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Dossiê
Trabalhadores e Poder Municipal
Organização
Cristiana Schettini
Paulo Cruz Terra
Coordenação Nacional
Aldrin Castellucci
Coordenações Estaduais
Mato Grosso Do Sul
Vitor Wagner Neto de Oliveira
Rio Grande Do Sul
Alisson Droppa - Coordenador
Icaro Bittencourt - Vice-Coordenador
Santa Catarina
Adriano Luiz Duarte
São Paulo
Dainis Karepovs
Paraná
Antônio de Pádua Bosi
ISSN 1994-9222
http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/
mundosdotrabalho
FICHA TÉCNICA
ORGANIZAÇÃO DO NÚMERO Cristiana Schettini e Paulo Cruz Terra
REVISÃO DE TEXTO Denize Gonzaga
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Virgínia Loureiro
COLABORARAM COM ESSE NÚMERO
Ana Carina Azevedo (Universidade Nova de Lisboa), Anderson Pires (UFJF), Antonio Luigi Negro (UFBA),
Carlos Augusto Pereira dos Santos (Universidade Estadual Vale do Acaraú), Carlos Zacarias de Sena
Júnior (UFBA), Cesar Monaco (UNGS), Claudia Baeta Leal (IPHAN), Cristina Scheibe Wolff (UFSC), Elizabete
Rodrigues da Silva (SEC-BA, UFRB), Endrica Geraldo (UFSC), Gladyson Stélio Brito Pereira (UNEAL),
Luciana Aparecida Aliaga de Oliveira (UEL), Marcelo Badaró Mattos (UFF), Márcia Cury (UNICAMP), Mar-
cos Tadeu Del Roio (UNESP/Araraquara), Maria Celma Borges (UFMS), Maurício Sardá Faria (UFPB),
Osvaldo Batista Acioly Maciel (UFAL), Raquel Cardeira Varela (Universidade Nova de Lisboa), Rinaldo
José Varussa (UNIOESTE), Victoria Basualdo (CONICET), Vinícius de Rezende (Escola DIEESE de Ciências
do Trabalho) e Wellington Castelucci Jr. (UFRB).
Apresentação do dossiê
Trabalhadores e Poder Municipal
Cristiana Schettini*
Paulo Terra**
3 Vale a pena mencionar que a historiografia também indicou os antecedentes destas formas de luta forja-
das nas últimas décadas do período monárquico, como na chamada Revolta do Vintém. Ver, em especial:
GRAHAM, Sandra L. “O motim do vintém e a cultura política no Rio de Janeiro - 1880”, Revista Brasileira de
História. São Paulo, v.10, n.20, mar./ago. 1991.
4 Sobre as análises das câmaras municipais no período colonial, ver: BOXER, C. R. O império colonial portu-
guês [1415-1825]. Lisboa. Edições 70, 1981; BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro
no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; BICALHO, Maria Fernanda. “As câmaras muni-
cipais no Império Português: o exemplo do Rio de Janeiro”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 18,
n.36, 1998; BICALHO, Maria Fernanda; FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima S. “Uma leitura do Brasil
colonial: bases da materialidade e da governabilidade no Império”. Penélope, Lisboa, v. 23, 2000.
5 FERLINI, Vera Lúcia Amaral. “O município do Brasil colonial e a configuração do poder econômico”. In:
BICALHO, Maria Fernanda; FURTADO, Junia Ferreira; SOUZA, Laura de Mello (orgs.). O governo dos povos.
São Paulo: Alameda, 2009, p. 392.
6 Um exemplo de análise sobre as câmaras municipais no período Imperial: SOUZA, Juliana Teixeira. A auto-
ridade municipal da Corte imperial: enfrentamentos e negociações na regulação do comércio de gêneros
(1884-1889). Tese (Doutorado em História). Campinas: Unicamp/IFCH, 2007.
7 Exemplos da produção que aborda a relação dos trabalhadores com o poder municipal: REIS, João José. A
greve negra de 1857 na Bahia. Revista USP. São Paulo: USP/Superintendência de Comunicação Social, n.18,
1993; POPINIGIS, Fabiane. Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1922. Campinas:
Editora da Unicamp. 2007; FARIAS, Juliana Barreto. Mercados minas: africanos ocidentais na Praça do Mer-
cado do Rio de Janeiro (1830-1890). Tese (Doutorado em História Social). USP, 2012; TERRA, Paulo Cruz.
Cidadania e trabalho: cocheiros e carroceiros no Rio de Janeiro (1870-1906). Tese (Doutorado em História).
Niterói: UFF/ICHF, 2012.
Abstract: Considering the growing interest of the Social History of Labor for men
and woman of the 19th Century, the purpose of this article is to show how docu-
mentation produced by the municipal administration can bring new elements to
the reflections on the experiences of resistance and struggle of urban workers
in that time. Secondly, analyzing the implementation of the Code of Conduct and
Edicts of the City Council of Rio de Janeiro, we propose to discuss how the func-
tions of municipal government, concerning police and local economy, affect the
regulation of relations and ways of working in the urban space, with actions par-
ticularly for activities in which the presence of the African workers and theirs des-
cendants is predominant.
Keywords: City Government, city legislation, urban workers in the 19th Century.
Introdução
Nas últimas duas décadas, os estudos sobre a formação da classe operária
no Brasil têm recuado progressivamente sua cronologia, de modo que 1888 e a
1 NEGRO, Antonio Luigi. Imperfeita ou refeita? O debate sobre o fazer-se da classe trabalhadora inglesa.
Revista Brasileira de História. São Paulo: Contexto, v.16, n. 31/32, 1996, p. 57-58.
2 Idem, p. 58.
3 ������������������������������������������������������������������������������������������������������������
BATALHA, Claudio. A historiografia da classe operária no Brasil: trajetórias e tendências. In: FREITAS, Mar-
cos Cézar de (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. 6.ed. São Paulo: Contexto, 2010, p. 156-157.
homens e mulheres de pele escura que, mesmo cativos, lutaram para ser e foram
sujeitos de sua própria história”.4
Em meados da década seguinte, o problema retornaria à pauta de discussão.
Num balanço sobre a produção historiográfica pós-1980, Ângela de Castro Gomes
chamou atenção para as significativas mudanças operadas nos estudos sobre as
relações entre senhores, escravos, dependentes e o estado durante o Império. O
mesmo se verificava nos estudos sobre as relações entre classe trabalhadora, pa-
tronato e o estado no regime republicano, realizados sob o impacto da nova histó-
ria política e da história cultural. De acordo com ela, esses estudos têm em comum
“o fato de sustentarem que os trabalhadores ― todos eles, inclusive os escravos
― são sujeitos de sua própria história, abandonando abordagens simplistas, dico-
tômicas, teleológicas etc.” No entanto, a despeito de suas “profundas conexões
e influências mutuas”, permaneciam como “campos de análise que guardam inde-
pendência relativa entre si”.5
Mas, em 2009, numa perspectiva mais otimista quanto ao fim dessas cliva-
gens, Sidney Chalhoub e Fernando Teixeira da Silva avaliaram que os estudos so-
bre a história dos trabalhadores produzidos até aquele momento já ameaçavam
“derrubar o muro de Berlim historiográfico, decorrente do paradigma menciona-
do, que ainda emperra o diálogo necessário entre os historiadores da escravidão e
os estudiosos das práticas políticas e culturais dos trabalhadores urbanos pobres
e do movimento operário”.6 Sobre as inquietações e interesses compartilhados
pelas duas vertentes, os autores mencionaram a crítica às teorias generalizantes
da escola sociológica paulista, o princípio de que os subalternos são sujeitos de
sua história, a preocupação em conferir inteligibilidade e sentido político às expe-
14
riências dos dominados, e o interesse pela participação dos trabalhadores numa
cultura legal. Para que esse movimento de aproximação prosseguisse, seria funda-
mental explorar as convergências entre esses campos, que permitiria a elaboração
de agendas de pesquisa e a construção de conceitos operatórios comuns, “que
consistem em novas apropriações e reelaborações contínuas do aparato teórico
clássico da história social”.7 No âmbito do Centro de Pesquisa em História Social
da Cultura - CECULT, a construção dessa agenda comum foi posta em curso com os
projetos temáticos que envolviam professores e alunos de graduação e pós-gra-
duação, tendo em comum o interesse por discutir identidade, cultura e cotidiano
no século XIX e primeiras décadas do XX, procurando “distinguir sem seccionar”
os trabalhadores escravos, pobres livres e operários, como se afirma na apresen-
tação do livro Trabalhadores na cidade, publicado em 2009.8
Na busca por acervos documentais que respondessem à nova pauta de in-
teresses dos historiadores, vários estudos foram demonstrando que nos arquivos
referentes à administração municipal havia material com dados ainda pouco explo-
rados sobre o mundo do trabalho. A historiografia dedicada às práticas políticas
e culturais dos populares no século XIX recorria a esse material há algum tempo,
4 LARA, Silvia Hunold. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. Projeto História. São Paulo:
EDUC, n.16, fev. 1998, p. 38.
5 GOMES, Ângela de Castro. Questão social no Brasil do pós-1980: notas para um debate. Estudos Históricos.
Rio de Janeiro: FGV, n.34, jul./dez. 2004, p. 160.
6 �����������������������������������������������������������������������������������������������������
CHALHOUB, Sidney; SILVA, Fernando Teixeira da. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalha-
dores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL. Campinas: UNICAMP/IFCH, v.14, n.26,
2009, p. 15.
7 Ibidem, p. 45.
8 AZEVEDO, Elciene et al. Trabalhadores na cidade: cotidiano e cultura no Rio de Janeiro e em São Paulo,
séculos XIX e XX. Campinas: Editora da UNICAMP, 2009, p. 13.
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Reis publicou um notável artigo sobre a greve dos carregadores de Salvador. Ocor-
rida em 1857, foi uma das primeiras greves da história do Brasil, com a peculiari-
dade de ter sido protagonizada por africanos escravos e libertos, a maior parte
nagôs, cuja presença era dominante entre os trabalhadores “informais” que po-
voavam as ruas da capital baiana. A paralização foi motivada pela promulgação de
uma postura municipal, que obrigava os ganhadores a se matricularem na câmara
e portarem uma licença, pela qual se cobrava o preço equivalente ao de uma arro-
ba (quinze quilos) de carne, um valor nada desprezível para aqueles tempos de ca-
restia. Além disso, os carregadores seriam obrigados a trazer uma chapa de metal
com o número de sua inscrição em lugar visível, trazendo pendurada no pescoço
a marca da sua condição social inferior. Para Reis, essa determinação estava inse-
rida num projeto mais amplo de disciplinamento do negro no espaço público. De
acordo com os relatos da época, a mobilização contra a postura municipal parou a
cidade. A greve durou vários dias, deixando desertas as ruas de Salvador e trazen-
do enormes prejuízos para os comerciantes e para os consumidores.
Conforme avaliou o historiador, “o movimento de 1857 suscita questões mais
amplas”, por combinar a mobilização defensiva, contra a intervenção do Estado
nas rotinas de trabalho tradicionalmente estabelecidas, com a greve, que “é um
método de luta típico do trabalhador urbano moderno, sobretudo do trabalhador
fabril”. No seu entender, a opção de luta daqueles trabalhadores seria justificada
pelo “fato de serem gente urbana, consciente de sua importância para o funcio-
namento da cidade, inserida num mercado de trabalho monetarizado”.10 No fim
9 É o caso dos trabalhos de CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996; ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular
no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; SOUZA, Juliana Teixeira. A autoridade
municipal na Corte imperial: enfrentamentos e negociações na regulação do comércio de gêneros (1840-
1889). Tese (Doutorado em História). Campinas: [s. n.], 2007.
10 REIS, João José. A greve negra de 1857 na Bahia. Revista USP. São Paulo: USP/Superintendência de
Comunicação Social, n.18, 1993, p. 29.
das contas, para os grevistas, o movimento trouxe uma vitória parcial: a câmara
municipal aboliu a taxa, mas manteve a determinação de trazerem a chapa no pes-
coço. Para os historiadores, o movimento reforça os argumentos sobre a inconsis-
tência dos velhos esquemas explicativos, por revelar a capacidade de organização
dos trabalhadores informais e a operacionalidade do conceito de identidade étnica
para a compreensão das experiências da população negra de Salvador. Ademais,
ao mostrar que os vereadores recuaram em sua decisão inicial, ao menos em parte,
a greve negra revelou que a legislação municipal não estava imune às pressões des-
ses trabalhadores, entre os quais se contavam muitos escravos.
Para se avaliar o caráter precursor da greve dos carregadores negros, vale
destacar que ela foi deflagrada um ano antes de ser registrada a primeira greve
operária do país, organizada pelos compositores tipográficos do Rio de Janeiro
em 1858. Esta paralisação foi motivada pela recusa dos proprietários das três prin-
cipais folhas diárias da Corte em aumentar o salário dos empregados, que também
sofriam com a carestia que grassava em todo país. De acordo com Artur Vitorino,
após cruzar os braços, eles recorreram à intervenção do Imperador e procuraram
angariar o apoio da opinião pública, que “era a forma dos operários conseguirem
o equilíbrio justo entre partes desiguais, pois, como não havia lei positivamente
fixada sobre o assunto pendente, o Imperador e o público detinham a necessária
potencialidade para que pudesse prevalecer a justiça”.11 Por meio desse estudo,
Vitorino pôs em xeque a periodização tradicionalmente adotada para a história do
operariado, recuando para a década de 1850 a discussão sobre a formação de uma
identidade coletiva a partir das associações de trabalhadores qualificados.
Marcelo Mac Cord estudou outro grupo de trabalhadores qualificados em
16
sua tese de doutoramento Andaimes, casacas, tijolos e livros, sobre uma associação
de artífices pardos e negros, que congregava pedreiros, carpinteiros, marceneiros
e tanoeiros no Recife, entre 1836 e 1880, discutindo a formação de uma identida-
de étnica entre os homens de cor. O objetivo da associação era o de aperfeiçoar
o trabalho dos artífices por meio da educação profissional e promover práticas de
auxílio mútuo, defendendo o trabalho realizado com dignidade, precisão e inteli-
gência como fator de distinção social, num discurso que procurava se alinhar aos
valores defendidos pelas elites locais. Por intermédio de documentação produzida
por diversas instâncias do governo, como a câmara municipal, a presidência da
Província e a Assembleia Legislativa, Mac Cord mostrou que a estratégia dos artí-
fices foi exitosa no sentido de lhes proporcionar a proteção das autoridades pú-
blicas, pois para os homens do governo, também interessava prestar apoio a uma
organização que “poderia ser utilizada como exemplo de morigeração, disciplina
e ordem para uma crescente mão-de-obra livre e pobre que se amontoava pelos
cortiços da capital da Província”.12
Mac Cord mostra que, para evitar a desclassificação social, os artífices recor-
reram continuamente ao governo municipal. Não obtiveram o almejado controle
sobre o processo de habilitação dos artistas que atuariam como mestres de obra
na cidade, mas conseguiram com que os mestres associados fossem privilegiados
nos contratos de vistorias e obras realizadas pela câmara municipal, garantindo as
11 VITORINO, Artur José Renda. Escravismo, proletários e a greve dos compositores tipográficos de 1858 no Rio
de Janeiro. Cadernos AEL: sociedades operárias e mutualismo. Campinas: UNICAMP/IFCH, v.6, n.10/11, 1999,
p. 80.
12 MAC CORD, Marcelo. Andaimes, casacas, tijolos e livros: uma associação de artífices no Recife, 1836-1880.
Tese (Doutorado em História). Campinas: [s. n.], 2009, p. 10.
13 Ibidem, p. 329.
14 Ibidem, p. 60-61.
15 MAC CORD, Op. cit., p. 8.
16 POPINIGIS, Fabiane. Trabalhadores e patuscos: os caixeiros e o movimento pelo fechamento das portas no
Rio de Janeiro (1850-1912). Dissertação (Mestrado em História). Campinas: [s.n], 1998, p. 4.
17 POPINIGIS, Fabiane. “Operários de casaca”? Relações de trabalho e lazer no comércio carioca na virada
dos séculos XIX e XX. Tese (Doutorado em História). Campinas: [s. n.], 2003, p. 86-95.
18 Ibidem, p. 136-137.
19 SOUZA, Flavia Fernandes de. Entre nós, nunca se cogitou de uma tal necessidade: o poder municipal da
Capital e o projeto de regulamentação do serviço doméstico de 1888. Revista do Arquivo geral da Cidade
do Rio de Janeiro, n.5, 2011, p. 33.
20 Ibidem, p. 37-38.
21 SOUZA, Flavia, Op. cit., p. 40.
19
distante de suas concepções sobre relações justas de trabalho. E o que vimos nas
pesquisas aqui abordadas foi que a satisfação dessa expectativa não poderia se dar
de qualquer forma. Parte significativa desses anseios, sendo reconhecidos como
direitos, deveriam ser assegurados por meio de medidas legais. Fazendo greve,
encaminhando cartas à imprensa, recorrendo a algum vereador para representar
seus interesses ou enviando suas queixas e reclamações para serem apreciadas
nas sessões da câmara, os trabalhadores deixavam claro que lhes interessava, so-
bremaneira, ver suas reivindicações e a definição dos limites à exploração do seu
trabalho sendo registrados nos textos legais, sobretudo as posturas municipais.
22 GOMES, Flávio; NEGRO, Antonio Luigi. Além de senzalas e fábricas: uma história social do trabalho. Tempo
Social, 2006, v.18, n.1, p. 226-227.
23 HOLLOWAY, Thomas. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 158.
24 GOUVÊA, Maria de Fátima. Poder, autoridade e o senado da câmara do Rio de Janeiro, ca.1780-1820. Tem-
po – Revista do Departamento de História da UFF. Rio de Janeiro, v.7, n.13, 2002, p. 122.
25 ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 188-196.
26 Arquivo Nacional, Secretaria de Polícia da Corte, maço IJ6-212, 13 nov. 1849, fl. 22.
27 Arquivo Nacional, Secretaria de Polícia da Corte, maço IJ6-212, 13 nov. 1849, fl. 11v-12.
28 Ibidem, fl. 22v-23.
29 Sobre os conflitos entre a Câmara Municipal e a Secretaria de Polícia, ver: SOUZA, Juliana Teixeira. Carne
podre, café com milho e leite com água: disputas de autoridade e fiscalização do comércio de gêneros na
Corte imperial, 1840-1889. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz,
Casa de Oswaldo Cruz, v.18, n.4, out./dez. 2011.
30 VITORINO, Artur José Renda. Cercamento à brasileira: conformação do mercado de trabalho livre na Corte
das décadas de 1850 a 1880. Tese (Doutorado em História). Campinas: Campinas: [s.n], 2002, p. 95-99.
31 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do Estado imperial. Rio de Janeiro: HUCITEC, 2004.
32 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978, p. 65. A resposta de Gorender às críticas
que recebeu aparece em: GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática; Secretaria de Estado
da Cultura, 1990.
33 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 42.
34 ������������������������������������������������������������������������������������������������������
Na perspectiva desses autores, o fato de os escravos serem juridicamente identificados como proprieda-
de não implicava que os senhores pretendessem a sua coisificação social, por considerarem que, para a
manutenção do sistema escravista, era fundamental que os senhores reconhecessem a humanidade dos
cativos. FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlânti-
co, Rio de Janeiro, c.1790 – c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p. 31.
35 CODIGO DE POSTURAS DA ILUSTRISSIMA CAMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO E EDITAES DA
MESMA CÂMARA. RIO DE JANEIRO: EDUARDO & HENRIQUE LAEMMERT, 1870, P. 19-20.
36 Sobre a vigência do Toque de Recolher no período imperial como forma de controle de poder municipal
sobre a população afrodescendentes, cf. o artigo de Amy Chazkel neste dossiê.
37 Ibidem, p. 28 e 36.
seriam multadas e conservadas na cadeia por oito dias, mas se fosse escravo a
pena passava para vinte e cinco açoites.38 Os indivíduos flagrados jogando entrudo
no município pagariam multa ou ficariam presos, mas no caso dos escravos, as al-
ternativas eram oito dias de prisão ou cem açoites.39 Os escravos que fizessem de-
sordens seriam conduzidos ao calabouço, dando-se parte aos seus senhores para
que lhes aplicassem a pena de cem açoites, se acusados de serem os promotores
da desordem.40
Em contrapartida, nas posturas também se registra a preocupação com os
castigos impostos aos escravos por particulares. Isso mostra que, apesar de tratá-
-lo juridicamente como um bem semovente, a legislação do Império não negava
que os escravos deveriam ser tratados como uma propriedade diferenciada, por
serem pessoas.41 No âmbito de suas atribuições policiais, competia ao governo mu-
nicipal prevenir os excessos dos senhores, que não raro seviciavam seus escravos.
Mais especificamente, competia aos fiscais da municipalidade o dever de vigiar
“sobre o mau tratamento e crueldades que se costumam praticar com escravos,
indicando os meios de preveni-los, e dando de tudo parte à Câmara”.42
Outro aspecto a ser considerado, diferente do que ocorre em outros códi-
gos legais, nas posturas e editais promulgados pela Câmara Municipal do Rio de
Janeiro se verifica que a humanização do escravo se dava, sobretudo, por meio da
regulação do mundo do trabalho. No código de posturas, o título correspondente
à polícia dos mercados afirmava que era permitido “a todas as pessoas vende-
rem pelas ruas da cidade legumes, frutas, aves e peixe, bem como outro qualquer
comestível”.43 Os escravos, evidentemente, estavam entre essas “pessoas”. Por
outro lado, o código de posturas também explicitava as atividades que não pode-
24
riam ser exercidas pelos escravos. Pelo documento: “todos os que tiverem casa
pública de negócio, não poderão ter nelas, vendendo ou administrando, pessoas
cativas”,44 enquanto que o Regulamento da Praça do Mercado, aprovado pelos ve-
readores em agosto de 1844, determinava em seu primeiro artigo que suas bancas
e casas só poderiam ser alugadas por “pessoas livres e capazes”.45 O regulamento
também proibia “andarem pretos de ganho dentro da praça, e os escravos, que ali
forem mandados por seus senhores fazer compras, não deverão se demorar além
do tempo necessário para efetuá-las”.46 Somente os escravos que estivessem a
serviço dos locatários tinham autorização para permanecer na Praça do Mercado,
e por isso cabia aos fiscais fazer dispersar os pretos que insistissem em peram-
bular e permanecer no local sem motivo que lhe parecesse justificado. O último
artigo do regulamento informava que as penas ali previstas “compreendem todas
as pessoas, de qualquer posição que seja, de um ou outro sexo, respondendo o
senhor pelo escravo em todas as disposições”.47
38 Ibidem, p. 20.
39 CODIGO DE POSTURAS, OP. CIT., P. 28.
40 Ibidem, p. 36.
41 No âmbito das discussões sobre o direito civil no Oitocentos, estudos mais recentes têm destacado que
esse tipo de regulação mostra o escravo como uma propriedade de natureza diferenciada, com condição
jurídica transitória, por ser um bem em propriedade de alguém e poder se tornar um homem livre, capaz
de adquirir direitos de cidadania. Sobre os escravos serem coisa e pessoa, e também serem coisa que po-
dia virar pessoa, ver: GRINBERG, Keila. Código civil e cidadania. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p. 47 e segs.
42 CODIGO DE POSTURAS, OP. CIT., P. 39.
43 Ibidem, p. 22.
44 Ibidem, p. 23.
45 Ibidem, p. 51.
46 CODIGO DE POSTURAS, OP. CIT., P. 55.
47 Ibidem, p. 56.
48 Ibidem, p. 20.
49 VITORINO, 2002, Op. cit., p. 94.
50 REIS, Op. cit., p. 12.
51 CODIGO DE POSTURAS, OP. CIT., P. 27-28.
52 Sobre o controle das festas negras, ver: ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura
popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 198.
53 CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2012, p. 233.
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insultos, doestos e epítetos afrontosos, acrescendo que até o guarda
encarregado da polícia municipal, naquele lugar é muitas vezes ludibria-
do, e encontra resistência, quando tem que punir os infratores do Regu-
lamento da Praça do Mercado, como aconteceu há dias, que um preto
escravo, com ele lutou, sendo ferido no rosto com o chapéu de sol que
o guarda tinha na mão, resultando disso querer o senhor do escravo ins-
taurar processo ao guarda pelo ferimento. À vista das razões alegadas,
peço a Vossa Excelência para que se digne reclamar do Excelentíssimo
Chefe de Polícia, uma força policial, que ali permaneça durante o dia, a
fim de que aquela gente insolente se abstenha de proceder atrevida-
mente para com o público e o guarda encarregado da fiscalização, evi-
tando assim que eu também seja desrespeitado no exercício do cargo,
que a Ilustríssima Câmara me confiou.56
Gomes e Carlos Eugênio Líbano afirmaram que “a primeira vitória de uma certa
‘cidadania’ na urbe carioca envolvendo a população negra, africana e crioula” fora
conquistada justamente no âmbito de atuação da municipalidade. Eles se referiam
ao manifesto de 1776, em que as quitandeiras escravas e libertas se dirigiram aos
vereadores contestando a decisão tomada pelo juiz de fora que pretendia retirá-
-las do costumeiro local de trabalho, em frente ao edifício do mesmo senado, a
despeito de elas pagarem em conjunto pelo aforamento do local. Mostrando que
“mantinham um nível de organização coletiva e ocupacional bastante sofistica-
do”, e contando com apoio do procurador da câmara, as quitandeiras consegui-
ram que a decisão arbitrária do juiz de fora fosse suspensa e recuperaram a posse
do terreno. É verdade que, para Gomes e Soares, a articulação das ganhadeiras
com a elite política local se perdeu no século XIX, como comprovaria um docu-
mento de 1831, mostrando que “elas passaram a ser hostilizadas até mesmo pelos
religiosos da igreja de Nossa Senhora do Rosário, a igreja dos pretos da cidade, em
virtude do barulho que provocavam no largo contíguo”.58
Mas é importante ressaltar que a queixa não era nova e não foi a última. Em
18 de maio de 1854, na seção de publicações a pedido do Correio Mercantil, um leitor
que assinava “O Rabeca” denunciou a permanência das quitandeiras naquele largo:
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sário, com o único fim de não dar corda, quando S. S. fez retirar todas
as outras que por infelizes não tiveram quem por elas se empenhasse,
rogamos ao digno Sr. Presidente e mais vereadores que mandem ao Sr.
Fiscal fazer retirar as que ficaram, visto que só nessa freguesia se faz da
frente de um templo praça de quitanda: finalmente seja observada a lei,
que deve ser igual para todos.
58 GOMES, Flávio dos Santos; SOARES, Carlos Eugênio Líbano. “Dizem as quitandeiras...”. Ocupações urbanas
e identidades étnicas em uma cidade escravista: Rio de Janeiro, século XIX. Acervo, v.15, n.2, 2002, p. 3-6.
pontos escolhidos pelos capoeiras para suas costumadas correrias”. Por esse mo-
tivo, em 5 de Maio de 1862, ele comunicou ao Ministro da Justiça que estabeleceria
um posto de guarda naquela mediação.59
Conforme registraram os chefes de polícia, os fiscais da municipalidade e a
população, por muito tempo ainda, as negras quitandeiras e outros tantos traba-
lhadores negros, que pareciam integrados à paisagem urbana desde os tempos
coloniais, continuaram prestando seus serviços e por vezes incomodando os mo-
radores da cidade, com seus tabuleiros, cestos, caldeirões e alaridos costumeiros.
Para isso, contavam com o respaldo da câmara municipal, fosse lhes assegurando
o direito a permanecer nos largos e praças destinados às suas atividades econômi-
cas, fosse realizando seu trabalho de vigilância e prevenção de forma ineficaz, per-
mitindo, assim, que também ocupassem os espaços não autorizados, a despeito
das queixas e reclamações das autoridades policiais e dos cidadãos incomodados
com os “gestos indecentes” tão comumente atribuídos aos trabalhadores negros.
Conclusão
Para se pensar nas câmaras municipais como instâncias reguladoras do tra-
balho urbano é preciso, primeiramente, reconsiderar a ideia largamente difundida
nos estudos que dizem respeito à história política do século XIX sobre o fato de a
subordinação das municipalidades a outras instâncias do governo permitir o esva-
ziamento das suas atribuições políticas e administrativas ao ponto de nulifica-las.60
29 Conforme os estudos no campo da História Social têm demonstrado, especialmen-
te aqueles que se ocuparam do Rio de Janeiro no Oitocentos, as prerrogativas da
municipalidade quanto à regulação da economia local, ordenamento do espaço
urbano e saúde pública conferia aos seus agentes participação significativa nas de-
cisões sobre o governo da cidade e sobre o cotidiano de sua população. Na legis-
lação municipal, a extensão dos setores que sofrem ingerência da administração
municipal é expressa no código de posturas, com seus inúmeros artigos regulando
a vida da população no espaço urbano, prescrevendo normas que deveriam ser
observadas nas ruas, no ambiente de lazer e também no trabalho.
Como temos mostrado, a jurisdição da câmara municipal sobre as ativida-
des econômicas locais se traduzia, fundamentalmente, na regulação das relações
e formas de trabalho tipicamente urbanas. Na administração do governo munici-
pal, se destaca a preocupação com a vigilância e com a fiscalização das atividades
em que predominava a presença de africanos e seus descendentes, fosse com as
posturas explicitando ocupações que não poderiam ser exercidas pela população
cativa ou por meio de medidas que procuravam assegurar ao governo municipal
algum controle sobre esses trabalhadores.
Em contrapartida, também é possível considerar que a atuação da adminis-
tração municipal contribuía para que os escravos ampliassem seu campo de ação
e adotassem formas de viver que deveriam ser restritas aos homens livres. Nesse
sentido, os casos dos ganhadores e vendedores ambulantes são exemplares. Ao mes-
mo tempo em que impunha dispositivos de controle, obrigando-os a tirar licença, a
câmara reconhecia que os escravos, assim como as pessoas livres, poderiam viver
dessas atividades. Lembramos que, de acordo com o Dicionário de Luiz Maria da
Silva Pinto (1832), ganhador é aquele “que vive do ganho do seu trabalho”, e ga-
nho significa “o mesmo que lucro”.61 No caso dos ganhadores, esse lucro era ob-
tido ao alugarem sua mão de obra pelo tempo e pelo preço que acertassem com
os contratadores dos seus serviços, muito embora, como afirma Keila Grinberg,
não houvesse previsão jurídica para a atividade realizada por esses escravos que
firmavam contrato de trabalho com pessoas livres.62 Portanto, se por um lado a
legislação municipal criava dispositivos que contribuíam para o controle da escra-
vidão urbana, por outro, oferecia amparo legal para a existência desses territórios
ambíguos no mundo do trabalho, que poderiam ser ocupados por todas as pes-
soas, a despeito de sua cor ou condição jurídica, como as posturas costumavam
frisar, tornando mais fluidas as fronteiras entre o mundo dos cativos e o mundo
dos homens pobres livres.
Recebido em 25/04/2013
Aprovado em 10/05/2013
30
61 PINTO, Luiz Maria da Silva. Dicionário da Língua Brasileira por Luiz Maria da Silva Pinto, natural da Pro-
víncia de Goya. Na Tipografia de Silva, 1832. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/3/
ganhador. Acessado em: 26 de maio de 2013.
62 GRINBERG, Op. cit., p. 60.
Resumo: Durante mais da metade do século XIX, cobrindo boa parte do período im-
perial, as noites da cidade do Rio de Janeiro estiveram, quase sem interrupção, sob
toque de recolher. Este artigo analisa a implementação dessa medida no contexto
da história social e legal da cidade no período. Seu principal foco será o Edital de
1825, que estabeleceu o chamado “Toque de Aragão”, a norma municipal batizada
em homenagem ao Intendente de Polícia do Rio de Janeiro, responsável por ordenar
a severa limitação da liberdade de circulação de pessoas durante a noite, bem como
por impedir ou dificultar a reunião de determinados grupos de moradores daquela
cidade, investigando suas causas e efeitos. A designação da noite como uma cat-
egoria jurídica e, com efeito, uma jurisdição à parte, estava relacionada ao controle
dos trabalhadores e, em particular, à evolução do panorama do trabalho forçado na
cidade mais populosa e politicamente significativa do Brasil recém-independente.
Abstract: The city of Rio de Janeiro was under curfew for a continuous period that
lasted for more than half of the nineteenth century, for nearly the entire Empire.
This article analyzes the implementation of a nighttime curfew in Rio in the con-
text of the social and legal history of the decades to follow. The principal focus is
the so-called Toque de Aragão—the edict named after its author, Fernando Teix-
eira de Aragão, the head of Rio’s police—that imposed severe limitations on the
nighttime freedom of movement and association for certain groups of persons,
especially those of African descent. The designation of the nighttime as a legal cat-
egory and, in effect, a separate jurisdiction, was related to the control of workers,
and in particular to the changing landscape of forced labor in the most populous
and politically significant city in newly independent Brazil.
* Esta pesquisa foi realizada com o apoio financeiro da PSC-CUNY Research Foundation, do Queens College
Dean of the Social Sciences Research Fund e do National Endowment for the Humanities. A autora
agradeçe o auxílio de Mila Burns Nascimento, Henrique Espada Lima, Cristiana Schettini Pereira e Paulo
Terra. Uma versão incipiente deste texto foi apresentada no Programa de Pós-Graduação em História/
Centro de Pesquisa em História Social da Cultura da Universidade Estadual de Campinas e aproveitou os
comentários de Sidney Chalhoub e de os outros participantes do seminário.
** Department of History, City University of New York, Queens College and the Graduate Center. Contato:
amy.chazkel@qc.cuny.edu
1 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: Decadência do Patriarchado Rural no Brasil. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1936, p. 18-19.
2 O trabalho clássico que trata da história social da iluminação urbana: SCHIVELBUSCH, Wolfgang.
Disenchanted Night: The Industrialization of Light in the Nineteenth Century. trans. Angela Davies. Berkeley,
CA: University of California Press, 1995. Outros exemplos são: BOONE, Christopher. The Rio de Janeiro
Tramway, Light, and Power Company and the “Modernization” of Rio de Janeiro during the Old Republic.
Toronto: Univ. of Toronto Press, 1995 e FERREIRA, Milton Martins. A evolução da iluminação na cidade do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Synergia; Light, 2009.
3 WALSH, Robert. Notices of Brazil in 1828 and 1829, reproduzido em: CONRAD, Robert E. Children of God’s
Fire: A Documentary History of Black Slavery in Brazil. Princeton: Princeton University Press, 1984, 219; EBEL,
Ernst. O Rio de Janeiro e seus arredores em 1824. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1972, p. 73. Ver em
geral: LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Livros de viagem (1803-1900). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
observou que os escravos corriam para evitar a violação do toque de recolher das
10 horas da noite, e “ai daquele que fosse flagrado” pela polícia na rua depois
dessa hora. Ele escreve: “Nada poderia ser mais surpreendente para um estranho
do norte... do que encontrar as ruas e os belos bairros da cidade praticamente de-
sabitados e silenciosos como as ruínas de Tebas ou Palmyra”. 4 Tal impressão, no
entanto, não corresponde plenamente à verdade.
Existem poucas ― se é que existem ― narrativas da vida pública cotidiana
depois do escurecer. Apesar do senso comum sobre os espaços públicos “deser-
tos” durante a noite na Corte Imperial, as ruas do Rio evidentemente não estavam
vazias no período da escuridão. A história da vida cotidiana do Rio de Janeiro do
século XIX termina no pôr do sol, mas a documentação a esse respeito, ao que
parece, não. O toque de recolher a que aquele viajante inglês se referia entrou em
vigor logo após a Independência, junto com uma série de decretos policiais e re-
gulamentos municipais que criminalizaram, para a maioria, o ato de estar em qual-
quer espaço público após o dobrar dos sinos das igrejas à noite. Na medida em que
as interdições são um indício do que as pessoas realmente fazem, podemos supor
que, no século XIX, o Rio estava vivo depois do escurecer. Os registros nos arqui-
vos das prisões que tais interdições produziam são vislumbres inestimáveis de um
pequeno e fundamental período na vida pública após o pôr do sol, em um momen-
to anterior à era da famosa vida noturna do Rio de Janeiro ― em outras palavras,
em uma época em que muitos duvidavam da sua própria existência. Além disso,
esses documentos são artefatos fascinantes do exercício diário do poder munici-
pal na sua relação com os trabalhadores da cidade.
O controle do ritmo diário da vida é um exemplo do poder local por excelên- 34
cia; é uma questão cotidiana sem qualquer efeito direto sobre as leis e a jurispru-
dência em nível nacional. Aqueles que exerciam o poder municipal designavam
jurisdições temporais e não apenas espaciais. A mudança legal que ocorria a cada
noite, com o pôr do sol, se deu no contexto de contínuas lutas pelo poder entre a
polícia, os indivíduos (especialmente os proprietários de escravos) e a Coroa. Pres-
tar atenção ao tempo cotidiano pode proporcionar uma nova forma de examinar
a questão crucial de quem ― quais instituições ou indivíduos ― deve decidir, es-
tabelecer e fazer cumprir as normas de moralidade pública e do comportamento
correto.5 As maneiras pelas quais as regras do período noturno foram impostas
têm fortes implicações para a compreensão do poder municipal, não apenas como
o equilíbrio, às vezes tenso, entre a Câmara Municipal e a polícia, mas, além disso,
como o equilíbrio entre os poderes público e privado.6 Os escravos podiam ser
açoitados e encarcerados no Depósito Geral se fossem flagrados nas ruas depois
do anoitecer; senhores de escravos, no entanto, poderiam escrever um bilhete
concedendo-lhes isenção de tal regulamento. O nexo das interdições legais e prá-
ticas de policiamento depois de escurecer criou uma jurisdição muito especial,
que desaparecia ao nascer do sol, mas se renovava todas as noites. Parece claro
que não apenas a escravidão ilegal, mas também a mudança legal ocorrida duran-
te a noite, completa o quadro da paisagem sociolegal e explica a precariedade
da liberdade para a maioria não branca da cidade.7 A designação da noite como
4 HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de Janeiro: Repression and Resistance in a Brazilian City. Stanford, CA:
Stanford University Press, 1993, p. 22-23.
5 Ver: HARTOG, Hendrik. “Pigs and Positivism”. Wisconsin Law Review. Madison, WI. 901, 1985, p. 899-935.
6 ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudos sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro: 1808-1822.
Petrópolis: Vozes, 1988; SCHULTZ, Kirsten. “The Crisis of Empire and the Problem of Slavery: Portugal and
Brazil, c. 1700- c. 1820”. Common Knowledge. Durham, NC: Duke University Press, 11:2, 2005, p. 275-77.
7 CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: Ilegaldade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
uma categoria jurídica e, com efeito, uma jurisdição à parte, estava relacionada ao
controle dos trabalhadores e, em particular, à evolução do panorama de trabalho
compulsório na cidade mais populosa e politicamente significativa do Brasil recém-
independente.
Uma regra aparentemente excêntrica e arcaica como a criminalização de es-
tar nas ruas depois do anoitecer parece fazer tanto sentido quanto a sua eventual
extinção, à medida que a cidade se modernizava e se livrava do duplo anacronismo
da escravidão e da monarquia. Por causa das tensões sociais inerentes a uma cida-
de de trabalhadores escravizados, e da violência necessária para governá-la, o po-
liciamento tirânico parece ser uma característica orgânica da paisagem urbana. A
história geralmente contada sobre o policiamento da cidade enfoca estreitamente
a questão da ordem e da desordem social urbana e o controle de escravos, e da mi-
tigação de potenciais revoltas pela instituição policial, então em desenvolvimento.
Este artigo se une a uma útil conversa iniciada pelos historiadores que começaram
a investigar o que existe para além da importante, mas já familiar, história do con-
trole social e do policiamento draconiano. Esses trabalhos recentes procuram não
apenas identificar, mas perscrutar o poder oficial para entender seu funcionamen-
to no nível municipal e obter uma visão mais concreta de como a lei age sobre a
cultura e a sociedade.8 Da mesma maneira, o que emerge dos registros arquivísti-
cos produzidos pelo Toque de Aragão é uma história de repressão, e os documen-
tos mostram claramente a presunção racista de culpabilidade de qualquer pessoa
afrodescendente. Mas essa história é mais do que apenas outro exemplo do Es-
tado autoritário esmagando o povo, e a criminalização de estar na rua depois de
35 anoitecer vai além da questão de desigualdade social. Em vez de ser uma relíquia
do Antigo Regime, foi uma prática antiga, mas também uma novidade do século
XIX, que virou lei na esteira de uma crise de mão de obra urbana.
O toque de recolher diferenciava abertamente as classes sociais e só era
aplicado aos escravos, aos que pudessem ser confundidos com escravos, como as
pessoas livres de ascendência africana e, algumas vezes, aos estrangeiros. Os mais
abastados e de pele mais clara foram explicitamente isentos.
