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Alain Badiou ​MANIFESTO

pela ​filosofia

EL

versão ​e ​nota ​MD ​Magno


aoutra
ANGÉLICH
psicanálise ​& ​cia
Alain Badiou

MANIFESTO ​pela filosofia


versão e nota ​MD Magno
ANGéLICA - junho ​1991 ​(psicanálise ​& ​cia)
Colégio Freudiano d​ oR​ io de Janeiro
Conselho Editorial: Chaim Sam.uel Katz, Emmanuel Carneiro Leão, Heloisa Buarque ​de ​Hollanda, Mareio
Tavares D' A​ maral, ​MD Magno ​e ​Muniz Sodré
​ otiguara Mendes ​da S
Editor: P ​ ilveira Jr. (​ Reg. prof.: 15.178 - R
​ J)
Revisão da Tradução: ​Aluisio ​Menezes e PMSJr.
Agradecimentos ​a: ​Olandina Monteiro Cruz de Assis Pacheco
Capa: MO Magno ​(Dustração: ​Beardsley, ​1896)
Composição: ​-digitação/arte ​final: T ​ iffany anes ​- revisão: André Praça Telles
Título Original: ​Manifeste pour la philosophie ​© ​Ediúons du Seuil, 1989
Todos os direitos desta edição reservados a: ​aoutra ​editora Av. Ataulfo ​de ​Paiva, 1079, subs. 118 - ​Leblon
22440 Rio de Janeiro- ​RJ ​Tels.: 259-5543 e 259-3694
SUMÁRIO
1. Possibilidade, ​1 ​2. ​Condições, ​7 ​3. ​Modernidade, ​13 ​4. ​Heidegger visto como lugar
comum, ​17 ​5. ​Nihilismo?, ​23 ​6. ​Suturas, ​29 ​7. A ​era dos poetas, ​35 ​8. ​Eventos, ​43 ​9.
Questões, 5​ 1 ​10. ​Gesto platônico, 5​ 9 1​ 1. Genérico, 6​ 3
. ​Nota ​- ​MD Magno, ​69
1. Possibilidade
Os filósofos vivos, na França de hoje, não ​há ​muitos, em- bora haja, sem dúvida, mais do que em
outros lugares. Digamos que os contamos, sem dificuldade, pelos <iedos ​das ​mãos. Sim, uma
pequena dezena de filósofos, se entendemos com isto os que propõem para nosso tempo enunciados
singulares, identificáveis, e se, conseqüentemente, ignoramos os comentadores, os indis- pensáveis
eruditos e os vãos ensaístas.
Dez ​filósofos? O ​ u ​melhor, "filósofos". Pois o estranho é​ ​que, na sua maioria, eles dizem que a
filosofia ​é ​impossível, que ela ​acabou, ​delegada a outra coisa que não ela m
​ es~; ​Lacoue- -Labarthe,
por exemplo: "Não se deve mais estar em desejo de filosofia". E, quase ao mesmo ​tempo, ​Lyotard:
"A filosofia como arquitetura está em ruínas". Mas será que podemos conceber uma filosofia que
não seja de modo algum arquitetônica? Uma ''escrita ​das ​ruínas'' , uma ''micrologia'', uma paciência
do '' graf- fiti" (metáforas, para Lyotard, do estilo de pensamento contem- porâneo) estará ainda,
para ​com a "filosofia", em qualquer sentido que a tomemos, em alguma relação que não de simples
homo- nímia? Também o seguinte: o maior de nossos mortos, Lacan, não era ele "anti-filósofo"? E
como interpretar que Lyotard só possa evocar o destino da Presença ​no c​ omentário dos pintores,
que o último grande livro de Deleuze ​tenha ​por tema o cinema,
MANIFESTO PELA FILOSOFIA
que Lacoue-Labarthe (ou Gadamer na Alemanha) se devote ​à ​antecipação poética de Celan, ou
que Derrida vá requerer Ge- net? Quase todos os nossos "filósofos" estão em busca de uma
escrita ​por ​desvios, de suportes indiretos, ​de ​referentes oblfquos, . para que advenha, ​no ​lugar
presumidamente inabitável da filo- ; sofia, a transição evasiva de uma ocupação do t​ erreno.~ ​no
co- ração desse desvio- o sonho angustiado de quem não é​ poeta, ​nem crente, nem "judeu"... -
encontramos isto que aviva a brutal intimação concernente ao engajamento nacional-socialista
de Heidegger: diante do processo que a é​ poca ​nos intenta, à lei- t​ ura ​do dossier desse processo,

cujas ​peças ​maiores são Kolyma ​e Auschwitz, nossos filósofos, tomando o século em suas

costas, e​ fi.nalmente os ​séculos ​dos s​ éculos ​desde Platão, decidiram ​confessar-se culpados.

Nem ​os cientistas, ​tantas ​vezes postos na ​berlinda, nem os militares, nem mesmo os poJfticos,
considera- ​ram ​que os massacres do século afetavam de modo durável sua corporação. ​Os

sociólogos, os historiadores, os psicólogos, to- dos


​ ​ ó ​os ​filósofos
prosperam na inocência. S
interiorizara.IJl que o pensamento, ​seu ​pensamento, se encontrava com os crimes his- tóricos
e políticos do século, e de todos os séculos dos quais este procede, ao mesmo ​tempo ​como

obstáculo a qualquer continuação ​e como tribunal de uma prevaricação intelectual coletiva e

his- tória. · Poderíamos


​ evidentemente pensar ​que ​há, nessa singula- ​rização ​filosófica da

inteJectualidade do crime, orgulho demais. ​Quando Lyotard credita a Lacoue-Labarthe a

''primeira ​deter- minação


​ filosófica do nazismo'', ele t​ em ​por assentado que tal determinação
possa depender da filosofia. Ora, isto não tem a menor evidência. Sabemos, por exemplo, que
a "determinação" das leis do movimento não depende de modo algum da filosofia. D ​ e ​minha
parte, sustento que mesmo a antiga questão do ser- -enquanto-ser não depende exclusivamente
dela: ​é ​uma questão do campo matemático. É ​ ​portanto muito bem imaginável que a

detenninação do nazismo, do nazismo como política por exem- ​plo, seja subtraída, de direito, à

forma ​de ​pensamento específico


2
POSSIBILIDADE
que depois de Platão merece o oome de filosofia. Nossos mo- destos partidários do impasse da
filosofia bem poderiam sustei mão firme, deter. a perseguição da idéia segundo a qual .. tudo.,
depende da filosofia. Ora, ​é ​mesmo preciso reconhecer que o engajamento nacional-socialista de
Heidegger foi um dos pontos de chegada desse totalitarismo especulativo. Com efeito, que fez
Heidegger senão presumir que a "decisão resoluta" do povo alemão, encarnada pelos nazistas, era

transitiva a seu pensamento de professor hermeneuta? Posturar que a filosofia ​faz- ​só ela ​-a

contabilidade dos avatares, sublimes ou repugnantes, da p​ o- ​lítica do século, ​é ​algo como a astúcia
da razão hegeliana até o mais íntimo do dispositivo de nossos anti-dialéticos. ​É ​postular que existe
um espírito do tempo, uma determínação essencial, da qual a filosofia ​é ​o princípio de captura e de
concentração. Comecemos melhor por imaginar que, por exemplo, o nazismo não ​é, ​como tal, um
objeto possível da filosofia, que ele não caiba dentro das condições que o pensamento filosófico ​é
capaz de con- figurar em sua ordem própria. Que ele não ​é ​um evento parà esse pensamento. O
que de modo algum significa que ele seja impensável.
Pois é​ ​quando o orgulho vira carência perigosa que nossos filósofos, do axioma que imputa ​à
filosofia a carga dos crimes do século, tiram as conclusões conjuntas do impasse da filosofia e do
caráter impensável do crime. Para quem supõe que ​é ​do ponto do pensamento de Heidegger que
devemos filosoficamente dar conta do extermínio dos judeus da Europa. o impasse ​é, ​com efeito,
flagrante. Podem safar-se dessa expondo que ali há algo de impensável, de inexplicável, um
entulho para qualquer con- ceito. Prestes a sacrificar a própria filosofia para lhe salvar o orgulho:
pois que a filosofia deve pensar o nazismo, e que ela não tem competência para isto, ​,é ​porque o
que ela deve pensar ​é ​impensável, e a filosofia está no passe de um impasse.
Proponho sacrificar o imperativo e dizer: se a filosofia ​é ​incapaz de pensar o extermínio dos judeus
da Europa, ​é ​porque não é​ ​seu dever nem está em seu poder pensá-lo. ​É ​que cabe
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MANIFESTO PELA FILOSOFIA
a uma ​outra ordem ​de ​pensamento t​ ornar efetivo ​esse ​pensamento. Por exemplo, ao pensamento
da ​historicidade, quer dizer, 'da His- tória examinada do ponto da política.
Jamais ​é ​realmente modesto enunciar um "fim", um tér- mino, um impasse radical. O anúncio ​do
"fim ​das ​grandes nar- rativas" ​é ​tão ​imodesto ​quanto ​a própria grande narrativa, a ​certeza ​do ''fim da
metafísica'' se move no elemento metafísico da cer- teza, a desconstrução do conceito de sujeito
exige uma categoria central - o ser, por exemplo - cuja prescrição historiai é ainda mais
determinante, etc. Transida pelo trágico de seu objeto su- posto - o extermínio, os campos de
concentração - a filosofia transfigura sua própria impossibilidade em postura profética. Ela se orna
com as cores sombrias do tempo, sem levar em conta que essa estetização, ​também ela, ​é ​uma
injustiça feita às víti- mas. A prosopopéia contrita de abjeção ​é ​tanto uma postura, tanta imposrura,
quanto a cavalaria corneteira da parousia do Espírito. O fim do Fim da História ​é ​talhado no mesmo
pano desse Fim. Uma vez delimitado o desempenho da filosofia, o patos de seu ​"fim" ​dá lugar a
uma bem outra questão que ​é ​a de suas condições. Eu não sustento que a filosofia seja a todo
instante possível. Proponho examinar, em geral, sob que condições ela o ​é, ​na conformidade com
sua destinação. Que as violências da história a possam interromper, é o que não se deve deixar
acreditar-se sem exame. ​É ​conceder uma estranha vitória a Hi- tler e seu esbirros declarar que eles
foram capazes de ter metido o impensável, de uma vez por todas, dentro do pensamento, e de ter
assim concluído a cessação de seu exercício arquiterurado. Ao anti-intelectualismo fanático dos
nazistas .. devemos nós, de- pois de seu arrasamento militar, oferecer a revanche de que o próprio
pensamento, poHtico ou filosófico, ficou de fato sem jeito de dar conta daquilo que se propunha
anulá-lo? Digo isto como o estou pensando: seria fazer morrer os judeus uma segunda vez se sua
morte fosse causa do fim daquilo para o que eles, deci- sivamente, contribuíram: política
revolucionária por um lado, por outro lado filosofia racional. A mais essencial piedade para
4
POSSIBILIDADE
com as vítimas não pode residir no estupor do espfrito, em sua vacilação auto-acusadora face ao

crime. Ela reside, sempre, na ​continuaçao d​ aquilo que os designou como representantes da Hu-
manidade aos olhos do carrasco.
Afirmo não somente que a filosofia ​é ​hoje possível, mas também que essa possibilidade não tem a
forma ​da ​travessia de um fim. Trata-se, muito pelo contrário, de saber o que quer di- zer: dar ​um
passo a mais. ​Um só passo. Um passo na configu- ração moderna, essa que, depois ​de ​Descartes,
liga às condições ​da ​filosofia os três conceitos nodais que são o ser, a ver<tade e o sujeito.
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'-. ​2. Condições


A filosofia teve um começo; ela não existe em todas as con- figurações históricas; seu modo de
ser ​é ​a descontinuidade no tempo como no espaço. Portanto é mesmo preciso supor que ela exige
condições particulares. Quando medimos o desnível entre as cidades gregas, as monarquias
absolutas do Ocidente clássico, as sociedades burguesas e parlamentares, logo aparece que toda a
esperança de determinar as condições da filosofia a partir so- mente ​da ​base objetiva das
''formações sociais'' ou mesmo a partir dos grandes discursos ideológicos, religiosos, míticos, está
votada ao fracasso. As condições da filosofia são transversais, são procedimentos uniformes,
reconhecíveis a longa distância, e cuja relação ao pensamento é​ ​relativamente invariante. O ​nome
dessa invariância ​é ​claro: trata"se do termo "verdade". Os pro- cedimentos que condicionam a
filosofia são os procedimentos de verdade, identificáveis como tal em sua recorrência. Não po"
demos mais crer nas narrativas pelas' quais um grupo humano encanta sua origem ou ​seu
destino. Sabemos que o Olimpo é ape" nas uma colina, e que o Céu só está cheio de hidrogênio
ou de hélio. Mas que a série dos números primos ​é ​ilimitada, isto se demonstra hoje exatamente
como nos E ​ lementos ​de Euclides, de que Ffdias seja um grande escultor não há dúvidas, que a
de- mocracia ateniense seja uma invenção política cujo tema ainda nos ocupa, e que o amor
designa a ocorrência de um Dois onde
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MANIFESTO PELA FILOSOFIA
o sujeito fica transido, nós o compreendemos lendo Safo ou Platão tanto quanto lendo Comeille ou
Beckett.
Contudo, tudo isto não existiu sempre. Há sociedades sem matemáticas, outras cuja "​ arte", ​em
coalescência com funções · ​ságradas ​obsoletas, nos ​é ​opaca, outras onde o amor ​está ​ausente, ou
indizível, outras enfim onde o despotismo jamais cedeu ​à ​in- venção polftica, nem mesmo tolerou que

ela fosse pensávet Me- nos ainda esses procedimentos terão existido desde sempre ​em ​conjunto. ​Se ​a

Grécia viu nascer a filosofia, certamente ​não ​foi porque


​ ela detinha o Sagrado na fonte mítica do

poema, ou ​por- ​que ​o velamento da Presença lhe fosse familiar ​à ​guisa ​de ​uma ​proposição esotérica
sobre o Ser. Muitas outras civilizações an- tigas procederam ao depósito sacro do ser no proferimento
​ uito ​mais ​a ​de ​ter ​inte"ompido a​ narrativa das origens pela
po- ​ético. ​A ​singularidade ​da ​Grécia ​é m
proposição laicizada e abstrata, de ter ferido o prestígio do poema com o do materna, de ter con- cebido
a Cidade como um tema aberto, disputado, vacante, e de ter trazido à cena pública as tempestades da
paixão.
A primeira configuração filosófica que se propõe a dispor esses procedimentos, o conjunto desses
procedimentos, num es- paço conceitual único, atestando assim ​no pensamento ​que eles são
compossíveis, ​é ​a que leva o nome de Platão. ​c c ​Aqui não entra quem ​não ​for geômetra'', prescreve o

materna como con- dição ​da ​filosofia. A dolorosa dispensa dos ​poetas, ​banidos da ​-..... ​Cidade por causa

de imitação - entendamos: por captura de- masiado


​ sensível da Idéia - indica ao mesmo tempo que o
p<): ​ema está em causa e que é​ ​preciso medi-lo à inelutável interrupção da narrativa. Do amor, ​O
B01UJ.uete ​ou o ​Fédon ​dão a articulação ​à ​verdade em textos insuperáveis. A invenção política ​é
enfim argumentada como .texrura do próprio pensamento: no fim do livro 9 de ​A ​República, P ​ latão
indica expressamente que sua Ci- dade ideal não ​é u​ m programa nem uma realidade, que a questão de
saber se ela existe ou pode existir ​é i​ ndiferente, e que então
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CONDI ​COES
~ ​não se trata de política, mas da política como condição de pen- samento, da formulação
intrafilos6tica das razões pelas quais não há filosofia sem que a política tenha o estatuto real de
inna in- venção possível.
Afirmaremos então que ​há ​quatro condições da filosofia, a falta de uma só delas acarretando sua
dissipação, bem como a emergência de seu conjunto condicionou sua aparição. Estas condições
são; o materna, o poema, a invenção política e o amor, Chamaremos estas condições de
procedimentos g​ en~ricos ​, ​por razões sobre as quais retornarei mais adiante e que estão no cen- tro
de ​O Ser ​e o
​ Evento. E ​ ssas mesmas razões estabelecem que os quatro tipos de ​proced~mentos
genéricos especificam e clas- sificam, a esta luz, todos os procedimentos suscetíveis de pro- duzir
verdades ​(s6 ​há verdade científica, artística, política ou amorosa). Pode-se dizer então que a
filosofia tem por condição que haja verdades em cada uma das ordens em que são atestáveis.
Deparamo-nos com dois problemas. Primeiro, se a filoso- fia tem por condições os procedimentos
das verdades, isto sig- nifica que, por si mesma, ela não produz verdades. De fato, esta situação ​é

bem conhecida: quem pode citar um único enunciado ​filosófico ​sobre o qual se faça sentido dizer

que ele ​é ​" verda- deiro"?


