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pela filosofia
EL
cujas peças maiores são Kolyma e Auschwitz, nossos filósofos, tomando o século em suas
costas, e fi.nalmente os séculos dos s éculos desde Platão, decidiram confessar-se culpados.
Nem os cientistas, tantas vezes postos na berlinda, nem os militares, nem mesmo os poJfticos,
considera- ram que os massacres do século afetavam de modo durável sua corporação. Os
detenninação do nazismo, do nazismo como política por exem- plo, seja subtraída, de direito, à
transitiva a seu pensamento de professor hermeneuta? Posturar que a filosofia faz- só ela -a
contabilidade dos avatares, sublimes ou repugnantes, da p o- lítica do século, é algo como a astúcia
da razão hegeliana até o mais íntimo do dispositivo de nossos anti-dialéticos. É postular que existe
um espírito do tempo, uma determínação essencial, da qual a filosofia é o princípio de captura e de
concentração. Comecemos melhor por imaginar que, por exemplo, o nazismo não é, como tal, um
objeto possível da filosofia, que ele não caiba dentro das condições que o pensamento filosófico é
capaz de con- figurar em sua ordem própria. Que ele não é um evento parà esse pensamento. O
que de modo algum significa que ele seja impensável.
Pois é quando o orgulho vira carência perigosa que nossos filósofos, do axioma que imputa à
filosofia a carga dos crimes do século, tiram as conclusões conjuntas do impasse da filosofia e do
caráter impensável do crime. Para quem supõe que é do ponto do pensamento de Heidegger que
devemos filosoficamente dar conta do extermínio dos judeus da Europa. o impasse é, com efeito,
flagrante. Podem safar-se dessa expondo que ali há algo de impensável, de inexplicável, um
entulho para qualquer con- ceito. Prestes a sacrificar a própria filosofia para lhe salvar o orgulho:
pois que a filosofia deve pensar o nazismo, e que ela não tem competência para isto, ,é porque o
que ela deve pensar é impensável, e a filosofia está no passe de um impasse.
Proponho sacrificar o imperativo e dizer: se a filosofia é incapaz de pensar o extermínio dos judeus
da Europa, é porque não é seu dever nem está em seu poder pensá-lo. É que cabe
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MANIFESTO PELA FILOSOFIA
a uma outra ordem de pensamento t ornar efetivo esse pensamento. Por exemplo, ao pensamento
da historicidade, quer dizer, 'da His- tória examinada do ponto da política.
Jamais é realmente modesto enunciar um "fim", um tér- mino, um impasse radical. O anúncio do
"fim das grandes nar- rativas" é tão imodesto quanto a própria grande narrativa, a certeza do ''fim da
metafísica'' se move no elemento metafísico da cer- teza, a desconstrução do conceito de sujeito
exige uma categoria central - o ser, por exemplo - cuja prescrição historiai é ainda mais
determinante, etc. Transida pelo trágico de seu objeto su- posto - o extermínio, os campos de
concentração - a filosofia transfigura sua própria impossibilidade em postura profética. Ela se orna
com as cores sombrias do tempo, sem levar em conta que essa estetização, também ela, é uma
injustiça feita às víti- mas. A prosopopéia contrita de abjeção é tanto uma postura, tanta imposrura,
quanto a cavalaria corneteira da parousia do Espírito. O fim do Fim da História é talhado no mesmo
pano desse Fim. Uma vez delimitado o desempenho da filosofia, o patos de seu "fim" dá lugar a
uma bem outra questão que é a de suas condições. Eu não sustento que a filosofia seja a todo
instante possível. Proponho examinar, em geral, sob que condições ela o é, na conformidade com
sua destinação. Que as violências da história a possam interromper, é o que não se deve deixar
acreditar-se sem exame. É conceder uma estranha vitória a Hi- tler e seu esbirros declarar que eles
foram capazes de ter metido o impensável, de uma vez por todas, dentro do pensamento, e de ter
assim concluído a cessação de seu exercício arquiterurado. Ao anti-intelectualismo fanático dos
nazistas .. devemos nós, de- pois de seu arrasamento militar, oferecer a revanche de que o próprio
pensamento, poHtico ou filosófico, ficou de fato sem jeito de dar conta daquilo que se propunha
anulá-lo? Digo isto como o estou pensando: seria fazer morrer os judeus uma segunda vez se sua
morte fosse causa do fim daquilo para o que eles, deci- sivamente, contribuíram: política
revolucionária por um lado, por outro lado filosofia racional. A mais essencial piedade para
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POSSIBILIDADE
com as vítimas não pode residir no estupor do espfrito, em sua vacilação auto-acusadora face ao
crime. Ela reside, sempre, na continuaçao d aquilo que os designou como representantes da Hu-
manidade aos olhos do carrasco.
Afirmo não somente que a filosofia é hoje possível, mas também que essa possibilidade não tem a
forma da travessia de um fim. Trata-se, muito pelo contrário, de saber o que quer di- zer: dar um
passo a mais. Um só passo. Um passo na configu- ração moderna, essa que, depois de Descartes,
liga às condições da filosofia os três conceitos nodais que são o ser, a ver<tade e o sujeito.
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ela fosse pensávet Me- nos ainda esses procedimentos terão existido desde sempre em conjunto. Se a
poema, ou por- que o velamento da Presença lhe fosse familiar à guisa de uma proposição esotérica
sobre o Ser. Muitas outras civilizações an- tigas procederam ao depósito sacro do ser no proferimento
uito mais a de ter inte"ompido a narrativa das origens pela
po- ético. A singularidade da Grécia é m
proposição laicizada e abstrata, de ter ferido o prestígio do poema com o do materna, de ter con- cebido
a Cidade como um tema aberto, disputado, vacante, e de ter trazido à cena pública as tempestades da
paixão.