Todas as pessoas não escravas nascidas no Brasil, independente da sua con-
dição jurídica ao nascer (livres ou não), de acordo com a primeira Constituição do
Brasil independente (ratificada em 1824) eram cidadãos a quem a igualdade era
garantida perante a lei. É interessante notar, contudo, que, embora todos fossem
capazes de exercer muitos desses direitos políticos e civis livremente, independen-
temente da sua etnia, no tangente à liberdade de ir e vir e ao uso da cidade, houve
uma divisão racial gritante.9 O toque de recolher não apenas discriminava as pessoas
de acordo com a cor da sua pele, mas também exigia que a polícia o fizesse. Depois de
escurecer, o regime legal mudava sutil, mas significativamente; o Rio se tornou uma
cidade de não cidadãos em estado de emergência sob o domínio da polícia.10
Até mesmo os homens e mulheres cuja circulação noturna na cidade era li-
mitada pelo toque de recolher, tomavam as ruas constantemente após o anoite-
cer. Durante todo esse período, temos os registros policiais de pessoas que foram
presas depois de escurecer, “fora de horas”, para usar a linguagem corriqueira
dos policiais. É bastante claro que os regulamentos e editais destinados a reduzir
a socialização pública e a circulação de pessoal depois de escurecer não conseguiu
fazê-lo, ainda que essas leis certamente tenham tido outros efeitos.11
Curiosamente, o toque de recolher não parece ter gerado muita controvérsia.
Ele foi discutido ocasionalmente e com naturalidade em jornais e, mais tarde, na
literatura folclórica. Aparece em trabalhos de ficção ambientados no início do Im-
pério, servindo para destacar o quão diferente era a vida diária no passado. Juristas
e ensaístas políticos do início e de meados do período imperial, que escreveram
abundantemente sobre uma infinidade de outros assuntos ― da punição corporal
ao habeas corpus para o direito marítimo ― não se preocuparam com o toque de
recolher noturno. Essa marginalidade teórica em si é reveladora. A escassez de es-
crita jurídica, abordando diretamente o toque de recolher também significa que,
para estudar a sua imposição e os seus efeitos, é preciso contar com os registros de
prisões, e não muito mais que isso. Há certamente outras histórias a serem conta-
das sobre a vida depois do escurecer no Rio do século XIX, mas a história social e le-
gal do toque de recolher fornece um começo promissor para a compreensão desse
mundo ainda desconhecido. Os registros policiais indicam simultaneamente alguns
dos tipos de trabalho e lazer noturnos em que cariocas do século XIX se envolviam
e revelam a criação da noite como uma categoria sociojurídica. Com isso, podemos
capturar o processo de um “sistema social e cultural se definindo”. 12 36
Este artigo deixa para futuros estudos a importante tarefa de reconstruir
a história da sociabilidade pública e talvez, além de tudo, o trabalho que se fazia
depois do pôr do sol a despeito da interdição criminal de estar na rua depois do
toque de recolher. É impossível, porém, considerar estes aspetos da vida noturna
da cidade ― os batuques, os encontros religiosos e cívicos clandestinos, o povo
que circulava indo e vindo das tavernas até de madrugada, e eventualmente (de
meados do século em adiante) as sessões noturnas do teatro e os cafés-concertos,
as regatas que saiam à meia-noite ― sem parar primeiro para considerar o fato de
que, durante todo este tempo, estar no espaço público depois de anoitecer era
oficialmente um crime.
11 Os exemplos são muitos; veja Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ), códice 40.3.78, folha 2.
(Ofício, 18 de junho de 1836); Arquivo Nacional (AN), Polícia da Côrte, Códice 327, v.1 and 2; AN, Polícia da
Côrte, Códice 330, v.6 and 7. Incidentes de prisões por estar nas ruas após o horário também são citados
em CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: Ilegaldade e costume no Brasil oitocentista. Op. cit., p. 432.
12 MUIR, Edward; RUGGIERO, Guido. History from Crime: Selections from Quaderni Storici. trans. Corrada
Biazzo Curry, Margaret A. Galucci, Mary M. Galucci. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1994, p. 226.
19 Sobre o final do século XIX e o início do século XX, ver: BRETAS, Marcos Luiz. Guerra das ruas: Povo e polícia
na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, n.17, cap. 3, 1997, p. 59.
20 BARRETO FILHO, João Paulo de Mello; LIMA, Hermeto. História da polícia do Rio de Janeiro: Aspectos da
cidade e da vida carioca. Op. cit., p. 36.
21 KARASCH, Mary. Slave Life in Rio de Janeiro, 1808-1850. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1987, p. 60.
22 Lei de 16 de dezembro de 1830. Código Criminal do Império do Brasil. cap. III, Secção 1, artigo 16; secção VI,
artigo 211. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm
23 HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de Janeiro: Repression and Resistance in a Brazilian City. Op. cit., p. 61.
24 Coleção das Leis do Império do Brazil, 1830. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1876, p. 31.
25 Código de Posturas Municipais. Seção 1—saude pública; seção 2—polícia. Ver: ABREU, Martha. O Império do
Divino, p. 193-97.
26 SCHULTZ, Kirsten. “The Crisis of Empire and the Problem of Slavery”. Op. cit., p. 276-77.
27 Ver por exemplo AN, Seção de Guarda SDE 001, códice 325, v. 4; AN, GIFI, Caixa 6J 80.
28 Em um documento comprido reorganizando a força policial carioca (Intendência Geral da Polícia) e
criando comissários e cabos para trabalharem sob o Intendente, em novembro de 1825, Aragão afirmou
o policiamento profissional contínuo da cidade ao longo dos 24 horas do dia: “Toda a pessoa, seja de que
condição for, poderá recorrer dos Comissários e Cabos da Polícia a qualquer hora do dia, ou da noite,
para requerer a manutenção da sua probidade, segurança individual ou familiar e para reprimir todos
aquelles factos que sendo legalmente prohibidos lhe podem ser prejudiciais por alguma maneira”; AN,
Fundo: Polícia da Côrte, códice 332, folhas 2-3.
Um dos primeiros problemas que Aragão enfrentou nos seus primeiros me-
ses como Intendente da Polícia no Rio foi um debate furioso sobre o recrutamento
forçado de escravos para trabalharem nas obras públicas e a necessidade deses-
perada de mais mão de obra para acompanhar a crescente necessidade de infraes-
trutura. Parece que os escravos, que de fato eram ganhadores fazendo o trabalho
determinado por seus senhores, estavam sendo “apanhados” das praças públicas
e colocados para fazer trabalho compulsório, construindo fortificações para a ci-
dade. Senhores de escravos e, em alguns casos, oficiais da polícia, expressavam
horror em relação às supostas violências contra o direito de propriedade, enquan-
to as autoridades municipais se preocupavam em terminar os muitos projetos de
obras não completados pela cidade sem a disponibilidade da mão de obra neces-
sária. Os requerimentos e as portarias sobre esse assunto saindo do gabinete do
próprio Aragão eram cada vez mais conturbados nos meses finais de 1824.29
Imediatamente depois dessa controvérsia sobre como conseguir trabalha-
dores para as obras públicas sem ameaçar a ordem escravista, em um dos seus
primeiros atos como intendente, Aragão emitiu novos regulamentos policiais num
edital datado de janeiro de 1825. Esse edital determinava que qualquer pessoa,
fosse escravo ou livre, que fosse parada “por qualquer ronda”, teria que ser sub-
metida à interrogação. Resistir era automaticamente considerado um ato crimino-
so (“importa uma resistência”), e “será até empregada a força, ser for necessário,
àquele que se insurgir”. A provisão central no edital de 1825 estabeleceu o que
logo passaria a ser conhecido como o “toque de Aragão”: pela lei às 10 horas no
verão e às 9 horas no inverno começava a hora de se recolher dentro de casa; ron-
das tinham o direito absoluto de fazer revistas a qualquer pessoa que estivesse 40
na rua depois do famoso “Toque de Aragão”, para verificar se a pessoa carregava
qualquer instrumento que pudesse ser usado em um crime. Os sinos da igreja de
São Francisco de Paula e do convento de São Bento tocavam por meia hora para
anunciar o momento de recolha a todos e excluir a possibilidade que alguém pu-
desse alegar que não soubesse da hora.30
Ironicamente, era exatamente quando não se podia mais enxergar o rosto
de uma pessoa ― parafraseando a definição legal da noite — que os policiais ga-
nhavam poderes fortalecidos (e principalmente extralegais) para prender pesso-
as. O “Toque de Aragão” fazia parte de uma tendência de policiamento no Rio
durante o primeiro século pós-Independência, um padrão emergente que dava
cada vez mais autoridade aos policiais quando tratavam dos crimes e contraven-
ções mais comuns, como a vadiagem e o sair “fora de horas”, efetivamente dando
aos representantes da Justiça nas ruas o papel de policial, juiz e júri, de uma só vez.
A regra para a aplicação dessa nova lei exigia que não se abusassem dela, nem a
aplicassem a “pessoas notoriamente conhecidas e de probidade”; a lei era feita
explicitamente para ser aplicada seletivamente, de acordo com a classe social e as
29 AN, Polícia da Côrte, Códice 323, v. 8; AN, Polícia da Côrte, Códice 327, v.1 e 2. Os esforços constantes para
obter mão de obra forçada para as obras públicas na Corte Imperial, além da historiografia volumosa
sobre os africanos livres, são bastante documentados. Além dos outros documentos aqui citados, ver:
AGCRJ, códice 6.1.25, folha 14.
30 BARRETO FILHO, João Paulo de Mello; LIMA, Hermeto. História da polícia do Rio de Janeiro: Aspectos da
cidade e da vida carioca. Op. cit., p. 288-89. José Vieira Fazenda consta que o convento de Santa Teresa
também tocava um aviso cada noite 20 minutos antes do sino de recolher, como um gesto de “piedade” para
os escravos, que não teriam tempo de ir correndo para casa e evitar o castigo que recebiam por estarem
nas ruas “fora de horas”; citado em: Idem, Ibidem, p. 289. Ver também: HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de
Janeiro: Repression and Resistance in a Brazilian City. Op. cit., p. 46-47; BRANCO, Zoraia Saint’Claire. “Estórias
da Polícia do Rio de Janeiro”. Cadernos de Segurança Pública. Rio de Janeiro. 1:0, 2009, p. 3.
41
posições de direitos civis da constituição em um contexto mais realista.
“A lei será a mesma para todos” acabou por ser uma declaração entu-
siasmada desde o princípio, tendo pouco a ver com a vida nas ruas.
31 HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de Janeiro: Repression and Resistance in a Brazilian City. Op. cit., p. 46.
32 Citado em BARRETO FILHO, João Paulo de Mello; LIMA, Hermeto. História da polícia do Rio de Janeiro:
Aspectos da cidade e da vida carioca. Op. cit., p. 289.
33 HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de Janeiro: Repression and Resistance in a Brazilian City. Op. cit., pp. 46-
47. Sobre a dificuldade em determinar quem era escravo e as mudanças na prática jurídica de quem teve
o ônus da prova nesse respeito, ver: CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: Ilegaldade e costume no
Brasil oitocentista. Op. cit., cáp. 9.
34 HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de Janeiro: Repression and Resistance in a Brazilian City. Op. cit., p. 47-48.
Fora de horas
Em abril de 1829, o Intendente Geral da Polícia da Corte mandou uma carta
ao Inspetor do Arsenal da Marinha. Essa carta avisava que haviam sido presos oito
homens, todos marinheiros, que “andavam fazendo desordens” e, além do mais,
estavam “fora de horas”. Em nome do interesse da “tranquilidade pública” e do
bom policiamento, foram todos mandados para o trabalho que o inspetor achava
conveniente.36 Quatro anos mais tarde, em 1833, e também na cidade do Rio, o Juiz
do Crime do Bairro de São José relatou à Inspetoria Geral da Polícia que “o preto
João Braga, que diz ser forro e espanhol”, foi preso “por ser encontrado a uma
hora da noite por um pedestre”.37
Nesses dois casos, e em outros tantos semelhantes encontrados nos arqui- 42
vos da polícia e Justiça do início do Império, os policiais do Rio nos anos de 1820,
30, e 40 varriam pessoas das ruas da Corte Imperial e as mandavam à cadeia, sujei-
tavam-nas a açoites (no caso dos escravos) e, além de tudo, as enviavam ao traba-
lho compulsório nas várias obras públicas na Corte, para a construção de estradas,
a limpeza das praças, a construção e o conserto das fortificações da cidade. O cri-
me pelo qual essas pessoas foram presas era antigo, mas estava aparecendo nas
ocorrências policiais das décadas de 1820, 30, e 40 em um contexto e uma forma
muito novos: “andar na rua fora de horas”, na linguagem da época.
O famoso Toque de Aragão iniciou um período contínuo de cinquenta e três
anos durante os quais o anoitecer ativava um estado de exceção no funcionamen-
to normal da Justiça, o que em princípio previa um estado de direito, apesar da
identificação persistente entre as funções de polícia e Justiça. Outros regulamen-
tos subsequentes alteraram ou refinaram o edital de 1825. Em 1831, o toque de
recolher foi renovado por causa do que se considerou ser uma onda de crimes. A
partir de então, ele começaria ao pôr do sol (por volta de 18h30), em vez das 9 ou
10 horas, e se aplicava somente aos escravos e marinheiros. Naquele ano, das 224
pessoas presas entre o final de maio e o início de junho, 34 o foram por estar fora
de horas (14 marinheiros e 20 escravos), 35 por vadiagem e 25 por estarem com
armas ilegais, as duas outras categorias mais comuns. Apesar do nervosismo da
polícia na década de 1830, muitos eventos noturnos nos espaços públicos do Rio
eram povoados por escravos, pessoas livres de cor, e outros que seriam sujeitos
35 LAUDERDALE GRAHAM, Sandra. “Making the Private Public: A Brazilian Perspective”. Journal of Women’s
History. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press, 15:1, 2003, p. 28-42.
36 AN. Fundo: Polícia da Côrte, Códice 330, v. 6.
37 AN. Fundo: Polícia da Côrte, Códice 330, v. 7. Essa história é mais complexa ainda; ele foi encontrado com
três chapéus e algumas roupas, dizendo que pertencia ao seu senhor, mas a polícia disse descobrir que
foram roubadas. A resolução do caso não aparece nesse códice.
38 HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de Janeiro: Repression and Resistance in a Brazilian City. Op. cit., p. 79, 161, 191.
39 HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de Janeiro: Repression and Resistance in a Brazilian City. Op. cit., p. 198
40 Idem, Ibidem. “O Calabouço e o Aljube do Rio de Janeiro no século XIX”. In: MAIA, Clarissa Nunes; NETO, Flávio de
Sá; COSTA, Marcos; BRETAS, Marcos Luiz. História das prisões no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, v. 1, p. 260-61.
41 HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de Janeiro: Repression and Resistance in a Brazilian City. Op. cit., p. 201.
46 GRAHAM, Richard. Feeding the City: From Street Market to Liberal Reform in Salvador, Brazil. 1780-1860.
Austin, TX: University of Texas Press, 2010; VELLASCO, Ivan de Andrade. “Clientelismo, ordem privada e
Estado no Brasil oitocentista: notas para um debate”. In: CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lúcia Maria
Bastos Pereira das (orgs.) Repensando o Brasil dos oitocentos: Cidadania, política, e liberdade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 73-100.
47 AN, PP, notação 0529; AN, PP, notação 0513.
estava inteiramente a critério das patrulhas policiais prender alguém por violar o
toque de recolher tecnicamente ainda em vigor.48 Em 1878, a Câmara Municipal
aprovou uma lei deixando todos os negócios legítimos ficarem abertos até 1 hora
de madrugada. Enfim, o Toque de Aragão foi formalmente revogado alguns meses
depois, ainda em 1878.49
Vale notar que justamente quando o toque de recolher finalmente foi revo-
gado depois daquelas muitas décadas, a cidade do Rio de Janeiro começou a con-
tratar uma força policial particular para vigiar as ruas de noite. A Guarda Noturna
rondava depois do escuro e continuava a tradição do Império do policiamento ar-
bitrário. Agora sem o toque de recolher, o governo municipal controlava o comér-
cio por meio da cessão de licenças; pequenos comerciantes que não conseguiam
tirar uma licença tinham que fechar ― o que muitos faziam ― ou eram forçados a
funcionar clandestinamente (às vezes pagando à polícia), ― o que muitos outros
também faziam.50
48 HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de Janeiro: Repression and Resistance in a Brazilian City. Op. cit., pp. 257-258.
49 Idem, Ibidem, p. 257-58. Logo depois do fim do toque de recolher, porém, o governo declarou um estado
de sítio e reativou durante a Revolta do Vintem em 1880.
50 AN. Gifi 8N 014; BRETAS, Marcos Luiz. Guerra das ruas: Povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Op. cit.,
p. 54, 59, 60, 84.
51 Centro Cultural da Light, “A iluminação no Rio de Janeiro,” unpubl. ms.
52 Light, ano 2, v.2, número XIV (março de 1929), capa.
-lhe apenas permitido ter este divertimento até às 10 horas da noite, recebe inúme-
ras reclamações” da clientela que queria “gastar mais tempo, visto como é curta
a hora determinada”. Ele queria oferecer “ao respeitável público, mas exigindo os
distintos e qualificados espectadores que o frequentam, que por mais tempo deve
aquele divertimento, pelo menos até às 11 horas, visto como é curto o espaço que
esse preenche”.53 O deferimento desse tipo de requisição ficou cada vez mais co-
mum no final da década de 1850 e ao longo da década de 1860. A partir da década
de 1880, lâmpadas funcionavam extensamente na zona urbana do Rio, o toque de
recolher não existia mais e o povo podia sair mais facilmente depois de escuro.54
Contudo, vale dizer que a história do estado de exceção noturno não parece
estar vinculada, pelo menos de um jeito simples e direto, às mudanças tecnológi-
cas. Não foi a introdução gradual da luz artificial que mitigou a imposição do toque
de recolher e os estados de sítio que foram impostos mais tarde. A história mais
óbvia, que fala do progresso tecnológico, de fato também aparece aqui: vemos
a crescente capacidade de iluminar os espaços públicos da cidade ― em termos
de financiamento público e também em termos da capacidade de produzir uma
luz cada vez mais forte, barata e menos fedorenta. Mas o aparato jurídico que se
desenvolvia para definir a noite como perigosa não se sincronizava com o ritmo de
mudanças tecnológicas. Em vez disso, o governo municipal impunha essas leis nos
momentos de conflito político ou da percepção de caos social. Regulamentos in-
terditando que os cidadãos andassem na rua depois de uma dita hora passado do
pôr do sol pretendiam limitar ao máximo a liberdade de movimento sem interferir
47 no funcionamento normal das cidades: ou seja, deixando a distribuição das mer-
cadorias para exportação das regiões agrícolas para a zona portuária da cidade
e aprovisionando os trabalhadores que faziam essas indústrias funcionarem. Um
centro comercial muito ativo como o Rio, que dependia de mão de obra cativa,
cumpria o seu propósito econômico assim: a liberdade de movimento de dia, o
recolhimento total de noite.
Embora não possamos reduzir a motivação por essa lei à necessidade de
mão de obra cativa, o Toque de Aragão também não pode ser entendido separa-
damente desse fenômeno. A medida oficial que o impôs e as leis semelhantes que
se seguiram faziam muito sentido no contexto do conflito que desabrochou nos
meses anteriores à imposição do famoso edital: o conflito sobre o recrutamen-
to de escravos (alheios) para trabalharem nas obras públicas que o governo local
desenvolveu para responder à necessidade desesperada por mão de obra gerada
por um sistema tributário. O edital de 1825 pode ser visto à luz da lei de novembro
de 1831, que criou a categoria de “africanos livres”, pessoas aprendidas do tráfico
negreiro ilícito que logo acabaram providenciando a mão de obra forçada para a ci-
dade (bem como para pessoas particulares), em resposta à preocupação constan-
te da liderança municipal: quem iria providenciar o trabalho individual necessário
pelo bem público ― não em casas particulares, mas nos espaços compartilhados
da cidade? O edital surgiu para resolver um problema específico e agudo: uma cri-
se de abastecimento de mão de obra, o que logo foi combinado com o horror a
qualquer tipo de “aglomeração” de gente avulsa e o medo da rebelião depois dos
tumultos que aconteceram nas cidades do Norte e do Nordeste do país na déca-
da de 1830. Essas regulações que restringiam o movimento noturno para algumas
classes de cariocas foram impostas por motivos específicos, mas essas restrições
se implantaram por motivos diferentes; desse modo, uma situação emergente e a
Recebido em 24/05/2013
Aprovado em 10/06/2013
55 O debate histórico e legal sobre os significados da lei suntuária no estado moderno é instrutivo
aqui; GOODRICH, Peter. “Signs Taken for Wonders: Community, Identity, and a History of
Sumptuary Law”. Law and Social Inquiry, Malden, MA: Wiley-Blackwell/ American Bar Foundation,
23:3, 1998, p. 707-28. CHAZKEL, Amy. Laws of Chance: Brazil’s Clandestine Lottery and the Making
of Urban Public Life. Durham, NC: Duke University Press, 2011, p. 6-7.
Abstract: In this article, I discuss the relationship of the municipality of Rio de Ja-
neiro with the workers - especially those identified as renters or tenants of stalls
- the Praça do Mercado (literally, Market Square) in Rio de Janeiro, the main sup-
ply center staples during the eighteenth century. Therefore, I examine in detail the
disputes waged between two tenants Square - Domingos José Sayão, freed Afri-
can “nação” calabar and Joaquim Antonio Franco, “Brazilian citizen” - for posses-
sion of a fish stall in 1846. Along the way, both will be possible to assess who was
“enabled” to occupy - and effectively occupied - the different sales areas within
the market, as well as follow the links, also differentiated these small dealers had
with tax, municipal officials and councilors.
Keywords: Rio de Janeiro - City Hall - Market Square - small traders - Africans - “Bra-
zilian citizens”
* Universidade Federal da Bahia
No Rio de Janeiro, desde pelo menos meados do século XVII, negras de tabu-
leiro e vendedores de peixe reuniam-se à beira-mar, nas proximidades do terreiro
do Ó, mais tarde chamado de Largo do Paço.1 Como portas de entrada da cidade,
essas áreas litorâneas, conhecidas como praias de marinha, constituíam pontos
centrais para o pequeno comércio de pescado e outros gêneros que vinham das la-
vouras do Recôncavo da Guanabara e de locais mais distantes. Administrados pelo
Senado da Câmara, só podiam ser ocupadas por quem tivesse licenças e pagasse
foros anuais.2 Entretanto, novas bancas e quitandas iam se juntando num ritmo
acelerado e desordenado. Para contê-las, os senadores promoviam reformas, limi-
tavam os espaços para as trocas e chegavam mesmo a tentar expulsar os peque-
nos comerciantes. Especialmente perto da Alfândega, entre a rua do Mercado e
o cais das Marinhas, onde foi se formando um pequeno e ruidoso mercado ― o
“Mercado da Praia do Peixe”3.
Com o seu contínuo crescimento, o vice-rei Luiz de Vasconcellos ordenou, em
1789, que as barracas de peixe fossem reconstruídas com regularidade e simetria.
Ainda assim, a “algazarra” dos vendedores, a lama e os restos de frutas, legumes
e peixes amontoados ali não deixavam de desagradar autoridades e moradores
da capital. Alguns diziam que o “vozerio” era tal que perturbava as sessões no Se-
nado.4 Mesmo com protestos de lado a lado e as determinações para que fossem
removidos para outro local, um novo mercado só começou a ser construído na
década de 1830.5
Com projeto do arquiteto francês Grandjean de Montigny, as obras do edifí-
cio da Praça do Mercado, também chamada de Mercado da Candelária, iniciaram-
-se nos primeiros meses de 1835, mas só foram totalmente concluídas em 1841.6
50
Ocupando todo um quarteirão da freguesia da Candelária, o local ficou interna-
mente dividido em três áreas: o centro, destinado para venda de hortaliças, legu-
mes, aves e ovos; o lado do mar, para peixe fresco, seco e salgado; e o lado da rua
(voltado para a rua do Mercado e para o Largo do Paço), para cereais, legumes,
farinha e cebolas.7 Na Praça das Marinhas, em frente à doca contígua ao mercado,
1 Inicialmente terreiro do Ó – e depois da Polé –, a área ficou conhecida como terreiro do Carmo quando ali
construíram a igreja e o convento dos carmelitas. Mais tarde, foi chamada de Largo do Paço e, depois, de
praça d. Pedro II. Com a proclamação da República, ganhou a denominação de Praça XV de Novembro,
nome que continua até hoje. Cf.: GERSON, Brasil. História das ruas do Rio. 5.ed. Rio de Janeiro: Lacerda
Ed., 2000, p. 26-32; GORBERG, Samuel; FRIDMAN, Sergio. Mercados no Rio de Janeiro. 1834-1962. Rio de
Janeiro: S. Gorberg. 2003, p. 2.
2 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003, p. 203-204; 220.
3 COARACY, Vivaldo. Memórias da cidade do Rio de Janeiro. 3.ed. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; Edusp,
1988, p. 60. Em 1638, a Câmara do Rio estabeleceu que os pescadores venderiam suas mercadorias no
trecho que compreendia a Praia de Nossa Senhora do Carmo até a porta do Governador, ou seja, entre a
atual Praça XV e a rua da Alfândega. Cf.: FRIDMAN, Sergio; GORBERG, Samuel, Op. Cit., p. 2.
4 Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (doravante AGCRJ), Ofício da Secretaria de Estado de Negócios
para o Senado da Câmara de 21/04/1823.
5 Cf.: FRIDMAN, Sergio; GORBERG, Samuel, Op. Cit., p. 12. COARACY, Vivaldo, Op. Cit.
6 Em 1836, quando os dois corpos do prédio voltados para o Largo do Paço ficaram prontos, seus
compartimentos já começaram a ser alugados, gerando uma receita de 2:366$500 réis. Com a crônica falta
de recursos da Câmara, as obras da Praça só foram retomadas em 1839, sob o comando do engenheiro
João Vicente Gomes. Finalmente concluídas em setembro de 1841, o custo total chegou a 170:396$073 réis.
7 Desde sua construção até 1908 (quando o mercado foi demolido), essa estrutura básica da Praça do
Mercado passaria por diversas reformas e acréscimos. E os trabalhadores, fossem locatários, pequenos
lavradores, quitandeiras ou pombeiros, nem sempre concordavam com essas transformações. Em 1885,
por exemplo, quando novas barracas foram construídas no cais das Marinhas, em substituição aos antigos
chapéus de sol, os pequenos comerciantes já instalados naquela área recusaram-se a pagar a taxa exigida
pelos empresários, que arrendaram o local e paralisaram suas atividades. Durante uma semana, a “greve
das Marinhas” mobilizou vendedores de diferentes procedências, imprensa, vereadores e o próprio
governo imperial. Para uma análise mais ampla desses protestos, ver: FARIAS, Juliana Barreto. “Mercado
em greve: protestos e organização dos trabalhadores do pequeno comércio no Rio de Janeiro – Outubro,
1885”. Anais da Biblioteca Nacional, 127, 2010, p. 99-157; Idem. “Greve nas Marinhas: protestos, tradições e
identidades entre pequenos lavradores, quitandeiras e pombeiros (Rio de Janeiro, século XIX)”. ArtCultura.
Uberlândia, v.11, n.19, jul-dez. 2009, p. 35-55.
8 AGCRJ, Códice 61-2-17: Mercado da Candelária (1870-1879), p. 28.
9 Em 1869, a Praça foi arrendada, pelo prazo de nove anos, aos empresários Aureliano Dias da Costa Cabral
e Antonio José da Silva, sob a firma Aureliano Cabral & C. Abriam-se, assim, as portas para a entrada
da iniciativa privada no mercado. E daí em diante elas não mais se fechariam. Embora esses novos
administradores pudessem auferir grandes lucros com o aluguel de casas e bancas para antigos e novos
locatários, a fiscalização do local e outros assuntos cotidianos continuavam a cargo da municipalidade.
Mas isso estava longe de aplacar os conflitos ― que pouco a pouco se tornaram uma constante ― entre
Câmara e empresários, empresários e pequenos comerciantes ou entre estes e os vereadores e fiscais.
Para acompanhar os detalhes sobre esses arrendamentos, ver: FRIDMAN; GORBERG. Op. Cit., p. 23-32.
10 Na caudalosa documentação sobre o mercado depositada no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro,
esses locatários também são identificados como arrendatários, inquilinos ou banqueiros. Neste artigo,
privilegiarei essa categoria de trabalhadores da Praça, da qual fazia parte Domingos José Sayão e Antonio
Franco. Já analisei outras categorias do mercado em: FARIAS, Juliana Barreto. “Entre pequenos lavradores
e quitandeiras”. Mercados minas: africanos ocidentais na Praça do Mercado do Rio de Janeiro (1830-1890).
Tese (Doutorado em História Social). USP, 2012; Idem. “Pombeiros e o pequeno comércio no Rio de Janeiro
do século XIX”. In: SOARES, Mariza de Carvalho; BEZERRA, Nielson Rosa. Escravidão africana no Recôncavo
da Guanabara. Niterói: Editora da UFF, 2011.
11 AGCRJ, Códice 61-3-18: Comércio de peixe, pp. 6-8. Para os preços dos escravos, ver valores das alforrias
pagas nesse período.
12 MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade do Sudeste escravista – Brasil, século
XIX. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
a banca a escravos” estava riscado.13 Por que eles não acharam necessário deixar
no texto final a proibição aos cativos? E os libertos? Também estavam sendo consi-
derados na genérica categoria de livres? De uma forma ou de outra, mesmo tentan-
do ordenar aquele espaço de trocas, afastando os cativos dali (onde estavam desde
princípios do Oitocentos, e até antes disso), eles não conseguiram alcançar seus
intentos. Ao longo do século XIX, escravos continuariam vendendo quitandas e pei-
xe nas bancas, como prepostos ou mesmo como subinquilinos dos arrendatários.
Por outro lado, as definições de uma pessoa “capaz” não eram tão eviden-
tes assim. Consultando o Dicionário da Língua Portuguesa (1813), de Antonio de
Moraes Silva, constatamos que o termo designava alguém “apto, hábil, suficiente
em talentos; esforço; probidade; decoroso; decente”.14 Luiz Maria da Silva Pinto
também confere o mesmo significado no seu Dicionário da Língua Brasileira (1832):
“suficiente em probidade; intentos, apto, decente”.15 De que forma qualidades um
tanto subjetivas poderiam ser provadas pelos interessados em uma vaga no mer-
cado? No regulamento e em outros editais publicados posteriormente, não havia
quaisquer informações nesse sentido. Para outras categorias até se exigiam regis-
tros e comprovação de habilitação em órgãos competentes. Os pescadores que
ofereciam seus produtos nas canoas ancoradas no cais das Marinhas, por exem-
plo, deviam ter licenças e aprovação da Capitania do Porto. Ainda assim, muitos
pombeiros conseguiam tirar essas autorizações sem estarem, segundo os fiscais
da Praça, “capacitados” para a atividade.
No caso dos locatários, só uma parte remetia à Câmara Municipal pedidos
53 mais detalhados. Sem um modelo obrigatório a seguir, a maioria praticamente
apenas incluía nos requerimentos os seus nomes e o que pretendiam fazer nas
bancas. É bem provável que muitos julgassem que as relações pessoais e o “re-
conhecimento profissional” que gozavam ali, afinal alguns comerciavam naquela
área antes mesmo da construção do prédio do mercado, fossem garantias satisfa-
tórias. E de fato as seleções deviam mesmo se valer dos interesses e das disposi-
ções e idiossincrasias de fiscais e vereadores.
Quando as solicitações chegavam à municipalidade, a vereança, que raramen-
te tinha contatos mais diretos com o mercado e seus trabalhadores, encaminhava
os documentos aos fiscais da Praça, para que estes avaliassem os pedidos e lhes
fornecessem informações adicionais. De acordo com o Regulamento, esses agen-
tes eram responsáveis pela “rigorosa observância” das regras, podendo empregar
todos os meios que suas atribuições lhes conferiam, autuando quem infringisse o
regimento e outras posturas ou requisitando, se necessário, auxílio de força arma-
da. Para os arrendatários e demais comerciantes do mercado ― que diariamente
viam os fiscais fazendo rondas, inspecionando mercadorias e ouvindo reclamações
―, eles eram a expressão mais visível do poder municipal.16 Sendo assim, a aprova-
ção de um pedido de locação e o reconhecimento da capacidade de um candidato
dependiam, no final das contas, da rede de relações que ele mantinha na Praça ― e
mesmo fora dela ― e da avaliação, muitas vezes subjetiva e interessada, dos fis-
cais. Entretanto, para que tudo isso também ficasse claro para os vereadores, era
preciso deixar registrado, formalmente, num papel.
Mas, se as apreciações das solicitações estavam mesmo sujeitas aos “olha-
res” dos fiscais e às relações construídas dentro e fora do ambiente de trabalho,
por que os pretos forros ― tão evidentemente mais próximos da escravidão ―
quase não se autoidentificavam em seus registros, sobretudo quando compara-
dos aos ditos “cidadãos brasileiros”? Pela Constituição de 1824, os libertos tinham
seus direitos civis assegurados. Mas isso só valia para os que nascessem no Bra-
sil. Os alforriados africanos não gozavam do mesmo status dos brasileiros e nem
possuíam as garantias de estrangeiros protegidos por seus países de origem.17 No
dia a dia, ao menos que possuíssem uma prova em contrário, eles eram constan-
temente confundidos com escravos. Daí ser tão importante ter a comprovação de
sua liberdade consignada em cartório e um atestado sempre à mão.18
No Mercado da Candelária, nenhum preto forro apresentou carta de alforria
para ratificar sua condição de liberdade. Em geral, suas solicitações para locação
das barracas ou renovação das licenças continham apenas seus nomes e o número
das vagas pretendidas. Em 15 de dezembro de 1846, por exemplo, Emília Soares do
Patrocínio, viúva de Bernardo Soares, pediu para “continuar com a banca na Praça
do Mercado n. 96, pagar o semestre que corre de janeiro e passar-se os recibos em
nome da suplicante visto que seu marido é falecido”. No verso do documento, o
fiscal Bernardino José de Souza anotou que tudo quanto Emília alegava era verda-
de e parecia ser o “caso de lhe passar em seu nome a banca no corrente semestre
futuro”. Dois dias depois, um comentário não assinado ― certamente feito por 54
algum vereador ― confirmava o parecer do agente municipal.19 Emília Soares do
Patrocínio permaneceu como locatária do mercado por quase 40 anos. E tanto ela
como seu marido Bernardo eram “pretos forros” de “nação” mina. Mas Emília pa-
rece não ter considerado necessário incluir essa informação em seu requerimento.
E o fiscal também não fez qualquer questionamento nesse sentido.20
Já Matias José dos Santos, ao se candidatar à barraca 106 , “vaga por faleci-
mento de um Francisco de tal” em janeiro de 1848, informou que era um “preto
forro com negócio de verduras na Praça do Mercado”. Em seu parecer, o fiscal An-
dré Mendes da Costa considerou que sua “pretensão não tinha lugar”, porque o
irmão ― e sócio ― do antigo arrendatário já pagara o semestre adiantado. Porém,
Mathias não desistiu da locação e as discussões sobre o caso se estenderam na
Câmara Municipal, chegando até a Secretaria dos Negócios do Império. Durante
os debates, a condição social e a procedência de Mathias só foram mencionadas
novamente em um requerimento do irmão do locatário, Francisco, que se referiu
a ele como “o preto mina Matias José dos Santos”.21
Apenas em alguns poucos casos os pretos forros se autoindentificavam des-
sa forma. Porém, quando se envolviam em disputas pela posse das bancas, muitas
17 Entre os poucos trabalhos que tratam do tema, destaco: MAMIGONIAN, Beatriz Galloti. “Razões de direito
e considerações políticas: os direitos dos africanos no Brasil oitocentista em contexto atlântico”. Texto
apresentado no 5º Encontro Escravidão e liberdade no Brasil meridional. Porto Alegre, maio 2011.
18 CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo:
Brasiliense, 1985, p. 76-89.
19 AGCRJ, Códice 61-2-2: Mercado da Candelária (1844-1849), p. 61.
20 Para mais detalhes sobre a trajetória da preta mina Emília, ver: FARIAS, Juliana Barreto. “De escrava a
Dona: a trajetória da africana mina Emília Soares do Patrocínio no Rio de Janeiro do século XIX”. Revista
Locus. UFJF, 2013.
21 AGCRJ, Códice 61-2-2: Mercado da Candelária (1844-1849), p. 107. Voltaremos ao caso da transferência
dessa banca no próximo capítulo.
vezes acabavam tendo o estatuto legal, a cor ou a “nação” africana revelados por
seus oponentes. Foi o que também aconteceu com Vicente Antonio Francisco. Em
23 de outubro de 1855, o locatário Agostinho d’Almeida Figueiredo, procurador de
Bernardina de Oliveira, tentou mais uma vez recuperar o arrendamento da banca
21, que pertencera ao finado Apolinário de Campos. Segundo Agostinho, desde
novembro de 1850 apossara-se dela “o preto Vicente A. Francisco, que iludiu a
Bernardina, viúva do dito Campos, dizendo que ia fazer a arrematação em nome
dela”.22 A contenda começara em janeiro daquele ano, mas em nenhum momento
Vicente indicou sua cor ou seu status. Depois de várias negativas da Câmara Muni-
cipal, talvez Agostinho quisesse, ao chamá-lo de “preto”, colocar em dúvida sua
condição de liberdade e, em consequência, sua habilitação para ocupar uma vaga
na Praça. Seja como for, o certo mesmo é que o fiscal da Praça e os vereadores não
atentaram ― ou não deram importância ― para esse detalhe e a banca continuou
com o “preto” Vicente.
Ao mesmo tempo em que Agostinho Figueiredo tentava destacar essa infor-
mação, “silenciava” a cor e a condição social de Bernardina Oliveira e de seu fale-
cido marido nos requerimentos enviados à municipalidade em janeiro de 1855. Só
que os dados acabaram emergindo da documentação comprobatória anexada às
petições. Na procuração passada a Agostinho, em abril de 1854, o tabelião classi-
ficou Bernardina como uma “preta livre”. Já na certidão de casamento, celebrado
na matriz de Santa Rita, em 21 de fevereiro de 1835, consta que ela era “filha na-
tural de Marianna, preta de nação benguela, escrava que foi de Manuel d’Oliveira,
55 natural e batizada nesta freguesia de Santa Rita”. No mesmo documento, Apoliná-
rio de Campos é descrito como um “preto de nação mina”, antigo escravo de Do-
mingos de Campos, batizado na freguesia do Sacramento. Por sua vez, no registro
de óbito assinado pelo escrivão da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia,
em março de 1849, ele aparece como “preto forro de nação de mina”.23
Conforme veremos mais à frente, os pretos forros, sobretudo os africanos
ocidentais, genericamente identificados como minas, com frequência pediam para
continuar com o arrendamento das bancas que estavam em nome de cônjuges
falecidos. E quando encaminhavam solicitações desse tipo, quase sempre incluíam
assentos de óbito, batismo e casamento, testamentos e mesmo ações de divórcio.
Para além da comprovação do vínculo matrimonial mantido com o antigo inquili-
no, esses registros ainda serviam para atestar sua habilitação às vagas. Afinal, na
época, a condição civil de uma pessoa era legalmente decidida no registro paro-
quial, onde se encontravam livros de “livres” (incluindo-se aí também os libertos)
e de “escravos”.24
Embora esses novos candidatos ― alguns nem tão novos assim, já que tra-
balhavam nas bancas junto com seus falecidos parceiros ― apresentassem docu-
mentos que também certificavam sua capacidade para ocupar uma vaga na Praça,
em geral, os alforriados africanos seguiam o padrão da maior parte dos arrendatá-
rios: encaminhavam pedidos concisos, indicando basicamente seus nomes e os lu-
gares pretendidos. Como alguns vendiam suas quitandas naquela área antes mes-
mo da construção do prédio do mercado, talvez se valessem de um certo prestígio
e do reconhecimento de fiscais e vereadores. E por isso mesmo não precisavam
apresentar maiores informações sobre suas vidas. Quem sabe também a fama dos
“pretos minas” como “exímios quitandeiros” fosse acionada ― e percebida ―
como uma espécie de garantia de suas aptidões. Quando Lauriana Maria da Con-
ceição mencionava que era uma “mina”, ao solicitar a aprovação de uma socieda-
de com Bernardino José Ribeiro, podia estar evidenciando com esse atributo um
resumo de sua condição. Uma africana, não escrava, com “habilidade”, “talento”
para o comércio de verduras, legumes e frutas.25 Da mesma forma que essas “qua-
lidades” talvez estivessem sendo levadas em conta no momento em que o fiscal
Bernardino José de Souza dizia saber, “por ver” ou “ter informações”, que Emília
e Bernardo Soares haviam sido casados e, enquanto “pretos minas”, tinham “ca-
pacidade” para os negócios na Praça do Mercado.