​ Mas então, qual ​é ​exatamente o desempenho da filoso- fia? Segundo,
assumimos que a filosotia ​é ​"una", no· que é lícito falar de "a" filosofia, de reconhecer um texto
como filosófico. Que relação essa unidade presumida sustenta para com a plura- lidade das
condições? Qual ​é ​esse nó de quatro (os procedimen- tos genéricos, materna, poema, invenção
política e amor) e do um (a filosofia)? Vou mostrar que estes dois problemas têm uma resposta
única, contida na definição da filosofia, tal como aqui representada como veracidade inefetiva .sob
condição da efeti- vidade do verdadeiro.
Os ​procedimentos de verdade, ou procedimentos genéricos. se distinguem da acumulação dos
saberes por sua origem ​even- t​ ural. ​Quando nada acontece. senão o ·que ​é ​conforrpe às regras de
um estado de coisas, pode certamente haver conhecimento,
9
MANIFESTO PELA FILOSOFIA
enunciados corretos, saber acumulado; o que não pode haver é verdade. Uma verdade tem de
paradoxal que ao mesmo tempo ela ​é ​uma novidade, logo algo de raro, de excepcional, e que, no
que toca ao próprio ser daquilo ​de ​que ela é verdade, ela ​é ​também o que há de mais estável, de
mais próximo, o​ ntologi~ ​camente falando, do estado de coisas iniciaL O tratamento deste paradoxo
exige longos desenvolvimentos, mas o que ​é ​claro é
· que a o​ rigem d​ e uma verdade ​é ​da ordem do evento.
Chamemos ''situação'', para sermos breves;-um estado de coisas, um múltiplo apresentado qualquer.
Para que se desenvolva um procedimento de verdade relativo ​à ​situação, é preciso que um puro
evento suplemente essa situação. Esse suplemento não é nem nomeável nem representável pelos
​ ~ ​é inscrito
r~ursos ​da. situação (sua estrutura, a língua estabelecida que lhe nomeia os termos, etc.). E

​ são os efeitos dessa


por uma nomeação singular, quando entra em jogo um significante ​a mais. E

na situaçllo ​de um nome-a-mais que vão tramar um procedimento genérico


entra~a ​
​ e diswr o
suspense de uma verdade ​da ​situação. Pois, de saída, na situação, se ​nenhum e​ vento a suplementa,
não há nenhuma verdade. Há somente o que chamo de veridicidade. Em diagonal, perfurando todos
os enunciados verídicos, há chance de. que a'dvenha uma verdade, desde que um evento tenha
encon- trado seu nome extranumerário. .
A .filosofia tem por operação específica propor um espaço conceitual 4nificado onde ​ganham
lugar ​as nomeações de. even- tos.que servem de ponto de partida aos procedimento de verdade. A
filosofia busca ​reunir todos os .nomes-a-mais. ​Ela trata, no pensamento, do caráter ​compossfvel
<los procedimentos que a con- dicionam. Ela não estabelece nenhuma yerd.ade, mas dispõe um
lugar das verdades. Ela configura os procedimentos genéricos por um acolhimento, um abrigo.
edificado com relação ​à ​sua si- multaneidade díspar. A filosofia empreende pensar seu tempo
colocando em-lugar-comum o estado dos procedimentos que a condicionam. Seus operadores,
quaisquer que eles sejam, visam sempre pensar "em conjunto", configurar, num exercício de pen-
10
CONDIÇÕES
sarnento único, a disposição epocal do materna, do poema, da invenção política e do amor (ou estatuto
eventural do Dois). Neste sentido, a única questão da fiJosofia é mesmo a da verdade, não que ela
produza alguma, mas porque ela propõe um modo de acesso à​ ​unidade de um momento das verdades,
um sítio con- ceitual onde se refletem como compossíveis os procedimentos genéricos.
É ​claro que os operadores filosóficos não devem ser enten- didos como somatórios, como
totalizações. O caráter eventural e heterogêneo dos quatro tipos de procedimentos de verdade ex- clui
inteiramente seu alinhamento enciclopédico. A enciclopédia ​é ​uma dimensão do saber, n​ ão ​da verdade,
a qual faz furo no • saber. Nem mesmo é sempre necessário que a filosofia ​mencione o​ s enunciados,
ou estados locais, dos procedimentos genéricos. Oa conceitos filosóficos tramam. um espaço geral
dentro do qual o pensamento acede ao tempo, a ​seu t​ empo, na medida em que os procedimentos de
verdade desse tempo encontrem ali o abrigo de sua compossibilidade. A metáfora adequada não é
portanto do registro da adição, nem mesmo o da reflexão sistemática. ​É ​mais a de uma liberdade de
circuiaç:ão, de um mover-se de um pensamento no elemento articulado por um estado de suas con-
dições. Pelo meio conceitual da filosofia, figuras locais tão in- trinsecamente heterogêneas quanto
podem ser as do poema, do materna, da invenção política e do amor, são relacionadas, ou
relacionáveis, à singularidade do tempo. A filosofia pronuncia, não a verdade, mas a ​conjuntura,
quer dizer, a conjunção pen- sável das verdades ..
Urna vez que a filosofia é um exercício de pensamento so- bre a brecha do tempo, uma torsão
reflexiva sobre o que a con- diciona,_ela se sustenta, o mais freqüente, em condições precárias,
nascentes. Ela se institui na abordagem da nomeação interveniente pela qual um evento engata num
procedimento genérico. O que condiciona uma grande filosofia, muito para além dos saberes
instituídos e consolidados, são ​as ​crises, irrupções e paradoxos da matemática, os terremotos da
língua poética. as ·revoluções
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MANIFESTO PELA FILOSOAA
e provocações da política inventada, as vacilações da transação dos dois sexos. Antecipando em
parte o espaço de acolhimento e de abrigo no pensamento para esses procedimento frágeis, dis·
pondo como compossíveis trajetórias cuja simples possibilidade ainda não está firmemente
estabelecida, a filosofia a​ grava ​os pro- blemas. Heidegger tem razão em escrever q​ ue ​"é ​mesmo a
​ asein ​(então historiai)" porque "o
ta- refa autêntica da filosofia agravar, fazer pesar o D
agravamento é uma das condições funda- mentais decisivas para o nascimento de tudo que ​é
grande''. Mesmo se deixarmos de lado os equívocos da ''grandeza'', con- viremos em dizer que a
filosofia sobrecarrega· o possível das ver- dades por seu çonceito ​de ​compossfvel. É ​ ​que ela tem
por função ''agravante'' dispor. os procedimentos genéricos na dimensão, não de seu pensamento
próprio, mas de sua historicidade conjunta. No que diz respeito ao sistema de suas condições, cujo
de- vir díspar ela configura pela construção de um espaço .deis pen- samentos do tempo, a filosofia
serve de passagem entre a efetividade procedimental das verdades e a livre questão de seu ser
temporal.
12
3. Modernidade
Os operadores conceituais pelos quais a filosofia configura ​suas condições, situam em geral

o pensamento do tempo sob ​o paradigma


​ ​de ​uma ou várias dessas condições. Um

procedimento ​genérico, próximo de seu sítio evenrural de origem, ou confron- tado


​ a

impasses de sua ​persis~cia, ​servé de referente principal para


​ o· desenvolvimento ​da

compossibilidade das condições. As- sim,


​ no contexto ​da ​crise ​política das cidades gregas e

do ​re- ​manejamento ••geométrico'' -depois de Eudóxio- da teoria das


​ ​grandezas, Platão
empreende fazer das matemáticas e ​da ​po- ​lítica, ​da ​teoria ​das proporções e da Cidade como

imperativo, os referentes axiais de um ​es~ço ​de pensamento do qual o ​termo "​ .dialética"

designa a ​função ​de exercício. Como as matemáticas e a política podem ser ontologicamente

compossfveis? Tal ~​ ​a questão platônica à qual o operador da Idéia vai fornecer. uma

vecção resolutiva. A poesia vai, ​de ​chofre, ver-se ​posta ​sob sus- peição - mas esta suspeita ​6

uma forma aceitável de configu- ração - e o amor vai, segundo a própria expressão ​de

Platão, ligar o ''repentino'' ​de u​ m encontro ao fato ​de ​que uma verdade - aqui a da Beleza -

advém como indiscernível, não sendo nem ·discurso (logos) nem saber (episteme).
Conviremos em chamar "período" da filosofia uma ​se- ​qüência de sua existência em que

persiste um tipo de configu- ração


​ especificada por uma condição dominante. Ao longo de
13
MANIFESTO PELA FILOSOFIA
todo esse período, os operadores de compossibilidade dependem dessa especificação. Um período faz
nó dos quatro procedimen- tos genéricos no estado singular, pós--eventural, em que se en- contram,
sob ​a jurisdição dos conceitos através dos quais um dentre eles ​é ​inscrito no espaço de pensamento e
de circulação que faz filosoficamente oficio de determinação do tempo. No exemplo platônico, a Idéia
é ​manifestamente um operador do qual o ma- tema ​é ​o principio "verdadeiro" subjacente, a política se
inventa como condição do pensamento sob a jurisdição da Idéia (donde o rei-filósofo e o papel
notável representado pela aritmética e pela geometria na educação desse rei ou guardião) e a poesia
imitativa· é mantida à distância, ​tanto ​mais que, como mostra Platão tanto no ​Górgtas ​quanto no
Protdgoras, h​ á ​uma cumplicidade paradoxal entre· a poesia e. a sofistica: a poesia ​é ​a dimensão ​se-
creta, esotérica, sofística, porque ela leva ao cúmulo a flexibi- lidade, a variância da lfngua.
A questão é então para nós a seguinte: Haverá um período m ​ (Xlerno d​ a filosofia? A acuidade desta
questão se prende hoje ao que declara a maioria dos filósofos, de uma parte que há com efeito um tal
período, de outra parte que somos contemporâneos de seu término. ​É ​o sentido da expressão ..
pós-moderno", mas mesmo entre os que economizam esta expressão, o tema de um " fim" da
modernidade filosófica, de um esgotamento dos ope- radores. q​ ue ​lhe eram próprios - muito
especialmente a catego- ria de Sujeito - , está sempre presente, ainda que sob o esquema do ​fun ​da
metafísica. A maior parte do tempo, de resto, esse ​fim ​é ​assinado ao proferimento nietzscheano.
Se designarmos empiricamente os "tempos modernos" pelo período que vai do Renascimento até hoje,
é ​certamente di- fícil falar de um perfodo, rio sentido de uma invariância hierár- quica na
configuração filosófica das condições. ​É ​com efeito evidente:
- que na idade clássica, a de Descartes e Leibniz, ​é ​a condição matemática que ​é ​dominante, sob o
efeito do evento galileano, o qual tem por essência introduzir o infinito no materna;·
14
MODERNIDADE
- que a partir de Rousseau e de Hegel, escandida ​pela ​Revolução francesa, a compossibilidade dos
procedimentos ge- néricos está sob a jurisdição da condição histórico-política;
- que entre Nietzsche e Heidegger, ​é ​a ​arte, ​cujo coração ​é ​o poema, que retoma, por uma retroação
anti-platônica, nos operadores pelos quais a filosofia designa nosso tempo como o de um nihilismo
esquecedor.
Há ​então, ao longo desta seqüência temporal, um deslo- camento da ordem, do referente principal a

partir do qual ​é ​de- senhada ​a c​ ompossibilidade dos procedimentos genéricos. A ​coloraç40 d​ os

conceitos é um bom testemunho desse desloca- mento​ entre a ordem cartesiana das razões, o patos
temporal do conceito em Hegel e a metaforização metapoética de Heidegger. ​De ​qualquer modo,
esse deslocamento não deve dissimu- lar a invariância, ao menos até Nietzsche, mas prosseguida e
es- tendida por Freud e Lacan como por Husserl, do tema do Sujeito. Este tema ·só sofre uma
desconstrução radical na obra ​de ​Hei- degger e de seus sucessores. As refundições às quais ele ​é
sub- metido pela política marxista como pela psicanálise (a qual é​ ​o tratamento moderno da
condição amorosa) dependem da histo- ricidade das c​ ondiç~e ​não. da invalidação do operador
filosó- fico que trata essa historicidade.
É ​portanto cômodo definir o período moderno da filosofl3 pelo uso organizador central que nele é
feito da categoria d.e..Su- jeito. Embora esta categoria não prescreva um tipo de configu- ração, um
regime estável da compossibilidade, ela basta para o que conceme ​à ​formulação da questão: o
período moderno da filosofia ​já ​acabou? O que ​é ​o mesmo que dizer: propor para nosso tempo um
espaço de compossibilidade, em pensamento, das verdades que nele se prodigalizam, será que isso
exige a ma- nutenção, e o uso, mesmo p​ rofundamen~ ​alterado, ou subver- tido, da categoria de
Sujeito? Ou, ao contrário, nosso tempõ é aquele onde o pensamento exige que essa categoria seja
descons- trufda? A esta questão Lacan responde por um remanejamento radical de uma categoria
mantida (o que significa que, para ele,
15
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