A primeira configuração filosófica que se propõe a dispor esses procedimentos, o conjunto desses
procedimentos, num es- paço conceitual único, atestando assim no pensamento que eles são
compossíveis, é a que leva o nome de Platão. c c Aqui não entra quem não for geômetra'', prescreve o
materna como con- dição da filosofia. A dolorosa dispensa dos poetas, banidos da -..... Cidade por causa
bem conhecida: quem pode citar um único enunciado filosófico sobre o qual se faça sentido dizer
imperativo, os referentes axiais de um es~ço de pensamento do qual o termo " .dialética"
designa a função de exercício. Como as matemáticas e a política podem ser ontologicamente
compossfveis? Tal ~ a questão platônica à qual o operador da Idéia vai fornecer. uma
vecção resolutiva. A poesia vai, de chofre, ver-se posta sob sus- peição - mas esta suspeita 6
uma forma aceitável de configu- ração - e o amor vai, segundo a própria expressão de
Platão, ligar o ''repentino'' de u m encontro ao fato de que uma verdade - aqui a da Beleza -
advém como indiscernível, não sendo nem ·discurso (logos) nem saber (episteme).
Conviremos em chamar "período" da filosofia uma se- qüência de sua existência em que
conceitos é um bom testemunho desse desloca- mento entre a ordem cartesiana das razões, o patos
temporal do conceito em Hegel e a metaforização metapoética de Heidegger. De qualquer modo,
esse deslocamento não deve dissimu- lar a invariância, ao menos até Nietzsche, mas prosseguida e
es- tendida por Freud e Lacan como por Husserl, do tema do Sujeito. Este tema ·só sofre uma
desconstrução radical na obra de Hei- degger e de seus sucessores. As refundições às quais ele é
sub- metido pela política marxista como pela psicanálise (a qual é o tratamento moderno da
condição amorosa) dependem da histo- ricidade das c ondiç~e não. da invalidação do operador
filosó- fico que trata essa historicidade.
É portanto cômodo definir o período moderno da filosofl3 pelo uso organizador central que nele é
feito da categoria d.e..Su- jeito. Embora esta categoria não prescreva um tipo de configu- ração, um
regime estável da compossibilidade, ela basta para o que conceme à formulação da questão: o
período moderno da filosofia já acabou? O que é o mesmo que dizer: propor para nosso tempo um
espaço de compossibilidade, em pensamento, das verdades que nele se prodigalizam, será que isso
exige a ma- nutenção, e o uso, mesmo p rofundamen~ alterado, ou subver- tido, da categoria de
Sujeito? Ou, ao contrário, nosso tempõ é aquele onde o pensamento exige que essa categoria seja
descons- trufda? A esta questão Lacan responde por um remanejamento radical de uma categoria
mantida (o que significa que, para ele,
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MANIFESTO PELA FILOSOFIA
· o período moderno da filosofia continua, a qual é também a pers- pectiva de Jambet, de Lardreau e
a minha). Heidegger (mas tam- bém DeJeuze com algumas nuances, Lyotard, Derrída,
Lacoue-Labarthe e Nancy finnemente) responde que nossa época é aquela onde "a subjetividade é
empurrada para seu término", que conseqüentemente o pensamento só pode terminar. para além desse
"término" que não é outra coisa senão a objetivação des- trutiva da Terra, que a categoria de Sujeito
deve ser desconstru- ída e tida como último avatar (moderno, precisamente) da metafísica; e que o
dispositivo filosófico do pensamento racio- nal, do qual essa categoria é o operador ·central, está a
partir desse ponto mantido n o esquecimento sem fundo daquilo que o funda, que ''o pensamento só
começará quando tivermos apren- dido que essa coisa tão magnificada por séculos, a Razão, é o
inimigo mais encarniçado do pensamento''.
Será que ainda somos, e a que título, ga1ileanos e carte- sianos? Razão e Sujeito, será que ainda estão,
ou não, aptos a servir de vetor às configurações d a filosofia, inesmo se o sujeito é descentrado .ou
vazio, e a razão submetida ao acaso extranu- merário do evento? Será que a verdade é o
não-velamento velado cujo risco só o poema acolhe em palavras? O u será. que ela é aquilo pelo que a
filosofia designa, em seu espaço próprio, os procedimentos genéricos disjuntos que trançam a
continuação obs- cura dos Tempos modernos? Devemos nós continuar, ou deter, a meditação de uma
espera? Tal é a única questão polêmica sig- nificativa hoje em dia: decidir se a forma do pensamento
do tempo, filosoficamente instruída pelos eventos do amor, do poema, do materna e da política
inventada, permanece, ou não, apegada a essa disposição que Husserl ainda chamava de "meditação
car- tesiana''.
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4. Heidegger visto corno lugar comum
O que é que diz o ~eidegger " corrente", aquele que or- ganiza uma opinião? Ele diz isto:
1) O rosto moderno da metafísica, tal como ela se articu- lou em tomo da categoria de ~ujeito, está
na época de seu tér- mino. O verdadeiro sentido da categoria de Sujeito se mostra no processo
universal de objetivação, processo cujo nome apro- priado é: o reino da técnica. O devir-sujeito
de subjugar o ente na sua totalidade. A técnica é a vontade de arrazoamento e de domínio sobre
único .. conceito" de ser que a técnica conhece é o de matéria prt11Ul, proposta sem restrições à
a t écnica, não
que a vontade de nadificação. A destruição total da Terra é o horizonte necessdrio d
pela razão particular de que exista tal ou qual prática, militar por exemplo, ou nuclear, que institua
esse risco, mas porque é da essência da técnica mobilizar o ser, brutalmente tratado como s,imples
reserva de disponibili- dades pelo querer, na forma latente e essencial do nada.
