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Entrevista concedida a
José Eduardo Marfins
Pouco a pouco, os governos e as instituições México, como exemplo, muitos que se abriga-
caminharam para a direitização. ram na vanguarda musical estão hoje despre-
Comparando a geração de 60 à de 80, zados, porque não têm a técnica necessária.
vejo esta corno monstruosa, pois iroersa nos
meios de comunicação. É uma geração ho- E o campo das partituras gráficas, tan-
mogênea, que necessita as mesmas coisas na tas vezes encobrindo a inaptidão?
França, Brasil ou México. Os jovens vêem os
mesmos programas. Contrários aos da geração O compositor de ofício, que conhece a
de 60, heterogêneos, individualizados e idea- técnica, tende a escrever para o violino solo
listas. conhecendo o idioma do violino solo. Quando
a partitura era gráfica, não era necessário co-
Durante o período de formação no exte-
nhecer a técnica do violino, pois simplesmente
rior, você esteve ligado às vertentes vanguar-
se escreviam caminhos, possibilitando a im-
distas, havendo bem posteriormente uma
provisação por parte do intérprete, deixando
tendência a se acentuar, em sua obra, de uma mesmo o todo às asas da imaginação. No cer-
volta não a um passado musical tradicionali- ne, não existia por parte do compositor o co-
zado, mas ao passado atemporal e misterio- nhecimento apríorístíco do idiomático do vio-
so, poético, meditativo, nostalgicamente per- lino e nem a técnica musical. Isto resultou no
dido. ostracismo de tantos compositores de van-
Realmente integrei-me e realizei música
guarda.
intelectualizada. Pouco após dei-me conta de
que o importante não era o esquecer, mas re-
Você observou o idiomático violinistico,
cordar e recuperar a memória e sentir-se parte Sustenta-o uma notação que deveria ser inte-
desse fluxo que é a história da música, sentir a ligível. Apesar .do grafismo e sua problemáti-
aura da música do passado e voltar a integrar ca, a notação musical que vem evoluindo des-
no ato mesmo da criação, a emoção, a ex- de alguns séculos antes da nossa era tem
pressão, o ter-se algo para dizer. A música uma "aparente" estabilidade durante os úl-
diz, fala e é eloqüente em seus próprios ter- tintos séculos e nesta década sofre uma ruptu-
mos, dos sons, sendo a maior depositária da
ra. Pareceria mesmo que regressartamos à
mem6ria dos homens, sendo integrante da profusão neumática conservada nos mosteiros
história da humanidade e da alma humana. gregorianos na Idade Média.
Poucas artes têm a capacidade de penetrar pro-
fundamente o ser humano - quiçá a poesia A notação é uma convenção surgida da
também - fazendo descobrir em nós regiões necessidade. Sofreu evolução e mudanças
ocultas. Música e poesia são irmãs gêmeas e constantes sobretudo em certos períodos parti-
capazes de nos dar um conhecimento muito cularmente críticos. Um deles na Idade Média,
preciso do homem. Essa assertiva me faz crer quando do passar da Ars Antiqua para a Ars
que a vanguarda acabou. Há muitos anos. Nova no século 13--14, época em que Franco
de Colonia e Guillaume de Machaut na França
Você entende o problema como geral? E e Francesco Landino na Itália começam a in-
quanto àqueles que penrumeceram nas van- ventar uma nova simbología, pois necessita-
guardas? vam signos que pudessem dar conta dos novos
O abandono das vanguardas se dá em to- ritmos que estavam surgindo. Uma transfor-
dos os países. Não creio que seja uma atitude mação radical surgida no século 20 possibilita
pessoal. É algo que se sucede nos centros mais mais sfmbolos para a escrita musical. POI"
avançados, inclusive na França. É certo que exemplo, sabemos escrever um golpe no vio-
há compositores mergulhados nas vanguardas. loncelo, harmônicos em um piano. A notação
Me refiro a uma certa corrente artística musi- tradicional não tinha esses signos, pois não
cal que enfatiza mais o conceito do que a rea- existiam os elementos. O compositor hoje tem
lização mesma da obra. No caso da música, é possibilidades de anotar de maneira bem mais
quando vemos aparecer uma grande quantida- precisa. Isso resulta que praticamente não há
de de partituras gráficas que me parecem im- diferença entre o que vou executar e aquilo
portantes, mas que colocam em julgamento a que vou ouvir. Imagino um quarteto de cordas,
notação musical. Acontece que presentemente necessitando anotá-to com tal precisão para os
estamos voltando ao compositor de ofício, que intérpretes, tendo às mãos tantos signos enri-
não somente pode imaginar música, mas quecidos, que no momento em que ouvir fisi-
também escrevê-Ia. É um fato certo que nos camente, quase não haja diferença entre o que
movimentos de vanguarda citados praticamen- escrevi internamente e o que estou escutando
te qualquer pessoa poderia ser compositor. No acusticamente.