· o período moderno da filosofia ​continua, a​ qual é também a pers- pectiva de Jambet, de Lardreau e
a minha). Heidegger (mas tam- bém DeJeuze com algumas nuances, Lyotard, Derrída,
Lacoue-Labarthe e ​Nancy ​finnemente) responde que nossa época ​é ​aquela onde "a subjetividade ​é
empurrada para seu término", que conseqüentemente o pensamento só pode terminar. para além desse
"término" que não é​ ​outra coisa senão a objetivação des- trutiva da Terra, que a categoria de Sujeito
deve ser desconstru- ída e tida como último avatar (moderno, precisamente) da metafísica; e que o
dispositivo filosófico do pensamento racio- ​nal, ​do qual essa categoria ​é ​o operador ·central, ​está ​a
partir desse ponto mantido n​ o ​esquecimento sem fundo daquilo que o funda, que ''o pensamento só
começará quando tivermos apren- dido que essa coisa tão magnificada por séculos, ​a ​Razão, é o
inimigo mais encarniçado do pensamento''.
Será que ainda somos, e a que título, ga1ileanos e carte- sianos? Razão e Sujeito, será que ainda estão,
ou não, aptos a servir de vetor ​às ​configurações d​ a ​filosofia, inesmo se o sujeito ​é ​descentrado .ou
vazio, e a razão submetida ao acaso extranu- merário do evento? Será que a verdade ​é ​o
não-velamento velado cujo risco só o poema acolhe em palavras? O ​ u ​será. que ela ​é ​aquilo pelo que a
filosofia designa, em seu espaço próprio, os procedimentos genéricos disjuntos que trançam a
continuação obs- cura dos Tempos modernos? Devemos nós continuar, ou deter, a meditação de uma
espera? Tal ​é ​a única questão polêmica sig- nificativa hoje em dia: decidir ​se ​a forma do pensamento
do tempo, filosoficamente instruída pelos eventos do amor, do poema, do materna e da política
inventada, permanece, ou não, apegada a essa disposição que Husserl ainda chamava de "meditação
car- tesiana''.
16
4. Heidegger visto corno lugar comum
O que é que diz o ​~eidegger ​" corrente", aquele que or- ganiza uma opinião? Ele diz isto:
1) O rosto moderno da metafísica, tal como ela se articu- lou em tomo da categoria de ​~ujeito, ​está
na época de seu tér- mino. O verdadeiro sentido da categoria de Sujeito se mostra no processo

universal de objetivação, processo cujo nome apro- ​priado é: o reino da técnica. O devir-sujeito

do homem não é senão


​ a transcrição metafísica última do estabelecimento desse reino: ''O próprio
fato de o homem tomar-se sujeito e de o mundo tomar-se objeto não passa de uma conseqüência
da essência da técnica no movimento de sua instalação". Precisamente por ser um efeito do
desenvolvimento planetário da técnica, a categoria de sujeito ​é ​inapta a fazer voltar-se o
pensamento para a essência desse desenvolvimento, Ora, pensar a técnica como o último ava- ​tar
historiai, e fecho, da época metafísica dQ ser, é hoje o único programa possível para o próprio
pensamento. O pensamento não pode então estabelecer seu sítio a partir do que nos põe a

injunção de manter a categoria de Sujeito: esta injunção-é indis- tinguível


​ daquela da técnica.
17
MANIFESTO PELA FILOSOFIA
2) O reino planetário da técnica ​põe ​flm ​à ​filosofia; nele, os possíveis da filosofia, quer dizer •. da
metaffsica, estão irre- versivelmente esgotados. Nosso tempo não é mais ​ex~te ​''moderno' •, se
entendemos por • 'moderno •' a configuração pós- -cartesiana da metafisica, a qual organizou, até
Nietzsche, ​a ​to- rnada do Sujeito ou da Consciência sobre a​ ​disposição do texto filosófico. Pois
nosso tempo é o da ​efetuaç/Jo ​do último rosto da metafisica, .o tempo de esgotamento de seus
possíveis e, con- seqüentemente, o tempo da expansão in-diferente da técnica, a qual não tem
mais que se representar numa filosofia, pois que nela ​a ​filosofia, ou mais precisamente o que ​a
filosofia detinha e significava da potência do ser, acaba em vontade devastadora ,da Terra.
3) O término técnico da metaffsica, cujas duas principais "conseqüências necessárias" são a
ciência moderna e o Estado totalitário, pode e deve ser determinado pelo pensamento como
nihilismo, quer dizer, justamente como efetuação do não- -pensamento. A técnica leva a seu
cúmulo o não-pensamento por- que só ​há ​pensamento do s.e.r, e porque a técniea ​é ​o último
destino do recolhimento do ser dentro da estrita consideração do ente. A técnica ​é, ​com efeito, um
querer, uma relação ao ser cuja for- çação no esquecimento ​é ​essencial, pois que reaJiza a vontade

de subjugar o ente ​na sua totalidade. ​A técnica é a vontade de ​arrazoamento e de domínio sobre

o ente ​tal ​como ele aí está, como


​ fundo disponível, sem ​limite, ​à ​manipulação subjugadora. O

único .. conceito" de ser que a técnica conhece é o de ​matéria ​prt11Ul, ​proposta sem restrições ​à

forçação do querer-produzir e​ do querer-destruir desencadeados. A vontade visando o ente, que


constitui a essência da técnica, é nihilista, no que elà ​trata o​ ente sem levar em conta de modo
algum o pensamento de seu ser, e num tal esquecimento do ser que chega a esquecer esse mesmo
esquecimento .. Daí resulta que o querer imanente ​à ​téc- nica convoca ao nada o ser do ente que
ele trata em totalidade. A vontade de arrazoamento e de domínio ​é ​uma só e mesma coisa
18
HEIOEGGER VISTO COMO LUGAR COMUM

​ a t​ écnica, não
que a vontade de nadificação. A destruição total da Terra ​é ​o horizonte ​necessdrio d
pela razão particular de que exista tal ou qual prática, militar por exemplo, ou nuclear, que institua
esse risco, mas porque ​é ​da ​essência da técnica mobilizar o ser, brutalmente tratado como s,imples
reserva de disponibili- dades pelo querer, na forma latente e essencial do nada.
Nosso tempo ​é ​então nihilista, tanto se o interrogamos no que diz respeito ao pensamento, quanto se o
interrogamos no que diz respeito ao destino do ser que ele desenvolve. No que diz respeito ao
pensamento, nosso tempo dele se desvia pela ocul- tação radical da eclosão, do deixar-ser que
condiciona seu exer- . cício, e do reino sem; partilha do querer. No que diz respeito ao ser, qosso
tempo o vota ​à ​nadificação, ou melhor: o próprio ser está no p​ as~e ​de sua pro-posição como nada, uma
vez que, retirado e subtraído, ele ​s6 ​se prodigaliza no fechamento da matéria-prima, na
disponibilidade técnica de um fundo sem fundo.
4) Na idade moderna (aquela em que o homem se toma Sujeito e o mundo objeto porque está se
estabelecendo o reino da técnica), depois no nosso tempo, o da técnica objetificadora desencadeada,
só alguns poetas pronunciaram o ser, ou pelo me- nos as condições de um retomo do pensamento, fora
da prescrição subjetiva do querer técnico, à eclosão· e ao Aberto. A palavra poética, e só ela, ecoou
como possível f​ urulaçao d​ e um recolhi- mento do Aberto, contra a disponibilidade infinita e fechada
do ente que a técnica esgota. Esses poetas são Hoelderlin, o insu- perável, depois Rilke e Trakl. O
dizer poético desses poetas f​ u- ​f01H> ​tecido do esquecimento e deteve, preservou, não o próprio ser,
cujo destino historiai se completa no desamparo do nosso tempo, mas a q ​ uestllo ​do ser. Os poetas
foram os pastores, os zeladores dessa questão que o reino da técnica torna universal- mente
impronunciável.
5) A filosofia tendo terminado, o que resta ​é ​somente re- -pronunciar a questão da qual os poetas têm
a guarda, e notar
19
MANIFESTO PELA FILOSOFIA
como essa questão ecoou no curso inteiro da história da filosofia desde suas origens gregas. O
pensamento está hoje ​sob a con- ​diçllo dos poetas. ​Sob esta condição, ele se volta para a inter-
pretação das origens d​ a ​filosofia. para os primeiros gestos da metafísica. Ele vai procurar as chaves
de seu próprio destino, as chaves de seu próprio término efetivo, no p ​ rimeiro passo d ​ o
esquedmento. ​Este primeiro passo do esquecimento é Platão. A análise da "virada" platônica,
quanto ao vínculo do ser e d​ a ​verdade, comanda a apreensão do destino historiai do ser, o qual
termina sob nossos olhos na provocação à nadificação. O coração dessa ''virada'' é a interpretação
da verdade e do ser corno Idéia, quer dizer, a rescisão do poema em proveito do materna - como
digo em minha linguagem. A interrupção platônica da narrativa poética e metafórica pelo
paradigma ideal do materna, Heídeg- ger a interpreta como a orientação inaugural do destino do
ser no sentido do esquecimento de sua eclosão, quando ela se larga de sua apropriação inicial pela
língua poética dos Gregos. Pode· -se então também dizer que remontar às origens, tal como isto
recebe hoje sua condição do dizer dos poetas, retoma ao dizer dos ​poetas ​gregos, dos
pensadores-poetas pré-platônicos que sus- tentavam então a tensão da abertura e da eclosão velada
do ser.
6) O triplo movimento do pensamento é então: tomar a condição no dizer dos poetas, remontar
interpretativarnente ​à ​vi- rada platônica que comanda a época .metafísica do ser, fazer a exegese
da origem pré-socrática do pensamento. Este triplo mo- vimento permite enunciar a hipótese de
um retorno dos Deuses, d​ e ​um e​ vemo ​no qual o perigo mortal ao qual o querer nadifi- cante expõe o
homem - esse funcionário da técnica - seria su- perado ou conjurado por urna espécie de a ​ brigo d​ o
ser, uma re-exposição ao pensamento de seu destino como abertura e eclosão, e não como fundo
sem fundo de disponibilidade do ente. Esta suposição de um retomo dos Deuses pode ser
enunciada p​ elo pensamento que os poetas instruem, ela não pode eviden- temente ser a​ nu~ciada.
Dizer que ''só um Déus pode nos sal-
20
HEIDEGGER VISTO COMO LUGAR COMUM
var .. tem por sentido: o pensamento instruído pelos .poetas, educado pelo conhecimento da virada
platônica, renovado pela interpretação dos pré-socráticos gregos, pode sustentar, no co- ração do
nihilismo, a possibilidade sem vias nem meios dizíveis de uma re-sacralização da Terra. "Salvar"
não está aqui na acepção mole de um suplemento de alma. "Salvar" quer dizer: desviar o homem e
a ​terra da nadificação, nadifiçação que na terminal figura técnica de seu destino o ser tem como ser

o ​que- ​rer. O
​ ​Deus de ·que ​se ​trata ​é ​aquele do desvio de ​um ​destino. Não
​ se trata de salvar ​a
alma, mas de salvar ​Q ​ser, e de salvá-lo daquilo que unicamente pode pô-lo em perigo, e que ​é ​ele
pró- prio ​na ​implacável prescrição terminal de sua historicidade. Esta salvação no ser de si mesmo
por si mesmo impõe que se vá ao cume do desamparo, portanto ao cume da técnica, para arriscar o
desvio, pois ​é ​no extremo do perigo que cresce também o​ ​que salva.
21

5. ​Nihilismo?
Nós não admitimos que o termo "técnica''. mesmo o fa- zendo ressoar com o grego ​tE'XV'l, ​seja
capaz de designar a es· sência de nosso tempo, nem que haja alguma relação, útil ao pensamento,
entre "reino planetário da técnica" e ''nihilismo". · As meditações, suputações e diatribes sobre a
técnica, por mais disseminadas que sejam, não são menos uniformemente ridícu- las. E ​é ​preciso
dizer bem alto o que muitos heideggerianos re- finados pensam baixinho: os textos de Heidegger
sobre este ponto não escapam de modo algum a essa ênfase. ​o "​ caminho do bos- que", o olho claro
do camponês, a devastação da Terra, o en- raizamento no sítio natural, a eclosão da rosa, todo esse
patos, desde Vigny ("nesse touro de ferro que fuma e resfolega, o ho- mem montou cedo demais")
até nossos publicitários, passando por Georges Duhamel e Gíono, só ​é ​tecido de nostalgia reacio-
nária. O caráter estereotipado dessas ruminações que vêm disso que Marx chamava de "socialismo
feudal", ​é ​de ​resto a melhor prova de seu pouco sentido pensável.
Se eu fosse dizer algo sobre a técnica, cuja relação com as exigências contemporâneas da filosofia
é ​tão magra, seria bem mais lamentar que ela seja ainda tão medíocre, tão tímida. Tan- tos
instrumentos úteis ainda faltam, ou só existem em versões pesadas e incômodas! Tantas aventuras
maiores não avançam, ou dependem do "a vida ​é ​muito devagar", vejam a exploração
23
MANIFESTO PELA FILOSOAA
dos planetas, a energia por fusão termonuclear, a máquina vo- adora para todos, as imagens em
relevo no espaço ... Sim, ​é ​pre- ciso dizer: ''Senhores Técnicos, ainda mais um esforço, se querem
verdadeiramente o reino planetário da técnica!'' Nada de técnica bastante, uma técnica ainda muito
tosca~ ​esta ​é ​a verdadeira si- tuação: o reino do capital freia e s!ímplífica a técnica, cujas vir-
tualidades são infinitas.
Aliás, ​é ​inteiramente inconveniente apresentar a ciência como do mesmo registro, quanto ao
pensamento, que a técnica. Há certamente entre ciência e técnica uma relação de necessi- dade,
mas esta relação não implica nenhuma comunidade de es- sência. Os enunciados que anunciam a
"ciência moderna" como ​efeito, s​ e não efeito principal, do reino da técnica, são i​ ndefe~​ ​sáveis. Se
consideramos, por exemplo, um grande teorema da matemática moderna, digamos, porque me
interessa, o que de- monstra a independência da hipótese do contínuo (Cohen, 1​ 963~, ​encontramos
nele uma concentração de pensamento, uma beleza inventiva, uma surpresa do conceito, uma
ruptura arriscada, para dizer tudo: uma estética intelectual, que podemos, se quisermos, aproximar
dos maiores poemas deste século, ou das audácias político-militares de um estratego
revolucionário. ou das emoções mais intensas do encontro amoroso, mas não certamente de um
moedor elétrico de café ou de uma televisão a cores, por mais úteis e engenhosos que sejam estes
objetos. A ciência, enquanto ciência,. quer dizer. apreendida em seu procedimento de verdade, é de
resto profundamente ​inútil, ​a não ser por afirmar o pensa- mento como tal, de maneira
incondicionada. Este enunciado dos Gregos (a inutilidade da ciência, senão como exercício puro e
condição genérica do pensamento), não há que revisá-lo, mesmo sob o pretexto falacioso de que a
sociedade grega era escrava- gista. O dogma da utilidade acaba sempre como escusa para que não
se queira verdadeiramente, o que se chama querer, a ​inuti- lidade para todos.
No que diz respeito ao "nihilismo", admitiremos que nossa época é sua testemunha. na exata
medida em que entendemos
24
NIHILISMO?
por nihilismo ​a ruptura ​da ​figura tradicional d​ o v​ inculo, ​o des- ligamento como forma de ser de
tudo que faz semblante de vín· cuJo. ​É ​indubitável que nosso tempo se sustenta numa espécie de
atomística generalizada, porque nenhuma sanção simbólica do vínculo está em condições de resistir à
potência abstrata do capital. Que tudo que ​é ​amarrado s​ e verifica que, enquanto ser, ​é ​desligado,
que o reino do múltiplo ​é ​o fundo sem ​fundo~ ​do que se apresenta sem exceção, que o Um ​é ​apenas o
resultado de operações transitórias, eis o efeito inelutável da arrumação universal dos termos de nossa
situação no movimento circulante do equivalente geral monetário. Como o que se apresenta tem
sempre uma substância temporal, e o tempo nos ​é, ​no sentido . literal, c​ ontado, ​nada existe que seja
intrinsecamente amarrado a outra coisa, pois que um ou outro termo dessa suposta ligação essencial
são projetados indiferentemente na superfície neutra da conta. Não há nada absolutamente a retomar
na ​descrição dada · deste estado coisas por Marx há cento e quarenta anos:
"Por toda parte onde a burguesia conquistou o poder, ela espezinhou as relações feudais, patriarcais,
idílicas. Todos os laços complexos e variados que unem o homem feudal a seus superiores naturais,
ela os rompeu sem piedade para não deixar subsistir outro vínculo, entre homem e homem, senão o
frio in- teresse, as duras exigências do pagamento em dinheiro contado. Ela afogou os tremores
sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, da sentimentalidade pequeno·burguesa, nas
águas geladas do cálculo egoísta''.
O que Marx ​põe ​em evidência é​ , ​muito particularmente; o fim das figuras s​ agradas d​ o vínculo, a
perempção da garantia simbólica acordada ao vínculo pela estagnação produtiva e mo- netária. O
capital é​ ​o dissolvente universal das representações sacralizantes, que postulam a existência de·
relações intrínsecas e essenciais (entre o homem e a natureza, entre os homens, entre os grupos e a
Cidade, entre a vida mortal e a vida eterna, etc.). ​É ​muito característico que a denúncia do "nihilismo
técnico" seja sempre correlata da nostalgia de tais relações. O desapare-
25
MANIFESTO PELA FILOSOFIA

cimento do sagrado ​é ​um tema recorreQ.te no próprio Heidegger. ​e a predição de seu retomo

identifica-se ao tema, tomado de Ho- elderlin,


​ do "retorno dos Deuses". Se entendennos por
"nihi- lismo" a dessacralização, o capital, cujo reino planetário não deixa dúvidas - mas
"técnica" e "capital" só são emparelhá- veis numa seqüência histórica, e não no conceito -. ​é
certamente a única potência nihilista da qual os homens conseguiram ser tanto os inventores
quanto as vítimas.
Contudo, para Marx como para nós, a dessacralização não é de modo algum nihilista, na
medida em que "nihilismo,. deva significar o que pronuncia que o acesso ao ser e ​à ​verdade é

im- ​possível. Muito ao contrário, a dessacralização ​é ​uma ​condiçlJo necessária p​ ara que ​tal

acesso se abra ao pensamentO. ​É ​eviden- temente a única coisa que podemos e devemos

saudar no capital: ele


​ põe a descoberto o múltiplo puro como fundo da apresentação, denuncia
todo efeito de Um como simples configuração precá- ​ria, destitui as representações simbólicas

nas quais o vínculo en- contrava


​ um semblante de ser. Que esta destituição opere na mais

completa barbárie, não deve dissimular sua virtude propriamente ​ontológica. ​A que devemos

​ garantia que ela oferece ​à ​substancialidade dos


nos ter livrado do mito da Presença, da
vínculos e à perenidade das relações essenciais, senão ​à ​automaticidade er- ​rante do capital?