No Rio de Janeiro Oitocentista, senhores de escravos, viajantes estrangeiros,
políticos e, de resto, boa parte da população da cidade enfatizava essas “aptidões
mercantis” de cativos e forros minas, especialmente quando comparados a africa-
nos de outras “nações”.26 Na Praça, essas imagens e estereótipos também eram fre-
quentemente evocados. Em 1865, a norte-americana Elizabeth Agassiz, por exem-
plo, acompanhava seu marido, o naturalista Luiz Agassiz, até o mercado do Rio,
25 AGCRJ, Códice 61-2-7: Mercado da Candelária (1850-1854), p. 89. O pedido de Lauriana é de 16 de julho de
1852. Nesse documento, ela não informa a condição de Bernardino José Ribeiro.
26 Cf.: SELA, Eneida Maria Mercadante. Modos de ser em modos de ver: ciência e estética em registros de
africanos por viajantes europeus (Rio de Janeiro, ca. 1808-1850). Tese (Doutorado em História). Unicamp,
2006.
27 AGASSIZ, Luiz; CARY, Elizabeth. Viagem ao Brasil. 1865-1866. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1975, p. 68.
28 Hudson a Palmerston, Rio de Janeiro, 27 jul. 1850, Encl. 2 in n. 85. apud CUNHA, Manuela Carneiro. Negros,
estrangeiros. Op. Cit., p. 92.
29 CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil: mito, história e etnicidade. São Paulo: Brasiliense;
Edusp, 1986, p. 94-95.
conhecimento”, “sabendo por ver” ou por ser “público e notório”, os agentes mu-
nicipais identificavam quem estava apto ou não.30 Como tantos habitantes do Rio,
eles possivelmente também saberiam distinguir as “marcas tribais” dos vendedo-
res libertos entrevistos pelo senador Hollanda Cavalcanti na década de 1850. Caso
descobrissem – ou suspeitassem – que eram “pretos minas”, poderiam associá-los
às “habilidades mercantis” tão propaladas no próprio mercado e em outros locais
da cidade, e mesmo em outras áreas do país. O que, por si só, já poderia ser sufi-
ciente para habilitá-los às vendas na Praça do Mercado.
Nas bancas
Entre todos os requerimentos sobre a ocupação das bancas que recolhi nos
códices do Arquivo da Cidade, seja para ocupá-las pela primeira vez, seja para pedir
a renovação das locações ou a transferência para terceiros, encontrei os seguintes
termos usados para identificar os arrendatários (tanto por eles próprios como por
funcionários municipais, vereadores e outros trabalhadores): “cidadão brasileiro”
ou “brasileiro”; “preto forro”, “preto de nação” e “preta livre”; “nação calabar”,
“preto mina”, “mina” e “nação mina forra”; “natural d’Hispanha”; “português”,
“nacionalidade portuguesa” ou “súdito português”. Como se vê, as expressões ―
mencionadas por diferentes atores em momentos distintos e com objetivos diver-
sos ― indicavam nacionalidades (portuguesa, por exemplo), “nações” africanas
57 (mina ou calabar) e ainda a combinação de condição social e nacionalidade, como
o designativo “cidadão brasileiro”.
Tomando como referência apenas esses documentos remetidos à Câmara Mu-
nicipal por candidatos às bancas, locatários ou seus procuradores, poderia se con-
cluir que esses grupos eram os principais ― ou mesmo os únicos ― que ocupavam
as áreas internas da Praça do Mercado. No entanto, essas categorias muitas vezes
obscureciam procedências, cores e condições. Assim, para dimensionar a composi-
ção étnica e social dos trabalhadores ali instalados, incorporei outras fontes à análi-
se. Não foi possível seguir a trajetória de todos os arrendatários que passaram pelo
mercado ao longo do século XIX. Ainda que os “brasileiros” tenham sido os que
mais se autoidentificaram na documentação enviada à municipalidade, foram os
que menos apareceram em outros tipos de registros. Já “portugueses” e “pretos
forros” foram localizados em vários conjuntos documentais, tais como inventários,
testamentos, ações de divórcio, registros de hipotecas ou cartas de alforria.
Para as décadas de 1830 e 1840, não dispomos de fontes regulares. O Alma-
nak Laemmert ― lançado em 1844 ― só começou a divulgar listas completas de
mercadores da Praça a partir de 1853. Entre a documentação da Câmara Municipal,
apenas vez ou outra localizamos relações de locatários com os valores despendi-
dos pelo aluguel das vagas. Em 1836, por exemplo, quando somente dois corpos
do edifício voltados para o Largo do Paço haviam sido finalizados, uma “relação
das pessoas” que “remataram as bancas do pescado” incluía os nomes de trinta e
dois arrendatários, dos quais consegui identificar a origem de apenas cinco (dois
africanos minas e três “brasileiros”31).
Confrontando essa listagem com um conjunto de licenças de 1831 e com ou-
tra lista divulgada em 1840, pude constatar que alguns pequenos comerciantes já
30 Esses termos eram constantemente usados pelos fiscais nos pareceres que enviavam à Câmara ―
31 Usarei o termo “brasileiro” conforme indicado pelos próprios locatários. Em alguns casos, acrescentarei
os locais de naturalidade, de acordo com o informado nas fontes.
58
desagradável serviço indispensável à venda do pescado, o que não pode ser fei-
to, geralmente falando, por pessoas livres, que exigirão extraordinários e one-
rosos ordenados, encarecendo deste modo o preço de um gênero de primeira
necessidade”.34
De um lado, os banqueiros queixavam-se da existência de cativos à frente
das bancas. Por outro, pediam à Câmara que os deixassem ter mais serventes e
caixeiros ― de preferência escravos, já que os livres exigiriam “onerosos ordena-
dos”. Toda essa discussão, é certo, não escapou aos vereadores. Em 1844, na hora
de redigir as normas do mercado, eles procuraram uma espécie de conciliação.
Ao mesmo tempo em que só admitiam locatários “livres e capazes”, permitiam
que os escravos pernoitassem nas bancas e casas, desde que seus senhores ficas-
sem responsáveis por eles e entregassem ao fiscal uma lista com seus nomes e de
quem mais fosse permanecer ali.35 Entretanto, durante o dia, os “pretos de ganho”
estavam proibidos de andar dentro da Praça. E os cativos que fossem mandados
por seus donos para fazer compras não deviam demorar “além do tempo neces-
sário para efetuá-las”. Quanto isso representava exatamente, eles não disseram.
De qualquer forma, essa medida decerto era uma tentativa de coibir a ação de
“pretos cativos atravessadores”, que causavam “graves inconvenientes e prejuí-
zos” aos locatários, chegando o “escândalo ao ponto de já não ser quase possível
hoje a um cidadão o poder empregar-se neste gênero de indústria comercial sem
se expor a continuados insultos e comprometimentos”.36
Só que a questão não parecia tão simples assim. Em geral, esses atravessa-
dores ― que revendiam o pescado a preços mais elevados ― atuavam como pre-
postos de seus senhores, que, muitas vezes, eram também arrendatários da Praça.
Apesar da vigilância constante de fiscais e vereadores, muitos conseguiam driblá-
los, ou mesmo contar com sua conivência. Ao longo do século XIX, os agentes mu-
nicipais que presidiam comissões fiscalizadoras constantemente apontavam essas
irregularidades, sem, contudo, eliminá-las de vez. Por isso, as listas de mercadores
divulgadas pelo Almanak a cada início de ano não correspondiam, necessariamen-
te, aos vendedores que as ocupavam de fato. Em 1865, de um total de 112, 48 (ou
seja, um terço) estavam sublocadas “sem o consentimento da Ilma. Câmara”, ou
tinham “figurando no negócio pessoas diversas”.37 Ainda assim, como esse fenô-
meno ― apesar de recorrente ― não era generalizado, podemos tomar essas re-
lações como ponto de partida para uma análise mais sistemática da composição
étnica e social dos arrendatários que, se não de forma efetiva, ao menos nominal-
mente, estavam ali instalados.38
Percorrendo o interior do mercado, especialmente entre as décadas de 1840
e 1870, constatamos que vendedores de diferentes gêneros tendiam a persistir
por longos períodos em suas bancas. Às vezes, ficavam de posse de dois ou mais
lugares em uma mesma área ou em pontos diferentes do Mercado da Candelária.
Mesmo que não tenha sido possível avaliar a proporção de todos os inquilinos con-
forme suas origens, consegui estimar que, naquele período, os portugueses esta-
vam presentes em todas as áreas. Os africanos, e especialmente os minas, concen-
travam-se nas vendas de legumes, verduras, aves e ovos. E os brasileiros ficavam
mais nos negócios com pescado. Ainda que, por vezes, os minas estivessem, de
59 fato, nas bancas alugadas em nome de portugueses. Ou estes, nas de brasileiros.
E assim por diante.
Vejamos, por exemplo, a distribuição nas 30 bancas do centro (de números
79 a 112), destinadas ao comércio de hortaliças, legumes, aves e ovos. Em 1853,
havia 29 mercadores registrados no Almanak, dos quais reconheci a procedência
de 23 (cerca de 79%): oito portugueses; nove africanos minas; um africano Angola
e quatro brasileiros. Como podemos perceber, esse pedaço era uma espécie de re-
duto dos africanos da Praça. Na banca 96, a mina Emília Soares do Patrocínio dava
continuidade aos negócios abertos em 1840 por seu primeiro marido, o também
mina Bernardo Soares. Logo ao lado, na vaga 95, sua amiga Antonia Rosa, preta
forra da mesma “nação”, também seguia com as vendas iniciadas por seu mari-
do, o preto mina Januário Francisco de Mello. Quando Antonia deixou o local, em
1865, o mina Joaquim Manuel Pereira, segundo marido de Emília, tornou-se o novo
inquilino, e ficou ali por mais de 20 anos. Para completar, a preta mina ainda firmou
uma sociedade com Feliciana, africana da mesma “nação”. Ex-cativa do crioulo
Antonio José de Santa Rosa, Feliciana trabalhara com seu senhor na banca 98 por
pelo menos seis anos. Em 1846, com a morte de Santa Rosa, ela ganhou sua carta
de alforria. E não hesitou em solicitar a posse da quitanda, onde labutou sozinha
durante cinco anos. De 1852 a 1857, dividiu as vendas com Emília. Com o fim da so-
ciedade, esta última manteve-se na barraca até 1885.
Seguindo pelo mesmo corredor, encontramos, lado a lado, diversos “pretos
forros”. Na banca 100, Maria Alexandrina Rosa, de “nação” Angola, vendeu suas
quitandas entre os anos de 1853 e 1859. Depois de passar para Joaquim José Leite
& C. (de 1859-1862), a vaga foi ocupada pelo preto mina Amaro José de Mesquita
até 1869. Já a mina Maria Rosa da Conceição ficou por 20 anos (de 1840 a 1860) nas
37 Idem.
38 Para acompanhar uma análise mais detalhada dos locatários de todas as áreas internas da Praça do Mercado
do Rio, ver o capítulo 2 de minha tese, “Entre locatários e quitandeiras”. In: Mercados minas. Op. Cit.
bancas 102 e 103. Mais adiante, estavam mais africanos e africanas minas: Lauriana
Maria da Conceição (104: de 1852 a 1858); Matias José dos Santos (106: de 1847 a
1858); Luiz Laville (107: 1859 a 1870) e João José Barbosa (108: 1842 a 1865).
E os portugueses também compartilhavam essa área do mercado. Nas rela-
ções do Almanak, o imigrante José Maria de Paula Ramos é citado em 1844 como
um dos “principais mercadores”. Natural de Coimbra, ele chegara ao Rio de Janei-
ro dois anos antes, com 35 anos de idade. Ao se registrar em 1842, afirmou que
tinha a ocupação de negociante e morava na Praça do Mercado, número 84. Até
1858, ele esteve à frente dessa banca. E ainda arrendou outras duas (83 e 85) para
negociar os mesmos gêneros. Depois de sua morte, em 1859, o português Anto-
nio Maria de Paula Ramos, seu filho e genro do locatário Bonifácio José da Costa,
instalou-se em seu lugar. Nas imediações, outro conterrâneo, o luso José da Costa
e Souza, contava com duas locações. Entre os anos de 1856 e 1870, manteve socie-
dade na banca 89 com a preta mina Felicidade. E na 109, com a quitandeira Josefa,
no período de 1854 a 1870. À semelhança dos africanos minas, alguns negociantes
de Portugal, como o próprio José Souza, também chegavam a somar de 10 a 20
anos de Praça.
Uma estratégia que parecia generalizada era a transferência das bancas entre
locatários de igual procedência ou de uma mesma família. Quando um imigrante
luso falecia, seu filho ou um conterrâneo o substituía. Ao saírem, os minas também
davam lugar a outros africanos da mesma “nação”. Aparentemente semelhan-
tes, essas práticas podiam guardar especificidades para cada grupo. A formação
de sociedades entre indivíduos de mesma procedência era igualmente recorrente.
Mesmo assim, não faltavam parcerias entre portugueses e brasileiros; africanos e
60
brasileiros ou portugueses e minas. Ao contrário do que ocorria em outras partes
da cidade, estes dois últimos grupos não estavam permanentemente em conflito.39
Nas bancas internas da Praça do Mercado (e em outras de suas áreas), as
relações diárias entre eles envolviam concorrência e rixas, das corriqueiras às
mais “sérias”. Ainda assim, rivalidades e conflitos não eram o “comportamento
padrão” na Praça. Desde as primeiras décadas do Oitocentos, pretos minas mon-
tavam sociedades comerciais com imigrantes de Portugal e até mesmo realizavam
parcerias para comprar escravos. Como boa parte dos africanos não sabia ler e
escrever, negociantes portugueses assinavam, em seus nomes, abaixo-assinados
e petições. E ainda atuavam como testemunhas em seus processos de divórcio.
Não obstante, homens e mulheres da Costa da Mina preferiam labutar junto com
seus “parentes de nação”. Do mesmo modo que os arrendatários de Portugal as-
sociavam-se a irmãos, primos e compadres europeus. Como se vê, o trabalho e a
convivência diária entre eles poderiam ser bem mais complexos, incluindo tanto
aproximações como diferenças e hierarquias.
Transferências
Assim que as bancas do mercado vagavam ― seja por desistência ou faleci-
mento do locatário ―, sócios, amigos, herdeiros, cônjuges e outros parentes não
39 Cf.: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. “Proletários e escravos: imigrantes portugueses e cativos africanos
no Rio de Janeiro, 1850-1872”. Novos Estudos Cebrap, n.21, jul. 1988, p. 30-56; RIBEIRO, Gladys Sabina. A
liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilustianos no Primeiro Reinado. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2003.
demoravam a ocupar seus lugares. Só que essas transferências por vezes acaba-
vam rendendo muita discussão. Especialmente porque não havia, no Regulamento
de 1844, uma postura muito bem definida sobre o assunto. Como recorrentemente
acontecia ali, as decisões sobre quem seriam os novos inquilinos também depen-
diam das circunstâncias, dos interesses e das personagens envolvidas. A história
de Domingos José Sayão, preto forro de nação calabar, ilustra, de muitas manei-
ras, essas questões.
Em 17 de novembro de 1846, ele enviou um requerimento à Câmara Mu-
nicipal, pedindo para continuar na banca 23, já que seu sócio Joaquim de Souza
acabara de falecer. No verso do documento, o fiscal Bernardino José de Souza
confirmou a informação. Logo em seguida, foi a vez do vereador Tristão Ramos
da Silva aprovar a solicitação. Alguns dias antes, o “cidadão brasileiro” Antonio
Joaquim Franco também havia requerido a ocupação da vaga. Nesse caso, porém,
Bernardino indeferiu o pedido, justificando que Domingos, como antigo parceiro
de Joaquim, já estava de posse do lugar.40
Mas a seleção ainda não estava encerrada. Embora, normalmente, apenas
o vereador encarregado da Praça do Mercado confirmasse ― ou refutasse ― as
avaliações dos fiscais, a decisão sobre a ocupação dessa vaga foi levada à votação
no plenário da Câmara. Em 24 de novembro, o vereador José de Silveira Pilar dizia
concordar com o parecer de Ramos da Silva e decidira apresentar suas razões. Em
primeiro lugar, era incontestável que Sayão e Antonio haviam sido sócios. Sendo
assim, por “vigorosa justiça” e pela “boa conduta” que sempre manteve, ele devia
61 continuar no local. No entanto, mesmo com todas as deliberações a seu favor e as
negativas ao pedido de Antonio Franco, essas informações foram desprezadas, e
isso poderia “ser qualificado na opinião pública como um patronato escandaloso”.
E prosseguia, destacando que
Para finalizar, fazia questão de lembrar que esta era a primeira vez que a mu-
nicipalidade agia dessa forma:
40 Cf.: AGCRJ, Códice 61-2-2: Mercado da Candelária (1844-1849), p. 51 (requerimento de Domingos José
Sayão); Códice 61-3-15: Comércio de peixe (1840-1848), p. 59-59v.
41 AGCRJ, Códice 61-2-2: Mercado da Candelária (1844-1849), p. 52. [grifo meu]
42 AGCRJ, Códice 61-2-2: Mercado da Candelária (1844-1849), p. 52.
Para Torres Homem, esse era justamente o caso de Domingos Sayão. Como
não apresentara qualquer registro para atestar sua sociedade com o falecido Jo-
aquim de Souza, ele não teria o “menor direito” à banca. No “estado em que as
coisas existem na Praça do Mercado”, uma informação passada por um vizinho,
que “comercia o mesmo gênero e quer especular da mesma maneira”, também só
podia ser suspeita. Sendo assim, o melhor, na opinião do vereador, seria responder
ao governo que Sayão não apresentava título algum. Pelo contrário: devia ser con-
siderado como “intruso”, em consequência de todas as irregularidades relatadas.
Por outro lado, de acordo com os dados apurados (pessoalmente?), fora possível
confirmar que Antonio Joaquim Franco era “homem capaz e com proporções de
se estabelecer naquela praça sem cometer abuso de sublocar a atravessadores
parte de sua banca, com prejuízos do público”.47
Nem todos os vereadores tinham a mesma opinião. Ao comentar o parecer
de Joaquim Torres Homem, um outro tribuno, cuja assinatura não consegui deci-
frar, considerava “pouco exato o que nele se diz em geral a respeito de passagens
63 de bancas” e das providências tomadas pela municipalidade. Além disso, já estava
“plenamente provado que o dito Sayão era sócio de Joaquim Souza”. Sua convic-
ção baseava-se nas evidências apresentadas pelo fiscal e pelo vereador encarrega-
do da Praça, cujas conclusões haviam sido confirmadas pelas “pessoas mais acre-
ditadas” do mercado. Mas também se reportava a outras fontes. Como podiam
certificar os empregados da Tesouraria da Câmara, era “público e notório” que, no
“tempo em que vivia o cego Souza”, Sayão sempre ia pagar o aluguel da banca 23,
sozinho ou em sua companhia. E, de acordo com o vereador Filgueiras, os próprios
herdeiros de Souza reconheceram no “preto forro” a qualidade de sócio de seu fa-
lecido parente. Nenhum deles tinha qualquer intenção de assumir seus negócios,
“antes deixando a Sayão na mansa e pacífica posse e no livre direito de continuar
só nos semestres futuros”.
Dessa forma, não havia “interesse ou conveniência alguma” em expulsá-lo
dali, para colocar um “indivíduo de fora, a quem com quanto se façam elogios pré-
vios”; não se podia “pôr acima daquele que, já experimentado, tem em seu favor
as melhores informações de muitas pessoas e de autoridades em quem a Câmara
tem obrigação de acreditar”. Finalmente, lembrava mais uma “razão mui podero-
sa”: em junho de 1845, na ocasião de aumentar o aluguel das bancas, todos con-
cordaram, por unanimidade, em manter os locatários pelo prazo de quatro anos,
com o valor inicial que fora marcado. Por isso mesmo, conforme a lotação de 1845,
Sayão tinha de ser conservado no seu local, não podendo ser “expelido sem que à
Câmara falte a obrigação que contraíra”.48
Apesar de mais este voto favorável ao “preto forro”, a sentença da vereança
não sofreu qualquer modificação. Em 22 de dezembro de 1846, um ofício foi en-
viado ao Conselheiro Joaquim Marcelino de Brito, Ministro e Secretário de Estado
Um “patronato escandaloso”?
64
Logo no início das discussões na Câmara, o vereador-presidente José Silveira
Pilar afirmara que até então nenhuma transferência havia sido decidida pela muni-
cipalidade de maneira tão arbitrária. De fato, ao examinar a documentação sobre
o mercado nas décadas de 1830 e 1840, não me deparei, pelo menos até o ano de
1846, com situações que gerassem tamanho debate. O caso de Sayão foi tão em-
blemático que, em 1848, serviu como referência ― a não ser seguida ― em outra
disputa pela posse de uma banca, também envolvendo um forro africano, o mina
Matias José dos Santos.51 Entretanto, se o desenrolar do pedido aparentemente
corriqueiro de Domingos Sayão surgia como uma “novidade”, as práticas que per-
mearam boa parte das avaliações subsequentes não eram tão inéditas assim.
Mais uma vez, o discurso de Silveira Pilar nos fornece evidências nesse sen-
tido. Avaliando a conduta da vereança diante das solicitações de Sayão, ele men-
cionava um “patronato escandaloso”. Como o “preto forro” não tinha “pessoa
alguma que por ele falasse, tendo aliás muitas que se interessavam por Franco”,
a “opinião pública” poderia acreditar que, na Câmara, “só se consegue as coisas
por empenho e não pelos princípios da justiça”. Por certo, essas apreensões não
se fundamentavam apenas no caso em questão. Ainda que fiscais e vereadores
52 SOUZA, Juliana Teixeira. A autoridade municipal na Corte imperial. Op. Cit., p. 173.
•••
fiador de muitos locatários, inclusive de forros minas. Na mesma época, o português Antonio Maria de
Paula também afiançou vários arrendatários.
59 Cf.: KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras,
2000, p. 65-66; BEZERRA, Nielson Rosa. Mosaicos da escravidão: identidades africanas e conexões
atlânticas do Recôncavo da Guanabara (1780-1840). Tese (Doutorado em História), UFF, 2010, p. 165-170.
60 Em 28 de fevereiro de 1871, o Diário do Rio de Janeiro informou em seu obituário o falecimento de Domingos
José Sayão: “africano, 80 anos, viúvo, febre perniciosa [a causa do óbito]”.
61 Arquivo da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia (doravante AISESE). Registros de Entrada de
Irmãos (1843-1900). Documentação sem catalogação. Nesse livro, Domingos aparece registrado em 1844,
mas, ao final, foi acrescentada a informação de que o registro era de 12 de agosto de 1841 e vinha do
“livro velho de 1768”. Além dessas indicações, só mais uma foi anotada: a data de seu falecimento, 20 de
fevereiro de 1871. Outras informações sobre a participação de Domingos na irmandade também podem
ser consultadas no Livro de Atas da ISESE – 1857-1926. Documentação sem catalogação.
62 Cf.: OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. “Viver e morrer no meio dos seus. Nações e comunidades africanas na
Bahia do século XIX”. Revista USP, São Paulo, n.28, dez. 1995 e fev, 1996.
63 Nas eleições anuais para os cargos da mesa diretora da irmandade, os juízes eram, geralmente, escolhidos
entre aqueles de maior posse, reputação e importância social em sua comunidade. Afinal, eles contribuiriam
com esmolas, por vezes de valores consideráveis, e ainda teriam de preparar a festa dos oragos. Durante
essas comemorações anuais, as confrarias promoviam a confraternização e o fortalecimento dos laços
entre os irmãos e destes com seus santos. Celebrá-los solenemente era uma garantia de proteção na vida
e na morte. Quanto mais espetacular fosse a homenagem, maior seria a retribuição dada a seus devotados
fiéis. Além disso, essas ocasiões também serviam para testar o prestígio da devoção e de seus juízes.
OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção negra: santos pretos e catequese no Brasil Colonial. Rio
de Janeiro: Quartet; FAPERJ, 2008, p. 264-265.
e também com fiscais e mesmo com alguns vereadores. Mas, conforme acompa-
nhamos, ele decerto não tinha “defensores” tão poderosos (ou mais que os de
Antonio Franco) na Câmara Municipal.
Não à toa, decidiu buscar apoio na “Justiça e Bondade de Sua Majestade Im-
perial”. Nada mais adequado do que recorrer à principal autoridade do “mundo do
governo” para arbitrar aquela disputa. Entre as muitas “obrigações” do impera-
dor, estava o dever de zelar pela paz, pela defesa e pelo proveito de todos os seus
súditos. Segundo Ilmar de Mattos, isso lhe outorgava o “monopólio da responsa-
bilidade”, cuja contrapartida era a submissão de todos.64 Ao se valer dos rituais de
deferência ao imperador, ainda comuns em petições desse tipo, certamente Sayão
também pretendia reforçar a ideia de que, melhor do que qualquer outro agente
do governo atuando em nome da lei (e no seu caso, eles estavam agindo além da
lei), era a autoridade imperial quem detinha a faculdade de julgar conforme o di-
reito e a melhor consciência.
A popularidade de d. Pedro II era alta entre os negros ― escravos ou for-
ros ― da cidade do Rio, que viam o soberano como árbitro imparcial na justiça e
protetor maior “dos fracos e oprimidos”.65 Aliás, essa percepção já se fazia sentir
desde o século XVIII. Como mostra o historiador Russell-Wood, durante o período
colonial, africanos que viviam em Salvador, Recife e no Rio de Janeiro ― e também
em outras possessões portuguesas ― costumavam servir-se deste meio extrajudi-
cial, levando seus casos diretamente ao monarca ou aos mais altos representantes
da Coroa. Para os vassalos destituídos de meios financeiros, ou cuja condição so-
69 cial os relegava para as ínfimas camadas da sociedade, sem relações influentes ou
acesso à máquina judiciária, esse mecanismo era fundamental, pois transcendia a
possibilidade de evitar magistrados indiferentes ou insensíveis e uma burocracia
inacessível e muitas vezes corrupta. Segundo Russell-Wood, era o único caminho
para uma forma de justiça privada que operava independentemente das leis escri-
tas, dos canais legais e da magistratura e que, no espírito popular, era função de
uma interpretação personalizada da monarquia.66
Ainda que com intenções, caminhos e resultados diferenciados, essa crença ain-
da persistiria entre os “pretos” do Rio até os últimos anos da monarquia, inclusive en-
tre os comerciantes do Mercado da Candelária. Em outubro de 1885, durante a greve
que paralisou as atividades na Praça das Marinhas, uma quitandeira negra apareceu
recorrendo a D. Obá, o descendente de africano tido como “príncipe do povo” das
ruas da cidade, para que ele, por meio de seus artigos constantemente publicados na
imprensa, escrevesse ao imperador para tentar angariar apoio a seu protesto.67
64 Cf.: MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do Estado imperial. São Paulo: Hucitec,
2004, p. 161-163. SOUZA, Juliana Teixeira. A autoridade municipal na Corte imperial. Op. Cit., p. 190.
65 Cf.: REIS, João José. “Quilombos e revoltas escravas no Brasil”. Revista USP. São Paulo, 1996, n.28, p. 11;
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: d. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2.ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008, p. 15-22.
66 RUSSELL-WOOD, J. R. “Vassalo e soberano: apelos extrajudiciais de africanos e indivíduos de origem
africana na América portuguesa”. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.). Cultura portuguesa na terra de
Santa Cruz. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, p. 215-233.
67 Trata-se da representação ― uma espécie de charge publicada no jornal ilustrado O Mequetrefe, de 10 de
outubro de 1885, e intitulada “O que é ser príncipe” ― do encontro de uma quitandeira negra, com seu
tabuleiro de frutas, com o Príncipe D. Obá (identificado pelos seus trajes elegantes, reproduzidos em diversas
ilustrações do período). Entre eles, trava-se o seguinte diálogo: “– Abença?...Home, esse greve! Um!...tá bão...
Vossucê percisa fazê o escrevê a imperadô, desse cosa q si chama ballaquinha que tá lá na Plaça. /– Oh!...vai acabar.
Já tenho alguns artigos prontos!” Para uma análise mais detalhada dessa imagem, ver: FARIAS, Juliana Barreto.
“Mercado em greve: protestos e organização dos trabalhadores do pequeno comércio no Rio de Janeiro –
Outubro, 1885”. Op. Cit., p. 140-141. Sobre o Príncipe D. Obá, ver: SILVA, Eduardo. Dom Obá II D’África, o Príncipe
do Povo. Vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
Seja como for, segundo Juliana Teixeira Souza, teoricamente, não cabia ao
governo central julgar o mérito ou a oportunidade das resoluções tomadas pela
municipalidade, mas tão somente impedir que os vereadores infringissem as leis
gerais as quais deviam se ajustar. Não obstante, as deliberações pendentes de
aprovação ou sanção das autoridades superiores à Câmara eram tantas ― e de tal
forma indefinidas ―, que o resultado final acabava comprometendo a autonomia
municipal, mesmo em temas exclusivos à administração local.68 Na disputa entre
Sayão e Franco, a decisão da vereança foi reafirmada pelo governo imperial sem
maiores discussões. Certamente influências subterrâneas, inclusive denunciadas
por alguns vereadores, foram bem determinantes. No entanto, o fato de Domin-
gos Sayão não possuir documentos escritos que comprovassem sua sociedade na
banca conferiu um caráter legal à resolução.
É certo que no regulamento de 1844, ou mesmo nas posturas que se segui-
ram, não existia qualquer determinação nesse sentido. Contudo, fiscais e agen-
tes municipais afirmavam que, “como era sabido”, “sempre que há sociedade, há
escritura pública, ou papel de trato particular”. Na falta deles, podiam até lançar
mão de depoimentos fidedignos ou de investigações in loco. Mas eles nem sempre
eram encarados como garantias. Em 1848, Francisco da Cunha, cuja procedência
não consegui identificar, disputava a posse da banca 106 com o mina Matias dos
Santos, asseverando que era parceiro do antigo locatário (seu próprio irmão) que
acabara de falecer. Como não tinha registros que atestassem a dita sociedade, ele
remeteu à Câmara um abaixo-assinado por cinco indivíduos que a confirmavam.
Porém, para o fiscal da Praça, o documento não era “suficiente para fazer valer
ser um indivíduo sócio de outro, e desgraçados dos negociantes se semelhante
argumento fosse valioso, porque esta forma assim que qualquer que falecesse se
70
improvisam sociedades em nome dos falecidos”.69
Nesse ponto, os africanos ― especialmente os solteiros ― já partiam, de
antemão, em desvantagem. Bem diferente dos “cidadãos brasileiros” e, sobre-
tudo dos portugueses, eles não costumavam registrar suas parcerias em cartó-
rios ou mesmo estabelecer contratos sociais. Nos diferentes acervos documentais
em que pesquisei, só localizei um único acordo escrito, firmado entre um africano
mina e outro locatário, de quem não foi possível saber a origem. Em 1.º de março
de 1849, o mina Jerônimo José Rodrigues e Francisco Pereira da Rosa contrataram
uma sociedade na banca 18, pelo período de um ano, mediante algumas condi-
ções. Enquanto Jerônimo entrava com a posse e as benfeitorias do lugar, Pereira
fornecia os fundos que fossem precisos, atuando como caixa e gerente da socie-
dade. E ainda “obrigava-se” a conceder a Rodrigues a quantia de trezentos e qua-
renta mil réis de lucro durante aquele prazo, mesmo se tivessem algum prejuízo.70
Outros “pretos forros” até encaminhavam ofícios informando fiscais e ve-
readores sobre a existência ― ou o desmonte ― de suas sociedades. Mas não
costumavam registrá-las em cartório. Geralmente, os negócios de africanos e afri-
canas baseavam-se na confiança, na palavra empenhada, muito mais difíceis de
constatar. Como a maior parte não sabia ler e escrever, e por isso dependia de ou-
tros que o fizessem (quase sempre os próprios locatários da Praça, especialmente
os portugueses), os acertos orais feitos entre os parceiros de trabalho acabavam
ganhando foro de contrato equivalente àqueles escritos e assinados em cartório.71
Contudo, para a municipalidade, acordos desse tipo não eram suficientes para
certificar a existência de sociedades, sobretudo quando se tratava de transferir a
posse das bancas. Como então explicar que ― afora Domingos Sayão e Matias dos
Santos, que se envolveram em demoradas disputas ― a maior parte dos “pretos
forros” associados permanecesse por longos períodos numa mesma banca e ainda
transferisse a vaga para parentes e cônjuges de sua “nação”?
Uma eficiente rede de informações estava permanentemente em funcio-
namento no Mercado da Candelária. Não por acaso, assim que um local ficava
disponível, parceiros de trabalho, parentes, amigos e outros pretendentes mais
próximos, de posse da informação, corriam para pleitear a vaga na Câmara, antes
mesmo que um leilão público fosse aberto, oferecendo lances tidos como mais
vantajosos. Além do mais, boa parte desses africanos estava no mercado há mui-
to tempo (alguns instalados ali antes da construção do seu prédio) e gozava “de
muita reputação” e “boa estima” no lugar, o que era confirmado tanto por outros
arrendatários como por alguns fiscais e vereadores. Entretanto, tal reconhecimen-
to não valia apenas para esses libertos africanos. Novos e antigos banqueiros por-
tugueses e “brasileiros” também eram aprovados quase que imediatamente em
função do “bom conceito” que desfrutavam ali e na própria cidade do Rio de Ja-
neiro. Mas os “pretos forros” ― e, em especial, os minas ― ainda contavam com
uma particularidade a seu favor.
Enquanto os imigrantes lusos estavam habituados a estabelecer sociedades
71
formais em suas vendas primordialmente com conterrâneos homens, com quem
tinham algum parentesco consanguíneo (filhos, primos ou irmãos), os minas não
registravam seus contratos de parcerias, mas trabalhavam lado a lado com ho-
mens e mulheres da mesma procedência (os chamados “parentes de nação”),
quase sempre seus próprios cônjuges. Em geral, apenas um deles (mais frequen-
temente, os homens) aparecia como titular da vaga e se colocava à frente das
petições e demais documentos encaminhados à municipalidade. Mas ― na labuta
cotidiana ― as atividades eram divididas entre os dois. O que, por certo, não esca-
pava aos agentes da fiscalização e a outros trabalhadores da Praça. Talvez por isso,
na hora em que o locatário inscrito deixava a sociedade ― geralmente por faleci-
mento ―, o pedido feito pelo companheiro (ou companheira) para continuar nos
negócios era aprovado de forma automática. Nessas ocasiões, eles enfim apresen-
tavam documentos comprobatórios. Não eram registros em cartórios atestando
as relações comerciais, mas certidões de casamento, óbito, batismo ou testamen-
tos. Será que, aos olhos dos avaliadores municipais, essas “provas” de suas uniões
matrimoniais também equivaliam a comprovantes de suas parcerias profissionais?
Se a argumentação delineada até aqui não nos convence de todo, ao menos
é possível afirmar com segurança que essa prática costumeira, demandada pre-
ferencialmente pelos minas, acabou virando uma regra no mercado, afixada em
edital de 30 de outubro de 1855, garantindo assim que cônjuges e filhos tivessem a
preferência no arrendamento das bancas de inquilinos falecidos. De meados da dé-
cada de 1840 até a publicação dessa nova postura, não achei, como era de se pre-
ver, portugueses ou portuguesas solicitando os lugares ocupados anteriormente
por seus companheiros. Entre os “cidadãos brasileiros”, apenas uma viúva dese-
java permanecer nos negócios iniciados pelo falecido marido. Já para os pretos
minas, localizei cinco casos desse tipo. A história do casal Luiz Laville e Felicidade
Maria da Conceição, dois forros dessa “nação”, é bem exemplar. Em novembro de
1851, Laville dirigiu uma súplica aos vereadores, onde dizia que
•••
Abstract: The objective of this article is to provide an overview about the appli-
cation of fines for law infraction in Rio de Janeiro, in the early twentieth century,
especially in suburban districts. It proposes a dialogue with the historiography re-
lated to the urban reforms undertaken in city in that period, seeking to understand
the mechanisms adopted by public authorities to ensure the enforcement of local
legislation, as well as the conflicts that arose from those measures. Therefore, it
emphasizes the differences between the enforcement of fines in urban and subur-
ban districts, which fines were more frequent, what strategies were employed by
offenders to avoid the payment of them, and so forth.
8 A respeito da perseguição aos cortiços no final do século XIX, ver: CHALHOUB, Sidney. Op. cit., cap. 1.
9 Diversos autores investigaram o processo de reforma urbana no Rio de Janeiro. Merecem destaque as
seguintes obras: PECHMAN, Sérgio; FRITSCH, Lilian. “A reforma urbana e seu avesso: algumas considera-
ções a propósito da modernização do Distrito Federal na virada do século”. Revista Brasileira de História.
São Paulo: Marco Zero, v. 5, n. 8/9, p. 139-195, set.1984/abr.1985; CARVALHO, Lia de Aquino. Contribuição
ao estudo das habitações populares: Rio de Janeiro, 1886-1906. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de
Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1986; ROCHA, Oswaldo Porto. A
era das demolições: cidade do Rio de Janeiro, 1870-1920. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura,
Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1986; ABREU, Maurício de A. A evolução
urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO & Zahar, 1987.
10 BENCHIMOL, Jaime. Op. cit.
nistração de Pereira Passos não foi marcante apenas por ter demolido inúmeros
prédios e ter dado ares europeizados ao Rio de Janeiro. Sem dúvida, esse foi o seu
aspecto mais visível. Entretanto, durante a sua gestão, a ação fiscalizadora do po-
der público, bem como a cobrança de impostos aumentaram consideravelmente.
Sendo assim, esse artigo tem dois objetivos principais. O primeiro deles é
traçar um panorama a respeito da aplicação de multas por infração de posturas no
Distrito Federal, no início da administração de Pereira Passos, atentando para as
diferenças entre os distritos urbanos e suburbanos. Ao identificar as especificida-
des dessas duas áreas, pretendo ampliar o olhar sobre o processo de renovação
urbana, uma vez que a historiografia relacionada ao tema privilegiou as mudanças
ocorridas nos distritos centrais e portuários. Dado que uma quantidade significa-
tiva de pessoas, dentre elas muitos trabalhadores, acabaram se mudando para os
distritos mais afastados do centro e também para os subúrbios, é fundamental
deslocar o foco de análise para outras regiões da cidade. Por isso, darei ênfase à
análise da aplicação de multas nos subúrbios, identificando em quais áreas a fisca-
lização era mais intensa e quais eram as infrações mais recorrentes.
Esse artigo também tem como propósito apresentar os embates que ocor-
reram nos subúrbios — sobretudo no distrito de Inhaúma, em razão da aplicação
de multas relacionadas à construção — e as estratégias dos trabalhadores subur-
banos diante delas. Além de ter sido o distrito que mais cresceu, em termos pro-
porcionais, entre 1890 e 1906, o número de trabalhadores em Inhaúma aumen-
tou consideravelmente. Em 1890, aqueles que trabalhavam na indústria somavam
79 apenas 815 indivíduos, porém, em 1906, eles passaram a representar 10% de toda
a categoria, atingindo a quantia de 11.240 operários. Com isso, Inhaúma tornou-se
o distrito carioca com o maior número de trabalhadores da indústria. Os emprega-
dos em serviços domésticos também compunham uma parte importante de sua
população, pois, em 1890, correspondiam a 1.343 pessoas e subiram para 8.709,
em 1906. Nesta última data, jornaleiros e trabalhadores braçais correspondiam a
9.403 indivíduos. Essas três categorias somadas correspondiam a 81% dos habitan-
tes de Inhaúma que declararam a sua ocupação no recenseamento de 1906. Ou
seja, após o período das reformas, Inhaúma tornou-se uma área de residência de
muitos trabalhadores.
Como veremos com mais detalhes adiante, durante a administração de Perei-
ra Passos, esse distrito foi incluído na cobrança de emolumentos para a construção
ou reconstrução de edifícios. Até então, em nenhum distrito suburbano era neces-
sário requerer licença para a realização de obras. Com a mudança na legislação e
a consequente autuação de indivíduos que a descumpriam, muitos trabalhadores
recorreram ao prefeito para evitar o pagamento das dívidas. A partir da análise
desses requerimentos, acompanharemos os conflitos decorrentes da fiscalização
municipal em Inhaúma.
83 soas nos distritos urbanos do que nos suburbanos, o que leva a crer que a possibili-
dade de autuação era maior no caso dos primeiros. Vale observar ainda que a área
dos distritos urbanos era menor, o que deve ter facilitado o trabalho de fiscaliza-
ção dos funcionários municipais responsáveis pela aplicação das multas.
Além da diferença entre os distritos urbanos e suburbanos, a aplicação de
multas era mais recorrente em alguns distritos dos subúrbios do que em outros,
como pode ser visualizado na tabela a seguir:
19 Diretoria Geral de Polícia Administrativa, Arquivo e Estatística. Recenseamento do Rio de Janeiro (Districto
Federal): Realizado em 20 de setembro de 1906. Rio de Janeiro: Oficina de Estatística, 1907, p. 23.
