As teorias absolutas ou retributivas enxergam a pena unicamente como uma


penitência, um mal imposto como castigo por outro mal inicialmente causado – é “um fim em

15
SALIBA. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo, pp. 40-41.
16
ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, vol. 1, p. 641.
17
SALIBA. Op. cit., pp. 43-44.

13
si mesma”, “uma consequência jurídico-penal do delito praticado”18. Tal pensamento não
busca explicações externas à pena: esta não careceria de uma finalidade que não a de
simplesmente vingar o delito.

Em Kant, a pena é uma retribuição ética, que se justifica pelo valor moral da lei
violada e do castigo por ela imposto. Já em Hegel, funciona como retribuição jurídica,
fundada na necessidade de restaurar o Direito, é a negação da negação do Direito – a
contrapartida lógica da violação da lei.

Como afirma Saliba, as teorias retributivas puras já estão superadas, pois não
resistiram às principais críticas, que repousam na questão da ausência de fundamentos lógicos
e morais e dos excessos praticados, e no fato de inexistir, racionalmente, uma compreensão
lógica para a liquidação de uma violência com outra19.

A mentalidade meramente retributiva, então, perdeu espaço para um novo


pensamento, trazido pelas teorias relativas ou utilitaristas. Seus ideais são a “prevenção do
delito e a necessidade da sanção para preservação do grupo social. A pena deve apresentar um
fim socialmente construtivo e não somente retribuir o mal”. A pena se justificaria, então, com
os resultados obtidos na prática 20.

O conceito de prevenção, a sua vez, é seccionado em duas vertentes. A primeira


trata-se da prevenção geral, e é um mecanismo de defesa social por “coação psicológica” 21,
vez que dá à sociedade a certeza da pena e de sua imposição, protegendo o cidadão e dando
segurança ao corpo social (prevenção geral positiva) e intimidando o potencial infrator
(prevenção geral negativa).

O autor também levanta críticas a este modelo, notadamente as que se refere à


questão dos limites ao poder punitivo, e também as que versam que, segundo tais teorias, há a
necessidade da ameaça, da dor e do sofrimento como forma de levar o cidadão a caminhar em
retidão, afastando-o da conduta delituosa pelo temor.

Outros pontos questionáveis, aventados por Bitencourt, alertam para o problema


da desqualificação da intimidação quando da não-descoberta do delito – no caso de o crime
ser cometido às escondidas, não haverá punição, sendo ineficaz, neste caso, o caráter

18
BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão – Causas e Alternativas. 3ª ed., São Paulo:
Saraiva, 2004, p. 105.
19
SALIBA. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo, pp. 46-47.
20
SALIBA. Op. cit., p. 47.
21
DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 434.

14
intimidativo da pena –, para o grau de severidade das penas cominadas pela lei – o que
Ferrajoli chama de “terrorismo penal legislativo” 22 –, bem como para a imposição
indiscriminada, pelos julgadores, de reprimendas e regimes mais gravosos que o necessário,
sob a bandeira da “intimidação geral” 23.

A segunda vertente, a teoria da prevenção especial, tem foco no delinquente, e


prega que a finalidade da pena é evitar a reincidência do indivíduo, corrigindo-o (prevenção
especial negativa) e tornando-o apto para o retorno à vida em sociedade (prevenção especial
positiva), por meio de um processo de transformação e reinserção.

As principais críticas a estas teorias, continua Saliba, reside na questão da


indeterminação de seu conteúdo e seu objetivo. Primeiro, porque o Estado não teria
legitimidade para impor valores morais ao cidadão – um problema de forte cunho sociológico
–; ademais, questiona-se a forma de lidar com o criminoso, que passa a ser visto como um ser
inferior, incapaz de se adaptar a uma comunidade por suas próprias forças 24, causando-lhe
dolorosa estigmatização.

Outra crítica citada por Saliba, que tem fundamento prático, é a levantada por
Raúl Cervini, que afirma que a pena, enquanto terapia social, está longe de alcançar tal
objetivo25. Isso porque, segundo nosso autor, é ilusório acreditar que a recuperação social de
um indivíduo possa dar-se por meio da imposição de uma pena.

Ressalta Saliba que tal mentalidade é característica da modernidade, uma vez que
tem o objetivo de evitar a desordem e a ambivalência, impondo-se a ordem através de um
tratamento dito ressocializador, “a fim de „curar‟ um desvio e sanar a desordem”, submetendo
o encarcerado a uma “adaptação forçada às normas ditadas pela maioria” 26.

Na sequência destas teorias, surgiram as mistas, que tanto reconhecem o caráter


retributivo da pena, quanto admitem que suas finalidades são a prevenção, em suas duas vias,
e a reinserção social do agente, sem esquecer do condão de evitar a reincidência.

O autor aponta que a principal crítica a este caminho sintético vem de Roxin, ao
acusar que a justaposição das teorias acaba aumentando o âmbito de aplicação da pena,

22
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão - Teoria do Garantismo Penal. 2ª ed.. Tradução de Luiz Flávio Gomes e
outros. São Paulo: RT, 2002, p. 225.
23
BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão – Causas e Alternativas. 3ª ed., São Paulo:
Saraiva, 2004, pp. 125-126.
24
SALIBA. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo, p. 54.
25
CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. 2ª ed., São Paulo: RT, 2002, pp. 38-43.
26
Nesse sentido, ainda disse o autor: “A democracia se transmuda na tirania da maioria”. SALIBA. Justiça
Restaurativa e Paradigma Punitivo, p. 54.

15
multiplicando as possibilidades de sua aplicação – ampliando, ainda mais, o controle formal
do Estado27.

Frente a isso, prossegue Saliba, surgiram a teoria da prevenção geral positiva


fundamentadora e a teoria da prevenção geral positiva limitadora.

A primeira cria que o direito penal deveria influenciar a consciência ético-social


do cidadão frente ao direito – segundo Welzel – e de que as normas jurídicas existiriam para
estabilizar e institucionalizar as expectativas sociais, servindo de orientação de conduta – em
Jakobs.

A principal crítica a esta teoria questiona sua pretensão em tentar impor valores
éticos coativamente aos indivíduos, o que afronta os princípios de um Estado de Direito,
ferindo a dignidade da pessoa e a plena liberdade de consciência28.

A teoria limitadora, por sua vez, prega o respeito às garantias constitucionais do


indivíduo, mediante a limitação do poder punitivo estatal, numa concepção democrática,
social e humanista. A pena, nessa perspectiva, é uma resposta coercitiva do Estado, que em
sua aplicação observa limites constitucionais, como legalidade, proporcionalidade, dentre
outros.

Conforme esta teoria, a ressocialização do indivíduo depende de um processo


interativo entre ele e a comunidade, o que pode levar, inclusive, ao surgimento de outros
mecanismos de resposta autocompositivos, distantes dos tradicionalmente postos,
notadamente porque o poder do estado seria limitado ao campo do mínimo necessário 29.

Neste contexto, podemos observar a certa abertura que se dá aos mecanismos


alternativos ou autocompositivos de resolução de conflitos, dando-se margem a iniciativas
como a Justiça Restaurativa, a qual defendemos no presente trabalho.

Por fim, em contraposição a todas as teorias acima detalhadas, temos as teorias


abolicionistas, das quais também trataremos mais adiante, mas que merecem atenção neste
momento.

Saliba retrata o abolicionismo como sendo a exata antítese ao sistema retributivo,


já que, em suas correntes mais radicais, deslegitima não só o sistema penal, como também a
pena, não admitindo qualquer forma de coerção. Nesse sentido, Ferrajoli leciona que a

27
SALIBA. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo, p. 56.
28
SALIBA. Op. cit., pp. 56-57.
29
SALIBA. Op. cit., pp. 57-58.

16
corrente abolicionista considera as vantagens do sistema punitivo inferiores aos custos sociais
da limitação da liberdade, do processo e da punição30.

As críticas a esta teoria procuram demonstrar a inviabilidade de sua adoção numa


sociedade capitalista pós-moderna, apontando que o abolicionismo seria utópico, e poderia
levar o ser humano de volta a um comportamento selvagem e primitivo, pois que não haveria
controles ou limites.

Para Saliba, a teoria abolicionista deve ser estudada não como caminho para
“eliminar o sistema”, mas como meio de “construção para um novo modelo, voltado aos
direitos humanos e suas garantias, num Direito penal mais justo e legítimo”31.

Afirma ou autor que seria impossível a completa abolição da pena ou do sistema


jurídico-penal, pois a vida em sociedade se tornaria um verdadeiro caos – o que chama de
“dispersão social” – caso não houvesse regras de conduta que determinassem quais
comportamentos seriam aceitos e quais seriam considerados inadequados.

Aduz, entretanto, que o instrumento punitivo – o qual já afirmou julgar necessário


– não deveria ter o condão de método de dominação ou marginalização de indivíduos32.

A CRISE DO SISTEMA RETRIBUTIVO


“O Direito, na visão positivista, encarna a função de definir o bem e o mal,
tornando-se um monumento incontestado e incontestável, legitimado por sua
própria existência, emanado de um ente imparcial e detentor do poder. A
neutralidade propagada pelo positivismo, todavia, é enganosa, ante sua
falta de questionamento e apego a regras fáticas, indutivas, mensuráveis e
empíricas.”33

O sistema penal construído a partir da modernidade foi direcionado de forma


repressiva, alicerçado no positivismo, afastando-se aos poucos do interesse social e tornando-
se estigmatizante, repressivo, desproporcional e desumano. Prossegue Saliba em sua crítica ao
afirmar que a criminalização e a punição tornaram-se meios de desenvolvimento e reprodução
do capitalismo em ascensão.

Nosso autor cita Alessandro Nepomoceno, que leciona que a lógica do sistema é
impor condutas, marginalizando determinados grupos e preservando os membros das camadas

30
FERRAJOLI. Direito e Razão - Teoria do Garantismo Penal, p. 200.
31
SALIBA. Op. cit., p. 60.
32
SALIBA. Op. cit., p. 61.
33
SALIBA. Op. cit., p. 63.

17
dominantes, detentoras do poder político, econômico ou científico 34. Tal atribuição seletiva
acaba, obviamente, por excluir do convívio social o sujeito com desvio de conduta – o
indesejado –, submetendo-o ao cárcere, tendo, assim, o condão de manter o status quo do
poder e da estratificação social35.

No mesmo sentido, Raffaella Pallamolla denuncia a disseminação de formas de


exclusão de cidadãos, sendo que aqueles que, segundo a lógica capitalista, “não têm valor”,
“tornam-se um problema”. A „solução‟ encontrada pelo Estado foi exatamente o
recrudescimento de seu poder policialesco, trazendo ainda maior estigmatização, abalizada,
principalmente, na desigualdade social36.

Assim, pode-se concluir que o modelo retributivo de justiça, em todo o seu


ideário, não atingiu seus objetivos explícitos – porque não recupera o ser humano e protege,
apenas aparentemente, a sociedade –, vindo ao fracasso. Bem escolhida pelo autor a frase que
reproduz de Aniyar de Castro, a qual afirmou que a pena acaba cumprindo outros fins, a
saber:
[...] reproduzir o sistema de classes e deixar a classe hegemônica de mãos
livres para realizar seus objetivos através da racionalidade do mercado;
ratificar as teorias do senso comum, as quais, ao separar as classes
delinquentes das classes não delinquentes, consolidam a estratificação37.

Mais adiante, Saliba dirá dessas classes estigmatizadas:


Os miseráveis, como foco principal do sistema penal, levaram para a prisão
o reflexo da miséria e da dor. Para essa massa de pessoas, criminalizadas e
encarceradas, o Direito apresenta-se unicamente por meio do código
penal38.

Nosso autor afirma, de maneira contundente, que o positivismo fixa sua mira não
na justiça – preterindo-a –, mas tão-somente na ordem, de modo que todo o que a questiona é
tido por desordeiro e criminoso, provocando a movimentação do sistema do sistema
repressivo em sua direção.

Aponta, ainda, que a crise do sistema retributivo não é isolada, mas está
acompanhada de uma crise que abrange todo o projeto da modernidade, que, em sua opinião,
34
NEPOMOCENO, Alessandro. Além da Lei – A Face Obscura da Sentença Penal. Rio: Revan, 2004, p. 43.
35
SALIBA. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo, pp. 68-69.
36
PALLAMOLLA, Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 134.
37
CASTRO, Lola Aniyar. Criminologia da Libertação. Trad. Sylvia Moretzsohn. Rio de Janeiro: Revan, 2005,
p. 49.
38
SALIBA. Op. cit., p. 79.

18
não conseguiu efetivamente resolver os problemas trazidos pela complexidade das relações
sociais. Ventila também a deslegitimação do caráter retributivo do sistema penal, maculado
pela injustiça, pelo desrespeito à dignidade humana e pela seletividade 39.

Fato é que, conforme Zaffaroni, pode-se ver que o sistema já vem, há tempos,
caminhando rumo à deslegitimação, percebida na sua ineficiência, na incoerência do próprio
discurso jurídico-penal, no desrespeito à legalidade e no exercício ilícito do poder40.

Saliba ressalta que, diante de tal deslegitimação, tem-se ou o fim do sistema penal
como conhecemos ou “a convivência com um sistema não legitimado, mas necessário”.

Nosso autor reforça que a crise do sistema retributivo não se refere a um ou outro
órgão repressivo, estando, de fato, a abranger qualquer representação do sistema penal – as
polícias, os promotores, os juízes, o judiciário, o sistema penitenciário... Por tal motivo, tratar
a crise como meramente pontual acaba por ser uma falsa interpretação deste sistema já
deslegitimado, aceitando-se sua continuidade de maneira cega e irresponsável41.

Saliba opina que, mesmo com a transição para a pós-modernidade, a pena de


prisão manteve-se cruel, estigmatizadora e desproporcional tal qual fora na modernidade, e
direcionada, sempre, às classes excluídas e menos favorecidas – causando um verdadeiro
ostracismo social. Cita, ainda, o entendimento de Combessie, o qual ensina que a prisão,
enquanto instituição, impõe uma cisão do corpo social, sendo, inclusive, construída em local o
mais distante possível da comunidade e dos grandes centros, para “proteger e preservar os
cidadãos livres” da aura penal que irradia, mantendo o conjunto social imune, com a falsa
sensação de segurança e higienização estética, que compõem o modelo consumista42.

Por fim, aduz Saliba que a prisão como modelo reintegrador e ressocializador não
cumpriu seus objetivos, mas que, em contrapartida, consolidou-se como instrumento para a
dominação e condicionamento humano, agravando a marginalização já comum num sistema
capitalista43.

Conforme afirma o autor, a justiça penal na Modernidade apega-se à lei para a


manutenção da ordem e segurança jurídica, respeitando estritamente o princípio da legalidade

39
SALIBA. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo, pp. 70-71.
40
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em Busca das Penas Perdidas: A Perda da Legitimidade do Sistema Penal. Rio:
Revan, 2001, p. 29.
41
SALIBA. Op. cit., p. 78.
42
COMBESSIE, Philippe. Definindo a Fronteira Carcerária: Estigma Penal na Longa Sombra da Prisão.
Discursos sediciosos. Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro: Revan, 2003, n. 13, p.144.
43
SALIBA. Op. cit., p. 81.

19
e afastando a discricionariedade. Neste contexto, o subjetivismo do julgador é afastado em
detrimento da segurança jurídica 44.

Há, todavia, as “funções não-declaradas” da dogmática jurídica, funções estas que


sustentam as desigualdades sociais e o status quo e estão amparadas nos mesmos
fundamentos encontrados no projeto da modernidade – ordem, progresso, capitalismo. Para
Saliba, a “ausência de discricionariedade das decisões da justiça” serve de “base de segurança
jurídica para os detentores do poder” bem como de “forma de dominação das classes
exploradas”, característica que distancia a justiça penal do que se entende por justiça social,
aproximando-a da dominação e da ordem desejadas pelo sentimento moderno liberal – que,
por sua vez, é eivado pelo positivismo jurídico, que dá importância apenas ao fato e suas
implicações, nada questionando quanto aos porquês do delito 45.

O que se pode notar é que não se trata de uma preocupação quanto à elaboração
de conceitos, mas quanto à construção de estereótipos, estabelecendo-se preconceitos, mitos
considerados verdades, de maneira a se dividir a população entre “nós (os cidadãos honrados
e trabalhadores) e eles (os marginais violentos, perigosos e temíveis)” 46.

Há, para o autor, uma “cegueira parcial”, a permitir a leitura do Direito como uma
ciência dotada de razão por simplesmente existir, dando-lhe legitimidade sem qualquer outro
fundamento lógico. A lei, para a ciência dogmática, é a ordem, e sua negação é a desordem,
tornando-se a única regra a ser interpretada e aplicada, e distanciando-se daquela realidade
que pretendia orientar ou refletir, sem promover qualquer questionamento ou avaliação
crítica.

Saliba salienta que a atividade da justiça penal não se encerra na aplicação da lei
ao fato, nem com a imposição da pena ao delinquente, indo além disso: encontrando seu auge
“nos fins dominadores, excludentes, estigmatizantes”, como fosse um mecanismo de controle
social que marca o condenado como um anormal, desordeiro, “que deve ser extirpado para a
preservação e pacificação da sociedade” – rotulagem esta imposta pelas classes
hegemônicas47.

Neste ponto, é interessante uma breve conceituação da teoria conhecida como


labelling approach: segundo Hassemer, o conceito significa o enfoque do direito penal no

44
SALIBA. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo, p. 89.
45
SALIBA. Op. cit., pp. 89-90.
46
MARQUES, Bráulio. A Mídia como Filtro do Fato Social. In: FAYET JR., Ney (org.). Ensaios em
Homenagem ao Professor Alberto Rufino Rodrigues de Sousa. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2003, p. 164.
47
SALIBA. Op. cit., pp. 90-92.

20
etiquetamento, tendo como mote a ideia de que a criminalidade é resultado de um processo de
imputação, uma etiqueta aplicada pela polícia, pelo ministério público e pelos tribunais,
enfim, pelas instâncias formais de controle social48.

Prosseguindo, Saliba prega o rompimento com a dogmática jurídico-penal como


pressuposto para que se chegue a uma justiça igualitária e social, baseada na dignidade da
pessoa humana, denunciando que o princípio da ressocialização e o da intimidação geral,
como já vimos, perderam sua legitimidade enquanto fundamentos à justiça penal.

Anuncia, com isso, a necessidade de uma “dogmática realista” – em oposição à


idealista, hoje vigente –, que tenha como mote a discussão dos problemas sociais através,
principalmente, da participação democrática dos envolvidos no conflito na justiça penal, “num
exercício de cidadania participativa”, garantindo-se o mais amplo e justo acesso à justiça49.

Por tudo o que estudamos até o momento, pode-se concluir que o modelo
retributivo de justiça está em franca decadência. A intervenção e a tutela no sistema penal
estão deslegitimadas pela falta de atingimento de suas finalidades essenciais e pela
arbitrariedade no controle formal estatal. A pressão da mídia sensacionalista e dos
movimentos pela penalização máxima causaram uma inflação legislativa, dirigindo-nos a um
Estado quase que autoritário, amparado num verdadeiro panoptismo social.

A intervenção do Direito Penal, fundada nos arcaicos alicerces ideológicos e


dogmáticos positivistas, tem se mostrado excessiva, desigual, dessocializadora e cruel, com o
total desrespeito aos direitos humanos e à dignidade da pessoa humana.

Abre-se, então, o caminho a uma nova proposta, com a desconstrução das bases
elementares do modelo vigente, dando-se espaço a um sistema que reencontre as bases de sua
legitimidade nos direitos humanos, na limitação da intervenção penal estatal, nos princípios
democráticos e no resgate ético do sistema penal, e que retome a confiança perdida, trazendo
a comunidade para participar da resolução dos conflitos.

48
HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Tradução de Pablo Rodrigo Aflen da
Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005, p. 102.
49
SALIBA. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo, pp. 93-94.

21
2.1. A questão da pena reclusiva
Como consequência da crise já apresentada, a justiça tradicional do Brasil passa
por graves problemas no que diz respeito à sua celeridade e eficiência. Aqui, enfrentam-se o
alto nível de criminalidade e a precária estrutura punitiva. O sistema prisional encontra-se
superlotado - dados divulgados no ano de 2010 pelo Conselho Nacional de Justiça dão conta
de que o Brasil abriga a terceira maior população carcerária do mundo, beirando os 500 mil
detentos, ficando atrás, apenas, de Estados Unidos e China 50 - e o corpo jurídico da nação não
dá conta dos inúmeros processos criminais em trânsito.

Segundo material do Ministério da Justiça51, o país possuía, em dezembro de


2010, um total de 496.251 detentos que se amontoam em 298.275 vagas distribuídas em 1.857
estabelecimentos penais. A maioria dessa população carcerária compreende jovens entre 18 e
24 anos - 126.929 detentos. Interessante, ainda, observar que, do total de presos, mais de 164
mil estão em situação provisória, ou seja, aguardam o julgamento de seus feitos.

Como já visto, o sistema retributivo, ao adotar a pena como principal – senão


única – resposta possível ao delito, apoia-se na restrição de liberdade como a mais severa das
sanções legais. A pena, especificamente a de prisão, tem, ainda, relevância ímpar à efetivação
do poder punitivo estatal, e é imprescindível na autorreprodução do sistema social vigente e
na garantia dos interesses dos detentores do poder em detrimento das camadas menos
favorecidas, numa sociedade capitalista52.

Para além de todos os problemas enfrentados dentro do cárcere (o


aprofundamento neste tema custaria uma nova monografia), o mestre Saliba ressalta a grande
dificuldade que enfrentam os encarcerados no momento de sua recolocação em sociedade.
Isso porque, dentro do estabelecimento penitenciário, o preso dispõe de pouca ou nenhuma
liberdade de agir, sendo submetido a um rígido esquema de controle imposto pelos agentes
penitenciários e obedecido pelos outros detentos – em caso de desobediência, são punidos
administrativamente.

50
Conforme artigo publicado em 29/9/2010 no sítio da Associação dos Magistrados Brasileiros, intitulado
“Brasil tem terceira maior população carcerária do mundo”. Disponível em
<http://www.apamagis.com.br/noticia.php?noticia=28791>. Acesso em 15/5/2011.
51
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Relatórios Estatísticos. Disponível em <http://portal.mj.gov.br/
services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?DocumentID={3BC29926-7CDA-4485-815E-CE1
40647DC9E}&ServiceInstUID={4AB01622-7C49-420B-9F76-15A4137F1CCD}>. Acesso em 1º/5/2011.
52
SALIBA. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo. p. 81.

22
Isso porque a pena de prisão, muito além de ser a “retirada do mundo normal da
atividade e do afeto”, é, também, “a entrada num universo artificial onde tudo é negativo”, o
que faz dela um “mal social”, um “sofrimento estéril” 53.

Ora, como se poderia exigir que um ex-detento alcance total adaptação ao retornar
à vida em liberdade se quando está sob a custódia do Estado, naquele universo artificial, suas
escolhas são mitigadas, cada passo seu é regrado e controlado pelo sistema? Ao regressar à
comunidade, terá a sua disposição opções, e quando lhe for possível escolher – entre evitar o
crime e reincidir nele –, certamente titubeará. Isso porque o cárcere, como o conhecemos, não
o instrui a tomar as decisões corretas: apenas o condiciona a obedecer um programa de
ordens coativas, não o conscientizando de suas opções e dos conflitos que viverá quando
egresso.

Outro fator, diante da estigmatização, é o despreparo da própria sociedade em


recebê-los, tornando difícil sua reinserção à comunidade, bem como no mercado de trabalho,
chegando-se a uma exclusão quase que permanente – no Brasil, os antecedentes criminais
ficam registrados por toda a vida do sentenciado, caso este não ingresse com pedido de
reabilitação, nos termos dos artigos 93 e 94 do Código Penal.

Ainda falando sobre a estigmatização, Saliba afirma que o próprio processo


judicial serve de preparo ao cárcere, como que condicionando o réu à humilhação e ao fato de
que foi escolhido para se sujeitar à exclusão do ambiente social 54.

Necessário, ainda, destacar outra questão igualmente importante, que se refere à


situação a que é submetida a família do preso assim que este é retirado do convívio social:
[...] o preso está desligado de qualquer vínculo empregatício (no caso de ter
tido um) externo, com o que deixa de prover ou colaborar com o sustento da
família, ao contrário, dependendo dela. Quando é o único provedor da
família, o caso assume graves proporções55.

Tal fator acaba estendendo os efeitos da estigmatização dos presos às suas


famílias, levando também a elas o problema da miséria, da exclusão e do etiquetamento,
reforçando as desigualdades sociais e a discriminação.

53
HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas: O Sistema Penal em Questão. 2ª ed., Rio
de Janeiro: Luam, 1997, p. 62.
54
SALIBA. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo, p. 82-83.
55
RAMALHO, José Ricardo. O Mundo do Crime. A Ordem pelo Avesso. 3ª ed., São Paulo: IBCCrim, 2002, p. ?.

23
Fato é que a pena reclusiva é adotada de maneira universal, sem que tenham sido
levantadas alternativas plausíveis que a substituam na contenção daqueles que atentam mais
severamente contra os interesses sociais, propiciando o desenvolvimento de um consenso ao
seu redor e de um sentimento de que esta seria a única forma de se conter a criminalidade,
mesmo aquela menos grave. Segundo o autor, o que ocorre, na verdade, é uma “falsa sensação
de segurança”, incrementando-se o apoio social e minimizando os questionamentos acerca de
sua eficiência.