Para pensar além do capital e de sua prescrição medíocre


​ (a conta geral ​do ​tempo), ainda é
preciso ​panir ​daquilo que ele revelou: o ser é essencialmente múltiplo, a Presença sa- grada é
puro semblante, e a verdade, como qualquer coisa, se ela existe, não é uma revelação, menos
ainda a proximidade do que se retira. Ela é​ ​um procedimento regrado, cujo resultado é um
múltiplo suplementar.
Nossa época não ​é ​nem técnica (porque o ​é ​mediocremente) . nem nihilista (pois é​ ​a primeira
épOca que a destituição dos vín- culos sagrados abre à genericidade do verdadeiro). Seu
enigma próprio, ao contrário das especulações nostálgicas do socialismo feudal, cujo emblema
mais perfeito certamente foi Hitler, reside primeiramente na manutenção local do sagrado que
se tentou,
26
NIHILISMO?
mas que também se denegou pelos grandes poetas depois de Ho- elderlin. E. em segundo lugar, nas
reações anti-técnicas, arcai- zantes, que ainda prendem nossos olhos a cacos de religião (do
suplemento de alma ao islamismo). a políticas messiânicas (mar- xismo inclusive), a ciências ocultas
(astrologia, plantas curati- vas, massagens telepáticas, terapias de grupo por futucações e
borborigmos ... ), e toda. sorte de pseudo-vínculos cujo amor ao xarope das canções, amor sem
amor, sem verdade nem encon- tro, constitui a mole matriz universal.
A filosofia não acabou de modo algum. Mas a tenacidade desses resíduos do império do Um, os
quais constituem, eles . sim, o nihilísmo anti-"nihilista .. , pois que se põem de través aos
procedimentos de verdade, e designam o o ​ bstáculo r​ ecorrente oposto ​à ​ontologia subtrativa cujo
-capital é o medium histórico, nos dá a pensar que a filosofia esteve por longo tempo ​suspensa.
Adianto este paradoxo: a filosofia ainda não. soube, até muito recentemente, ​pensar~ ​altura ​do
capital, ​pois deixou o campo livre, até o mais íntimo dela mesma, às vãs nostalgias do sagrado, à
assombração der Presença, ​à ​dominação obscura do poema, à dúvida sobre sua própr:ia

legitimidade. Ela não soube ​trocar ​em p


​ ensamento ​o fato de que o homem se tomou. irre-
versivelmente, "senhor e dono da natureza", e que não se trata aí nem de uma perda nem de um
esquecimento, mas sim de sua mais alta destinação - entretanto figurada, ainda, na estupidez opaca
do tempo contado. A filosofia deixou inacabada a "me- ditação cartesiana'', perdendo-se na
estetização do querer e no patos do término, do destino do esquecimento, do traço perdido. Ela não
quis reconhecer sem desvio a absolutidade do múltiplo e o não-ser do vínculo. Ela se agarrou à
língua, ​à ​literatura, ​à ​escrita, como aos últimos representantes possíveis de uma deter- minação ​a
priori d​ a experiência, ou como ao lugar preservado de uma clareira do Ser. Ela declarou, depojs de
Nietzsche, que o que havia começado com Platão entrava em seu crepúsculo, mas esta arrogante
declaração encobria a impotência de conti- nuar esse começo. A filosofia não denuncia nem
incensao "ni-
27
MANIFESTO PELA FILOSOFIA
hilismo moderno" senão na medida de sua própria dificuldade de apreender por onde transita a
positividade atual, e por falta de conceber que acabamos de entrar cegamente numa nova etapa da
doutrina da verdade, que ​é ​a do múltiplo-sem-Um, ou das totalidades ​fragmentárias, ​infmitas ​e
índiscemfveis ... Nihilismo" ​é ​um significante tapa-buraco. A verdadeira questão permanece: o
que áconteceu c​ om ​a filosofia p​ ara ​que ela recuse friorenta- mente a liberdade e a potência que
uma época dessacralizante lhe propõe?
28
6. Suturas
Se ​a filosofia ​é, ​como estou sustentando, a configuração, como pensamento, do fato de que suas
quatro condições gené- ricas (poema, materna, política e amor) são compossfveis ​na forma
eventural que prescreve as verdades d ​ o t​ empo. ​uma suspensão da filosofia pode resultar do fato
de que o livre jogo requisitado para que ela defina um regime de passagem, ou de circulação
intelectual entre os procedimentos de verdade que a condicionam, se encontra restrito, ou
bloqueado. A causa mais freqüente de tal bloqueio ​é ​que em vez de edificar um espaço de
compossi- bilidade através do qual se exerça um pensamento do tempo, a filosofia ​delega ​suas
funções a tal ou qual de suas. condições, ela entrega· o todo do pensamento a ​um p​ rocedimento
genérico. A filosofia se efetua então no elemento de sua própria supressão em proveito desse
procedimento.
Chamarei de ​sutura ​esse tipo de situação. A filosofia ​é ​.posta em suspensão de cada vez que se
apresenta como suturada a umá de suas condições, e se proibe por isso de edificar livre- mente um
espaço ​sul generis o​ nde as nomeações eventurais que indicam a novidade das quatro condições
venham inscrever-se e afirmar, num exercício de pensamento que não se confunda com nenhuma
delas, sua simultaneidade e, portanto, um certo estado configurável das verdades da époéa.
29
MANIFESTO PELA FILOSOFIA
O século dezenove, entre Hegel e Nietzsche, foi ampla- mente dominado por suturas, e ​é ​por isso

que a filosofia parece nele sofrer um eclipse. A principal dessas suturas foi a sutura ​positivista, o
​ u

cientificista, que esperou da ciência, que ela con- figurasse


​ por ​si ​mesma o ​sistema ​acabado das
verdades do tempo. ​Esta ​sutura ainda domina, embora seu prestígio esteja abalado,
·a filosofia acadêmica anglo-saxônica. Seus efeitos mais visíveis caem naturalmente sobre o
estatuto das outras condições. Tratand.o-se da condição política, ~​ la ​se vê retirada de todo es- ​tatuto
eventural, e reduzida ​à ​defesa pragmática do regime liberal- -parlamentar. O ​ ​enunciado ao mesmo

tempo latente e central ​é, ​de fato, que a polftíca ​nao depende de modo algum do pensa-

mento: ​A c​ ondição poética ​é ​foracluída, registrada no suplemento cultural,


​ ou proposta como
objeto às análises ​linguísticas~ ​A ​con- dição amorosa ​é ​ignorada: devo a Jean-Luc Nancy esta
profunda observação de que a essência dos ​USA é ​de ser um país onde o sentimentalismo e o sexo
coexistem em detrimento do· amor. ​A ​surura da filosofia ​à ​sua condição científica a reduz progres-
sivamente a não ser mais do que uma raciocinação analítica, cuja linguagem, em todos os sentidos
​ aga as contas. ​Li- ​vre carreira ​é ​assim oferecida a uma r​ eligiosi~ade ​difusa que serve ​de
do termo, p

algodão hidrófilo para as feridas e mossas da brutalidade ca- pitalista. ​Em sua forma canônica

dominante, o marxismo propôs ele


​ próprio uma sutura, a da filosofia ​à ​·sua condição polftica. ​É
todo o equívoco da famosa tese sobre Feuerbach, que pretende substituir a "interpretação"
do.mundo por sua transformação revolucionária. A política ​é ​aqui ​filosoficamente ​designada
como só ela capaz de configurar praticamente o sistema geral do sen- tido, e a filosofia ​é ​votada a
sua supressão realizante. Que a po- lítica, de resto amplamente identificada por Marx com o
movimento real da História, seja a forma última da totalização da experiência, destitui
simultaneamente as outras condições e a filosofia que pretendia inscrever sua compossibilidade
com a política. Conhecemos os ressaibos de Marx e dos marxistas re-
30
SUTURAS
lativos a tudo que diz respeito ​à ​atividade artística, da qual não chegaram nem a pensar a
singularidade nem a respeitar o rigor inventivo. Quanto aos efeitos de verdade da diferença dos sexos,
eles sofreram, no ​fmal ​das contas, a dupla ocultação do purita- nismo "socialista" e do desprezo no
qual era mantida a psica- nálise (a qual ​é, ​a meu ver, a única verdadeira tentativa moderna de fazer do
amor um conceito).
Quanto à condição científica, o negócio é​ ​mais complicado. Marx e seus sucessores, nisto tributários
da sutura positivista dominante, sempre pretenderam elevar a política revolucionária à categoria de
uma ciência. Eles mantiveram o equívoco entre "ciência da História" - o materialismo histórico - e o
movi- mento dirigido da História pelo viés da política. Desde a origem, opuseram o socialismo deles,
"cientffiço". aos diversos socia- lismos "utópicos". Podemos então afirmar que o marxismo ​cru- zou

duas suturas, com a política e com a ciência. De resto, ​é a​ rede complexa dessa dupla suturação que
Stalin, particular- mente, chama de "filosofia" - ou materialismo dialético. Disso resulta que a dita
"filosofia" se apresenta sob a forma estranha de "leis", as "leis da dialética'\ equivocamente aplicáveis
à ​Natureza e à História.
Mas em última instância, como na visão "materialista" a ciência ​é ​remetida a suas condições
técnico-históricas, a dupla sutura ​é ​articulada sob o domínio da política, a qual pode, so- zinha,
totalizar t​ amb~m ​a ciência, como se vê quando o mesmo Stalin se meteu a legiferar sobre a genética, a
linguística ou a física relativista, em nome do proletariado e de seu Partido. Esta situação criou uma
paralisia filosófica tão embrulhada que, quando Louis Althusser empreendeu, nos anos sessenta. pôr

novamente em jogo o pensamento marxista. não viu outra saída senão ​re- ​verter ​a articulação das

duas suturas em proveito da ciência. e fazer


​ do marxismo filosófico algo como a epistemologia do ma-
terialismo histórico. Em parte alguma a pregnâncía das suturas na filosofia dessa época ​é ​mais visível
do que no esforço heróico com o qual Althusser empreendeu reverter o marxismo para o
31
MANIFESTO PELA FILOSOFIA
lado da sutura da filosofia à ciência, na justa consciência em que ele estava de que o domínio de sua
sutura à condição política era ainda mais nocivo. O preço a pagar por esta operação de trans- ferência
foi o de manter a delegação da política a um órgão tão suspeito e deteriorado corno o Partido
Comunista Francês, o que conseqüentemente proibia o pensamento de apreender isto. A ​in- ​vestida
filosófica, depois de alguns sucessos iniciais, veio fra- cassar no evento de Maio de 68, cuja nomeação
no pensamento excedia, por todos os lados, os recursos da condição científica, e exibia cruelmente a
perempção histórica do PCF.
A tese que adianto é​ , ​em definitivo, a seguinte: se a filo· sofia está no círculo fechado de sua
suspensão, talvez depois de Hegel, ​é ​porque ela está cativa de uma rede de suturas a suas condições,
especialmente a suas condições científica e política, que a proíbem de configurar sua
compossibilidade ​geral. ​É então exato· que algo do tempo, do nosso ·tempo, lhe escape, e que ela
tenha dado de si mesma uma imagem desfeita e encolhida.
Um signo infalível pelo qual se reconhece que a filosofia está sob o efeito dirimente de alguma sutura
a uma de suas con- · dições genéricas é a monótona repetição do enunciado segundo o qual a "forma
sistemática" da filosofia se tornou doravante impossível. Este axioma anti-sistemático ​é ​hoje em dia
sistemá- tico. Lembrei, no início deste livro. a forma que lhe dá Lyotard, mas, com exceção sem
dúvida ​de ​Lardreau e Jambet, ele ​é c​ o- ​mwn a todos os filósofos franceses contemporâneos e
especial- mente a todos aqueles que se iluminam por essa singular constelação típica onde
encontramos os sofistas ​g~;egos, ​NietzS- che, Heidegger e Wíttgenstein.
Se entendemos por "sistema" uma figura enciclopédica, ela própria dotada de uma chave-mestra ou
ocdenada por algum significante supremo, acho mesmo que a dessacralização·modema proíbe seu
desenvol~imento. ​A filosofia, a não ser talvez Aris- tóteles e Hegel, terá ela, de resto, jamais
sustent;ado tal ambição? Se entendemos por "sistematicidade", como devemos fazê-lo, o requisito de
uma configuração completa das quatro cond.ições
32
SUTURAS
genéricàs da filosofia (o que, ainda uma vez, não exige de modo algum que os ​resultados d​ essas
condições sejam exibidos ou mesmo mencionados), segundo urna exposição que exponha tam- bém·
sua regra de exposição, então ​é ​da ​essência da filosofia ser sistemátiça, e nenhum filósofo jamais
duvidou disto, de Platão até Hegel. ​De ​resto. é por isso que a recusa da ''sistematicidade" vai hoje em
dia de par com o sentimento moroso, de que falei no começo deste texto, de uma "impossibilidade" da
​ ​a confissão de que ela não ​é ​de modo algum impos- sível, mas está e​ ntravada
filosofia mesma. É
pela rede histórica das suturas.
Não posso conceder a Lyotard sua defmição da filosofia: um discurso ​à ​procura de suas próprias
regras. Há. pelo menos duas regras universais, na falta das quais não se tem mais ne- nhuma razão ​de
falar de filosofia. A primeira é que ela deve dis- por as nomeações eventurais de suas condições e,
portanto, tomar possível o pensamento simultâneo, conceimalmente unificado do materna, do poema,
da invenção política e do Dois do amor. A segunda ​é ​que o paradigma de percurso, ou de rigor. que
esta- belece esse espaço de pensamento, no qual os procedimentos ge-. néricos encontram abrigo e
acolhimento, deve ser exibido no interior desse abrigo e desse acolhimento. ​É ​outra maneira de dizer
que a filosofia s6 é des-suturada se ela é, por sua própria conta, sistemática. Se a ​ contrario ​a
filosofia declara a impossi- bilidade do sistema, ​é ​que ela está suturada, ​é ​que ela entrega o
pensamento a uma só de suas condições.
Se, no século dezenove e ​mais a​ lém, a filosofia sofreu a dupla sutura ​à ​sua condição política e· ​à ​sua
condição científica, compreendemos muito bem que, especialmente depois de Nietzs- che, se tenha
exercido sobre ela a tentação de se entregar, pela sutura, a uma.outra condição. A ​arte ​estava
inteiramente desig- nada para isto. O que culmina com Heidegger ​é ​o esforço, anti- -positivista e
anti-marxista, de entregar a filosofia ao poema. Quando Heidegger designa como efeitos cruciais da
técnica, de uma parte a ciência moderna. de outra parte o Estado totalitário, ele indica na realidade as
duas suturas dominantes, das quais o
33
MANIFESTO PElA FILOSOFIA
pensamento só se salvará abandonando-as. A via que ele propõe não ​é ​a da filosofia, a seus olhos
realizada na técnica, ​é ​aquela, pressentida por Nietzsche, mesmo pot Bergson, prolongada na
Alemanha pelo culto filosófico dos ​poetas~ ​na França pelo feti- chismo da literatura (Blanchot,
Derrida, Deleuze também ••. ), que delega o vivo do pensamento ​à ​condição artística. Servidora a
Oeste ​da ​ciência, a Leste da política, a filosofia tentou, na Eu- ropa ocidental, servir pelo menos ao
outro Mestre, o poema. A situação atual da filosofia ​é: ​Arlequim servidor·de três senhores. Podemos
mesmo acrescentar que um Levinas, à g\iisa da pro- posição dual sobre o Outro e seu rosto, sobre a
Mulher, visualiza que. a filosofia possa também se tornar o valete de sua quarta condição, o amor.
Adianto que ​é ​hoje possível, portanto exigível, romper to- dos esses contratos. O gesto que proponho é
pura e simplesmente o da filosofia, o da des-sutura. Acontece que o desempenho prin- cipal, a
dificuldade suprema, ​é ​a de des-suturar a filosofia de sua condição poética. Positivismo e marxismo
dogmático não constituem mais do que posições ossificadas. São suturas pura- mente institucionais ou
acadêmicas. ​Em ​contrapartida, o que deu poder à sutura poetizante, a Heidegger portanto, está longe
de se desfazer, até por falta de ter sido examinado.
O que foram e o que pensaram os poetas no tempo em que a filosofia perdia seu espaço próprio,
suturada que estava ao materna ou à política revolucionária?
34
7. A ​era ​dos ​poetas
No período que se abre, grosso modo, logo depois de He- gel, período no qual a fllosofia está o mais
freqüentemente su- turada seja à​ ​condição científica, seja à​ ​condição política, a poesia tomou para si
certas funções da filosofia. E também todo mundo concorda em dizer que então se trata de um
período excepcional para essa arte. Contudo, a poesia e os poetas de que falamos não são nem toda a
poesia nem todos os poetas. Trata-se d​ aqu~les ​cuja ob.i:a é​ ​imediatamente reconhecível como uma
obra de pen- samento, e para a qual o poema ​é, ​no lugar mesmo onde a ​fi- ​losofia desfalece, o lugar
da língua onde se exerce uma proposição sobre o ser e sobre o tempo. Esses· poetas não ​decidiram
substituírem-se aos filósofos, não escreveram na consciência cla- rificada de uma tal substituição.
Melhor, é preciso imaginar que se exercia sobre eles uma espécie de pressão intelectual induzida
pela ausência de livre jogo dentro da filosofia, pela necessidade de constituir, do interior de sua arte,
esse espaço geral de aco- lhimento para o pensamento e para os procedimentos genéricos ​que~
suturada, a filosofia não conseguia mais estabelecer. Se a poesia foi singularmente designada para
este ofício, foi, de uma parte, porque ela não figurava, pelo menos até Nietzsche e Hei- degger, entre
as condições a que, de maneira privilegiada, a f​ i- ​losofia se suturava; de outra parte, porque ​é ​uma
vocação remota
35
MANIFESTO PElA FILOSOFIA
da..Jl(>eSia, arte .. do_yínculo .entre.a...palavra..e...a..experiência, ter, como seu horizonte
quimérico, o ideal da Presença tal como uma palavra pode ​fundá-la. ​A ​rivalidade d​ o poeta
com o filósofo é​ ​uma velha história, como vemos no exame especialmente severo ao qual
Platão submete a poesia e os poetas. A desforra contra Platão, d​ a ​qual Nietzsche foi o profeta,
não podia não se ancorar na jurisdição do poema. Descartes, Leibniz, Kant ou Hegel bem
podiam ser matemáticos, historiadores, físicos, se há uma coisa que eles não eram, era ​poetaS.
Mas depois de Nietzsche todos pretendem isso, todos I​ nvejam ​os p​ oetas, ​todos são poetas fra-
cassados ou aproximativos, ou notórios, como vemos com Hei- degger, mas t​ ambém ​com
Derrida, ​ou Lacoue-Labarthe, e mesmo Jambet ou Lardreau saúdam a i​ nelu~vel ​vertente poética