~
40. Revista Música, São Paulo (1):38-43, mai.1990
rem aos programas das escolas de música, fa- zart. A resposta foi igualmente imediata:
zendo parte da preparação básica de um intér- "Mozarté o único" .
prete, veremos surgir a orquestra do século 21,
extremamente enriquecida. Deslocando um pouco a entrevista. Mé-
xico e Brasil passaram estágios nacionalizan-
Em termos de resultados sonoros, esta- tes . A 1'= metade do século 20 ergueú na
mos ainda acostumados à escuta tradicional. América Latina a bandeira da ideologia na-
Existe todo um sistema montado: mediadores cionalista e ser nacional incluia um "repú-
musicais voltados ao passado e perpetuando dio" ao que era realizado na Europa. como
através dos intérpretes manipulados um re- exemplo. Um modelo de nacionalismo impe-
pertório que é de aceitação do grande públi- diu no Brasil e no México que retomássemos
co, esse sim desiderato primeiro do mediador. há mais tempo o fluxo universal da história.
É um fato claro trabalharmos ainda hoje Como você compreendeu a influência nacio-
com uma orquestra que é herança do roman- nalista na América Latina?
tismo. Quando todos os instrumentistas domi- Presentemente, há no. Brasil grande
narem essa nova técnica, veremos inexoravel- quantidade de tendências musicais, assim co-
mente surgir a nova orquestra. Como exemplo: mo no resto do mundo. Isto se estende à Amé-
na secção dos sopros poderemos ter três rica Latina como um todo. Vejo que há enor-
oboés, cada um podendo produzir acordes de mes compositores. Creio que na América Lati-
quatro sons, o que resultaria. nessa secção do- na falou-se muito do problema nacionalista.
ze sons para manejarmos. Com as flautas, fa- Isto nos distraiu demasiadamente, compelin-
gotes, o mesmo acontecerá. Isso nos trará Ias- do-nos a desvios sérios. Falou-se muito de na-
'cinantes problemas orquestrais, de equilfbrio cionalismo eIdentídade. Sei que sou mexica~
inusitado em grande parte. Se, como exemplo, no, que nasci no México, que falo espanhol e
em um oboé eu produzo um acorde de três so- simplesmente sinto ser mexicano a partir. da
noridades, a intensidade de cada som será di- pele, nunca me lamentando conscientemente
ferente. Terei pois de estar consciente de que em sê-Io, No caso específico do México tive-
estes três sons têm intensidades diferentes e, mos compositores como Carlos Chaves, que
para poder uni-los à secção de cordas; é ne- iniciou o movimento nacionalista nos anos 40.
cessário fazê-Io de maneira muito particular, Contudo, antesde iniciá-Io, descobrira o que é
muito especial, com um conhecimento profun- arte moderna, voltando a falar de música, pois,.
do da característica deste acorde. Sei que estes com essa nova linguagem apreendida. E um
três sons podem ser produzidos por três oboés, compositor universal e, ao mesmo tempo, pro-
mas isto suscitaria um controle preciso de fundamente nacional. Alberto Ginastera, na
dinâmica. Com os sons harmônicos, com as Argentina, é outro caso típico. Acredito que o
novas técnicas, a orquestração e os problemas nacionalismo voltado às raízes desgastou inú-
orquestrais que advirão vão se tornar fascinan- meros talentos, .
tes.