Nosso tempo é então nihilista, tanto se o interrogamos no que diz respeito ao pensamento, quanto se o
interrogamos no que diz respeito ao destino do ser que ele desenvolve. No que diz respeito ao
pensamento, nosso tempo dele se desvia pela ocul- tação radical da eclosão, do deixar-ser que
condiciona seu exer- . cício, e do reino sem; partilha do querer. No que diz respeito ao ser, qosso
tempo o vota à nadificação, ou melhor: o próprio ser está no p as~e de sua pro-posição como nada, uma
vez que, retirado e subtraído, ele s6 se prodigaliza no fechamento da matéria-prima, na
disponibilidade técnica de um fundo sem fundo.
4) Na idade moderna (aquela em que o homem se toma Sujeito e o mundo objeto porque está se
estabelecendo o reino da técnica), depois no nosso tempo, o da técnica objetificadora desencadeada,
só alguns poetas pronunciaram o ser, ou pelo me- nos as condições de um retomo do pensamento, fora
da prescrição subjetiva do querer técnico, à eclosão· e ao Aberto. A palavra poética, e só ela, ecoou
como possível f urulaçao d e um recolhi- mento do Aberto, contra a disponibilidade infinita e fechada
do ente que a técnica esgota. Esses poetas são Hoelderlin, o insu- perável, depois Rilke e Trakl. O
dizer poético desses poetas f u- f01H> tecido do esquecimento e deteve, preservou, não o próprio ser,
cujo destino historiai se completa no desamparo do nosso tempo, mas a q uestllo do ser. Os poetas
foram os pastores, os zeladores dessa questão que o reino da técnica torna universal- mente
impronunciável.
5) A filosofia tendo terminado, o que resta é somente re- -pronunciar a questão da qual os poetas têm
a guarda, e notar
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MANIFESTO PELA FILOSOFIA
como essa questão ecoou no curso inteiro da história da filosofia desde suas origens gregas. O
pensamento está hoje sob a con- diçllo dos poetas. Sob esta condição, ele se volta para a inter-
pretação das origens d a filosofia. para os primeiros gestos da metafísica. Ele vai procurar as chaves
de seu próprio destino, as chaves de seu próprio término efetivo, no p rimeiro passo d o
esquedmento. Este primeiro passo do esquecimento é Platão. A análise da "virada" platônica,
quanto ao vínculo do ser e d a verdade, comanda a apreensão do destino historiai do ser, o qual
termina sob nossos olhos na provocação à nadificação. O coração dessa ''virada'' é a interpretação
da verdade e do ser corno Idéia, quer dizer, a rescisão do poema em proveito do materna - como
digo em minha linguagem. A interrupção platônica da narrativa poética e metafórica pelo
paradigma ideal do materna, Heídeg- ger a interpreta como a orientação inaugural do destino do
ser no sentido do esquecimento de sua eclosão, quando ela se larga de sua apropriação inicial pela
língua poética dos Gregos. Pode· -se então também dizer que remontar às origens, tal como isto
recebe hoje sua condição do dizer dos poetas, retoma ao dizer dos poetas gregos, dos
pensadores-poetas pré-platônicos que sus- tentavam então a tensão da abertura e da eclosão velada
do ser.
6) O triplo movimento do pensamento é então: tomar a condição no dizer dos poetas, remontar
interpretativarnente à vi- rada platônica que comanda a época .metafísica do ser, fazer a exegese
da origem pré-socrática do pensamento. Este triplo mo- vimento permite enunciar a hipótese de
um retorno dos Deuses, d e um e vemo no qual o perigo mortal ao qual o querer nadifi- cante expõe o
homem - esse funcionário da técnica - seria su- perado ou conjurado por urna espécie de a brigo d o
ser, uma re-exposição ao pensamento de seu destino como abertura e eclosão, e não como fundo
sem fundo de disponibilidade do ente. Esta suposição de um retomo dos Deuses pode ser
enunciada p elo pensamento que os poetas instruem, ela não pode eviden- temente ser a nu~ciada.
Dizer que ''só um Déus pode nos sal-
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HEIDEGGER VISTO COMO LUGAR COMUM
var .. tem por sentido: o pensamento instruído pelos .poetas, educado pelo conhecimento da virada
platônica, renovado pela interpretação dos pré-socráticos gregos, pode sustentar, no co- ração do
nihilismo, a possibilidade sem vias nem meios dizíveis de uma re-sacralização da Terra. "Salvar"
não está aqui na acepção mole de um suplemento de alma. "Salvar" quer dizer: desviar o homem e
a terra da nadificação, nadifiçação que na terminal figura técnica de seu destino o ser tem como ser
o que- rer. O
Deus de ·que se trata é aquele do desvio de um destino. Não
se trata de salvar a
alma, mas de salvar Q ser, e de salvá-lo daquilo que unicamente pode pô-lo em perigo, e que é ele
pró- prio na implacável prescrição terminal de sua historicidade. Esta salvação no ser de si mesmo
por si mesmo impõe que se vá ao cume do desamparo, portanto ao cume da técnica, para arriscar o
desvio, pois é no extremo do perigo que cresce também o que salva.
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5. Nihilismo?
Nós não admitimos que o termo "técnica''. mesmo o fa- zendo ressoar com o grego tE'XV'l, seja
capaz de designar a es· sência de nosso tempo, nem que haja alguma relação, útil ao pensamento,
entre "reino planetário da técnica" e ''nihilismo". · As meditações, suputações e diatribes sobre a
técnica, por mais disseminadas que sejam, não são menos uniformemente ridícu- las. E é preciso
dizer bem alto o que muitos heideggerianos re- finados pensam baixinho: os textos de Heidegger
sobre este ponto não escapam de modo algum a essa ênfase. o " caminho do bos- que", o olho claro
do camponês, a devastação da Terra, o en- raizamento no sítio natural, a eclosão da rosa, todo esse
patos, desde Vigny ("nesse touro de ferro que fuma e resfolega, o ho- mem montou cedo demais")
até nossos publicitários, passando por Georges Duhamel e Gíono, só é tecido de nostalgia reacio-
nária. O caráter estereotipado dessas ruminações que vêm disso que Marx chamava de "socialismo
feudal", é de resto a melhor prova de seu pouco sentido pensável.