​ ​que houve, com efeito, uma ​era dns poetas, ​no


das ele- ​vações metaffsicas do Oriente. É
tempo da sutura deserdada dos filósofos. Houve um tempo, entre Ho- elderlin e Paul Celan,
em que o sentido trêmulo do que fosse esse tempo mesmo, o modo de acesso mais ​aberto à
questão do ser, o espaço d​ e ​compossibilidade menos aprisionado em suturas brutas, a
formulação mais alerta da experiência do homem mo- demo, foram desencadeados e
sustentados pelo poema. Um tempo no qual o enigma do tempo foi tomado pelo enigma da
metáfora poética, em que o próprio desligamento se enlaçou no "como" da imagem. Toda uma
época se representou em curtas filosofias como uma época consistente e sobretudo ​orientada.

Havia o pro- ​gresso, o sentido da História, a fundação milenar, o advento de um


​ outro mundo,
e ​de ​outros homens. Mas o real dessa época era bem mais a inconsistência e a desorientação. A
poesia, pelo menos a poesia Hmetaffsica", a poesia mais concentrada, a mais intelectualmente
tensa, a mais obscura também, ela sozinha, de- signou e articulou-essa desorientação essencial.
A poesia traçpu, nas representações orientadas é.la História, uma diagonal desorien- tadora. A
secura cintilante desses poemas fez a cesura - pa·ra retomar um conceito de Lacoue-Labarthe,
vindo de Hoelderlin - do patos histórico.·
36
A ERA DOS POETAS
Os representantes canônicos da era dos poetas são objeto, a partir do momento em que a filosofia tenta
suturar-se à con- dição poética, de uma ​eleiç(J() ​filosófica. Michel ​Deguy ​chega a dizer- ​é ​verdade
que ele ​é ​poeta - : .. A filosofia, para pre- parar ​para ​a poesia". ​Em ​todo caso, para preparar a lista dos
poetas que a filosofia reconhece que se apossaram, por longo tempo, de suas funções ordinárias. ·
No que me conceme (mas. sustento que a era dos poetas a ​ cabou, ​e é​ ​do ponto desse fecho que
enuncio minha própria lista, lista por conseqüente fechada), reconheço sete poetas cruciais, ​não ​que
eles sejam forçosamente os "melhores ​poetas .. , ​impra- ticável distribuição de prêmios, mas que
periodizaram, escan- dira.m, a era dos poetas. Trata-se de Hoelderlin, o p​ rofe~ ​deles, seu vigia
antecipador, depois, todos posteriores ​à ​Comuna de Paris, que marcou a abertura da desorientação
representada como sentido orientado, Mallanné, Rimbaud, Trakl, Pessoa, Mandeis- ​- tam ​e Celan.
Não se trata aqui de estudar o emaranhamento histórico, as reviravoltas, os poemas fundadores, as
operações singulares (como O ​ ​Livro de Mallarmé, o desregramento de Rimbaud, os heterônimos de
Pessoa ... ) que são tantas operações conceituais cujo total não alinhável compõe a era dos ​poetas
como a era do pensamento. Algumas observações entretanto.
1) A linha fundamental seguida por nossos poetas e que lhes permite subtraírem-se aos efeitos das
​ estituiçlJo ​da ​categoria ​de o
suturas filosóficas é​ ​a da d ​ ais praticamente: a destituição da
​ bjetq. M
categoria de objeto, e ​da ​de objetividade, como formas necessárias da apresentação. O que tentam os
p~ ​da ​era dos poetas ​é ​abrir um acesso ao ser, ali mesmo onde o ser não se ·pode sustentar pela
categoria apresentativa do objeto. A poesia ​é, ​então, essencialmente ​desobjetivante. ​Isto ​não
significa, de modo algum, que o sentido seja entregue ao sujeito, ou ao subjetivo. Muito pelo
contrário, pois o de que a poesia tem uma consciência aguda, ​é ​do vínculo organizado pelas suturas
entre
37
MANIFESTO PELA FILOSOFIA
"objeto" ou objetividade, e "sujeito". Esse vínculo ​é ​constitu- tivo do saber ou do conhecimento.
Mas o acesso ao ser que a poesia tenta não ​é ​da ​ordem ​do ​conhecimentó. Ele ​é ​então dia- gonal à
oposição sujeito/objeto. Quando Rimbaud enche de s​ ar- ​casmo a ''poesia subjetiva'', ou quando
Mallarmé estabelece que o poema só tem ​lugar se ​seu autor como sujeito ​é ​ausentado, ​eles

entendem que ​a ​verdade d​ o p<>ema ​tem ​advento na medida em ​ que o que ele enuncia não
depende nem ​da ​objetividade nem da subjetividade. Pois, para todos os poetas da era dos poetas,
se.a consistência da experiência está ligada ​à ​objetividade, como pretendem ​as ​filosofias
suturadas ao s​ e ​reclamarem de K ​ ant, ​então ​é ​preciso sustentar audaciosamente que ​o ser
​ que Celan resumirá admiravelmente:
inconsiste, o

"Sobre as inconsistências ​se apoiar"


A ​poesia, que procura o traço, ou o limiar, da Presença, nega que possamos nos manter em tal

soleira ao mesmo tempo ​que conservando o tema da objetividade e, por via de conseqüên- cia, ​
também ​não ​é ​mais um sujeito - correlato obrigatório do objeto - que ​é ​o suporte de ​tal
experiência. ​Se ​a poesia captou no obscuro a escuridão do tempo, ​é ​porque, qualquer que seja a
diversidade e mesmo a dimensão inconciliável de seus proce- dimentos, ela destituiu o quadro
"objetivante" sujeito/objeto den- tro do qual, n ​ o ​elemento das suturas, se afirmava
filosoficamente que esse tempo estava orientado. A​ ​desorientação poética ​é, ​de saída, sob a​ ​lei de
uma verdade que f​ ura ​e oblitera tooo conhe- cimento, que existe uma experiência subtraída

simultaneamente ​à ​objetividade e ​à ​subjetividade.


2) O ​que ​deu força ao pensamento de Heidegger foi ele ​cruzar a critica propriamente
filosófica ​da ​objetividade com sua ​destituiç(U) poética. ​O golpe de gênio - só que ele jamais
deixa de ser um modo de sutura. desta ​~ez ​à condição poética - foi:
38
A ERA ​DOS POETAS
- apreender, especialmente através do exame de K.ant, que o que separava a "ontologia
fundamental" da doutrina do conhecimento era a manutenção, ​na ​segunda, da categoria de ob- jeto,
fio condutor e limite absoluto ​da ​crítica kantiana;
- não cair, nem por isso, no subjetivismo, ou numa ​fi- ​losofia radical ​da ​consciência, via seguida
em defmitivo por Hus- serl, mas, bem ao contrário, pronunciar a desconstrução dó tema do sujeito,
considerado como último avatar ​da ​metafísica e cor- relato forçoso da objetividade;
- manter assim firmemente a distinção capital entre saber e verdade, ·ou entre conhecimento e
pensamento, distinção que ​é o​ fundamento latente do empreendimento poético; - chegar assim ao

ponto onde ​é ​possível ​entregar a filo- ​sofia ​~ ​poesfa. ​Esta sutura aparece como· uma garantia

de força, pois
​ ​é ​verdade q​ ue houve uma era dos poetas. A existência dos poetas deu ao
pensamento de Heidegger, sem ela aporético e de- sesperado, um solo de historicidade, de
efetividade, capaz de lhe conferir - uma vez que a miragem de uma historicidade po- lítica se
concretizou e se dissolveu no horror nazista - o que devia ser sua única ocorrência ​real.
Até hoje, o pensamento ​de ​Heidegger mantém seu pader ​de ​persuasão por ter sido o único a captar
o que estava em jogo no poema, nomeadamente a destituição do fetichismo do objeto, a oposição
da verdade ao saber e, finalmente, a desorientação essencial de nossa época.
É ​por isso que não poderia existir crítica fundamental de Heidegger senão esta: a era dos poetas
acabou, é preciso .des- -suturar ​também a​ filosofia de sua condição poéti<;.a. O que quer dizer: a
desobjetificação, a desorientação não estão mais hoje em dia obrigadas a se enunciarem pela
metáfora poética. A de- sorientação ​é ​conceitualizdvel.
3) Há entretanto, no balanço heideggeriano da era dos po- etas, um ponto de falsificação.
Heidegger f​ az ​como se o dizer poético identificasse a destituição da objetividade e a destituição
39
MANIFESTO ​PELA ​FILOSOFIA
da ​ciência. Arriscando o Aberto do próprio seio do desamparo técnico, o poema faria comparecer,
exporia, a • 'ciência moderna" na categoria da objetivação .do mundo e do sujeito como vontade
nadificadora. Heidegger ''monta'' a antinomia do materna e do poema ​de ​maneira a que ela

coincida com a oposiçao ​do ​saber ​com a verdade, ou ​do ​par sujeito/objeto com o Ser.

Ora, esta montagem


​ não ​é ​legível na poesia da era dos poetas. A relação autêntica dos poetas com as
matemáticas ​é ​de ordem inteiramente diversa. Aparece como uma relação de rivalidade em torsão, de
comunidade heterogênea ​no mesmo ponto. ​A vontade " algébrica' ' ​da ​poesia mallarrnaica ​é
flagrante, e quando ele escreve " vós, matemáticos, expirantes", ​é ​apenas para apontar que no lugar

preciso onde opera a conspiração do acaso e do infinito, a poesia ​resgata o​ materna. Quando

Rimbaud anota- sentença particular- mente


​ profunda sobre a essência literal da ciência: "Fracos se
punham a ​pensar ​sobre a primeira letra do alfabeto, que pode- riam rapidamente rumar para a
loucura!'', ele inscreve, no mesmo golpe, a paixão do materna ao lado dos desregramentos salva-

dores, pois o que ​é ​no fundo a matemática senão a decisão de ​pensar ​sobre as letras? Lautréamont.

​ Spinoza e ​de ​Kant, considera que as matemáticas o salvaram, e o


digno herdeiro ​de ​Platão, de
salvaram no ponto preciso da destituição do par sujeito/objeto, ou Homem/mundo: "Oh, matemáticas
severas, não as esqueci, depois que suas sábias lições, mais doces do que o mel, se in- filtraram no
meu coração como uma onda refrescante. Sem vo- cês, em minha luta contra o homem, talvez eu
tivesse sido vencido".
E quando Pess()a escreve: ''O binômio de Newton ​é ​tão belo como a Vênus de Mito/O que ​há ​é
pouca ​gente para dar por isso", nos dá a pensar que, .melhor do que opor a verdade do poema ao
nihilismo latente do materna, o imperativo ​é ​agir ​de ​modo que, dessa identidade de beleza, não mais
''pouca gente'', mas todo mundo, dê por isso afinal.
A poesia, mais profunda nisso do que seu servidor ​filó- ​sofo, teve completa consciência de uma
partilha d​ e ​pensamento
40
A ERA DOS POETAS
com as matemáticas, porque ela cegamente percebeu que ​tam- ​bém o materna, em sua pura doação
literal, em sua sutura vazia para qualquer apresentação múltipla, questionava e destituía a
prevalência da objetividade. Os poetas souberam, é verdade que melhor do que os próprios
matemáticos, que não existia ​objeto m
​ atemático.
Toda sutura é​ ​um exagero. pois como já repeti com Hei- degger, a filosofia agrava os problemas.
Suturada a uma ​de ​suas condições, ela lhe empresta virtudes que, do interior do exercí- cio dessa
condição. não poderíamos perceber. Ao isolar o ​poema ​como figura única do pensamento e do
risco, como instância de destino do desamparo e da salvação; ao chegar a visualizar,· se- guindo
René Char, um "poder dos poetas e dos pensadores", Heidegger excedeu a jurisdição poética que,
salvo quando ela "faz a pose" (o que, que fazer?!, ​é ​o caso de Char, mais vezes que o dele), não
legifera sobre tal unicidade e trata em particular o materna - mas também a política e o amor - com
um viés inteiramente diverso. Ele não fez melhor em relação ao poema do que aqueles - eu fui um
deles - que absolutizaram filoso- ficamente a política desde o interior da sutura marxista, muito
para ​além do que a política ​real e​ stava em condições de enunciar sobre si mesma. Também não
melhor do que aquilo que, como promessas mirabolantes, os filósofos positivistas extirparam de
urna ciência a mais não poder, e para a qual a promessa, qual- quer que ela seja, ​é ​inteiramente
estranha.
4) A operação central a partir da qual podemos incluir e pensar um poeta da era dos poetas ​é ​seu
"método" de desobje- tivação, portanto o procedimento, o mais freqüentemente muito complexo,
que ele opera para produzir verdades na f​ alta ​do sa- ber, para enunciar a desorientação no
movimento metafórico de uma destituição do par sujeito/objeto. São esses procedimentos que
diferenciam os poetas e peri.odizam a era dos poetas. Eles dependem principalmente de dois tipos:
coloca-se a falta, ou se coloca o excesso. O objeto ou ​é ​subtraído, retirado da Presença
41
MANIFESTO PELA FILOSOFIA
por sua própria auto-dissolução ​(é ​o método de Mallarmé), ou ​é ​extirpado de seu domínio de
aparição, desfeito por sua exceção solitária, e tornado por conseguinte substituível por qualquer ou-
tro (​ é. ​o método de Rimbaud). O poema regra a falta, ou desregra a apresentação. Simultaneamente,
o sujeito é rescindido, seja pela ausentificação (Mallarmé), seja por pluralização ​efetiva (​ Pessoa,
Rimbaud: "Perante vários homens, conversei bem alto com um momento de suas outras vidas. -
Assim, eu amei um porco"). Nada melhor do que o inventário desses procedimentos indica até que
ponto esses poemas são conexos, de fato substituídos pro- visoriamente, aos ''andaimes'' do espaço
de pensamento que de- fine a filosofia.
5) A obra de Paul Celan enuncia, em fronteira terminal, e desde o interior da poesia, o fim da era
dos poetas. Celan ter- mina Hoelderlin.
42
8. Eventos
Que seja hoje possível, logo necessário, des-suturar a filo- sofia e proclamar seu renascimento;
que após a longa suspensão que acarretaram os privilégios sucessivos e ruinosos da condição