Ser nacional, em sendo uma parte do ser
universal, implicaria uma conscientizaçâo
o compositor consciente confessa quais
transparente, sem traumas; às raizes, Seria
os seus antepassados. Machaut, Mozart, De-
uma parte do todo. .
bussy foram alguns dessa linhagem ilustre,
Seria isto. A minha música, para ser me-
por você escolhida. Como se daria em sua
xicana, não précisaria ter ritmos mexicanos.'
obra a filtragem. de vertentes claras?
Creio que isto é uma anedota. Completamente
Eu estou convencido. de que elegemos
superficial na ordem artística. Jorge Luis Bor-
nossos antecessores e quais são nossos avós.
ges observa que no Alcorão - que é o livro
Eu elegi Mozart e Debussy como meus ante-
mais árabe que existe não se fala nunca de
i-
Tocamos aí um problema muito sério, cando, "criando" algo morto que não respira e
que afeta toda a América Latina. Não temos não tem vida, que, em suma, não constrói na-
memória. Esquecemos facilmente. Se a tra- da.
dição não é viva, permanece mumificada. Nos
nossos países não temos integralizadas as nos- No Brasil, em torno dos anos que cerca-
sas tendências no ensino da música. Por ram a li Grande Guerra viu-se a utilidade que
exemplo: um compositor do Brasil Império traria à propaganda fascista as grandes mani-
não faz parte da audição cotidiana do povo festações corais enchendo os estádios, assim
brasileiro. como o "Logotipar" a rftmica brasileira. Na
Revolução Francesa, as festas nacionais -
Porque não se quis. É o caso dos com- 500 instrumentistas formando grandes fanfar-
positores barrocos mexicanos que deveriam ras em uma visão estereofônica monumental
ser considerados num amplo sentido nacional. que influenciaria Berlioz e mesmo Debussy -
É isto. Por termos esquecido, escutamos aproveitaram-se dos metais que eram mais
perfeitamente Monteverdi e não um contem- barulhentos e as vozes em aglomerações.
porâneo e póstero deste, nascido no México E que formariam uma nova orquestra ...
ou no Brasil. Quando no México se fala de
tradição mexicana, eu não sei a quais parâme- Voltar-se à visão desses anos 30 não se-
tros 'ela se refere. Ela está morta, na medida ria tanto no Brasil como no México uma ma-
em que não temos partituras classificadas, edi- neira reacionária do exerctcio musical? O
tadas, gravadas e estas peças não fazem parte mumificado a que você se refere não pode
do repertório dos intérpretes. ressurgir?
Tudo isso representa as botas militares,
Você entende os autores barrocos para os exércitos que marcham. Os músicos da Re-
órgão do México como mexicanos, na volução Francesa não foram bons músicos.
acepção que o leva a considerar Carlos Cha- Compreendiam a música como uma panfleta-
ves? gem, um meio para ...
Creio que sim. Penso em um mexicano
como Femando Franco do século 16 ou Ma- Pane da problemática da América Lati-
nuel de Sumaya do século 18 como composi- 1UJ. é a falta de comunicação entre os povos
tores mexicanos, definitivamente. Claro, um latino-americanos, Muito do que se passou,
outro México, como é outro o México de hoje avanços, recuos, não foi sentido por todos os
distintamente do de Chaves. São brasileiros os patses por desconhecimento, apesar da comu-
que descobriram a linguagem da arte moderna nicação mais abrangente atual.
e não somente porque inseriram ritmos com- Isto é verdade. Há falta de comunicação
preendidos como brasileiros em suas partitu- entre os países da América Latina. Sabemos
ras. O Concerto para Piano e Orquestra de pouco daquilo que se sucede no Peru, no Bra-
Rodolfo Coelho de Souza é brasileiro, viven- sil. No México, sabe-se mais do que acontece
do os problemas do seu país, mas decisiva- na Europa ou nos E.U.A. do que aquilo que se
mente integrado ao contexto universal. Temos passa na Argentina ou no Brasil. Nós temos de
de pensar em termos universais para podermos criar mecanismos que nos permitam ter abertu-
ser nacionais. Como o caso de Debussy, o ras comunicativas efetivas, constantes, e que
mais universal dos compositores franceses e haja realmente um diálogo cotidiano. O diálo-
totalmente integrado à epígrafe por ele ratifi- go se faz a nível dos indivfduos. São eles que
cada: "rnusicien français", o iniciam a nível dos países.
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44 Revista Música. São Paulo (1 ):44. mai.1990
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