Se eu fosse dizer algo sobre a técnica, cuja relação com as exigências contemporâneas da filosofia
é tão magra, seria bem mais lamentar que ela seja ainda tão medíocre, tão tímida. Tan- tos
instrumentos úteis ainda faltam, ou só existem em versões pesadas e incômodas! Tantas aventuras
maiores não avançam, ou dependem do "a vida é muito devagar", vejam a exploração
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MANIFESTO PELA FILOSOAA
dos planetas, a energia por fusão termonuclear, a máquina vo- adora para todos, as imagens em
relevo no espaço ... Sim, é pre- ciso dizer: ''Senhores Técnicos, ainda mais um esforço, se querem
verdadeiramente o reino planetário da técnica!'' Nada de técnica bastante, uma técnica ainda muito
tosca~ esta é a verdadeira si- tuação: o reino do capital freia e s!ímplífica a técnica, cujas vir-
tualidades são infinitas.
Aliás, é inteiramente inconveniente apresentar a ciência como do mesmo registro, quanto ao
pensamento, que a técnica. Há certamente entre ciência e técnica uma relação de necessi- dade,
mas esta relação não implica nenhuma comunidade de es- sência. Os enunciados que anunciam a
"ciência moderna" como efeito, s e não efeito principal, do reino da técnica, são i ndefe~ sáveis. Se
consideramos, por exemplo, um grande teorema da matemática moderna, digamos, porque me
interessa, o que de- monstra a independência da hipótese do contínuo (Cohen, 1 963~, encontramos
nele uma concentração de pensamento, uma beleza inventiva, uma surpresa do conceito, uma
ruptura arriscada, para dizer tudo: uma estética intelectual, que podemos, se quisermos, aproximar
dos maiores poemas deste século, ou das audácias político-militares de um estratego
revolucionário. ou das emoções mais intensas do encontro amoroso, mas não certamente de um
moedor elétrico de café ou de uma televisão a cores, por mais úteis e engenhosos que sejam estes
objetos. A ciência, enquanto ciência,. quer dizer. apreendida em seu procedimento de verdade, é de
resto profundamente inútil, a não ser por afirmar o pensa- mento como tal, de maneira
incondicionada. Este enunciado dos Gregos (a inutilidade da ciência, senão como exercício puro e
condição genérica do pensamento), não há que revisá-lo, mesmo sob o pretexto falacioso de que a
sociedade grega era escrava- gista. O dogma da utilidade acaba sempre como escusa para que não
se queira verdadeiramente, o que se chama querer, a inuti- lidade para todos.
No que diz respeito ao "nihilismo", admitiremos que nossa época é sua testemunha. na exata
medida em que entendemos
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NIHILISMO?
por nihilismo a ruptura da figura tradicional d o v inculo, o des- ligamento como forma de ser de
tudo que faz semblante de vín· cuJo. É indubitável que nosso tempo se sustenta numa espécie de
atomística generalizada, porque nenhuma sanção simbólica do vínculo está em condições de resistir à
potência abstrata do capital. Que tudo que é amarrado s e verifica que, enquanto ser, é desligado,
que o reino do múltiplo é o fundo sem fundo~ do que se apresenta sem exceção, que o Um é apenas o
resultado de operações transitórias, eis o efeito inelutável da arrumação universal dos termos de nossa
situação no movimento circulante do equivalente geral monetário. Como o que se apresenta tem
sempre uma substância temporal, e o tempo nos é, no sentido . literal, c ontado, nada existe que seja
intrinsecamente amarrado a outra coisa, pois que um ou outro termo dessa suposta ligação essencial
são projetados indiferentemente na superfície neutra da conta. Não há nada absolutamente a retomar
na descrição dada · deste estado coisas por Marx há cento e quarenta anos:
"Por toda parte onde a burguesia conquistou o poder, ela espezinhou as relações feudais, patriarcais,
idílicas. Todos os laços complexos e variados que unem o homem feudal a seus superiores naturais,
ela os rompeu sem piedade para não deixar subsistir outro vínculo, entre homem e homem, senão o
frio in- teresse, as duras exigências do pagamento em dinheiro contado. Ela afogou os tremores
sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, da sentimentalidade pequeno·burguesa, nas
águas geladas do cálculo egoísta''.
O que Marx põe em evidência é , muito particularmente; o fim das figuras s agradas d o vínculo, a
perempção da garantia simbólica acordada ao vínculo pela estagnação produtiva e mo- netária. O
capital é o dissolvente universal das representações sacralizantes, que postulam a existência de·
relações intrínsecas e essenciais (entre o homem e a natureza, entre os homens, entre os grupos e a
Cidade, entre a vida mortal e a vida eterna, etc.). É muito característico que a denúncia do "nihilismo
técnico" seja sempre correlata da nostalgia de tais relações. O desapare-
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MANIFESTO PELA FILOSOFIA
cimento do sagrado é um tema recorreQ.te no próprio Heidegger. e a predição de seu retomo
acesso se abra ao pensamentO. É eviden- temente a única coisa que podemos e devemos
completa barbárie, não deve dissimular sua virtude propriamente ontológica. A que devemos
que a filosofia parece nele sofrer um eclipse. A principal dessas suturas foi a sutura positivista, o
u
tempo latente e central é, de fato, que a polftíca nao depende de modo algum do pensa-
algodão hidrófilo para as feridas e mossas da brutalidade ca- pitalista. Em sua forma canônica
duas suturas, com a política e com a ciência. De resto, é a rede complexa dessa dupla suturação que
Stalin, particular- mente, chama de "filosofia" - ou materialismo dialético. Disso resulta que a dita
"filosofia" se apresenta sob a forma estranha de "leis", as "leis da dialética'\ equivocamente aplicáveis
à Natureza e à História.