científica (positivismo), da condição política (marxismo) e ​da condição


​ poética (de Nietzsche até
hoje), retoma o imperativo de configurar as quatro condições a partir de uma doutrina in-
teiramente refundida da verdade; que em ruptura para com os anúncios repetidos ​do ​"fim.da
filosofia", do " fim da metafísica", da "crise da razão", da "desconstrução do sujeito", a tarefa seja
a de ​retomar ​o fio da razão moderna, de dar ​um passo a ​l11llis n​ a filiação ​da ​"meditação
cartesiana": tudo isto não pas- saria de um voluntarismo arbitrário se aquilo que Jhe funda o
sentido não se achasse tendo o estatuto de eventos cruciais s​ o- ​brevindos, embora segundo
nomeações ainda suspensas, ou pre- cárias, ao registro de cada uma das quatro condições. São
estes eventos do materna; do poema, do pensamento do amor e da ​po- ​lítica inventada que nos
prescrevem o retorno da filosofia, na aptidão de dispor um lugar intelectual de abrigo e de
acolhimento para aquilo que, desses eventos, é presentemente nomeável. Na ordem do materna, o

trajeto que vai de Cantor a Paul ​Cohen constitui esse evento. Ele funda o paradoxo central da

teoria do múltiplo e o articula pela primeira vez de maneira in- ​tegralmente demonstrativa num

conceito discernível do que seja


MANIFESTO PELA FILOSOFIA

uma multiplicidade indiscernfvel. ​Resolve, n​ um sentido oposto ​àquele que Leibniz propunha,

a questão de saber se um pensa- mento


​ racional de ser-enquanto-ser se dobra ou não ​à

soberania ​da ​língua. Sabemos hoje que não ​é ​nada disso, e que, ao con- ​trário, é só levando em

conta a existência de multiplicidades quais- quer, inomináveis, "genéricas,., multiplicidades

que nenhuma propriedade


​ da língua delimita, que temos a chance de aproxi- ​mar ​a verdade do
ser ​de ​um múltiplo dado. Se a verdade ​faz ​furo no saber. se portanto não ​há ​saber da verdade,
mas ​somente ​pro- ​duçao ​de verdades, ​é ​que, pensada matematicamente em seu ser - logo

como multiplicidade pura - ​uma ​verdade é genérica, ​subtraída a qualquer ​designa~ão e​ xata,

excedentária com relação ao que esta permite discernir. ​O ​preço ​a ​pagar por essa certeza é que

a ​quantidade ​de um múltiplo suporta uma indeterminação, uma


​ ​espécie de falha disjuntiva que

constitui todo o real do pró- ​prio ser: é propriamente ​tmpossfvel ​pensar ​a relação quantitativa

entre o .. número" dos elementos de um múltiplo infinito e o nú- mero de suas partes. Esta
relação tem somente a fonna de um ​excesso errante: s​ abemos que ​as ​partes são mais

numerosas ​do que


​ os elementos ​(teorema ​de Cantor), mas ​nenhuma ​medida desse ​"mais" se

deixa ​estabelecer. ​É ​de resto nesse ponto real - o excesso errante no quantitativo intmito - que

se estabelecem as ​grandes ​orientaçlJes n​ o p


​ ensamento. ​O pensamento ​nominalista ​recusa

este resultado, e só admite ​à ​existência as multiplicidades nomeáveis. Ele é anterior ao

advento do materna de que falo, e é portanto um pensamento conservador. O

pensamentQ_gans- ​cendente ​crê que a determinação de um ponto-múltiplo, situado para além

das medidas ordinárias, regrará, ​fixará .. ​de cima", a​ errância do excesso. É um pensamento
que tolera o indiscer- nfvel, mas como efeito transitório de uma ignorância relativa a ​algum

múltiplo "supremo". Ele não homologa portanto o ex- cesso


​ e a errância como leis do ser. mas

espera uma língua com- ​pleta, embora admitindo que dela não dispomos ainda. É um

pensamento profético. Enfim. o pensamento ​genütco a​ ssume o· indicemlvel


​ como o tipo ​de
ser de qualquer verruide e toma a
44
EVENTOS
errância do excesso pelo real do ser. pelo ser do ser. Como disso· resulta que qualquer verdade é uma
produção infinita suspensa a um evento, irredutível aos saberes estabelecidos e determinada somente
​ tividade d​ os fiéis desse evento, podemos dizer que o pensamento genérico é, no sentido mais
pela a
amplo, um pensamento militante. Se devemos correr aqui o risco de um ​nome p​ ara o advento do
materna de que somos os filósofos ​contempor~eos, ​conviremos em dizer que esse evento é o da
multiplicidade ​in- ​discernfvel, ou genérica, como ser-em-verdade do múltiplo puro (logo: como
verdade do ser-enquanto-ser)!
Na ordem do amor, do pensamento do que ele é de fato portador de verdades, o evento é a obra de
Jacques Lacan. Não vamos entrar aqui na questão suplementar do estatuto da psica- nálise, questão
outrora fórmulada, em referência à​ ​sutura posi- tivista, sob a forma "a psicanálise é​ ​ciência?", e que
prefiro enunciar assim: "A psicanálise ​é ​um procedimento genérico? Ela faz pane das condições da
filosofia?". Notemos apenas que sendo dado que, depois de Platão até Freud e Lacan, a filosofia s6
conheceu quatro procedimentos genéricos, seria considerável, e justificaria um pouco a arrogância
freqüente dos sectários da psicanálise, que esta impõe ao filósofo tratar de uma quinta. ​Se- ​ria com
efeito uma revolução no pensamento, urna época intei- ramente nova das atividades configurantes da
filosofia. Mas a supormos que a psicanálise não seja mais que um dispositivo de opinião endossado
por práticas instin.Jcionais, disso resultaria ape- nas que Freud e Lacan são na realidade filósofos,
grandes pen- sadores que, ​a propósiro d​ esse dispositivo ​de ​opinião, contribuíram para a
conceituação do espaço ger:al no qual os procedimentos genéricos do tempo vêm encontrar o abrigo e
o acolhimento de sua compossibilidade. Eles tiveram, em qualquer ​hipótese,. ​o imenso mérito de
manter e refundir a categoria de sujeito, em tempos nos quais a filosofia, diversamente suturada,
abdicava sobre este ponto. Eles terão, ​à ​sua maneira, prosseguido a ​••me- ​ditação cartesiana • •, e não
foi por acaso que Lacan lançou, desde o começo de sua obra essencial, a palavra de ordem de um ''re-
45
MANIFESTO PELA FILOSOFIA
tomo a Descartes". Talvez mesmo eles só puderam fazer isto recusando o estatuto de filósofo, se
não que reclamando para si, como Lacan, a anti-filosofia. ​A ​situação de pensamento de Freud e de
l...acan ​sem ​dúvida foi a de ​ac~mpanhar, ​como seu avesso, a operação dessubjetivante ​da ​era ​dos
poetas.
Pode parecer singular fazer de l...acan um teórico do amor e não do sujeito, ou do ​desejo~ ​É que
eu ​examinó aqui seu pen- samento do estrito ponto de vista das condições da filosofia. ​É b​ e~
possível (mas o número e ​a ​complexidade dos textos que ele consagra í​ l ​isto não deixam de
constituir sintoma) que o amor não seja ​um c​ onceito central da obra explícita de l...acan. ​É ​con-
tudo pelo viés das inovações de pensamento que tratam disso que seu empreendimento faz evento e
condição para o renascimento da filosofia. De resto, não conheço nenhuma teoria do amor que seja
tão profunda quanto a sua depois da de Platão .. o Platão do B ​ anque~e ​com o qual Lacan dialoga

incanSavelmente. Quando ​Lacan ​escreve: ​"0 ​ser como tal. ​é ​o amor que o vem abordar no

encontro", a função propriamente ontológica que ele indica para o amor mostra bem qual incisão
ele tem consciência, neste ponto, de operar ​nas ​configurações da filosofia.
É ​que o amor ​é ​aquilo a partir do que ​se ​pensa o Dois, em refenda do domínio do ​Um, ​do qual
·entretanto ele suporta a imagem. Sabemos que Lacan procede ​uma ​espécie de dedução lógica do
Dois dos sexos. da "parte" mulher ​e ​da ​"parte;' ho- mem de um sujeito, partitura_que.combiria a
negação e os quan- tificadores - universal e existencial - para ​defi~r ​uma mulher como não-toda e o
pólo masculino como vetor do Todo assim estropiado. O amor ​é ​a ​efetividade desse Dois paradoxal
que, por si mesmo, está no elemento ​da ​não:-relação, do des-ligado. Ele ​é ​a "abordagem" do Dois
como tal. Originado no evento de um encontro (esse .. repentino .. sobre o qual Platão ​já ​insiste
com força), ​o amor trama a experiência ​infinita, ou interminá- vel, disso que desse Dois já
constitui um excesso irremediável sobre a lei do Um. Direi na minha linguagem que o· amor faz
advir como multiplicidade sem nome, ou genérica, uma verdade
46
EVENTOS
sobre a diferença dos sexos, verdade evidentemente subtraída ao saber, especialmente ao saber
daqueles que se amam. O amor é a produção, em fidelidade ao evento-encontro, de uma verdade
sobre o Dois.
Lacan ​é um evento para a filosofia porque agencia ​toda • ​espécie de sutilezas sobre o Dois, sobre
a imagem do Um no des-ligado do Dois, e com isso ordena os paradoxos genéricos do amor.
A.demais, nutrido por sua experiência, sabe também enunciar, em referência e comparação com o
amor cortês, por exemplo, o estado contemporâneo -da questão do amor. Propõe não somente um
conceito, articulado segundo as chicanas da ​<;li- ​ferença e de seu procedimento v​ ivo~ ​mas uma
análise de conjun- tura. Eis porque o anti-filósofo Lacan ​é ​uma condição do renascimento da
filosofia. Uma filosofia ​é ​hoje possível por de- ver ser compossível com Lacan. ·
Na ordem da política, o evento se concentrou na seqüên- cia histórica que vai aproximadamente
de 1965 a 1980 e que viu desencadear-se o que Sylvain ​Lazarus ​chamou de "eventurali- dades
obscuras", quer dizer: obscuras do ponto de vista da p​ o- ​lítica. Encontram-se entre elas: Maio ​de
68 e suas seqüelas, a Revolução cultural chinesa, a revolução iraniana, o movimento operário e
nacional na Polônia ("Solidariedade"). Não cabe di- zer a​ qui ​se esses eventos, enquanto puros
fatos, foram fastos ou nefastos, vitoriosos ou fracassados. O que é certo é que estamos ​na

suspensiJo ​de ​sua nome(lçllo polftica. ​Exceto sem dúvida o ​movimento polonês, essas ocorrências

políticO-históricas são ainda mais


​ opacas quando são elas próprias representadas, na consci- ​ência

de seus atores, por quadros de pensamento cujo caráter elas


​ aliás denunciavam como perecido. É

assim que Maio de 68 ou a Revolução cultural se referiam comumente ao marxismo- ​-leninismo,

cuja ruína logo apareceu - enquanto sistema de re- presentação


​ política - como estando
precisamente inscrita na própria natureza dos eventos. O que se passava, ainda que pen- sado
segundo esse sistema, não era nele pensável. ​Do ​mesmo modo, a revolução iraniana se inscreveu
no seio de uma predi-
47
MANIFESTO PELA FILOSOFIA
cação islâmica freqüentemente arcaizante, ao passo que o núcleo da convicção popular e de sua
simbolização excedia de todos os lados a sua predicação. Nada atestou melhor que um evento ​é
extranumerário, com relação não somente ao seu sítio, mas tam- bém à​ ​língua djsponfvel, do
que esse desacordo entre a opaci- dade da intervenção e a vã transparência das representações.
Desse desacordo resulta que os eventos em questão ​ainda n​ (J() f​ oram n​ omeados. ​ou melhor, que
o trabalho de sua nomeação (o que c​ hamo ​de ​lntervençaa_no ​evento) ​ainda não terminou,
longe.dL~. ​Uma polftig,1 é hoje, ​entre ​outras coisas. a capacidade de esta- bilizar fielmente, e a
longo curso, essa nomeação. A ​ a ​e:xata medida em que
​ ​filosofia está sob condição da política n
o que ela dispõe como espaço conéeitual se verifica homogêneo ​a ​essa es- tabilização cujo
processo próprio ​é, ​ele mesmo, estritamente po- lftico. Vemos como Maio de ​68, ​a Polônia,
etc., participam d​ a ​des-suturação da filosofia: o que ali está em jogo quanto à​ p​ o- lftica, não ​é
certamente ​transitivo ​à ​filosofia, como o ''materia- lismo dialético" pretendia s​ ê-~o ​à política'
staliniana. ​É, ​ao contrário, a dimensão excessiva do evento e a tarefa que esse excesso
prescreve l​ ) ​polftlca q​ ue condicionam ​a ​filosofia, porque ela tem o dever de estabelecer que ​as
nomeações politicamente ​Inventadas d​ o evento são compossíveis com o que simultanea- mente
(quer dizer: para nossa época) f​ az ​ruptura n​ a ​ordem do materna, do ​poema ​e do amor. A ​ ​filosofia
é novamente possível :· justamente porque ela não t​ em ​que legiferar sobre a História ou sobre ​a
política, ​mas ​somente que pensar a re-abertura contem- porânea da possibilidade d​ a ​política, a
partir das eventuralidades obscuras. ​Na ordem do poema, o evento é a obra de Paul Celan, ao

mesmo tempo por ela própria e pelo que ela detém, em última ​linha, da ​era dos poetas por
inteiro. ​É ​sintomático que seja na referência aos poemas de Celan que empreendimentos de
pen- ​samento tão diversos como os ​de ​Derrida, ​de ​Gadamer ou de Lacoue-Labarthe,
pronunciam a inelutável sutura da filosofia a sua condição poética. O sentido que empresto a
esses poemas
EVENTOS
(mas também, num certo sentido, aos de Pessoa e de Mandels- ​tam) ​é ​exatamente inverso.
Leio ali, poeticamente_enunciada, a confissão .de que a poesia não se basta a si mesma, que
ela ​demanda s​ er libertada do fardo da sutura, que ela espera uma ​filosofia libertada ​da

autoridade arrasante do poema. Lacoue- -Labarthe


​ teve a intuição deslocada dessa demanda

quando de- ​cifra em Celan uma "interrupção da arte". A interrupção a meu ver não é a da

