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Mario Lavista

Entrevista concedida a
José Eduardo Marfins

A crise das vanguardas, os paradoxos do ro. Pretendíamos e opúnhamos uma questão de


nacionalismo, as possibilidades de uma nova juízo, valores largamente estabelecidos pela
orquestra baseada no emprego abrangente dos tradição, inclusive a definição mesma da mú-
instrumentos tradicionais e o retomo ao passa- sica.
do atemporal são alguns dos temas abordados
por Mario Lavista, um dos mais destacados Os seus estudos durante a juventude ti-
compositores e pensadores latino-americanos e veram Paris como uma das bases. No periodo
diretor da revista Pauta, durante o Simp6sio de maio de 68, você participou dos aconteci-
Latino-Americano de Música Contemporãnea, mentos ligados à revolta estudantil que visa-
realizado em Campos do Jordão, por ocasião va, entre outras aspirações, a derrubada de
do 202 Festival de Inverno, em julho de 1989. privilégios. Vinte anos depois, qual a suare-
flexão a respeito?
A sua trajetória iniciada no México e
percorrida posteriormente no exterior, Fran- Vivi esse movimento, movimento libera-
ça preferencialmente, fez com que você des- dor. Foi um pensamento coletivo. Acreditáva-
mos que aos anos 20 poderíamos mudar o
cortinasse as mais dispares correntes musi-
cais, reciclando-as . Como se processou a as- mundo, mudar a maneira de funcionar esse
similação? mundo. Creio que foi tudo uma utopia. Mudar
Nos anos 60 e 70 fiz música altamente o mundo, hoje para mim, é também mudar a si
intelectualizada, que pretendia integrar-se às mesmo, é modificar as estruturas mentais que
chamadas vanguardas musicais. Estas davam nos marcaram desde a infância. 68 foi o vis-
ênfase ao conceito ou à idéia, preferencial- lumbre de novas opções do mundo e da vida,
mente à realização mesma da obra. Nessa épo- -6 observar que o conhecimento não só pode
ca, era mais importante o que se pensava sobre ser alcançado através do intelecto, mas através
a obra do que a obra mesma. Havia, inclusi- dos sonhos e da intuição, do sentimento e do
ve, a nítida tendência de se negar certas cons- amor, e não da reflexão.
tantes na arte e na música, como a expressão e
a emoção, ou mesmo o conteúdo espiritual. Você entende como diferentes os movi-
Pensávamos que era mais importante inventar mentos estudantis da França e do México no
periodo?
o descobrimento do que redescobrir a in-
Sim, profundamente diferentes. No Mé-
venção. A tendência era a busca do original
voltado à novidade antes de qualquer outra in- xico temfamos ser assassinados. Na França
nunca houve a sensação de que a vida corria
tenção. A diferença se mostrava acentuada en-
perigo. Jamais. Havia a repressão, mas não
tre uma e outra obra de um mesmo autor, ou
até de autores diversos. Era necessário ser di- uma vontade de matar fisicamente.
ferente, não sendo possível ver-se uma evo-
lução no pensamento e na linguagem musicais. Como você vê a geração dos anos 60 e a
dos anos 80?
Acredito que a vanguarda foi importante.
Era necessária essa reflexão, essa intelectuali- Vivi intensamente os anos 60. Não só o
zaçâo, pois enfrentávamos uma crise de lin- movimento de 68, mas toda a idéia de amo!' li-
guagem e tomava-se contundente enfrentar vre, das drogas. Tudo isso eu vivi. O curioso é
abertamente a geração precedente, negar o que a partir de 68, o mundo se colocou à direi-
passado e querer começar praticamente do ze- ta, em lugar de ir em direção ao liberalismo,
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Pouco a pouco, os governos e as instituições México, como exemplo, muitos que se abriga-
caminharam para a direitização. ram na vanguarda musical estão hoje despre-
Comparando a geração de 60 à de 80, zados, porque não têm a técnica necessária.
vejo esta corno monstruosa, pois iroersa nos
meios de comunicação. É uma geração ho- E o campo das partituras gráficas, tan-
mogênea, que necessita as mesmas coisas na tas vezes encobrindo a inaptidão?
França, Brasil ou México. Os jovens vêem os
mesmos programas. Contrários aos da geração O compositor de ofício, que conhece a
de 60, heterogêneos, individualizados e idea- técnica, tende a escrever para o violino solo