Mas em última instância, como na visão "materialista" a ciência é remetida a suas condições
técnico-históricas, a dupla sutura é articulada sob o domínio da política, a qual pode, so- zinha,
totalizar t amb~m a ciência, como se vê quando o mesmo Stalin se meteu a legiferar sobre a genética, a
linguística ou a física relativista, em nome do proletariado e de seu Partido. Esta situação criou uma
paralisia filosófica tão embrulhada que, quando Louis Althusser empreendeu, nos anos sessenta. pôr
novamente em jogo o pensamento marxista. não viu outra saída senão re- verter a articulação das
entendem que a verdade d o p<>ema tem advento na medida em que o que ele enuncia não
depende nem da objetividade nem da subjetividade. Pois, para todos os poetas da era dos poetas,
se.a consistência da experiência está ligada à objetividade, como pretendem as filosofias
suturadas ao s e reclamarem de K ant, então é preciso sustentar audaciosamente que o ser
que Celan resumirá admiravelmente:
inconsiste, o
soleira ao mesmo tempo que conservando o tema da objetividade e, por via de conseqüên- cia,
também não é mais um sujeito - correlato obrigatório do objeto - que é o suporte de tal
experiência. Se a poesia captou no obscuro a escuridão do tempo, é porque, qualquer que seja a
diversidade e mesmo a dimensão inconciliável de seus proce- dimentos, ela destituiu o quadro
"objetivante" sujeito/objeto den- tro do qual, n o elemento das suturas, se afirmava
filosoficamente que esse tempo estava orientado. A desorientação poética é, de saída, sob a lei de
uma verdade que f ura e oblitera tooo conhe- cimento, que existe uma experiência subtraída
ponto onde é possível entregar a filo- sofia ~ poesfa. Esta sutura aparece como· uma garantia
de força, pois
é verdade q ue houve uma era dos poetas. A existência dos poetas deu ao
pensamento de Heidegger, sem ela aporético e de- sesperado, um solo de historicidade, de
efetividade, capaz de lhe conferir - uma vez que a miragem de uma historicidade po- lítica se
concretizou e se dissolveu no horror nazista - o que devia ser sua única ocorrência real.
Até hoje, o pensamento de Heidegger mantém seu pader de persuasão por ter sido o único a captar
o que estava em jogo no poema, nomeadamente a destituição do fetichismo do objeto, a oposição
da verdade ao saber e, finalmente, a desorientação essencial de nossa época.
É por isso que não poderia existir crítica fundamental de Heidegger senão esta: a era dos poetas
acabou, é preciso .des- -suturar também a filosofia de sua condição poéti<;.a. O que quer dizer: a
desobjetificação, a desorientação não estão mais hoje em dia obrigadas a se enunciarem pela
metáfora poética. A de- sorientação é conceitualizdvel.
3) Há entretanto, no balanço heideggeriano da era dos po- etas, um ponto de falsificação.
Heidegger f az como se o dizer poético identificasse a destituição da objetividade e a destituição
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MANIFESTO PELA FILOSOFIA
da ciência. Arriscando o Aberto do próprio seio do desamparo técnico, o poema faria comparecer,
exporia, a • 'ciência moderna" na categoria da objetivação .do mundo e do sujeito como vontade
nadificadora. Heidegger ''monta'' a antinomia do materna e do poema de maneira a que ela
coincida com a oposiçao do saber com a verdade, ou do par sujeito/objeto com o Ser.
preciso onde opera a conspiração do acaso e do infinito, a poesia resgata o materna. Quando
dores, pois o que é no fundo a matemática senão a decisão de pensar sobre as letras? Lautréamont.
trajeto que vai de Cantor a Paul Cohen constitui esse evento. Ele funda o paradoxo central da
teoria do múltiplo e o articula pela primeira vez de maneira in- tegralmente demonstrativa num
uma multiplicidade indiscernfvel. Resolve, n um sentido oposto àquele que Leibniz propunha,
soberania da língua. Sabemos hoje que não é nada disso, e que, ao con- trário, é só levando em
como multiplicidade pura - uma verdade é genérica, subtraída a qualquer designa~ão e xata,
excedentária com relação ao que esta permite discernir. O preço a pagar por essa certeza é que
constitui todo o real do pró- prio ser: é propriamente tmpossfvel pensar a relação quantitativa
entre o .. número" dos elementos de um múltiplo infinito e o nú- mero de suas partes. Esta
relação tem somente a fonna de um excesso errante: s abemos que as partes são mais
deixa estabelecer. É de resto nesse ponto real - o excesso errante no quantitativo intmito - que
das medidas ordinárias, regrará, fixará .. de cima", a errância do excesso. É um pensamento
que tolera o indiscer- nfvel, mas como efeito transitório de uma ignorância relativa a algum
espera uma língua com- pleta, embora admitindo que dela não dispomos ainda. É um
incanSavelmente. Quando Lacan escreve: "0 ser como tal. é o amor que o vem abordar no
encontro", a função propriamente ontológica que ele indica para o amor mostra bem qual incisão
ele tem consciência, neste ponto, de operar nas configurações da filosofia.