Tome-se, então, o aumento desenfreado das populações carcerárias ao redor do


mundo: Saliba afirma que as respostas do poder público às crises acabam, invariavelmente,
concretizando-se em um novo pacote de medidas repressivas ladeado pelo recrudescimento na
legislação penal, o que fortalece ainda mais o sistema punitivo.

Desse modo, denuncia, pouco tempo é investido na discussão acerca do cárcere –


e de sua legitimidade –, que permanece sendo visto “como único meio para o controle das
relações sociais e eliminação da criminalidade”. Ao final, agrada-se à maioria – mídia e
sociedade civil –, e amplia-se o âmbito de controle formal do Estado revelado no rigor do
sistema repressivo, o qual, pelos motivos já expostos no capítulo anterior, acaba perdendo
ainda mais sua legitimidade 56.

Saliba prossegue em sua crítica:


A ausência de aprofundada discussão sobre a criminalidade permite
apresentação da resposta punitiva, pois não se aprofunda nas causas que
levaram ao desvio criminoso. A grande mídia contribui para o
fortalecimento desse sistema, com suas narrativas policialescas e seletivas.
[...] Somente a vítima tem família, passado e amigos. O criminoso é
apresentado ao público como um animal raivoso, que possui predisposição
ao crime e prazer mordaz no massacre de suas vítimas. Ignora-se seu
contexto social e sua história de vida. Separa, de modo simplista e pueril,
em indivíduos “do bem” e “do mal”. [...] A opinião sobre a punição mais
adequada é fornecida por todos aqueles que compartilham de uma ideologia
punitiva, havendo preferência e prevalência pelo cárcere57.

(Na contramão disso, temos as poucas, mas louváveis, iniciativas de filmes como
“Última Parada 174”, de Bruno Barreto, e “Cidade de Deus” e “Cidade dos Homens”, de

56
SALIBA. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo, pp. 82-84.
57
SALIBA. Op. cit., p. 84.

24
Fernando Meirelles, que retratam deforma dramática a outra realidade: o contexto social que
leva o brasileiro miserável e marginalizado a se lançar no mundo do crime, diante da pouca ou
nenhuma oportunidade de se adaptar à engrenagem social.)

Assim, sedimentou-se a ideia de que a privação de liberdade seria a única medida


capaz de manter a ordem social e eliminar o problema da criminalidade, produzindo-se uma
verdadeira limpeza nos meios sociais, e passando-se, por conseguinte, à criminalização quase
sumária das classes populares e marginalizadas – nesse sentido, percebe-se que a prisão se dá
num patente reflexo do comportamento da sociedade capitalista, naturalmente excludente e
segregadora.

2.2. A questão das penas alternativas


As penas alternativas – assim chamadas porque funcionam como opções à pena
principal, reclusiva – se prestam a punir o criminoso de um modo que este não seja privado do
convívio social. Tais reprimendas surgem como um reconhecimento de que o processo
punitivo reclusivo apresenta falhas no cuidado do delinquente, notadamente o de baixa
periculosidade, que não necessitaria de tão intensivo e segregador tratamento.

No Brasil, foram incluídas no ordenamento com a reforma da parte geral do


Código Penal, implantada em 1984 com a Lei 7.209, com a clara intenção de funcionarem
como meio de diminuição do encarceramento e facilitação da ressocialização, por serem
menos gravosas e invasivas, e não privarem o sentenciado do convívio social.

Para Saliba, o movimento das penas alternativas surge como opção para recuperar
ao sistema parte da legitimidade perdida, com a intenção de reservar o cárcere às situações
estritamente necessárias. No entanto, aponta que sua implantação não representou a esperada
diminuição no número de penas reclusivas aplicadas, sendo certo, ainda, que se mantém a
escrita de que o encarceramento se dirige às “camadas da população previamente
selecionadas”, sendo que “somente pequena parcela daquelas alcança os méritos impostos”
para que se alcance o benefício do mecanismo alternativo.

Afirma o autor, ainda, que nem se poderia considerar as penas alternativas como
“um novo paradigma ou um rompimento com os mecanismos de dominação anteriormente
existentes”, porque, mesmo com elas, permanece o “processo seletivo e desproporcional

25
ocorrido anteriormente à decisão jurisdicional”, não ocorrendo o necessário distanciamento
daquele “positivismo dogmático e insuperável” 58.

Saliba aprofunda esta crítica ao questionar as penas pecuniárias, que, para ele,
numa sociedade cronicamente desigual, prejudicam não somente o delinquente, mas todos
aqueles que dele dependem. Nesse aspecto, a pena pecuniária empobrece ainda mais o já
pobre condenado, lançando-o de vez na miséria, bem como toda sua família, intensificando as
desigualdades, e aumentando o descrédito do sistema – nas palavras do autor, ocorre no Brasil
um “ciclo vicioso”, pois o condenado raramente tem condições financeiras de arcar com a
pena, e o Estado acaba por não extinguir sua punibilidade.

Outro ponto questionável é que, mesmo com a imposição de penas alternativas,


continua cabendo ao Estado o monopólio da vigilância sobre a vida do indivíduo delinquente,
mantendo-se, assim – na verdade, estendendo-se – o campo de controle formal estatal59.

O autor também aponta seu olhar crítico aos institutos da suspensão do processo e
da pena, afirmando que “as condições impostas para o cumprimento dessas alternativas não se
afastam do caráter estigmatizador e normalizador da pena”, não se podendo confundir estes e
outros mecanismos expiatórios com um processo ressocializador, propriamente dito. Alega
que, mesmo na pena de prestação de serviços comunitários, ocorre, na verdade, um
adestramento, impondo-se padrões comportamentais sob a falsa ideia da ressocialização.

Conclui nosso autor, aduzindo que o sistema penal, em que pese a adoção de
medidas alternativas como as vistas, dentre outras, permanece focando suas lentes sobre os
marginalizados. Entende que tais medidas tendem, sim, a amenizar a grave problemática do
cárcere, mas completa que, decerto, as penas alternativas, sejam restritivas ou pecuniárias,
“em nada abrandaram o rigor da dominação” punitiva estatal60.

58
SALIBA. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo, pp. 85-86.
59
SALIBA. Op. cit., pp. 86-87.
60
SALIBA. Op. cit., p. 88.

26
3. JUSTIÇA RESTAURATIVA - SURGE UM NOVO MODELO
O movimento de justiça a que hoje se dá o nome de restaurativa tem influência
numa construção histórica de surgimento de ideias alternativas ao modelo punitivo vigente.

Como bem discorre Raffaella Pallamolla, nos Estados Unidos dos anos 60 e 70
surgiram os movimentos de restituição e reconciliação, o just desert e o movimento
reparador, ambos propondo mudanças de orientação no Direito Penal61.

Segundo a autora, que cita Cid e Larrauri, é neste contexto que ganham força as
propostas de Braithwaite, que afirmava que para que a pena tivesse real efeito preventivo,
deveria ser reintegradora, e não excludente. Propunha, ainda, que houvesse maior participação
da vítima e da comunidade no processo, o que permitira não apenas a punição, mas a
compreensão, pelo réu, do dano praticado.

Braithwaite, no entanto, não permitia a associação da Justiça Restaurativa, por ele


proposta, com a teoria abolicionista: esta não propunha apenas uma alternativa à prisão, mas a
total substituição do atual processo penal, enquanto aquela admite a utilização do cárcere para
certos delitos, bem como preserva as garantias processuais e penais pela justiça comum62.
Nesse sentido, a Justiça Restaurativa funcionaria como um modelo atrelado à
justiça comum. Caberia, inclusive, ao Juízo supervisionar os acordos, decidindo quais os
casos que poderiam ser submetidos ao modelo restaurativo. Enfim, caberia à justiça comum
garantir eficácia e aplicabilidade à Justiça Restaurativa.

É importante ressaltar que, como qualquer outro ideal renovatório, a Justiça


Restaurativa sofreu influência de vários modelos e pensamentos, sobre os quais relataremos
algumas características, seguindo os ensinamentos de Pallamolla.

3.1. Influências ao modelo restaurativo


Já nos anos 80, num momento de intensificação das críticas e questionamentos
por alternativas ao direito penal, surgiram os movimentos minimalista, realista de esquerda e
abolicionista.

61
PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática. São Paulo: IBCCrim,
2009, p. 34.
62
CID, José e LARRAURI, Elena. Teorías Criminológicas: Explicación y Prevención de la Delincuencia,
Barcelona: Bosch, 2001, pp. 223.

27
O realismo de esquerda propunha uma visão social da criminologia, apontando o
crime como um problema principalmente das classes sociais mais pobres, como fruto da
desigualdade social. Por este ideário, a tarefa da criminologia seria lutar contra o delito, e pela
recuperação da polícia, fortalecendo-se, de certa forma, o sistema penal63.

A este respeito, interessante reproduzir o que escreveu Rodrigo Ghiringhelli de


Azevedo:

Nas palavras de Young, ele mesmo um dos principais expoentes deste


paradigma, o realismo de esquerda, como uma crítica da teoria
criminológica existente, procura abranger todos os aspectos do processo
criminal (normas, controle, criminosos e vítimas), tendendo mais a uma
síntese do que simplesmente a uma oposição às demais teorias. Nesse
sentido, o realismo de esquerda dedica atenção às formas da criminalidade,
ao contexto social de produção e controle do crime, ao desenvolvimento da
criminalidade temporal e espacialmente.

Quanto às formas da criminalidade, o realismo de esquerda destaca a


interação entre a polícia e demais agências de controle social, o público, o
delinquente e a vítima. As taxas de criminalidade são geradas não apenas
pela atuação destes quatro elementos, mas pelos relacionamentos sociais
entre eles. Assim, é o relacionamento entre a polícia e o público que
determina a eficácia do policiamento; é a relação entre a vítima e o
agressor que determina o impacto do crime; é a relação entre o Estado e o
agressor que influencia as taxas de reincidência, etc. As taxas de
criminalidade são um produto, portanto, de mudanças no número de
potenciais delinquentes, de potenciais vítimas, nos níveis de controle
exercidos pelas agências estatais e pelo público (Young, 1997, p. 104)64.

O realismo de esquerda também afirma que as taxas de criminalidade são o


produto de duas dimensões sociais, não necessariamente covariantes:
mudanças no comportamento individual e na atuação das forças de controle
social. A análise de ambas as dimensões permite definir o que constitui um
comportamento intolerável e a habilidade do controle social para atuar
sobre este comportamento a cada momento.

63
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, pp. 37.
64
YOUNG, Jock. Recent Paradigms in Criminology. In: MAGUIRE et al. The Oxford Handbook of
Criminology. Oxford: Clarendon Press, pp. 69-124 apud GHIRINGHELLI DE AZEVEDO, Rodrigo. Controle
Penal em Tempo de Mudança: Brasil e Argentina. (v. nota seguinte)

28
Nessa perspectiva, o crime é visto como uma série de relacionamentos,
envolvendo tanto cooperação quanto coerção. A trajetória do delito através
do tempo deve portanto levar em conta (1) as causas remotas do crime; (2)
o contexto moral que leva à opção pelo comportamento criminal; (3) a
situação de cometimento do crime; (4) a detecção do crime; (5) a resposta
do transgressor; (6) a resposta da vítima. As carreiras criminais são
construídas através da interação da posição estrutural na qual se encontra o
transgressor e das respostas administrativas para as suas transgressões. O
crime é uma atividade que envolve uma escolha moral em um determinado
momento e em determinadas circunstâncias. Não é nem totalmente
determinado social ou biologicamente, como crê o positivismo, nem é uma
escolha racional como acreditava a Escola Clássica. É um ato moral que
acontece sempre dentro de um determinado contexto65.

Quanto à teoria do direito penal mínimo, sabemos se tratar da defesa da


intervenção mínima do Estado, propondo ao ordenamento jurídico a redução dos mecanismos
punitivos ao patamar mínimo necessário. Desse modo, a intervenção penal justificar-se-ia
somente quando absolutamente necessária para a proteção dos cidadãos, notadamente no que
se referir à imposição da sanção 66.

Segundo tal corrente, que também influenciou o pensamento restaurativo, a


intervenção penal é mínima quando o Direito Penal é a ultima ratio, fazendo jus a seu caráter
fragmentário67.

A aplicação dos princípios da mínima intervenção e fragmentariedade, a


embasar a descriminalização e despenalização de fatos incriminados, em
busca de algo melhor que o Direito penal, e o afastamento da justiça penal
são os primeiros passos para o respeito à dignidade da pessoa humana e
aos direitos humanos. Em outro sentido, numa postura inversa, a
aproximação da sociedade, vítima e desviante legitimam a atuação da
justiça dentro do Estado Democrático de Direito68.

65
Controle Penal em Tempo de Mudança: Brasil e Argentina. Programa de Becas para Jovens Investigadores da
América Latina e Caribe – CLACSO/ASDI (Trabalho Final), disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/becas/sin%20usar/JOV%2099%20POL%CDTICA%20Y%20EST
ADO/ghiringhelli%20de%20azevedo%20art%EDculo.doc>. Acesso em 11/6/2011.
66
PALADINO, Carolina Freitas. Política Criminal: Direito Penal Mínimo X Direito Penal Máximo. Revista
SJRJ. Rio de Janeiro, v. 17, nº 29, pp. 61-62, disponível em <http://www4.jfrj.jus.br/seer/
index.php/revista_sjrj/article/viewFile/189/200>. Acesso em 21/8/2011.
67
CALLEGARI, André Luiz. O Princípio da Intervenção Mínima no Direito Penal. IBCCrim, nº 70, 1998, p.
478.
68
SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo. Curitiba: Juruá, 2009, p. 93.

29
Temos ainda os ideais das teorias abolicionistas, mais radicas, pelos quais, como
já visto, se propunha a substituição do modelo tradicional de justiça penal, defendendo a
recuperação do conflito pelo encontro entre vítima e ofensor, com intervenção de um
mediador em alguns casos. Propõem, ainda, de maneira semelhante à teoria minimalista, que a
sociedade recupere sua capacidade de solucionar conflitos, substituindo o Direito Penal por
outras formas não-punitivas de solução de delitos.

A ideia aqui é exatamente a abolição da pena, do cárcere e do próprio sistema


penal enquanto mecanismo punitivo: não se aceitam as justificativas dos fins da punição
frente ao sofrimento que se provoca69.

Zaffaroni defendia que o ideal abolicionista era propor uma “reconstrução de


vínculos solidários de simpatia horizontais ou comunitários, que permitam a solução desses
conflitos sem a necessidade de apelar para o modelo punitivo formalizado abstratamente”70.

Em que pese tal modelo nunca tenha sido colocado efetivamente em prática - nem
mesmo nos países onde surgiu (países baixos e escandinavos) -, contribuiu na humanização
defendida em face da falência do direito estatal de punir, e na intensificação das críticas no
sentido de que tal sistema mostrou-se incompetente na ressocialização do infrator e no
respeito aos direitos e à dignidade do ser humano.

Importante salientar que Foucault, ainda que não fosse propriamente um


abolicionista, teve grande influência neste último movimento, por conta de seus estudos sobre
estruturas de poder e sobre o sistema prisional.

Como também pontuado por Zaffaroni, o sociólogo e antropólogo norueguês


Thomas Mathiesen visualizava o sistema penal como vinculado à própria estrutura
capitalista71. Defendia a redução ou a abolição do cárcere e, principalmente, para nosso
estudo, que o sistema penal tinha o dever de proteger a vítima, com compensação financeira,
manutenção de centros de apoio, abrigos coletivos etc.

Raffaella apoia-se, ainda, em Salo de Carvalho, ao mencionar Nils Christie, um


dos abolicionistas que mais contribuiu para a perspectiva restaurativa. Seu pensamento
baseava-se na ideia de se construir modelos mais participativos de justiça, que envolvessem a

69
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão - Teoria do Garantismo Penal. 2ª ed.. Tradução de Luis Flávio Gomes e
outros. São Paulo: RT, 2002.
70
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em Busca das Penas Perdidas: A Perda da Legitimidade do Sistema Penal. Rio:
Revan, 2001, pp. 104-106.
71
ZAFFARONI. Op. cit., pp. 99-100.

30
comunidade e abdicassem do uso da sanção privativa ou restritiva de liberdade, lançando
mão da reparação ou indenização à vítima, por intermédio da composição do conflito72.

De volta a Zaffaroni, este cita o criminologista holandês Louk Hulsman, o qual no


transcorrer dos anos 80 denunciou a ineficácia do Direito Penal na solução de conflitos,
propondo sua completa substituição por instâncias intermediárias alternativas, focadas nas
necessidades reais dos envolvidos73. Para o jurista batavo, as expectativas das vítimas são
ignoradas pelo sistema penal, pois estas, em sua maioria, não pretendem vingança ou
punição, mas tão-somente a resolução da situação que as incomoda e a recuperação do bem
jurídico ofendido, voltando ao status quo ante74.

Uma das grandes críticas ao abolicionismo é o fato de intencionar, na prática, a


completa proscrição do sistema penal, o que acabou fazendo com que se afastasse de outros
setores que compartilhavam alguns de seus pontos de vista. Outro ponto de crítica é que,
inexistente o Direito Criminal, perder-se-iam as imprescindíveis garantias do processo penal.

De todo modo, o abolicionismo impulsionou reformas, tendo suas ideias


divulgadas e adotadas por outras correntes. Com o passar do tempo, perdeu espaço para
modelos considerados menos utópicos75.

Por fim, uma das críticas ao abolicionismo que julgamos mais pertinente é aquela
ventilada pela jurista venezuelana Aniyar de Castro, sobre a inviabilidade da aplicação de
medidas abolicionistas num contexto latino-americano:

Segundo a autora, para que uma sociedade possa prescindir do sistema


penal é necessário um alto nível de democracia em sua estrutura social,
econômica e cultural, o que não se vê nos países periféricos, estando, assim,
inviabilizada a proposta abolicionista, mesmo se introduzida de forma
lenta76.

Neste ensejo, outro movimento que influenciou os ideais restaurativos foi o da


vitimologia, que se empenhou em estudar o papel da vítima no sistema penal, seus direitos e
suas necessidades.

72
CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. RJ: Lumen Juris, 2008, p. 130.
73
ZAFFARONI. Em Busca das Penas Perdidas: A Perda da Legitimidade do Sistema Penal, p. 99.
74
HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas: O Sistema Penal em Questão, pp. 68-69.
75
LARRAURI, Elena. Tendencias Actuales en la Justicia Restauradora. In: ÁLVARES, Fernando Pérez (ed.).
SERTA in memoriam Alexandri Baratta. Salamanca, Universidad de Salamanca – Aquilafuente, 2004, p. 441.
76
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 45.

31
Segundo esta corrente, que teve início nos anos 70 e 80, os modelos atuais de
Direito Penal e Processual Penal se esquecem da vítima e suas necessidades, dando mais valor
aos bens jurídicos do que a seus detentores, os reais ofendidos. Entende que, na prática, o juiz,
de posse da lei, toma sua decisão sem permitir qualquer tentativa de conciliação com a
finalidade de reparar o dano, e sem ouvir da vítima qual seriam suas expectativas quanto à
justiça criminal.

Este pensamento em nada tem a ver com uma regressão à vingança privada, mas
requer uma “redefinição global do status da vítima”, voltando os olhos do Direito Criminal a
esta personagem, seu relacionamento com o ofensor, com o sistema legal e com a sociedade,
bem como identificando suas expectativas e anseios77, visando sua reparação, a mediação e o
apoio a esta, que é muitas vezes afastada do conflito, sentindo-se abandonada – e, portanto,
revitimizada.

No Brasil, uma experiência que tem dado bons resultados neste sentido é o
CRAVI (Centro de Referência e Apoio à Vítima), um programa da Secretaria da Justiça e da
Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo que e tem como principal objetivo promover o
reconhecimento e o acesso aos direitos das vítimas de violência, na intenção de consolidar os
direitos humanos e o exercício da cidadania 78.

Sobre a tutela dos interesses da vítima, leciona o mestre Nucci:


A dignidade humana encerra elementos de proteção tanto do agente do
crime como da vítima, cada qual nos aspectos que lhes diz respeito. Do
mesmo modo em que se busca o processo-crime regrado e garantista, não se
deve perder de foco a sustentação da parte ofendida, em matéria de tutela
de seus imediatos interesses, tais como a recomposição do dano, a
assistência jurídica e psicológica e o resguardo de novas agressões79.

Raffaella afirma que enquanto alguns segmentos da vitimologia viam a Justiça


Criminal como sendo prejudicial à realização das pretensões das vítimas, outros consideravam
o sistema como fundamental para legitimar a defesa de seus interesses.

Um bom exemplo relacionado com o tema, levantado por Raffaella, é o caso da


“Lei Maria da Penha” (Lei nº 11.340/06), recentemente introduzida no ordenamento
77
MOLINAS, Antonio García-Pablos de. Criminologia: Introdução a Seus Fundamentos Teóricos. Trad. Luiz
Flávio Gomes. 2ª ed., São Paulo: RT, 1997, p. 17.
78
Informações disponíveis online, no website do CRAVI, sediado no Portal da Secretaria da Justiça e da Defesa
da Cidadania, em <http://www.justica.sp.gov.br/Modulo.asp?Modulo=45&Cod=45>. Acesso em 26/7/2011.
79
NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. São Paulo: RT, 2010,
p. 385.

32
brasileiro, e que versa sobre a proteção da mulher contra a violência doméstica, utilizando,
para isso, diversos instrumentos punitivos – nada prevendo, no entanto, sobre a solução de
conflitos por métodos conciliativos80, o que, a nosso ver é de se lamentar.

No geral, a vitimologia prega o apoio e a assistência à vítima, bem como a


reparação ou compensação, resolvendo seu sentimento de desamparo e alienação – sentimento
chamado de “vitimização secundária”.

Nossa autora refere-se às ideias de Bustos e Larrauri, que apontam medidas para
solucionar tal questão, mas de maneira tal que se evite a detenção do ofensor, tais como a
reparação do dano no curso do processo, a prestação de serviços à comunidade, medidas
cautelares, a tentativa de conciliação com ajuda de um intermediador, e mais atenção
assistencial e econômica à vítima 81.

Assim, a Justiça Restaurativa sofreu influências também da vitimologia, sendo por


ela inspirada na formalização de alguns de seus princípios. Importante ressaltar, porém, que o
movimento restaurativo não está restrito à questão das vítimas, se preocupando também, e de
forma destacada, com o ofensor, bem como com a comunidade envolvida no conflito82.

80
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 50.
81
BUSTOS, Juan e LARRAURI, Elena. Vitimología: Presente y Futuro (Hacia un Sistema Penal de
Alternativas). Barcelona: PPU, 1993, pp. 44-45.
82
PALLAMOLLA. Op. cit., p. 53.

33
3.2. As Nações Unidas e a Justiça Restaurativa
Encontrados na Resolução 2002/12 do Conselho Social e Econômico da ONU 83,
os Princípios Básicos para a Utilização de Programas Restaurativos em Matéria Criminal
servem de referência internacional no que se refere à regulamentação e à prática da Justiça
Restaurativa.

Prestam-se a orientar a utilização deste modelo de justiça em casos de direito


criminal, delineando aspectos relativos à sua definição, utilização, desenvolvimento,
limitações e finalidades.

A intenção do citado documento é servir de guia aos Estados que queiram


implementar a Justiça Restaurativa, apresentando regras adaptáveis às realidades internas de
cada nação. Isso porque, no entendimento dos que participaram de sua elaboração, seria
inviável que se estabelecessem padrões rígidos, por não existir, ainda, um consenso
internacional neste sentido 84.

Passaremos, agora, a destrinchar a Resolução 2002/12, pontuando a importância


prática de cada previsão dela constante.

Inicialmente, convém pontuar que, conforme se lê de sua introdução, tal


documento surge como resultado de uma série de pesquisas, documentos, congressos e
tratativas realizadas pelos órgãos da ONU, tais como as Resoluções 1999/26
(“Desenvolvimento e Implementação de Medidas de Mediação e Justiça Restaurativa na
Justiça Criminal”) e 2000/14 (“Princípios Básicos para Utilização de Programas Restaurativos
em Matérias Criminais”), e a “Declaração sobre Princípios Básicos de Justiça para Vítimas de
Crimes e Abuso de Poder”, dentre outros.

A Resolução convoca os Estados-membros a mutuamente se apoiarem em


pesquisa e capacitação, fomentando a discussão e o intercâmbio de experiências no
desenvolvimento de programas de Justiça Restaurativa.

Em seu Preâmbulo, o documento reconhece o aumento das iniciativas


restaurativas ao redor do mundo, bem como que a Justiça Restaurativa tem surgido como
resposta mais digna e proporcional ao crime, por construir um diálogo e promover a harmonia

83
Resolução 2002/12 do Conselho Social e Econômico da Organização das Nações Unidas - ECOSOC. Texto
na íntegra disponível em língua inglesa, no website das Nações Unidas: <http://www.un.org/en/ecosoc/
docs/2002/resolution%202002-12.pdf>. Acesso em 11/2/2011. (tradução nossa)
84
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, pp. 87-88.

34
social entre vítima, ofensor e comunidade, possibilitando a reparação e uma mais efetiva
superação do conflito.