listas. conhecendo o idioma do violino solo. Quando
a partitura era gráfica, não era necessário co-
Durante o período de formação no exte-
nhecer a técnica do violino, pois simplesmente
rior, você esteve ligado às vertentes vanguar-
se escreviam caminhos, possibilitando a im-
distas, havendo bem posteriormente uma
provisação por parte do intérprete, deixando
tendência a se acentuar, em sua obra, de uma mesmo o todo às asas da imaginação. No cer-
volta não a um passado musical tradicionali- ne, não existia por parte do compositor o co-
zado, mas ao passado atemporal e misterio- nhecimento apríorístíco do idiomático do vio-
so, poético, meditativo, nostalgicamente per- lino e nem a técnica musical. Isto resultou no
dido. ostracismo de tantos compositores de van-
Realmente integrei-me e realizei música
guarda.
intelectualizada. Pouco após dei-me conta de
que o importante não era o esquecer, mas re-
Você observou o idiomático violinistico,
cordar e recuperar a memória e sentir-se parte Sustenta-o uma notação que deveria ser inte-
desse fluxo que é a história da música, sentir a ligível. Apesar .do grafismo e sua problemáti-
aura da música do passado e voltar a integrar ca, a notação musical que vem evoluindo des-
no ato mesmo da criação, a emoção, a ex- de alguns séculos antes da nossa era tem
pressão, o ter-se algo para dizer. A música uma "aparente" estabilidade durante os úl-
diz, fala e é eloqüente em seus próprios ter- tintos séculos e nesta década sofre uma ruptu-
mos, dos sons, sendo a maior depositária da
ra. Pareceria mesmo que regressartamos à
mem6ria dos homens, sendo integrante da profusão neumática conservada nos mosteiros
história da humanidade e da alma humana. gregorianos na Idade Média.
Poucas artes têm a capacidade de penetrar pro-
fundamente o ser humano - quiçá a poesia A notação é uma convenção surgida da
também - fazendo descobrir em nós regiões necessidade. Sofreu evolução e mudanças
ocultas. Música e poesia são irmãs gêmeas e constantes sobretudo em certos períodos parti-
capazes de nos dar um conhecimento muito cularmente críticos. Um deles na Idade Média,
preciso do homem. Essa assertiva me faz crer quando do passar da Ars Antiqua para a Ars
que a vanguarda acabou. Há muitos anos. Nova no século 13--14, época em que Franco
de Colonia e Guillaume de Machaut na França
Você entende o problema como geral? E e Francesco Landino na Itália começam a in-
quanto àqueles que penrumeceram nas van- ventar uma nova simbología, pois necessita-
guardas? vam signos que pudessem dar conta dos novos
O abandono das vanguardas se dá em to- ritmos que estavam surgindo. Uma transfor-
dos os países. Não creio que seja uma atitude mação radical surgida no século 20 possibilita
pessoal. É algo que se sucede nos centros mais mais sfmbolos para a escrita musical. POI"
avançados, inclusive na França. É certo que exemplo, sabemos escrever um golpe no vio-
há compositores mergulhados nas vanguardas. loncelo, harmônicos em um piano. A notação
Me refiro a uma certa corrente artística musi- tradicional não tinha esses signos, pois não
cal que enfatiza mais o conceito do que a rea- existiam os elementos. O compositor hoje tem
lização mesma da obra. No caso da música, é possibilidades de anotar de maneira bem mais
quando vemos aparecer uma grande quantida- precisa. Isso resulta que praticamente não há
de de partituras gráficas que me parecem im- diferença entre o que vou executar e aquilo
portantes, mas que colocam em julgamento a que vou ouvir. Imagino um quarteto de cordas,
notação musical. Acontece que presentemente necessitando anotá-to com tal precisão para os
estamos voltando ao compositor de ofício, que intérpretes, tendo às mãos tantos signos enri-
não somente pode imaginar música, mas quecidos, que no momento em que ouvir fisi-
também escrevê-Ia. É um fato certo que nos camente, quase não haja diferença entre o que
movimentos de vanguarda citados praticamen- escrevi internamente e o que estou escutando
te qualquer pessoa poderia ser compositor. No acusticamente.
~
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Da notação à técnica. Schoenberg, Toda a experiência cumulativa gráfica,