20 �����������������������������������������������������������������������������������������������������
Tabela elaborada com base nos quadros demonstrativos das multas arrecadadas em cada distrito e publi-
cados quinzenalmente ao longo de 1903, exceto nos casos de janeiro e fevereiro, cujas publicações foram
mensais. Esses dados também foram utilizados para a construção da Tabela 4.
Inhaúma
1890
2.315
1906
9.140
Diferença em nos absolutos
6.825
84
Irajá 1.614 4.201 2.587
Jacarepaguá 1.324 1.947 623
Campo Grande 1.868 3.905 2.037
Guaratiba 1.335 2.868 1.533
Santa Cruz 1.203 1.844 641
Ilha do Governador 563 837 274
Paquetá 285 306 21
Total 10.507 25.048 14.541
21 Diretoria Geral de Polícia Administrativa, Arquivo e Estatística. Recenseamento do Rio de Janeiro (Districto
Federal): Realizado em 20 de setembro de 1906. Rio de Janeiro: Oficina de Estatística, 1907, p. 23.
22 Cf.: Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas, Diretoria Geral de Estatística. Recenseamento geral da
Republica dos Estados Unidos do Brazil em 31 de dezembro de 1890 (Districto Federal). Rio de Janeiro: Tipo-
grafia Leuzinger, 1895, p. 424-5; Diretoria Geral de Polícia Administrativa, Arquivo e Estatística. Recensea-
mento do Rio de Janeiro (Districto Federal): Realizado em 20 de setembro de 1906. Rio de Janeiro: Oficina
de Estatística, 1907, p. 36-7.
sos do que outros. Jacarepaguá, por exemplo, era mais próximo do centro do que
Campo Grande, mas não contava com linhas férreas. Entre 1890 e 1906, teve um
crescimento predial bem menor que Campo Grande.
Além de divulgar os balancetes de receita e despesa da Prefeitura e os qua-
dros demonstrativos das multas arrecadadas por distrito, a municipalidade pas-
sou a publicar também os nomes dos infratores, seus endereços, os motivos pelos
quais foram autuados e os valores das multas.23 Ao longo do primeiro ano de man-
dato de Pereira Passos, foram 460 autuações na zona suburbana:
Esses dados são muito reveladores, pois mostram que o valor corresponden-
te ao total de multas aplicadas (48:527$000 — quarenta e oito contos e quinhen-
tos e vinte e sete mil réis) é quase quatro vezes o total arrecadado. Excetuando o
caso do distrito de Santa Cruz, em todos os outros o montante pago foi bem infe-
rior ao valor das autuações. Ainda que possam existir incoerências nos números
divulgados pela Prefeitura, especialmente no que diz respeito ao valor recebido
pelas multas, tudo indica que, em 1903, houve uma intensa fiscalização por parte
da municipalidade. A despeito disso, em muitos casos, os esforços dos agentes
municipais não resultaram na devida ampliação de receita nos cofres municipais,
dada a significativa diferença entre as multas aplicadas e recebidas.
Ao separarmos as autuações por distrito e segundo as principais infrações,
foi possível identificar características relevantes para compreender as especificida-
des dentro do próprio subúrbio. Observemos:
23 A publicação dos nomes dos infratores foi determinada pelo art. 19 da Lei n.º 939, de 29 de dezembro de
1902, a mesma lei que reorganizou a administração municipal logo após a posse de Rodrigues Alves.
24 As porcentagens foram calculadas com base nos valores das multas aplicadas.
Essa circular fornece pistas de que o Decreto n.º 395, de 4 de fevereiro de 1903, já
não estava sendo cumprido com o rigor necessário oito meses após ter sido promulga-
do. Ele continha orientações sobre como os agentes deveriam proceder para realizar
as autuações. Para reverter tal situação, Pereira Passos publicou a circular.
No dia 1.º de outubro, o expediente dos guardas passou a ser mais longo. De
acordo com a Circular n.º 90, os agentes deveriam fazer com que eles começassem
o serviço da fiscalização desde as primeiras horas do dia e o prolongassem até a
noite, “não devendo fazê-lo, como até agora, das 10 da manhã às 4 da tarde”.28
Não bastasse toda a vigilância sobre a correta execução da legislação municipal,
o trabalho dos guardas deveria ser organizado de modo que a população fosse
fiscalizada por mais tempo.
Esses são apenas alguns exemplos das circulares publicadas no início da ad-
ministração de Pereira Passos. Se por um lado elas colocam em evidência os es-
forços do poder público municipal para garantir a observância dos decretos e das
posturas vigentes, por outro, demonstram que o controle não recaiu apenas sobre
a população, mas também sobre os próprios funcionários da Prefeitura. A reitera-
ção das circulares, bem como a insistência no fiel cumprimento da legislação em
29 Discuto em detalhes a respeito dessa questão no capítulo 2 de minha dissertação de mestrado, que foi
publicada sob o título Viver nos subúrbios: a experiência dos trabalhadores de Inhaúma (Rio de Janeiro,
1890-1910). Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura; Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro,
2011.
30 Cf.: IAMASHITA, Lea Maria Carrer. A Câmara Municipal como instituição de controle social: o confronto em
torno das esferas pública e privada. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Secretaria Municipal de Cultura; Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, n. 3, p. 41-56, 2009.
31 Cf.: POPINIGIS, Fabiane. Operários de casaca? Relações de trabalho e lazer no comércio carioca na virada
dos séculos XIX e XX. Tese (Doutorado em História Social). Campinas: Unicamp/IFCH, 2003, cap. 2.
32 Cf.: TERRA, Paulo Cruz. Cidadania e trabalho: cocheiros e carroceiros no Rio de Janeiro (1870-1906). Tese
(Doutorado em História). Niterói: UFF/ICHF, 2012, cap. 2.
33 Cf.: Decreto n.º 395, de 4 de fevereiro de 1903, Art. 9.
XIX para o início do XX, optei por investigar os conflitos e as estratégias de nego-
ciação que se deram em razão da infração à legislação sobre construções, pois,
a partir da administração de Pereira Passos, parte dos moradores dos subúrbios
começaram a pagar emolumentos para a realização de obras.
Antes de dar início à análise, faz-se necessário apresentar algumas informa-
ções a respeito da organização municipal. De acordo com o Decreto n.º 399, de 6
de março de 1903, as agências da Prefeitura eram compostas por agentes fiscais e
guardas municipais, e eram “repartições subordinadas imediatamente ao Prefeito,
destinadas a representá-lo nas divisões territoriais do Distrito Federal”. Entre as
atribuições dos agentes estava a de “fazer executar as posturas e deliberações
do Conselho”, bem como de “lavrar e remeter à autoridade competente os autos
de flagrante contra os infratores de posturas”.34 O prefeito possuía a prerrogativa
de designar anualmente os guardas que trabalhariam em cada distrito, podendo
removê-los de uma agência para outra, se assim julgasse necessário. Para ser no-
meado guarda era imprescindível ser cidadão brasileiro, saber ler e escrever, pos-
suir aptidão para o desempenho da função e ter bom procedimento.
Em 27 de junho de 1903, entrou em vigor o Decreto n.º 445, que dava novo
regulamento à Diretoria Geral de Obras e Viação. Fazia parte de suas atribuições
a “superintendência de todos os serviços relativos a obras municipais, carta ca-
dastral, [...] construção, reconstrução, acréscimos e reparos de prédios ou edifí-
cios”. Tal diretoria era composta por diversos funcionários, entre eles um diretor-
-geral, três subdiretores e quinze engenheiros de circunscrição. Cabia aos últimos
89 “velar pelo cumprimento exato das posturas no que for atinente aos serviços de
obras a seu cargo, devendo promover os meios de repressão e fazer as devidas
comunicações”.35
Isso significa que a população era fiscalizada tanto por agentes e guardas
municipais como por engenheiros de circunscrição. Assim, quando um requeri-
mento era enviado ao Prefeito, com o intuito de recorrer de uma multa, ou ele era
encaminhado à Diretoria Geral de Obras e Viação, ou à agência da Prefeitura no dis-
trito em questão, para que se prestassem os esclarecimentos necessários. Como
duas esferas de poder eram responsáveis pela vigilância das posturas, foi possível
perceber que, em diversos momentos, os funcionários a elas subordinados entra-
ram em conflito, porque divergiam a respeito do modo como elas deveriam ser
aplicadas. Apresentadas essas informações sobre os possíveis caminhos percor-
ridos pelos recursos remetidos ao chefe do Executivo, comecemos a analisá-los.
Em 11 de maio de 1903, Manoel Silveira Costa Tavares foi autuado pelo agen-
te Luiz Maggessi Corimbaba, pois estava “construindo um acréscimo na casa de
sua propriedade” sem a devida licença.36 Por ter infringido o art. 1.º do Decreto
n.º 391, de 10 de fevereiro de 1903, que determinava que toda obra de “constru-
ção, reconstrução, acréscimos ou modificações” deveria ter licença da Prefeitura,
Manoel foi multado em 100$000 (cem mil réis). Em vista disso, três dias depois de
autuado, recorreu ao Prefeito:
Como podemos notar, Manoel usou algumas estratégias para tentar mos-
trar a Pereira Passos que não era justo que pagasse a multa imposta pelo agente.
Inicialmente, buscou demonstrar “submissamente” que a acusação feita pelo fis-
cal municipal era apenas parcialmente verdadeira. De fato, ele fazia um acréscimo
em sua propriedade, porém tal obra era de “longa data”. Ou seja, se por um lado
Manoel não negou que realizava melhorias em sua casa, por outro, procurou con-
vencer o Prefeito de que esse acréscimo teve início antes do Decreto n.º 391 e,
portanto, não o havia infringido. Mas sua argumentação não parou por aí, pois,
em seguida, pediu que fosse instaurada sindicância para verificar se houve mesmo
infração. Desse modo, tinha como intuito dar credibilidade ao seu recurso, uma
vez que colocava sua propriedade à disposição para averiguações.
Manoel solicitou também a “relevação” da multa por equidade, o que, em
suas palavras, era uma atitude característica da administração de Pereira Passos.
Realmente, diversos foram os casos em que o pedido de “relevação” de multa foi
aceito, tendo como contrapartida o pagamento dos emolumentos. Para Manoel 90
ter afirmado isso, é provável que circulasse entre a população a informação de
que o Prefeito costumava deferir recursos por “equidade”. Isso significa que era
comum recorrer das multas recebidas, assim como socializar o despacho dado.
Senão, como Manoel teria afirmado que a “relevação da multa por equidade” era
uma característica da administração de Pereira Passos? Provavelmente, a quanti-
dade de recursos por ele deferidos deve ter contribuído para essa imagem: entre
1903 e 1904, foram remetidos 40 recursos relacionados à construção no distrito de
Inhaúma e desse total, 19 foram deferidos, sendo três por equidade.
Para finalizar o recurso, Manoel argumentou que o seu estado de pobreza
servia de atenuante para a falta cometida, uma vez que era “um simples jornaleiro,
sobrecarregado de numerosa família.” Nas entrelinhas, o infrator julgava merecer
o “perdão” da multa, porque não tinha condições de arcar com ela, em vista de
sua situação econômica.
Ao chegar às mãos do agente, para que desse o seu parecer, Luiz Corimbaba
reiterou sua opinião de que Manoel havia cometido a infração. Semelhante apre-
ciação foi dada pelo engenheiro em 25 de maio de 1903. Com base nessas infor-
mações, três dias depois, Pereira Passos indeferiu o pedido do requerente. Apesar
das estratégias adotadas por Manoel para livrar-se da multa, ele não obteve êxito.
A seguir, acompanharemos um caso que teve início pelo mesmo motivo que esse,
mas o desenrolar da história foi bem diferente.
Em 15 de maio de 1903, foi a vez de Antonio Jose Marques Pereira ser mul-
tado pelo agente Luiz Corimbaba, “por estar construindo paredes na casa de sua
propriedade”.38 De acordo com o auto de infração, ele descumpriu o art. 1.º do
37 Ibidem.
38 Ibidem.
Decreto n.º 391 e, por isso, foi multado em 100$000 (cem mil réis). O prazo para
quitação da multa era até 20 de maio. Porém, em vez de pagá-la, Antonio escreveu
ao prefeito:
91
responsável, que cometera um deslize por ignorância. Ao mesmo tempo, Antonio
justificou o pedido para que a multa fosse relevada devido à sua condição social:
era pobre e tinha família numerosa, ou seja, seria difícil arcar com a despesa de
100$000 (cem mil réis). Soma-se a esse fato a caracterização apresentada por ele
acerca de sua habitação: um barraco. Como a Prefeitura poderia cobrar uma multa
com aquele valor de um cidadão pobre e que fez melhorias em seu barraco, mas
não obteve a licença por desconhecer a legislação sobre construções?
Apesar do recurso, o engenheiro da circunscrição afirmou que a multa foi
bem aplicada, pois Antonio reconheceu sua infração. Portanto, a cobrança deveria
ser mantida. O ajudante de 1.ª classe, Augusto C. Camisão de Mello40, por sua vez,
deu o seguinte parecer:
39 Ibidem.
40 Segundo informações encontradas no Almanak administrativo, mercantil e industrial, Augusto C. Camisão
de Mello consta como condutor de 1.ª classe. O cargo por ele ocupado fazia parte do quadro da Diretoria
Geral de Obras e Viação. Cf.: SAUER, Arthur (org.). Almanak administrativo, mercantil e industrial do Rio de
Janeiro para 1904. Rio de Janeiro: Companhia Tipográfica do Brasil, 1904, p. 501.
41 AGCRJ, Códice 10-1-9, Infração de posturas de Inhaúma (1903-1910).
A versão de Guilherme indica que ele não conhecia a legislação sobre cons-
truções, mas seus conhecidos sim, visto terem-lhe garantido que não era neces-
sária licença para construir nos subúrbios. No final do documento, percebe-se a
tentativa de isentar o guarda Hermógenes das irregularidades cometidas pelo in-
frator. Até aqui, não fica claro se essa iniciativa partiu do agente que levou a cabo
a “sindicância” ou de Guilherme, ao perceber que o guarda seria punido.
Manoel do Rego Medeiros, residente no mesmo logradouro que Guilherme,
porém na casa de n.º 1, também foi procurado pelo agente Frederico. Na ocasião, in-
formou que sua habitação foi construída entre setembro e outubro de 1902, “época
que não havia exigências de licença para construções no local que reside e é pro-
prietário”. Ao fazer tal declaração, demonstrou que tinha conhecimento do Decre-
to n.º 391, assim como justificou a edificação de sua casa sem ter requerido a licen-
93 ça. Ainda de acordo com Manoel, nesse período, o guarda que ali trabalhava era o
Sr. Hyppolito, “o qual à vista de não haver exigências, consentiu que o depoente
construísse o prédio, não tendo portanto recebido remuneração alguma”. Nota-se,
desse modo, que Manoel procurava mostrar que não havia cometido infração.
Para concluir suas explicações, afirmou que todas as construções da rua Sil-
va eram anteriores à sua. Em outras palavras, nem ele, nem seus vizinhos tinham
cometido qualquer irregularidade, tampouco o guarda responsável pela seção.
Temos aí, portanto, mais uma tentativa de livrar o guarda Hermógenes das acusa-
ções feitas pelo engenheiro Coriolano.
Por fim, o agente Frederico procurou Alvaro Martins Teixeira para prestar
esclarecimentos sobre a “construção do puxado em que reside”. Morador à rua 4
de Novembro, “junto ao nº 4”, afirmou que o dito puxado fora feito em dezembro
de 1902, inclusive, havia dado “coleta em 18 de Dezembro de 1903”, ou seja, tinha
pagado os devidos impostos referentes àquele ano. Estranhou que “depois de de-
corrido ano e meio seja intimado para dar explicações sobre uma construção feita
em época que não havia lei que regulasse o assunto”. Observamos aqui, mais uma
vez, o mesmo argumento: Alvaro fez o seu “puxado” antes do Decreto n.º 391.
Inclusive, declarou que “Sr. Dr. Engenheiro suspeita ser nova [sua casa] apesar de
ter passado por ela diversas vezes.” Assim, procurava reforçar seu argumento e
lançar dúvidas sobre o trabalho do engenheiro.
Com base em tais declarações, em 1.º de junho de 1904, o agente Frederico
oficiou ao diretor-geral de Polícia Administrativa, Arquivo e Estatística. Em sua res-
posta, afirmou que, além de ter interrogado Guilherme, Manoel e Alvaro, colheu
“informações de pessoas da circunvizinhança” a respeito das construções da rua
Silva e 4 de Novembro. Elas disseram “que as referidas casas foram construídas
há muito tempo”. Ou seja, confirmavam o que havia sido dito pelos próprios “in-
43 Ibidem.
Assim julgo que houve equívoco por parte do Sr. Dr. Engenheiro, que,
encontrando as casas em questão, sem estarem rebocadas e emboça-
das supôs tratar-se de construções novas, entretanto na referida locali-
dade muitas outras casas estão nas mesmas condições.
[...]
O guarda em questão, tem até a presente data cumprido os seus de-
veres com escrúpulo, sendo de notar que na época em que se fizeram
essas construções não era ele o guarda dessa seção.44
44 Ibidem.
45 Ibidem.
46 Ibidem.
Lamento bastante que o Sr. Agente não fosse o primeiro a punir o guar-
da quando antes me havia dito que se admirava do seu procedimento,
porquanto dera ordem ao guarda para que só viesse poucas vezes por
semana à Agência a fim de melhor fiscalizar a sua seção. Longe disso
fazer, corre a acobertá-lo com a sua proteção, empa[ilegível] as faltas
arguidas e provadas contra o mesmo e ofendendo oficialmente e facil-
mente à minha dignidade, quando entre nós ambos tem havido, até a
presente data, a mais completa harmonia de vistas na administração!
Espero entretanto que as providências necessárias hão de ser tomadas
a bem das garantias das leis e da Repartição [...]47
47 Ibidem.
97 o inquilino Antonio José da Silva solicitou a licença para a construção da cerca,
porém não quitou os emolumentos. Sendo assim, anexou ao processo uma cópia
do pedido de licença com a informação de que os emolumentos somavam 35$400
(trinta e cinco mil e quatrocentos réis). Afirmou ainda:
lação que predominou durante a década de 1890 não era tão escrupulosa. É plau-
sível supor, portanto, que os próprios agentes tivessem dificuldades em garantir o
fiel cumprimento do referido decreto e cometessem equívocos no preenchimento
dos autos de infração, fato que o Prefeito tentou coibir por meio das punições
supracitadas.
Por outro lado, a preocupação com a observância de tais preceitos sanitá-
rios e higiênicos, característica marcante da administração de Pereira Passos e dos
debates travados à época em razão das reformas, também deve ser considerada
para entender a intensificação da fiscalização por parte da municipalidade. Soma-
-se a esse aspecto a necessidade de angariar fundos para financiar as obras proje-
tadas. A comparação entre os valores arrecadados com as multas por infração de
posturas entre 1901 e 1903 evidencia essa política.
Ainda que a quantidade de infrações nos distritos suburbanos tenha sido pe-
quena se comparada a da zona urbana, isso não quer dizer que a fiscalização naque-
la região tenha sido inexistente. A disparidade entre as multas aplicadas e pagas
demonstra o quão intensa foi a atuação do poder público municipal nos subúrbios.
Contudo, seus habitantes não aceitaram tacitamente esse controle. Sempre que
possível, procuraram questionar as multas aplicadas e evitar o pagamento delas.
Os argumentos utilizados para alcançar tal objetivo foram diversos. Entretanto, é
importante destacar uma característica que unificava todos eles: os requerentes
acreditavam na possibilidade de negociação com a municipalidade, caso contrário
não entrariam com recurso. Os constantes deferimentos concedidos pelo Prefeito
99 reforçavam essa crença. Durante 1903, foram 54 autuações referentes à falta de
licença para construção ou por irregularidades em obras, em Inhaúma. Desse total,
pelo menos 12 infratores entraram com recurso para não pagá-las, o que corres-
ponde a 22% dos autuados, e apenas quatro tiveram os seus pedidos negados. Por-
tanto, embora tenha ocorrido uma intensificação do controle sobre a população
— e até mesmo sobre os funcionários municipais — para garantir a observância da
legislação municipal, tal política foi frequentemente contestada, resultando, pelo
menos nos subúrbios, na nulidade de diversas multas aplicadas.
Como bem afirmou Benchimol, o ônus das reformas recaiu sobre a popu-
lação. O aumento no número de autuações é uma evidência disso. Entretanto,
ao investigar o modo como os trabalhadores suburbanos lidaram com as multas
que lhes foram impostas, é possível perceber que muitos deles vislumbraram a
negociação com o poder público como uma alternativa possível, para não dizer
necessária em diversos casos. Para muitos desses trabalhadores, que gozavam de
condições precárias de habitação, a contestação das autuações era uma forma de
minimizar as dificuldades que enfrentavam, sobretudo em termos econômicos.
Sob influência dos estudos recentes a respeito das Câmaras Municipais como
espaços de demanda e disputa, procurei explorar um outro aspecto da experiência
dos trabalhadores no âmbito da cidade, ao investigar as relações estabelecidas
entre esses sujeitos históricos, os funcionários municipais e o chefe do Executi-
vo. Duas características importantes dessas relações podem ser apontadas. Uma
delas diz respeito aos usos políticos da legislação vigente. Vários requerentes co-
nheciam os meandros das posturas em vigor e construíam os seus argumentos
procurando brechas que pudessem livrá-los das autuações. Longe de serem víti-
mas indefesas do amplo processo de reestruturação urbana em curso na capital
federal, forjaram maneiras, no âmbito da legalidade, para diminuir o seu impacto.
A configuração de laços de solidariedade entre os indivíduos que vivencia-
ram essa intensificação da fiscalização por parte da municipalidade carioca é outra
Recebido em 23/04/2013
Aprovado em 05/05/2013
Resumo: Neste artigo, busco refletir sobre o poder de veto do prefeito do Distrito
Federal em relação aos projetos de lei aprovados pelos membros do Poder Legisla-
tivo municipal entre 1892 e 1902. A análise minuciosa do andamento das resoluções
aprovadas pela casa legislativa, que foram ora sancionadas ou vetadas pelo pre-
feito, ora sancionadas pelo presidente da instituição, é uma forma de compreender
melhor as tensões e conciliações na política municipal da capital federal. Um tema
conflituoso na municipalidade, que colocava os poderes locais em pé de guerra, foi
o do funcionalismo público, que receberá atenção especial ao longo do artigo.
Abstract: This article addresses the issue of the right of veto of the Federal District
mayor concerning the bills passed in the Municipal Legislature between 1892 and
1902. A thorough analysis of the progress of the resolutions adopted by the legisla-
tive house, which were either sanctioned or vetoed by the mayor or sanctioned by
the institution’s president, allows us to better understand the tensions and recon-
ciliations proper to the municipal politics in the federal capital. The issue that will
receive special attention throughout the article is the topic of civil service; it was
such a contentious issue to the municipality that put local authorities on warpath.
Keywords: Rio de Janeiro political history, municipal civil service, right of veto
por parte do Congresso Nacional. Passados seis anos de vigência da Lei, o artigo
2.o do Decreto n.o 543, de 23 de dezembro de 1898, suprimiu o tempo de mandato,
definindo que o prefeito nomeado continuaria desempenhando suas funções en-
quanto bem servir. Modificação que consistiu em uma clara restrição da liberdade
de atuação da pessoa nomeada para estar à frente do cargo de prefeito.
A indefinição do tempo, condicionada à avaliação subjetiva do prefeito pelo
crivo do bem servir, provavelmente tinha a intenção de aproximar a atuação do
chefe do Executivo municipal dos interesses de quem lhe delegou o poder, o pre-
sidente da República. A partir do Decreto n.o 543, — sancionado por Campos Sales
(15/11/1898 a 15/11/1902), presidente que buscou intervir de forma muito decisiva no
jogo político carioca — ficou superado o constrangimento a que teria de passar o
chefe do Executivo federal devido ao fato de exonerar um prefeito antes do tér-
mino de seu mandato.
A supressão do tempo de mandato do prefeito ajuda a relativizar a interpre-
tação de sua atuação como um interventor federal, ao menos entre 1892 e 1902.
Tal interpretação valoriza muito fortemente o fato de o poder do prefeito ser de-
legado pelo presidente da República, pressupondo que a atuação do primeiro é
orquestrada de acordo com os interesses do segundo. Isto é, a prefeitura seria
quase um órgão do aparelho administrativo da União. Contudo, tal suposição fica
abalada quando se pensa nas razões políticas que produziram o Decreto n.o 543.
Isso porque esse decreto mostra claramente o quanto, nos anos iniciais da Prefei-
tura do Distrito Federal, era pouco provável a existência de uma grande sincronia
entre os dois executivos. Do mesmo modo, não teria sentido o investimento feito
na modificação legal do tempo de mandato, caso o prefeito não estivesse incomo-
104
dando alguém. O bem servir é seguido certamente de uma interrogação: a quem?
No caso, ao Executivo federal, que tentava, com o controle do tempo de mandato,
obter uma efetiva aliança com o prefeito.
Assim, entre 1892 e 1902, o cargo de prefeito foi ocupado por 14 pessoas, o
que evidencia sua fantástica rotatividade. Destes, seis assumiram interinamente,
sendo cinco presidentes do Conselho — Alfredo Augusto Vieira Barcellos, Antonio
Dias Ferreira, Joaquim José da Rosa, Honório Gurgel e Carlos Leite Ribeiro — e um
nomeado pelo presidente da República — Luiz Van Erven.4
De acordo com a Lei Orgânica de 1892, em caso de vacância do cargo, ca-
bia ao presidente do Conselho assumir interinamente a chefia do Executivo local.
Isso indica que o presidente do Legislativo era detentor de um considerável poder,
uma vez que, entre outras atribuições, desempenhava o papel de substituto oficial
do prefeito.
Somente em 1902, num momento de grande restrição das atribuições do
Conselho Municipal dentro do campo político-institucional carioca, é que o seu
presidente perdeu o direito de substituir o prefeito, o que ocorre com a sanção da
Lei n.o 939, de 29 de dezembro.
Dos oito prefeitos efetivos, apenas dois permaneceram no cargo em torno
de seis meses: Candido Barata Ribeiro (cinco meses) e Antonio Coelho Rodrigues
(sete meses), sendo o primeiro o único nomeado pelo presidente da República
4 Nasceu em 1857, na então Província do Rio de Janeiro, e faleceu em 1927. Engenheiro formado, foi diretor
da Repartição de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro antes de assumir interinamente a Prefeitura do
Distrito Federal. As referências biográficas dos prefeitos do Distrito Federal foram extraídas, sobretudo,
de: PINTO, Surama Conde Sá. Elites políticas e o jogo do poder na cidade do Rio de Janeiro (1909-1922). Tese
(Doutorado em História Social). Rio de Janeiro: PPGHIS-UFRJ, 2002.
105
A rotatividade no cargo foi sem dúvida mais intensa no governo Campos Sa-
les, o que aponta para tensões entre o Executivo municipal e o Conselho e entre
aquele e o Executivo federal. Tensões que possuíam, ao menos, uma explicação.
Os anos iniciais da República foram de profunda aprendizagem política. Neles, anti-
gas e novas forças políticas passaram a atuar em instituições que acabavam de ser
criadas, o que implicava, dentre outras coisas, a invenção de tradições diferentes
do fazer política: outros vocabulário, cargos, rituais, formas de se relacionar etc.8
É justamente nesse momento que, com a Lei Orgânica de 1892, se criou a
figura do prefeito, até então inédita no âmbito dos poderes que administravam
a cidade. Vale assinalar que, no período colonial, o governo da cidade era feito,
sobretudo, pelo Senado da Câmara e, no período imperial, pela Câmara Municipal.
Portanto, até 1892, a cidade do Rio de Janeiro possuía apenas instituições colegia-
das como responsáveis por sua administração.9
Criada a função de prefeito, ela ficou muito dependente das decisões toma-
5 ara acompanhar o processo de rejeição da indicação de Barata Ribeiro, cf.: BASTOS, Ana Marta Rodrigues.
O Conselho de Intendência Municipal: autonomia e instabilidade (1889-1892). Rio de Janeiro: CEH/FCRB,
1984, mimeo. WEID, Elisabeth von der. O prefeito como intermediário entre o poder federal e o poder
municipal na Capital da República. Rio de Janeiro: CEH-FCRB, 1984, mimeo.
6 Cf.: FREIRE, Américo. Uma capital para a República: poder federal e forças políticas locais no Rio de Janeiro
na virada para o século XX. Rio de Janeiro: Revan, 2000, em especial, o capítulo 3.
7 O que equivale a 40% da década estudada e/ou 52% do tempo de mandato dos seis prefeitos que mais
estiveram no cargo entre 1892 e 1902.
8 Para se ter uma noção das disputas entre projetos políticos nos primeiros anos republicanos, cf.: LESSA,
Renato. A invenção republicana: Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira República brasileira.
São Paulo: Editora Vértice, 1988; GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. São Paulo: Editora
Vértice, Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988, em especial, a 1.a parte. CARVALHO, José Murilo de. A formação das
almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
9 É importante ressaltar que o tipo de organização administrativa que teria o município não foi definido
na Constituição da República de 1891. Logo, alguns municípios, como o Distrito Federal, criaram o cargo
de prefeito, separando os poderes Executivo e Legislativo; outros municípios mantiveram um tipo de
organização próximo ao das Câmaras Municipais do Império, sendo o presidente da Câmara um cargo
com responsabilidades mais administrativas.
das pelos membros do Conselho, pelo fato de a Lei Orgânica ter definido nada me-
nos do que 37 atribuições10 para a casa legislativa. Ou seja, para governar, qualquer
prefeito nomeado tinha que, minimamente, tentar conseguir o apoio de boa parte
dos intendentes, o que por vezes, pode ter implicado ir de encontro aos interesses
de quem lhe delegou o poder, o Executivo federal.
Tabela 1
Distribuição de vetos e de decretos por mandato de Prefeito
do Distrito Federal (1892-1902)
Prefeito N.o de N.o de Total % veto
vetos decretos
Candido Barata Ribeiro 15 42 57 26,3
Antônio Dias Ferreira (interino)* 0 5 5 0,0
Henrique Valadares
Francisco Furquim Werneck de Almeida
12
38
93
341
105
379
11,4
10,0
106
Joaquim José da Rosa (interino)* 1 12 13 7,7
Ubaldino do Amaral Fontoura 44 161 205 21,5
Luiz Van Revén (interino) 13 18 31 41,9
José Cesário de Faria Alvim 55 72 127 43,3
Honório Gurgel (interino)* 0 8 8 0,0
Antônio Coelho Rodrigues 11 30 41 26,8
João Felipe Pereira 21 56 77 27,3
Joaquim Xavier da Silveira Junior 16 77 93 17,2
Carlos Leite Ribeiro (interino)* 5 56 61 8,2
TOTAL 231 971 1202
Fonte: Boletim da Intendência Municipal do Distrito Federal (1892-1902)
* presidente do Conselho Municipal
Uma das variáveis que levou o prefeito Francisco Furquim Werneck de Al-
meida a apresentar o maior número absoluto resultante da soma dos vetos com
os decretos (379) foi a de ter estado à frente da prefeitura por mais tempo, isto
é, 34 meses. O mesmo pode ser dito em relação aos prefeitos interinos, que, pelo
fato de permanecerem, em média, um mês à frente da prefeitura, apresentaram
os menores números absolutos.
Porém, o tempo de permanência no cargo de prefeito não é a única expli-
cação da diferença. Outra variável que deve ser levada em consideração é a do
volume da produção legislativa, do número de resoluções que eram aprovadas
no Conselho e que chegavam ao prefeito para sanção ou veto. Tal número variou
muito de acordo com as conjunturas políticas da década.
10 Para as atribuições, cf.: Art. 15, da Lei n.o 85, de 20 de setembro de 1892.
Dos seis prefeitos que, juntos, permaneceram o total de oito anos à frente
do Executivo, tirando a média por mês das resoluções do Conselho vetadas e san-
cionadas, temos: Ubaldino do Amaral Fontoura (18,63 resoluções/mês), Francisco
Furquim Werneck de Almeida (11,14), José Cesário de Faria Alvim (9,76), Joaquim
Xavier da Silveira Junior (8,45), João Felipe Pereira (5,92) e, por fim, Henrique Va-
ladares (5,83).
A média ajuda a perceber o volume da produção legislativa, dissociando-o da
variável tempo de permanência no cargo de prefeito. Apenas como exemplo, ela
permite chegar ao seguinte resultado: o prefeito Ubaldino do Amaral, em 11 meses
de gestão, vetou e sancionou três vezes mais, por mês (18,63), do que o prefeito
Henrique Valadares (5,83), que permaneceu no cargo durante um ano e meio.
Feitas as ressalvas quanto à diferença existente entre os números absolutos,
vamos à análise dos resultados da Tabela 1. A hipótese é a de que o percentual de
vetos interpostos por cada prefeito seja um indício do tipo de relação construída
com os membros da casa legislativa municipal. Logo, quanto maior o percentual,
maior é a possibilidade de que a gestão do prefeito tenha sido caracterizada por
uma relação conflituosa com os intendentes; sendo o inverso também verdadeiro:
quanto menor o percentual, mais o prefeito teria uma relação amistosa ou conci-
liatória com os intendentes.
Os prefeitos Henrique Valadares e Furquim Werneck de Almeida, ao longo de
pouco mais de quatro anos de mandato, vetaram por volta de 10% das resoluções
aprovadas pelo legislativo municipal. Ambas as gestões possuíram um percentual
O fato de vetar um pouco mais de 1/5 das resoluções aprovadas pelos inten-
dentes indica que a atuação de Ubaldino do Amaral à frente da prefeitura esteve
longe de ser conciliatória em relação ao Conselho, ao menos se compararmos com
as gestões anteriores de Valadares e Almeida, em que os vetos ficaram próximos
de 1/10 das resoluções aprovadas. No mínimo, pode-se dizer que, na gestão de
Ubaldino do Amaral, ocorreu um aumento de tensão na relação com o Conselho,
tornando-se o diálogo entre Executivo e Legislativo municipal mais difícil.
Com José Cesário de Faria Alvim, quinto prefeito efetivo e o primeiro no-
meado por Campos Sales, mais uma vez, o percentual total de vetos interpostos
(43,3%) foi o dobro do da gestão anterior, de Ubaldino do Amaral, que já era alto.
Em números absolutos, isso equivale dizer que Alvim vetou 55 e sancionou 72 re-
soluções aprovadas pelo Conselho.
Comparando a gestão de Alvim com as de Valadares e Almeida, a diferença
percentual de vetos passa a ser brutal, chegando a um aumento de 400%. Isto é,
o prefeito Cesário Alvim, em pouco mais de 1 ano de administração, vetou 4 vezes
mais resoluções que Valadares e Almeida em 52 meses de administração. Esse au-
mento significativo não deixa dúvidas de que, ao menos no momento de vetar, a
relação entre Cesário Alvim e os membros do Conselho foi conflituosa.
Os dados analisados até aqui possibilitam caracterizar a gestão de cada pre-
feito, no que tange à relação com a casa legislativa municipal, tomando-a como
um todo, sem nuances. Isto é, pela menor quantidade de vetos, infere-se que as
gestões de Valadares e Almeida mantiveram relações amistosas com o Conselho.
O inverso ocorreu no caso de gestões como as de Fontoura e Alvim, pelo fato de
possuírem maior quantidade de vetos.
108
Uma forma de sofisticar essa visão das administrações dos prefeitos quanto
à relação que mantinham com o Conselho, é a de distribuir os vetos ao longo de
cada gestão. Os resultados presentes no Quadro 2 permitem perceber quais são
os momentos, no interior das gestões, em que ocorreram os vetos, o que situa,
com precisão, o aumento do conflito com a instituição legislativa.
Quadro 2
Distribuição dos vetos por mês (prefeitos efetivos do Distrito
Federal, 1892-1902) (continua)
Prefeito Mandato Período total de Meses Quantidade
gestão de gestão de vetos
Henrique Valadares 27/06/1893 18 meses 11/1893 1
a 31/12/1894 01/1894 3
02/1894 1
04/1894 1
05/1894 2
06/1894 1
10/1894 2
11/1894 1
TOTAL 18 meses 12
Quadro 2
Distribuição dos vetos por mês (prefeitos efetivos do Distrito
Federal, 1892-1902)
(continuação)
Prefeito Mandato Período total de Meses Quantidade
gestão de gestão de vetos
Francisco Furquim 01/01/1895 a 34 meses 01/1895 1
Werneck de Almeida 15/11/1897 05/1895 1
07/1895 1
08/1895 2
09/1895 2
10/1895 4
11/1895 4
02/1896 1
04/1896 3
05/1896 3
08/1896 2
10/1896 1
11/1896 1
12/1896 1
04/1897 2
05/1897 4
09/1897 1
10/1897 2
109 TOTAL
11/1897
34 meses
2
38
Ubaldino do Amaral 25/11/1897 a 11 meses 11/1897 2
Fontoura 15/11/1898 12/1897 4
01/1898 1
04/1898 2
05/1898 18
09/1898 1
10/1898 6
11/1898 10
TOTAL 11 meses 44
José Cesário de 31/12/1898 a 13 meses 11/1898 1
Faria Alvim 31/01/1900 01/1899 15
03/1899 2
04/1899 8
06/1899 5
09/1899 4
10/1899 12
11/1899 2
12/1899 6
TOTAL 13 meses 55
João Felipe Pereira 06/09/1900 13 meses 09/1900 3
a 10/10/1901 10/1900 8
11/1900 1
12/1900 1
04/1901 4
05/1901 2
09/1901 1
10/1901 1
TOTAL 13 meses 21
Quadro 2
Distribuição dos vetos por mês (prefeitos efetivos do Distrito
Federal, 1892-1902) (continuação)
Prefeito Mandato Período total de Meses Quantidade
gestão de gestão de vetos
Joaquim Xavier da 11/10/1901 a 11 meses 10/1901 2
Silveira Junior 27/09/1902 11/1901 4
12/1901 2
01/1902 1
02/1902 1
03/1902 3
04/1902 1
05/1902 1
09/1902 1
TOTAL 11 meses 16
Fonte: Boletim da Intendência Municipal do Distrito Federal (1892-1902).
* foram contados apenas os meses completos
110
número de vetos. Inclusive, o primeiro veto de Valadares ocorreu somente no seu
quinto mês de gestão (novembro de 1893), sinalizando um início de mandato com
relações bastante tranquilas com os intendentes.
Diferente das anteriores, na gestão de Ubaldino do Amaral, os meses de maio
e novembro de 1898 foram de picos. Nesses dois meses estão concentrados 63,62%
dos vetos interpostos pelo prefeito. Em novembro, todos os vetos ocorreram na
primeira quinzena, pelo fato de o prefeito ter deixado o cargo no dia 15. A con-
centração de vetos no final da gestão permite pensar que sua saída da prefeitura
ocorreu num clima de embate com os membros da casa legislativa. Aprofundando
a análise, vi que as resoluções que beneficiavam de alguma forma o funcionalismo
municipal foram o alvo principal dos vetos de Ubaldino do Amaral. Em maio, seis
das 18 resoluções vetadas e, em novembro, cinco das dez resoluções, diziam res-
peito a tal temática (33,33% e 50%, respectivamente). Mas pode-se dizer que as re-
soluções relativas ao funcionalismo ocuparam o primeiro lugar dos vetos, ao longo
de toda a gestão de Ubaldino do Amaral: 16 das 44 resoluções vetadas, ou 36,36%.
As medidas que beneficiavam o funcionalismo municipal possuíam um largo
espectro: concessão de licença, reintegração no cargo, aposentadoria, contagem
de tempo de serviço etc. Apenas como exemplo do tipo de questão em que prefei-
to e intendentes se envolviam, em 9 de maio de 1898, Ubaldino do Amaral vetou
a resolução que concedia licença, por seis meses, à professora adjunta Obdulia
Carolina Vasconcellos de Loureiro, com todos os vencimentos.11
Para além das demandas do funcionalismo, os vetos interpostos em maio e
novembro de 1898 versavam sobre assuntos como: concessões diversas, ensino
municipal, intervenção em logradouro público, patrimônio municipal, repartições
públicas, transporte de bondes e posturas municipais. Algo, em princípio, mais
substancial para a vida da cidade do que questões que incidiam sobre o destino
dos servidores públicos.
111 de um padrão difuso de vetos pode significar um conflito exacerbado com o Con-
selho, ao menos no que diz respeito à produção legislativa, em que qualquer reso-
lução podia ser alvo de veto do prefeito.