Observa, ainda, que as práticas restaurativas ensejam uma variedade de medidas


flexíveis e adaptáveis, bem como, complementares aos sistemas de justiça criminal vigentes.

I - USO DOS TERMOS


Em seu artigo 1º, a Resolução define:

1. “Programa de Justiça Restaurativa” é qualquer programa que utilize


processos restaurativos e busque atingir resultados restaurativos.

No dispositivo seguinte, reza:

2. “Processo restaurativo” é qualquer processo em que a vítima e o ofensor,


e, quando necessário, quaisquer outras pessoas ou membros da comunidade
afetados por um delito, participem juntos ativamente na resolução de
questões derivadas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador.
Processos restaurativos podem envolver mediação, conciliação,
conferências e as reuniões de sentenças.

Um restorative outcome – “resultado restaurativo” – é, nos termos do artigo 3º da


Resolução, um acordo firmado como resultado de um processo restaurativo; que inclui
respostas e programas como a reparação, a restituição e o serviço comunitário, com o objetivo
de atender as necessidades individuais e coletivas, bem como as responsabilidades das partes,
e alcançar a reintegração da vítima e do ofensor à comunidade.

Raffaella ressalta, neste ponto, que a Resolução em nenhum momento desvincula


resultado restaurativo de processo restaurativo, o que nos faz apreender que a decisão de um
magistrado togado que condene o réu, num processo criminal comum, à prestação de serviços
comunitários – portanto, a uma pena, ainda que alternativa –, não se trata de um resultado
restaurativo, propriamente dito 85. Sobre tal questão já tratamos em ponto próprio, quando
discorremos sobre as penas alternativas previstas em nosso ordenamento.

Nos artigos 4º e 5º temos as definições dos termos partes – “vítima, ofensor e


outros indivíduos ou membros da comunidade afetados pelo crime, que estejam envolvidos no
processo restaurativo” – e facilitador – “pessoa cujo objetivo é facilitar, de maneira justa e
imparcial, a participação das partes num processo restaurativo”.

85
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, pp. 89-90.

35
II – USO DE PROGRAMAS DE JUSTIÇA RESTAURATIVA
Em seu artigo 6º, a Resolução 2002/12 assevera que os programas de Justiça
Restaurativa podem ser utilizados em qualquer estágio do processo que corre perante o
sistema de justiça criminal, respeitada a legislação nacional. Evidentemente, aqui se trata da
versatilidade da aplicação da Justiça Restaurativa, que não necessariamente será utilizada em
um momento específico do procedimento criminal – fato este que nos faz entender que nem
sempre os resultados do programa restaurativo serão os mesmos, pois dependerão, dentre
outros fatores, do momento de sua aplicação.

O texto do artigo seguinte recomenda que os mecanismos de Justiça Restaurativa


devam ser utilizados apenas quando houver indícios suficientes para que o ofensor seja
acusado, merecendo destaque ao reforço que dá à questão da voluntariedade. Afirma que deve
haver “livre e voluntário consentimento da vítima e do ofensor”, os quais “devem estar aptos
a desistirem do procedimento a qualquer momento”. Importante destacar também a
recomendação no sentido de que os acordos devam ser alcançados voluntariamente e conter
apenas obrigações proporcionais e razoáveis – uma garantia de que não haverá excessos,
marginalização ou etiquetamento.

Quanto a este trecho, o mestre Gomes Pinto ressalta:

As partes devem ser informadas, de forma clara, que se trata de uma


ferramenta alternativa posta à disposição delas, e sua aceitação, que pode
ser revogada a qualquer momento, deverá ser sempre espontânea. A
participação deverá ser estritamente voluntária86.

Continua o autor, afirmando que na fase preparatória ao encaminhamento do caso


à Justiça Restaurativa, é aconselhável a prévia consulta ao acusado, de modo a se assegurar
sua concordância em participar do procedimento restaurativo, sendo que, somente após esta
consulta, passar-se-ia à vítima, de modo a não se criarem expectativas ou tensões
desnecessárias87.

Em alguns procedimentos, como veremos oportunamente, a voluntariedade pode


ser mitigada, como em casos relacionados à justiça de menores, em que a participação do
ofensor pode ser obrigatória.

86
PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é Possível no Brasil? In: SLAKMON, C.; DE VITTO,
R.; PINTO, R. Gomes (org.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento, 2005, pp. 32-33.
87
PINTO. Op. cit., pp. 32-33.

36
Raffaella dá destaque ao chamado consentimento informado: afirma, apoiada em
Pemberton, que o consentimento da vítima implica a atuação de “organizações independentes
que a auxiliem e orientem a tomar a decisão de participar” do processo restaurativo, bem
como quanto a qual procedimento, dentre os possíveis, pode escolher. Tal seria necessário
porque há o risco de que a vítima seja informada apenas das questões positivas da Justiça
Restaurativa, deixando-a desinformada dos pontos críticos ou negativos da adoção desse
procedimento88. A própria Resolução trata a questão, em seu art. 13, alínea “b”, como se verá.

Pemberton ainda destaca que o aceite, com relação ao ofensor, não pode ser
vinculado à ideia de que adotando tal procedimento a pena será menor ou menos severa, pois
isso poderia acarretar, por exemplo, a falta de sinceridade num pedido formal de desculpas.
No entanto, aponta que, enquanto a Justiça Restaurativa estiver atrelada à justiça criminal,
permanecerá “a „sombra‟ da aplicação da sanção judicial por trás da aceitação em participar
do processo restaurativo”. Anote-se que a voluntariedade incide, inclusive, no resultado do
processo restaurativo, pois qualquer decisão jamais poderá ser imposta, mas sempre alcançada
em comum acordo, respeitadas a proporcionalidade e a razoabilidade.

Sobre a participação do ofensor no processo restaurativo, o artigo 8º deixa claro


que a aceitação deste não pode ser usada posteriormente como evidência de admissão de
culpa em eventual processo legal. Tal previsão serve de orientação aos operadores do direito,
notadamente aos juízes togados, e mesmo aos facilitadores, os quais eventualmente poderiam
considerar que a participação do delinquente num processo restaurativo gerasse uma
presunção de confissão do delito.

Raffaella reforça que se deve buscar desenvolver o procedimento restaurativo em


ambiente neutro, que não o judicial, e que os facilitadores devem ser pessoas
preferencialmente ligadas à comunidade 89, ou também, acrescento eu, profissionais de áreas
como psicologia, assistência social e recursos humanos, tendo em vista a facilitação do
diálogo.

A Resolução ainda reza que as diferenças culturais e demais disparidades que


possam ocasionar um desequilíbrio entre as partes (artigo 9º), bem como a segurança das
partes (artigo 10), devem ser levadas em consideração no momento da recomendação do
procedimento restaurativo e, bem assim, quando de sua condução.
88
PEMBERTON, Antony. A Vítima Activa na Mediação. A Justiça Restaurativa como Forma de Empowerment
da Vítima. In: Relatório DIKÊ – Proteção e Promoção dos Direitos das Vítimas de Crime no Âmbito da Decisão
– Quadro Relativo ao Estatuto da Vítima em Processo Penal. Lisboa: APAV, set. 2003, p. 103.
89
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, pp. 92-93.

37
Gomes Pinto salienta que a parte que se sinta estigmatizada, fragilizada, ou
mesmo desfavorecida econômica, cultural ou socialmente, deve ter sua condição considerada
pelos gestores dos procedimentos, sendo assistido em sua condição de desamparo ou
desvantagem, para que eventual vulnerabilidade não leve a resultados contrários à ética ou aos
princípios e valores da Justiça Restaurativa90.

Neste sentido, importante pontuar a questão ventilada por Saliba, que afirma que
se deve ter cautela para que a participação desequilibrada das partes na resolução dos
conflitos não venha a ensejar atos de totalitarismo e controle, razão pela qual o Poder
Judiciário se mostra indispensável no papel de assegurar as garantias processuais e
constitucionais dos envolvidos91.

No artigo 11 temos a previsão de que quando o processo restaurativo não for


apropriado ou possível, o caso deve ser conduzido às autoridades de justiça criminal – o que
deve ser procedido sem morosidade. Nestes casos, as próprias autoridades judiciárias podem
encorajar o ofensor a assumir a responsabilidade frente à vítima, apoiando a reintegração de
ambos à comunidade.

III – OPERAÇÃO DOS PROGRAMAS RESTAURATIVOS


A respeito do funcionamento dos programas de Justiça Restaurativa, a Resolução
aduz que cabe aos Estados-membros estabelecer diretrizes e metas, com autoridade legislativa
quando necessário, para a regulação de programas, com a observância de princípios básicos
nela estabelecidos, com especial atenção: a) às condições para o encaminhamento de casos a
programas de Justiça Restaurativa; b) à condução de casos; c) à qualificação, treinamento e
avaliação de facilitadores; e d) à administração dos programas restaurativos (artigo 12 e
alíneas).

Quanto a isso, é importante salientar que em que pese o caráter flexível e informal
dos processos e dos próprios resultados restaurativos, tal fato não pode permitir a ocorrência
de práticas injustas ou antiéticas. Por isso, é imprescindível que os limites do processo
restaurador estejam normatizados, no sentido de se reforçarem os valores restaurativos, tais
como o mútuo respeito, a proibição de resultados degradantes, a não-dominação, dentre outros
– sobre os quais trataremos a seguir.

90
PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é Possível no Brasil? In: SLAKMON et al. Justiça
Restaurativa, p. 33.
91
SALIBA. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo, p. 179.

38
Como bem afirma Saliba, o acordo restaurativo tem por finalidade a pacificação
dos conflitos, não devendo ocasionar novas discussões ou ultrapassar os limites legalmente
fixados. Há, portanto, “um campo de trabalho” no qual as partes podem debater e acordar as
respostas que considerarem adequadas, assegurando-se, entretanto, “uma área de proteção”
sobre a qual não tenham elas livre disposição92.

No artigo 13 da Resolução, destacam-se as garantias procedimentais das partes


que devem ser aplicadas aos programas restaurativos, assegurando o tratamento justo de
vítima e ofensor, a saber: a) o direito à assistência jurídica em conformidade com o Direito
nacional; b) a informação prévia às vítimas sobre seus direitos, sobre a natureza do processo e
suas possíveis consequências; c) a vedação de qualquer indução ou coação das partes para a
participação no processo restaurativo ou na aceitação de seus resultados – com raras exceções,
como já visto.

Além disso, a confidencialidade das tratativas também é garantida, nos termos do


artigo 14 da Resolução, salvo disposição das partes ou da lei nacional em sentido contrário.
Raffaella aponta que a confidencialidade tem importante papel na Justiça Restaurativa, pois
permite a troca de experiências entre as partes sem o temor de que os fatos sejam
posteriormente utilizados num eventual processo criminal 93.

O artigo 15 reza que, sempre que possível, os acordos celebrados em sede


restaurativa sejam supervisionados pelo Judiciário, e incorporados nas decisões e
julgamentos. “Nestes casos, o resultado deve ter o mesmo status que qualquer outra decisão
judicial ou julgamento, causando a preclusão de posterior ação penal em relação aos mesmos
fatos”, continua o dispositivo.

Depreende-se, então, que o resultado restaurativo, homologado pelo juízo, forma


coisa julgada assim como qualquer sentença judicial comum. No caso de não se chegar a um
acordo, o caso é submetido à apreciação da justiça criminal, que não poderá considerar a falta
de acordo como justificativa para prejudicar o ofensor, impondo-lhe pena mais severa que a
recomendável – é o que dispõe o artigo 16.

Na mesma esteira, a Resolução recomenda, em seu artigo 17, que o


descumprimento do acordo feito no curso de um processo restaurativo deve acarretar a
devolução da questão ao programa restaurativo ou, quando determinado por lei, à própria

92
SALIBA. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo, p. 179.
93
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, pp. 94-95.

39
justiça criminal para se determinar como proceder. De igual modo, o não cumprimento do
acordo não deve ser usado como motivo para uma sentença mais severa num ulterior processo
de criminal.

Quanto aos facilitadores (“facilitators”), a Resolução lhes imputa a


responsabilidade de, baseando-se nos fatos e nas diferentes necessidades dos envolvidos,
corrigirem eventuais desequilíbrios existentes entre eles. Fica estabelecido:

18. Os facilitadores devem desempenhar suas funções de maneira imparcial,


com o devido respeito à dignidade das partes. Nesta capacidade, os
facilitadores devem assegurar que as partes atuem com respeito mútuo e
devem garantir que as partes encontrem uma solução relevante entre si
mesmas.

Ainda sobre os facilitadores, a Resolução destaca que estes devem dispor de uma
boa compreensão das culturas locais e das comunidades, recebendo, quando possível,
treinamento inicial antes de assumirem seus deveres (artigo 19).

IV – DESENVOLVIMENTO CONTÍNUO DE PROGRAMAS DE


JUSTIÇA RESTAURATIVA
Ficou estabelecido pela Resolução – sempre em caráter de recomendação, dada a
natureza do Conselho Social e Econômico –, que os Estados-membros devem empreender
esforços na formulação de estratégias e políticas nacionais objetivando o desenvolvimento da
Justiça Restaurativa e na promoção de uma cultura favorável ao uso da Justiça Restaurativa
pelas autoridades de segurança e das autoridades judiciais e sociais, bem como em nível
comunitário (artigo 20).

Este artigo merece nossa atenção, apenas para que memorizemos seus dizeres para
uma oportuna confrontação, num capítulo seguinte, com o parecer exarado pelo Deputado
Federal Antonio Carlos Biscaia, que, lamentavelmente, requereu o arquivamento do Projeto
de Lei 7.006/06, que propunha a institucionalização da Justiça Restaurativa no Brasil.

Prossigamos com a Resolução. De acordo com o artigo 21, devem ser realizadas
consultas regulares entre as autoridades do sistema de justiça criminal e os administradores
dos programas de Justiça Restaurativa para o desenvolvimento de um entendimento comum e
ampliação da efetividade dos procedimentos e resultados restaurativos, de modo a aumentar a
utilização dos programas restaurativos, bem assim para explorar os caminhos rumo à
incorporação das práticas restaurativas na atuação da justiça criminal. Tal serve de incentivo

40
para que as autoridades do sistema criminal passem a se envolver nos programas
restaurativos, aprofundando-o e sedimentando sua utilização.

Ainda regula a Resolução que os Estados-membros, em adequada cooperação


com a sociedade civil, devem promover a pesquisa e o monitoramento dos programas
restaurativos para avaliar o alcance destes em termos de resultados restaurativos, de como
funcionam enquanto complemento ou alternativa ao processo criminal convencional, e se têm
proporcionado resultados positivos a todos os envolvidos.

Afirma, ainda, que os procedimentos restaurativos podem ser modificados na sua


forma concreta, periodicamente, de acordo com as necessidades, e que os Estados-membros
devem estimular avaliações e modificações de tais programas - os resultados das pesquisas e
avaliações devem orientar o aperfeiçoamento do gerenciamento e desenvolvimento dos
programas (artigo 22).

Tal previsão é de suma importância, demonstrando que a própria Resolução


compreende que a Justiça Restaurativa não tem características ainda totalmente definidas,
ainda mais por conta de sua qualidade autocompositiva, o que a torna um sistema em
frequente transformação, sempre visando o melhor atendimento às demandas, de acordo com
a realidade sociocultural e política de cada local onde será aplicada.

V – CLÁUSULA DE RESSALVA
A Resolução encerra, em seu artigo 23, rezando: “Nada nesses princípios básicos
deverá afetar quaisquer direitos de ofensores ou vítimas que tenham sido assegurados no
Direito nacional ou internacional”.

Quanto a isso, aponta Gomes Pinto que, na aplicação da justiça e dos


procedimentos restaurativos, “devem ser rigorosamente observados todos os direitos e
garantias fundamentais de ambas as partes”, tais como os princípios da dignidade da pessoa
humana, da razoabilidade, da proporcionalidade, da adequação, do interesse público, da
eficiência, dentre outros. Também devem ser levados em consideração outros princípios
fundamentais, notadamente aqueles aplicáveis ao direito penal e ao direito processual penal
formais, a saber: legalidade, culpabilidade, presunção de inocência, ampla defesa e
contraditório94.

94
PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é Possível no Brasil? In: SLAKMON, C.; DE VITTO,
R.; PINTO, R. Gomes (organizadores). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2005, pp. 33.

41
Fato salientado por Raffaella é que, de acordo com os estudos coordenados pelos
pesquisadores Sherman e Strang, que analisaram a prática da Justiça Restaurativa no Reino
Unido e em outros países, constatou-se haver uma compatibilidade desta com o sistema legal
vigente, sendo apresentada como uma alternativa para interpretar uma mesma estrutura legal,
alcançando “melhores resultados com os mesmos princípios já assegurados nas leis” –
alternativa, esta, que, “devido à satisfação dos usuários da Justiça Restaurativa”, acaba por
“reforçar as leis”95. Eis, aí, um bom caminho para se recuperar a legitimidade do sistema,
outrora enfraquecida.

Neste sentido, como se verá posteriormente, a Justiça Restaurativa não tem o


condão de eliminar a função estatal, nem mesmo de substituí-la. Como bem afirma Saliba, “a
inafastabilidade da atividade jurisdicional é princípio fundamental num Estado Democrático
de Direito e somente com a coexistência as garantias contra o poder punitivo serão mantidas”.

Deste modo, podemos notar que a previsão desta ressalva na Resolução reforça a
ideia de que a coexistência entre o sistema de justiça tradicional e o restaurativo seja valor e
princípio da própria Justiça Restaurativa, visando assegurar o respeito ao princípio da
legalidade e às garantias constitucionais e processuais das partes envolvidas96.

95
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 98.
96
SALIBA. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo, p. 180.

42
4. CONCEITUANDO A JUSTIÇA RESTAURATIVA
Em trabalho analítico sobre a Justiça Restaurativa e suas implicações, a linguista
Ana Beatriz Ferreira Dias afirmou:

Em sua dimensão prática, a Justiça Restaurativa baseia-se em uma série de


valores para restaurar as relações sociais prejudicadas por um dano, dentre
eles: participação ativa dos sujeitos durante o processo de justiça; respeito
com o outro e sua fala; reconhecimento dos laços sociais que unem todos os
sujeitos (inclusive vítima e ofensor); responsabilidade etc. Nas palavras de
Howard Zehr97: „a Justiça Restaurativa nos faz lembrar da importância dos
relacionamentos, nos incita a considerar o impacto de nosso comportamento
sobre o outro e as obrigações geradas pelas nossas ações‟.

É importante termos em vista que a Justiça Restaurativa é uma resistência à


justiça atual que ocupa o estatuto de ideologia oficial. Em contato direto
com o sistema ideológico de justiça, a visão restaurativa revisa certos
elementos daquela forma de pensamento oficial em prol de uma futura
transformação social na qual seja vitoriosa. Ainda com suas diferenciações,
essas duas visões de justiça estão em influência recíproca constante, de
modo que parece mais adequado pensarmos que ambas fazem parte de um
processo de evolução social e não que uma substituirá/excluirá ou não a
outra98.

O novo modelo de justiça, então, é visto como uma evolução no processo


jurisdicional, um aperfeiçoamento que leva em consideração os equívocos que se perceberam
do modelo retributivo de justiça vigente.

O mestre Marcelo Gonçalves Saliba aponta, em brilhante obra, que a Justiça


Restaurativa não possui conceito definido, apresentando divergências entre doutrinadores até
mesmo no que se refere à nomenclatura mais correta – se “restaurativa”, “restauradora”,
“reintegradora”, “conciliadora”, dentre outros títulos propostos99.

97
ZEHR, Howard. Trocando as Lentes: Um Novo Foco Sobre o Crime e a Justiça. São Paulo: Palas Athena,
2008, p. 265, citado por FERREIRA DIAS. A Justiça Restaurativa por um Viés da Pesquisa em Linguagem: Por
uma Nova Visão de Mundo, p. 38. (v. nota seguinte).
98
FERREIRA DIAS, Ana Beatriz. A Justiça Restaurativa por um Viés da Pesquisa em Linguagem: Por uma
Nova Visão de Mundo. Porto Alegre: PUC-RS, 2010, p. 38. Disponível em
<http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/sited/arquivos/AnaBeatrizFerreiraDias.pdf>. Acesso em 10/4/2011.
99
SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo. Curitiba: Juruá, 2009, p. 144.

43
Tal entendimento é repetido por Raffaella Pallamolla, que salienta que um dos
maiores problemas na conceituação do que seria a Justiça Restaurativa está na generalização
de modelos incorretos e na falta de objetivos bem definidos100.

L. Lynette Parker, cujo artigo também pode ser encontrado na obra sobre Justiça
Restaurativa compilada pelo Ministério da Justiça em colaboração com o PNUD, dá conta do
surgimento de um novo paradigma, cuja visão central não é a mera punição pela quebra de
confiança pelo autor do crime quando este descumpre um preceito legal, tendo como objetivo
precípuo verificar as consequências e os danos experimentados pela vítima, se contrapondo de
forma clara com o sistema atual. Para a autora, a Justiça Restaurativa pode ser definida, de
forma abrangente, como uma resposta sistemática ao ato ilícito ou imoral do agente, se
preocupando, principalmente, com a restauração da vítima ao seu estado anterior à agressão
sofrida, envolvendo e amparando a toda sociedade envolvida, inclusive o ofensor101.

Marcelo Saliba cita Elena Larrauri, que menciona a definição de Tony Marshall,
que pode ser tida como ponto de início: “a Justiça Restaurativa é um processo pelo qual todas
as partes que têm um interesse em uma determinada ofensa, se juntam para resolvê-la
coletivamente e para tratar suas implicações futuras” 102.

Interessante que se acrescente aqui a descrição de André Gomma de Azevedo, que


afirmou, na obra publicada pelo Ministério da Justiça:
[...] entendemos que a Justiça Restaurativa pode ser conceituada como a
proposição metodológica por intermédio da qual se busca, por adequadas
intervenções técnicas, a reparação moral e material do dano, por meio de
comunicações efetivas entre vítimas, ofensores e representantes da
comunidade voltadas a estimular: i) a adequada responsabilização por atos
lesivos; ii) a assistência material e moral de vitimas; iii) a inclusão de
ofensores na comunidade; iv) o empoderamento das partes; v) a
solidariedade; vi) o respeito mútuo entre vítima e ofensor; vii) a
humanização das relações processuais em lides penais; e viii) a manutenção

100
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 53.
101
PARKER, L. Lynette. Justiça Restaurativa: Um Veículo para a Reforma? In: SLAKMON et al. Justiça
Restaurativa, p. 247-249.
102
LARRAURI, Elena. Tendencias Actuales de la Justicia Restauradora. Revista Brasileira de Ciências
Criminais. São Paulo: RT, n. 51, nov./dez. 2004, pp. 72-73.

44
ou restauração das relações sociais subjacentes eventualmente preexistentes
ao conflito103.

Na mesma compilação de textos do Ministério da Justiça, encontra-se a definição


elaborada por Mylène Jaccoud:
A Justiça Restaurativa é uma aproximação que privilegia toda a forma de
ação, individual ou coletiva, visando corrigir as consequências vivenciadas
por ocasião de uma infração, a resolução de um conflito ou a reconciliação
das partes ligadas a um conflito104.

Trata-se, portanto, de um “espaço seguro de responsabilização e compreensão


mútuas”105.

Saliba conta que a Justiça Restaurativa não é uma criação moderna nem pós-
moderna, pois já existia em algumas das mais antigas sociedades. Ressalta, no entanto, que na
modernidade, com a estruturação do Estado, concentrou-se nele a tarefa da resolução de
conflitos, deixando-se de lado qualquer modelo não-científico.

Afirma o autor que, já na pós-modernidade, tal modelo ressurge, baseado na


“intersubjetividade” e na “consensualidade”, apegando-se ao conceito de que a resposta ou a
censura deixe de ser imposta verticalmente e passe a ser discutida horizontalmente, com
igualização dos envolvidos e empoderamento das partes106.

Conforme Raffaella, nos anos 70 e 80, nos Estados Unidos, iniciaram-se


movimentos que falavam em mediação e reconciliação entre vítima e ofensor, associados ao
movimento de descriminalização. Já nos anos 90, após as experiências e a institucionalização
de tais modelos, a Justiça Restaurativa passou a se inserir em todas as etapas do processo
penal, oportunidade em que se praticavam as „conferências‟, reunindo família, sociedade e
atores do sistema judicial107.

Considerando tal evolução, Saliba traça sua própria descrição, afirmando:

103
AZEVEDO, André Gomma de. O Componente de Mediação Vítima-Ofensor na Justiça Restaurativa: Uma
Breve Apresentação de uma Inovação Epistemológica na Autocomposição Penal. In: SLAKMON et al. Justiça
Restaurativa, p. 140.
104
JACCOUD, Mylène. Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam a Justiça Restaurativa. In:
SLAKMON et al. Justiça Restaurativa, p. 169.
105
LORENZONI, Nelnie. Oportunizando o Encontro entre as Pessoas, p. 1. Relatório publicado no website do
“Projeto Justiça para o Século 21”, disponível em <http://www.justica21.org.br/webcontrol/upl/bib_409.pdf>.
Acesso em 25/8/2011.
106
SALIBA. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo, p. 147.
107
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 55.