Stravinsky debruçaram-se sobre talento, esti- eletroacüstica, improvisada teria resultado
lo, técnica, dando a esta W7Ul função im- TUU71 novo "approach" criativo. Ouvindo-se
placável no todo. Reflejos para Quarteto de Cordas percebe-se
Acredito que o trabalho da técnica é este novo trilhar, no qual experienciaçôes
aquele que nos permite ser livres. Quanto mais acústico-instrumentais parecem seduzi-Ia.
técnica, mais o artista é livre para imaginar. Há dez anos aproximadamente encami-
Um pintor que sabe o gesto, que mistura as nhei-me prioritariamente à exploração e ao es-
cores, que conhece os vários processos da arte tudo de novas possibilidades técnicas e ex-
a que se dedica, seria mais livre do que aquele pressivas de instrumentos tradicionais. Creio
que tem técnica deficiente. Técnica deficiente que vivemos um renascimento instrumental. Se
implica não a realização do que queremos e recordarmos os anos 50, o infcio da música
sim do que podemos fazer. Ofício e técnica concreta e da música eletrônica, falava-se in-
tornam o artista mais preparado para expressar clusive que ambas deveriam deslocar a mdsica
o que quer. Assim, o compositor de "métier" instrumental. Afortunadamente isto não acon-
imagina a música encontrando sempre instan- teceu. Pode haver, isto sim, uma coexistência
taneamente os meios de exprimir e anotar essa entre esses meios de expressão. Naturalmente,
música. graças à tecnologia sofisticada, podemos estu-
dar mais profundamente a acústica dos instru-
A sua trajetória marca incursões no uni-
mentos. Conhecemos hoje muito mais sobre os
verso eletroacústico . Este está em expansão
instrumentos do que há um século. Sabemos
em segmentos definidos da produção sonora.
mais sobre a flauta do que há um século,
Toda a evolução que se processa de maneira
quando Bõhm inventou as chaves da flauta. Is-
imprevistvel; fantástica e rápida nesse seg-
to se deve aos sofisticados aparatos ele-
mento continua a fasciná-to?
troacústicos. Também parece-me fascinante
Interessei-me pela música eletrônica pro-
poder trabalhar com um clarinete, instrumento
curando compor obras usando seus recursos.
que Mozart amou profundamente e que havia
O meu interesse era, na verdade, mais intelec-
sido inventado não muito tempo antes. O cla-
tual do que emotivo. Interessava-me menos a
rinete pode proporcionar muitíssimas vozes
música escrita para uma fita do que o processo
que se mantêm ocultas em si mesmas. O mes-
criador e mterpretativo realizado por uma s6
mo se dá com a flauta. Estas novas técnicas
pessoa: o compositor e a sua versão única,
nos permitem descobrir universos sonoros iné-
aquela que o próprio gravou na fita. Meu inte-
ditos. Não estamos cometendo um ultraje à na-
resse era intelectual. Fascinava-me o fato de
tureza instrumental, Estamos, sim, aceitando
poder ser simultaneamente autor e intérprete
tudo o que os instrumentos nos oferecem e que
da obra. Abandonei naturalmente a música
a tradição havia excluído. No caso dos instru-
eletrônica quando conscientizei-me dessa inte-
mentos de .sopro refiro-me às possibilidades
lectualidade norteadora.
polifônicas, contrapontísticas, ao fato de po-
Mas a música eletrônica parece ter sido dermos realizar acordes de vários sons e po-
a geradora de pesquisas instrumentais. Não dermos manejar com dedilhados especiais to-
continuá a ser presença em sua produção? das as escalas microtonais e tantas outras pos-
É certo. Conscientemente compreendo sibilidades. No caso dos instrumentos de corda
que a minha criação instrumental sofreu in- refiro-me ao mundo maravilhoso dos harmôni-
fluência dos trabalhos que realizei com a mú- cos. Sei que os harmônicos não estiveram au-
sica eletrônica. Simultaneamente a esta função sentes na música tradicional, mas apareceram
de intérprete, direcionei-me para a formação apenas esporadicamente.
de um grupo de improvisação musical. Traba-
lhei com esse grupo durante dois ou três anos, Teoricamente eles podiam estar assina-
uma música que não necessitava de partitura, lados.
de uma notação. Neste segmento verifiquei Sim. S6 sons harmônicos; possibilidade
igualmente que os dois processos se faziam auditiva. Acredito que Ravel, em duas obras
paralelos, o da criação e o da interpretação. Is- especfficas: duo para violino e cello e Tzigane
to me fascinou durante um certo tempo. Im- para violino e orquestra, vem a ser um inova-