Entretanto, a existência e predominância de um assunto específico, como
elemento que estimula uma alta concentração de vetos, voltou à cena na gestão
de João Felipe Pereira. No segundo mês à frente do Executivo (outubro de 1900),
concentram-se 38,09% das resoluções vetadas por esse prefeito, sendo que quatro
dos oito vetos diziam respeito à questão do transporte de bonde. Em 4 de outubro
de 1900, por exemplo, ele vetou a resolução que autorizava renovar o contrato
celebrado em 1.o de julho de 1899 com a Companhia de São Cristóvão.12 Dois dias
depois, em 6 de outubro, vetou duas resoluções que concediam autorização para
construir linhas de bonde.13
Apesar da questão do transporte de bonde ter sido geradora de um aumen-
to de tensão na relação entre o prefeito e os intendentes, ao longo da gestão de
Felipe Pereira ela não se constituiu em um ponto constante de conflito. Em seus
13 meses de administração, excetuando outubro de 1900, as resoluções vetadas
eram relativas a assuntos diversos, tais como: o abastecimento de carne, as con-
cessões públicas, o funcionalismo municipal, o orçamento, as posturas municipais,
as subvenções públicas etc.
O último prefeito efetivo nomeado por Campos Sales, Joaquim Xavier da
Silveira Junior, contrariando o padrão da gestão de seus colegas anteriores, não
possuiu, ao longo de seus onze meses de mandato, nenhuma alta concentração
de vetos. Apesar de não existir um mês com pico de vetos, a administração de
Xavier da Silveira Junior, do mesmo modo que a de Ubaldino do Amaral, também
apresentou uma concentração em torno de medidas que beneficiavam o funcio-
nalismo municipal, perfazendo o total de seis das 16 resoluções vetadas, ou 37,5%.
113 priação por utilidade pública a particulares, para abrir ou prolongar ruas; as que
mandavam construir bueiros; e, por fim, as que autorizavam a realização da limpe-
za e do embelezamento de certos espaços públicos.
Já as resoluções sobre posturas municipais — 27 vetadas, ou 11,69% — diziam
respeito, por exemplo, à localização dos depósitos de inflamáveis e de explosivos
na cidade; à forma de enterramento nos cemitérios; à proibição de trabalho de
menores de 16 anos em lugares de divertimentos públicos; ao Código de Polícia
municipal; e, principalmente, a regras de construção e reconstrução de edifícios
na cidade. Esse último caso correspondia a nada menos que dez das 27 resoluções
vetadas, ou 37,03%. Eram resoluções que, em sua maioria, criavam exceções ao re-
gulamento geral de construção, como a que permitia construções independentes
de licença e arruação em vários distritos, vetada por Francisco Furquim Werneck
de Almeida, em 12 de setembro de 1895.15
No caso do transporte público, as medidas relacionadas à questão das linhas
de bonde da cidade foram focos constantes de tensão. Para se ter uma ideia de
sua dimensão, das 26 resoluções vetadas, apenas duas fugiam ao tema. Uma delas
autorizava a abertura de concorrência para o serviço de barcas entre a capital fe-
deral e as ilhas de Paquetá e do Governador, e foi vetada por Henrique Valadares,
em 22 de maio de 1894.16
As outras 24 resoluções vetadas praticamente se dividiam em concessões
para construção de linhas de bonde (oito resoluções) e autorizações para a revi-
são, a revogação de parte e a renovação de contratos firmados com companhias
de ferro carril (nove resoluções). Isto é, as decisões sobre concessões e contratos
firmados equivaliam a quase 71% das resoluções vetadas relacionadas ao transpor-
te de bonde. Os outros 29% diziam respeito à alteração de tráfego nas linhas, à
Tabela 3
Matérias 1893 1894 1895 1896 1897 1898 1899 1900 1901 1902 T %
Funcionalismo 1 3 3 3 6 19 13 5 6 6 65 28,14
Municipal
Obras Públicas 7 2 2 2 8 6 1 1 29 12,55
Posturas 3 2 4 4 1 1 7 3 1 1 27 11,69
114
Municipais
Transporte 1 1 4 2 4 8 5 1 26 11,26
Público
Ensino 1 1 1 4 3 1 2 1 14 6,06
Municipal
Impostos 2 2 1 1 1 2 2 1 12 5,19
Orçamentos 1 3 2 2 8 3,46
Abastecimento 1 1 2 1 1 6 2,60
Patrimônio 1 4 1 6 2,60
Municipal
Administração 1 2 1 1 5 2,16
Pública
Loteria 1 1 1 1 1 5 2,16
Comemorações 1 1 1 3 1,30
e Homenagens
Iluminação 2 1 3 1,30
Pública
Limpeza 1 2 3 1,30
Urbana
Desconhecidas 3 4 8 2 1 1 19 8,23
e Outras
TOTAL 16 11 15 12 18 52 54 24 16 13 231 100,00
Logo se percebe que os anos de 1898 e 1899 foram os de mais alta concen-
tração de vetos: 152 e 54 resoluções vetadas, respectivamente. O que equivale
a 46% do total de resoluções vetadas entre 1893 e 1902. Para se ter dimensão da
aceleração do ritmo de vetos interpostos, basta informar que o volume de resolu-
ções vetadas em 1898 equivale a quase três vezes o ocorrido em 1897 que, até 15
Tabela 4
Divisão dos decretos de acordo com o poder municipal que
os sancionou (D.F., 1892-1902) (Continua)
Prefeito N.o de Total por Sanções do Sanções do
decretos mandato prefeito Conselho
% %
Henrique Valadares 74
Antônio Dias Ferreira* 14
João Baptista Maia de Lacerda* 2
90 82,23 17,77
Francisco Furquim Werneck de 238
Almeida
Joaquim Xavier da Silveira Junior* 44
Honório Gurgel** 13
Joaquim José da Rosa* 42
Eugenio Guilherme de Magalhães 4
Carvalho**
341 69,79 30,21
Ubaldino do Amaral Fontoura 61
Joaquim José da Rosa* 39
Tertuliano da Gama Coelho* 51
Manoel Corrêa de Mello** 10
161 37,89 62,11
Tabela 4
Divisão dos decretos de acordo com o poder municipal que
os sancionou (D.F., 1892-1902) (Continuação)
Prefeito N.o de Total por Sanções do Sanções do
decretos mandato prefeito Conselho
% %
José Cesário de Faria Alvim 72
72 100 0
João Felipe Pereira 56
56 100 0
Joaquim Xavier da Silveira Junior 77
77 100 0
Fonte: Boletim da Intendência Municipal do Distrito Federal (1892-1902)
* presidente do Conselho Municipal / ** vice-presidente do Conselho Municipal
Pela divisão dos decretos de acordo com o poder municipal que os sancio-
nou, percebi, no período, a existência de três situações básicas: a de prefeitos que
não delegavam ao Poder Legislativo municipal a atribuição de sancionar resolu-
ções; a de prefeitos que delegavam em parte tal atribuição; e, por fim, a de um
prefeito que delegou a maior parte dessa atribuição ao Conselho.
O ato de delegar uma parcela das atribuições do Executivo para o Legislati-
vo municipal podia significar uma tentativa, por parte dos prefeitos, de manter,
minimamente, boas relações com os intendentes. Principalmente, se a abstenção
fosse uma solução/alternativa encontrada pelos prefeitos para não interferir nas
resoluções do Conselho, para vetá-las ou para sancioná-las. Com isso, dependendo
da situação, os prefeitos terminavam por evitar a criação de impasses intransponí-
veis em suas relações com a casa legislativa.
É preciso lembrar que se abster podia também significar o inverso, ou seja, o
aumento da tensão na relação entre o prefeito e o Conselho. Apenas como exem-
plo, vale o caso do prefeito Barata Ribeiro. Ele deixou passar o prazo de cinco dias
para sancionar ou vetar uma resolução, ficando a cargo do presidente do Conselho
desempenhar tal atribuição. Porém, ela possuía um prazo bastante específico para
que fosse efetivada, e que era menor que os cinco dias legais para a sanção. Logo,
ao deixar o prazo se esgotar, longe de evitar entrar em conflito com os intenden-
tes, o prefeito não só vetou a resolução, que não mais se aplicava, como abriu uma
crise com o Conselho.17
22 Ibidem, p. 119. Veto à resolução que mandava contar para todos os efeitos e pelo dobro o tempo de
serviço militar em defesa do governo legal, prestado por José Rockert, escrivão da Agência da Candelária.
23 Filho do coronel José Cesário de Faria Alvim e de Thereza Januária Carneiro, nasceu em 7 de junho de
1839, no povoado de Pinheiro, município de Piranga, na então Província de Minas Gerais. Bacharelou-se,
em 1862, pela Faculdade de Direito de São Paulo.
Cesário Alvim defendeu que seu ato estava baseado na autorização, conce-
dida pelo próprio Conselho, de reorganizar as repartições públicas, reduzindo o
pessoal e suprimindo os lugares dispensáveis. Como o fim último dessa autoriza-
ção era o de conter as despesas municipais, sendo a reorganização um processo
moroso, de resultados a longo prazo, decidiu-se por reduzir os vencimentos dos
funcionários, já que reverter a situação financeira era algo inadiável.
Por fim, depois de levantar a questão da competência do Conselho quanto à
criação de despesa, concluiu a justificativa do veto à indicação, fazendo uma crítica
muito ácida aos intendentes, acusando-os de agir em favor de seus próprios inte-
resses, ao invés dos interesses gerais.27
122
Os 10% de redução nos vencimentos do funcionalismo voltaram a ser discuti-
dos no Conselho em 6 de setembro de 1899, cinco dias depois de o prefeito apre-
sentar a proposta orçamentária de 1900, sem fazer menção de suspender a redu-
ção. Na sessão ordinária, o intendente Leite Ribeiro, o mesmo responsável pela
formulação da indicação vetada em março por Alvim, apresentou o projeto de lei
n.o 108, que anulava o Decreto n.o 123, de 27 de janeiro de 1899.
Antes de iniciar o trâmite legislativo o projeto já possuía o apoio da maioria
dos intendentes, tendo sido assinado por mais sete membros da casa.28 Tal grau de
apoio sinalizava o quanto essa questão era cara ao Conselho, algo que foi ressalta-
do por Leite Ribeiro em seu discurso de apresentação do projeto:
[...] o Conselho Municipal não pode ficar indiferente à questão dos 10%.
Julga preciso terminar de vez essa causa, na qual estão comprometidos
os interesses dos funcionários; já não fala do interesse dos Intendentes,
interesse moral, bem entendido, pelo desprestígio que nessa questão
tem sofrido o Conselho.29
Aceito pela Mesa do Conselho, o projeto foi encaminhado para entrar na or-
dem dos trabalhos. Aprovado sem debates em primeira e em segunda discussão,
somente na terceira, quando Leite Ribeiro fez um histórico da questão, houve um
forte embate com o prefeito.
26 Ibidem, p. 90.
27 Cf.: Ibidem, p. 91.
28 Antônio José Leite Borges, Figueiredo Rocha, Manoel Rodrigues Alves, Mattos Rodrigues, Pereira Braga,
Numa Vieira e Leôncio de Albuquerque.
29 Anais do Conselho Municipal, 2.a sessão ordinária de 01/09 a 30/10/1899, p. 54.
30 Ibidem, p. 70.
31 Ibidem, p. 71.
32 Boletim da Intendência Municipal, de julho a setembro de 1899, p. 21.
33 Cf.: Anais do Senado Federal, sessão em 21 de setembro de 1899, p. 191.
124
cionários públicos, de diminuir o próprio número de funcionários e, também, de
reorganizar as repartições municipais, no sentido de torná-las mais modestas e
econômicas. Dentre os que ocuparam o cargo de Prefeito, Barata Ribeiro foi uma
voz dissonante, pelo fato de propor, ao invés da redução, o aumento do número
de funcionários. Qual era o lugar de Ribeiro na municipalidade? Por que essa dife-
rença em relação aos seus sucessores?
Em 1.o de março de 1893, Cândido Barata Ribeiro proferiu sua primeira men-
sagem ao Conselho, que acabaria sendo também a última, pois deixou o cargo
em 25 de maio de 1893, logo após a rejeição de sua indicação pelos membros do
Senado. Na mensagem, argumentou que, devido à implantação da Lei Orgânica,
a administração municipal passava por um período de transição. Isto é, o Conse-
lho de Intendência, instituição provisória criada em 1889 e que perdurou até 1892,
estava sendo substituído pelos poderes Executivo e Legislativo municipais. Por
isso, a lei transferiu diversas atribuições que eram da competência da União para
a municipalidade.
O alargamento do raio de ação da municipalidade — que o prefeito diag-
nosticava como crescente desde 1889, quando se extinguiu a Câmara Municipal
do Império — foi uma das justificativas para não apresentar aos intendentes a
proposta orçamentária de 1893. Outra razão dizia respeito ao argumento de ser a
proposta orçamentária dependente tanto das receitas quanto das despesas que
estavam sendo criadas pelos membros do Conselho Municipal. Os dois argumen-
tos reforçavam a ideia de que não adiantava a prefeitura apresentar uma proposta
orçamentária, tomando como base os valores monetários gastos no ano anterior,
quando a administração municipal era desempenhada pelo Conselho de Intendên-
cia e possuía um número muito menor de atribuições.
A partir do princípio de que a municipalidade passava por um período de
transição institucional, Barata Ribeiro apresentou dois problemas a serem enfren-
tados pelo Conselho Municipal: o de organizar as repartições municipais de acordo
Recebido em 16/05/2013
Aprovado em 10/06/2013
125
Abstract: The use of the word “slavery” to describe various contemporary forms of
exploitation raises questions of legal definition. Slavery in the 19th century Ameri-
cas was rooted in the claim of property in persons, so using the term to character-
ize modern abuses, when no state any longer recognizes the ownership of persons,
seems to pose a risk of anachronism. During recent parliamentary debates in both
France and Brazil, the charge of anachronism has been levied by opponents of
the explicit recognition in law of a criminal offense of enslavement. Historical evi-
dence demonstrates, however, that the exercise of the powers attaching to a right
of ownership did not, in fact, necessarily derive from a prior legal right of owner-
ship. Control over persons, tantamount to possession, could occur quite outside
the law, though it might be cognized as legal ownership after the fact. Juxtaposing
an episode from New Orleans in 1810 with the situation that gave rise to the 2005
European Court of Human Rights decision in Siliadin contra France, the paper ana-
lyzes the parallels in the circumstances of urban slavery, and the mechanisms by
which “powers attaching to a right of ownership” came to be exercised, quite in-
dependent of any actual right. The argument thus supports both the proposed 2013
reforms to the French penal code that would make the crime of enslavement ex-
plicit, and the proposed amendment to the Brazilian Constitution that would raise
the penalties for the use of slave labor.
130
formalmente capaz de sair do lugar em que trabalha.
Os que se opõem à criminalização da exploração do trabalho escravo, e à
expropriação de propriedades em que o uso de trabalho escravo for confirmado,
usam o argumento de que a definição legal de uma situação de escravidão não é
clara e que as medidas previstas pela Proposta de Emenda Constitucional atual-
mente em debate no Senado abririam a possibilidade de abusos por parte de fiscais
ou procuradores. Assim, em vez de examinar os parâmetros bem concretos usados
por procuradores e fiscais que atuam nessa área, preferem apenas sugerir que a
definição de “trabalho escravo” ainda é bastante abstrata e controvertida.
Sabemos todos que esses argumentos são frequentemente movidos pela má
fé e pelo desejo de lucro. Para fazer frente a esses problemas e questionamentos,
no entanto, é importante que juristas e outras pessoas que lidam com essa temáti-
ca levem a sério a questão da definição. Este artigo propõe uma contribuição histó-
rica para esse esforço de esclarecimento.
Como definir “escravidão” ou “trabalho escravo”? O que fazia de alguém
um escravo no século XIX, quando a escravidão era uma instituição reconhecida e
identificada com a propriedade sobre as pessoas? Como definir alguém como es-
cravo, com alguma precisão, no século XXI, quando a propriedade sobre pessoas
não é admitida pela lei? À primeira vista, pode-se imaginar que o termo “escravo”
no século XIX significava uma pessoa sobre a qual havia um verdadeiro direito de
propriedade; e seria, portanto, enganoso usar o termo no século XXI, pois não há
nenhum legítimo direito de propriedade sobre pessoas em um mundo em que a
escravidão foi abolida.
Mas, quando examinamos os textos produzidos pela Liga das Nações e pelas
Nações Unidas, e outros documentos pertinentes ao tema, vemos que a escravidão
é definida no direito internacional do seguinte modo: “o estado ou a condição de um
indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, alguns ou todos os atribu-
tos do direito de propriedade”. É importante observar que a formulação não fala em
deu a Adélaïde um recibo que atestava sua liberdade. Mas Charles não queria deixar
que ela levasse o filho consigo, e disse que o libertaria mais tarde, “graciosamente”.
Adélaïde trabalhou por um tempo como vendedora e viveu com um homem
empregado nos fornos de cal. Porém, quando Napoleão Bonaparte enviou uma
força expedicionária da França para tirar Toussaint Louverture do poder, a colônia
foi tomada pela guerra. A autonomia de Louverture nas relações internacionais e a
insistência em acabar com a escravidão tinham enfurecido Bonaparte, que estava
determinado a retomar o controle direto sobre a colônia e restaurar a escravidão.
As tropas napoleônicas não conseguiram restaurar nem a escravidão, nem o
controle colonial, mas produziram uma catástrofe humana, espalhando a guerra
pelo território e forçando a fuga de dezenas de milhares de pessoas, que se refu-
giaram em portos seguros mais próximos. Adélaïde estava entre esses refugiados.
Ela possuía o papel que atestava sua liberdade, tinha recuperado a custódia de seu
filho, e conseguiu lugar num navio para a Jamaica.
Por volta de 1805, ela chegou a Baracoa, em Cuba. Milhares de refugiados de
São Domingos já tinham fugido diretamente para Cuba em 1803; entre eles vários
dos vizinhos de Adélaïde. Em Cuba, alguns dos refugiados, abusando da vulnerabi-
lidade de outros, haviam conseguido impor o exercício de poderes que correspon-
dem ao direito de propriedade. E, uma vez estabelecida tal relação social, o direito
espanhol simplesmente reconheceu este fato social como prova do direito de pro-
priedade. Os “criados” se tornaram “escravos” e a reescravização foi concluída.
Porém, todas as testemunhas que depuseram no processo de Adélaïde con-
cordavam que ela tinha vivido como mulher livre em Baracoa. Ali, ela tinha dado
à luz duas filhas e, no momento do batismo de cada uma delas, havia mostrado o 132
recibo assinado por Métayer que reconhecia sua “liberdade,” e as meninas haviam
sido batizadas como livres.
Entretanto, em 1808, a guerra na Europa entre a França e a Espanha levou à
expulsão dos refugiados vindos de São Domingos da colônia de Cuba, pois eram
percebidos como “franceses”. Adélaïde juntou-se a uma outra migração força-
da, dessa vez para a Louisiana. Os navios chegaram ao porto de Nova Orleans às
dezenas, levando quase dez mil refugiados de São Domingos como passageiros.
Ainda que a abolição da escravidão em São Domingos tivesse extinguido todo o
direito de propriedade sobre pessoas, a passagem pelas águas do Caribe e do Gol-
fo tinha permitido aos mais poderosos dentre os refugiados impor sua vontade
sobre outros. Uma vez estabelecida tal relação de força, os oficiais da Louisiana
entenderam a situação como escravidão. Assim, no momento em que entraram
na Louisiana, 3.226 pessoas que haviam sido emancipadas pela revolução haitiana,
uma emancipação que fora ratificada pela Assembleia Nacional da França, foram
registradas como escravas.
Mais uma vez, Adélaïde evitou esse destino. Era uma mulher confiante, segu-
ra de si, que já em Cuba desafiava qualquer um que ousasse se referir a ela como es-
crava. Ela e suas três crianças se fixaram na comunidade de refugiados, que incluía
gente que ela conhecia desde o tempo em que vivia em Cap Français. Um deles era
um alfaiate francês chamado Louis Noret, que havia sido sócio do antigo senhor de
Adélaïde. Ela tinha confiança em Noret, tanto que deu o recibo de Charles Métayer
que provava sua liberdade para que ele o guardasse em lugar seguro. Em princí-
pio, parecia lógico: Noret parecia um homem branco honesto que poderia levar a
prova de sua liberdade para as autoridades, em caso de necessidade. Na prática,
entretanto, não foi uma boa ideia.
Em março de 1810, o alfaiate Noret ajuizou uma ação e, afirmando que a fa-
milia do antigo senhor de Adélaïde tinha uma dívida com ele, pediu permissão para
mas que haviam sido reescravizados na chegada a Cuba ou na chegada a Nova Orle-
ans? Esses três mil e tantos homens e mulheres foram mantidos como escravos. Os
poderes inerentes ao direito de propriedade foram exercidos sobre eles, tenha sido
esse direito de propriedade (em algum sentido) válido ou falso, reconhecido ou não.
Deixemos de lado por um momento o caso de Adélaïde Métayer, para dar-
mos uma olhada rápida no caso de Henriette Siliadin, ocorrido mais de 180 anos
depois — um caso que envolve a jurisprudência internacional de direitos humanos.
Iwa Akofa Siliadin nasceu no Togo, na África Ocidental. Tinha 15 anos em
1994, quando a irmã de uma amiga da família ofereceu-se para levá-la para Paris,
prometendo matriculá-la na escola e ajuda para a obtenção do visto de residência.
Iwa Akofa era uma adolescente e sua família tinha dificuldades; a perspectiva de ir
para Paris era interessante. Ela acompanhou a mulher e entrou na França com um
visto de turista, para uma estadia curta.
Logo ficou claro, entretanto, que a oferta de matrícula na escola tinha sido
uma artimanha. A mulher colocou Iwa Akofa, agora chamada de Henriette, para
trabalhar como babá e para limpar a casa. As coisas pioraram quando essa conhe-
cida “emprestou” Henriette para outra família, para realizar os mesmos afazeres.
A nova família a mantinha sob restrições ainda maiores e sob rígida vigilância
no apartamento em que moravam em Paris. Confiscou seu passaporte e amea-
çou-a dizendo que a polícia a prenderia se ela tentasse fugir. De acordo com os
registros dos processos judiciais feitos posteriormente, Henriette era obrigada a
trabalhar das sete e meia da manhã até dez e meia da noite, todos os dias da se-
mana, sem folga. Eles lhe davam pouca comida — ela acabou ficando anêmica — e 134
proibiam-na de falar com qualquer pessoa fora da família. Ela dormia em um col-
chão no chão, no quarto do bebê, e nunca recebeu pagamento.
No início, Henriette não tinha ideia da possibilidade de questionar as
circunstâncias em que vivia, ou como poderia fazê-lo. Ela era intimidada pelo casal
que a controlava e não conseguiu obter ajuda de um tio, a quem recorreu uma vez.
A família francesa
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lhe dizia sempre que, por não ter papéis, por não possuir docu-
mentos, a polícia podia prendê-la se ela tentasse reclamar de sua situação.
Depois de quase quatro anos vivendo nessas condições, ela aproveitou o en-
contro com uma vizinha para pedir ajuda. A vizinha não tinha certeza do que pode-
ria ser feito. Naquele ano de 1998, porém, a França celebrava 150 anos da abolição
definitiva da escravidão no império francês (ocorrida em 1848) e a vizinha viu nos
jornais a referência ao Comitê Contra a Escravidão Moderna. Ela contatou, então,
o comitê, e a polícia apareceu na porta da família para investigar. Em 1999 iniciou-
-se uma sequência de processos que duraram quase tanto quanto os de Adélaïde,
dois séculos antes. O julgamento da acusação contra o casal parisiense baseou-se
em dois artigos do Código Penal francês (225-13 e 225-14), um que tornava ilegal
extrair trabalho não remunerado ou mal remunerado de uma pessoa vulnerável
ou dependente; e outro que tornava um crime sujeitar uma pessoa a condições de
vida ou trabalho incompatíveis com a dignidade humana.
O juiz rejeitou a acusação de imposição de condições contrárias à dignidade
humana, argumentando a insuficiência dos testemunhos para provar tal ponto.
Mas condenou o casal por explorar uma pessoa vulnerável — nesse caso, menor
de idade, estrangeira, cujo passaporte havia sido confiscado. O casal parisiense,
senhor e senhora Bardet, foi condenado à prisão. Eles recorreram da sentença e
conseguiram que ela fosse reformada, pois os juízes consideraram que Henriette
não era assim tão vulnerável — eles argumentaram que, como ela falava francês,
poderia ter usado um telefone público para pedir ajuda. Eles tomaram cada indício
de mobilidade como evidência contra a acusação de exploração.
Restou apenas uma ação civil por salários atrasados, por meio da qual Hen-
riette recebeu o valor equivalente em salários pelo tempo que trabalhou, com um
complemento para recompensar seu trabalho nos dias de folga. Foi nesse ponto
que o Comitê Contra a Escravidão Moderna levou o caso a julgamento na Corte
Europeia de Direitos Humanos, acusando a França de falta de cumprimento do
artigo quarto da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que obriga as nações-
-membro a proteger as pessoas sob sua jurisdição contra a escravidão e a servidão.
É interessante observar que pareceu difícil à Corte Europeia decidir como
avaliar a situação. Eles não duvidaram dos registros de trabalho não remunerado,
das ameaças e do confisco dos documentos de Henriette. Mas os juízes rejeitaram
o argumento de que as condições em que a moça trabalhava eram equivalentes à
escravidão. Eles acharam que, para chamar isso de escravidão, teria que ter havido
“um verdadeiro direito de propriedade” sobre ela, com a redução da pessoa ao
estatuto de objeto.
Mas a servidão, tanto quanto a escravidão, é proibida sob o artigo quarto da
Convenção Europeia, e a corte julgou o caso como sendo de servidão. A decisão
final repreendeu a França por deixar de estabelecer um mecanismo, em sua legis-
lação criminal, que estabelecesse penalidades efetivas para a ação de manter uma
pessoa em servidão.
Esses dois casos mostram que, historicamente, o termo “escravo” podia
135 referir-se tanto à condição de uma pessoa (submetida ao poder de outra pessoa)
quanto ao seu estatuto (reconhecida pelo direito como propriedade). A condi-
ção de Adélaïde Métayer em Nova Orleans era de mulher livre; Louis Noret ten-
tou mudar essa condição, argumentando que seu verdadeiro estatuto legal era
de escrava. Arregimentou testemunhas que declararam ter visto Adélaïde na casa
de Charles Métayer 16 anos antes, em São Domingos, e que achavam ser ela uma
“escrava”, nesse momento. Na república francesa em 1998, o estatuto de Henriet-
te Akofa Siliadin era de mulher livre, porque evidentemente no século XX já não
existia o estatuto de escrava. Essa mulher livre, entretanto, havia se tornado tam-
bém, por meio da ação de outros, uma imigrante ilegal, vivendo numa condição de
servidão. O senhor e a senhora Bardet exerceram sobre ela uma série de poderes
que reconhecemos: extração de trabalho não remunerado, proibição de ir e vir
com autonomia etc.
No século XIX, os advogados de Louis Noret e, em seguida, de Pierre Mé-
tayer quiseram demonstrar que havia um direito de propriedade sobre Adélaïde,
herdado pelo filho do seu antigo dono, que fazia dela uma pessoa com o estatuto
de escrava. Os advogados do casal parisiense no século XX, ao contrário, não qui-
seram e não puderam demonstrar um direito de propriedade sobre Henriette. Foi
o procurador quem quis mostrar que a moça havia sido escravizada, ou sujeita à
servidão, para poder culpar o casal de um crime.
É importante notar que, nos dois casos, a categorização legal da pessoa como
escrava derivou da sua condição. Em 1818, a ficção legal de propriedade sobre uma
pessoa foi reivindicada porque Adélaïde parece ter permanecido no poder da fa-
mília Métayer quando eles moravam todos em São Domingos. A abolição que lhe
conferiu liberdade formal foi ignorada. Em 2005, a condenação da França pela Cor-
te Europeia – mesmo que o abuso de Henriette tenha sido considerado “servidão”
em vez de “escravidão” — dependeu das condições a que ela foi submetida e não
de seu estatuto formal.
Resumen: Las interpretaciones particulares de los grandes temas libertarios por los
antiautoritarios españoles se apoyaron en las elaboraciones sociales y discursivas
de los colectivos obreros. Iniciativas de organización y modelos de defensa
llevaron a unas verdaderas construcciones ideológicas que dieron una tonalidad
totalmente obrerista a las propuestas habituales del anarquismo bakuninista.
Fueron duraderas tanto la exaltación de la organización concebida como fin en sí
mismo como la reticencia a proponer la huelga general. El objetivo esencial siguió
siendo la defensa prioritaria de la identidad obrera y de sus formas de presencia
social. Hasta en los grandes conflictos de los primeros años del siglo XX son visibles
las tensiones con la visión libertaria, más ideológica y más radical, del cambio social.
retraso del desarrollo industrial y el desfase de las clases populares con respecto a
los intentos de establecer un régimen representativo y una forma estatal similares
a los de los grandes paises de Europa. El cambio económico posterior a la crisis de
la monarquía absoluta de Fernando VII (1814-1833) proporciona un primer nivel de
explicaciones. En España el proceso industrializador fue tardío y su impacto desigual
en las distintas partes del territorio. Los colectivos obreros globalmente afectados
pero empleados a menudo en formas trabajo de tipo semiindustrial o artesanal, se
hubieran reconocido en la defensa de la autonomía individual y colectiva propia
de los proyectos ácratas. Pero sólo con determinantes de orden económico
difícilmente se explicaría que en Cataluña, único conjunto industrializado antes de
los años 1880, se dieran a la vez actitudes reformistas, las de una precoz federación
de los obreros del textil, las llamadas « Tres Clases de Vapor », y una influencia
libertaria en sectores significativos del trabajo, entre ellos los oficios. De hecho, las
interpretaciones recurren a menudo a la historia política subrayando en particular
el papel posible del tipo de republicanismo que se formó en España, con un peso
importante de la variante federal, y, a veces, el del antiestatismo de las capas
populares. Ambos serían significativos tanto de las dificultades para construir un
estado de apariencias liberales como de la poca capacidad de integración de los
componentes de orden democrático, los cuales, a pesar del desgaste de la forma
monárquica autoritaria –cae Isabel II con la « revolución » de septiembre de 1868–,
fueron perdiendo, de modo algo paradójico, parte de su poder de convicción en
la opinión popular urbana. Agotados, durante los años 1868-1872, los intentos de
establecer una forma monárquica representativa, una breve república, proclamada
en febrero de 1873, no consiguió evitar, unos meses después, el regreso, por la vía 140
de un pronunciamiento militar, de un tipo de monarquía que, igual que la de Isabel II,
eludía gran parte de los mecanismos de representación que formalmente admitía2.
No es la intención del presente estudio proponer una interpretación de las causas
generales del éxito del anarquismo en España –se aludirá desde luego a algunas–
sino subrayar que la cultura sociopolítica de los colectivos obreros contribuyó
mucho más de lo que se suele atribuirle en la elaboración de las primeras formas
del proyecto anarquista. Al contrario de lo que sostienen muchas evocaciones de
la corriente libertaria durante el « sexenio democrático » (1868-1874)3, no fueron
ni sencillas ni pasajeras.
Igual que en otros paises la primera elaboración anarquista que se conoció
en España fue la bakuninista. Se debió a los tan mencionados primeros contactos,
después de septiembre de 1868, con unos núcleos obreros activos y preocupados
por hacerse socialmente más visibles mientras rompían con los republicanismos4.
Planteando la « emancipación social » a través de un choque revolucionario la
lógica del bakuninismo, tal como se percibía, parecía prolongar los temas del
republicanismo federal entre aquellos obreros que ahora se apartaban de una vía
en la que los cambios sólo afectarían las instituciones políticas. En un contexto
en el que se exaltaba la virtud de la « asociación », una federación española de
2 El marco político definitivo lo fija en la constitución de 1876 el político conservador Antonio Cánovas.
3 La historiografía y la memoria histórica suelen usar la expresión para llamar el periodo comprendido entre
la caida de Isabel II, en septiembre de 1868, y el golpe de estado del general Pavía, en enero de 1874, el cual
señala el inicio del proceso « restaurador ».
4 El trabajo más preciso sobre los contactos con el bakuninista italiano Fanelli en la obra de M. Nettlau
editada por R. Lamberet, La Première Internationale en Espagne (1868-1886), Dordrecht, D. Reidel Publishing
Company, 1969. Importante también el libro pionero de MARTÍ, Cassimir. Orígenes del anarquismo en
España, Barcelona : editorial Teide, 1959. Se citan en el artículo el libro de memorias de LORENZO, Anselmo.
El proletariado militante, reed. por J. Álvarez Junco. Bilbao: ed. ZYX, 1974, y la síntesis de TERMES, J.
Anarquismo y sindicalismo en España. La Primera Internacional (1864-1881). Barcelona: ed. Ariel, 1972.
13 La Emancipación, de Madrid, es el único que se convierte durante sus últimos meses, entre mediados de
1872 y abril de 1873, en órgano del grupo que defiende al Consejo General después de la participación de
algunos militantes en un grupo dirigido por un yerno de Marx, P. Lafargue y venido a España para huir de
la represión de la Commune.
14 “Cartas a los trabajadores del Alto y Bajo Ampurdán”. La Federación, Barcelona, verano de 1872.
15 Memorias de un internacional es el subtítulo de El proletariado militante.
16 P. Gabriel coincide en que el proceso es más interno que imitativo (Cf.: « Sindicalismo y huelga. Sindicalismo
revolucionario francés e italiano. Su introducción en España ». Ayer, n. 4, 1991, p, 34-41 y 44-45.
17 LORENZO, A., Op. cit., p. 286-303.
de poner en dificultad, con algo de táctica, las reservas del capital, no respondía
por consiguiente a una preocupación de orden sólo funcional –en el caso que lo
« sindical » pueda limitarse a eso, para emplear una palabra que no usaba todavía
el movimiento obrero en España18. Desempeñaba un papel sociopolítico en la
perspectiva de rechazo de la participación política propia de la FRE, el cual, como se
dijo, ya estaba presente, en parte, en textos del republicanismo federal y, también,
en bastantes reacciones populares frente a las « autoridades –los « motines », por
ejemplo. La permanencia de la « organización », señal de su futuro y necesario
crecimiento, fue, para la FRE, la vía para ampliar esa perspectiva propia. Ha llamado
la atención la frecuencia del tema de la exaltación de la organización pero se ha
interpretado sobre todo como indicio de radicalización venido con la identificación
con la voluntad de revolución inmediata del bakuninismo, con sus evocaciones
de una sociedad emancipada de todo tipo de « autoridad », y no como forma de
materializar en términos sociales más que ideológicos y políticos la perspectiva de
ruptura de aquellos grupos obreros que se pueden calificar de « antitautoritarios »
y que se sintieron concernidos por los temas generales del anarquismo. El presente
trabajo quiere mostrar que la defensa prioritaria del instrumento organizativo lo
fue de una identidad que se afirma en primer lugar como social y que genera una
construcción ideológica duradera. Entrar en la llamada « política propia »19 suponía
una constante preocupación por afirmar lo obrero construyéndole un espacio a la
vez social y discursivo.
La necesidad, tantas veces repetida, de defender las organizaciones puede
considerarse, en efecto, como la prolongación de aquella cultura política obrera
que había empezado a elaborarse en los años 1860 y que cobró fuerza cuando el 144
republicanismo no consiguió convencer de su compromiso con una sociedad libre
y justa a unos colectivos obreros que dudaban de él y que pronto iban a tener a
mano los esquemas bakuninistas, tanto más convincentes cuanto que parecían
haber llevado a la constitución de un organismo nacional que se presentaba como
exclusivamente obrero. Pero la inflexión, ya señalada, del proyecto bakuninista
que los militantes libertarios más cercano a él no consiguieron imponer en su
globalidad, suponía, según el discurso de la FRE, que todo había que tener lugar
dentro del espacio obrero mientras que la lógica del primero lo llevaba a pensar
también en el conjunto de la sociedad. El proceso de conversión de la defensa
obrera en perspectiva política por la idealización que de ella se hace, tal vez pueda
interesar una revista cuyo objeto son « os mundos do trabalho ». Confirmaría
que éstos no fueron sólo un contexto en una fase en la que el tema de la ruptura
política estaba en la orden del día. Al fin y al cabo, la transformación, aunque
relativa en el caso español, de la situación de los asalariados y de su cultura del
trabajo tiene consecuencias de orden político. Es tanto menos secundario que por
toda la trayectoria del anarquismo español se siguió planteando la cuestión de las
relaciones entre los componentes « sindicales » y los componentes « ideológicos ».
Dar cuenta del peso que llegaron a alcanzar las elaboraciones consideradas propias
de los obreros puede sugerir preguntas para otros episodios de su historia.
Evocar la cultura política del anarquismo español supone por consiguiente
tomar en cuenta una doble presencia, ideológica y de defensa obrera. No sólo
porque a veces genera tensiones internas sino porque la inserción en la segunda
es la que dibuja durante varias décadas no sólo modelos de acción sino un discurso
18 Tal vez porque, como veremos, la función no se distingue del proyecto político hasta que la prensa de
información recorra al término usado en otras partes, en Francia en particular.
19 Cf. : La Emancipación del 10-VIII-1872. « Creemos que la Internacional tiene una política propia distinta de
todas las de los partidos ».
145 con los conflictos concretos como con las iniciativas de acción, han de examinarse,
aunque de modo rápido, por un periodo más largo (1890-1902). Las divergencias
suscitadas por la emergencia de « huelgas generales » a partir del cambio de siglo
pueden ser consideradas, por ejemplo, como un indicio fuerte del impacto en la
corriente libertaria, entendida en sentido amplio, de los modelos obreros que el
estudio intenta analizar.
20 La Solidaridad de Madrid sale el 15-I-1870. La Federación de Barcelona empieza el 1-VIII-1869 como « organo
del Centro Federal de las Sociedades Obreras » para transformarse en órgano antiautoritario.
21 La Solidaridad, 17-IX-1870.
22 Idem, 5-III-1870
23 Idem, 12-III-1870.
24 Ibidem.
25 Idem., 5-III-1870
26 La Emancipación, 24-12-1871.
27 Ibidem.
28 La Emancipación, 16-V-1872
147 oponer a las dos clases que en realidad existían. El rasgo, al menos como tema,
va a sobrevivir largo tiempo en los discursos anarquizantes. Para el periodo aquí
tratado, conservaba su intensidad veinte años después de la fundación de la
FRE30. Pero no siempre impedía que, incluso en las proximidades de la corriente
libertaria apareciesen tentaciones para aprovecharse de alguna disponibilidad de
las instancias locales o provinciales para obtener concesiones patronales. En las
conductas posteriores de los componentes sindicales de la corriente libertaria
pudo haber distancia con respecto al modelo y alguna vez alguna moderación
discursiva. En cambio, en la vida pública de la FRE, la exigencia se expresó de modo
drástico. Se trataba de dejar claro que las instituciones y las instancias políticas
no tenían otra razón de ser que la de defender los intereses burgueses, lo cual
sólo podía alcanzarse situándose en un campo exclusivamente social en el que
se enfrentarían sólo obreros y patronos. El modelo de huelga quería demostrar
precisamente que sólo existían dos espacios, el de los explotadores y el de los
explotados, el del trabajo frente al del capital.
Identificar la defensa económica y social concreta con la perspectiva de
una acción emancipadora, suponía una necesidad de resultados para la primera.
Resultó imposible, sin embargo, que, a no ser en unas ocasiones excepcionales,
la federación consiguiese ayudara los huelguistas que lo necesitasen. Para
constatarlo no fue necesario esperar el crecimiento de la conflictividad en los
años 1872-1873. La vía elegida sólo podía funcionar modificando casi totalmente
las prácticas. Antes de que la federación hubiese acumulado unas reservas
importantes no podía intervenir prácticamente en ningún conflicto –algo bastante
lejos, por consiguiente, de un objetivo visible. Durante un breve espacio de tiempo
(1870-1871) la imposibilidad de ayudar a los huelguistas pudo ser atenuada por
el gran cambio que anunciaba la existencia de la federación pero no cuando las
31 La Emancipación, 11-V-1872 « […] se conseguirá preparar las huelgas científicamente y preparar su triunfo
antes de llevarlas a cabo, haciendo de este modo morder el polvo a la burguesía capitalista ». Es corriente
la convicción que la estadística puede ser un arma decisiva (Cf.: MYSERWICZ, L. « Karl Marx, la Première
Internationale et la statistique, ». Le Mouvement Social. n 69, octobre décembre déc. 1969, p.51-84).
32 Era la aprobada en la Conferencia de Valencia de 1871. Editada bajo el título Organización social de las
secciones obreras de la FRE, Valencia, 1871.
33 La única contestación bastante larga fue la de un delegado inglés en la conferencia, Motterhead. Además
de subrayar que en una caja de resistencia universal las decisiones escaparían a los afiliados añadió : « […]
tienen los obreros un derecho no enajenable, el de rebelarse y perciben y juzgan mejor que el Consejo
149
sus detalles, que más bien responden a las necesidades del porvenir que
a las del presente; más bien una organización positiva que negativa; una
compañía que recauda y distribuye, que da cuentas y pasa balances, que
suprime o añade artículos del reglamento; que un grupo revolucionario
que se agita en virtud de un nuevo principio34.