45
Assim, Justiça Restaurativa pode ser conceituada como: processo de
soberania e democracia participativa numa justiça penal e social inclusiva,
perante o diálogo das partes envolvidas no conflito e comunidade, para
melhor solução que o caso requer, analisando-o em suas peculiaridades e
resolvendo-o em acordo com a vítima, o desviante e a comunidade, numa
concepção de direitos humanos extensíveis a todos, em respeito ao
multiculturalismo e à autodeterminação108.

Faz-se oportuno ressaltar, como fez Raffaella, ao citar Johnstone e Van Ness, que
a Justiça Restaurativa, em que pese as descrições já postas, é um movimento internamente
complexo, de conceito totalmente aberto, fluido, sendo continuamente renovado e
desenvolvido com base nas experiências práticas 109.

Conforme afirmou Parker, esta nova sistemática não tem uma única raiz
geográfica, mas vem sendo experimentada por diversas culturas diferentes, não tendo, com
isso, uma definição única 110.

Raffaella ainda traz a relevo as concepções delineadas por aqueles dois autores,
em estudo a respeito do tema.

Ressalta a autora que as três correntes, as quais serão adiante detalhadas, apesar de
conterem diferenças entre si, possuem pontos em comum, sendo que, na prática, os
mecanismos restaurativos acabam permeando-se por características provenientes não só de
uma, mas das três concepções elencadas, que são, inevitavelmente, interligadas. A diferença
entre elas estaria, então, em sobre qual escopo a ênfase é colocada 111.

ENCONTRO112

Segundo Raffaella, a concepção de encontro é a que melhor expressa uma das


ideias centrais do movimento restaurativo, pois prevê que a vítima, o ofensor, e outros
interessados tenham a chance de se encontrarem num local informal, neutro, e que não seja
controlado por operadores do direito (como os fóruns e tribunais, por exemplo).

108
SALIBA. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo, p. 148.
109
JOHNSTONE, Gerry and VAN NESS, Daniel W. The meaning of restorative justice. In: JOHNSTONE and
VAN NESS (ed.). Handbook of Restorative Justice. Cullompton, UK; Portland, USA: Willan Publishing, 2007,
p. 8.
110
PARKER. Justiça Restaurativa: Um Veículo para a Reforma? In: SLAKMON et al. Justiça Restaurativa, p.
247.
111
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 55.
112
PALLAMOLLA. Op. cit., p. 55-57.

46
Para os favoráveis a este ideário, a Justiça Restaurativa permite, sempre com a
intervenção de um facilitador, que os envolvidos no conflito “abandonem a passividade e
assumam posições ativas nas discussões e na tomada de decisões sobre o que deve ser feito
com relação ao delito”113.

Assim, o modelo dialogado afasta-se da justiça criminal retributiva, propondo que


se utilize o diálogo objetivando um acordo entre as partes envolvidas, em lugar da tradicional
imposição de pena por um magistrado togado. Tanto vítima quanto ofensor terão a sensação
de que foram tratados de forma justa – aquela porque pôde demonstrar seu sofrimento, e este
porque, tomando conhecimento do dano causado, é levado à reflexão sobre seus atos.

Importante salientar que não haveria como se considerar uma pena de reparação
de danos imposta por um Juiz como sendo uma prática de Justiça Restaurativa, pois, ainda
que envolva a restituição à vítima de parte do dano, em nenhum momento leva em conta o
diálogo, que tem valor intrínseco e inafastável.

Nesse sentido, ensina Parker que, identificados os infratores e os danos causados,


será buscada uma solução conjunta para o prejuízo gerado, com o envolvimento ativo de
todos, buscando sempre respostas em conjunto com o Poder Estatal e a comunidade, visando
a restauração dos prejuízos causados.

Para a autora, a mediação entre o infrator e a vítima tem por objetivo a reunião
dos envolvidos no conflito social com um mediador treinado para coordenar o encontro. Neste
encontro, a vítima expõe a experiência que sofreu com a prática delitiva e elenca os impactos
sofridos; depois o infrator explana o motivo pelo qual se comportou daquela forma e responde
as indagações que a vítima possa ter; ao final, o facilitador auxilia as partes a encontrarem
uma forma de solução para o problema criado. Ressalta que tal procedimento pode ser
adotado em qualquer fase do processo penal e pode ou não ter efeito na decisão definitiva que
possa advir 114.

Saliba ressalta a importância do encontro, apontando que o resultado que se


espera dele envolve tanto a reparação – à vítima ou sociedade, em contrapartida aos danos
causados – quanto a reintegração social – a devolução de vítima e ofensor à sociedade, sem
estigmas ou marginalização. Tais conceitos demonstram, na visão do autor, uma das grandes

113
PALLAMOLLA, Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 56.
114
PARKER, L. Lynette. Justiça Restaurativa: Um Veículo para a Reforma? In: SLAKMON, C.; DE VITTO,
R.; PINTO, R. Gomes (organizadores). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2005, p. 248.

47
diferenças do modelo restaurativo para a justiça tradicional: enquanto aquele repara e
reintegra, esta busca a conscientização através da dor, limitando a participação da vítima e
afastando a comunidade do conflito 115.

Por fim, alguns problemas de ordem prática, que mitigariam a efetividade


encontro entre partes, são por levantados por Raffaella: a hipótese de o facilitador dominar o
diálogo, a ausência de uma das partes por desinteresse ou impossibilidade, e a burocratização
e institucionalização do método restaurativo 116.

REPARAÇÃO

Um segundo fluxo, de acordo com o pensamento de Johnstone e Van Ness,


citados por Raffaella, é o que destaca a reparação do dano causado à vítima como mote da
Justiça Restaurativa. Citando Larrauri117, ela salienta que para esta corrente de pensamento a
reparação é o suficiente para que se possa dizer que houve justiça, pois o acordo restaurador
permitiria, além da reparação à vítima, a reintegração do ofensor e a restauração da
comunidade afetada pelo delito – e, por conseguinte, a total restauração da situação pré-
conflito.

Nesta esteira, o encontro seria igualmente necessário, pois permitiria à vítima


recuperar sua confiança no ofensor, ao mesmo tempo em que este teria a oportunidade de se
desculpar e se submeter à justa reparação do dano causado. Ainda, segundo nossa autora,
mesmo que o encontro não seja possível, para os adotantes da posição reparacionista, o
próprio sistema deve buscar respostas que favoreçam a reparação em lugar de uma sanção de
multa ou prisão.

Segundo Parker, é necessário se ater primeiramente à resolução do problema


concreto, ao invés de se buscar apenas a punição do infrator, lembrando-se sempre dos
valores fundamentais da Justiça Restaurativa, e buscando-se sempre a verdade, para se
reconhecerem os responsáveis e o impacto gerado na vida da vítima e de sua família, bem
como, até mesmo, do infrator, para se determinar a forma da reparação118.

Para Saliba, a reparação é um conceito que deve ser aprofundado, para que não se
prenda sua compreensão à estreita visão dos danos materiais. Afirma que tem um significado

115
SALIBA. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo, p. 151.
116
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, pp. 57-58.
117
LARRAURI, Elena. Tendencias Actuales en la Justicia Restauradora, p. 445.
118
PARKER. Justiça Restaurativa: Um Veículo para a Reforma? In: SLAKMON et al. Justiça Restaurativa,
2005, p. 249-250.

48
mais profundo para a Justiça Restaurativa, e cita Sergio García Ramírez, segundo o qual,
reparação é mais complexa que o mero ressarcimento, compreendendo, idealmente, a
restauração dos laços sociais entre vítima, ofensor e a comunidade, o que acarretará uma
transformação mais profunda nas relações sociais em jogo. Segundo este autor, ainda, a
reparação tenta, também, recuperar o papel da vítima no processo, consolidar a função
pacificadora do Direito Penal e ressocializar o delinquente 119.

TRANSFORMAÇÃO

Por fim, ainda conforme Johnstone e Van Ness, citados por Raffaella, há a
corrente que se apega à ideia de que o objetivo primeiro da Justiça Restaurativa seria
transformar a maneira como a sociedade compreende a si próprias e como as pessoas se
relacionam umas com as outras.

De acordo com este pensamento, seria necessária, inclusive, uma mudança de


linguagem – como aquela proposta pelo abolicionismo –, rediscutindo-se a conceituação de
expressões como “crime”, a qual pode ser trocada por “conduta danosa”, “situação
problemática”120, dentro outros casos.

DIÁLOGO
“O modelo de Justiça Restaurativa, que constitui uma alternativa para a
resolução de delitos menores em tempo e aos custos dos processos penais,
tem o mérito de introduzir no ordenamento um novo conceito de
responsabilidade pela mediação, que não se limita „somente ao ter o que
fazer com o ser responsável de alguma coisa ou por alguma coisa‟, mas
permite um „percurso que conduz os sujeitos em conflito a serem
responsáveis para (a responder um para o outro)‟.”121

Saliba destaca que uma das características principais do processo restaurativo é a


intersubjetividade – “um processo de discussão e integração social, em busca da
consensualidade”122.

Aponta nosso autor a importância do “tripé participativo” vítima-desviante-


comunidade, o qual visa a acessibilidade das decisões de interesse social, de modo a distribuir

119
RAMÍREZ, Sergio García. En Búsqueda de la Terceira Via: La Justicia Restaurativa. In: Revista de Ciencias
Penales. Iter Criminis. Cidade do México: Inacipe, n. 13, abr./jun. 2005, p. 232.
120
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 58-60.
121
OCCHETTA, S.J. Francesco. As Raízes Morais da Justiça Restaurativa. Trad. Maria Alves Müller. In:
Cultura e Fé, Brasil, n. 126, p. 331-345, 01/9/2008.
122
SALIBA. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo, p. 156.

49
o ônus e a responsabilidade pelas decisões. Tal ponto, segundo o autor, figura como principal
diferença do modelo restaurativo com relação ao retributivo, pois, por meio do diálogo e da
participação no processo decisório, se constrói um novo modelo de justiça – como bem
observou, inclusive, Rezende Melo, em seu artigo publicado pelo Ministério da Justiça 123.

Parker, a sua vez, salienta que o processo restaurativo permite que a vítima e o
autor troquem as experiências de suas vidas e, de forma direita ou indireta, busquem uma
forma amigável de reparação dos prejuízos causados pela ofensa124. Desta forma, as partes
envolvidas neste conflito social podem resolver de forma consensual e melhor forma de
solução, reinserindo, tanto a vítima como o infrator, à coletividade.

A autora relata, neste rumo, o processo de reunião, de origens no povo maori, da


Nova Zelândia, que cria uma grande mediação (“facilitação”), ampliando o número de
indivíduos na discussão, já que é possível a participação de familiares e amigos tanto da
vítima como do infrator, tendo um facilitador treinado para mediar uma possível solução, o
qual deve assegurar que todos tenham respeitado seu direito de se manifestar com respeito
mútuo.

Como as consequências da prática delituosa são ampliadas para as pessoas


próximas aos envolvidos no conflito social, a discussão sobre a solução passa pelo crivo e
ótica de todos, respeitando sempre os possíveis impactos gerados, buscando-se também a
reparação dos prejuízos causados e as razões que levaram o infrator a cometer o fato
criminoso. Assim como na mediação, este procedimento pode ser adotado em qualquer fase
do processo criminal125.

Por fim, menciona o círculo, que se trata de um encontro desenvolvido por povos
nativos canadenses. Esta reunião é presidida por um “guardião”, que a coordena e organiza
para que todos os presentes – envolvidos na infração penal, partidários destes e até mesmo
representantes do sistema estatal criminal – se manifestem em um momento distinto. Sentados
em círculo, cada participante terá a oportunidade de emitir suas opiniões quando tiver em suas
mãos o artefato chamado de “peça da fala”, enquanto os outros aguardam sua vez e ouvem
atentamente. Tal procedimento, segundo a autora, só chega ao final quando todos já tiverem
emitido suas opiniões e ponderações.

123
MELO, Eduardo Rezende. Justiça Restaurativa e seus desafios histórico-culturais. In: SLAKMON et al.
Justiça Restaurativa, p. 60.
124
PARKER, L. Lynette. Justiça Restaurativa: Um Veículo para a Reforma? In: SLAKMON et al. Justiça
Restaurativa, p. 247.
125
PARKER. Op. cit., p. 248.

50
Este formato também pode ser aplicado em diversos momentos durante o
processo judicial, além de se apresentar como mecanismo social para verificar as respostas de
um crime, localizando os problemas e dando soluções para os conflitos, como também para
propiciar uma reintegração social da vítima e do infrator – neste caso, o círculo terá
necessariamente a participação das partes e seus membros de apoio.

(Sobre esta modalidade, tornaremos a falar quando tratarmos da experiência


prática em São Caetano do Sul, SP, num capítulo seguinte.)

De forma panorâmica, é possível verificar que o sistema restaurativo, baseado no


encontro, no diálogo, na transformação e na reparação, desenvolve uma nova forma de se
encarar o problema criminal, diferentemente do sistema retributivo instituído. A gênese destes
novos pensamentos sugere a conciliação entre os envolvidos na infração. Nos exemplos
dados, como no Canadá, é sugerida a conciliação como forma alternativa para a liberdade
condicional entre os mais jovens; enquanto isso, a reunião é utilizada na Nova Zelândia como
forma de resposta às representações criminais, com utilização dos círculos, primeiramente,
como meio de se dar voz às comunidades, para que pudessem se manifestar sobre as soluções
aplicadas nos crimes126.

Como é de se perceber, não existe uma resposta única quando a pergunta remete
ao significado de Justiça Restaurativa, pois cada experiência e cada prática acabam por se
apegar mais a uma ou outra concepção.

126
PARKER. Justiça Restaurativa: Um Veículo para a Reforma? In: SLAKMON et al. Justiça Restaurativa, p.
249.

51
4.1. Valores restaurativos

Leciona Raffaella que a prática restaurativa não seria “apenas uma maneira de
reformar o sistema de justiça criminal, mas também uma forma de transformar todo o sistema
legal”, e, consequentemente, a vida em sociedade. Os valores da Justiça Restaurativa, nesse
contexto, não são estáticos: surgem e se refazem de maneira empírica, com base no
funcionamento prático do modelo 127 - o que, inclusive, é, uma recomendação da ONU,
constante da Resolução 2002/12, como já visto.

A autora entra no campo dos valores da Justiça Restaurativa, amparada pela


classificação proposta por Braithwaite, um dos mais importantes estudiosos sobre o tema, que
distribuiu os valores restaurativos em três grupos principais128.

O primeiro abrange os valores tidos por obrigatórios, assim considerados por


serem essenciais para que o procedimento restaurativo não se torne opressivo, garantindo-se
sua efetividade.

Alguns destes valores merecem nosso destaque.

A ideia de não-dominação tem a ver com estruturar a Justiça Restaurativa de


forma a reduzir eventuais hierarquias existentes, dando-se voz ativa a todos os envolvidos,
impedindo que algum deles se destaque e assuma posição de dominação. Atrelado a este valor
encontram-se o do empoderamento, que defende o direito dos envolvidos de serem ouvidos e
demonstrarem seus pontos-de-vista, sejam quais forem, sobre os fatos e seus impactos, e o da
escuta respeitosa, pelo qual se deve exigir dos envolvidos o respeito mútuo.

Para Raffaella, o empoderamento é importante na medida em que permite que a


vítima participe ativamente do processo de Justiça Restaurativa, diferentemente do que ocorre
no processo penal comum129.

Outro valor importante, dentre os suscitados por Braithwaite, é a obediência a


limites no que se refere às sanções aplicáveis: devem ser proibidas formas degradantes ou
humilhantes de sanção. A este, está relacionado o do respeito aos direitos humanos.

127
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 60.
128
BRAITHWAITE, John. Principles of Restorative Justice. In: VON HIRSCH, A., ROBERTS, J., BOTTOMS,
A., ROACH, K., SCHIFF, M. (eds.). Restorative Justice & Criminal Justice: Competing or Reconcilable
Paradigms? Oxford and Portland: Hart Publishing, 2003, p. 1.
129
BRAITHWAITE. Op. cit., pp. 8-11.

52
Pelo valor da preocupação igualitária, levanta-se a ideia de que todos os
participantes devem receber atenção do mecanismo restaurativo, cada qual de acordo com
suas necessidades.

Por fim, conforme Raffaella, o valor mais defendido por Braithwaite é o que
envolve os conceitos de accountability e appealability130 – aos quais a autora sugere
traduções nas expressões “responsabilização” e “recorribilidade” –, que dão fundamento à
ideia de que qualquer cidadão envolvido num processo judicial pode ter o direito de escolher
o método restaurativo para solucionar o conflito no qual está envolvida – do mesmo modo,
pode optar por não utilizá-lo, quando entender inconveniente –, bem como tendo a garantia de
que poderá recorrer do acordo ali celebrado.

Um segundo grupo de valores trata daqueles mecanismos que guiam o processo


na busca por cura ou restauração, mas que podem ser, por vontade dos envolvidos, afastados.

O último grupo, a sua vez, se refere a valores ainda mais subjetivos, pois
totalmente dependentes da voluntariedade sentimental da vítima (o perdão, a piedade) ou do
ofensor (o remorso, o arrependimento). O método restaurativo, por sua própria natureza, não
pode obrigar a vítima a liberar perdão ou o ofensor a se desculpar por seu desvio – no entanto,
o alcance desse resultado é uma importante demonstração da proficuidade do processo131.

Paralelamente aos valores elencados por Braithwaite, nossa autora disserta sobre a
impossibilidade de se classificar todo ou qualquer método tido por “alternativo” como sendo
um mecanismo de Justiça Restaurativa, propriamente dito. Para isso, remonta uma lista,
elaborada por Johnstone e Van Ness, que arrola características (“fatores”) que devem ser
detectados em intervenções restaurativas, combinados entre si ou não, e em maior ou em
menor grau de incidência, dependendo do caso132.

A primeira característica é a informalidade do procedimento, pela qual se objetiva


o envolvimento de todos os indivíduos relacionados ao/pelo fato delituoso, buscando a
discussão sobre o fato, suas consequências e quais as providências cabíveis para que haja
reparação do dano e prevenção de novas ocorrências.

130
BRAITHWAITE. Principles of Restorative Justice, pp. 11-13.
131
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, pp. 62-63.
132
JOHNSTONE, Gerry e VAN NESS, Daniel W. The Meaning of Restorative Justice. In: JOHNSTONE e
VAN NESS (eds.). Handbook of Restorative Justice. Cullompton, UK; Portland, USA: William Publishing,
2007, pp. 7-8.

53
Outra característica relevante é o esforço, por parte dos decision-makers ou
facilitadores, na promoção da responsabilização do infrator de uma maneira que evite a
estigmatização, buscando que ele assuma e se comprometa a reparar o dano causado, de modo
a contribuir para sua reintegração ao ambiente comunitário.

No mesmo sentido, Johnstone e Van Ness apontam como necessário que os


interventores assegurem que o processo e a decisão sigam os princípios e valores restaurativos
(tais como o respeito, a não-violência, a inclusão), como resultado das interações entre os
envolvidos. Devem, ainda, garantir que o dano causado à vítima seja analisado e que sejam
traçados meios para que suas necessidades sejam supridas, e tudo isso, de forma que enfatize
a reparação, sempre que possível, das relações entre os envolvidos, propiciando a construção
de relações saudáveis.

Raffaella ressalta que as observações de Scuro têm certa relação com os valores
propostos por Braithwaite, vez que ambos dão importância à inclusão das partes no processo
restaurativo, com a observação de certos valores, mas aceitam que “nem sempre os resultados
pretendidos de reparação da vítima e (re)integração do ofensor serão alcançados” 133.

4.2. A experiência restaurativa na Nova Zelândia

Um dos principais exemplos mundiais de adoção com sucesso da metodologia de


Justiça Restaurativa, que inclusive se tornou modelo reconhecido pela ONU, é o neozelandês.
Este modelo merece muita atenção na presente monografia; para seu estudo, nos basearemos
nos escritos de Gabrielle Maxwell, constantes do compilado do Ministério da Justiça com o
PNUD134.

Consta que a Justiça Criminal da Nova Zelândia passou por uma grande
modificação nas últimas décadas, com a introdução dos valores da Justiça Restaurativa nos
processos envolvendo adolescentes e adultos. Esta evolução ainda está em andamento, mas já
é possível verificar os sucessos gerados por tais práticas, tanto para as vítimas como para os
infratores, bem como maior satisfação com o resultado das demandas.

ORIGENS

133
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 66.
134
MAXWELL, Gabrielle. A Justiça Restaurativa na Nova Zelândia. In: SLAKMON, C.; DE VITTO, R.;
PINTO, R. Gomes (org.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento, 2005, pp. 279.

54
Como na maioria das sociedades, as práticas restaurativas na Nova Zelândia estão
atreladas à evolução histórica das comunidades, antes mesmo da instituição do Sistema
Judicial atual, pois no período primitivo, os conflitos eram resolvidos dentro das próprias
famílias ou clãs.

Conforme narra a autora, o povo maori não fugiu da regra. E, por conta das
diferenças culturais, o Estado neozelandês viu a necessidade de adequar seu sistema judicial à
realidade desta minoria, visando o bem estar da comunidade, na intenção de rechaçar qualquer
forma de privação135.

Por conta dos problemas criados pelos jovens maoris, foi necessária a elaboração
de uma legislação específica, voltada para sua realidade social, para que se resolvessem
conflitos fora do tribunal estatal, com criação de uma nova forma de responsabilização dos
menores infratores.

Nesta esteira, de acordo com Maxwell, em 1989 foi aprovado o Estatuto das
Crianças, Jovens e suas Famílias, que trouxe mudanças substancias ao ordenamento jurídico
neozelandês. Para evitar abusos, foi transferida para a família a responsabilidade primária,
com apoio e acompanhamento do governo, que prestaria toda assistência possível. As
decisões, a partir deste marco legislativo, eram tomadas pelo grupo familiar, que reunia todos
os envolvidos, inclusive os representantes dos órgãos judiciais estatais 136.

Nesta nova etapa, foram enfatizados os princípios da proteção dos direitos da


criança e dos jovens e a importância de garantir que as repostas causassem o menor prejuízo
possível, sempre atendendo ao bem-estar dos envolvidos e não sendo apenas uma mera
imposição sancionatória. Com base nestes novos valores, passou a ser solicitado à vítima que
esta participasse das decisões sobre a responsabilidade do infrator, colaborando na escolha da
forma de reparação de seus prejuízos e na reintegração social do jovem infrator. Em paralelo,
continua a autora, estavam se firmando as primeiras raízes institucionalizadas de Justiça
Restaurativa, cuja aplicação teve aumento significativo por conta da aplicação destes novos
mandamentos legais, que previam a inserção da vítima na solução do conflito social. Assim,
permitiu-se que as reuniões de grupo familiar passem a integrar o sistema judiciário
tradicional.

135
MAXWELL. A Justiça Restaurativa na Nova Zelândia, In: SLAKMON et al. Justiça Restaurativa, pp. 279.
136
MAXWELL. Op. cit., pp. 280.

55
Em 1999, segundo a autora, já era possível verificar os avanços da aplicação dos
princípios restaurativos, sendo que já se podia ver inclusive os órgãos de Polícia
encaminhando jovens para os encontros restaurativos, quando não fosse o delito de grande
relevância para coletividade137.

Na Nova Zelândia, segundo a autora, quando da ocorrência de um fato criminoso


praticado por um jovem, os policiais possuem as seguintes opções: a) advertência verbal; b)
advertência escrita; c) organização de plano de encaminhamento alternativo; d) Indicação
direta para uma RGF (reunião de grupo familiar); ou e) apresentação de acusação formal em
um Tribunal de Jovens. Para se decidir qual seria a providência adequada, são verificados os
antecedentes do jovem, bem como o seu histórico familiar. Todavia, em casos graves, como
os homicídios, os jovens são encaminhados diretamente ao Tribunal, por ser contraindicado o
procedimento restaurativo.

Segundo a autora, já nos primeiros anos de implementação da legislação juvenil


foi possível verificar a eficácia das reuniões familiares (RGFs), organizadas pela própria
Justiça Juvenil e pelos coordenadores do Departamento de Bem-Estar Social. Nestes
encontros, é possível a adoção de providências para efetivação dos princípios restaurativos,
sendo acompanhados e fiscalizados os resultados destes encontros138.

Às reuniões comparecem o infrator e sua família, bem como pessoas interessadas


no desenvolvimento do jovem, a vítima acompanhada de seus partidários e também
representantes da polícia e um facilitador, que administra o encontro. Também é possível que
o infrator seja assistido por advogados e assistentes sociais, ou mesmo por profissionais que
possam ajudar na reabilitação e na reintegração ao corpo comunitário.

Inicialmente, segundo Maxwell, os participantes são apresentados e, após, são


debatidos os fatos que ensejaram a reunião, sendo investigadas as possíveis causas e efeitos,
por todos os presentes. Ao final, o infrator e seus acompanhantes se retiram para que possa ser
formulada uma sanção pela conduta praticada. Com o retorno deste, com seus acompanhantes,
é apresentada o plano para, como não poderia deixar de ser, que seja discutido, e analisada sua
viabilidade.

137
MAXWELL. A Justiça Restaurativa na Nova Zelândia, In: SLAKMON et al. Justiça Restaurativa, pp. 280-
281.
138
MAXWELL. Op. cit., pp. 281.

56
Após a implementação das reuniões familiares, foram realizadas pesquisas que
atestaram a sua eficácia na restauração do infrator, bem como na reparação dos danos à
vítima.