peovísação com quatro pessoas, por exemplo. dor, pois existem passagens completas nessas
obras baseadas em sons harmônicos. Então,
Como nojazz? todo esse descobrimento teve uma conseqüên-
Não. Neste a improvisação é sobre um cia imediata, o fato de que existem instrumen-
modelo, melodia, harmonia, f6rmula de va- tistas que dominam essas técnicas, mas são
riação. poucos. Quando todas essas técnicas pertence-
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rem aos programas das escolas de música, fa- zart. A resposta foi igualmente imediata:
zendo parte da preparação básica de um intér- "Mozarté o único" .
prete, veremos surgir a orquestra do século 21,
extremamente enriquecida. Deslocando um pouco a entrevista. Mé-
xico e Brasil passaram estágios nacionalizan-
Em termos de resultados sonoros, esta- tes . A 1'= metade do século 20 ergueú na
mos ainda acostumados à escuta tradicional. América Latina a bandeira da ideologia na-
Existe todo um sistema montado: mediadores cionalista e ser nacional incluia um "repú-
musicais voltados ao passado e perpetuando dio" ao que era realizado na Europa. como
através dos intérpretes manipulados um re- exemplo. Um modelo de nacionalismo impe-
pertório que é de aceitação do grande públi- diu no Brasil e no México que retomássemos
co, esse sim desiderato primeiro do mediador. há mais tempo o fluxo universal da história.
É um fato claro trabalharmos ainda hoje Como você compreendeu a influência nacio-
com uma orquestra que é herança do roman- nalista na América Latina?
tismo. Quando todos os instrumentistas domi- Presentemente, há no. Brasil grande
narem essa nova técnica, veremos inexoravel- quantidade de tendências musicais, assim co-
mente surgir a nova orquestra. Como exemplo: mo no resto do mundo. Isto se estende à Amé-
na secção dos sopros poderemos ter três rica Latina como um todo. Vejo que há enor-
oboés, cada um podendo produzir acordes de mes compositores. Creio que na América Lati-
quatro sons, o que resultaria. nessa secção do- na falou-se muito do problema nacionalista.
ze sons para manejarmos. Com as flautas, fa- Isto nos distraiu demasiadamente, compelin-
gotes, o mesmo acontecerá. Isso nos trará Ias- do-nos a desvios sérios. Falou-se muito de na-
'cinantes problemas orquestrais, de equilfbrio cionalismo eIdentídade. Sei que sou mexica~
inusitado em grande parte. Se, como exemplo, no, que nasci no México, que falo espanhol e
em um oboé eu produzo um acorde de três so- simplesmente sinto ser mexicano a partir. da
noridades, a intensidade de cada som será di- pele, nunca me lamentando conscientemente
ferente. Terei pois de estar consciente de que em sê-Io, No caso específico do México tive-
estes três sons têm intensidades diferentes e, mos compositores como Carlos Chaves, que
para poder uni-los à secção de cordas; é ne- iniciou o movimento nacionalista nos anos 40.
cessário fazê-Io de maneira muito particular, Contudo, antesde iniciá-Io, descobrira o que é
muito especial, com um conhecimento profun- arte moderna, voltando a falar de música, pois,.
do da característica deste acorde. Sei que estes com essa nova linguagem apreendida. E um
três sons podem ser produzidos por três oboés, compositor universal e, ao mesmo tempo, pro-
mas isto suscitaria um controle preciso de fundamente nacional. Alberto Ginastera, na
dinâmica. Com os sons harmônicos, com as Argentina, é outro caso típico. Acredito que o
novas técnicas, a orquestração e os problemas nacionalismo voltado às raízes desgastou inú-
orquestrais que advirão vão se tornar fascinan- meros talentos, .
tes.
Ser nacional, em sendo uma parte do ser
universal, implicaria uma conscientizaçâo
o compositor consciente confessa quais
transparente, sem traumas; às raizes, Seria
os seus antepassados. Machaut, Mozart, De-
uma parte do todo. .
bussy foram alguns dessa linhagem ilustre,
Seria isto. A minha música, para ser me-
por você escolhida. Como se daria em sua
xicana, não précisaria ter ritmos mexicanos.'
obra a filtragem. de vertentes claras?
Creio que isto é uma anedota. Completamente
Eu estou convencido. de que elegemos
superficial na ordem artística. Jorge Luis Bor-
nossos antecessores e quais são nossos avós.
ges observa que no Alcorão - que é o livro
Eu elegi Mozart e Debussy como meus ante-
mais árabe que existe não se fala nunca de
i-