​ drarna de Celan·foi ter tido que


poesia, mas a· da poesia ​IJ ​qual a filosofia se ​en- ​tregou. O
afrontar o sentido em não-senso ​da é​ poca, s.ua desorientação, só com o recurso soli- ​tário do

​ palavra tenta: reúne", é ao ​ultra-p~ma


poema. Quando, ​emAnabase, ​ele evoca a "subida" para "a
que ele aspira, à par- ​tilha ​de ​um pensamento menos submerso na unicidade metafó- rica.
​ O
imperativo que nos lega essa poesia, ​o ​evento do qual ela nos preme a achar ​alhures ​o nome,
é ​o apelo poético ​à ​re- ​constituição ​de ​uma coleta em partilha da disposição conceiwal de

nosso tempo, é a formulação, no poema, do ​fim ​da ​era dos ​poetas, da ​qual ​esquecemos demais

que ela fez a glória, mas tam- bém ·o tormento e a solidão de seus ​poetas, ​solidão agravada, ​e
não reduzida, pelas filosofias que ali se suturavam. Tudo repousa, ​é ​bem ​verdade, no sentido
que se ​dá ​ao ​encontro de Celan e ​de ​Heidegger, episódio quase mítico ​de ​nossa época. A tese

de Lacoue-Labarthe é a de que o ​poeta ​judeu so- brevivente ​não ​pôde, o quê? Tolerar?
Suportar? Em qualquer caso,
​ superar o fato de que o filósofo dos poetas guardava em ​sua

presença, e em toda presença, o mais completo silêncio so- bre


​ o extermínio. ​Nao ​duvido por

um segundo de que isto seja ​verdadeiro. Mas ​há ​também, e necessariamente, que ir ver o ​fi-

lósofO era experimentar o que a • 'subida'' para o sentido ​da ​época podia
​ esperar dele no
elemento do ultra-poema. Ora, esse filó- sofo remetia ao poema, precisamente, de sorte que o
poeta ​es- ​tava, diante dele, mais sozinho do que nunca. ​É ​preciso ver bem que
​ a questão de

Heidegger "por que poetas?" pode tornar-se, ​para o poeta, ''por que filósofos?'', e que se a

resposta a essa questão é ''para que haja poetas • •, duplica·se a solidão do poeta,
49
MANIFESTO PELA FILOSOFIA
da qual a obra de Celan faz evento por ter poeticamente pedido que se a resgate. ​Estas ​duas

significações do encontro não são, ​de resto, contraditórias. Como podia Heidegger quebrar o es-
pelho do poema - o que, a seu modo, faz a poesia de Celan - , ele que não acreditou poder elucidar,
na ordem das condições políticas, seu próprio engajamento nacional-socialista? Esse si- lêncio,
além de ofender ​da ​maneira mais grave o p​ oeta ​judeu, era também uma irremediável carência

filosófica, pois levou a seu cúmulo, e até o intolerável, os efeitos redutores e nadifican- ​tes da

sutura. Celan ​pôde ​ali experimentar no que ​é ​que dava, no


​ fundas contas, o fetichismo filosófico do
poema. O mais pro- fundo sentido de sua obra poética ​é ​o de nos livrar desse feti- ​chismo, de

liberar o poema de seus parasitas especulativos, de restituf-lo


​ ​à ​fraternidade de seu tempo, onde ele
terá então que se avizinhar, no pensamento, com o materna, com o amor, com a invenção política.
O evento é q​ ue~ ​no desespero e na angústia, Celan, o poeta, descerra, em poesia, o passe dessa
restituição.
Tais são os eventos que, em cada um dos procedimentos genéricos, condicionam hoje a filosofia.

Nosso dever ​é ​produzir ​a configuração conceitual suscetível de acolhê-los, por menos nomeado's,

ou mesmo percebidos, que eles ainda estejam. Como é que o genérico de Paul Cohen, a teoria do

amor de Lacan, a ​polftica fiel a Maio de 68 e ​à ​Polônia, o apelo poético de Celan ao


​ ultra-poema,
podem ser simultaneamente possíveis para o pen- ​ sarnento? Não se trata de modo algum de
<​

totalizá-los, pois são heterogêneos, não-alinháveis, esses eventos. Trata-se de produ- zir os
conceitos e as regras de pensamento, talvez o mais distante ​de ​qualquer menção explícita desses
nomes e desses atos, talvez o mais ​perto ​deles, isto depende, mais tais que, através desses
conceitos e dessas regras, nosso tempo será representável como o tempo em que ​Isto ​do
pensamento teve-lugar, ​isto que jamais teve lugar, que jamais aconteceu, e que.a partir de então
é p​ ar- tilhável por ​todos~ ​mesmo pelos que o ignoram, porque uma fi- losofia constituiu para todos
o abrigo comum desse ​"ter-tido-lugar", desse "ter acontecido".
50
9. ​Questões
Em seu ​conteúdo, ​o gesto de recomposição da filosofia que proponho é amplamente ditado pela
singularidade dos eventos que afetaram os quatro procedimentos genéricos (Cantor-Goedel- ​-Co~en
para o materna, Lacan para ·o conceito de amor, Pessoa-
·Mandelstarn-Celan para· o poema, a seqüência das eventuralidades obscuras, entre 1965 e 1980,
para a invenção política). As gran- des questões conceituais induzidas-pelo suspense dessas ocorrên-
cias do pensamento, e que se trata de projetar filosoficamente num espaço único (onde serão
pensados os pensamentos de nosso tempo). se destacam bem claramente, uma vez cumprido oba-
lizamento eventural. De resto, mesmo quando negam ​à ​filosofia o direito de existir. e que fazem
polêmica contra a sistemacidade, nossos filósofos, heideggerianos. sofistas modernos, lacanianos
metafísicos, doutrinários d​ o ​poema, sectários das multiplicida- des proliferantes, trabalham todos

essas questões: a gente não ​se ​subtrai tão facilmente ao imperativo das condições, mesmo

desprezado, pois o que o funda teve lugar, ​acomeceu.


Uma primeira questão enire essas ​é ​a do Dois, para além de sua formulação ordinária, quer dizer,
dialética. Mostrei que ele sustentava toda a analítica do amor. Mas ​é ​bem claro que ela está no
coração da inovação política,· na forma do lugar que desde então deve ocupar ali o conflito. O
marxismo clássico foi
51
MANIFESTO PELA FILOSOFIA
um dualismo forte: proletariado contra burguc ,: . Ele fez do an- tagonismo a chave de toda
representação política. " Luta de clas- ses'' e ''revolução'', depois - na visão estatal Jas coisas -
"ditadura do proletariado,, fizeram a armadura do campo de reflexão das práticas: A política só
era pensável na r ·dida em que o movimento da História era estruturado por um ​L' .. ​is es-
sencial, fundado no real da economia e da exploração. A política "concentrava a economia", o
que quer dizer que ela organizava a estratégia do Dois em torno do poder d​ o ​Estado. Ela tinha
como fim último a destruição da maquinaria política do adversário, ela substituía
os..confrontos dispersos e mais ou menos pacíficos que opõem, no terreno social, os
explorados aos exploradores, por um confronto global, cada classe estando projetada num
órgão polftico que a representa, um partido polftico de classe. Ulti- mamente, só a violência
(insurreição ou guerra popular prolon- gada) podia resolver o conflito. Mas precisamente, o
que as e​ ventu~idades ​obscuras dos anos ~​ ​70 trouxeram à​ ​ordem do dia, foi o declínio, a
inoportunidade históricà dessa potente con- cepção. O .. que se procura hoje é​ ​um pensamento
da política que, mesmo tratando o conflito, tendo o Dois estrutural no seu campo de.
intervenção, não tome esse Dois por essênCia objetiva. ​Ou ​melhor, à doutrina objetivista do
Dois (as classes são transitivas ao processo ​de ​produção), a inovação política em curso tenta

opor uma visão do Dois "em hístoricidade", · o que ​quer dizer que o ​Dois ​real ​é ​uma ​produç!Jo

eventural, uma pro- dução


​ política, e não um pressuposto objetivo, ou "científico". Devemos
hoje proceder um ​reviramento ​da questão do Dois: tipo mesmo ​do ​conceito em objetividade
(a luta de classes. ou a dua- ljdade dos sexos, ou o Bem e o Mal.. .. ), ele vai se tomar aquilo
que amarra a produção aleatória que se remete a um evento. O Dois, e não como dantes o Um,
é ​o que advém, o Dois ​é ​pós- -eventural. O Um (a unidade de cJasse, a fusão amorosa, a Sal-
vação ... ) era participado pelo homem como sua dificuldade e sua tarefa. Estaremos mais
dispostos a pensar que nada ​é ​mais difícil que o Dois, nada ​é ​mais submetido simultaneamente
ao
52
QUESTOES
acaso e ao labor fiel. O mais alto dever do homem é o de pro· duzir conjuntamente o Dois e o

pensamento do Dois, o ​exercfcto ​do Dois. ​A segunda questão ​é ​a do objeto e da objetividade. Mos-
trei que a função decisiva dos poetas foi estabelecer que o acesso ao ser e ​à ​verdade supunha a
destituição da categoria de objeto como forma orgânica da apresentação. ​O ​objeto ​pode muito bem
ser uma categoria do saber. Ele faz obstáculo à produção ​pós· ​-eventural das verdades. A
desobj~tivação ​poética, condição de uma abertura ​à ​nossa época como ​época ​desorientada, autoriza o
enunciado filosófico seguinte, em sua nudez radical: tQda ver- dade é ​sem objeto.
O problema fundamental ​é ​então o seguinte: a destituição da categoria de objeto acarreta a
destituição da categoria de.su:.. jeito? Este é, sem nenhuma dúvida, o efeito visível da maioria dos
poemas da era dos poetas. Notei a pluralização, a dissemi- nação do sujeito em Rimbaud, seu
ausentamento em Mallanné. O sujeito da poesia de Trakl só ocupa o lugar do Morto. Hei· degger,
suturado aos poetas, houve por ​bem ​dizer que é impos· sível pensar o sítio con.temporâneo do
Homem a partir das categorias de sujeito e de objeto. ​A c ​ acan só foi o guardião do
​ ontrario, L
sujeito na medida em que retomou ​também, ​reela· borou, a categoria de objeto. En.quanto causa do
desejo, o objeto lacaniano (bem próximo, a bem dizer, por seu caráter insimbo- 1izável e pontual, do

"objeto transcendental ​= ​x .. de ​Kant) é ​detenninação do sujeito ​em seu ser, ​o que Lacan explícita
assim: "Esse sujeito que crê poder aceder si mesmo, ao se designar no enunciado, não ​é ​outra coisa
senão esse tal objeto".
Podemos resumir a situação a partir da lógica, das suturas, ​tal ​como ela presidiu até hoje odes-ser da
filosofia contemporânea. As filosofias suturadas a sua condição científica fazem a maior questão da
categoria de objeto, e a objetividade é​ ​sua norma re- conhecida. As filosofias suturadas ​à ​condição
política, quer di· zer, as variantes do "velho marxismo", ou bem afirmam que o sujeito "emerge" da
objetividade (passagem da "classe-em-
53
MANIFESTO PELA FILOSOFIA
-si" ​à ​"classe-por-si", geralmente por virtude do Partido), ou bem, mais conseqüentes, destituem o
sujeito a favor ​da ​objeti- vidade (para Althusser, a matéria da verdade depende do pro- cesso sem
sujeito), e se juntam p​ arado~Jmente ​a Heidegger, fazendo do sujeito um simples operador ​da ​ideologia
burguesa (para Heidegger, "sujeito" ​é ​uma elaboração secundária do reino ​da ​técnica, mas a gente
pode se entender, se esse reino é​ ​de fato t​ ambém ​o ​da ​burguesia). Para os filósofos suturados ao
poema, ou mais geralmente ​à ​literatura, às artes mesmo, o pensamento dispensa tanto objeto quanto
sujeito. Para os lacanianos, enfim, ​há ​conceitos aceitáveis tanto como de um como do outro. Todos
estão de acordo num único ponto, que ​é ​um axioma tão geral da modernidade filosófica que não
posso deixar de me juntar a ele: em todo caso, não se trata de definir a verdade como ''ade- quação do
sujeito e do objeto''. Todos divergem quando se trata de dispor efetivamente a crítica da adequação,
pois não estão de acordo sobre o estatuto dos termos (sujeito e ~​ bjeto) ​entre os quais ela opera.
Notaremos que esta tipologia deixa um lugar vazio: o de um pensamento que manteria a categoria de
sujeito, mas conce- deria aos ​poetas ​a destituição do objeto. A tarefa de tal pensa- mento ​é ​produzir
um conceito de sujeito tal que não se sustente COlll.nenhuma menção ao objeto, um. sujeito, se
assim posso di- ~​ r, ​sem contraparte. ​Este lugar tem ​má ​reputação, p​ ois ​evoca o idealismo absoluto
do bispo Berkeley. Entretanto, é em ocupar esse lugar, como se terá compreendido, que eu me
empenho. Tenho por central, com vistas a um renascimento ppssível da filosofia, o problema do
sujeito sem objeto, ​assim como a de- sabjetivação, operando a ​~unção · ​entre a verdade e o saber,
fundou a era dos ​poetas, portanto ​a crítica decisiva das suturas positivistas e marxizantes. De.resto.
afirmo que um só conceito, o de procediment() genérico, subsume a ​desobjetiv~o ​da ver- dade e a do
sujeito, fazendo aparecer o sujeito como simples frag- mento finito ​de ​uma verdade p6s-eventural
sem objeto. Só na via do sujeito sem objeto é que poderemos simultaneamente ​~
54
.QUESTOES
-abrir a ​"meditação ​cartesiana" e continuar fiéis ​às ​aquisições ​da ​era dos ​poetas, ​numa fidelidade
propriamente filosófica, ​por- ​tanto ​des-suturada. Pensando bem, ​é ​a ​tal ​movimento do pensa- mento·
que, estou convencido disto, nos convocam os poemas ​de ​Paul Celan, e particularmente essa injunção
misteriosa que combina a idéia d ​ e ​que o acesso ao ser ​não ​é ​pela via aberta e majestosa da objetividade

com ​a ​prevalência subtrativa das ​mar- ​cas, ​da inscrição, sobre ​a ​extensão enganosa da doação sensível:
"Um sentido nos chegatambém pela vereda ​mais ​estreita que fratura a mais mortal das ​nossas ​marcas
erigidas"
A terceira questão ​é ​a do indiscernfvel. A soberania da língua ​é ​hoje um dogma geral, se bem que, entre
a • 'tfngua exata" com que sonham os positivistas e o "dizer poético" dos heideg- gerianos, haja bem
mais do que um mal-entendido sobre a .es- sência ​da ​linguagem. Exatamente como um abismo separa o
nominalismo integral de Foucault e a doutrina do simbólico de Lacan. Contudo, sobre o que todos estão
de acordo, inscritos que estão no que Lyotard chama "a grande virada linguageira" da filosofia
ocidental, é que, nas ourelas da linguagem e do ser, não há nada, e que ou bem existe uma possível
"coleção do ser" na linguagem, ou bem o que é só. ​é ​tal por ser nomeado, ou bem o ser como tal ​é
subtraído ​à ​linguagem, o que jamais teve outr<> sentido que não o de o entregar a uma ​outra lfngua,
seja do po- eta, do Inconsciente ou de Deus.
Já ​indiquei que, sobre este ponto, ​só ​o materna nos guia. A convicção contemporânea é a mesma de
Leibniz: não poderia haver indiscernfvel para o pensamento, se entendemos por "in- discernfvel" um
conceito e​ xplícito do que é subtraído ​à ​língua. Do que ​é ​subtraído ​à ​língua não pode haver conceito,
nem pen- samento. ​É ​a razão pela qual o insimbolizável real de Lacan ​é
55
MANIFESTO PELA FILOSOFIA
o "horror", ​do ​mesmo modo ​que ​ao que advém, enquanto ad- vento, Lyotard crê ​que ​se deve dar o
nome de "frase". O que não é nomeáv.er, é melhor ​manter ​à. ​di,tância do pensamento. Do "pdncípio
dos indiscerníveis" de Leibniz, Wittgenstein deu, no fim do ​Tractatus, ​a versão que faz consenso; ​''O
de que é impossível falar, é preciso calar". Ora, nós sabemos, depois do evento no materna que