Mas como em qualquer experiência pioneira, os problemas também apareceram.


Verificou-se, como aduz a autora, certo distanciamento da prática recomendada, pois algumas
vítimas e jovens declararam não se sentir inseridos na tomada das decisões, sendo adotadas
práticas de caráter punitivo em mais da metade dos casos – sendo, portanto, fracassada a ideia
de qualificação educacional, nestes casos. Mas, de forma geral, constatou-se a ocorrência de
tratamento justo e respeitoso a todos, e ausência de estigmatização, com compreensão do
processo por parte dos jovens e bons resultados associados à redução dos índices de infrações
e de reincidência139.

Outra prática adotada é o encaminhamento alternativo de jovens pela polícia,


cujos objetivos são a reparação do dano e a responsabilização do infrator, envolvendo sua
família e as vítimas para a tomada das decisões cabíveis, em menor tempo do que o
tradicional processo.

Inicia-se quando o oficial do Departamento de Auxílio à Juventude recebe o


relatório investigativo do caso e visita a família do infrator, apresentando os benefícios de um
plano satisfatório, elaborado de acordo com o caso concreto140.

Afirma a autora que os resultados possíveis são um pedido de desculpas formal


por escrito, ou até mesmo verbal, a reparação do dano ou doações à caridade como forma de
responsabilização do infrator pelo delito cometido, bem como é admissível a celebração de
acordos para que os pais do jovem – note-se a importância da participação da família –
compareçam a programas de estudos e treinamentos. Outras medidas também são possíveis
neste caso, como, por exemplo, o toque de recolher, com imposição de horário para o jovem
retornar a sua residência, e até mesmo a elaboração de uma simples redação.

Os jovens, em sua maioria, afirmam que são tratados com respeito e equidade e
que as tarefas apresentadas são justas, avaliando como positiva a experiência restaurativa 141.

Há também os processos de Justiça Restaurativa voltados para adultos, com


encaminhamento anterior ao julgamento para painel comunitário. Segundo a autora, desde
1995 a unidade de prevenção de crimes da Nova Zelândia patrocinou alguns projetos piloto
139
MAXWELL. A Justiça Restaurativa na Nova Zelândia, In: SLAKMON et al. Justiça Restaurativa, pp. 282.
140
MAXWELL. Op. cit., pp. 283.
141
MAXWELL. Op. cit., pp. 283.

57
ligados à Justiça Restaurativa para adultos, em colaboração com a polícia e os Conselhos de
Comunidades Mais Seguras, com a intenção de evitar a apresentação de casos aos Tribunais.

O projeto Turnaround, sediado em Timaru, localizada na Ilha Sul, tem o Conselho


de Segurança Comunitária e a Polícia Comunitária como apoiadores, e atua em casos de
infratores neozelandeses de origem europeia. No primeiro contato, como relata Maxwell, o
infrator pode comparecer a reunião e ao painel subsequente, concordando com o plano
proposto, com a possibilidade de, no caso de cumprimento dos requisitos, ter seu inquérito
arquivado ainda em sede policial142.

O processo tem voluntários da própria sociedade como mediadores, que são


treinados na sistemática da Justiça Restaurativa, e sempre se encontram presentes a vítima e
um representante do Estado. Reunidos, estes participantes podem propor o plano, que tem por
bases os princípios restaurativos, com foco na reparação do dano à vítima e também na
reintegração social do infrator. Um exemplo de resultado destes encontros é, por exemplo, a
determinação de que o ofensor participe de cursos de reeducação ou de capacitação
profissional, visando, exatamente, sua inserção na comunidade com o menor prejuízo
possível.

Segundo Maxwell, neste projeto trata-se de condutas como roubo qualificado,


ameaça de morte, homicídio culposo, embriaguez ao volante, bem como lesão corporal, furto
e invasão de domicílio. Em pesquisas realizadas, foi possível verificar que houve alto grau de
satisfação com os processos desenvolvidos, bem como com os resultados alcançados.

Verificou-se, também, que os infratores submetidos à Justiça Restaurativa tiveram


um índice muito baixo de reincidência, o qual foi ainda menor nos casos em que concluíram
todas as etapas do projeto que foi proposto143.

Em dois outros programas na Nova Zelândia, aplicados nas comunidades de


Rotorua e Wanganui, não se repetiriam os bons resultados no quesito reincidência. Todavia,
mostraram-se satisfatórios do ponto de vista do cumprimento das sanções impostas, bem
como no elevado número de casos com participação da vítima. Os problemas encontrados
foram a falta de treinamento e capacitação de voluntários, e falhas de comunicação com a
vítimas, no que se refere à informação sobre o progresso da medida imposta ao ofensor144.

142
MAXWELL. A Justiça Restaurativa na Nova Zelândia, In: SLAKMON et al. Justiça Restaurativa, p. 283.
143
MAXWELL. Op. cit., pp. 285-286.
144
MAXWELL. Op. cit., pp. 286-287.

58
Outra modalidade de encaminhamento relatada por Maxwell é o procedido pelas
próprias autoridades judiciais. O Departamento para Tribunais, em 2001, passou a administrar
projetos-pilotos em diversas cidades da Nova Zelândia, como Auckland, Waitakere, Hamilton
e Dinedin, para incentivar as reuniões de Justiça Restaurativa através do encaminhamento
pelos juízes.

Infrações contra a propriedade com penas de no máximo dois anos de prisão e


outras infrações com penas máximas de um a sete anos são passíveis de uma audiência com a
finalidade restaurativa, presidida pelo próprio Juiz, sendo este o responsável por auferir a
possibilidade de utilização deste sistema. São excluídas deste mecanismo as infrações que
envolvam violência doméstica e sexual145.

Segundo afirma a autora, o juiz, após analisar o caso, opta por indicar o
mecanismo da Justiça Restaurativa, encaminhando ao Coordenador do Departamento no
Tribunal, para que seja realizada uma reunião entre as partes, verificando-se a viabilidade da
aplicação do sistema alternativo. Em caso de aceite do infrator, o caso é remetido a um
facilitador treinado, que presidirá a reunião do grupo.

Este encontro tem o objetivo de oferecer a chance à vítima de ser ouvida pelo
infrator, que, por sua vez, pode reconhecer sua culpa pelo evento danoso, assumindo a
responsabilidade de repará-lo. O resultado destas reuniões é o compromisso do infrator, seja
no sentido da indenização à vítima, da prestação de serviços, ou da participação em cursos
específicos146.

Após estas reuniões, é elaborado um relatório que será levado em conta pelo
magistrado ao prolatar a sentença do caso. É possível que este aguarde o cumprimento
integral do que foi acordado, sobrestando o feito, podendo ao final até mesmo absolver o o
infrator. Desta forma, o modelo oferece maior atenção às vítimas e não se pauta na mera
aplicação da sanção punitiva, buscando também a redução da reincidência pela
conscientização e reinserção do réu ao ambiente comunitário.

Pesquisas preliminares, confere Maxwell, mostraram que 81% dos infratores que
partilharam desta experiência afirmaram que a participação evitaria eventual reincidência,
sendo que mais de 2/3 encararam a nova prática de forma positiva 147.

145
MAXWELL. A Justiça Restaurativa na Nova Zelândia, In: SLAKMON et al. Justiça Restaurativa, p. 286.
146
MAXWELL. Op. cit., pp. 287-288.
147
MAXWELL. Op. cit., pp. 289.

59
Conclui a autora, afirmando que a Nova Zelândia está se adaptando de forma
bastante receptiva à ideia da Justiça Restaurativa, que já se mostra positiva na resposta às
infrações dos jovens e até mesmo nos casos envolvendo crimes praticados pelos adultos. Tal
sucesso serviu de incentivo à Austrália, país vizinho, que já começa a avançar rumo a uma
Justiça Restaurativa regulamentada.

Importante ressaltar que, para dar suporte aos mecanismos restaurativos foram
realizadas algumas alterações legislativas, que possibilitaram a entrada da Justiça Restaurativa
no ordenamento jurídico, de forma institucionalizada 148. Mais adiante, trataremos da
possibilidade desta adaptação em nosso país, aprofundando-nos, especificamente, no Projeto
de Lei 7.006/06, que propõe a formalização da Justiça Restaurativa no Brasil.

Com base nos dados apresentados pela autora, é possível concluir que a Justiça
Restaurativa muito cooperou com a Justiça dos Tribunais formais na Nova Zelândia, em
aspectos fundamentais: recuperando a credibilidade do sistema judicial, com melhores
resultados na questão da reparação do dano às vítimas, nas taxas de reincidência, na
participação da comunidade, dentre outros motivos que demonstraram o sucesso e a
viabilidade da aplicação da nova justiça.

Como visto na experiência neozelandesa, as medidas restaurativas possibilitam o


diálogo, com a chance de composição amigável entre as partes, evitando-se o processo ou
mesmo a sentença judicial. Esta prática ainda possibilita a considerável diminuição no acervo
de processos em trâmite perante a Justiça formal – permitindo ao judiciário um maior cuidado
na solução dos casos mais graves e complexos – e resolvendo problemas de menor expressão
de forma conciliatória, sem a interferência direta do Estado, em boa parte dos casos.

Enfim, pelo exemplo neozelandês, podemos concluir que é realmente possível


verificar, na prática, o efetivo andamento da Justiça Restaurativa em concomitância com um
sistema de justiça criminal positivado, sem que haja prejuízos na reintegração e reinserção da
vítima e do ofensor ao seio comunitário, com garantia de diálogo e conscientização, e com
efetiva responsabilização do infrator.

148
MAXWELL. A Justiça Restaurativa na Nova Zelândia, In: SLAKMON et al. Justiça Restaurativa, p. 289.

60
5. A JUSTIÇA RESTAURATIVA NUM CONTEXTO LATINO-
AMERICANO
Agora que já conhecemos uma experiência internacional de sucesso, passaremos a
analisar o contexto latino-americano no que diz respeito à viabilidade de aplicação da Justiça
Restaurativa, analisando alguns casos práticos que já vêm sendo adotados por estes lados.

Na visão de L. Lynette Parker, os sistemas jurídico-criminais dos povos latinos


são altamente estruturados e dependem, via de regra, de um formalismo exacerbado, que tem
como ponto crítico o encarceramento – enquanto mecanismo de manutenção da ordem pelo
Estado. A maioria dos códigos é datada da primeira metade do século passado e está restrita
diretamente à exatidão da letra da lei – numa clara demonstração de fixação pelo positivismo
jurídico –, tendo como principal detentor de aplicação o Juiz, que, a seu turno, tem como
único parâmetro o próprio sistema legal, evidentemente ultrapassado para os dias atuais149.

Nas últimas décadas, assistiu-se a um grande aumento da criminalidade em grande


parte dos países da América Latina, evidenciando-se a incapacidade estatal de chegar à
solução efetiva destes impasses sociais. Ademais, com a atuação cada vez mais incisiva dos
meios de comunicação, estruturou-se uma mídia altamente sensacionalista, criando no seio da
sociedade o sentimento – muitas vezes, falso – de insegurança e impunidade. Diante deste
cenário, deflagrou-se uma crise sem precedentes no sistema penal, com auge na sobrecarga do
sistema judiciário e na superlotação do sistema carcerário, violando-se, inclusive, convenções
de direitos humanos, o que colaborou para a formação e recrudescimento de um verdadeiro
ciclo criminoso.

Desta forma, segundo a autora, não há como fugir da constatação da incapacidade


das instituições estatais em atender as necessidades de seus governados, pois o elevado índice
de criminalidade deixa o poder estatal enfraquecido pela falta de confiança do povo nas
instituições – tal crise de legitimidade acaba, ainda, fomentando, no seio social, o surgimento
de justiceiros, o que duplica a sistemática de problemas sociais. Diante de tal quadro, é
patente a constatação da necessidade de ruptura com o sistema punitivo arcaico, abrindo
oportunidade para uma nova forma de combate ao crime, com reformas substanciais na
legislação, de modo a ser buscar maior eficiência na resposta aos conflitos sociais.

149
PARKER, L. Lynette. Justiça Restaurativa: Um Veículo para a Reforma? In: SLAKMON, C.; DE VITTO,
R.; PINTO, R. Gomes (org.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento, 2005, p. 250.

61
A Justiça Restaurativa se revela neste cenário de reforma, pois com ela é possível
solucionar conflitos através da pacificação social, de modo a se adquirir novamente a
confiança nos mecanismos estatais, com o consequente fortalecimento das estruturas
democráticas150.

A autora cita Mark Ungar, que asseverou ser possível definir quatro categorias de
reformas: a) melhorias nos sistemas de defesa pública; b) assistência judicial e programas de
informação e apoio; c) resolução alternativa de conflitos - RAC; d) estruturas de justiça
paralela. Nos últimos dois itens, como se é de imaginar, é que se mostra aplicável a
sistemática da Justiça Restaurativa151.

A resolução alternativa de conflitos busca diminuir o volume de processos no


sistema judicial, dando soluções mais rápidas a conflitos menores. Tal a importância desta
nova forma de resolução, que a Organização dos Estados Americanos já discutiu tal
sistemática e apoiou o início das experiências.

Afirma a autora que as estruturas de justiça paralela, também conhecidas como


justiça comunitária, são marcadas pela flexibilidade, por serem mais receptivas às
particularidades sociais na solução dos conflitos. Dá como exemplo as comunidades
indígenas, presentes nas Colômbia, no Equador, no Peru e na Bolívia, que possuem
autorização constitucional para buscarem a resolução de seus conflitos inseridos em sua
própria cultura, afastando-se do modelo de justiça estatal.

Inicialmente, esta sistemática foi criada para solucionar conflitos que não
envolvessem delitos, mas, com o passar do tempo, tem sido adotada em casos criminais, como
uma alternativa efetiva. Organizações não-governamentais e entidades como faculdades e
Igrejas, estão abrigando esta nova ideia e criando seus próprios mecanismos de solução de
conflitos criminais, com o amparo estatal152.

Continua Lynette, afirmando que no movimento de resolução alternativa de


conflitos na América Latina predomina a vertente da Justiça Restaurativa, que se desenvolve
em três níveis diferentes: comunitário, governamental e em parcerias.

150
PARKER, L. Lynette. Justiça Restaurativa: Um Veículo para a Reforma? In: SLAKMON et al. Justiça
Restaurativa, pp. 251-252.
151
Ungar, Mark, Elusive Reform: Democracy and the Rule of Law in Latin America. Boulder, CO: Lynne
Rienner Publishers, 2002, apud PARKER. Op. cit., p. 251.
152
PARKER, Op. cit., p. 252.

62
Assim, enquanto o Estado procura formas de desafogar seu sistema judiciário, as
organizações não-governamentais e as próprias comunidades, em alguns casos, buscam
apresentar para a sociedade formas de pacificação de seus conflitos, através de práticas
educacionais, mediante mecanismos restaurativos.

O potencial desta prática está se evidenciando também aqui no Brasil, destaca a


autora, em colégios públicos de Jundiaí, por exemplo, onde se percebem mudanças na
atmosfera escolar, com impacto a toda a comunidade ao redor. Foram incluídos novos
membros, estranhos à relação vítima-infrator, com a intenção de mostrar a responsabilidade e
a necessidade de mudança, com efetiva colaboração da comunidade para que o infrator possa
cumprir o acordo restaurativo firmado 153.

Tais experiências revelem que a comunidade pode, através de suas raízes, unir
esforços para combater de forma eficiente a evolução da violência, criando uma cultura de
paz. Na Colômbia verificam-se duas instituições que podem ser utilizadas como exemplos: a
“Mesa de Paz” e o projeto “Casa Mia”.

A primeira foi criada pelos encarcerados da prisão Bellavista, em Medelín, para


solucionar, de forma não sangrenta, conflitos entre os grupos e gangues, por conta das
diferenças entre eles154.

O segundo exemplo dado por Lynette – a ONG Casa Mia –, originou-se na


periferia da mesma Medelín. A organização tem como líder Jair Bedoya, um ex-comandantes
de uma das gangues mais violentas da região. Este projeto mereceu destaque da organização
Prison Fellowship Internacional (PFI), que publicou em seu website fotos do local155.

No México, surgiu o CENAVID (Centro de Atención para Victimas Del Delito)


em 1993, com o objetivo inicial de amparar crianças e mulheres abalados pelo crime,
passando depois a aplicar práticas de conscientização sobre os benefícios do diálogo para
solução de conflitos. O projeto hoje está nas mãos da Parroquia Del Señor de La

153
PARKER, L. Lynette. Justiça Restaurativa: Um Veículo para a Reforma? In: Justiça Restaurativa, 2005, p.
252-253.
154
Sobre esta iniciativa, temos a reportagem divulgada no website de um candidato ao Concejo de Medellín, que
revela, além de alguns problemas supostamente ocasionados pela prática, pontos positivos que poderiam levar a
sua reativação, notadamente a possibilidade de diálogo com e entre os detentos. “Internos de Bellavista piden
reactivar mesa de diálogo”, disponível online, em <http://www.germanreyescamara.com/index.php?
option=com_content&view=article&id=2346:internos-de-bellavista-piden-reactivar-mesa-de-dialogo&catid=71:
notas-de-actualidad&Itemid=99>. Acesso em 28/4/2011.
155
Imagens disponíveis online, em <http://www.pfi.org/cot/private-content/private-for-cot-only/cot-media-
store/casa-mia-colombia-front-door/view> e <http://www.pfi.org/cot/private-content/private-for-cot-only/cot-
media-store/casa-mia-colombia/view>. Acesso em 29/4/2011.

63
Misericordia e abrange, inclusive, treinamento para os funcionários do setor judiciário para
uso da mediação como mecanismo de solução de conflitos.

A prática foi elogiada pelo website “Restorative Justice Online”, elaborado


também pela PFI, e é apontada como uma iniciativa pioneira para promover mudanças no
sistema jurídico do país, com destaque na inclusão de grupos civis nesta reforma 156.

Ademais, a autora cita o importante trabalho promovido pela Universidade


Católica de Temuco, no Chile, que desenvolveu um projeto com objetivo de descobrir quais
as barreiras sociais existentes para utilização do sistema alternativo de resolução de conflitos.

Com a participação da comunidade, fundou-se o Proyecto CREA (Centro


Alternativo de Resolução de Conflitos), que tem por objetivos: avançar no conhecimento
acadêmico na área de resolução alternativa de conflito, informar e educar a sociedade, estudar
a utilização internacional e a sua adaptação para o contexto chileno e promover serviços à
comunidade. O projeto já possibilita, de forma gratuita, a mediação em diversas áreas, como
família, cível e criminal, utilizando sempre, de uma forma ou de outra, os mecanismos
restaurativos157.

Um elemento muito importante, salienta a autora, que deve ser introduzido no seio
da sociedade, é o valor desta nova justiça, que permite a participação de todos os atores
sociais de forma ativa na solução do conflito, estabelecendo-se, assim, uma democracia
participativa, em prol da pacificação social.

Também no Chile foi instituído um acordo reparador, que autoriza que as partes
cheguem a uma solução dialogada, mesmo durante o processo criminal. Tal providencia visou
desafogar o sistema de justiça tradicional e, assim, instituir uma sanção cível para partes, sem
a interferência do Estado-Juiz, facilitando, deste modo, a reinserção social dos envolvidos e o
retorno ao status quo ante. Este acordo pode ter por objeto a indenização paga à vítima pelo
ofensor, uma reparação simbólica, a prestação de serviços comunitários, ou doações, dentre
outras alternativas. Entretanto, a utilização deste recurso é possível apenas em crimes de
propriedade, fraude ou agressões, ou seja, delitos de menor potencial lesivo 158.

156
Disponível online, em <http://www.restorativejustice.org/editions/2002/August02/mexico1>. Acesso em
1º/5/2011.
157
PARKER, L. Lynette. Justiça Restaurativa: Um Veículo para a Reforma? In: SLAKMON et al. Justiça
Restaurativa, p. 254.
158
PARKER. Op. cit., pp. 254-255.

64
Temos também as intersecções entre a Comunidade e o Governo. No Brasil, a
Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (APAC) – uma Parceria Público-Privada
– utiliza membros da própria sociedade para administrar a prisão e trabalhar em conjunto com
os condenados. Trata-se de um mecanismo restaurativo empregado no momento do
cumprimento da pena, portanto, já tardio. O Estado cede um espaço ou até mesmo a prisão
inteira para que os participantes do projeto ajudem nos programas de reabilitação dos
infratores159.

A iniciativa surgiu em 1972, em São José dos Campos - SP, na intenção de


minimizar os diversos equívocos e frustrações que marcaram e marcam a história da pena
privativa de liberdade no Brasil. No início dos anos 80, a APAC foi implantada também em
Itaúna - MG, passando mais tarde a administrar o regime aberto e fiscalizar o cumprimento
das penas substitutivas. Com o sucesso do sistema, diversos outros presídios adotaram este
sistema de parceria – como o de Santa Luzia – MG –, que atraiu a atenção até mesmo de
outros países. O governo do Estado de Minas Gerais, aliás, possui uma Diretoria (DAC),
vinculada à Secretaria de Segurança Pública, dedicada especificamente à gestão de APACs e
outros modelos de cogestão público-privada160.

A metodologia do projeto se inspira no princípio da dignidade da pessoa humana


e na convicção de que ninguém é irrecuperável, “pois todo homem é maior que sua culpa”.
Seus preceitos fundamentais são a participação da comunidade, a solidariedade entre os
recuperandos, o trabalho como mecanismo terapêutico e profissionalizante, a religião como
fator de conscientização, a assistência – jurídica, econômica, educacional, psicológica, médica
– ao recuperando e sua família, e o mérito, com uma avaliação constante do avanço do
detento em sua recuperação161.

Com a ajuda dos voluntários é possível criar um espírito de coletividade nos


presos, que os incentiva à mudança comportamental, principalmente na criação de elos com
seus familiares, de modo a reabilitá-los para a vida em sociedade162. A base do programa é o
amor incondicional baseado no amor de Deus, permitindo-se aos internados que valorem suas

159
Interessante artigo sobre o tema foi divulgado no website do Ministério Público do Estado do Paraná, e está
disponível online, em <http://www2.mp.pr.gov.br/cpdignid/telas/cep_b53_n_3.html>. Acesso em 23/5/2011.
160
A Direitoria alimenta informações no website <www.dac.mg.gov.br>. Acesso em 25/5/2011.
161
SILVA, Dantom G. P. APAC – Associação de Proteção e Assistência ao Condenado. Ministério Público do
Estado do Paraná, CAOP Criminais do Júri e de Execuções Penais, atualizado em 18/9/2009, disponível online
em <http://www2.mp.pr.gov.br/cpdignid/telas/cep_b53_n_3.html>. Acesso em 23/5/2011.
162
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicou em seu website artigo sobre o tema e sua implementação,
disponível em <http://www2.forumseguranca.org.br/content/aplicação-da-metodologia-da-associação-de-
proteção-e-assistência-ao-condenado-apac-no-sistem>. Acesso em 24/5/2011.

65
vidas e sua dignidade, modificando, sobremaneira, a forma como estes veem suas
necessidades e as do próximo163.

Aliás, interessante observarmos como a Justiça Restaurativa tem uma influência


da religião, já que proporciona recuperação de relacionamentos, promove o perdão e a
aceitação entre os diferentes.

Lynette usa também como exemplo a parceria piloto de mediação penal entre a
Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires e o Ministério Nacional de Justiça,
que ficou conhecido como “Projeto Alternativo de Resolução de Conflitos”. Neste projeto são
utilizadas medidas alternativas para solução de conflitos penais, medidas estas que podem ser
solicitados tanto pela vítima como pelo infrator, ainda na fase de determinação da culpa – ou
seja, antes da condenação.

Nesta experiência, quando é efetivado o pedido por uma das partes, a outra é
contatada para verificar a possibilidade da utilização do mecanismo; logo após, em caso de
concordância, as partes são colocadas frente a frente para discutirem sobre os assuntos que
julgarem pertinentes ao caso, bem como para manifestarem o que esperam do processo e
como reagirão à conclusão restaurativa.

Depois, prossegue a autora, é avaliada a complexidade do caso e das relações


entre os participantes, para definir qual método será utilizado: a mediação, a conciliação, ou o
encontro de conciliação com moderador (ECM)164.

A mediação oferece maior igualdade entre os interessados, e é dedicada a crimes


menos complexos, e conta com um mediador imparcial, que abre um canal de comunicação
entre vítima e infrator. O procedimento é composto por quatro reuniões, e tem o objetivo é
atingir um acordo pecuniário em benefício da vítima.

A conciliação, a sua vez, permite ao conciliador a sugestão de possíveis soluções


para o conflito – não necessariamente pecuniárias –. Este procedimento é utilizado quando
haja desigualdades sociais aparentes, quando o contexto não seja favorável ao diálogo, ou
quando existam muitos envolvidos e muitas camadas de conflito.

O último mecanismo, o ECM, ocorre quando não há consenso entre os


envolvidos. No encontro estão presentes três conselheiros, um afiliado ao Proyecto RAC e

163
PARKER, L. Lynette. Justiça Restaurativa: Um Veículo para a Reforma? In: SLAKMON et al. Justiça
Restaurativa, p. 256.
164
PARKER. Op. cit., pp. 256-257.