passados" mas esta escolha não foi sempre


camelos, Eles não aparecem no livro sagrado.
ímutável. Há muitos anos, Webern foi meu an-
NãO"necessito vestir-me em trajes típicos, ter
tecessor; num futuro próximo, poderei eleger
bigodes e ser moreno para ser. mexicano. .
um outro. Eles não devem nos predeterminar.
Nós sim, de alguma maneira, reinventamos o A rítmica, em países da América Latina,
passado, elegemos quais novos .canais cornu- em sendo uma conscientizaçâo até unilateral
nicadores podem se estabelecer com .este pas- do todo. tomou-se, emfase histórica que jáse
sado. Há artistas tão imensos, como Debussy distanciou, uma quase obsessão. E a memória
ou Stravinsky e tantos outros. Citaria Rossini mais longínqua, aquela que envolve o próprio
q.ue, ao lhe perguntarem qual o maior compo- infcioda miscigenação? Esta, ao; proclama-
suor, respondeu imediatamente: "Beethoven", dores do nacionalismo. não foi levada em
Perguntaram-lhe novamente, nomeando Mo- coma, ou nâo.quiseram dela se. inteirar?
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Tocamos aí um problema muito sério, cando, "criando" algo morto que não respira e
que afeta toda a América Latina. Não temos não tem vida, que, em suma, não constrói na-
memória. Esquecemos facilmente. Se a tra- da.
dição não é viva, permanece mumificada. Nos
nossos países não temos integralizadas as nos- No Brasil, em torno dos anos que cerca-
sas tendências no ensino da música. Por ram a li Grande Guerra viu-se a utilidade que
exemplo: um compositor do Brasil Império traria à propaganda fascista as grandes mani-
não faz parte da audição cotidiana do povo festações corais enchendo os estádios, assim
brasileiro. como o "Logotipar" a rftmica brasileira. Na
Revolução Francesa, as festas nacionais -
Porque não se quis. É o caso dos com- 500 instrumentistas formando grandes fanfar-
positores barrocos mexicanos que deveriam ras em uma visão estereofônica monumental
ser considerados num amplo sentido nacional. que influenciaria Berlioz e mesmo Debussy -
É isto. Por termos esquecido, escutamos aproveitaram-se dos metais que eram mais
perfeitamente Monteverdi e não um contem- barulhentos e as vozes em aglomerações.
porâneo e póstero deste, nascido no México E que formariam uma nova orquestra ...
ou no Brasil. Quando no México se fala de
tradição mexicana, eu não sei a quais parâme- Voltar-se à visão desses anos 30 não se-
tros 'ela se refere. Ela está morta, na medida ria tanto no Brasil como no México uma ma-
em que não temos partituras classificadas, edi- neira reacionária do exerctcio musical? O
tadas, gravadas e estas peças não fazem parte mumificado a que você se refere não pode
do repertório dos intérpretes. ressurgir?
Tudo isso representa as botas militares,
Você entende os autores barrocos para os exércitos que marcham. Os músicos da Re-
órgão do México como mexicanos, na volução Francesa não foram bons músicos.