constituem ​os o​ peradores de Paul Cohen, ​que ​é muito exatamente possível produzir um conceito de

indis- cernfvel,
​ e ​de ​estabelecer, sob certas condições, a existência de multiplicidades que caem nesse
conceito, as multiplicidades "ge- néricas''. ​É ​portanto simplesmente falso que ​o d​ e que não po- demos
falar ​(no ​sentido de que não ​há ​nada ​a ​dizer ​a ​seu respeito que o especifique, que lhe dê propriedades
separadoras), deve- mos calar. Devemos, ao contrário, nomeá-lo, devemos discerni· -lo como
indiscernível. Não estamos ​mais ​obrigados, se aceitarmos estar dentro dos efeitos da condição
matemática, a escolher entre o nomeável e ​o i​ mpensável. Não estamos mais suspensos entre o que
tem ​explicitação dentro da língua e o ​de ​que ​s6 s​ e tem uma "experiência" inefável, se não
insustentável, e que des- monta o espírito. Pois se o indiscernível põe a pique o poder separador da
linguagem, não é​ ​por isso menos proposto a ​ o ​con- ceito, o qual pode legiferar demonstrativamente

sobre sua exis- tência. ​Deste ponto, ​é ​possível retomar o objeto e o Dois, e mos-. trar
​ o vútculo

profundo que existe entre nossos três problemas. . ​Se. ​a verdade não tem o que fazer da categoria de

objeto, é pre- cisamente


​ porque ela é sempre, como resultado de um proCedi- mento infinito, um
mútiplo indiscem{yel. Se o Dois ​é ​estrangeiro a qualquer fundamento objetivo da política ou do amor,
é porque esses procedimentos ​visam l​ ndiscemitsub-conjuntos, e​ xistenciais ou populares, e não
lançá-los "contra'' o que domina sua situação. ​É ​que um amor ​suplemento u​ ma vida, mais do que a
liga a uma outra. ​É ​que uma política, a partir de seu evento fundador, tende a delimitar o
indelimitável, a fazer existir como múltiplo pessoas cuja lfngua estabelecida não pode apreender nem
a comunidade
56
OUESTOES
nem o interesse: ​Se ​enfim o Dois é um:1 produção, e não um ​es~do, ​é ​porque o que E>.le
distingue, passo a ​~asso, ​da situação em que reina o Um ​nãl · ​"um outro Um", .nas a figura ima-
nente daquilo que ​nllO ​fm contado.
A .filosofia deve hoje nodular a destituição do objeto, a reversão da instância do Dois, e o
pensamento do indiscernfvel. Ela deve sair fora, ​só a favor ​do ​sujeíto. d​ a forma da objetivi-
dade, tomar o Dois por uma descendência, aleatória e tenaz, do evento, e identificar a verdade ao
qualquer, ao sem nome, ao genérico. Fazer o· nó dessas três prescrições supõe um espaço de
pensamento complexo, cujo conceito central ​é ​o de sujeito sem objeto, ele mesmo conseqüência
da genericidade como de- vir fiel, dentro do próprio ser, de um evento que o suplementa. Tal
espaço, se chegarmos a agenciá-lo, acolherá a figura contem- porânea das quatro condições da
filosofia.
Quanto ​à ​sua /​ o11M, o​ gesto filosófico que proponho ​é ​platônico.
. 57
10. Gesto platônico
Registrar o fim de urna era dos poetas, convocar comove- tor da ontologia as formas contemporâneas
do materna, pensar o amor em sua função de verdade, inscrever as vias de um co- meço da poHtica:
estas quatro feições são platônicas. Platão tam· bém deve manter os poetas, cúmplices inocentes da
sofística, no exterior do projeto de fundação fiJosófica, incorporar ​à ​sua visão do "logos" o tratamento
matemático do problema dos números irracionais, fazer justiça, na ascensão para o Belo e para as Idé-
ias, ao repentino do amor, e pensar o crepúsculo da Cidade de- mocrática. Ao que é​ ​preciso
acrescentar que, assim como Platão tem por interlocutores ao mesmo tempo coriáceos e portadores de
modernidade, os profissionais da sofística, também a tenta- tiva de radicalizar a ruptura para com as
categorias clássicas do pensamento de'fme hoje o que é razoável chamar de uma ''grande sofística"
que se remete essencialmente a Wittgenstein. Im- portância decisiva ​da ​linguagem e de sua
variabilidade em jogos heterogêneos, dúvida quanto à pertinência do conceito de ver- dade,
proximidade retórica dos efeitos da arte, política pragmá- tica e a​ berta: ​quantos traços comuns aos
sofistas gregos e a tantas orientações contemporâneas, e que explicam porque os estudos e referências
consagradas a Górgias ou Protágoras se multipli- caram recentemente. 'Estamos, também nós,
confrontados com
59
MANIFESTO PElA FILOSOFIA
a obrigação de uma crítica do rigor sofista, no respeito de tudo que ela comporta de ensinamentos
sobre a época. ​O ​jovem Platão sabia que era preciso ao mesmo tempo ultrapassar as chicanas sutis da
sofística e se instruir junto a elas sobre a essência das questões do seu tempo. Nós também. Que a
transição em curso entre a era das suturas e a era de um ·recomeço da filosofia veja o reino dos
sofistas, é inteiramente natural. A grande sofística moderna, linguageira, estetizante, democrática,
exerce sua função dissolvente, examina os impasses, retrata o que nos é contem- porâneo. Ela é para
nós tão essencial quanto o libertino o foi para Pascal: ela nos I​ nstrui s​ obre as singularidades do
tempo. Configuração anti-sofística do·matema (inaugural), dopo- ema (dispensado), da política
(refundada) e do amor (pensado). o . .gesto filosófico que proponho é​ ​um gesto platônico. O ​ ​século,
até ​hoje, foi anti-platônico. Não conheço nenhum tema que seja mais disseminado, nas ​e~colas
filosóficas as mais variadas e as mais dilaceradas, do que o anti-platonismo. Na rubrica "Platão" do
dicionário filosófico encomendado por Stalin; lia-se: " ideó- logo dos proprietários ​d~ ​escravos''. o
QUe ​era curto e grosso. Mas o existencialismo sartreano, em sua polêmica contra as es-' sências, tinha
por alvo Platão. Mas Heidegger data da "virada platônica • •, qualquer que seja seu respeito pelo que
ainda há de grego no recorte l​ ~inoso ​da Idéia, o começo do esquecimento. Mas a filosofia
contemporânea da linguagem t​ <~ma ​o partido .elos sgfistas ~​ ontra ​Platão. Mas o pensamento dos
direitos do homem faz remontar a Platão a tentação totalitária - o que ​é ​notável na inspiração de
Popper. Mas Lacoue-Labarthe procura caçar. na relação ambígua de Platão com a rnimese, a origem
do des- tino da política no Ocidente. Não acabaríamos de enunciar todas as seqüências
anti-platônicas, todos os agravos, todas as descons- truções, que Platão sofre.
O ​grande "iiJ.ventor" do a​ nti-platon~smo ​comemportneo. na_aurora da sutura da filosofia ao poema, e
porque o platoni$IPO ~​ ra ​a principal interdição ​de ​tal sutura, foi Nietzsche. Conhece- mos o
diagnóstico estabelecido por Nietzsche no prefácio de ​Pa-
60
GESTO ​PLAT0NICO
ralém d​ e M
​ al e Bem: "​ Por menos médicos que sejamos, podemos . mesmo nos perguntar quem
pôde infectar com essa doença Platão a mais bela planta humana da Antiguidade". Platão é o
nome da doença espiritual do Ocidente. O próprio cristianismo ​é ​ape- nas um "platonismo para
uso do povo". Mas o que enche Nietzs- che de alegria, o que enfim dá curso aos "espíritos livres",
é que o Ocidente entra em convalescença: "a Europa respira, con- solada desse pesadelo' •. ​De
fato, a ultrapassagem do platonismo foi engajada e essa ultrapassagem em curso libera uma
energia de pensamento sem precedente: "A luta contra Platão( ... ) criou na Europa um estado de
tensão espirirual magnífico e até agora desconhecido". Os "espíritos livres, muito livres", os "bons
Europeus'', seguram em suas mãos o arco assim tendido, e pos- suem "sua flecha, seu manejo e,
quem sabe?, tz1vez seu ​alvo". S​ abemos que logo vai aparecer que esse "alvo" é​ - ​dissipada a
sangrenta, inominável mentira de sua assunção política - a pura e simples entrega do pensamento
ao poema. A. polêmica de Nietzsche contra a "doença-Platão", o ponto de aplicação da

terapêutica européia, concerne ao conceitq de verdade. O ​axioma radical a partir do qual

​ o velório do platonismo, velório que ​é ​também a vigília e o


"espíritos livres" podem garan- tir
despertar do pensamento, está em dispensar-se a verdade: "Que um jufzo seja falso, isto ​n~o ​é, a
nosso ver, uma objeção contra esse juíw" . Jl{ietzsche abre um século entregue aos antagonis-
mo.s ​e ​às potências, por essa completa erradicação da referência ​à ​verdade, tida como o maior
sintoma da doença-Platão. Curar- -se do platonismo é, primeiro, curar-se da verdade. E essa cura
não será completa se não se acompanhar de um Q9io resoluto
·pelo ​matema, tido como uma carapaça dentro da qual se aninha a fraqueza doente do platônico:
"O que dizer do alfarrabismo matemático .com que Spinoza acaba de encouraçar e mascarar sua
filosofia ( ... ) a fim de coagular de saída a coragem do as· saltante ( ... )​ ~quanta ​timidez, quanta

vulnerabilidade pessoal trai essa mascarada num anacoreta doente!''. A filosofia por aforis· ​mos e
fragmentos, poemas e enigmas, metáforas e sentenças,
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MANIFESTO PELA FILOSOFIA
todo o estilo nietzscheano que teve tanto eco no pensamento con- temporâneo, se énraíza na dupla
exigência de destituição da ver- dade e de dispensa do materna. Anti-platônico ao extremo .•
Nietzsche inflige ao materna a sorte que Platão reserva ao po- ema, a de uma suspeita fraqueza, de
uma doença do pensamento, de uma "mascarada".
Não h​ á ​d4vida de que Nietzsche foi durave1mente vence- dor. É verdade que o século "se curou" do
platonismo, e que, no seu pensamento mais vivo, ele se suturou ao poema, aban- donando o materna

às raciocinações da sutura positivista. A prova ​a contrario n​ os ​é ​dada pelo seguinte: o único

grande pensamento abertamente


​ platônico, e ao mesmo tempo moderno, foi o de Al- bert Lautman,
nos anos trinta. Ora, este pensamento é de ponta . a ponta armado pelas matemáticas. Ele ficou por
muito escon- dido e deconhecido, depois que os nazistas, tendo assassinado Lautman,
interromperam seu. curso. Ele ​é ​hoje o único ponto de apoio que podemos descobrir, em quase cem
anos, para a pro- posição platônica que o atual momento exige·de nós, se coloca- mos de lado a
espontaneidade ''platonizante'' de muitos matemáticos, em particular Goedel e Cohen e, ​é ​claro, a
doutrina lacaniana ​da ​verdade. Tudo se passou como se o proferimento · nietzscheano houvesse
cerrado, ​à ​guisa de sutura ao poema, o destino conjuntamente anti-materna e anti-verdade de um
século. Hoje é​ ​preciso inverter o diagnóstico nietzscheailo. O século e · a Europa devem
imperativamente curar-se do anti-p.latonismo. A filosofia só existirá na medida em que proponha, ​à
altura deste momento, uma nova etapa da história da c​ ategori~ ​de verdade. É a verdade que é​ , ​hoje
em dia, uma idéia nova na Europa. E, como para Platão, como para Lautman, ·a novidade dessa
idéia se ilumina na freqüentação das matemáticas.
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11. Genérico
O que um filósofo moderno retém da grande sofística ​é ​o seguinte ponto: o ser· ​é ​essencialmente
múltiplo. ​Já· ​Platão, no ​Teeteto, a​ pontava que a ontologia subjacente ​à ​proposição sofís- tica se
sustinha na mobilidade múltipla do ser e, com ou sem razão, ele cobria essa ontologia com o nome
de Heráclito. Mas Platão resguardava os direitos do Um. Nossa situação ​é ​mais com- plexa, pois
temos que registrar que, na escola da grande sofística moderna, depois de duros avatares, nosso
século terá sido o da contestação do ​Um. O ​sem-ser do Um, a autoridade sem 'nmite do múltiplo,
não podemos voltar atrás quanto ​a i​ sto. Deus ​re- ​almente está morto, assim como todas as
categorias que dele de- pendiam na ordem do pensamento do ser. ​Q ​passe que ​é ​o nosso ​é. ​o ​de
​ últiplo.
um ​platonismo d​ o m
Platão pensava poder arruinar a variância linguageira e a retórica da sofística a partir das aporias
de uma ontologia do múltiplo. Certamente que, por nossa -vez, reencontramos essa junção entre a
disponibilidade flexível da linguagem (teoria de Wittgenstein sobre os jogos de linguagem) e a
forma-múltiplo da apresentação (finos levantamentos descritivos de um Deleuze). Mas o ponto
​ últiplo e preferir marcar os limites radicais do que a
fraco mudou de lugar: devemos ​assumir ​o m
linguagem pode constituir. Donde o caráter crucial da questão do indiscernfvel.
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MANIFESTO PEtA FILOSOFIA
A principal dificuldade se prende ​à ​categoria ​~e ​verdade. ​Se ​o ser ​é ​múltiplo. como salvar esta·
categoria. salvação que ​é ​o verdadeiro centro de gravidade de todo gesto platônico? Para que haja uma
verdade, não ​é ​preciso primeiro que seja pronun- ciado o Um de uma multiplicidade, e não ​é ​a
propósito desse Um que o juízo de verdade ​é ​possível? Ademais, se o ser ​é ​múl- tiplo, ​é ​preciso que
uma verdade também o seja. salvo que ela não tenha mais nenhum ser. ​Mas. c​ omo conceber uma
verdade C;Omo múltipla em seu ser? Atendo-se firmemente ao múltiplo, a grande sofística moderna
renuncia ​à ​categoria de verdade, como já o faziam os ''relativistas'' ​da ​sofística grega. A inda aí,
Nietzs- che inaugura o processo da verdade. em nome da múltipla po- tência da vida. Como não
podemos nos subtrair àjurisdiçãq dessa potência sobre o pensamento do ser, ​é ​forçoso propor uma
dou- trina da verdade compatível com a irredutível multiplicidade do ser-enquanto-ser. Uma verdade
não pode ser senão a produção ~​ guiar ​de um múltiplo. Toda a questão ​é ​que esse múltiplo será
subtraído à autoridade da língua. Ele será indiscernível, ou me- lhor: ele ​ter~ ​s(do ​indiscemfvel. ·
Aqui, a categoria central ​é ​a ​~ultiplicidade ​genérica. ​Ela· vem fundar o platonismo- do múltiplo,
permitindo pensar uma verdade ao mesmo tempo como resultado-múltiplo de um pro- cedimento
singular. e como furo, ou subtração, no campo do nomeável. Ela toma possível assumir '4ma
ontologia do múltiplo puro, sem renunciar à verdade, e sem ter que reconhecer o ca- ráter constituinte
da variação linguageira. Ela ​é. ​ademais, o es- queleto de um espaço ​de ​pensamento onde se deixam
recolher,
· e situar como compossíveis. as quatro condições da filosofia. Poema, materna, política inventada e
amor. em seu estado con- temporâneo, não serão com efeito nada mais do que os regimes ​de ​produção
efetiva, ​em situações múltiplas, de múltiplos gené- ricos. fazendo verdade dessas situações.
É n​ o campo ​da ​atividade matemática que o conceito de múltiplo genérico foi primeiro produzido. Ele
foi com efeito pro- posto por Paul Cohen, no começo dos anos sessenta, para resol-
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