66
dois membros confiáveis da sociedade, que discutem o caso após um período de produção de
provas e reuniões individuais com vítima e infrator, para que então se chegue à verdade dos
fatos e assim tomar uma decisão semelhante à possível resposta estatal ao conflito 165 – com a
diferença de que se chega a ela de modo conjunto, o que torna o procedimento bem menos
invasivo e burocrático que no modelo judicial.

Nossa autora ainda exemplifica com o projeto adotado na Colômbia e em outros


países latinos, chamado Casa de Justicia, onde se trabalha com mecanismos restaurativos em
crimes secundários, conflitos da comunidade e violência doméstica. Segundo consta, em 2002
foram levados cerca de 300.000 casos às 32 Casas de Justicia colombianas, sendo que destes
somente 25% tiveram que ser remetidos a apreciação do poder judiciário.

Entre as atividades ligadas à mediação e à resolução de conflitos nestes lugares,


também é possível encontrar: consultórios de psicologia, inspetores de polícia, consultores
jurídicos, promotores locais, serviços familiares, representantes da cidade, serviços de apoio e
proteção à vítima, etc.

Por fim, ressalta Lynette, que em países como o Peru, Bolívia e Equador, o juiz de
paz recebe legitimação do Estado para promover a solução de conflitos sociais, inclusive, com
poder de decisão, com reconhecimento pelos tribunais dos acordos por eles celebrados. Em
alguns casos, o juiz leigo é eleito pela própria sociedade entre seus líderes comunitários166.

Nossa autora lamenta que não são todos os programas de Justiça Restaurativa que
encontram respaldo legislativo ou até mesmo apoio estatal para a realização dos encontros
vítima-infrator, e afirma que, por conta da falta de apoio governamental, muitas destas
iniciativas não são conhecidas pelos mais necessitados, criando-se um hiato entre os
voluntários interessados em ajudar e os membros da coletividade que precisam dos
programas.

Ademais, mudanças legislativas podem atrapalhar o avanço da Justiça


Restaurativa, pois, como ocorreu no Peru e na Colômbia, foram criadas restrições e
qualificações muito rigorosas para os mediadores e conciliadores, tornando muito difícil o
ingresso de novos voluntários167.

165
PARKER, L. Lynette. Justiça Restaurativa: Um Veículo para a Reforma? In: SLAKMON et al. Justiça
Restaurativa, p. 257.
166
PARKER, L. Lynette. Op. cit., p. 258.
167
PARKER, L. Lynette. Op. cit., p. 259.

67
Outro ponto que merece ser destacado é a falta de preparo dos juízes e promotores
para lidar com os casos submetidos aos mecanismos restaurativos, causa que também afasta
estas autoridades do dia-a-dia da Justiça Restaurativa, seja pela falta de conhecimento da
atividade, pela falta de amparo legal às soluções ou pela falta de vontade na aplicação deste
sistema, preferindo-se o meio judicial.

UM CAMINHO PARA REFORMAR?


De certo, não se pode dizer que as parcerias e a aparente “privatização” das
soluções dos conflitos, principalmente em se tratando de matéria criminal, sejam de simples
assimilação para o Estado, acostumado com sua posição de monopolizador do poder de
decidir e punir. Mas existem bons exemplos que demonstram que a prática é eficaz e atende
de forma satisfatória os envolvidos no conflito, contando com a participação e o real apoio
governamental168.

Na criação de mecanismos por parte da sociedade, estabelece-se um vínculo entre


os responsáveis pelo projeto e a coletividade, o que possibilita o desenvolvimento de uma
proximidade entre estes atores, fato que não ocorre quando se trata do ambiente formal do
Poder Judiciário, realidade que, por si só, já enaltece este nobre trabalho.

Na Argentina, relata a autora, a experiência de projetos-piloto levou o governo a


apoiar a criação de centros de justiça comunitária em diversos locais pelo país, onde se
promove a mediação em casos de violência familiar e delitos de menor potencial ofensivo.

Assim, em que pesem as dificuldades encontradas aqui ou ali, o que se vê no


contexto latino-americano é que diversas organizações, associações e ONGs que trabalham e
defendem a Justiça Restaurativa tem ganhado força desde o início da década, acolhendo um
grande número de apoiadores, já que este método, além de muito eficaz, transforma a
comunidade e cria laços entre todos, resolvendo, nos casos indicados, os problemas criminais
de menor gravidade.

Como diz a autora, “esta inclusão da sociedade civil [...] é uma das forças do
movimento restaurativo”, sendo que a associação entre governos e comunidade propicia o
necessário equilíbrio entre os “múltiplos interesses postos em discussão na mesa da reforma
da justiça”. A participação ativa de cidadãos em áreas em que o governo detinha o papel
principal de decisão traz confiança nas reformas e na possibilidade de uma futura

168
PARKER, L. Lynette. Justiça Restaurativa: Um Veículo para a Reforma? In: SLAKMON et al. Justiça
Restaurativa, p. 260.

68
institucionalização da cooperação entre estado e comunidade, nos países onde isso ainda não
ocorre169.

Quanto a isso, Oxhorn e Slakmon ensinam que os programas de Justiça


Restaurativa têm valor altamente positivo para o sistema de justiça, para as comunidades, e
para os cidadãos. Lembram, ainda, que não basta que se afirme ser a Justiça Restaurativa
“uma resposta da sociedade, ou uma solução paliativa do governo, para as decadentes
instituições legais” – destacam que este modelo, para além disso, tem um impacto positivo e
especial no processo e no resultado da justiça, principalmente num contexto de desigualdade
social e desconfiança generalizada nas instituições.

O tratam, no mais, como a chave para que se chegue a uma justiça “mais
democrática”, como garantia de melhor acessibilidade e universalidade, desde que
regulamentada, com participação entre sociedade civil e autoridades estatais 170.

No mais, o sistema de Justiça Restaurativa tem sido um meio bastante eficaz de se


propagar a democracia participativa, pois possibilita a participação de todos envolvidos em
um conflito, tendo a chance de estabelecer a melhor solução de forma consensual. Dessa
forma, no corpo social assimila a responsabilidade individual, criando-se uma nova relação do
Estado com a comunidade e o indivíduo, particularmente. Entretanto, é necessário ponderar os
riscos de tal medida, pois todos devem tirar proveito deste modelo de tomada de decisão
conjunta, sob pena de ineficácia do sistema e consequente perda de credibilidade.

169
PARKER, L. Lynette. Justiça Restaurativa: Um Veículo para a Reforma? In: Justiça Restaurativa, 2005, p.
261.
170
OXHORN, Philip e SLAKMON, Catherine. Micro-justiça, Desigualdade e Cidadania Democrática – A
Construção da Sociedade Civil Através da Justiça Restaurativa no Brasil. In: SLAKMON et al. Justiça
Restaurativa, p. 205.

69
6. A JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL

Em trabalho que visou tratar de experiências práticas de Justiça Restaurativa no


Brasil, Mariana Raupp e Juliana Cardoso Benedetti focam aquelas aplicadas em São Caetano
do Sul, Porto Alegre e Brasília171. É importante ressaltar que há grandes diferenças entre os
três programas, que funcionam de maneiras diversas, tendo partido de pressupostos e modelos
diversos.

Além destes exemplos, muitos outros são praticados, mas nos ateremos a estes,
que nos dão suficiente material para concluirmos a respeito de se a Justiça Restaurativa tem
sido bem aplicada no Brasil, ainda que de maneira informa, pois não regulamentada por Lei.

O programa de São Caetano do Sul, por exemplo, é aplicado pela Vara de Infância
e Juventude, tendo menores infratores como público-alvo. É a Vara que se responsabiliza, em
conjunto com o Ministério Público – com a colaboração de assistentes sociais e conselheiros
tutelares –, pela seleção e encaminhamento de casos ao método restaurativo, que acontece na
modalidade de círculo restaurativo, bem como pela fiscalização do acordo e de seu
cumprimento.

Sobre referido modelo, conforme prometido algumas páginas atrás, vale


empreendermos uma curta digressão.

Segundo Raffaella Pallamolla, os círculos restaurativos – que, como já dito, eram


expressões sociais comuns entre os povos nativos do Canadá – começaram a ser adotados por
juízes naquele país, em 1991, sendo levados para os Estados Unidos como projeto-piloto,
anos depois. Sua utilização envolve delitos cometidos tanto por jovens quanto por adultos, e
também é aplicado em casos de crimes de mediana gravidade, disputas de comunidade,
crimes em escolas e violência familiar.

Sua aplicação pode se dar em qualquer oportunidade do processo judicial – antes


do processo, antes da condenação, ou até mesmo depois dela –, cabendo ser utilizado até
mesmo para outros fins que não o acordo restaurador, como para resolver um problema na
comunidade, para prover suporte à vítima ou ao infrator já condenado, e para se estudar a
melhor forma de acolhê-lo de volta após a prisão 172.

171
RAUPP e BENEDETTI. A Implementação da Justiça Restaurativa no Brasil - Uma Avaliação dos
Programas de Justiça Restaurativa de São Caetano do Sul, Brasília e Porto Alegre. Revista Ultima Ratio. Rio
de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, ano 1, nº 1, pp. 9-11.
172
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 119.

70
Das reuniões dos círculos (community, peacemaking e sentencing circles),
participam as partes diretamente envolvidas no conflito, familiares e pessoas interessadas em
apoiá-las, bem como representantes da comunidade e do sistema de justiça criminal.

Adota-se, neste procedimento, uma visão “holística e reintegradora” – nas


palavras de Raffaella –, tendo como objetivos precípuos a promoção da cura para todos os
afetados, a oferta ao ofensor da possibilidade de se arrepender, e o empoderamento das partes
e dos membros da comunidade para que dialoguem e resolvam seus conflitos de forma
equilibrada e justa173.

Já a experiência prática na Capital Federal, é adotada pelo TJDFT em parceria


com o Ministério Público, e se desenvolve, segundo as autoras, junto aos Juizados Especiais
do Núcleo Bandeirantes, atuando em matéria de competência do Juizado Especial Criminal.

Nela, utiliza-se a prática da mediação entre vítima e ofensor – com aceitação


voluntária por ambas as partes –, com o objetivo de resolver e pacificar conflitos entre
pessoas que já tenham ou possam vir a ter vínculo de relacionamento, e em casos nos quais
existe necessidade de reparação emocional ou patrimonial, excetuando-se, por opção dos
organizadores, os casos envolvendo violência doméstica e uso de drogas174.

O exemplo prático experimentado em Porto Alegre - RS, é o que mereceu maior


destaque de Raupp e Benedetti, que lhe dedicaram diversas páginas de seus escritos.

O programa adota a prática do círculo restaurativo, e é desenvolvido na 3ª Vara


Regional do Juizado de Infância e Juventude da capital gaúcha, que é responsável pela
execução das medidas socioeducativas aplicadas nos processos provenientes da Justiça
Instantânea e das 1ª e 2ª Varas Regionais do Juizado de Infância e Juventude, e visa a
pacificação de conflitos envolvendo adolescentes e crianças da região, sobretudo os
pertencentes a classes sociais menos privilegiadas.

Os círculos restaurativos de Porto Alegre fazem parte do Projeto “Justiça para o


Século 21”, que opera de forma complementar ao sistema tradicional de justiça, aplicando
mecanismos restaurativos em processos judiciais de execução de medidas socioeducativas e
difundindo os ideais restaurativos em programas de atendimento socioeducativos, atuando,

173
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 120.
174
RAUPP e BENEDETTI. A Implementação da Justiça Restaurativa no Brasil - Uma Avaliação dos
Programas de Justiça Restaurativa de São Caetano do Sul, Brasília e Porto Alegre, pp. 13-14.

71
também, de forma alternativa ao sistema criminal, na prevenção e solução de conflitos
escolares e comunitários175.

As práticas restaurativas são adotadas em dois momentos distintos.

O primeiro deles se dá logo no início do processo, quando é promovida uma


audiência preliminar no projeto Justiça Instantânea e o infrator é encaminhado para a Central
de Práticas Restaurativas (CPR). Se a prática restaurativa for considerada suficiente para
resolver a questão, será afastada a possibilidade de aplicação de medida socioeducativa; caso
contrário, os mecanismos restaurativos serão complementares ao processo tradicional,
viabilizando acompanhamento e assistência ao menor infrator durante o processamento do
feito.

A segunda oportunidade de aplicação de medidas restaurativas é no cumprimento


da medida socioeducativa, com a elaboração de um plano de atendimento ao adolescente que
cumpre a medida, seja em privação de liberdade, seja em meio aberto.

Para Raupp e Benedetti, uma característica peculiar do programa gaúcho é


exatamente a aplicação dos mecanismos restaurativos quando da execução da medida
socioeducativa, oportunidade em que se busca o aprimoramento da execução, atribuindo
novos sentidos éticos às proposições do atendimento estatal, a partir dos princípios
restaurativos.

A particularidade se deve ao fato de que é sabido não ser a execução o momento


ideal para a aplicação de práticas restaurativas, mas é justificada em razão das dificuldades
encontradas na implementação do programa, principalmente dada a resistência dos operadores
do direito responsáveis pelo processo judicial176.

Com o tempo, alcançou-se a confiança de boa parcela daqueles magistrados e


promotores que tinham posições desconfiadas quanto à aplicação de mecanismos
restaurativos em fases iniciais do processo, e, com o aumento da credibilidade do modelo,
diversos casos foram encaminhados à CPR pelas 1ª, 2ª e 3ª Varas de Infância e Juventude,
pela Justiça Instantânea, pelo Ministério Público e pelo Centro Integrado de Atendimento da
Criança e do Adolescente.

175
Mais informações sobre o Projeto disponíveis online, em <www.justica21.org.br>. Acesso em 23/8/2011.
176
RAUPP e BENEDETTI. A Implementação da Justiça Restaurativa no Brasil - Uma Avaliação dos
Programas de Justiça Restaurativa de São Caetano do Sul, Brasília e Porto Alegre, pp. 12.

72
As autoras citam pesquisa realizada pelo Núcleo de Pesquisas em Ética e Direitos
Humanos da Faculdade de Serviço Social da PUCRS, que apontam uma tendência de
crescimento da quantidade de casos derivados à CPR num momento ainda inicial, logo após a
entrada do caso no sistema de justiça. Os dados revelam, também, que os tipos de atos
infracionais encaminhados, num período de aproximadamente 3 anos, são bastante variados,
indo de furto (simples e qualificado), lesão corporal e ameaça, até casos de roubo (simples e
circunstanciado), e até mesmo alguns - poucos - homicídios.

Ao receber o encaminhamento, respeitado o princípio da voluntariedade na


participação, a CPR avalia a possibilidade de instauração do procedimento restaurativo, com
observância ao princípio da horizontalidade entre os envolvidos177.

Interessante ressaltar que, mesmo nos casos em que a vítima se recuse a participar
dos círculos, é viabilizado um encontro com a presença do infrator e de seus responsáveis,
para um diálogo em que são tratadas possibilidades de responsabilização e apoio, com base
nas relações familiares e comunitárias que envolvem o menor infrator.

Segundo Raffaella, os acordos alcançados relacionavam-se, na maior parte das


vezes, a bases simbólicas – não materiais, como indenização, prestação de serviço ou
pecuniária, etc. –, sendo mais comum o pedido de desculpas pelo adolescente, com o
comprometimento de maior envolvimento de terceiros na reparação dos danos, na
recuperação dos vínculos, e no atendimento das necessidades dos envolvidos – tanto infrator,
quanto vítima e comunidade.

O índice de acordos cumpridos chegou a 90%, e 95% das vítimas se consideraram


satisfeitas com os resultados restaurativos, entendendo que houve efetiva responsabilização do
agente, já que expressaram de forma mais intimista a forma como foram atingidas pelo dano,
de modo que o ofensor pôde entender melhor os fatos e compreender a vítima. Outra
constatação importante é que mudou também o conceito formulado pela vítima em relação ao
ofensor, na medida em que passou a entendê-lo como pessoa, em seu contexto de vida. De
mesmo modo, 90% dos adolescentes aprovaram a experiência, afirmando terem sido tratados
com mais atenção, respeito e justiça178.

Confirma-se, então, que a prática de mecanismos restaurativos faz bem tanto à


vítima quanto ao infrator, e consequentemente a toda a comunidade.

177
RAUPP e BENEDETTI. A Implementação da Justiça Restaurativa no Brasil - Uma Avaliação dos
Programas de Justiça Restaurativa de São Caetano do Sul, Brasília e Porto Alegre, pp. 13.
178
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 126.

73
Ressalta a autora que, na esteira do que se constatou nas experiências
internacionais envolvendo adolescentes em conflito com a lei, os resultados em Porto Alegre
também são positivos quando o assunto é a reincidência (ou “reiteração” – expressão utilizada
no ECA), com índices consideravelmente mais baixos do que os averiguados em casos não
submetidos à apreciação da Justiça Restaurativa, ou naqueles que tenham se restringido a uma
fase muito inicial do procedimento restaurativo.

Importante pontuarmos, também, os resultados nos casos submetidos à Justiça


Restaurativa quando do cumprimento da medida socioeducativa. Segundo Raffaella, entre os
anos de 2005 e 2006 foram atendidos 139 casos – dentre eles: furto, roubo, tráfico e latrocínio
–, sendo que destes mais de 90% alcançaram acordo restaurativo, dos quais 75% foram
cumpridos.

Os acordos envolvem a responsabilização dos participantes no apoio e sustento do


tratamento ao qual é submetido o menor, bem como auxílio à inclusão social e profissional. A
reincidência nestes casos também é perceptivelmente reduzida, atingindo 20%; os índices de
satisfação também são positivos, alcançando 80% do casos, notadamente por conta do
sentimento de acolhimento e compreensão que ambiente o círculo restaurativo 179.

Outro exemplo prático de utilização de valores restaurativos no Brasil está no


Programa Justiça Comunitária, que nasceu da experiência da juíza Glaucia Falsarella Foley
no Juizado Especial Itinerante do Distrito Federal. O projeto se iniciou percorrendo as
comunidades do DF que enfrentavam dificuldade no acesso à justiça 180.

Segundo a idealizadora, seu próprio conceito de justiça sofreu uma reavaliação,


tendo ela descoberto “que não basta propiciar o acesso ao direito formal”. Três foram as
constatações: o baixo nível de conhecimento pela população quanto a seus direitos, a falta de
oportunidades para o diálogo, e a quase inexistência de uma efetiva mobilização social pela
justiça ou pela participação nela.

Como resposta a estas dificuldades, a justiça comunitária se desenvolveu sobre


um importante pilar: a capacitação de membros da própria comunidade para atuarem nos
conflitos locais e, de forma voluntária, desempenharem atividades de orientação jurídica,
mediação e formação de redes associativas. De início, o projeto foi implementado nas

179
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, pp. 127-129.
180
Revista Innovare, Edição Especial. Práticas Emblemáticas – Justiça Comunitária: Poder à população.
Reportagem por Frances Jones. Instituto Innovare / Editora Globo. São Paulo, 2011, p. 42.

74
cidades-satélites de Ceilândia e Taguatinga, abrangendo mais recentemente a cidade de
Samambaia181.

O programa foi laureado pelo Prêmio Innovare, em 2005, e em 2008 foi incluído
no Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania - Pronasci, tornando-se, então,
um instrumento de política pública. Segundo a revista Innovare, em junho de 2010 já
funcionavam trinta e sete núcleos de justiça comunitária em onze estados brasileiros e no
Distrito Federal.

Cada núcleo conta com um bacharel em direito, um assistente social e um


psicólogo, que trabalham em parceria com os cidadãos voluntários. Juntos produzem
materiais de divulgação sobre os direitos dos cidadãos, como cartilhas e esquetes, sempre com
uma linguagem clara e acessível à população.

Na resolução dos conflitos, são utilizadas técnicas de mediação, permitindo a


restauração da comunicação entre as partes, e a intenção é, sempre que possível, coletivizar os
casos individuais, de modo a mobilizar a comunidade, que passa a conhecer seus recursos –
criando-se, assim, uma rede de superação de conflitos182.

Em São Carlos, interior de São Paulo, um juiz e um religioso juntaram-se para


colocar em prática, um projeto inovador conhecido por Núcleo de Atendimento Integrado, que
funciona desde 2001. Sua intenção era entender qual seria a melhor forma de trabalhar o
adolescente infrator previamente à detenção, já que muitos eram encaminhados para a Febem
(hoje, “Fundação Casa”) sem que os efeitos de seu tratamento fossem positivos no que se
refere à ressocialização 183.

A preocupação era de colocar em prática o inciso V do artigo 88 do Estatuto da


Criança e do Adolescente, que determina a integração operacional, preferencialmente em um
mesmo local, de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública e
Assistência Social. Assim, o NAI reúne estes órgãos num mesmo prédio, resultando num
atendimento mais rápido e eficiente, principalmente no que se refere à duração do
procedimento judicial, que costuma levar menos de uma semana – antes da implantação do
NAI, o prazo era de mais de um ano da data do fato até a resolução da causa.

181
Revista Innovare, Edição Especial. Práticas Emblemáticas – Justiça Comunitária: Poder à população.
Reportagem por Frances Jones. Instituto Innovare / Editora Globo. São Paulo, 2011, p. 42.
182
Op. cit., p. 42.
183
Op. cit., p. 44.

75
Segundo o Juiz João Baptista Galhardo Junior, idealizador do projeto, há também
a atuação como forma de prevenção, de modo a enxergar não apenas o crime, mas quem é o
infrator, qual sua situação de vulnerabilidade e o risco social a que está submetido,
envolvendo no tratamento a família e, sempre que possível, outros membros da sociedade 184.

De acordo com dados estatísticos, o NAI foi responsável pela redução da


violência na cidade: em 1998 foram 15 homicídios praticados por menores, enquanto entre
2001 e 2005, foram apenas dois por ano e, em 2006, nenhum. A taxa de reincidência é
mínima, de apenas 4%.

O projeto ainda deu a São Carlos o título de município com o menor Índice de
Vulnerabilidade à Violência Juvenil do país, segundo o Ministério da Justiça, e tem sido
reconhecido como uma prática emblemática, tendo sido, recentemente, indicado para todas as
cidades brasileiras pelo Conselho Nacional de Justiça 185.

Outro projeto que se especializou em proporcionar conhecimentos básicos sobre a


Justiça à comunidade vem sendo desenvolvido há anos por Promotores de Justiça do Tribunal
do Júri de Santo Amaro, São Paulo. Esta foi uma dentre quatro iniciativas do grupo, que
consciente da extrema violência em bairros periféricos da metrópole, montou um curso para a
formação de orientadores jurídicos populares, ensinando-lhes sobre a legislação cível e penal
vigente no país186.

Da primeira aproximação, ocorrida em meados da década de 90, surgiram o


Grupo Organizado de Valorização da Vida (GOVV), o Tribunal Popular e a Rede de
Atendimento às Vítimas de Violência Doméstica.

Por intermédio do GOVV, os Promotores passaram a ter uma visão mais ampla
em sua atuação, que deixou de se limitar aos inquéritos, processos e ao atendimento ao
público, partindo para um contato mais direto com a comunidade, em seu próprio ambiente,
como que se antecipando ao crime187.

Na prática, são promovidas reuniões mensais entre as lideranças comunitárias e


autoridades, na intenção de se resolverem problemas dos mais diversos – como casos de
violência doméstica, por exemplo. No mesmo rumo, surgiu uma rede de proteção às vítimas

184
Revista Innovare, Edição Especial. Práticas Emblemáticas - Núcleo de Atendimento Integrado: Agilidade e
prevenção. Reportagem por Maíra Termero. Instituto Innovare / Editora Globo. São Paulo, 2011, p. 44.
185
Op. cit., p. 44.
186
Op. cit., p. 50.
187
Op. cit., p. 50.

76
de violência, por meio de parcerias com ONGs. O projeto foi adotado pelo Ministério Público
Estadual como política pública, tendo sido implantado em outros bairros da capital, bem
como em outros municípios do estado188.

Pelo que se viu, é, sim, viável o uso de mecanismos restaurativos no contexto


jurídico brasileiro, pois, ainda que não esteja a Justiça Restaurativa regulamentada pela
legislação criminal, tem inspirado práticas por todos os lados, desenvolvidas por autoridades,
cidadãos e organizações paraestatais que se preocupam com os rumos da Justiça Criminal no
Brasil e veem neste novo modelo uma solução viável para o tratamento mais digno à pessoa, o
maior respeito às garantias e direitos assegurados constitucionalmente, bem como uma forma
de se reinserir, de maneira menos dolorosa, tanto ofensor quanto vítima ao seio comunitário,
garantindo-se a participação da sociedade e evitando-se a pena reclusiva.

188
Revista Innovare, Edição Especial. Práticas Emblemáticas – Instrumentos de Pacificação: Cidadania na
Periferia. Reportagem por Frances Jones. Instituto Innovare / Editora Globo. São Paulo, 2011, p. 50.

77
6.1. A aplicabilidade da Justiça Restaurativa no Brasil

Conforme já demonstrado em capítulos anteriores, o Brasil padece de uma


evidente perda de legitimidade em seu sistema penal tradicional. Tal situação já foi
experimentada por diversos países, e apresenta, como visto, cunho essencialmente jurídico e
sociológico.

Na Espanha, por exemplo, houve uma evolução na legislação, e abriu-se a Justiça


para novos modelos, chancelando o incentivo do Estado à prática da Justiça Restaurativa e
experiências semelhantes, tendo como exemplo as experiências de outros países nesse sentido.
Fato é que uma transformação de tão grande monta exige também uma mudança de
mentalidade quanto ao funcionamento do sistema penal, quanto à concepção do delito e o
papel do Estado neste sistema.