Pero durante sus dos últimos años, las direcciones de la federación, a pesar
de tener que confesar cada vez más su impotencia frente a las peticiones de ayuda
de muchos colectivos que habían entrado en conflictos, siguieron insistiendo en la
necesidad de dar prioridad a la defensa de la federación contra lo que interpretaban
como una ligereza de los colectivos que decidían ponerse en huelga35. La culpa
no se echaba al sistema de ayudas condicionales sino a la incomprensión de
unos obreros que sólo esperaban que la federación cumpliera con la solidaridad
anunciada. No estaban a la altura del gran compromiso de la FRE :
Es muy sensible que sólo con el aliciente de la huelga entren los obreros a
formar parte de Nuestra Asociación (sic) eminentemente revolucionaria,
cuyo fin es mucho más grande y no adopta ésta sino como remedio para
mejorar por lo pronto la miserable situación de sus afiliados. La práctica
nos ha mostrado que todos aquellos que son internacionales por la huel-
ga y que no ven otra cosa, dejan de serlo cuando pierden una36.
Federal la necesidad de hacer una huelga ; el consejo sería impotente para impedírselo además de no
estar dispuesto a entrar en una lucha con los patronos para conservar su haber » (FREYMOND, J. (dir.). La
Première Internationale. Recueil de documents. Genève: Librairie Droz, 1962, tomo 2, pp. 178-179).
34 “Cartas a los trabajadores del Alto y Bajo Ampurdán”. La Federación. Carta IV (Barcelona, 14/09/1872).
35 SERRANO; SAS. Op. cit., v. V a VII.
36 Contestación del 26-V-1873. En: SERRANO; SAS. Op. cit, tomo IV, p. 287.
Se publica este texto cuando está cerca de acabarse la vida publica de la FRE
y con pocas perspectivas frente a la inflexión autoritaria de la República, la cual
anuncia su fin. A partir de entonces la huelga general casi no se va a mencionar
como tal durante casi veinte años. Serán necesarios casi diez más para que sea
asumida concretamente, y con las palabras habituales, como modalidad de acción
mientras existía, al menos a nivel de discurso, en otros espacios nacionales.
Un estímulo venido de fuera del antiautoritarismo la hizo aparecer de nuevo.
Fue la « fiesta del trabajo », primera gran iniciativa de la nueva Internacional (la
« Segunda ») en su congreso fundador de París en 1889. La modalidad propuesta
era la manifestación de masas que las organizaciones obreras habían de llevar
cada primer día de mayo. Con ella se ejercerían fuertes presiones a nivel social y
político para conseguir medidas legales de protección social y, sobre todo, una
disminución de la jornada de trabajo con las « ocho horas ». Para la sensibilidad
anarquista era necesario mostrar su diferencia tanto a nivel de la perspectiva de la
acción –para la nueva Internacional el estado era un interlocutor que debía tomar
medidas legislativas– como de su forma –los socialistas proponían un movimiento
más visible por su intensidad que por su duración, excluyendo las situaciones de
todo o nada en las que la corriente libertaria veía la posibilidad de entrar en el
151
enfrentamiento definitivo.
Si sólo entonces se llegó a incluirla en las perspectivas fue porque las reglas
de la FRE en materia de organización y de acción habían significado bastante
más que una función práctica sin muchas consecuencias ideológicas. El que la
línea inicial haya tenido grandes dificultades, manifiestas en la impotencia para
dar credibilidad al espacio obrero que habían de constituir las organizaciones no
puede hacer olvidar que el intento existió y duró más allá de la vida pública de
la FRE. Es decisivo al repecto el testimonio de la correspondencia dirigida a las
secciones ya que las contestaciones subrayan la necesidad de proteger antes que
nada la organización, espacio obrero separado que constituye un objetivo en sí
mismo. A pesar de la falta de éxitos concretos se consolidaron unos esquemas que
fueron constituyendo una cultura política obrera algo distinta, como ya se dijo, de
la propiamente bakuninista. Dejarla de lado significaría seguir prescindiendo tanto
de las relaciones entre proyectos de cambio social y modalidades de acción de los
diversos sectores obreros como de las preocupaciones por estructurar un espacio
obrero en el que los colectivos de la clase consiguieran situarse en un marco político
en el que los componentes populares querían entrar de forma autónoma –era un
objetivo bastante compartido desde que la corriente libertaria había asomado.
Intentar conseguirlo hacía emerger unas situaciones contradictorios a las que se
contestaba con los modelos y los discursos que acabamos de evocar.
Se consideraba como absolutamente prioritaria a la organización porque
se la veía como un espacio ideal y unívoco fuera de los espacios concretos de la
vida política. Convertirlo en el de los obreros suponía que el intento de controlar
las huelgas no fuera sólo verbal –ya se han dado ejemplos de que no lo fue. Si
una elaboración tan ambiciosa tuvo lugar fue porque la defensa de un espacio
estrictamente obrero, con toda la alternativa que representaba frente a las
perspectivas republicanas, llegó a ser una construcción ideológica articulada y
40 La Federación, 27-IX-1873.
41 La insistencia en la proximidad de la FTRE con respecto a la FRE en los artículos del militante antiautoritario
Francesc Tomàs i Oliver (1850-1903) en su serie “Apuntes históricos. Del nacimiento de las ideas anarco-
colectivistas en España”, publicada en La Revista Social entre el 27 de diciembre de 1883 y el 15 de enero de 1885.
42 LORENZO, A. Op. cit., p. 287
43 NETTLAU. Op. cit., p. 52-91.
44 Cf.: SERRANO; SAS. Op. cit., v. IV a VII.
153 asalariados más informales o precarios. Más que otros podían creer en las virtudes
de la organización puesto que la gran mayoría de las iniciativas de defensa tenían
lugar alrededor de un oficio. Incluso cuando tardaban en formalizarse a través
de una « sociedad » de defensa, los trabajadores de una especialidad solían tener
una vida de comunidad de la que se pueden citar muchos ejemplos46 –además en
los conflictos los obreros de un oficio pocas veces salían de los límites del suyo47.
Asoma, a veces, en los discursos la intención de atraer primero a los más educados,
a los que ocupan empleos que suponen un largo aprendizaje –su duración era el
argumento de los obreros de oficios para defender su nivel de sueldo. Es muy
significativo también que ello no impide que se considere como única la clase
obrera y que se evoque su versión española como si fuera prácticamente la
misma que las de los paises más avanzados. Lo necesitaba la función que cumplía
el mundo de los asalariados manuales en el proyecto radical de separación con
« la política burguesa », el cual implicaba que lo obrero constituyese un actor
exclusivo y sin matices. Las experiencias obreras seguían recordadas, sin embargo,
a nivel implícito ya que el argumento decisivo de la separación se apoyaba en la
experiencia cuotidiana de lo obrero –esto es de las formas, y del discurso, que
tomaba su defensa social.
Ese apego ambiguo a la unidad parece dar cuenta, al menos en parte, de
la relación de la sensibilidad anarquista, con la renovación de sus referencias
45 LORENZO. Op. cit., p. 107. Las otras dos corrientes son « la positiva », se refiere a las organizaciones prag-
máticas del textil catalán que practican la negociación, y la política, la cual deseaba un acercamiento con
el partido republicano federal. En la introducción de su Antología documental del anarquismo español, F.
Madrid y A. Venza (Fundación Anselmo Lorenzo, Madrid, 2001, v. 1, pp. 26-28) también consideran que si
consiguió constituirse el « entramado organizativo » de la FRE fue porque hubo dentro de ella un acuerdo
global a su respecto.
46 En F. Largo Caballero (Correspondencia secreta, Madrid, Nos, 1961) muchos ejemplos acerca de los
« estuquistas » de Madrid.
47 Cf.: RALLE, M., « Las huelgas antes y después del Primero de mayo ». Estudios de Historia Social, n. 54-55,
1991, p. 32-34.
ideológicas en los años 1880. Las historias políticas del anarquismo español
señalan que entonces no sólo se interesó por las nuevas propuestas transmitidas
por los escritos de Malatesta, Kropotkine, Grave, etc. sino que sus publicaciones
tendieron a identificarse al anárquico-comunismo, y en particular al segundo
de los tres, alejándose del « colectivismo » con el que se definía a Bakunin, o al
menos matizándolo48. No es secundario que los anarquistas españoles imaginaran
la sociedad futura no como la que permitiría que cada productor recuperase el
« producto íntegro » del trabajo, según un esquema proudhoniano admitido por
Bakunín, sino que intentasen encontrar los medios para que, además de los obreros
que producían ganancias, la sociedad entera recibiese sus efectos49. Se enriqueció
el discurso libertario y ello contribuyó a que el movimiento estuviese un poco más
presente a nivel intelectual –lo demuestran los dos « Certámenes socialistas »,
el primero en 1885 y el segundo en 188950. El que se intentara corrresponder a
las definiciones que estaba usando el movimiento libertario a nivel internacional
proporcionaba un estatuto intelectual frente a la emergencia, tardía, en España de
una vertiente marxista que había demostrado, en otros paises, su capacidad tanto
para articular su presencia política e intelectual como para disputar el espacio
público con propuestas políticas y prácticas sociales. En España, sin embargo, los
nuevos postulados asomaban en un periodo en el que ni las tensiones políticas ni
los débiles movimientos sociales proporcionaban muchos ejemplos para renovar
los comentarios sobre la sociedad. La política estaba controlada por el sistema
instalado por el nuevo régimen. Los intentos republicanos sólo se limitaron en los
años 1880 a unos esbozos de pronunciamentos de simpatías republicanas como el
del « brigadier » Villacampa en 1886, carente de movilización popular y rapidamente 154
abortado. Ese relativo vacío puede explicar que muchos de los militantes libertarios
más activos, más bien que intentar dar más consistencia a su identificación con
las nuevas definiciones que habían emergido en el movimiento, insistieron en su
pertenencia global a una « anarquía sin adjetivos », una fórmula a menudo repetida51.
La actitud es lógica sobre todo si la relacionamos con aquella preocupación del
conjunto auntiautoritario por afirmar en primer lugar la pertenencia a lo obrero,
lo cual suponía que se subrayara la necesidad de un espacio político y discursivo
que lo fuese exclusivamente. Al fin y al cabo era también una manera de atenuar la
preocupación por los debates de orden ideológico y por mantener una definición
de orden social de lo obrero.
155 condición social les daba la capacidad de establecer unas relaciones justas en su
espacio organizativo.
En 1868, los temas del republicanismo federal ya tenían una trayectoria
consistente. Los habían difundido personalidades como F. Garrido y F. Pí y Margall.
Intentaban responder a las interrogaciones que sobre lo político alimentaba un
estado débil y autoritario a la vez, el cual se preocupaba más por controlar, con
dureza, la sociedad que por construir una adhesión social a una forma política. Ello
reforzó las actitudes de rechazo popular a los instrumentos que se consideraban
propios del estado. El régimen que sustituyó a la República, una monarquía semi-
autoritaria y semi-parlamentaria, acentuó, él también, los motivos de desconfianza
hacia un estado que los había suscitado a pesar de su inflexión liberal despues de
1833. Las fuerzas políticas de intención democratizadora también se encontraban
afectadas por parecer cómplices del edificio institucional. La relación privilegiada
que los federales querían mantener con el conjunto de las variantes republicanas
hacía difícil que su construcción política consiguiera conservar todo su impacto
entre los componentes obreros que ya miraban más hacia la separación53. Sin
embargo, el que la perspectiva de los federales de construir un poder político desde
la base puede haber contribuido a que se impusiera como forma de relaciones en
muchos colectivos obreros. Proponer que el cambio político se articulase a partir de
las unidades de base consideradas como una alternativa global al sistema político
era un tema muy frecuente desde casi veinte años : F. Garrido ya había publicado
en 1855 un folleto en este sentido, La república democrática, federal, universal,
tantas veces reeditado que hay como una continuidad de su lectura54. Variante del
federalismo proudhoniano actua en sentido antipolítico a pesar de la intención de
su autor. También lo hicieron aquellas obras de Proudhon traducidas por el catalán
156
socorro, amparo, de confraternidad, son el santuario de la civilización,
y hay que respetarlas más que a los santos que se adoran en los altares.
Aquí hay ídolos, materia, formas, ya vanas ya impotentes. Allí hay esen-
cia, hay alma, hay espíritu55.
157 que desempeñe este tipo de papel60– ni de preocuparse por ejercer un control, a no
ser el de orden público que obligaba a las asociaciones a que pusieran sus libros de
actas a disposición de los gobiernos civiles. Se dan casos de rechazo de eventuales
cajas patronales de enfermedad que combinaban intentos de integración en el
lugar de trabajo y modalidades de exclusión de los obreros considerados como
rebeldes –en los años 1880 parecen estar en declive61. De hecho el socorro mutuo
había llegado a ocupar cierto espacio que los socios podían considerar como
propio y prometedor.
Es significativo que la mayoría de las « sociedades », de socorro, y
particularmente las nuevas, tendieran a borrar de sus estatutos el paternalismo,
expulsando a los socios no obreros y a suprimir las referencias religiosas, incluso
en cierta medida las rituales –lo dicen sus nombres y la preocupación por formas
de gestión que vienen a ser las de una democracia directa62. La hacen posible
las pequeñas dimensiones de muchas, entre 100 y 300 miembros. Sería atrevido
atribuir dicha forma a una intención : es un límite para que la asociación sea
operativa. La gran mayoría permanecieron independientes a pesar de algunas
llamadas, esencialmente en Barcelona, de personalidales moderadas que insistían
en los ahorros de gestión que supondría una organización más centralizada de las
sociedades de socorro –el propósito era que una parte de ellas fuese absorbido por
58 El esquema para los tipógrafos de Madrid en MORATTO, Juan José. La cuna de un gigante. Historia de la
Asociación General del Arte de Imprimir, Madrid, 1925, p. 40.
59 Cf.: RALLE, M. « Protección mutualista e identidad obrera » En : CASTILLO, S. Solidaridad desde abajo…,
p. 429-430.
60 Para la situación francesa, Cf. : GIBAUD, B. De la mutualité à la sécurité sociale. Conflits et convergences.
Paris: Editions ouvrières, 1986, p. 44-53.
61 Las iniciativas son llamadas Caixas dels morts por obreros de fábricas catalanas ya que los dueños
intentaban atraer a los obreros incluyendo en el socorro el pago de los funerales. Hay testimonios en El
Productor, 17-VIII-1888 y 19-X-1890.
62 Incluso cuando llevan nombres de santos . « Toda idea política o religiosa queda rechazada » afirma el
articúlo primero del Montepío de San Miguel Arcangel de San Martí de Provensals (Archivo del gobierno
civil de Barcelona, legajo n.° 830)
las redes caritativas que intentaban actuar en los medios obreros 63. En todo caso
las modalidades de las « asambleas » implicaban la igualdad de los socios incluso en
el acceso a los cargos cuya necesaria rotatividad subrayaban los estatutos. Incluso
si bastantes dificultades concretas impedían que el funcionamento fuese tan ideal
–el analfabetismo era un obstáculo frecuente– el que la iniciativa aparentemente
modesta del socorro asumiera ese tipo de modelo proporciona otro indicio de tal
exigencia en los sectores populares.
De las tres o cuatro mil sociedades de socorro mutuo que se constituyeron
entre 1880 y 1910 –antes de la primera fecha, salvo en Cataluña, eran pocas e la
primera fecha – se han conservado varios centenares de folletos de estatutos. El
que se materializaran bajo una forma impresa puede ser una primera señal de lo
que llegaron a representar para su público. Estatutos o preámbulos reproducen, en
algunas líneas, la temática ya señalada. De hecho junto con la perspectiva concreta
de la función de socorro aparentemente racionalizada y descrita en un lenguaje
funcional y laicizado64, evocan la capacidad infinita de la asociación de la que una
caja de socorro y las cuotas que la alimentan constituyen la primera prueba. Con las
funciones que se podrían añadir al socorro sería posible desembocar en la liberación
social. Esta es más que implícita ya que junto con la extensión de las fuentes posibles
de dinero (gracias a la venta de bebidas, a una asociación de diversión, a una
cooperativa de consumo, etc.) se podrían realizar otros fines : ayuda a la invalidez,
al paro, a la educación, a las diversiones, etc.. Algunos ya imaginaban que las
reservas podrían servir algún día en huelgas importantes. El carácter público de los
estatutos prohibía que figurase en ellos pero es bastante conocido que más tarde
parte de las reservas de sociedades de socorros paralelas con secciones sindicales, 158
en la UGT en particular, fueron utilizadas a veces para ayudar a los huelguistas del
oficio65. En lo que se refiere a la ampliación ideal de las funciones los ejemplos son
muy numerosos y se encuentran en los puntos más diversos del territorio español.
En 1899, es decir bastante después de la ruptura representada por la FRE, en estos
términos presenta sus objetivos una sociedad del municipio andaluz de la Villa de
Torredonjimeno (de la andaluza provincia de Jaén) :
63 ALBÓ, R; MARTÍ, Cassimir. Barcelona caritativa, benéfica y social. Barcelona, 1914, 2 v., t.2, p. 271
64 La ayuda monetaria cuotidiana suele corresponder a lo que supondría pérdida de una jornada de trabajo.
No está previsto que pueda durar más de un mes o dos.
65 El fenómeno es corriente en la Segunda República (Cf.: SANTOS, Juliá. Madrid, 1931-1934. De la fiesta
popular a la lucha de clases. Madrid : Siglo XXI, 1984, p. 191-220).
66 Es muy significativo que en la misme fase se encuentren muchos estatutos ambiciosos en Extremadura,
Andalucía, y Nueva Catilla.
67 El Obrero, 18-III-1866.
68 « Asóciate, obrero alcoyano, que esa es tu salvación. Si no tienes instrucción en la sociedad la encontrarás ;
si abusan de tí, en la sociedad, si no hoy, más adelante hallarás justicia ; si te encuentras enfermo, en la
sociedad tendrás socorro ; si tienes hijos, en la sociedad aprenderán a ser hombres ; y hasta tu esposa,
quien comparte todos tus sufrimientos, debes inducirla a que se asocie con sus compañeras para que en
su día goce el libre albedrío, no sea humillada y maltratada injustamente, como lo es hoy por la corrupción
de nuestras degradantes costumbres. Sí, obrero alcoyano, hay que olvidar esas costumbres rancias y
repugnantes ; entra en el camino de la civilización, que las costumbres actuales son como un edificio viejo
y demolido que va a desplomarse al peso de sus años » (La Revista Social, 04-VII-1881).
69 SEWELL, W. H. Work and Revolution in France., the Language of Labour from the Old Regime to 1848,
Cambridge : University Press, 1980 : « El movimiento obrero de 1848 era socialista en la medida en que
imaginaba un estado construido desde abajo hasta arriba en las instituciones del trabajo […] los gremios
eran por consiguiente las instituciones públicas a las que competía el poder de organizar el trabajo de
manera asociativa » (p. 355).
70 JULLIARD, Jacques. « Introduction », Autonomie ouvrière, Paris: Gallimard-Seuil, 1988, p. 9-40.
71 Cf.: RALLE, M.« La Emancipación y el primer grupo marxista español : rupturas y permanencias » En:
ELORZA, A.; RALLE, M. La formación del PSOE. Barcelona: ed. Crítica, 1989, p. 94-110.
72 En su encuentro con Sagasta, después de la manifestación del Primero de mayo de 1890, Iglesias le dice
« Fijándonos en la representación efectiva que tenéis –la de la clase que explota al pueblo trabajador… »,
El Socialista, 9-V-1890.
73 Un análisis global en FUSI, J. P. Política obrera en el País Vasco (1880-1923), Madrid: ed. Turner. Para las
huelgas de mineros de principios de los años 1890, cf.: RALLE, M. « ¿ Divergencias socialistas ? Madrid y
Bilbao ante el conflicto minero de 1891 ».En: RALLE, M.; ELORZA, A. La formación…, p. 186-240.
74 Acracia, 06/1888, p. 622. Edición facsímil, Barcelona: Leteradura, 1978.
75 Lista en El Productor del 25-V-1888. Son unas treinta secciones de oficios, prácticamente todas de Bareclona.
76 La conocida y visible huelga de los tipógrafos de Madrid (febrero marzo de 1882), primer gran conflicto en el
que participó la sensibilidad socialista, no presentó novedad en las reivindicaciones ni en la marcha del conflicto.
77 Sobre la rivalidad en este campo de las organizaciones sindicales del Madrid de la II República, consúltese el
análisis fundamental de SANTOS, Juliá. De la fiesta popular a la lucha de clases, Madrid: Siglo XXI, 1984, p. 221-265.
de defensa con el proyecto a largo plazo. Cualquiera que fuera el papel de esa
reivindicación en la huelga de los albañiles, El Productor consideró ejemplar que la
solidaridad sustituyera las reivindicaciones habituales:
163 cierran sus fábricas o talleres, y verá cómo aquellas siguen su curso na-
tural, sin transgresiones de la ley, a pesar de estar hecha ésta en favor
de los que poseen y de los desposeídos79.
78 El Productor, (06/08/1888).
79 El Productor, (19/08/1887).
86 En Valencia el pensamiento liberal se había mostrado activo en la defensa de formas –las clásicas– de
asociación. Es conocida la defensa de las hermandades por PUJOL, Eduardo Pérez. La cuestión social en
Valencia, Valencia: Imprenta José Doménech, 1872.
87 En lo que se refiere a la preocupación de Blasco Ibañez por controlar ciertas sociedades obreras de Valencia,
véase REIG, Ramir. Obrers i ciutadans. Blasquisme i moviment obrer. València: I. Alfons el Magnànim, 1982,
p.249-254.
88 A propósito de los excepcionales meetings de mujeres de abril de 1891, El Productor subraya que las
oradoras apoyaban las ocho horas para sus maridos (30/04/1891).
89 «Huelga general» según Sagués de las Tres Clases (El Diluvio, La Publicidad, de Barcelona, 30-03-1890);
«paro general» en El Obrero (Barcelona), semanario de las Tres Clases, 04-04-1890
90 Ya, en 1892, la prensa local oye entre otros gritos (« ¡ Mueran los burgueses ! », « ¡ Viva la revolución
social ! ») alusiones a la huelga general (El Noticiero Bilbaino, 30-I-1892).
91 En el caso del gran conflicto que los socialistas quisieron en vano hacer ejemplar –la huelga des las fábricas
Larios en Málaga (abril de 1894) –, no se evocó la posibilidad de llamar a una huelga general.
92 Era la continuación de la organización catalana Solidaritad obrera cuyo manifiesto inaugural salió, el 25-VII-
1907.
93 En una sesión del parlamento en la que se debate de la huelga de Barecelona, el presidente del consejo,
Sagasta admite para los once primeros meses de su ministerio (hasta principios de febrero de 1902) un
número de 600 huelgas. El movimiento se acentua en lo que queda de año (Diario de Sesiones de Cortes,
sesión del 18-II-1902). Como término de comparación, en el año 1890, excepcional con respecto a los
anteriores y a los pôsteriores, el número de huelgas hubiera sido de 267 (Cf.: RALLE, M. « Las huelgas
antes y después del Primero de Mayo (Los conflictos españoles entre 1886 y 1864 : la irrupción del Primero
de Mayo », Estudios de Historia Social. Madrid. n. 54-55, año 1991, p. 68)
Ferrer apoya y, en gran medida, orienta el segundo periódico, haciéndose eco del
debate que tiene lugar a nivel internacional precisamente sobre la huelga general y
reproduciendo bastante de lo que escriben los órganos del llamado « sindicalismo
revolucionario » francés98.
Detrás de la nueva visibilidad que, con ocasión de la huelga general, adquiría
en Barcelona el conjunto al que pertenecía un sindicalismo con recuerdos
antiautoritarios y los círculos libertario más ideológicos99, subsistían sin embargo
las tensiones. Indudablemente hay más energía en la lucha de los huelguistas y
asumen objetivos más ambiciosos, pero éstos se siguen expresando en términos
reivindicativos incluso si insisten más en el papel de una amplia solidaridad que
deja de obedecer a las pautas formales de antes. Así lo dice un manifiesto de los
« metalúrgicos » en huelga :
General, el 15-XI-1901.
98 No es el caso de PERE, Gabriel. « Sindicalismo y huelga ». En : BONAMUSA, Francesc (ed.). La Huelga
general, Ayer, n. 4, 1991, Madrid: Marcial Pons, 1991, pp,33-34.
99 Cf.: CALLEJA, G. Op. cit., p. 304 y ss.
100 Citado por RIQUER, Borja de. Lliga regionalista: la burguesía catalana i el nacionalismo (1893-1904).
Barcelona: Edicions 62, 1977, p. 344.
101 El uso de « huelga general » para conflictos que antes no se definían como tales se confirma en
el recurso más frecuente a la fórmula. En, 1903, en las minas de Bilbao, la huelga de los mineros se
define de entrada como « huelga general » (cf.: Instituto de Reformas Sociales. Informe referente a
las minas de Vizcaya, Madrid, 1904). Un relato del enfrentamiento en FUSI, J. P. Op. cit., p. 230-243.
102 La Huelga General. Barcelona, 25/01/1902.
quería introducir con las conductas consideradas sólo sociales como con la relativa
permanencia de éstas. Un manifiesto anarquista distribuido en los días clave del
conflicto barcelonés ya le daba como objetivo la « revolución social » :
De los que trabajan que nadie se mueva, que todos sepan matar el ego-
ísmo de los vampiros acaudalados, soportando el carecer en silencio,
el hambre para todos. [...] Por consecuencia, alto; que todos efectúen
el paro del trabajo desde mañana mismo, y demostraremos a la clase
directiva y capitalista que sin los obreros, a quienes desprecian, no es
posible la vida social. ¡Viva la revolución social!103!
Recebido em 01/05/2013
Aprovado em 05/06/2013
Resumo: Este artigo pretende analisar o contexto de formação de uma classe ope-
rária industrial na década de 1940 no extremo norte amazônico, atual estado do
Amapá, a partir das noções de trabalho, cidadania e sociedade estabelecidas du-
rante o Estado Novo. Partindo dessa realidade específica, pretende-se demonstrar
como uma população ainda fora dos ditames de produtividade e regularidade ca-
pitalistas foi integrada a tais exigências, associadas aos objetivos de desenvolvi-
mento propostos como alternativa ao que era considerada uma região atrasada,
econômica e culturalmente, em relação aos grandes centros do país.
Abstract: This article aims to analyze the context of forming an industrial working
class in the 1940 sin the far northern Amazon, the current state of Amapá, from the
notions of work, citizenship and society established during the Estado Novo. Ba-
sed on this specific situation, it is intended to demonstrate how a population still
outside the dictates of capitalist productivity and regularity was integrated to such
requirements, associated with development objectives proposed as an alternative
to what was considered a backward region, economically and culturally, in relation
to major centers of the country.
* Algumas das reflexões neste artigo são resultado da pesquisa apresentada na dissertação intitulada “Os
mineiros da floresta: sociedade e trabalho em uma fronteira de mineração industrial amazônica (1943-1964)”,
defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social, da Unicamp, no dia 14 de março de 2011, sob
a orientação do Prof. Dr. Fernando Teixeira da Silva. Parte da pesquisa foi financiada por uma bolsa de
Mestrado do CNPq. Agradeço as considerações feitas ao trabalho acima citado pelos professores Alexan-
dre Fortes, Claudio Batalha, Michael Hall e Paulo Fontes.
** Universidade Federal do Amapá. Doutorando na Universidade Estadual de Campinas
1 Não era raro ver os presidentes da Província do Pará justificando a incipiente agricultura local devido
às “facilidades” do extrativismo de subsistência e o envolvimento de grande parte da população com
a extração da borracha. Cf.: Pará. Relatório apresentado ao exm. senr. Dr. Francisco Maria Corrêa de Sá
e Benevides pelo exm. senr Dr. Pedro Vicente de Azevedo por ocasião de passar-lhe a Administração da
Província do Pará, no dia 17 de janeiro de 1875. Belém: Typ. de F. C. Rhossard, 1875, p. 60. Sobre o assunto
ver: QUEIROZ, Jonas Marçal de. Artífices do próspero mundo novo: colonos, migrantes e imigrantes em
São Paulo e no Pará (1868-1889). Tese (Doutorado em História Social), USP, São Paulo, 2005, p. 39-55.
2 WEINSTEIN, Bárbara. A borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850-1920). São Paulo: HUCITEC-
EDUSP, 1993, p. 30-31.
3 O que não significa que o seringueiro não pudesse, em alguns casos, ter ou constituir família nos seringais.
Essa família poderia até mesmo ajudá-lo em outras atividades produtivas ou de subsistência. Cf.: OLIVEIRA
FILHO, João Pacheco de. O caboclo e o brabo. Notas sobre duas modalidades de força de trabalho na
expansão da fronteira amazônica no século XIX. Encontros com a civilização brasileira. v. 11, 1979.
4 Cf.: SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle Époque (1870-1912). Belém: Paka-Tatu, 2002.
5 Estabelecimentos que forneciam principalmente alimentação e ferramentas aos seringueiros, por meio de
um sistema de crédito, mas com valores hiperinflacionados em relação ao preço comum nas cidades.
6 CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha (Belém 1870-1920). Tese
(Doutorado em História), USP, São Paulo, 2006.
7 “A Noite, 7 abr. 1921”, apud ALICINO, Padre Rogério. Clevelândia do Norte. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército, 1971, p. 86.
8 ROMANI, Carlo. Clevelândia, Oiapoque ― aqui começa o Brasil: trânsitos e confinamentos na fronteira com
a Guiana Francesa (1900-1927). Tese (Doutorado em História), Campinas: IFCH - Unicamp, 2003, p. 108-120.
Sobre o impacto da seca de 1915─1919 no Ceará, e seus personagens sociais e políticos durante a criação
das frentes de serviço do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS, ver: CASTRO, Lara
de. “Avalanches de flagelados” no sertão cearense: retirantes-operários e engenheiros na lida das obras
contra as secas. Fortaleza: DNOCS/BNB-ETENE, 2010.
9 O nome “Cleveland” teria sido uma homenagem ao presidente estadunidense Grover Cleveland, em vir-
tude do alinhamento da diplomacia brasileira com aquele país, objetivando apoio nas questões de limites
internacionais com potências europeias, entre o final do século XIX e início do século XX. A existência de
uma cidade intitulada Clevelândia, no Paraná, teria motivado a mudança do nome da colônia instalada no
Oiapoque para “Clevelândia do Norte”. Cf.: SAMIS, Alexandre. Clevelândia: anarquismo, sindicalismo e
repressão política no Brasil. São Paulo: Imaginário, 2002, p. 158-160.
10 PINHEIRO, Paulo Sérgio. Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil. 1922-1935. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 95. Sobre Clevelândia, ver também: BRITO, Edson Machado de. Do sentido
aos significados do presídio de Clevelândia do Norte: repressão, resistência e a disputa política no debate da
imprensa. Dissertação (Mestrado em História), PUC/SP, 2008. Para uma análise sobre “a vida nas prisões” a
partir da repressão do Estado aos diversos tipos de movimentos sociais, operários, militantes e segmentos
populares de forma geral, na primeira metade do século XX, ver: FERREIRA, Jorge. Trabalhadores do Brasil:
o imaginário popular. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 99-122.
11 ROMANI, Carlo. Clevelândia, Oiapoque — aqui começa o Brasil. Op. cit., p. 383.
14 IBGE. Tipos e aspectos do Brasil: castanhais. Revista Brasileira de Geografia, jul.-set. 1943, p. 487-489.
15 IBGE. Tipos e aspectos do Brasil: seringueiros. Revista Brasileira de Geografia, abr.-jun. 1942, p. 127.
suas atividades de acordo com o nível dos rios e com o índice pluviométrico de
cada região em determinadas épocas do ano. Assim, durante o período das chuvas
― entre os meses de janeiro e abril — os trabalhadores apanhavam as castanhas
nos médios e altos cursos dos rios; e na estiagem ― entre os meses de setembro
e dezembro – dedicavam-se à extração do látex das seringueiras, nos baixos cur-
sos. Nos meses intercalados ― maio a agosto — coletavam sementes oleaginosas
como murumuru, ucuuba, andiroba, patoá, copaíba etc.16
Após a coleta dos produtos, os trabalhadores os negociavam com o serin-
galista (no caso da borracha) ou com o barracão (casa de comércio situada estra-
tegicamente nos pontos de parada obrigatória das cachoeiras ou bocas dos rios),
no caso das castanhas. Porém, na prática, os barracões negociavam diversos pro-
dutos trazidos pelos caboclos, como por exemplo, peles, farinha e látex também.
Tanto os barracões quanto os seringalistas negociavam com os produtores
diretos por meio do sistema de aviamento. Esse sistema consistia no repasse an-
tecipado de mercadorias ou ferramentas, em forma de crédito, aos produtores.
Estes, por sua vez, tinham o valor do seu débito compulsoriamente abatido de
acordo com a quantidade de produto entregue aos barracões ou para o seringa-
lista. Porém, como o valor das mercadorias e das ferramentas era sempre muito
superior ao valor pago pela castanha ou látex, os coletores acabavam contraindo
uma dívida impagável com seus credores ou patrões.
Entre os anos de 1899 e 1948, o maior latifundiário, seringalista e dono de
barracões em atividade no Amapá foi José Júlio de Andrade. Os domínios do “Co-
ronel José Júlio”, como era popularmente conhecido, estendiam-se desde a cidade
de Almeirim e Porto de Móz, no estado do Pará, até a porção Sul do Território Fe-
176
deral do Amapá, num total de aproximadamente três milhões de hectares. Muitos
castanheiros e seringueiros viviam sob a autoridade de José Júlio e continuaram
vivendo condição semelhante após ele decidir vender suas propriedades a um grupo
empresarial português que criou três grandes empresas para a comercialização
da borracha e da castanha: a Jarí Indústria e Comércio, a Companhia Industrial do
Amapá e a Companhia de Navegação Jarí S.A.17
Apesar do nomadismo que caracterizava as tradicionais atividades de serin-
gueiros e castanheiros, Lúcio de Castro Soares destaca que a maior vantagem dos
povoamentos baseados neste tipo de exploração vegetal era a formação do que
ele chamou de “centros de convergência humana”, que funcionavam como verda-
deiras “bases de penetração, pontos de partida ou focos de irradiação das entradas
na floresta”, servindo ao mesmo tempo como entrepostos distribuidores dos pro-
dutos florestais e centros do comércio regional. Esse tinha sido o caso do Amapá,
afirma Soares, até que os preços da borracha sofressem uma forte queda no início
do século XX, causando um drástico refluxo populacional.18 Mesmo assim, a explo-
ração da seringueira fora a que mais conseguira criar núcleos de povoamento entre
as regiões dos rios Jari, Cajari, Maracá, Ajuruxi, Vila Nova, Matapi e Amapari.
Se o povoamento baseado no extrativismo vegetal era instável, maior preca-
riedade havia naqueles surgidos ao redor dos garimpos. Embora possuíssem grande
16 GUERRA, Antônio Teixeira. Estudo Geográfico do Território do Amapá. Rio de Janeiro: IBGE, 1954, p. 190-191;
226-294.
17 Em 20 de março de 1967, o grupo português revendeu o espólio de José Júlio e seus empreendimentos
para um empresário estadunidense, Daniel Keith Ludwig. Este foi o início de outro grande e polêmico pro-
jeto econômico no Amapá: o Projeto Jarí. Cf.: LINS, Cristóvão. Jarí: setenta anos de história. Rio de Janeiro:
Dataforma, 1991.
18 SOARES, Lúcio de Castro. Contribuição ao estudo da ocupação humana do Território do Amapá. Boletim
da Secção Regional do Rio de Janeiro da Associação dos Geógrafos Brasileiros, ano II, n.2 e 3, p. 23-25.
177 de reunir. [...] Não será de admirar, portanto, vermos em breve enorme
fluxo beneficiador de braços.19
21 BASTOS, A. de Miranda apud. NUNES, Janary. Relatório das atividades do Governo do Território Federal do
Amapá em 1944. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946, p. 29.
22 BASTOS, A. de Miranda. Uma excursão ao Amapá. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947, p. 42.
23 Em junho de 1948, o jornal Amapá divulgou uma tabela de preços, de acordo com pesquisa realizada
nos meses de janeiro a maio nas cidades de Macapá, Amapá, Mazagão e Oiapoque. Tomando-se como
referência a média geral dos valores praticados naquele ano, a quantia de Cr$20,00 era capaz de comprar
aproximadamente: 1 kg de Arroz (Cr$4,59), 1 Kg de feijão (Cr$6,96), 1 kg de açúcar (Cr$5,52) e 1 kg de
farinha de mandioca (Cr$2,04). Esses valores servem apenas como base comparativa, já que o difícil acesso
às áreas de garimpo, a distância em relação à sede dos municípios e a especulação tendiam a encarecer
bem mais os produtos que chegavam ao interior do Território. Cf.: Custo da vida: médias mensais. Amapá,
12 jun. 1948, p. 3.
24 NUNES, Janary. Relatório das atividades do Governo do Território Federal do Amapá em 1944. Op. cit., p. 7.
29 GAMA, Alfredo. Um rio a serviço de dois povos. Op. cit., p. 47-48. (itálico no original).
30 A vida dos garimpeiros. Amapá, 11 jan. 1947. (grifos nossos).
observados por Bastos, e sim vítimas de uma realidade anterior a eles e que os
oprimia, mas que a iniciativa governamental vinha salvar. Segundo, apesar de te-
rem sido relegados ao esquecimento por governos passados, esses trabalhado-
res resistiram a toda precariedade, como verdadeiros “heróis desbravadores” e
seriam agora reconhecidos por isso. E, finalmente, a valorização do elemento e
das riquezas nacionais questionava a presença dos indesejáveis forasteiros, con-
trabandistas que “burlavam a escassa vigilância” e “escamoteavam grandes quan-
tidades de ouro para o estrangeiro”.
De fato, por muitos séculos sempre houve uma contínua e intensa circula-
ção ― tanto de pessoas quanto de mercadorias ― por meio das fluidas fronteiras
entre o Amapá e as possessões inglesas e francesas. Apesar de ser uma atividade
bem menos ativa na década de 1940 do que fora no início do século, a mineração
foi responsável pelo estabelecimento de diversos “crioulos” ― como eram cha-
mados os negros das Guianas inglesa e francesa ― no Amapá.
181 não era tão “dinâmica” e nem facilmente domesticável quanto teriam desejado os
agentes públicos ―, aumentavam as dificuldades em ter que promover um impulso
de desenvolvimento e progresso, conforme as diretrizes estadonovistas preconi-
zadas para os territórios federais, mas também não impediram as ambições do
direcionamento político em vigor.
Janary Nunes era paraense e, inclusive, já conhecia a região do Oiapoque
antes mesmo de assumir o governo territorial, em janeiro de 1944. Pouco sabemos
a respeito do período em que Nunes viveu naquela região fronteiriça, servindo
ao Exército brasileiro. Ainda assim podemos supor que, de alguma forma, a ex-
periência de convívio com personagens típicos locais (seringueiros, garimpeiros,
crioulos, estrangeiros etc.) e a influência exercida por reminiscências de heroísmo
e riquezas minerais no antigo Contestado com a Guiana Francesa devem ter mar-
cado a trajetória de vida e pensamento do jovem militar.
Em decorrência desse mesmo contato, é possível que Janary tenha sido insti-
gado por estórias disseminadas por um imaginário popular muito comum em regi-
ões de garimpo, especulando sobre o que ainda poderia ser encontrado no subso-
lo amapaense. O próprio artigo publicado no jornal Amapá, citado acima, fala das
expectativas de “fortuna fácil” e lamenta a ausência de controle e aproveitamento
atribuídos a um estado fraco ― especificamente os governos da Primeira República
― que tantos prejuízos causaram à nacionalidade.
Partindo dessa hipótese, não é de se admirar que uma das primeiras medidas
do governo territorial, já em 1945, tenha sido a de concentrar esforços para que
fossem exploradas as jazidas de ferro do rio Vila Nova,31 mesmo sob o ataque de
ferrenhas críticas nacionalistas, vindas principalmente da capital federal, por Janary
Nunes ter cedido os direitos de exploração a uma empresa estrangeira: a Hanna
31 Segundo o jornal Amapá, as jazidas de ferro do rio Vila Nova foram descobertas em 1939 pelo geólogo
Fritz Ackerman, no lugar conhecido como “Santa Maria”, entre os municípios de Macapá e Mazagão. Cf.:
Amapá, 19 maio 1951, p. 3.
Exploration Company. Durante vários meses entre os anos de 1946 e 1947, o jornal
Amapá publicou extensas reportagens acerca das potencialidades das jazidas de
ferro do rio Vila Nova. Contudo, a Hanna Exploration desistiu das jazidas, por consi-
derar que a quantidade de minério existente era insuficiente para cobrir os custos
e garantir os lucros da sua exploração.