É que o amor é aquilo a partir do que se pensa o Dois, em refenda do domínio do Um, do qual
·entretanto ele suporta a imagem. Sabemos que Lacan procede uma espécie de dedução lógica do
Dois dos sexos. da "parte" mulher e da "parte;' ho- mem de um sujeito, partitura_que.combiria a
negação e os quan- tificadores - universal e existencial - para defi~r uma mulher como não-toda e o
pólo masculino como vetor do Todo assim estropiado. O amor é a efetividade desse Dois paradoxal
que, por si mesmo, está no elemento da não:-relação, do des-ligado. Ele é a "abordagem" do Dois
como tal. Originado no evento de um encontro (esse .. repentino .. sobre o qual Platão já insiste
com força), o amor trama a experiência infinita, ou interminá- vel, disso que desse Dois já
constitui um excesso irremediável sobre a lei do Um. Direi na minha linguagem que o· amor faz
advir como multiplicidade sem nome, ou genérica, uma verdade
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EVENTOS
sobre a diferença dos sexos, verdade evidentemente subtraída ao saber, especialmente ao saber
daqueles que se amam. O amor é a produção, em fidelidade ao evento-encontro, de uma verdade
sobre o Dois.
Lacan é um evento para a filosofia porque agencia toda • espécie de sutilezas sobre o Dois, sobre
a imagem do Um no des-ligado do Dois, e com isso ordena os paradoxos genéricos do amor.
A.demais, nutrido por sua experiência, sabe também enunciar, em referência e comparação com o
amor cortês, por exemplo, o estado contemporâneo -da questão do amor. Propõe não somente um
conceito, articulado segundo as chicanas da <;li- ferença e de seu procedimento v ivo~ mas uma
análise de conjun- tura. Eis porque o anti-filósofo Lacan é uma condição do renascimento da
filosofia. Uma filosofia é hoje possível por de- ver ser compossível com Lacan. ·
Na ordem da política, o evento se concentrou na seqüên- cia histórica que vai aproximadamente
de 1965 a 1980 e que viu desencadear-se o que Sylvain Lazarus chamou de "eventurali- dades
obscuras", quer dizer: obscuras do ponto de vista da p o- lítica. Encontram-se entre elas: Maio de
68 e suas seqüelas, a Revolução cultural chinesa, a revolução iraniana, o movimento operário e
nacional na Polônia ("Solidariedade"). Não cabe di- zer a qui se esses eventos, enquanto puros
fatos, foram fastos ou nefastos, vitoriosos ou fracassados. O que é certo é que estamos na
suspensiJo de sua nome(lçllo polftica. Exceto sem dúvida o movimento polonês, essas ocorrências
quando de- cifra em Celan uma "interrupção da arte". A interrupção a meu ver não é a da
que ela fez a glória, mas tam- bém ·o tormento e a solidão de seus poetas, solidão agravada, e
não reduzida, pelas filosofias que ali se suturavam. Tudo repousa, é bem verdade, no sentido
que se dá ao encontro de Celan e de Heidegger, episódio quase mítico de nossa época. A tese
de Lacoue-Labarthe é a de que o poeta judeu so- brevivente não pôde, o quê? Tolerar?
Suportar? Em qualquer caso,
superar o fato de que o filósofo dos poetas guardava em sua
um segundo de que isto seja verdadeiro. Mas há também, e necessariamente, que ir ver o fi-
lósofO era experimentar o que a • 'subida'' para o sentido da época podia
esperar dele no
elemento do ultra-poema. Ora, esse filó- sofo remetia ao poema, precisamente, de sorte que o
poeta es- tava, diante dele, mais sozinho do que nunca. É preciso ver bem que
a questão de
Heidegger "por que poetas?" pode tornar-se, para o poeta, ''por que filósofos?'', e que se a
resposta a essa questão é ''para que haja poetas • •, duplica·se a solidão do poeta,
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MANIFESTO PELA FILOSOFIA
da qual a obra de Celan faz evento por ter poeticamente pedido que se a resgate. Estas duas
significações do encontro não são, de resto, contraditórias. Como podia Heidegger quebrar o es-
pelho do poema - o que, a seu modo, faz a poesia de Celan - , ele que não acreditou poder elucidar,
na ordem das condições políticas, seu próprio engajamento nacional-socialista? Esse si- lêncio,
além de ofender da maneira mais grave o p oeta judeu, era também uma irremediável carência
filosófica, pois levou a seu cúmulo, e até o intolerável, os efeitos redutores e nadifican- tes da
Nosso dever é produzir a configuração conceitual suscetível de acolhê-los, por menos nomeado's,
ou mesmo percebidos, que eles ainda estejam. Como é que o genérico de Paul Cohen, a teoria do
totalizá-los, pois são heterogêneos, não-alinháveis, esses eventos. Trata-se de produ- zir os
conceitos e as regras de pensamento, talvez o mais distante de qualquer menção explícita desses
nomes e desses atos, talvez o mais perto deles, isto depende, mais tais que, através desses
conceitos e dessas regras, nosso tempo será representável como o tempo em que Isto do
pensamento teve-lugar, isto que jamais teve lugar, que jamais aconteceu, e que.a partir de então
é p ar- tilhável por todos~ mesmo pelos que o ignoram, porque uma fi- losofia constituiu para todos
o abrigo comum desse "ter-tido-lugar", desse "ter acontecido".