Da observação da cena brasileira, a crise do sistema penal recebe destaque, e tem


visível conexão com a crise das modalidades de regulação social, demonstrada na “falta de
credibilidade e eficiência do sistema judiciário, ao fracasso das políticas públicas de
contenção da violência, ao esgotamento do modelo repressivo de gestão do crime”, dentre
outros motivos, como a falta de participação da comunidade no processo 189.

Tal situação pode ser compreendida, nas palavras de Raffaella, como fruto da
tendência de vincularmos a imposição da lei ao controle do delito, sempre tendo o Estado
como mecanismo fundamental de enfrentamento do crime e único capaz de propiciar, por
seus meios, a proteção dos cidadãos – numa evolução de “estado liberal” para “estado
protetor”190, ou, vou além, “superprotetor”.

Esta evolução acabou impondo ao direito criminal a aparente necessidade de


tutelar novos bens jurídicos, aumentando sobremaneira seu campo de atuação – com a
criminalização do maior número possível de condutas intoleráveis – e reduzindo sua
capacidade de efetiva atuação, o que trouxe grande seletividade ao sistema e tirou-lhe grande
parcela de credibilidade.

Este cenário é preenchido pela crescente violência social – que pode ser encarada
como uma das consequências desta evolução penal –, que traz a “desintegração social e a

189
SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: O Novo Modelo de Justiça Criminal e de Gestão
do Crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 1.
190
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, pp. 132-133.

78
destruição dos laços comunitários”, como resultado também da descrença no sistema
judiciário, da certeza da impunidade e das desigualdades sociais – que se refletem no Direito
–, latentes num país em franco desenvolvimento191.

Diante disso, surge o desafio de se reestruturar o sistema, na busca de alternativas


para reduzir os danos causados ou, no mínimo, reforçados, pelo próprio Direito Penal. E é
neste momento que se mostra oportuna a alternativa da Justiça Restaurativa no Brasil, com a
meta de se reduzir as desigualdades e tornar a Justiça mais democrática e acessível.

De acordo com Raffaella, no contexto brasileiro, serviria a Justiça Restaurativa,


também, no desenvolvimento de mecanismos de combate à expansão da rede de controle
penal e no afastamento da ação violenta pelo Estado, aumentando, ao mesmo tempo, o acesso
à Justiça, com consequente fortalecimento da democracia 192.

Nas palavras de Gomes Pinto, a complexidade da criminalidade e da violência


exige criatividade. Assim, é mesmo necessário que se avance rumo a um sistema mais flexível
de justiça criminal, “convertendo um sistema monolítico, de uma só porta, para um sistema
multi-portas que ofereça respostas diferentes e mais adequadas à criminalidade” 193. Gomes
enxerga, tal qual Raffaella, a Justiça Restaurativa como uma opção adequada enquanto
resposta a um sem-número de delitos, e crê na viabilidade de sua aplicação no Brasil.

Para isso, o autor invoca não só a Constituição Federal e a legislação vigente, mas
principalmente o senso de justiça e a cultura diversificada de nosso povo, crendo que não se
pode apenas copiar modelos estrangeiros – notadamente em se falando de países que adotem
o common law. Nesta esteira, acredita que a Justiça Restaurativa é juridicamente sustentável e
compatível com nosso sistema jurídico, e sugere ideias sobre como se daria sua
implementação.

No mesmo sentido de tudo quanto já vimos, para Gomes, a Justiça Restaurativa


“trata-se de um processo estritamente voluntário, relativamente informal, a ter lugar
preferencialmente em espaços comunitários, sem o peso do ritual solene da arquitetura do
cenário judiciário”, utilizando-se, para isso, de “técnicas de mediação, conciliação e transação
para se alcançar o resultado restaurativo, ou seja, um acordo objetivando suprir as

191
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, pp. 136-137.
192
PALLAMOLLA. Op. cit., pp. 146-150.
193
PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é Possível no Brasil? In: SLAKMON et al. Justiça
Restaurativa, p. 19.

79
necessidades individuais e coletivas das partes”, com a consequente reintegração tanto da
vítima quanto do infrator à sociedade 194.

Para o autor, o paradigma restaurativo ultrapassa o procedimento judicial, mesmo


em se falando de juizados especiais, pois tem outro objetivo principal, o de recuperar a
convivência pacífica no ambiente afetado pelo crime, notadamente nos casos em que ofensor
e vítima tenham convivência próxima. Isso porque, ao que já se constatou, em muitas
situações a atuação – num ambiente retribucionista – do Estado no conflito acaba por agravá-
lo em vez de propiciar uma solução efetivamente justa.

Casos em que facilmente se aplicaria a Justiça Restaurativa, atingindo resultados


melhores que a justiça comum são os que envolvem conflitos domésticos, relações de
vizinhança, no ambiente escolar, crimes contra a honra e delitos patrimoniais leves, tais como
furtos, roubos etc.

Ainda segundo Gomes, a Justiça Restaurativa, se reconhecida como modelo


aplicável, servirá para promover a democracia participativa no âmbito da Justiça Criminal, à
medida em que os participantes do conflito – ofensor, ofendido e comunidade – têm voz ativa
e compartilham o processo decisório, o qual acaba por ser bem mais profundo e minucioso
que o procedimento do modelo retributivo, onde o Estado-Juiz detém absoluto monopólio do
poder de decidir e punir, tendo como paradigma de justiça que sempre se deve retribuir o mal
com outro mal.

Isso porque, como afirma, incumbe à Justiça Restaurativa propiciar o diálogo


entre os envolvidos num conflito, de modo a identificar as necessidades e obrigações oriundas
da ofensa e dos traumas por ela causados, buscando a aceitação da responsabilidade e o
atingimento de um resultado terapêutico, tanto individual quanto socialmente 195.

Em todo caso, fato é que existe a possibilidade – e para além disso, a necessidade
– de se afastar a aplicação do aparato judicial em determinadas situações, permitindo-se a
aplicação de um modelo que tenha como mote não a condenação ou a segregação, mas o
consenso, a construção conjunta de soluções (dialética) e a recuperação do convívio dos
envolvidos e destes com a comunidade.

Para Gomes, o novo modelo é, sim, compatível com o ordenamento brasileiro,


mesmo diante do princípio da indisponibilidade e da obrigatoriedade da ação penal pública.

194
PINTO. Justiça Restaurativa é Possível no Brasil? In: SLAKMON et al. Justiça Restaurativa, p. 20.
195
PINTO. Op. cit., p. 21.

80
Fato é que nosso sistema é bem mais resistente a uma flexibilização, diferentemente do
common law, que tem grande abertura à ideia do encaminhamento de casos a programas
alternativos. Neste, a atuação do Promotor de Justiça – public prosecutor – está sujeita ao
princípio da oportunidade.

Apesar disso, ressalta o autor, com a Constituição de 1988 e com o advento da Lei
9.099/95 – que prevê a possibilidade da suspensão condicional do processo e da transação
penal –, abriu-se uma brecha ao princípio da oportunidade. Outro exemplo são os casos de
infrações cometidas por adolescentes, havendo a previsão do instituto da remissão, quando o
Ministério Público goza de certa discricionariedade. Desse modo, é de se entender que o
modelo restaurativo pode encontrar seu lugar no Brasil, mesmo sem uma drástica mudança
legislativa – de início, obviamente196.

Sobre a Lei dos Juizados Especiais, Raffaella Pallamolla entende ser importante
salientar as intenções nela manifestas de introduzir mecanismos menos formais de resolução
de conflitos no sistema de justiça criminal197, não que isso necessariamente signifique um
flerte com a Justiça Restaurativa como conhecemos neste trabalho.

Lembra Gomes Pinto que a Carta Magna prevê, no art. 98, I, a possibilidade de
conciliação em procedimento oral e sumaríssimo, nos casos de infrações penais e menor
potencial ofensivo. Aponta ainda a possível compatibilidade do sistema restaurativo de justiça
com o que a Lei 9.099/95 chama de “Fase Preliminar”, em que pese a previsão, sempre
presente, da atuação de um Juiz na “audiência preliminar”.

De fato, pode-se perceber que referida lei tem traços compatíveis com os
princípios restaurativos, notadamente quando autoriza a composição dos danos e a aceitação
imediata de aplicação de pena alternativa (art. 72), e quando trata da conciliação, que pode ser
conduzida por conciliadores – “auxiliares da Justiça”, sempre sob a orientação do juiz togado
(art. 73).

Saliente o autor, ainda, a aparente problemática quando a lei prevê que o acordo
homologado, em se tratando de ação penal de iniciativa privada ou ação penal pública
condicionada à representação, gera a renúncia ao direito de queixa ou representação (art. 74,

196
PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é Possível no Brasil? In: SLAKMON, C.; DE VITTO,
R.; PINTO, R. Gomes (organizadores). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2005, pp. 22-23.
197
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, pp. 150-151.

81
§ único) – isso porque tal previsão feriria a revogabilidade do acordo restaurativo em caso de
descumprimento pelo ofensor.

No entanto, a seu ver não haveria como se falar que tal previsão legal
inviabilizaria o encaminhamento de casos para a mediação restaurativa nos casos de crimes de
ação privada ou pública condicionada. Para isso, argumenta que não há impedimento legal
para tal encaminhamento, desde que seja esclarecido à vítima que eventual acordo importará
na renúncia ao direito de queixa ou representação, restando-lhe a busca, na esfera cível, da
reparação negociada198.

Gomes Pinto também ressalta o instituto da suspensão condicional do processo,


previsto e regulamentado no art. 89 da Lei 9.099/95, que prevê a possibilidade de o membro
do Ministério Público propor, quando do oferecimento da denúncia, a suspensão do processo,
e elenca como condições a reparação do dano (§ 1º, inciso I), a proibição de frequentar
determinados lugares (inciso II) e de se ausentar da comarca sem autorização (inciso III), bem
como o comparecimento mensal obrigatório em juízo (inciso IV).

No § 2º do citado artigo, temos que o magistrado pode, discricionariamente, fixar


outras condições, o que lhe dá liberdade de decidir conforme as circunstâncias práticas, e
maneira mais razoável e justa. É neste parágrafo que o autor encontra uma brecha que permite
o encaminhamento da causa a um Núcleo de Justiça Restaurativa, afirmando que estas “outras
condições” podem perfeitamente ser definidas numa conferência restaurativa.

Interessante notar que os §§ 3º e 4º preveem a revogação do benefício em caso de


processamento por outro crime ou não-cumprimento da obrigação ou de qualquer condição
imposta ao infrator, o que também coaduna com o que já estudamos sobre os valores e
princípios da Justiça Restaurativa, inclusive com o que regula a Resolução 2002/12 da ONU.

Mas Raffaella rechaça a ideia de plena compatibilidade entre a Lei dos JECs e o
que se entende por Justiça Restaurativa: afirma serem inúmeras as diferenças entre as duas
propostas, sendo que a fundamental é que a Justiça Restaurativa, ao contrário da Lei dos
JECs, não tem o condão de incrementar o exercício do poder punitivo, mas sim o acesso a
uma justiça de qualidade 199.

Tem-se também o Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual, em vários


dispositivos, prevê e recomenda o uso de mecanismos alternativos, oportunidade clara para a

198
PINTO. Justiça Restaurativa é Possível no Brasil? In: SLAKMON et al. Justiça Restaurativa, p. 31.
199
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 151.

82
implementação da Justiça Restaurativa, principalmente quando trata dos institutos da remissão
e das medidas socioeducativas (art. 112 e seguintes). Também são citados pelo autor os
crimes contra idosos, com a previsão no Estatuto do Idoso de ser utilizada a Lei dos Juizados
Especiais como subsidiária em crimes cuja pena privativa de liberdade não ultrapasse 4 anos.

No entanto, bem ressalta Gomes Pinto que a Justiça Restaurativa, como aqui
estudada, não tem previsão legal expressa “como um devido processo legal no sentido
formal”200.

O autor assevera que o programa restaurativo no Brasil, quando


institucionalizado, poderia funcionar em núcleos instalados em espaços comunitários ou
centros de cidadania – o que daria maior neutralidade e naturalidade ao encontro restaurativo,
fugindo da exagerada burocracia do procedimento criminal comum –, com fácil acesso à
coordenação e a um conselho multidisciplinar, cuja estrutura compreenderia câmaras
restaurativas onde se reuniriam as partes e os facilitadores, com apoio administrativo e de
segurança – de maneira bem semelhante à sistemática adotada em Porto Alegre, como já
visto.

Acrescenta que estes núcleos deverão atuar em íntima conexão com a rede social
de assistência, com apoio de órgãos públicos, empresas e organizações não-governamentais,
para o encaminhamento de vítimas e infratores para os programas indicados para o
cumprimento das medidas acordadas no procedimento restaurativo.

No procedimento imaginado pelo autor, os casos seriam, após parecer favorável


do Ministério Público, encaminhados para o núcleo, que após a realização do procedimento –
tenha ele resultado positivo ou não – devolveria os autos ao parquet, com um relatório e o
termo do eventual acordo subscrito pelas partes. Em caso de resultado positivo, a promotoria
levaria em consideração as cláusulas balizadas no acordo, propondo ao Juízo sua
homologação, passando-se à fase executiva. Nesta etapa, deve haver integral
acompanhamento do cumprimento dos acordos, principalmente no início da implementação
da Justiça Restaurativa, para que se possa fazer uma avaliação aprofundada e dela se retirarem
estatísticas do rendimento e da efetividade dos projetos-piloto201. Novamente, notam-se
diversas semelhanças entre o modelo proposto pelo autor e os que já vem sendo adotados,
como em Porto Alegre e São Caetano do Sul.

200
PINTO. Justiça Restaurativa é Possível no Brasil? In: SLAKMON et al. Justiça Restaurativa, pp. 33-34.
201
PINTO. Op. cit., p. 34.

83
Importante ressaltar que, apesar das vantagens declaradas de seus programas, a
Justiça Restaurativa deve ser experimentado com cautela, recebendo monitoramento e
fiscalização com rigor científico, o que viabilizará seu amadurecimento e aperfeiçoamento. A
construção de uma Justiça Restaurativa no Brasil deve levar em conta o contexto social da
nação e tomar como norte as diretrizes das Nações Unidas, de modo a adaptar os conceitos e
valores gerais de Justiça Restaurativa à nossa realidade.

Gomes Pinto afirma, também, que um modelo brasileiro de Justiça Restaurativa


deve ser produto de debates em fóruns apropriados, com ampla participação da sociedade,
para que seja concebido “para funcionar e se ver legitimado”. Salienta, ainda, que a
necessidade da implantação de uma nova forma de justiça no Brasil é de rigor, vez que já são
manifestos a falência do sistema vigente e o aumento, como consequência, da violência e da
criminalidade202.

Por fim, tece críticas à situação do direito criminal brasileiro, que, como já visto, é
obsoleto e ineficaz, provocando verdadeira descrença da sociedade nas instituições
democráticas e sensação de insegurança, o que é agravado pela mídia - que acaba mobilizando
a opinião pública no sentido do recrudescimento das leis e do tratamento ao criminoso.
Acredita ser viável a Justiça Restaurativa no Brasil, por ser uma oportunidade de dar à justiça
criminal um caráter participativo, atingindo resultados transformadores e reintegradores, e
abrindo caminho para uma mais efetiva promoção dos direitos humanos, da dignidade e da
cidadania 203.

Neste sentido, importante o alerta ventilado por Raup e Benedetti, ao afirmarem


que a aplicação da Justiça Restaurativa não deve estar sempre ou totalmente atrelada ao
sistema tradicional vigente, pois se acabaria inviabilizando o importante contraponto que
aquela faz a este. O que de nenhuma forma pode ocorrer, nas palavras das autoras, é a mera
formalização desta nova forma de justiça, o que a tornaria apenas mais um instrumento a
serviço do sistema criminal institucionalizado 204.

Há, ainda, alguns pontos críticos levantados por aqueles que não apoiam a Justiça
Restaurativa. Os principais são rebatidos por Raffaella, e deles trataremos a seguir.

202
PINTO. Justiça Restaurativa é Possível no Brasil? In: SLAKMON et al. Justiça Restaurativa, pp. 34-35.
203
PINTO. Op. cit., p. 35.
204
RAUPP e BENEDETTI. A Implementação da Justiça Restaurativa no Brasil - Uma Avaliação dos
Programas de Justiça Restaurativa de São Caetano do Sul, Brasília e Porto Alegre, p. 22.

84
Quanto à crítica de que a prática da Justiça Restaurativa violaria garantias, a
autora afirma que, por estar baseada “no modelo de justiça criminal e, portanto, em uma
racionalidade punitiva”, a prática restaurativa não deixa margem à violação de direitos ou
garantias subjetivos do infrator – pelo contrário, tem como um de seus principais fundamentos
a defesa dos direitos humanos. Cita Elena Larrauri, defendendo que seria um absurdo
entender a Justiça Restaurativa como uma forma de “controle social selvagem” ou informal,
no sentido pejorativo, pois o simples fato de que a decisão seja mediada com a vítima e não
seja tomada por um agente estatal não significa dizer que haja ausência de garantias 205.

Como bem afirma Raffaella, a informalidade do modelo não impede a existência


de diretrizes sobre o desenvolvimento de seus programas, ou limites para sua atuação – a
exemplo do que dispõe a Resolução 2002/12, da ONU. O Estado não sai totalmente de cena,
mantendo sua participação no processo, não mais como responsável por imputar a culpa ao
autor e impor-lhe punição, mas agora como garantidor dos direitos dos envolvidos e o
respeito aos princípios legais e constitucionais.

Apesar de também entender que existem riscos ao se sobrepor a Justiça


Restaurativa à tradicional, pois ambas possuem lógicas diferentes, correndo-se o risco de
incorrer em bis in idem ou de ocorrer a chamada revitimização206, Leonardo Sica afirma ser
necessário o controle público na Justiça Restaurativa, para que se garanta o caráter estatal da
função de controle criminal207, cabendo ao Estado o papel de impor uma estrutura que vise a
garantir as salvaguardas aos ofensores – estrutura, esta, que seja essencialmente diferente da
adotada pela justiça tradicional, nas palavras de Ashworth208.

A exata intenção da Justiça Restaurativa é trazer à tona práticas não-violentas de


resolução de conflitos com participação da vítima e priorização da reparação em detrimento
da punição, alternativas que devem ser buscadas quando da composição entre os modelos
restaurativo – inovador – e retributivo – vigente.

No mais, ressalta Raffaella, a reintrodução da vítima no tratamento do conflito,


bem como – acrescento eu – o incentivo ao diálogo com o ofensor, acabam servindo para o
restabelecimento da credibilidade coletiva em torno do direito penal e da própria Lei, sendo

205
LARRAURI, Elena. La Reparación. In: CID, José e LARRAURI, Elena (org.). Penas Alternativas a la
Prisión. Barcelona: Bosch, 1997, p. 81.
206
SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: O Novo Modelo de Justiça Criminal e de Gestão
do Crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 226.
207
SICA. Op. cit., p. 81.
208
ASHWORTH, Andrew. Responsabilities, Rights and Restorative Justice. The British Journal of Criminology,
Special Issue, v. 42, n. 3, 2002, p. 582.

85
eficaz, ainda, no afastamento da visão enraizada de que o direito penal cumpra o papel de
“vingador público”209.

Outra questão comumente levantada é que, na prática restaurativa apenas quando


do cumprimento da pena ou da medida socioeducativa, o tempo da aplicação da Justiça
Restaurativa se distancia muito do tempo do fato, o que prejudica o diálogo. E isso é fato,
sendo certo que a intenção da Justiça Restaurativa é interferir o quanto antes possível no
conflito, e não em momento tão tardio. De todo modo, ainda que seja aplicada em fase de
cumprimento de sanção, esta nova justiça pode ser muito útil, notadamente no que tange ao
acompanhamento da recuperação do sentenciado (o que, hoje em dia, é precário, ainda que
previsto expressamente na Lei de Execuções Penais) e à sua reinserção social, lançando-se
mão de mecanismos restaurativos, para que se alcance a liberdade com menor impacto
possível.

A seguir, trataremos do Projeto de Lei que visa a regulamentação da Justiça


Restaurativa no Brasil.

209
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 176.

86
6.2. O Projeto de Lei nº 7.006/06 e algumas considerações

Como afirma Raffaella, muitos dos países que hoje possuem legislação tratando
da Justiça Restaurativa e de sua aplicação optaram por institucionalizar esta modelo somente
após alguns anos de experiência. No Brasil, as primeiras experiências com o sistema
restaurativo de justiça datam de 2004, o que talvez nos caracterize como “principiantes” neste
assunto.

Há, ainda, o problema da institucionalização num país tão grande e diversificado


como o nosso – a formalização deste modelo pode impulsionar seu uso e padronizá-lo, mas,
ao mesmo tempo, limitar o desenvolvimento e a diversidade de seus programas 210.

Em que pese isso, existem, por certo, vantagens na regulamentação legislativa,


principalmente no que se refere aos critérios de derivação e a forma como os resultados
restaurativos serão recepcionados pela justiça estatal. Raffaella salienta serem estas as
questões essenciais, já que se tem mostrado possível a prática de programas restaurativos
mesmo que sem previsão legal – como acontece, e já vimos, em Porto Alegre, São Caetano e
Brasília –, principalmente levando-se em conta que a Justiça Restaurativa no Brasil ainda sem
encontra em fase de amadurecimento, aprendizado e autoconhecimento 211.

Neste contexto, e num momento – frise-se – ainda primitivo da experiência


restaurativa no Brasil, no ano de 2005 foi encaminhada uma sugestão pelo Instituto de Direito
Comparado à Comissão de Legislação Participativa da Câmara, com a proposta de ser
institucionalizada a prática desta nova modalidade de justiça no país.

Apresentado na Câmara dos Deputados em sessão do dia 10/5/2005, o Projeto, de


acordo com sua ementa, “propõe alterações no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de
1940 [Código Penal], do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 [Código de Processo
Penal], e da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 [Lei dos Juizados Especiais], para
facultar o uso de procedimentos de Justiça Restaurativa no sistema de justiça criminal, em
casos de crimes e contravenções penais”212.

Da análise do texto do Projeto-Lei, podemos perceber diversos pontos


controvertidos. Já no seu primeiro artigo, diz-se que a lei “regula o uso facultativo” (grifo

210
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 177.
211
PALLAMOLLA. Op. cit., p. 178.
212
Informação disponível online, no website da Câmara dos Deputados, em
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=323785>. Acesso em 15/5/2011.

87
nosso) da Justiça Restaurativa “em casos de crimes e contravenções penais”. Como bem
afirma Raffaella, tal previsão já torna problemática a plena viabilidade do uso das práticas
restaurativas.

Isso porque, é amplamente conhecido que na jurisprudência brasileira, qualquer


referência a “uso facultativo” de mecanismos alternativos – sem que se determine exatamente
quais os crimes e contravenções passíveis de sua aplicação –, acaba por afastar sua
aplicabilidade: deixando nas mãos do Ministério Público e do Juiz a decisão de qual caso deve
ou não ser submetido ao novo procedimento, a grande maioria certamente apenas
encaminhará à Justiça Restaurativa casos de mínima relevância, “de bagatela”, dado o receio
de se perder campo de atuação do Judiciário 213.

Deveria o Projeto, na nossa opinião – que acompanha os conselhos de inúmeros


autores –, especificar quais as condutas e tipos penais que poderiam vir a ser submetidos à
apreciação da Justiça Restaurativa, utilizando critérios como o quantum ou a modalidade da
pena, o bem jurídico tutelado, ou mesmo o valor do prejuízo causado à vítima. Tanto um
quanto outro critério tem, obviamente, suas complicações, mas podem servir como elementos
a serem observados para que se garanta o encaminhamento de casos concretos.

Raffaella cita o caso da Alemanha, onde grandes investimentos foram feitos em


estrutura física e humana para os serviços de mediação em diversas cidades, mas que, apesar
disso, no período de um ano nenhum caso foi submetido ao novo procedimento,
principalmente pela desconfiança das autoridades envolvidas no processo judicial formal. Por
tal motivo, é necessária uma nova cultura jurídica, que aceite o uso da Justiça Restaurativa e
não restrinja ou dificulte sua implementação 214.

O artigo 2º do Projeto pauta-se apenas na descrição do que se entende por Justiça


Restaurativa, considerando “procedimento de Justiça Restaurativa” o “conjunto de práticas e
atos conduzidos por facilitadores”, que compreende encontros entre vítima e autor e, quando
apropriado, “outras pessoas ou membros da comunidade afetados”, os quais participarão de
forma coletiva e ativa na resolução dos problemas causados pelo crime ou contravenção, num
ambiente ao qual se dá o nome de “núcleo”. O texto de tal artigo parece coadunar de forma
satisfatória com tudo o que já estudamos neste trabalho.

213
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 179.
214
PALLAMOLLA. Op. cit., p. 181.

88
Diz o artigo seguinte que do “acordo restaurativo” constará as obrigações
assumidas pelas partes no intuito de suprir as “necessidades individuais e coletivas” dos
envolvidos e afetados pela conduta ofensiva. O art. 4º afirma que, quando presentes os
requisitos do procedimento restaurativo, o juiz poderá, com a anuência do MP, encaminhar ao
núcleo peças de informação, autos do inquérito policial, ou quaisquer outros documentos
constantes dos autos.