acepção que o leva a considerar Carlos Cha- Compreendiam a música como uma panfleta-
ves? gem, um meio para ...
Creio que sim. Penso em um mexicano
como Femando Franco do século 16 ou Ma- Pane da problemática da América Lati-
nuel de Sumaya do século 18 como composi- 1UJ. é a falta de comunicação entre os povos
tores mexicanos, definitivamente. Claro, um latino-americanos, Muito do que se passou,
outro México, como é outro o México de hoje avanços, recuos, não foi sentido por todos os
distintamente do de Chaves. São brasileiros os patses por desconhecimento, apesar da comu-
que descobriram a linguagem da arte moderna nicação mais abrangente atual.
e não somente porque inseriram ritmos com- Isto é verdade. Há falta de comunicação
preendidos como brasileiros em suas partitu- entre os países da América Latina. Sabemos
ras. O Concerto para Piano e Orquestra de pouco daquilo que se sucede no Peru, no Bra-
Rodolfo Coelho de Souza é brasileiro, viven- sil. No México, sabe-se mais do que acontece
do os problemas do seu país, mas decisiva- na Europa ou nos E.U.A. do que aquilo que se
mente integrado ao contexto universal. Temos passa na Argentina ou no Brasil. Nós temos de
de pensar em termos universais para podermos criar mecanismos que nos permitam ter abertu-
ser nacionais. Como o caso de Debussy, o ras comunicativas efetivas, constantes, e que
mais universal dos compositores franceses e haja realmente um diálogo cotidiano. O diálo-
totalmente integrado à epígrafe por ele ratifi- go se faz a nível dos indivfduos. São eles que
cada: "rnusicien français", o iniciam a nível dos países.

E aqueles que persistem num naciona- Parcela dos intelectuais latino-america-


lismo defasado? nos geralmente planfleteia a respeito da in-
Para que uma tradição permaneça viva, tegração latino-americana. As universidades
há a necessidade de romper-se com ela; tem de mesmo do continente sul-americano têm em
haver rupturas, pois no momento em que nós seus muros esses testemunhos, Contudo,
institucionalizarnos a tradição, estamos crian- quando o artista visa a divulgação, prefere
do um corpo morto. No México, o fenômeno quase que sistematicamenie a Europa ou os
se deu. Morre Silvestre Revueltas nos anos 40. E. U A. como palco de suas performances . Há
Carlos Chaves abandona o nacionalismo e há em tudo isso um profundo sentimento de infe-
uma outra tendência simultânea de composito- rioridade. O Rodolfo Coelho de Souza obser-
res que continuam fazendo música nacional vava ainda há pouco que, para o compositor
como se fazia nos anos 30. Isto significa que latino-americano, ter a sua obra apresentada
estão institucionalizando a tradição, mumifi- em Nova Iorque, Varsóvia ou Tóquio é mais
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importante do que tê-ia apresentada no Méxi- Partindo-se dessa participação. Se con-