Confiando na possibilidade de que fossem localizados outros depósitos de
ferro, Nunes ofereceu um prêmio a quem lhe trouxesse provas da existência desse
minério em qualquer lugar do Amapá.32 Ao ficar sabendo de tal prêmio, um “mas-
cate fluvial” chamado Mário Cruz levou amostras de algumas pedras escuras que
ele havia utilizado como lastro da sua embarcação, cinco anos antes, enquanto
vendia mercadorias pelos garimpos no interior do território, tal como faziam mui-
tos regatões nesse período.33 Após uma análise preliminar, o governador decidiu
enviar as amostras ao Departamento Nacional de Produção Mineral ― DNPM, no
Rio de Janeiro. A resposta revelar-se-ia surpreendente: tratava-se de manganês de
excepcional valor comercial e de teor superior a muitas das jazidas conhecidas no
mundo àquela época.34
A novidade surgiu em um momento delicado para a indústria mundial, pois,
em tempos de Guerra Fria, a Rússia havia suspendido as suas exportações de man-
ganês. A medida visava prejudicar diretamente os Estados Unidos e seus aliados
que dependiam do minério ― usado fundamentalmente na fabricação do aço ―
mas nada podiam fazer a respeito, pois o controle dos maiores depósitos mundiais
e o seu fornecimento estavam nas mãos de Stálin. Dessa forma, a ameaça de insu-
ficiência de manganês fez com que o Amapá passasse a ocupar lugar de destaque
nos debates internacionais que envolviam o abastecimento de reservas minerais
182
estratégicas para a economia global.35
A divulgação sobre a descoberta e sobre a importância das jazidas de man-
ganês ocorreu durante as celebrações do 1.° de maio de 1946, em Macapá, em so-
lenidade no Cine–Teatro Territorial, com a presença de várias autoridades, “pondo
em evidência o papel do operário no mundo moderno; a perfeita legislação que
o ampara, livrando-o do problema das reivindicações, graças à ação do governo
de Getúlio Vargas”. E, apesar da maioria da população amapaense desempenhar
atividades rurais e extrativistas, a terminologia industrial já estava presente nas fa-
las oficiais, destacando, por exemplo, “a situação especial de proteção em que se
acha o operariado amapaense pelo descortino e pelo patriotismo do governador
do Território, que se revelou um amigo das classes trabalhadoras”.36 Encerrando
os discursos, Janary Nunes tomou a palavra e anunciou
32 Outros prêmios foram oferecidos no mesmo período: “Várias pessoas vêm informando e assegurando ao
governo a existência de Carvão de pedra no Território. A Divisão de Produção, devidamente autorizada
pelo governador, senhor capitão Janary Gentil Nunes, avisa à população, em especial aos garimpeiros e
faiscadores do Amapá, que o governo oferece um prêmio de Cr$20.000,00 àquele que trouxer ao seu
Diretor amostras e indicações que comprovem a existência e a localização real desse minério”. Prêmio de
vinte mil cruzeiros – Carvão de pedra. Amapá, 25 maio 1946.
33 A respeito dos regatões no Amapá no mesmo período, ver: CAMBRAIA, Paulo Marcelo da Costa. Na ilhar-
ga da fortaleza, logo ali na beira, lá tem o regatão: os significados dos regatões na vida do Amapá (1945-
1970). Belém: Açaí, 2008.
34 O encontro entre Mário Cruz e Janary Nunes, relacionado à descoberta do manganês, acabou sendo
utilizado pelo próprio governo como uma espécie de mito fundador de um novo momento para o Amapá,
após a criação do território federal. Cf.: PAZ, Adalberto Júnior Ferreira. Os mineiros da floresta: sociedade
e trabalho em uma fronteira de mineração industrial amazônica (1943-1964). Dissertação (Mestrado em
História Social), Campinas: IFCH – Unicamp, 2011, p. 24-28.
35 Gigantescos depósitos de manganês no Brasil: investigações de geólogos norte-americanos no Território
do Amapá. Amapá, 13 ago. 1949.
36 Os festejos em comemoração ao dia do trabalho. Amapá, 4 maio 1946.
37 Idem.
38 Após ser criada em 8 de maio de 1942, essa empresa passou por algumas mudanças de capital, status jurí-
dico e razão social, até estabelecer-se em definitivo com o nome de Indústria e Comércio de Minérios S.A
ou, simplesmente, ICOMI.
39 Sobre valores de empréstimos, capitais, receitas etc. Ver: DRUMMOND, José Augusto; PEREIRA,
Mariângela de Araújo Povoas. O Amapá nos tempos do Manganês: um estudo sobre o desenvolvimento de
um estado amazônico 1943-2000. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.
40 Sobre as diferenças entre company towns e vilas operárias ver: PAZ, Adalberto Júnior Ferreira. “Capital,
trabalho e moradia em complexos habitacionais de empresa: Serra do Navio e o Amapá na década de 1950”.
In: AMARAL, Alexandre, et. al. Do lado de cá, fragmentos de História do Amapá. Belém: Açaí, 2011, p. 461-468.
41 GUERRA, Antônio Teixeira. Estudo Geográfico do Território do Amapá. Op. cit., p. 297.
42 Cf.: LOPES, José Sérgio Leite. Fábrica e Vila operária: considerações sobre uma forma de servidão
burguesa. In: LOPES, José Sérgio Leite, et. al. Mudança Social no Nordeste: a reprodução da subordinação,
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Ver também: LOPES, José Sérgio Leite. A tecelagem dos conflitos de
classes na cidade das chaminés. São Paulo: UNB/Marco Zero, 1988.
185 saúde, vindos de diferentes regiões do país. Em caso de uma avaliação negativa
da residência, a mulher era chamada em particular e repreendida sobre as falhas
encontradas. Se o problema persistisse, então, o homem seria advertido pelo seu
supervisor direto sobre as possíveis medidas a serem tomadas. Finalmente, nas si-
tuações em que nenhum aviso produzisse o efeito esperado, a companhia poderia
demitir o funcionário e despejá-lo com toda a sua família.
Segundo a lógica da empresa, cada um dos aspectos relacionados ao cotidia-
no de trabalho e ao lazer dos operários solteiros e das famílias operárias ― que se
formaram ou que passaram a viver em Serra do Navio ― deveria ser conduzido de
maneira a garantir o cumprimento fiel de suas rotinas, atribuindo funções sociais e
responsabilidades econômicas, tornando a todos, enfim, elementos úteis e produ-
tivos aos desígnios da mineradora.45
O dia a dia de uma típica família serrana era baseado em uma clara distri-
buição de tarefas entre pai, mãe e filhos. As crianças deveriam estar na escola às
seis e meia da manhã, e lá permaneciam até o final da tarde. Os mineiros saíam
das suas casas e se dirigiam até as esquinas onde eram apanhados por caminhões
por volta das seis horas e quarenta e cinco minutos, para que pudessem iniciar os
trabalhos pontualmente às sete horas, quando soava um estridente apito na área
de mineração. Não havia tempo adicional de espera, nem condução reserva para
os retardatários. A jornada de trabalho era dividida em turnos de oito horas cada:
aqueles que iniciavam o serviço pela manhã, eram deixados em casa às onze horas,
para o almoço. Nesse momento, a comida já deveria estar pronta e posta sobre a
43 PAZ, Adalberto Júnior Ferreira. Os mineiros da floresta: sociedade e trabalho em uma fronteira de minera-
ção industrial amazônica (1943-1964). Op. cit., p. 145
44 Entrevista de Zenira Vieira da Silva, cedida ao autor em 2 de março de 2010.
45 Segundo Foucault, “o corpo só se torna útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso”. Cf.:
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. 34. ed. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 26.
mesa pela esposa, pois ao meio-dia o operário retornaria para a mina, até o final do
turno, às dezesseis horas, ou mais, se houvesse hora extra.46
À noite, o limite estipulado para a circulação de pessoas no interior de Serra
do Navio era até as vinte e duas horas, havendo certa tolerância para aqueles que
estavam assistindo a algum filme no cinema da companhia, de acordo com o tér-
mino da sessão. A partir daí, a vigilância começava as rondas para inibir aqueles
que porventura tentassem ultrapassar a imposição do horário, especialmente os
casais de namorados, sobre os quais existia uma atenção especial.
Dessa forma, toda a lógica de funcionamento de Serra do Navio preconi-
zava o abandono das antigas formas de sociabilidade, ritmo de vida e trabalho
que compunham o cotidiano dos caboclos amazônidas há séculos. A ideia de uma
sociedade devotada aos padrões de moralidade burguesa como a acumulação,
a produtividade rítmica e constante, o desprezo ao ócio e ao desperdício do po-
tencial de trabalho era uma perspectiva central no primeiro governo do Território
Federal do Amapá, o que explica o entusiasmo pessoal de Janary Nunes na con-
cretização do primeiro grande projeto de exploração mineral da Amazônia. E, não
obstante tenha sido um empreendimento privado, a mineração em Serra do Na-
vio se tornou pedra angular no processo de transformação econômica e cultural
da sociedade amapaense, conforme os anseios dos agentes públicos, a partir dos
anos de 1940.47
46 Sobre a importância dos papéis atribuídos aos gêneros na formação da classe trabalhadora envolvendo
uma company town ligada à mineração na América do Sul, ver: KLUBOCK, Thomas Miller. Contested
communities: class, gender, and politics. In: Chile’s El Teniente copper mine, 1904-1951. Durham and London:
Duke University Press, 1998. Do mesmo autor: “Morality and good habits: the construction of gender and
class in Chilean copper miner, 1904-1951”. In: FRENCH, John D. and JAMES. Daniel. The gendered worlds of
Latin American women workers: from household and factory to the union hall and ballot box. Durham and
London: Duke University Press, 1997, p. 232-263.
47 Outra importante base para a realização desse plano de governo foi o sistema público educacional. Cf.:
LOBATO, Sidney da Silva. Educação na fronteira da modernização: a política educacional no Amapá (1944-
1956). Belém: Paka-Tatu, 2009.
torno dos seus benefícios ou malefícios ainda se mantém como um tema central
nas discussões sobre o passado, presente e futuro no extremo Norte do país. Mais
recentemente, a ênfase das críticas recaiu sobre os prejuízos ambientais causados
pelas décadas de extração do manganês, sendo que, em 1999, uma Comissão Par-
lamentar de Inquérito, instalada na Assembleia Legislativa do Amapá, constatou
que a ICOMI seria responsável pelos elevados níveis de contaminação por arsênio
e bário nos “mananciais superficiais que abastecem o sistema público de água da
capital e do município de Santana”,48 como resultado do seu processo de minera-
ção industrial.
Quanto aos caboclos-mineiros, suas reminiscências tendem a enfatizar o su-
cesso em conseguir “melhorar de vida”, superando as limitações impostas pelas
regras da companhia no interior das company towns, e o legado que cada um dei-
xou à família, muitas das quais constituídas durante os anos de vida e trabalho
como operários no interior da floresta.
Nesse sentido, entender as relações entre os direcionamentos políticos e
o impacto das suas decisões em uma sociedade como a existente no Amapá na
década de 1940 significa perscrutar o campo de possibilidades entre diferentes
tipos de desenvolvimento e a maneira como as pessoas percebem, incorporam e
atribuem sentido a essas transformações em suas vidas. Por outro lado, as dispu-
tas em torno do tema da valorização econômica da Amazônia, mais recentemente
polarizados entre a perspectiva de um aproveitamento “sustentável” dos recur-
sos naturais, em contraposição àqueles de reconhecida e histórica degradação
187 ambiental, recolocam a problemática de uma estranha modernidade ― continu-
amente anunciada para a região ― na maioria das vezes exógena e indiferente às
especificidades locais.
Recebido em 30/10/2013
Aprovado em 15/05/2013
Esta simples notícia, publicada num dos maiores jornais pelotenses ao final
da República Velha, pouco informa da extraordinária vida do falecido, o Dr. Euzé-
bio Barcellos. O fato de ter posses lhe propiciou um rico enterro, mas a extensão
do cortejo ficou por conta de seus relacionamentos, das sociedades de que partici-
pou durante sua vida e do respeito que mereceu na região. O resumido necrológio
passou por cima de questões vitais para a reputação do doutor Euzébio, pois, por
exemplo, não falou que ele fora membro do partido republicano na cidade, nem
que era muito ligado à Igreja Católica. Claro que essas informações poderiam, em
parte, ser deduzidas a partir da matéria jornalística. Afinal, o Diário Popular per-
tencia ao Partido Republicano Rio-Grandense, que governava o estado gaúcho há
décadas. Quanto à Igreja Católica, a proximidade poderia ser facilmente deduzida 190
da referência à irmandade, que consta no texto. E, sendo Irmandade do Rosário,
nos leva a suposições sobre as tonalidades mais escuras da pele do doutor Euzé-
bio, que o necrológio também houve por bem silenciar.
Mas a não informação sobre sua cor deve ser debitada na conta das práticas
jornalísticas seguidas durante a Primeira República, com o sentido de não mencio-
nar a cor de qualquer cidadão fora das páginas policiais, o que, aliás, só era feito se
a pessoa não fosse branca. Numa sociedade racialmente misturada, partia-se do
pressuposto de que a cor padrão fosse a branca e que outro tom de pele só mere-
cesse destaque quando a conduta do indivíduo fosse desviante.
Ora, muito longe disso estava a conduta do Dr. Euzébio, católico praticante
e muito chegado à hierarquia local da Igreja Católica, na qual atuou com denodo,
tanto em irmandades quanto na consolidação de associações operárias católicas
que desenvolvessem ideias de moderação e conformidade entre os trabalhado-
res, antes do que aquelas veiculadas pela Liga Operária e outras associações que
possuíam caráter ateu e socializante.2
Por outro lado, o necrológio informa que era médico licenciado, ou, dizendo
de outro modo, que teria licença para atuar como médico no estado, embora não
fosse formado, uma peculiaridade das leis gaúchas, feitas sob forte influência da
doutrina positivista. Desse modo, havia a possibilidade de que pessoas sem diplo-
ma, mas reconhecidas como curadores por aqueles que os procuravam, pudessem
requerer licença para montar consultório e atender seus pacientes ― exatamente
desse modo que o Dr. Euzébio atuara. E era reconhecido, pois foi dessa forma que
conseguira a maior parte dos imóveis e a fortuna que possuía antes de morrer.
Mas, o que torna a sua vida tão interessante e extraordinária para os his-
toriadores não está nesse necrológio ou em outros que porventura tenham sido
dedicados a ele. O que o tornava tão excepcional pouco havia sido mencionado
publicamente durante os últimos quarenta e oito anos de sua vida: ele nascera es-
cravo, e nessa condição viveu toda a sua juventude. Essa era uma dimensão oculta
de sua existência, a qual nunca se reportou depois de ter recuperado a liberdade.
Mas fora uma experiência marcante, pois debaixo da infame condição de
escravo, ele nasceu e viveu, alforriando-se apenas com mais de trinta anos. Sem
dúvida isso lhe trouxe marcas, tanto na educação quanto no modo de ver a vida e
nos traços de seu caráter. A condição3 de escravo de charqueada pela qual passou
não lhe tirou a ousadia — que o fez desfeitear publicamente alguns redatores e
jornalistas brancos em 1916 —, nem a agência e a criatividade que demonstrou
durante sua vida. E são essas exatamente as qualidades que interessam investigar
neste artigo. Esse filho de africanos teve uma trajetória ímpar, que se conseguiu,
em parte, desvendar, com a análise de múltiplas fontes, cartoriais e jornalísticas,
embora alguns pontos ainda permaneçam sem esclarecimento.
A origem na charqueada
Quando morreu, Euzébio estava recolhido em casa, devido à avançada idade
que lhe impedia de continuar a frequentar as associações de que gostava. Apesar
191 disso, ainda estava à frente da Irmandade do Rosário, no cargo de diretor (no qual
aparecia um significativo “Dr. Precedendo seu nome).4 Essa foi a entidade na qual
mais constantemente ele se fez presente, desde seus tempos de cativo, e, de certo
modo, ela representava as duas dimensões em que se apoiou em sua vida: a Igreja
Católica, da qual era ativo participante, e a comunidade negra pelotense, na qual
se criou e da qual foi respeitado membro.
Euzébio nasceu em 05 de agosto de 1848; era filho da “preta Ângela, ambos
escravos de Cipriano Rodriguez Barcellos”, como consta de sua certidão de batis-
mo, datada de mais de um ano depois.5 Sua mãe aparece como nagô em alguns
documentos, como em sua carta de alforria e nos batismos de alguns de seus filhos
e, em outros, aparece como “de nação”. Segundo Scherer, a maioria dos escravi-
zados procedentes da África desembarcados ou presentes na vizinha cidade de
Rio Grande, porto pelo qual entravam todos os cativos para o estado, eram minas,
seguidos pelos nagôs.6 Reis afirma que as comunidades minas gaúchas eram nu-
merosas e organizadas e que, para aquela província, o termo mina consistia num
“guarda-chuva étnico”, abrigando “nagôs, jejes, haussás e outros grupos impor-
tados dos portos do golfo de Benim”7, ou seja, para o estado gaúcho, os termos
3 Meillassoux, em Antropologia da escravidão, distingue entre estado e condição do escravo. Estado seria o
fato de ser escravo, condição seria o uso que teria sua força de trabalho e, consequentemente, ele próprio,
na sociedade que o escravizava. Ou seja, em alguns casos, embora o estado fosse o de escravo, a condição
poderia ensejar uma melhor posição se constratada com outros que compartilhavam do mesmo estado.
Consideramos essa distinção importante em relação à “sorte” de Euzébio e seus irmãos. MEILLASSOUX,
Claude. Antropologia da escravidão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1995.
4 Jornal A Opinião Pública, Pelotas, 10 fev. 1928.
5 BISPADO DE PELOTAS. Livro 2 de Batizados de escravos de 1835 a 1852, folha 187, frente e verso, dia 13 de
setembro de 1849.
6 SCHERER, Jovani. A nação da liberdade: os minas e outros grupos de procedência em Rio Grande (1810-
1865). Comunicação apresentada no 3.º encontro “Escravidão e Liberdade”. CD ROM. Anais do 3.º encontro
“Escravidão e Liberdade”. Florianópolis, UFSC, 2007.
7 REIS, João José. Domingos Sodré um sacerdote africano. São Paulo: Cia. das Letras, 2008, p. 260.
mina e nagô às vezes podiam ser intercambiáveis. Ao final, sua origem africana
será retomada, mas é melhor tratarmos de sua mãe agora.
Nascida por volta de 1828, segundo a idade que aparece no Documento de
Venda de 1862 (trinta e quatro anos) juntamente com todo o lote da charqueada em
que vivia, provavelmente Ângela fez parte dos africanos escravizados ilegalmente,
porque importados depois da lei de 1831.8 Seu nome consta em algumas cartas de
batismo dos anos de 1848 e 1849 como madrinha de outros africanos adultos do
plantel de Cipriano que estavam sendo batizados, mas não se conseguiu descobrir
seu assento de batismo nos livros da catedral São Francisco de Paula, em Pelotas.
Talvez tenha sido batizada em outro local, tendo em vista que muitos charqueado-
res debandaram da cidade durante os anos da Revolução Farroupilha.
Quanto ao pai biológico, pouco se sabe. Quando se qualificou como eleitor,
muitas décadas mais tarde, Euzébio informou ser filho de Cosme Rodrigues Bar-
cellos, mas seguramente não era filho de algum branco. Na extensa genealogia de
toda a família Rodrigues Barcellos, não consta nenhum Cosme, e Euzébio não era
considerado mestiço, mas preto. Havia um cativo carpinteiro com esse nome no
plantel de Cipriano, mas que teria cerca de quatorze anos, senão menos, quando
do nascimento de Euzébio. Esse Cosme, também africano, libertou-se em 1868, por
uma bela quantia9 e, provavelmente, é o mesmo que libertou Euzébio, anos mais
tarde. Quanto aos seus padrinhos, consta que eram Manoel Redozino Vaz e Ma-
ria José da Porciúncula Vaz, casados e médios proprietários de terras em Jagua-
rão.10 Apesar disso, seja pela distância ou por falta de interesse, não parecem ter
feito muito pelo seu afilhado.
Seu proprietário, Cipriano Rodrigues Barcellos, era dono de dois saladeiros
192
em Pelotas, local em que sua mãe, e possivelmente seu pai, trabalhavam. O regime
disciplinar das charqueadas, aliado à péssima higiene e à concentração do traba-
lho em poucos meses, não deixava entrever muitas chances ao pequeno Euzébio.
O trabalho extenuante em época de safra, iniciado à meia-noite e prolongado até
parte da tarde seguinte era árduo, não poupava esforços e era feito de forma rús-
tica, prejudicando o corpo e a saúde dos trabalhadores envolvidos em alguma de
suas tarefas. Além disso, normalmente se prolongava de novembro a maio e era
realizado à beira do rio, com calor e insetos no verão e frio cortante no outono,
especialmente durante as madrugadas, momento em que se abatiam as reses. Na
entressafra, esses trabalhadores eram empregados em olarias, em sítios e na cons-
trução civil, erguendo os palacetes de seus senhores no centro urbano da cidade.11
Estabeleceu-se a existência de trinta a quarenta charqueadas12 entre 1780 e
1890, cada com vinte e nove a cem trabalhadores escravizados, sendo dispostas
8 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Documentos da Escravidão: Livro de Compra e
venda de Escravos. Porto Alegre: Corag, 2010, v.2, p. 83. Documentos de venda de escravos de Cipriano
Rodrigues Barcellos e Domingos Pinto França Mascarenhas a Cândido Barcellos e irmão, em 1/12/1862.
9 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Documentos da Escravidão: Catálogo Seletivo de
Cartas de Liberdade dos Municípios do Interior. v. 1. Porto Alegre: Corag, 2006, p. 487. (Doravante relacio-
nado como APERS, cartas de liberdade).
10 APERS. Inventário n. 617. Inventariado: Manoel Redozino Vaz, inventariante: Maria José da Porciúncula
Vaz, ano de 1874, fundo Jaguarão.
11 Sobre as condições de trabalho nas charqueadas, ver: GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & ola-
rias: um estudo sobre o espaço pelotense. 2.ed. Pelotas: Editora da UFPel, 2001, p. 185-191; COUTY, Louis. A
erva mate e o charque. 2.ed. Pelotas: Seiva, 2000. Sobre as doenças que acometiam os seus trabalhadores,
ver: LONER, B; GILL, L.; SCHEER, M. Enfermidade e morte: os escravos na cidade de Pelotas, RS, 1870-1880.
História, ciência e saúde. Manguinhos, Rio de Janeiro, dez. 2012, v. 19, supl.1, p. 133-152.
12 Há uma certa divergência sobre seu número, constatada no Dicionário de História de Pelotas, organizado
por Beatriz Loner, Lorena Gill e Mario Osorio Magalhães, primeira edição, Pelotas: Ed.UFPel, 2010. Verbe-
tes: Charqueadas – autora Ester Gutierrez, p. 58 a 60 e Charqueadores- autor Mario Magalhães, p. 60 e 61.
uma ao lado da outra, ao longo do Arroio Pelotas e da Costa do São Gonçalo. Dessa
forma, o chamado sítio charqueador pelotense parecia propício a levantamentos
de escravos, dos quais os senhores tinham muito medo, empregando rígida disci-
plina sobre os cativos, para evitar revoltas ou fugas.13 Se as primeiras não passaram
de ameaças, as segundas foram constantes e contínuas, o que invalida qualquer su-
posição de um bom tratamento por parte dos senhores. Apenas se pode dizer que
a alimentação desses trabalhadores seria mais rica do que dos cativos do restante
do Brasil, devido ao farto uso da carne, especialmente miúdos e costelas de gado.
A charqueada que serviu de berço a Euzébio estava localizada na chamada
Costa, na margem direita do arroio Pelotas, região hoje conhecida como Areal. Seu
proprietário, Cipriano Rodrigues Barcellos, era membro de uma poderosa família,
da qual vários irmãos se tornaram charqueadores na cidade. Por meio dos casa-
mentos, os Rodrigues Barcellos mantinham laços entre si e com outros empresá-
rios do ramo, o que levava a um constante rearranjamento dos estabelecimentos
saladerís e, logicamente, dos trabalhadores que elas continham.14 Em 1862, Cipria-
no decidiu retirar-se da gerência ativa de seu estabelecimento, em prol da firma
Cândido Barcellos e irmãos, da qual também fazia parte.15 Na oportunidade, pas-
sou o lote de escravos de uma de suas charqueadas para a firma, em uma venda
nominal a preço simbólico (cinquenta e seis escravos foram vendidos por apenas
R 1:400$) a seus sobrinhos, administradores da empresa.16
Essa venda possibilitou a visualização do conjunto completo de trabalhado-
res desse saladeiro: quarenta e seis cativos, entre os quais trinta e três homens,
193 seis meninos e sete mulheres adultas. A não existência de meninas explica-se, em
parte, pelo fato de que algumas foram alforriadas ainda crianças, como aconteceu
com duas irmãs de Euzébio.17 Entende-se, pois, que essa transação consistiu ape-
nas em uma troca de administração e de propriedade dentro da família Barcellos,
portanto sem alterar a rotina diária, embora a entrada de mais dez trabalhadores
e a eventual troca de capatazes e feitores trouxesse tensão e incerteza ao plantel.
Contando, também, com mais dez trabalhadores masculinos pertencentes a
Mascarenhas, cunhado de Cipriano, a nova firma funcionou por alguns anos, mas
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O fato de a fronteira com o Uruguai estar a pouco mais de cem quilômetros a pé das charqueadas, poden-
do também ser alcançada por barcos, era um incentivo às fugas individuais para fora do país. Durante a
Revolução Farroupilha, muitos cativos foram levados pelos seus senhores para o Uruguai ou para fora do
espaço charqueador pelotense, como meio de proteger seus “bens”. Com isso, disseminou-se o conhe-
cimento entre a escravaria, mesmo a africana, sobre a realidade diferenciada do Uruguai e os caminhos
a serem palmilhados para as fugas. O Uruguai conseguiu extinguir a escravidão a partir de 1846, o que
trouxe vários conflitos com estancieiros rio-grandenses, que possuíam terra nos dois países, obrigando
o pequeno Uruguai a fazer várias concessões ao grande e escravocrata vizinho, especialmente durante
os primeiros anos. Mas essa situação serviu para quebrar a continuidade do território sob domínio do
escravismo, levando cativos do Brasil a buscar rotas de fuga para o Sul, para a liberdade além fronteira.
PALERMO, Eduardo. Cautivos em las estancias de la frontera uruguaya. Trafico de escravos em la frontera
oriental em la segunda mitad del siglo XIX. História em Revista, Pelotas, v. 16, dez. 2010, p. 7-24.
14 GUTIERREZ, Ester. Barro e sangue, mão de obra, arquitetura e urbanismo em Pelotas. Pelotas: Ed. da
UFPel, 2004.
15 Idem. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. 2.ed. Pelotas: Editora da UFPel, 2001.
16 APERS. Documentos da Escravidão, Livro de Compra e venda de Escravos. Porto Alegre: Corag, 2010, v.2,
p. 79 e seguintes. Documentos de venda de escravos de Cipriano Rodrigues Barcellos e Domingos Pinto
França Mascarenhas a Cândido Barcellos e irmão, em 1/12/1862. Cipriano e Domingos eram cunhados e Cân-
dido Barcellos era sobrinho e afilhado do primeiro. A análise dos documentos demonstrou serem comuns
“vendas” com valor baixo dentro das parentelas dos proprietários, provavelmente para não pagar taxas
elevadas de transmissão de propriedade.
17 Heduviges, sua irmã, foi batizada em 21/12/1851 (Bispado de Pelotas, Livro 2 de batismo de escravos, folha
274) e alforriada em 17/04/1854 (APERS. Cartas de Liberdade. v. 1, p. 419). Sua outra irmã, Julia, foi liberta
ao nascer. Ainda outras pequenas escravas de Cipriano também foram libertadas nestes anos, como Maria
Dandá, parda, filha de Justina, cuja carta de liberdade foi passada em 31/07/1847 (Idem, p. 414).
terminou indo à falência e deixando dívidas aos sócios. Em 1868, quando da liqui-
dação da empresa, vinte e um desses mesmos trabalhadores foram vendidos para
o comendador Domingos Faustino Corrêa, de Rio Grande, integrando um lote de
trinta escravos, pelo preço total de R 33:000$000.18
A família nuclear de Euzébio sofreu várias alterações com essas mudanças.
Na primeira transação, de 1862, Euzébio tinha quatorze anos e já trabalhava como
servente de charqueada. Ângela, sua mãe, havia conseguido sua alforria um pouco
antes, embora condicionada à morte do senhor e com um ônus de R $500,00 a
ser pago em prestações.19 Mesmo assim, ela foi arrolada como escrava em 1862,
pois seu nome consta do lote da primeira venda. Esse equívoco foi desfeito no
inventário de Cipriano Barcellos, em 1869, e ela foi considerada livre para todos os
fins. Além dos três meninos, Ângela teve pelo menos mais duas filhas: Heduviges,
liberta em 1854 com dois anos e meio e Júlia, alforriada ao nascer, em 1862, pelo
seu padrinho, justamente um dos novos donos do estabelecimento.20 Esse apa-
drinhamento, e a liberdade conseguida no batizado, por Júlia, levam a pensar em
um possível relacionamento entre Ângela e o novo senhor, Cândido Barcellos, que
poderia ser o pai do bebê.
Ângela continuou a morar na casa do senhor, até a morte de Cipriano, em
1868. Cipriano teve o inventário de seus bens feito no ano seguinte, mas nele ainda
constam referências à Ângela, como a legalização de sua situação de liberta e a
compra de “onze covados de chita e um xale” para ela, que são deduzidos como
despesas pelo inventariante.21 Portanto, sabe-se que ela seguiu morando na casa
da charqueada até 1869, quando se perde sua pista.
A morte do senhor auxiliou alguns a conseguirem sua liberdade, como Cosme,
com trinta e dois anos, carpinteiro, e Lino, quarenta anos, pedreiro. Ambos eram
194
africanos, estavam presentes na venda de 1862 e agora, seis anos depois, conse-
guiam a alforria pela quantia de R 1:200$000 o primeiro e R 1:350$000 o segundo.
A certidão de batismo de Lino foi feita em 1848, com ele já adulto, provavelmente
ao chegar, o que significa que conseguiu dinheiro suficiente para sua alforria em
vinte anos.
Não obstante a venda, Cosme e Lino continuavam ainda sob o domínio
legal de Cipriano, pois as alforrias22 registradas um mês depois da morte deste último
reportavam-se a ele. Cândido Barcellos e Cândido Alves Pereira, os novos donos,
passaram as cartas de liberdade, referindo-se a esses escravos como tendo sido
“recebidos de herança” do tio, Cipriano Barcellos. Assim, o documento da venda de
1862 foi contestado pelas próprias cartas de alforria, que reconheceram o direito de
propriedade de Cipriano sobre eles. Essa situação corrobora a ideia de que a tran-
sação de 1862 foi apenas uma forma de legalizar o aporte de capital empatado nos
trabalhadores escravizados na empresa, visto que Cipriano era o seu maior sócio.
O ano de 1868 foi aquele da venda do lote original para outro charqueador,
significando o fim da atividade empresarial desse ramo da família Barcellos, o que
abriu um momento de mobilização dos escravos com pecúlio, buscando liberta-
rem-se, antes da passagem a um novo senhor. Foi nesse momento que Cosme,
Lino e José conseguiram suas alforrias. Ângela, por sua vez, livrou-se da condicio-
nalidade de sua liberdade, com a morte de Cipriano e deve ter ido viver com suas
filhas já libertas na cidade. Restaram os irmãos, que tiveram diferentes destinos.
Tudo indica que foram utilizados para pagamento de dívidas da firma com credores
ou sócios, o que ocasionou a divisão familiar e sua dispersão entre outros senhores.
Os inventários da família Barcellos daqueles anos indicam que houve a falên-
cia do empreendimento saladeril e que restaram dívidas por anos a fio. Embora
a maioria dos cativos que trabalhavam no estabelecimento tenham sido vendi-
dos para pagar as dívidas, outros foram entregues a pessoas da família, dentro
do acerto final de contas da empresa. Euzébio e seus irmãos devem ter passado
por essa situação, pois não foram vendidos juntos com o lote, mas também não
foram alforriados.
Domício teria provavelmente doze anos em 1868, quando da liquidação da
firma, e não há nenhum documento da venda ou passagem dele a outro senhor.
Apesar disso, oito anos depois, foi encomendado na catedral da cidade, o corpo
de um escravo com esse nome, caracterizado como “preto, 18 anos de idade, desta
província”, trabalhador de charqueada, cujos donos, herdeiros de Antonio José
Gonçalves Chaves, eram também aparentados com a família Barcellos.23 A causa do
falecimento de Domício, “tuberculoses pulmonares”, é perfeitamente compatível
com uma das principais doenças que afligiam os trabalhadores de saladeiros, visto
as precárias condições de trabalho e as atividades serem realizadas em ambiente
insalubre. Pelos dados do APERS, o único trabalhador escravizado que possuiu o
195 nome de Domício, em todo o interior gaúcho24, foi o filho de Ângela. Se a raridade
do nome não adiantou nada a Domício, pelo menos auxiliou a identificá-lo.
Já Teófilo parece ter sido mais afortunado. Era um bebê em 1862 e estava com
sete anos em 1868, sendo muito pequeno para tarefas pesadas e, provavelmente,
foi encaminhado para aprendizagem de alguma profissão na cidade.25 De fato, em
1881, encontrou-se um Teóphilo Antônio Gonçalves, participando de um grupo de
apostas na loteria. Suas apostas foram pequenas, constavam apenas de cinco
bilhetes e um quarto de um outro, comprados por vinte e seis participantes. Mas
a situação era compatível com o fato de que todos os apostadores eram negros
e, detalhe importante, tinham patronímicos que lembravam ativos charqueadores
da região.26 Mais tarde, já com o nome acrescido de um “Barcellos”, encontrou-se
Teóphilo Gonçalves Barcellos na diretoria de duas associações negras. A primeira
foi a associação mutualista Sociedade Progresso da Raça Africana, uma das duas
únicas entidades negras da cidade que se reportavam à África em seu nome, sen-
do Teóphilo o presidente da diretoria provisória e Euzébio seu tesoureiro, durante
23 BISPADO DE PELOTAS, Livro 4 de registro de óbitos da Catedral de Pelotas, anos 1865-1887, fls. 217 verso,
dia 8 de novembro de 1876.
24 A saber, quatro livros de inventários, dois de alforrias, dois de compra e venda, um de testamentos e um
de processos-crime. Infelizmente, o livro de batismos no qual constaria seu batizado foi roubado do Bispa-
do de Pelotas há alguns anos.
25 Havia outros Teóphilos, entre eles o mais próximo seria um carneador trabalhando em estabelecimento da
parentela dos Barcellos, mas a idade é incompatível, pois este teria vinte e quatro anos em 1872, enquanto
o irmão de Euzébio seria um moleque de apenas doze anos naquele mesmo ano. Este outro aparece no
inventário de Luis Teixeira Barcellos e sua esposa, o qual também foi sócio da firma Barcellos e irmão. O
inventário traz cópia da folha de matrícula geral dos escravos em 1872, na qual está Teófilo, descrito como
preto, vinte e quatro anos, solteiro, de filiação desconhecida e carneador, que foi comprado do Rio de
Janeiro. APERS. Inventário de Dorothea da Fontoura Barcellos e Luís Teixeira Barcellos, autos n. 777, maço
46, estante 25, 1.º Cartório de Órfãos e Provedoria, ano 1873, fundo Pelotas.
26 Jornal do Comércio de Pelotas, 15 set. 1881. Frequentemente, as apostas em loterias eram feitas em grupo,
por associações informais, das quais o nome e os números do sorteio eram publicados pelos jornais, como
garantia da compra. Nesta notícia, a própria ordem de aparecimento dos nomes aparenta respeitar uma
gradação, pois os negros livres estão acima e os libertos, abaixo.
196
A primeira turma, pertencem os bilhetes 19.7790 a 19.7799. A se-
gunda turma, os números 176196, 176197, 176198, 176199, 197758,
197759, 176200, 197758, 197759, 176200, 197760, 197761 1 197763.
Os bilhetes acham-se depositados em poder do tesoureiro da as-
sociação, sr. Euzébio Barcellos.
Pelotas, 3/12/1880. C. e Silva, Secretário.29
De escravo a liberto
Sobre os anos de juventude de Euzébio, incluindo sua troca de senhor, não
se conseguiu outros dados. Em sua carta de alforria, consta que ele seria proprie-
dade de Cosme Rodrigues Barcellos, que exercia a profissão de carpinteiro e que
teria trinta e um anos na data de 26 de janeiro de 1883, quando foi libertado. Sua
alforria foi concedida gratuitamente, “em atenção à estima e amizade que lhe tri-
buto e por isso sem receber por esta liberdade a mínima retribuição pecuniária”.31
É muito estranha a forma como está redigida essa carta, pois demonstra que havia
relações muito diferentes entre os dois. Afinal, qual senhor diria ter um tributo
de respeito em relação ao escravo? Essa situação desafiava a fórmula comum das
manumissões e também as convenções sociais, pelas quais o escravo era liberto
pela vontade de seu possuidor e devia sua liberdade, mesmo que paga, a ele, o
que ampliava o aspecto de dádiva da libertação, e o entendimento desta como
uma graça, uma mercê do senhor, pela qual o libertando deveria ser eternamente
grato.32 Euzébio teria sido matriculado como escravo por Cosme, em 02/05/1882,
sob o n.º 2283 da matrícula geral e n.º 1 da relação de seu proprietário, o que signi-
fica que deveria ser o seu único escravo, ou o mais antigo deles, segundo o que se
observou das relações de matrícula.
Euzébio refere-se a seu pai como africano, o que Cosme efetivamente era,
o colocando dessa forma em sua qualificação eleitoral, em 1890; contudo, esse
termo pode ter outro significado, o de mestre, ascendente espiritual etc. Cosme
era carpinteiro e essa também foi a profissão de Euzébio, que deve tê-la aprendido
197 com ele na charqueada. A questão da paternidade biológica é difícil de averiguar,
não só porque havia outros Cosmes cativos, em plantéis de outras charqueadas,
como também devido ao já mencionado fato de que, Cosme, quando do nasci-
mento de Euzébio, recém entrara na puberdade, a julgar pela sua idade na nota
de venda e na alforria. Ângela, por seu lado, tinha vinte anos na ocasião e, prova-
velmente, muitos eram seus admiradores, mais fortes e com maior prestígio que o
ainda adolescente Cosme.
Mesmo filho de um Cosme africano, resta a possibilidade de que Euzébio
fosse liberto por outro Cosme, filho ou sobrinho do ex-proprietário Cândido Bar-
cellos, mas é uma hipótese remota, pois não há registros de descendentes com
esse nome entre as parentelas de Cândido ou de Cipriano, ou ainda na família ex-
tensa dos Rodrigues Barcellos.33 A utilização do sobrenome dessa família provavel-
mente adviria do fato de Cosme já ter sido escravo dos Rodrigues Barcellos e ter
adotado esse patronímico.
Cosme, liberto desde 1868, deveria ter se dedicado a sua profissão, talvez
alugando os serviços de Euzébio para auxiliá-lo nos trabalhos de carpintaria e de-
pois investindo em comprá-lo. Estes dois homens, com apenas quatorze anos de
diferença de idade, passaram anos trabalhando em conjunto e devem ter desen-
volvido uma forte amizade, levando o mais novo a considerar o mais velho como
pai, o que fez oficialmente quando precisou declarar um nome paterno, para ter
maior respeitabilidade, em um documento oficial que o instituía como eleitor, etapa
importante de sua incorporação política na sociedade.
Nascido Euzébio, ele compôs seu nome utilizando parte do sobrenome do
político Euzébio de Queiroz Coutinho Matoso da Câmara, ministro do Império en-
tre 1848 e 1852 e, nesse cargo, autor da lei — que leva seu nome — que impediu
definitivamente o tráfico de escravos para o Brasil. Tudo indica que nascido dois
anos antes da Lei Euzébio de Queiroz, aproveitou a coincidência de ter o mesmo
prenome para incorporar ao seu, aquele do responsável pela lei que impediria,
no futuro, que outros africanos fossem caçados na África e enviados para o Brasil
como escravos. Ele não poderia saber que a escravização de seus pais foi facilitada
pelo não cumprimento da lei anterior de 1831, da qual o político acima também foi
em parte responsável e, dessa forma, carregou durante toda a vida o nome daque-
le a quem considerava, equivocadamente, um benfeitor de sua raça.34
O outro sobrenome, Barcellos, veio de seu proprietário, quiçá do próprio
Cosme, talvez o primeiro, Cipriano Rodrigues Barcellos. Nos primeiros momentos
de sua aparição em jornais, ele é apresentado como Euzébio Barcellos, ou como
Euzébio de Queiroz Coutinho, mas por fim, afirma-se com todo o seu nome, pelo
qual deveria ser conhecido por todos na cidade.