50
9. Questões
Em seu conteúdo, o gesto de recomposição da filosofia que proponho é amplamente ditado pela
singularidade dos eventos que afetaram os quatro procedimentos genéricos (Cantor-Goedel- -Co~en
para o materna, Lacan para ·o conceito de amor, Pessoa-
·Mandelstarn-Celan para· o poema, a seqüência das eventuralidades obscuras, entre 1965 e 1980,
para a invenção política). As gran- des questões conceituais induzidas-pelo suspense dessas ocorrên-
cias do pensamento, e que se trata de projetar filosoficamente num espaço único (onde serão
pensados os pensamentos de nosso tempo). se destacam bem claramente, uma vez cumprido oba-
lizamento eventural. De resto, mesmo quando negam à filosofia o direito de existir. e que fazem
polêmica contra a sistemacidade, nossos filósofos, heideggerianos. sofistas modernos, lacanianos
metafísicos, doutrinários d o poema, sectários das multiplicida- des proliferantes, trabalham todos
essas questões: a gente não se subtrai tão facilmente ao imperativo das condições, mesmo
opor uma visão do Dois "em hístoricidade", · o que quer dizer que o Dois real é uma produç!Jo
pensamento do Dois, o exercfcto do Dois. A segunda questão é a do objeto e da objetividade. Mos-
trei que a função decisiva dos poetas foi estabelecer que o acesso ao ser e à verdade supunha a
destituição da categoria de objeto como forma orgânica da apresentação. O objeto pode muito bem
ser uma categoria do saber. Ele faz obstáculo à produção pós· -eventural das verdades. A
desobj~tivação poética, condição de uma abertura à nossa época como época desorientada, autoriza o
enunciado filosófico seguinte, em sua nudez radical: tQda ver- dade é sem objeto.
O problema fundamental é então o seguinte: a destituição da categoria de objeto acarreta a
destituição da categoria de.su:.. jeito? Este é, sem nenhuma dúvida, o efeito visível da maioria dos
poemas da era dos poetas. Notei a pluralização, a dissemi- nação do sujeito em Rimbaud, seu
ausentamento em Mallanné. O sujeito da poesia de Trakl só ocupa o lugar do Morto. Hei· degger,
suturado aos poetas, houve por bem dizer que é impos· sível pensar o sítio con.temporâneo do
Homem a partir das categorias de sujeito e de objeto. A c acan só foi o guardião do
ontrario, L
sujeito na medida em que retomou também, reela· borou, a categoria de objeto. En.quanto causa do
desejo, o objeto lacaniano (bem próximo, a bem dizer, por seu caráter insimbo- 1izável e pontual, do
"objeto transcendental = x .. de Kant) é detenninação do sujeito em seu ser, o que Lacan explícita
assim: "Esse sujeito que crê poder aceder si mesmo, ao se designar no enunciado, não é outra coisa
senão esse tal objeto".
Podemos resumir a situação a partir da lógica, das suturas, tal como ela presidiu até hoje odes-ser da
filosofia contemporânea. As filosofias suturadas a sua condição científica fazem a maior questão da
categoria de objeto, e a objetividade é sua norma re- conhecida. As filosofias suturadas à condição
política, quer di· zer, as variantes do "velho marxismo", ou bem afirmam que o sujeito "emerge" da
objetividade (passagem da "classe-em-
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MANIFESTO PELA FILOSOFIA
-si" à "classe-por-si", geralmente por virtude do Partido), ou bem, mais conseqüentes, destituem o
sujeito a favor da objeti- vidade (para Althusser, a matéria da verdade depende do pro- cesso sem
sujeito), e se juntam p arado~Jmente a Heidegger, fazendo do sujeito um simples operador da ideologia
burguesa (para Heidegger, "sujeito" é uma elaboração secundária do reino da técnica, mas a gente
pode se entender, se esse reino é de fato t ambém o da burguesia). Para os filósofos suturados ao
poema, ou mais geralmente à literatura, às artes mesmo, o pensamento dispensa tanto objeto quanto
sujeito. Para os lacanianos, enfim, há conceitos aceitáveis tanto como de um como do outro. Todos
estão de acordo num único ponto, que é um axioma tão geral da modernidade filosófica que não
posso deixar de me juntar a ele: em todo caso, não se trata de definir a verdade como ''ade- quação do
sujeito e do objeto''. Todos divergem quando se trata de dispor efetivamente a crítica da adequação,
pois não estão de acordo sobre o estatuto dos termos (sujeito e ~ bjeto) entre os quais ela opera.
Notaremos que esta tipologia deixa um lugar vazio: o de um pensamento que manteria a categoria de
sujeito, mas conce- deria aos poetas a destituição do objeto. A tarefa de tal pensa- mento é produzir
um conceito de sujeito tal que não se sustente COlll.nenhuma menção ao objeto, um. sujeito, se
assim posso di- ~ r, sem contraparte. Este lugar tem má reputação, p ois evoca o idealismo absoluto
do bispo Berkeley. Entretanto, é em ocupar esse lugar, como se terá compreendido, que eu me
empenho. Tenho por central, com vistas a um renascimento ppssível da filosofia, o problema do
sujeito sem objeto, assim como a de- sabjetivação, operando a ~unção · entre a verdade e o saber,
fundou a era dos poetas, portanto a crítica decisiva das suturas positivistas e marxizantes. De.resto.
afirmo que um só conceito, o de procediment() genérico, subsume a desobjetiv~o da ver- dade e a do
sujeito, fazendo aparecer o sujeito como simples frag- mento finito de uma verdade p6s-eventural
sem objeto. Só na via do sujeito sem objeto é que poderemos simultaneamente ~
54
.QUESTOES
-abrir a "meditação cartesiana" e continuar fiéis às aquisições da era dos poetas, numa fidelidade
propriamente filosófica, por- tanto des-suturada. Pensando bem, é a tal movimento do pensa- mento·
que, estou convencido disto, nos convocam os poemas de Paul Celan, e particularmente essa injunção
misteriosa que combina a idéia d e que o acesso ao ser não é pela via aberta e majestosa da objetividade
com a prevalência subtrativa das mar- cas, da inscrição, sobre a extensão enganosa da doação sensível:
"Um sentido nos chegatambém pela vereda mais estreita que fratura a mais mortal das nossas marcas
erigidas"
A terceira questão é a do indiscernfvel. A soberania da língua é hoje um dogma geral, se bem que, entre
a • 'tfngua exata" com que sonham os positivistas e o "dizer poético" dos heideg- gerianos, haja bem
mais do que um mal-entendido sobre a .es- sência da linguagem. Exatamente como um abismo separa o
nominalismo integral de Foucault e a doutrina do simbólico de Lacan. Contudo, sobre o que todos estão
de acordo, inscritos que estão no que Lyotard chama "a grande virada linguageira" da filosofia
ocidental, é que, nas ourelas da linguagem e do ser, não há nada, e que ou bem existe uma possível
"coleção do ser" na linguagem, ou bem o que é só. é tal por ser nomeado, ou bem o ser como tal é
subtraído à linguagem, o que jamais teve outr<> sentido que não o de o entregar a uma outra lfngua,
seja do po- eta, do Inconsciente ou de Deus.