co. Buenos A ires , etc. siderarmos a manifestação 11ULSicalaté o sé-
. Há sempre o sentimento da miragem. As culo 19, verificamos que o compositor, apesar
cidades mencionadas e tantas outras represen- de sentir-se independente na criação, era ma-
tam essa miragem. nipulado quanto ao que compor, gênero, des-
Como você entende o papel do Estado tinaçâo, ete. Hoje você entende que a criaçâo
na cultura 11ULSical? ainda é manipulada?
No México, até há poucos anos, o Esta-
Não, não creio. Não creio que Mozart e
do tinha totalmente a seu cargo a criação e a Haydn tenham sido manipulados. Era uma
difusão da cultura. A iniciativa privada quase maneira de viver uma realidade de outra épo-
que não participava. Agora, pouco a )?Ouco, ca. Haydn estava a serviço de Estherazy. Para
esta integra-se aos planos culturais. E uma ele era algo natural pedir que compusesse mi-
razão sócio-econômica. O Estado mexicano, nuetos, sonetos, quartetos, sinfonias. 200 anos
como acredito que também o Estado brasileiro, após Haydn, podemos pensar até ter sido ele
gastava todos os seus recursos e, em havendo manipulado. Haydn, na verdade, apenas com-
uma enorme corrupção, se deu conta de que punha música.
não poderia assumir 100 por cento a difusão e
a criação da cultura. É por isso, em parte, que Mario Lavista, editor da revista Pauta
cada vez mais acentuadamente as instituições há oito anos. Revista Pauta, uma dás mais
privadas participam. importantes publicações dá América como um
Verifico através das suas obras publica- todo. O que você teria. à lWS dizer sobre uma
dás a participação ativa de organismos priva- revista de música?
aios. Você a compreende espontânea? Creio que" urna revista é necessária. A
Espontânea e sem nenhuma vontade vida musical de uma nação não se realiza ape-
mercantilista. A iniciativa privada tem os seus nas através' de concertos, sendo necessário
próprios negócios e, quando participa de um ter-se uma infra-estrutura que incida na edu-
projeto cultural, suas intenções são menos. cação e suas decorrências: edições de música,
mercantilistas. Citaria como exemplo uma ópe- livros de música, revistas. A revista é, na ver-
ra minha estreada há pouco. O dinheiro para
dade, o ponto de encontro, de união, sendo um
realizá-Ia veio do governo e da iniciativa pri- escape, através do qual mostramos nossos
vada. Para os dois que financiaram a ópera, pontos de vista, nossas reflexões de músicos,
não representou um grande negócio; ao con- intelectuais e poetas acerca da música. Ezra
trário, são sempre perdas. Creio que não sou Pound dizia que quando queria aprender mais
contra a iniciativa privada na cultura. Para sobre seu ofício, escutava Stravinsky. Estou
mim, tenho sempre receio de que o Estado aprendendo que a Universidade de São Paulo
mantenha todo o controle. estuda o projeto de uma revista de música.
Manipulação? Dada a projeção dessa Universidade, o apare-
É claro. Nos E.U.A. há enorme partici- cimento de uma nova revista sob a sua concei-
pação da iniciativa privada e a mfnima do Es- tuada égide, creio eu, será motivo esperançoso
tado. No México, o Estado era o reitor de toda e certamente um veículo que enriquecerá a re-
a vida cultural. ferência sul-americana.

,
J
L o f\tJ U i;:]\JV
44 Revista Música. São Paulo (1 ):44. mai.1990

Colaboradores

François Lesure ; Diretor de Estudos da École des Hautes Etudes


s- Paris,
Presidente da Sociedade Francesa de Musicologia.
Günter Mayer, music6logo, Professor Doutor do Departamento de Musicologia da
Universidade Humboldt de Berlim.
Mario Lavista; compositor, editor da revista Pauta, México.
Karlheinz Stockhausen, compositor, residente em Kürten, Colônia, na República
Federal da Alemanha.
Régis Duprat, musicõlogo, Professor Doutor da Universidade Estadual Paulista.
Marcos Branda Lacerda, music6logo, Professor Doutor do Departamento de
Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
José Jota de Moraes, jornalista, Professor do Departamento de Música da Escola
de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
José Eduardo Martins, pianista, music61ogo, Professor Doutor do Departamento
de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.

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