A nós nos parece ter havido um equívoco topológico neste momento. Isso porque
o artigo 3º já fala do resultado do procedimento restaurativo, sem que sequer se tenha definido
como se dará, em detalhes, tal procedimento. Em seguida, já se fala sobre os documentos que
o juiz poderá encaminhar ao núcleo, sem que se tenha explicado como será a escolha de qual
procedimento poderá ser submetido ao mecanismo restaurativo.

Quanto ao artigo 4º, dois são os possíveis problemas: um deles é que o


encaminhamento do caso à Justiça Restaurativa seja condicionado à anuência do Ministério
Público, mesmo após a decisão do juiz em procedê-lo. Para Raffaella, tal “barreira” seria
“difícil de transpor”, diante do já conhecido “viés punitivo” do órgão ministerial 215.

De fato, pelas experiências que eu mesmo já tive na justiça criminal brasileira –


enquanto funcionário do Tribunal de Justiça de São Paulo –, é fácil de se imaginar que o
Ministério Público, na maior parte dos casos, discordaria do encaminhamento da proposta ao
núcleo restaurativo, pois, de fato, possuem seus membros uma mentalidade altamente voltada
ao punitivismo e à rígida responsabilização do agente, sendo raros os casos em que o parquet
se mostra disposto a abrir mão de sua prerrogativa acusatória, mesmo quando haja dúvidas
sobre a procedência da acusação ou quando se tenha provado a insignificância do crime em
tese praticado.

Outro problema é o encaminhamento de documentos vindos do inquérito policial,


devendo-se tomar a precaução de que tais provas não sejam utilizadas para “tornar o processo
restaurativo um lugar de reprodução do processo penal”. Como bem prossegue Raffaella, a
intenção do procedimento restaurativo foge à adjudicação da culpa ao ofensor216.

Os arts. 5º e 6º tratam especificamente do núcleo restaurativo. O primeiro, fala do


espaço físico e a da estrutura, mas de forma bastante superficial, apenas assegurando que seja
o local “apropriado” e a estrutura “adequada”, com recursos materiais e humanos para o

215
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, pp. 182-183.
216
PALLAMOLLA. Op. cit., p. 183.

89
„funcionamento eficiente”. O seguinte, versa sobre a composição do núcleo, incluindo nele
uma “coordenação administrativa”, uma “coordenação técnica interdisciplinar” e uma “equipe
de facilitadores”, e afirmando que atuarão de forma cooperativa.

Em seus parágrafos, o art. 6º rege que caberá à coordenação administrativa o


gerenciamento do núcleo (par. 1º); à coordenação técnica a seleção, a capacitação e a
avaliação dos facilitadores, bem como a supervisão dos procedimentos (par. 2º); e incumbirá
aos facilitadores – “preferencialmente profissionais das áreas de psicologia e serviço social” –
o preparo e a condução do procedimento restaurativo (par. 3º).

Neste contexto, Raffaella entende que falta neste artigo a previsão específica de
que seja incentivada a capacitação de facilitadores vindos do ambiente comunitário, medida
aconselhável para que se aproxime a Justiça Restaurativa da sociedade, evitando que este
novo sistema seja visto como apenas “mais um serviço pertencente à estrutura judiciária”,
com pouca participação do cidadão 217.

O artigo sétimo arrola os procedimentos internos do núcleo restaurativo,


compreendendo: a) consultas às partes sobre a voluntariedade de participar do procedimento;
b) “entrevistas preparatórias com as partes, separadamente”; e c) encontros, propriamente
ditos, objetivando a resolução dos conflitos causados pelo delito. Tais previsões estão,
também, de acordo com as experiências internacionais e nacionais, como já visto no presente
trabalho – o que não impediria que tal artigo fosse mais detalhado, especificando, passo a
passo, cada secção do procedimento como um todo.

No art. 8º temos a previsão de que o procedimento abrangerá técnicas de


mediação pautadas nos princípios restaurativos, sem ao menos especificar alguns deles ou
mencionar a Resolução da ONU que detalha tais princípios. O nono, a sua vez, prevê o
respeito a, dentre outros, alguns princípios essenciais, como o da voluntariedade, o da
dignidade humana, da razoabilidade, da cooperação, da informalidade, da
interdisciplinariedade e do mútuo respeito. O princípio da confidencialidade merece destaque
(parágrafo único), mas, conforme aponta Raffaella, não se ocupa o projeto em destacar que tal
princípio também tem importância para evitar que os fatos abordados no núcleo possam vir a
prejudicar o ofensor numa eventual submissão posterior do caso ao processo penal formal 218.

217
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 182.
218
PALLAMOLLA. Op. cit., p. 184.

90
No art. 10, temos a previsão de que os programas e procedimentos deverão ser
apoiados pela rede social de assistência, no encaminhamento e acompanhamento das partes,
para que se viabilize a reintegração social dos envolvidos. Este artigo também demonstra a
concordância com aquilo que já estudamos, no sentido de ser indispensável o
acompanhamento das partes envolvidas no conflito, visando especificamente a
ressocialização, seja do ofensor, seja da vítima, com a ajuda dos membros da comunidade.

O artigo 11 traria a importantíssima inclusão, no art. 107 do Código Penal, da


previsão do cumprimento de um acordo restaurativo com uma das causas de extinção da
punibilidade – o que também vem ao encontro dos preceitos fundamentais da Justiça
Restaurativa. Já o art. 12 prevê o acréscimo de um inciso no art. 117 do mesmo Decreto-Lei,
incluindo entre as causas interruptivas da prescrição a homologação do acordo restaurativo até
seu efetivo cumprimento.

As alterações que aconteceriam no Código de Processo Penal estão previstas nos


arts. 13 e 14: o primeiro, prevê a possibilidade de a autoridade policial sugerir, no relatório do
inquérito, o encaminhamento das partes ao procedimento restaurativo – o que é perfeitamente
válido, já que o Delegado de Polícia é a primeira autoridade a ter contato direto com o caso,
numa fase inicial do processamento –; já o segundo, reza que o Juiz, com a anuência do MP,
poderia encaminhar os autos do inquérito, assim que recebidos, ao núcleo de Justiça
Restaurativa, desde que vítima e ofensor manifestassem, voluntariamente, a intenção de se
submeterem a tal procedimento, e também prevê que o Ministério Público pode deixar de
propor a ação penal enquanto o procedimento estiver em curso.

Apenas quanto a esta última questão cabe uma crítica, já que, novamente, usa-se
uma expressão não de obrigação legal, mas de opção (“Poderá o Ministério Público”), o que
traz certa insegurança jurídica e diminui a efetividade da Justiça Restaurativa. O correto seria
que, nos casos submetidos ao núcleo numa fase pré-jurisdicional, a denúncia apenas pudesse
ser oferecida após esgotados os meios restaurativos sem efetiva resolução, estando o MP
obrigado a aguardar a conclusão do procedimento alternativo.

O art. 15 introduziria também no CPP um novo artigo, o qual, a sua vez, preveria
que o curso da ação penal – agora, já em fase jurisdicional –, poderá ser suspenso quando
recomendável o uso de práticas restaurativas. Mais uma vez, temos o verbo “poderá”, o qual
não deveria ser utilizado na redação do novo artigo, pelos mesmos motivos por nós expostos
nos parágrafos acima. O texto correto para este dispositivo poderia ser assim redigido: “Art.
93-A. O curso da ação penal será também suspenso quando do encaminhamento do caso ao
91
uso de práticas restaurativas.”, de modo que a opção pela tratativa obstasse a possibilidade
de uma condenação em paralelo, no processo judicial.

Vem o artigo 16 tratar sobre o procedimento adotado nos núcleos de Justiça


Restaurativa. Tem o condão de incluir no Código de Processo Penal um novo capítulo, “Do
Processo Restaurativo”, com sete artigos de conteúdo procedimental, versando sobre a
recomendação de casos pelo juízo criminal, o funcionamento e configuração dos núcleos
restaurativos, o conteúdo do acordo restaurativo, a suspensão do procedimento, bem como a
homologação do acordo pelo juízo, que fica obrigado a tomá-lo como fundamento em sua
decisão final.

O Projeto de Lei também prevê a alteração dos arts. 62, 69 e 79 da Lei dos
Juizados Especiais: no primeiro, seria incluída, juntamente com as já previstas conciliação e
transação, a busca pelo uso de práticas restaurativas; no segundo, inclui-se a previsão de que a
autoridade policial poderia sugerir, no termo circunstanciado, o encaminhamento dos autos ao
procedimento alternativo; no caso do art. 79, o Projeto prevê a inclusão de um novo
parágrafo, rezando que, “em qualquer fase do procedimento de que trata esta Lei, o Ministério
Público poderá oficiar pelo encaminhamento das partes ao núcleo de Justiça Restaurativa”.

As previsões são perfeitamente válidas, mas, como bem critica Raffaella, a mera
inclusão de expressões ou previsões na Lei 9.099/05 “não parece ser suficiente para alterar o
caráter dos juizados especiais, sabidamente voltado para a economia processual e a celeridade
do processo”. Isso porque, a seu ver, a buscar por produtividade e celeridade pode surgir
como obstáculo à reparação da vítima e à opção pelo novo procedimento, que pode ser mais
demorado, mas que dá muito mais destaque ao diálogo e à participação das partes 219.

Quanto a isso, também é necessário alertar que o procedimento restaurativo não


tem como característica a celeridade, não podendo, portanto, ser transformado em instrumento
para reduzir a carga de processos dos tribunais, o que distorceria seus princípios em valores,
numa manobra utilitarista.

Após esta breve análise do texto sugerido no Projeto de Lei, podemos perceber
que ele não é completo, e carece de diversas alterações, algumas pontuais, outras cruciais, no
que se refere à aplicação prática da Justiça Restaurativa no Brasil.

Há diversas questões problemáticas, notadamente porque, em diversos momentos,


nota-se uma cautela exagerada, com muitas faculdades às autoridades judiciais, o que, como

219
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 189.

92
já dito, pode tornar irrisório o uso do procedimento restaurativo por conta da mentalidade
positivista destes autoridades.

Faz-se necessário o investimento em discussões, com a imprescindível


participação da sociedade, a respeito da institucionalização do modelo de Justiça Restaurativa
no Brasil. Conforme leciona Raffaella, é mesmo imprescindível a previsão legal de diversos
elementos, em razão de fatores como, dentre outros, a resistência institucional e a necessidade
de preservar os direitos e garantias dos participantes e de se evitar bis in idem. O que não se
pode aceitar, continua, é que a mera inclusão de dispositivos nas leis hoje vigentes resolvam
todos os problemas e tornem plenamente viável e efetiva a aplicação dessa nova justiça no
país220.

Por outro lado, é imprescindível a previsão de algumas questões em Lei, como


quais os tipos de crimes ou contravenções podem ser tratados fora dos Tribunais de Justiça,
quais os limites temporais entre o delito e os marcos do processo restaurativo para que a
opção ainda seja viável, e quais as consequências das diferentes modalidades de programas
restaurativos, e os efeitos de seu acordo.

PARECER DA COMISSÃO DE CONSTITUCIONALIDADE E


JUSTIÇA E DE CIDADANIA

Emitido em 10 de novembro de 2009, o parecer da CCJC da Câmara dos


Deputados certamente foi um golpe cruel para aqueles que acreditam na viabilidade da
aplicação institucionalizada da Justiça Restaurativa no Brasil.

Segue o parecer, na íntegra221:


COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO E JUSTIÇA E DE CIDADANIA
PROJETO DE LEI Nº 7.006, DE 2006.
Propõe alterações no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, do
Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, e da Lei nº 9.099, de 26 de
setembro de 1995, para facilitar o uso de procedimentos de Justiça
Restaurativa no sistema de justiça criminal, em casos de crimes e
contravenções penais.
Autor: Comissão de Participação Legislativa

220
PALLAMOLLA. Justiça Restaurativa: Da Teoria à Prática, p. 192.
221
BISCAIA, Antonio Carlos. Parecer disponível online, em documento “PDF”, no website da Câmara dos
Deputados: <http://www.camara.gov.br/ proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=323785>. Acesso em
28/9/2011.

93
Relator: Deputado Antonio Carlos Biscaia
I - RELATÓRIO
Trata-se de Projeto de Lei da Comissão de Legislação Participativa, com o
intuito de incorporar ao ordenamento jurídico nacional procedimentos de
“Justiça Restaurativa”.
É proposição sujeita à apreciação do Plenário, distribuída a essa comissão
para análise de constitucionalidade, juridicidade, técnica legislativa e
mérito.
II - VOTO DO RELATOR
Trata-se de projeto de lei alterando a legislação penal, daí ser a
competência da União (CF. art. 22, I) e do Congresso Nacional (CF, art.
48), sendo a iniciativa concorrente (CF, art. 61). Não se vislumbra no
projeto nenhuma ofensa a princípio constitucional, em especial, às cláusulas
pétreas relativas ao direito penal e processual penal.
Primeiramente, esclarecemos que esse procedimento visa a uma solução
negociada entre o autor do delito, a vítima e representantes da comunidade,
com o objetivo de demonstrar ao primeiro as consequências e aos últimos as
razões da conduta delituosa. Dessa forma, esperam os defensores desses
procedimentos resolverem os problemas da criminalidade.
São esses os termos do Projeto de Lei sobre o procedimento de Justiça
Restaurativa:
„Art. 2º. Considera-se procedimento de Justiça Restaurativa o conjunto de
práticas e atos conduzidos por facilitadores, compreendendo encontros
entre a vítima e o autor do fato delituoso e, quando apropriado, outras
pessoas ou membros da comunidade afetados, que participarão coletiva e
ativamente na resolução dos problemas causados pelo crime ou pela
contravenção, num ambiente estruturado denominado núcleo de Justiça
Restaurativa.
Art. 3º. O acordo estabelecerá as obrigações assumidas pelas partes,
objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das pessoas
envolvidas e afetadas pelo crime ou pela contravenção.‟
Se do ponto de vista formal e material nenhuma mácula pode-se atribuir ao
Projeto, o mesmo não se pode afirmar de seu mérito, especialmente, quanto
à oportunidade.
O País passa por um período de sentimento de impunidade, com grande
produção legislativa com o objetivo de criminalizar condutas e agravar

94
penas. Esse projeto, por sua vez, caminha em sentido contrário,
despenalizando condutas.
Na forma apresentada, não se trata de medida apenas despenalizadora, pois
isto o Legislador já o fez ao aprovar a Lei de Juizados Especiais, mas de
medida que retira das autoridades envolvidas com a persecução penal a
proximidade e o contato direto com o infrator, deixando esta função a
representantes da comunidade.
Observa-se, ainda, que, na forma apresentada, o Projeto possibilita ao
intérprete estender o benefício a condutas que o Legislador hoje não
pretende, ou seja, condutas que não possam valer-se do processo
sumaríssimo dos juizados especiais.
Por fim, é preciso ressaltar que a criação do instituto da transação penal e
da suspensão processual ou “sursis” processual no âmbito da justiça
criminal representou um grande avanço jurídico em nosso país.
Neste sentido, o que se faz necessário e urgente para o aprimoramento dos
juizados especiais e, por conseguinte, uma maior efetividade na aplicação
dos dois institutos inovadores já citados é um maior investimento do Estado
naqueles órgãos, com incremento do número de juízes e servidores, além é
claro de uma melhor estrutura de trabalho. Feito isto pelo Estado, os
juizados especiais certamente desempenhariam papel de suma importância
na solução dos conflitos de menor potencial ofensivo no âmbito criminal.
Ante o exposto, o parecer é pela constitucionalidade, juridicidade,
inadequada técnica legislativa, e, no mérito, pela rejeição do PL nº 7.006,
de 2006.
Sala da Comissão, em 10 de novembro de 2009.
Deputado Antonio Carlos Biscaia
Relator.

Ora, o que se pode ver do voto do Relator, o Deputado Antonio Carlos Biscaia, é
que a proposta de arquivamento foi baseada na suposta impertinência do projeto, dando-se
como razão principal o fato de o país passar “por um período de sentimento de impunidade,
com grande produção legislativa com o objetivo de criminalizar condutas e agravar penas”.

Os fundamentos do Deputado relator tentam demonstrar o receio de, em tese, toda


uma sociedade, de que o fato de o projeto despenalizar condutas e supostamente afastar o
judiciário do caso concreto, entregando a função a representantes da comunidade, venha a
trazer descontrole jurídico no país e aumentar a sensação de insegurança.

95
O Deputado ainda aponta que o Brasil avançou na questão penal, com a recente
inclusão da suspensão processual e do sursis, entendendo não haver necessidade e nem
oportunidade para que se invista no sentido da despenalização, já que, a seu ver, também os
juizados especiais – desde que recebam maior investimento em estrutura e pessoal – são
suficientes para solucionar os conflitos de menor potencial ofensivo no âmbito criminal.

Decerto, tal parecer foi exarado sem o necessário aprofundamento nas questões
teóricas e práticas da Justiça Restaurativa, sem ao menos levar em conta a possibilidade de
sua aplicação. Do modo que escreveu o relator, um leigo poderia entender que a intenção da
Justiça Restaurativa é de simplesmente despenalizar condutas, relegando às comunidades a
resolução dos conflitos, o que aumentaria a impunidade e recrudesceria a violência pelas ruas
do país. E isto não é verdade!

Sabemos muito bem, após tão aprofundado estudo, que os resultados


restaurativos, na prática, tem o condão inverso: reduzir a criminalidade e a reincidência
através do tratamento do delito de maneira dialogada e comunitária, distribuindo as
responsabilidades e proporcionando reinserção, retratação e conscientização aos envolvidos.

Nota-se, ainda, um toque daquela influência midiática de que já tratamos aqui. O


relator invoca o clamor social pela punição e pelo endurecimento das penas como se tal fosse
motivo hábil a afastar a Justiça Restaurativa de nosso ordenamento. Tal fala demonstra que o
representante esquivou-se de iniciar um debate coerente e honesto a respeito da nova
proposta, e teve verdadeiro medo da opinião pública, por talvez entender que se votasse pelo
prosseguimento da proposta, teria sua imagem prejudicada por ser visto como favorável ao
crime ou à impunidade.

E mais, sequer preocupou-se o relator de pesquisar experiências práticas de


Justiça Restaurativa no Brasil ou fora dele. Decerto, não sabe da existência de uma Resolução
exarada pela ONU, órgão internacional máximo, que recomenda a adoção desta forma de
justiça, inclusive orientando os Estados a “empreenderem esforços na formulação de
estratégias e políticas nacionais objetivando o desenvolvimento da Justiça Restaurativa”, e
incentivando-os a trocarem informações sobre as práticas de justiça restaurativas adotadas ao
redor do mundo.

Como já vimos, e importa ressaltar, a Justiça Restaurativa nada tem a ver com
conivência com o crime ou com a impunidade, nem mesmo tem o condão de afastar a
responsabilidade do ofensor, pelo contrário: por uma via dialogal, intenta chegar a um acordo,

96
com a efetiva responsabilização do autor do delito, atrelada à reparação à vítima, bem como a
reinserção social dos envolvidos, sempre evitando o resultado prisão, como já dito, altamente
maléfico aos indivíduos e à comunidade como um todo.

A opinião do Relator – semelhantemente à de muitos leigos e mesmo estudiosos


do direito que não se preocupam em enxergar uma realidade patente – é pautada na ideia de
que a restrição de liberdade é e deve continuar sendo a pena padrão no país, e vai no sentido
de que a única solução para a impunidade e para a criminalidade é o endurecimento das penas
e a aplicação de uma verdadeira higienização na sociedade.

A boa notícia é que, desde 2009 engavetado, o projeto foi desarquivado na


Câmara, após requerimento datado de 23 de março do presente ano, de lavra do Deputado
Vitor Paulo (PRB-RJ), atual presidente da Comissão de Legislação Participativa 222.

Esperamos que, nesta nova oportunidade que será dada ao Projeto, busquem-se
mais diálogo e participação, e que realmente o tema seja colocado sobre as mesas de debates e
discussão da Câmara, convidando-se, principalmente, juristas e estudiosos do assunto, bem
como operadores deste sistema, sejam brasileiros ou estrangeiros, que possam colaborar com
a discussão acerca do tema, de um modo construtivo e que torne viável a aplicação deste novo
modelo de justiça no Brasil, de forma institucionalizada.

222
Inteiro teor do documento disponível online, no website da Câmara dos Deputados, em <
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=8D3CF6DF807E22EBE7D398913
DECD2FC.node1?codteor=853507&filename=Tramitacao-PL+7006/2006>. Acesso em 29/8/2011.

97
7. CONCLUSÃO

Em que pese alguns anos já tenham se passado desde suas experiências pioneiras,
o impacto da Justiça Restaurativa no contexto brasileiro ainda é difícil de ser avaliado, não
havendo como prever até que ponto chegaremos com esse novo modelo, se ele será,
finalmente, institucionalizado, ou se, na contramão de tantos outros países, será esquecido e
rechaçado pelo Poder Legislativo e pela sociedade leiga, por incredulidade, ceticismo ou
meras resistências a algo que fuja do padrão paradigmático retribucionista.

Será necessário, evidentemente, um intenso trabalho de conscientização,


esclarecimento e sensibilização de toda a comunidade no sentido de que é a Justiça
Restaurativa um meio apto a cooperar na Justiça Criminal brasileira, e, de maneira alternativa,
reduzir a criminalidade, a reincidência, a superlotação dos presídios, dentre outros problemas
já tratados neste escrito.

Um marco legal regulatório é imprescindível para que se tracem regras básicas


para a aplicação dos mecanismos restaurativos no Brasil, bem como para que se resolva a
questão da convivência entre o modelo tradicional e o alternativo num mesmo contexto
jurídico. No entanto, como já visto, uma lei nesse sentido deve ser resultado de debate e
participação da comunidade, bem como de aprofundados estudos de viabilidade, visando a
entender as particularidades de cada estado ou região brasileiros, dando-se certa liberdade
para que cada projeto possa se adaptar às necessidades da comunidade na qual esteja inserido.

Quanto a isso, deve-se tomar como base a Resolução da ONU 2002/12, que
detalhadamente explica e esclarece o que é e como funciona a Justiça Restaurativa, seus
procedimentos e resultados. Deve-se, principalmente, dar ouvidos aos apelos constantes do
referido documento, que conclama os Estados-membros a cooperarem em pesquisa e
capacitação, fomentando o intercâmbio de experiências no desenvolvimento de programas
restaurativos, bem como reconhece a Justiça Restaurativa como uma resposta mais digna e
proporcional ao crime, notadamente por viabilizar o diálogo e promover a harmonia na
comunidade.

O Projeto de Lei que tramita na Câmara dos Deputados tem seus méritos, mas
também carece de algumas alterações, as quais, esperamos, podem ser realizadas desta vez, já

98
que tal proposta foi desarquivada e será novamente apreciada pelas Comissões que integram a
Casa Legislativa223.

De fato, como afirmam diversos doutrinadores, as conhecidas vantagens do


sistema restaurativo não podem permitir sua aplicação desenfreada e desregulada, devendo
ser, sua implementação, aplicada e acompanhada com cautela, seguindo-se critérios de
avaliação de viabilidade e de resultados práticos, visando uma constante melhoria no sistema.

Como visto, também, é necessário que se costure uma Justiça Restaurativa com
características próprias à realidade brasileira e latino-americana, considerando nossa situação
de país em franco desenvolvimento, com questões a serem resolvidas principalmente na
questão da desigualdade social, que é um dos fatores que impulsionam o aumento constante
da criminalidade.

A Justiça Restaurativa viria exatamente para corrigir estes desvios, atuando lado a
lado com a justiça criminal tradicional, mas sem, contudo, atingir os resultados agressivos que
esta normalmente impõe: penas aviltantes, a serem cumpridas em estabelecimentos prisionais
de estrutura precária, abarrotados de seres humanos que, via de regra, sairão do sistema para
retornarem em seguida, reincidindo no crime, por falta de tratamento adequado a sua
necessidade.

O que se aguarda é que o modelo de Justiça Restaurativa brasileiro surja como


produto de debates e discussões em fóruns apropriados, com garantia de participação da
sociedade na concepção de um programa desenvolvido para funcionar e ser legitimado neste
país de tantas injustiças, onde são visíveis a falência do sistema de justiça criminal tradicional
e, consequentemente, o recrudescimento da criminalidade, tudo isso diante de um sistema de
justiça criminal obsoleto, ineficaz e, patentemente, deslegitimado.

Cremos, enfim, ser plenamente possível a instauração desta nova justiça no Brasil,
como questão não só de justiça, mas de política pública, viabilizando-se uma modalidade
efetivamente participativa de justiça, livre dos preconceitos e das mazelas historicamente
institucionalizados no Judiciário, e abrindo-se um novo caminho rumo ao real respeito aos
direitos humanos e à dignidade da pessoa.

223
As informações e andamentos estão disponíveis online, no website da Câmara dos Deputados:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=323785>.

99
“A Justiça Restaurativa é uma luz no fim do túnel da angústia de nosso
tempo, tanto diante da ineficácia do sistema de justiça criminal como da
ameaça de modelos de desconstrução dos direitos humanos [...] e
representa, também, a renovação da esperança.”224

224
PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é Possível no Brasil? In: SLAKMON, C.; DE VITTO,
R.; PINTO, R. Gomes (organizadores). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2005, p. 21. (grifo nosso)

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