Já indiquei que, sobre este ponto, só o materna nos guia. A convicção contemporânea é a mesma de
Leibniz: não poderia haver indiscernfvel para o pensamento, se entendemos por "in- discernfvel" um
conceito e xplícito do que é subtraído à língua. Do que é subtraído à língua não pode haver conceito,
nem pen- samento. É a razão pela qual o insimbolizável real de Lacan é
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MANIFESTO PELA FILOSOFIA
o "horror", do mesmo modo que ao que advém, enquanto ad- vento, Lyotard crê que se deve dar o
nome de "frase". O que não é nomeáv.er, é melhor manter à. di,tância do pensamento. Do "pdncípio
dos indiscerníveis" de Leibniz, Wittgenstein deu, no fim do Tractatus, a versão que faz consenso; ''O
de que é impossível falar, é preciso calar". Ora, nós sabemos, depois do evento no materna que
constituem os o peradores de Paul Cohen, que é muito exatamente possível produzir um conceito de
indis- cernfvel,
e de estabelecer, sob certas condições, a existência de multiplicidades que caem nesse
conceito, as multiplicidades "ge- néricas''. É portanto simplesmente falso que o d e que não po- demos
falar (no sentido de que não há nada a dizer a seu respeito que o especifique, que lhe dê propriedades
separadoras), deve- mos calar. Devemos, ao contrário, nomeá-lo, devemos discerni· -lo como
indiscernível. Não estamos mais obrigados, se aceitarmos estar dentro dos efeitos da condição
matemática, a escolher entre o nomeável e o i mpensável. Não estamos mais suspensos entre o que
tem explicitação dentro da língua e o de que s6 s e tem uma "experiência" inefável, se não
insustentável, e que des- monta o espírito. Pois se o indiscernível põe a pique o poder separador da
linguagem, não é por isso menos proposto a o con- ceito, o qual pode legiferar demonstrativamente
sobre sua exis- tência. Deste ponto, é possível retomar o objeto e o Dois, e mos-. trar
o vútculo
profundo que existe entre nossos três problemas. . Se. a verdade não tem o que fazer da categoria de
vulnerabilidade pessoal trai essa mascarada num anacoreta doente!''. A filosofia por aforis· mos e
fragmentos, poemas e enigmas, metáforas e sentenças,
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MANIFESTO PELA FILOSOFIA
todo o estilo nietzscheano que teve tanto eco no pensamento con- temporâneo, se énraíza na dupla
exigência de destituição da ver- dade e de dispensa do materna. Anti-platônico ao extremo .•
Nietzsche inflige ao materna a sorte que Platão reserva ao po- ema, a de uma suspeita fraqueza, de
uma doença do pensamento, de uma "mascarada".
Não h á d4vida de que Nietzsche foi durave1mente vence- dor. É verdade que o século "se curou" do
platonismo, e que, no seu pensamento mais vivo, ele se suturou ao poema, aban- donando o materna
•
MANIFESTO PEtA FILOSOFIA
A principal dificuldade se prende à categoria ~e verdade. Se o ser é múltiplo. como salvar esta·
categoria. salvação que é o verdadeiro centro de gravidade de todo gesto platônico? Para que haja uma
verdade, não é preciso primeiro que seja pronun- ciado o Um de uma multiplicidade, e não é a
propósito desse Um que o juízo de verdade é possível? Ademais, se o ser é múl- tiplo, é preciso que
uma verdade também o seja. salvo que ela não tenha mais nenhum ser. Mas. c omo conceber uma
verdade C;Omo múltipla em seu ser? Atendo-se firmemente ao múltiplo, a grande sofística moderna
renuncia à categoria de verdade, como já o faziam os ''relativistas'' da sofística grega. A inda aí,
Nietzs- che inaugura o processo da verdade. em nome da múltipla po- tência da vida. Como não
podemos nos subtrair àjurisdiçãq dessa potência sobre o pensamento do ser, é forçoso propor uma
dou- trina da verdade compatível com a irredutível multiplicidade do ser-enquanto-ser. Uma verdade
não pode ser senão a produção ~ guiar de um múltiplo. Toda a questão é que esse múltiplo será
subtraído à autoridade da língua. Ele será indiscernível, ou me- lhor: ele ter~ s(do indiscemfvel. ·
Aqui, a categoria central é a ~ultiplicidade genérica. Ela· vem fundar o platonismo- do múltiplo,
permitindo pensar uma verdade ao mesmo tempo como resultado-múltiplo de um pro- cedimento
singular. e como furo, ou subtração, no campo do nomeável. Ela toma possível assumir '4ma
ontologia do múltiplo puro, sem renunciar à verdade, e sem ter que reconhecer o ca- ráter constituinte
da variação linguageira. Ela é. ademais, o es- queleto de um espaço de pensamento onde se deixam
recolher,
· e situar como compossíveis. as quatro condições da filosofia. Poema, materna, política inventada e
amor. em seu estado con- temporâneo, não serão com efeito nada mais do que os regimes de produção
efetiva, em situações múltiplas, de múltiplos gené- ricos. fazendo verdade dessas situações.
É n o campo da atividade matemática que o conceito de múltiplo genérico foi primeiro produzido. Ele
foi com efeito pro- posto por Paul Cohen, no começo dos anos sessenta, para resol-
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