Pelotas, a cidade na qual Euzébio estava começando sua vida livre, era uma
das mais importantes do estado gaúcho, muito rica e frequentada devido aos ne-
gócios do charque, pois possuía um porto fluvial bem frequentado por navios,
além de distar apenas 60 km do porto de Rio Grande, o que permitia muita intera-
ção com outras regiões. Seu comércio era muito forte e, nas duas décadas finais
do século XIX, estava em processo de industrialização acelerado. Sua população
estava dividida entre uma elite culta e educada, que cultivava as artes, a música e
o teatro, e era composta de uma grande massa de trabalhadores, muitos dos quais
estrangeiros, vindos à cidade como artesãos, ou estabelecendo-se nas colônias do
município como agricultores. Sua população escrava, que já tinha se constituído
em quase metade dos seus habitantes em meados do século, estava restrita a oito 198
mil cento e quarenta e uma pessoas em setembro de 1873, e cinco mil novecentos
e dezoito em julho de 1884.35 Logo a seguir, com a campanha da Emancipação
(transformação dos cativos escravos em cativos contratados), esse número bai-
xou significativamente, mas ainda em inícios de 1888 deveria haver por volta de
dois mil escravos na cidade.36
Sabe-se que Euzébio, mesmo escravizado, já era reconhecido por parcela sig-
nificativa da comunidade negra pelotense como pessoa de confiança (mesário de
irmandade, tesoureiro de sociedade lotérica) e como liderança, tanto que fez par-
te da primeira comissão do Centro Ethióphico em outubro de 1884.37 Esse Centro
foi criado pelos afrodescendentes para representá-los na campanha da emancipa-
ção de 1884 — no esforço de transformar todos os escravos em contratados com
liberdade sujeita à prestação de serviços —, encaminhada pelos senhores como
forma de terminar com a escravidão de forma moderada e gradual.38
Neste cargo, como em outros posteriores, vai aparecer uma característica
fundamental de Euzébio: sua ligação com a Igreja Católica, provavelmente um dos
meios pelos quais ele mais se utilizou para ser reconhecido pela comunidade negra
e obter o respeito dos brancos. Essa aliança esteve presente em toda sua vida, ini-
34 Sobre a atuação do político Euzébio de Queiroz Matoso, ver: CHALHOUB, S. A força da escravidão. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012.
35 Quadro demonstrativo da população escrava no município de Pelotas, província de São Pedro do R. S. de
30 de setembro 1873 a 30 de junho 1884. Correio Mercantil.Pelotas, 23 ago. 1884.
36 Dados sobre economia e sociedade do município de Pelotas e sua população no início da República estão
disponíveis em: LONER, Beatriz. Construção de classe. Op. cit. cap. 1.
37 A Discussão. 17 jan. 1884.
38 Sobre os contratos, ver: MOREIRA, Paulo Roberto S. Faces da liberdade. Máscaras do cativeiro. Porto Ale-
gre: EDIPUCRS, 1996. Sobre a organização negra na cidade, ver: LONER, Beatriz. Abolicionismo e imprensa
em Pelotas. In: ALVES, Francisco (org.) Imprensa, história, literatura e informação. Rio Grande: EDFURG,
2007, p.57-64.
39 Lembrando novamente que só se conseguiu saber algumas diretorias dessas irmandades, Euzébio teve
participação na Irmandade do Rosário como mesário (J. Comércio, 06 out. 1880) e como presidente (A
Opinião Pública, 10 fev. 1928), na devoção de São Benedito em 1909, como juiz protetor (Livro de atas da
Devoção de São Benedito). No Asilo, ele participou como diretor em 1909 e 1911 (A Opinião Pública, 31 mar.
1909 e Diário Popular, 14 abr. 1911).
40 Jornal Onze de junho, 13 nov. 1888.
41 Correio Mercantil, 24 ago. 1890. Mas logo a seguir, chama-se eleição e ele fica apenas na Comissão de
contas.
42 BISPADO DE PELOTAS, Livro 8 de Batismo de Escravos, anos 1879 a 1884, folhas 25, 31, 36 e 37. As mães de
cada uma das crianças eram escravas de diferentes senhores.
43 Diário Popular, 06 maio 1893.
44 Conforme sua declaração, inserida no Jornal O Rebate, 26 set. 1916. Durante pesquisas anteriores, anún-
cios e notícias sobre sua sociedade de dança já haviam sido encontrados nos jornais, mas não anotados,
porque nada indicava sua origem escrava e operária e o foco do interesse eram os proletários pelotenses.
Biblioteca Pública Pelotense, muito frequentado por ex-cativos como ele. Nesse
momento, como em vários outros, não é informada sua filiação e tudo indica que
deve ter estudado por poucos meses, pois não se rematricula e não há outros
apontamentos a respeito.45 Entretanto, deve ter aprendido a ler e a escrever, pois
sabia assinar seu nome, demonstrando, mais tarde, ser leitor de obras religiosas.
Ele vai preocupar-se em dar boa educação à sua filha Marina, o que não era comum
em inícios do século XX para mulheres.
Ao se matricular na escola da biblioteca, ele constou como solteiro, mas deve
ter casado mais ou menos por esta época, pois sua única filha nasceu em agosto
de 1886 aproximadamente. Sua esposa, Margarida Dias Barcellos, já possuía três
filhos e há fortes indícios de que tinha sido escrava, bem como sua primeira prole.
Um de seus filhos, à época de seu inventário, tinha paradeiro desconhecido, e os
outros dois eram analfabetos, em contraste com a educada letra de Marina, o que
é prova evidente do investimento em sua educação.
45 ���������������������������������������������������������������������������������������������������������
Arquivo Histórico da Biblioteca Pública Pelotense, livro de matriculados nos cursos noturnos desta Insti-
tuição, p. 49. Agradeço à Mariana Couto Gonçalves pela cópia da informação, a qual foi negada o acesso a
dois dos autores.
46 APERS. Processo n.1175. Inventário de Margarida Dias Barcellos, inventariante: Euzébio de Queiroz Couti-
nho Barcellos, fundo 48, Comarca de Pelotas, ano 1904.
47 Respectivamente, A Pátria, 07 jul. 1890 e Diário Popular, 03 maio 1900.
48 Jornal O Rebate, 26 set. 1916.
49 Sobre as relações dos trabalhadores negros e brancos com os partidos na cidade, ver: LONER, Beatriz.
Construção de classe. Op. cit., cap. 7.
50 Jornal O Libertador, 25 abr. 1924.
51 APERS. Inventário n. 137, ano 1928. Inventariado: Euzébio Coutinho Barcellos, inventariante: Marina de Bar-
cellos Araújo. Fundo 48, Pelotas. Note-se que o inventário fala realmente de prédios, ou seja, edificações,
mas não as detalha, como era o comum em outros inventários.
52 Jornal O Dia, Pelotas, 25 set. 1916.
53 APERS. Processo de esbulho n. 521, ano 1921, fundo Pelotas Ré: Rosa Farias, suplicante: Euzébio Coutinho
Barcellos.
54 Jornal A Alvorada, Pelotas, 13 ago. 1916.
De curandeiro a doutor
O episódio que levou Euzébio a virar doutor, ou seja, médico licenciado e
com placa na porta, é ilustrativo pela maneira como ele se colocava frente à vida,
202
aceitando os seus desafios e procurando vencê-los dentro do que era considerado
legal e aceitável pela sociedade. Tudo começou com uma figura bem relacionada
em Pelotas, o Dr. Antônio Gomes da Silva, branco, juiz, advogado, com pretensões
literárias, cuja vaidade era maior do que seus talentos e cujas obsessões o levaram
ao descrédito.
Gomes da Silva arrendou o jornal A Opinião Pública, de 1913 a 1915, e lhe im-
primiu seu estilo. Figura singular e narcisista, queria ser reconhecido pelos seus
talentos teatrais e literários, sendo anticlericalista ao extremo, motivo pelo qual
até hoje é posicionado por alguns cronistas e historiadores desavisados entre os
militantes anarquistas da cidade. Realmente, envolveu-se com a Liga Operária da
cidade, auxiliando a fundar um Centro de Estudos Sociais. Porém, em pouco tem-
po, suas ideias chocaram-se com aquelas dos libertários operários da Liga, os quais
cortaram suas pretensões de organizador e articulador de eventos na entidade,
ridicularizando suas propostas e denunciando a postura conservadora e subser-
viente aos poderosos que imprimia a seu jornal.58
Gomes da Silva, então, voltou-se a outra de suas obsessões e envolveu-se em
desastrada campanha com sátiras à Igreja Católica e às autoridades eclesiais da re-
gião, em artigos em verso e prosa contra o bispo. Rimada, sua poesia satírica é até
divertida de ser lida hoje em dia, não foi assim considerada na época, pois o Bispo
lhe lançou a excomunhão. Também ordenou a devolução do jornal e o rompimento
das assinaturas a todos os fiéis, sob risco de excomunhão. A viúva proprietária
55 Jornal A Alvorada, 05 dez. 1908, citado em 04 dez. 1954 (coluna Coisas do passado).
56 Jornal A Opinião Pública, 13 mar. e 26 maio 1909.
57 APERS. Inventário de Euzébio de Queiroz Coutinho Barcellos, inventariante: Marina Barcellos de Araújo,
autos n. 137, ano 1928, fundo 48, Pelotas.
58 Ver a respeito: LONER, Beatriz. Construção de classe. Op. cit.
59 LONER, Beatriz. Jornais pelotenses diários na República Velha. Ecos Revista, v.2, n.1, Pelotas: Educat, abr.
1998, p. 5-34.
60 ���������������������������������������������������������������������������������������������������������
Freitas (1880-1950) também era advogado, filólogo, literato e teatrólogo. Dados retirados de ALVES, Fran-
cisco das Neves. O partidarismo por opção discursiva: o Echo do Sul e seu discurso político partidário. Rio
Grande: Furg, 2001, nota 31.
61 As reportagens de O Dia encontram-se neste mesmo jornal dos dias 09 de setembro de 1916 até 10 de ou-
tubro do mesmo ano.
A descrição do jornal sobre o ritual praticado em sua casa, nas “sextas feiras
de holocausto”, como as chamava, e com a presença de vários negros e mulatos,
parecia ser de um culto afro-brasileiro com ingestão de alimentos rituais e banhos de
descarrego, mas identificar suas origens não é o objetivo aqui.64 Sua casa, bem como
de Constantina, são descritas como casas com certa preocupação de luxo, e seus
fregueses ― o repórter apressa-se em atestar ―, pertencem a gente de posses.
Mas, sem apoio e sem padrinhos na sociedade, logo que saíram as reporta-
gens, este Euzébio da Silva tratou de encerrar o expediente de curandeirismo, pelo
menos por um tempo, voltando à profissão de vendedor em quiosque, segundo o
jornal, que se ufanava de tê-lo derrotado.
Sendo este removido, o repórter de O Dia voltou-se confiantemente para Eu-
zébio Coutinho. Mas então, teve uma surpresa. O “outro Euzébio” como tentou
chamá-lo, disfarçando suas intenções, mostrou-se mais poderoso do que imagina-
vam os seus redatores. Nas reportagens iniciais sobre ele, o jornal insinua que já
sabia muito de sua atuação, que se tratava de um curandeiro de “alto calibre”, o
“famoso” Euzébio Coutinho, muito conhecido da sociedade e cuja casa, afirmava,
era frequentada por gente da própria elite que sequer se imaginaria indo consultar
um feiticeiro.
O repórter o descreve como muito velho, pela barba branca, e alude a que,
no passado, foi professor de danças na cidade, antes de passar a “mandingueiro
completo e refinado”. Confessa que Euzébio lhe causara impressão mais forte do
que os demais, com sua voz pausada, uma figura paternal e uma postura “sacer-
205 dotal”, embora seu falar fosse “pernóstico, demorando-se nos SS e procurando
proferir frases arredondadas, com a preocupação de se mostrar um Hipócrates
em pessoa, pois, além da parte ritualesca da feitiçaria, ele exerce a medicina e a
farmácia”, como o provaria a beberagem que lhe fez comprar.65 Não deixa, porém,
de observar que a ação de Euzébio “é preponderante sobre as pessoas católicas,
pois começa de intencioná-las com uma grande cruz de metal amarelo que traz
pendente da cintura, lado direito”.
Ainda nessa primeira reportagem, o chama de “preto vadio e esperto” que
amealhou muitas propriedades, explorando infelizes supersticiosos, pois se cons-
titui num “madraço” de “alto calibre”. Mais tarde, em pleno conflito com ele, vai
promovê-lo a “bispo das bruxarias” da cidade. Deve-se notar que, naquele contex-
to e momento, a palavra bispo era sempre relacionada com a Igreja Católica, o alvo
escondido do jornal.
Suas reportagens dizem ter o objetivo de chamar a atenção da polícia para
as atividades desses curandeiros, se colocando à disposição para testemunhar e
enviar as provas à omissa polícia, colocando-se na nobre missão de saneamento da
sociedade, pela qual o jornal estaria recebendo muito apoio, segundo informam. A
descrição da casa de Euzébio e de seu consultório é feita da seguinte forma:
64 �����������������������������������������������������������������������������������������������������������
As principais reportagens sobre Euzébio da Silva, com a descrição do ritual, saíram nos dias 20 e 21 de se-
tembro de 1916, do jornal O Dia.
65 Jornal O Dia, 25 set. 1916.
A seguir, dias 26 e 27, narra como foi o atendimento de seus pretensos ma-
les, o quanto Euzébio lhe cobrou pelos serviços prestados. A crer nas reportagens,
as práticas de Euzébio centravam-se em rezas católicas, benzeduras e uso de fogo
e água para descobrir quem trazia o mal para seu cliente. Por fim, entregou-lhe
uma garrafa com um líquido e a recomendação que tomasse três goles dela pela
manhã, antes tomando colheres de azeite morno. Julgando que essa seria sua
grande prova, o jornal diz que a enviou para análise. Ainda, a reportagem insinua
que pessoas já teriam morrido ao tomar essas “beberragens sujas”, embora fale
em tom generalizante e não de Euzébio em particular.
Confiante de seu sucesso, dia 28, sob a manchete em grandes letras: “Guerra
aos embusteiros e charlatãs” (sic) proclama o resultado da análise da beberagem
de Constantina, em que foram detectados areia vermelha e um pó escuro, com
resíduos de “ácido fosfórico, cal, traços de arsênico e de sódio”, o que o jornal liga
imediatamente à terra de cemitério. Bem, depois desses feitos, suas reportagens
perdem o tom, porque embora tente manter a empáfia e o tom duro contra os
“feiticeiros”, o jornal começa a revelar as pressões que andam sofrendo de parte
dos acusados e de outros setores, que não nomina.
Assim, já incomodado e pressionado pelas repercussões e ações de Euzébio,
O Dia anuncia o pretenso depoimento de um vizinho, comerciante estabelecido 206
nas redondezas, cuja mãe foi enganada por esse curandeiro. Nesse relato anôni-
mo, afirmava-se que Euzébio fazia magia negra, com bonequinhos a serem tres-
passados com alfinete.67 Entretanto, embora diga que esse informante virá teste-
munhar “às claras” sobre o que aconteceu com sua família, isso nunca acontece,
e, com isso, o jornal foi perdendo sua credibilidade. Um dos principais reveses que
sofre é o resultado da publicação da análise química dos compostos utilizados
pelos curandeiros, que atesta que a amostra fornecida por Euzébio não contém
nada mais que cocção de ervas indígenas misturadas à canela e açúcar, sem traço
sequer de elementos nocivos à saúde.68 A pouca validade da denúncia dos chás ca-
seiros, a ausência de depoimento do informante anônimo ou a declinação de seu
nome, fez com que, sem o combustível para suas denúncias, o jornal diminuísse o
seu ímpeto, citando casos aqui e acolá, sem mais tentar escândalos com o agora
chamado de “insolente” Euzébio.
O evidente mal-estar do jornal tem razão de ser: desde que saiu a primeira
reportagem, Euzébio Coutinho tomou medidas para se proteger e desfazer o con-
teúdo das reportagens — ele as acusa de mentirosas e espalhafatosas —, com
o objetivo de vender jornais e/ou fazer chantagem contra ele, já que a empresa
estaria com suas “finanças avariadas”69. Para defender-se das denúncias, encon-
trou apoio dos vizinhos, amigos e alguns clientes que firmaram abaixo-assinado,
testemunhando em seu favor, por meio do jornal O Rebate (em 28 de setembro de
1916). Também fez reuniões de apoio em salões da cidade, buscou o licenciamento
médico na capital, além de outras possíveis ações, que se pode apenas intuir, para
com padrinhos e pessoas influentes, pelos resultados alcançados. E depois, passou
ao ataque,
A primeira medida foi colocar um Apedido no jornal O Rebate. Nele, Coutinho
lembrava que já uma vez teve que se diferençar de Euzébio da Silva, em esclare-
cimento datado de maio de 1915, o qual ele republica dia 26 de setembro de 1916,
acrescentando novos comentários sobre as denúncias de que foi vítima. Assim, Eu-
zébio Coutinho primeiro se distingue de Euzébio da Silva e depois passa a discorrer
sobre sua vida.
Como é o único momento em que ele sintetiza sua trajetória, vamos colocar
sua visão:
Sou filho daqui, meus pais eram africanos, educaram-me conforme suas
posses e conhecimentos, e eu tive a felicidade de viver sempre em per-
feita harmonia nesta cidade.
Fui casado e atualmente sou viúvo, contando 67 anos de idade.
Há muitos anos venho dando instruções de danças, tendo sido os meus
ensaios frequentados por muitos dignos moços, comerciantes, acadê-
micos, empregados do comércio, operários, etc., e isto sempre com a
máxima simpatia e respeito.
Sou conhecido pelas autoridades e pelas pessoas de minhas relações,
como chefe de família e respeitador da ordem, e também proprietário
nesta cidade, residindo à rua Marques de Caxias n. 470.
A minha casa está franca a devassa do público e das autoridades. Ali não
há bruxarias, nem mandingas, nem feitiços, nem burundangas congê-
neres. Tenho um altar com os santos que venero. Isso é um direito que
ninguém me pode extorquir, pois a Constituição do meu país garante a
liberdade de cultos, maximé portas à dentro do meu lar.72
Neste momento, afirma que o objetivo do jornal seria fazer chantagem, ex-
torquindo-lhe “o que tenho honestamente adquirido” e diz ter trazido até a reda-
ção de O Rebate várias pessoas que atestaram suas curas. No dia seguinte repete-
Saiba o João Ninguém das torturas, que me não troco por si e por toda
a sua bagagem. Sou preto, mas me considero muito acima de cafajestes
como esses que me estão agredindo porque não lhes quis tapar a boca
com alguma nota do tesouro, de alto valor, ou com algum dos meus
bens de raiz, que tanto os desespera.
Nunca andei fugido, nunca fui condenado por caluniador, nunca roubei
a propriedade literária de outrem, nem andei as voltas com a polícia. Ja-
mais fui encontrado bebendo ou nos antros de perdição, às voltas com
as marafonas de ínfimo jaez, como era visto, no Rio Grande, o sevandijo
que ora me ataca, procurando cuspir-me o pus da sua alma podre e re-
pelente.73
Farçante! Pulha!
Se ele tivesse brio, quebraria a pena que tanto tem poluído e achinca-
lhado, para entrar para a empresa do lixo e meter-se entre varais, único
lugar que lhe compete.
Engana-se o biltre se supõe que eu me submeterei as suas diatribes.
Hei de vergastal-o com a minha altivez, dizendo o que ele foi, o que é,
e o que há de ser – um nulo, chato, pretensioso e charlatão, que vive
sonhando grandezas, quando não passa de um...
qualquer coisa.
Pelotas, 28 de Setembro de 1916.
Euzébio de Queiroz Coutinho Barcellos.74
73 O Rebate, 28 set. 1916. Ao longo do artigo, ele insinua que um dos seus detratores esteve envolvido com a
tortura, em cidade próxima, que deve ser Rio Grande. Como o estado havia passado pelo conflito oligárquico
de 1893, em que a violência ocorreu de lado a lado e a cidade de Rio Grande, durante algum tempo, concen-
trou boa parte dos opositores a Castilhos, é possível que estivesse se referindo a algum evento lá acontecido.
Mas facilmente pode também ser uma calúnia, feita apenas para desmoralizar seus antagonistas.
74 O Rebate, Idem.
durante toda sua vida, que transcorreu dentro dos marcos da legalidade permiti-
da. O fato de ser professor de dança deve tê-lo deixado em contato constante com
as gerações de moços da elite, com quem seguramente contou num momento
desses. A redação e os termos utilizados em suas respostas indicam que provavel-
mente foram redigidas por outros75, mas firmadas por ele; portanto, qualquer tipo
de responsabilidade ou processo por difamação recairia sobre ele; não há notícias
ou processos que provem que essa querela foi parar na Justiça, nem de seu lado,
nem do jornal.
Seus inimigos, por outro lado, não tinham ligações fortes com a cidade e
com o poder municipal. Não sendo parte das famílias da elite, sendo adversários
da Igreja Católica, forasteiros com qualificação bacharelesca, e um ou dois deles
com passagem pela oposição ao PRR: realmente não estavam bem municiados
para o embate, mesmo com um negro ex-escravo. Não se conseguiu saber a quem
Euzébio pretendia atingir com as insinuações de torturas, plágio, ou conduta imo-
ral. Talvez nunca se possa saber ao certo se suas acusações tinham ou não razão
de ser; o importante é que elas surtiram efeito: as reportagens do jornal termina-
ram, o delegado de polícia não tomou nenhuma providência e tudo que restou aos
redatores foi, desconsoladamente, publicar uma última notícia, dia 10 de outubro
de 1916, denunciando a passividade dos policiais frente à festa com foguetório e
bombas reais com que foi inaugurada a placa de médico de Euzébio.76
Como resultado desse escândalo, Euzébio deve ter encontrado alguns pro-
blemas para explicar sua situação com a Igreja, mas pela própria descrição de seus
209 inimigos fica claro que sua fama e suas práticas de culto eram todas marcadas pelo
símbolo da cruz e do catolicismo. O próprio repórter não pôde descrever nenhuma
estátua que não de santos católicos em seu altar e “dois imensos rosários”, ainda
acrescentando que Euzébio mencionava que curava em nome de São Zacarias, São
Jerônimo e São Praxedes e que parecia rezar o Pai Nosso com “sinceridade”77.
Assim, credenciado até pelos inimigos, Euzébio deve ter conseguido refazer seus
laços com a Igreja rapidamente, pois continuara a pertencer às mesmas entidades
católicas de antes.
E, para completar, já que dizia trabalhar dentro da lei, ele pede ― e consegue
em tempo espantosamente curto ― a licença para atuar como médico, o que era
permitido pelas leis do estado, conforme o artigo 71, parágrafo 5: “não são admi-
tidos também no serviço do estado os privilégios de diplomas escolásticos ou aca-
dêmicos, quaisquer que sejam, sendo livre no seu território, o exercício de todas as
profissões de ordem moral, intelectual e industrial”.78
Joaquim Osório, em Comentários à Constituição política do estado do Rio
Grande do Sul, obra considerada como documento básico da doutrina castilhista,
considera que a seleção de profissionais habilitados para o exercício de qualquer
profissão é uma escolha do cliente e que não deve o estado interferir nessas ques-
tões, o que configuraria uma “tirania revoltante”, especialmente no caso particu-
lar da medicina. O que cumpre ao estado é zelar para que não haja possibilidade de
fraude ou engano do profissional para com seu paciente e cuidar de punir a quem,
75 ����������������������������������������������������������������������������������������������������������
Do próprio punho de Euzébio tem-se sua assinatura, no inventário da esposa, que indica falta de familiari-
dade com a escrita, pelo menos.
76 O Dia, 10 out. 1916. Remoído pela raiva, o redator menciona uma festa “com bródio e vinhaça”, mas, pode-se
imaginar que isso corre pelo seu ressentimento, pois seguramente foram servidos finos doces pelotenses
e vinhos estrangeiros, além de cerveja, comprados nos melhores estabelecimentos da cidade.
77 O Dia, 25 set. 1916.
78 OSORIO, Joaquim. Constituição política do Estado do Rio Grande do Sul: um comentário. Brasília: EdUNB,
1981, transcrição da constituição do estado, artigo 71, parágrafo 5.
211
Não é objetivo aqui a análise de suas sessões de cura ou dos remédios que
empregava, o que serve apenas para demonstrar que, em sua vida republicana, Eu-
zébio também se utilizou de suas vivências e experiências anteriores, as quais, em
parte, haviam sido “esquecidas” pela comunidade negra urbana pelotense. Mesmo
profundamente entrosado no contexto social do século XX, Euzébio ainda cultivava
os traços das experiências dos africanos que mais o interessavam. Seguramente
não foi à toa que ele e seu irmão, juntamente com outros negros oriundos de an-
tigas charqueadas (conforme dedução possível a partir dos patronímicos que utili-
zaram), fundaram uma sociedade que ainda relembrava os africanos, como se viu
acima. Para Euzébio e outros ex-escravos, o Brasil da modernidade e da integração
ao capitalismo industrial, sonhado e louvado por todos, no início do século XX, ain-
da podia se beneficiar de práticas mais antigas, mesmo que de forma camuflada.
A este respeito, fica como curiosidade o relato de que, quando os autores deste
artigo estavam buscando por memórias sobre Euzébio na cidade, ficaram sabendo
que, durante o século XIX e XX existiu em Pelotas um espaço constituído por algu-
mas ruas perto do porto, chamada hoje Zona da Balsa, ocupadas preferencialmen-
te por africanos dessa procedência. A menção do nome de Euzébio Coutinho Bar-
cellos, para um idoso afrodescendente, ainda provocou inquietação, acompanhado
da pergunta sobre por que queríamos saber dos “minas” na cidade. Infelizmente,
nada mais se quis falar sobre esse assunto, embora várias vezes fosse procurado.
Seu receio retorna a questão de temores do passado. Segundo Juliana Farias,
no Rio de Janeiro durante o período imperial, os minas tinham o domínio da venda
de feitiços aos brancos, que os temiam. Essa autora, por meio das crônicas de João
do Rio, articula a procedência mina (variada e genérica também naquela província)
ao comércio de feitiçarias, benzeduras e outras práticas, com grande sucesso.83
Em todo o Brasil Império, houve uma aura sobre o “preto mina”, normal-
mente considerado ardiloso, capaz de muitas formas de resistência e pessoa a
qual tanto os outros negros como os brancos temiam. Segundo Chalhoub, no Rio
de Janeiro se consolidou a história do liberto mina como agente que seduzia os de-
mais escravos a se deixarem vender para outros senhores, o que poderia ser uma
forma de buscar um cativeiro menos duro ou reencontrar as pessoas amadas.84
Sabe-se que os minas ou nagôs, quase que em toda parte, conseguiam libertar-se
mais frequentemente do que os escravizados de outras etnias.
Euzébio, como descendente desse grupo e do qual nunca se desligou, teve
êxito em sua função de curador também por causa de sua ascendência e, provavel-
mente, dos segredos que trazia do cativeiro. A análise do chá caseiro que passou
ao repórter (que deveria ser combinada com a ingestão de “azeite doce” aqueci-
do) deixa claro que muito havia de sabedoria negra e indígena em suas práticas, as
quais, por outro lado, se acoplavam a uma visão bastante espiritualizada da medi-
cina, considerando que não era apenas o corpo, mas também o espírito, que devia
ser curado em caso de doenças. Segundo J.J. Reis, “a farmacopeia nagô-iorubá...
é riquíssima em folhas tanto para ataque, quanto para proteção, para beneficiar e
prejudicar...”85
Cabe, ainda, uma palavra final sobre esta personagem e ela vai ser feita no
plural: a análise da trajetória de Euzébio nos custou muito tempo e foi feita com
muito cuidado por todos os integrantes da equipe. Isso não significa que fomos
motivados apenas pela curiosidade, ou pelo afã de demonstrar a trajetória de um
indivíduo com um perfil oposto ao que se espera de um ex-escravo de charqueada.
Na verdade, o personagem é fascinante por si mesmo e, embora no início tenha
212
sido desprezado, porque não era “proletário”, quando o foco recaiu sobre ele, foi
fácil desenvolver uma grande empatia por ele, ao observar suas artimanhas, suas
formas de contornar situações extremamente desfavoráveis para impor seus inte-
resses, desenvolvendo uma trajetória impar.
Euzébio demonstra uma mistura de inventividade e audácia, combinada com
modéstia e discrição, que tornou viável sua trajetória. A maior lição de Euzébio foi
ter conseguido impor-se naquela sociedade, por suas qualidades e por ser sagaz e
astuto. Como ele, outros ex-escravos viveram durante a Primeira República e luta-
ram por melhores condições de vida para seu grupo, em alguns casos para a classe
operária, e, em última análise, para eles próprios e para suas famílias. A reconsti-
tuição dessas múltiplas histórias, tanto as que deram certo como as que falharam,
é fascinante e deve ser feita pelos historiadores de todo o Brasil, pois essa não é
uma questão local.
O objetivo desses estudos, em nosso entender, é o de, em alguns anos, se
ter uma ideia melhor de como homens e mulheres negros, libertos do fantasma
da reescravização e de suas consequências a partir de 1888 (e apesar de tudo o
que se possa falar da precariedade da liberdade nos “tempos modernos” do capi-
talismo) lutaram para viver e adaptar-se às novas condições de vida. Ao longo das
décadas da Primeira República, algumas vezes venceram, na maioria dos casos
foram empurrados para trás, pela sina do operariado no Brasil e pela frustrante e
presente discriminação racial que sempre os atingiu. Mas, ao fim e ao cabo, não
foram pobres coitados, incapazes de viver por si mesmos. Buscaram oportunida-
des e empregos, aproveitaram ocasiões e padrinhos, lutaram e militaram alguns,
Recebido em 08/02/2013
Aprovado em 7/06/2013
213
86 THOMPSON, Edward. A formação da classe operária inglesa. v. 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
Resumo: Este artigo tem o objetivo de analisar as estratégias utilizadas pela classe
patronal de Porto Alegre nos embates com o movimento operário organizado e
suas associações nas grandes greves da Primeira República. Pretendo demonstrar
que esse período proporcionou um processo de tomada de ações coletivas e de
um verdadeiro fazer-se da classe patronal, que passou a atuar de modo organi-
zado nas negociações com os trabalhadores grevistas.
Abstract: This paper aims to analyze the strategies employed by the Porto Alegre’s
employer class during the Brazilian’s First Republic period strikes. I intend to show
that this period provided a process of taking collective action and make a real up
the employer class, which began operating in an organized manner in the negotia-
tions with the striking workers.
Em 1917 e 1918, talvez por causa da influência da carestia provocada pelo cenário
internacional conturbado, as reivindicações foram dirigidas prioritariamente ao
governo do estado. Tratava-se de uma disputa entre interesses evidentemente
incompatíveis, durante a qual os patrões foram, gradativamente, organizando-se
como classe, a fim de enfrentarem o repertório de ações coletivas do operariado,
repertório este informado por uma longa tradição militante.
Antes, contudo, vou procurar entender quem eram os patrões em Porto Ale-
gre naquela conjuntura e em que ramos atuavam, considerando que “os empre-
gadores são um ator central nos conflitos do trabalho”, sendo, juntamente com o
estado, “o adversário e o interlocutor privilegiado dos grevistas”.2
2 SIROT, Stéphane. La Grève em France: une histoire social. (XIX-XX siècle). Paris: Odile Jacob, 2002, p. 201.
3 Ver, por exemplo: PESAVENTO, Sandra Jatahy. A Burguesia Gaúcha: dominação e disciplina do trabalho.
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988; SINGER, Paul. Desenvolvimento Econômico e Evolução Urbana (análise
da evolução econômica de São Paulo, Blumenau, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife). 2.ed. São Paulo: Na-
cional, 1977.
4 PESAVENTO, Op. cit., 1988, p. 20.
5 Idem, p. 21.
6 Ibidem, p. 19.
7 REICHEL, Heloisa Jochims. A Industrialização do Rio Grande do Sul na República Velha. In: DACANAL, José
H.; GONZAGA, Sérgius (orgs.). RS: Economia e Política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979, p. 257.
8 ARAVANIS, Evangelia. A industrialização no Rio Grande do Sul nas primeiras décadas da República. Revista
Mundos do Trabalho, Porto Alegre: UFSC, v. 2, n.3, 2010, p. 152.
9 MARCOVITCH, Jacques. Pioneiros e empreendedores: a saga do desenvolvimento no Brasil. São Paulo:
EdUSP, v.2, 2005, p. 274.
10 ��������������������������������������������������������������������������������������������������������
Alberto Bins foi um dos industriais mais importantes de Porto Alegre. Era proprietário nos ramos da fun-
dição (União de Ferros, Cofres Berta) e da estalagem (Estaleiro Bins). Tornou-se Intendente Municipal
após a morte de Otávio Rocha, em 1928. FAUSEL, Erich. Alberto Bins: o merlense brasileiro. São Leopoldo:
Rotermund & Cia. Ltda., s.d.; BAKOS, Margareth. Porto Alegre e seus eternos intendentes. Porto Alegre: Edi-
PUCRS, 1996; PESAVENTO, Sandra. O Imigrante na Política Rio-Grandense. In: DACANAL, José; GONZAGA,
Sérgius (org.). RS: Imigração e Colonização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992.
11 LLOYD’S, Reginald (edit.). Impressões do Brazil no Século Vinte: sua história, seo povo, commercio, indus-
trias e recursos. Rio de Janeiro: Lloyd’s Greater Britain Publishing Company Ltda., 1913, p. 814.
12 Inaugurada em 6 de agosto de 1891, com o capital de Rs. 1.600:000$000, foram seus incorporadores os srs.
Manoel Py, Antonio Chaves Barcellos, Nogueira de Carvalho & Cia., Antonio José Gonçalves Mostardeiro e
o Banco da Província do Rio Grande do Sul. A empresa era administrada por três diretores, eleitos de dois
em dois anos.
13 LLOYD’S, Op. cit., 1913, p. 814.
14 Revista Máscara, Porto Alegre, 1922. apud PESAVENTO, Op. cit., 1988, p. 39.
15 PESAVENTO, Op. cit., 1988, p. 21.
16 ���������������������������������������������������������������������������������������������������������
Pesavento, analisando alguns textos publicados na imprensa gaúcha, mostra a nítida influência dos precei-
tos tayloristas sobre o empresariado local. PESAVENTO, Op. cit., 1988, p. 23. Sobre Taylor e sua doutrina,
ver: RAGO, Luzia Margareth; MOREIRA, Edmundo E. P. O que é Taylorismo? São Paulo: Brasiliense, 1984.
17 Idem, p. 817.
18 Ibidem.
19 A fábrica de Chapéus de Félix Christiano Kessler foi fundada em 1907 com o nome Mayer e Kessler. Em
1908, com a saída de Mayer, a fábrica passou a chamar-se F. C. Kessler & Cia. e a ter como sócio Frederico
Dexheimer. A fábrica se localizava na Rua dos Voluntários da Pátria e, em 1913, era considerada “uma das
mais importantes fábricas do Estado do Rio Grande do Sul”, produzindo “todas as qualidades de cha-
péus”. LLOYD’S, Op. cit., 1913, p. 817.
20 Idem, p. 819.
21 PESAVENTO, Op. cit., 1988, p. 13.
22 SINGER, Op. cit., 1977, p. 172.
23 Sobre o desenvolvimento das ferrovias no Estado, ver: DIAS, José Roberto Souza. Caminhos de Ferro do
Rio Grande do Sul. São Paulo: Editora Rios, 1986.
24 HARDMAN, Francisco; LEONARDI, Vitor. História da Indústria e do Trabalho no Brasil. São Paulo: Global,
1982, p. 66.
219
pregos, fechaduras, fundições...), das fábricas de roupas e chapéus, e de mármore
do estado, totalizando duzentos e vinte e um estabelecimentos industriais dos mil
setecentos e setenta e três registrados naquele momento, quase 12,5% do total de
estabelecimentos. Esse percentual pequeno de indústrias concentradas em Porto
Alegre em relação ao interior do estado se deve ao grande número de estabele-
cimentos ligados à atividade agrária, entre os quais destaco os seguintes: arreios
e artigos de selaria (88), carros e carroças (39), calçados (96), fumos, charutos e
cigarros (47), curtumes (77), serrarias (334), enxadas, foices e outras ferramentas
(30), olarias (152), moagem de cereais (61) e moagem e torrefação de café (63).
Em outro relatório do mesmo ano, relativo ao 4.º Distrito32, percebi a impor-
tância das indústrias de móveis e de tecidos naquela região, empregando, respec-
tivamente, duzentos e cinquenta e um, e mil e quarenta e sete trabalhadores. A
fábrica de doces de Ernesto Neugebauer também se destaca no quesito mão de
obra empregada, com duzentos e vinte funcionários. No mesmo relatório, notei
que a jornada de trabalho nos estabelecimentos daquela região variava entre oito
e doze horas, sendo que quase 75% possuíam uma jornada de nove horas e quase
12% adotavam jornadas superiores a isto.
33 PESAVENTO, Sandra. De como os alemães tornaram-se gaúchos pelos caminhos da modernização. In:
MAUCH, Cláudia; VASCONCELOS, Naira (org.). Os alemães no sul do Brasil: cultura, etnicidade e história.
Canoas: Ulbra, 1994, p. 201.
34 LAGEMANN, Eugênio. Imigração e Industrialização. In: DACANAL, José H.; GONZAGA, Sérgius (org.). RS:
imigração e Colonização. 2. ed., Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992, p. 118.
35 LAGEMANN, Op. cit., 1992, p. 127.
36 PESAVENTO, Sandra Jatahy. In: DACANAL, José H.; GONZAGA, Sérgius (org.). Op. cit., p. 163.
37 ��������������������������������������������������������������������������������������������������������
Fundada em 1857, a Praça do Comércio de Porto Alegre era uma sociedade civil, com personalidade jurídi-
ca, sendo o órgão autorizado do comércio da capital do Rio Grande do Sul.
38 LLOYD’S, Op. cit., 1913, p. 819.
pital, os quais possam significar, por exemplo, acesso direto a recursos econômi-
cos (empréstimos subsidiados, informações de negócios, mercados protegidos),
contatos com especialistas ou com pessoas cultas, e filiação a instituições políticas
e/ou sociais. Assim, os casamentos representam oportunidades de ascensão ou ma-
nutenção de posição social. Um exemplo para o caso específico aqui examinado: ao
analisar as razões da indicação de Alberto Bins para o Legislativo Federal, um docu-
mento manuscrito de 1924, citado por Gertz, afirma que ele era “um bom militante
do catolicismo” e seu nome satisfazia “tanto o elemento católico como o protestan-
te germânico, tanto o comércio quanto a indústria e a lavoura”. Bins agradaria ao
protestantismo germânico em virtude do fato de sua irmã, Ottília Bins, ser casada
com o luterano Hugo Gerdau.43 Os relacionamentos pessoais, familiares e étnicos
acabavam convertidos, enfim, para o campo econômico. Nesse sentido, Flores espe-
cula que João Gerdau, o qual havia possuído negócios de comercialização privada de
terras para fins de colonização com Manoel Py na Colônia de Santo Ângelo, obteve,
por intermédio deste último, informações privilegiadas a respeito das dificuldades
da Cia. Fábrica de Móveis, que teve Py como um de seus liquidantes.44
Além das relações familiares, as empresas de propriedade de alemães e teuto-
-brasileiros também se associavam entre si, gerando diversas inversões de capital
e uma diversificação das suas aplicações. Um bom exemplo desse fenômeno e das
ligações propriamente econômicas estabelecidas entre os membros da comunida-
de germânica é a empresa Bromberg & Cia. De propriedade de Martin Bromberg,
figurava entre as mais antigas e importantes do Rio Grande do Sul. Possuía casas
comerciais em Rio Grande, Pelotas, Santa Maria, Uruguaiana, Passo Fundo e Porto
Alegre, e filiais no Rio de Janeiro, em Buenos Aires e em Montevidéu. A empresa 222
importava ferragens, ferro bruto, maquinismos para toda a sorte de indústrias,
arame, máquinas para agricultores, cimento, tintas, cevada e lúpulo para cerveja-
rias e outros materiais para uso de fábricas diversas. Realizava, ainda, investimen-
tos em fábricas de tijolos, plantações de arroz e serrarias, instalações elétricas e
outras de força e luz. Meu interesse, contudo, consiste em suas associações com
empresários de origem germânica como, por exemplo: Oscar Teichmann, dono de
uma fábrica de chapéus; as casas “João Day, Bromberg & Cia., importadores; Luiz
Noelcher & Cia., negociantes a varejo, de ferragens, utensílios sanitários e casei-
ros; O Cilindro, importadores de máquinas de costura, utensílios para eletricidade,
instalações elétricas, máquinas de escrever, espingardas e armas diversas, muni-
ções etc.; União de Ferros (Bromberg, Daudt & Cia.), importadores de ferro bruto,
aço, cobre, bronze e outros materiais, ferramentas para ferraria e materiais para
construção”.45 Sobre a mescla entre o familiar e o empresarial, Pesavento ressalta:
Christian Jacob Trein e seu cunhado Henrique Ritter Filho eram sócios
não apenas numa casa comercial em Caí, mas também na cervejaria que
fundaram em Porto Alegre, em 1894. Trein e seu genro, o comerciante
Frederico Mentz, montaram, por sua vez, um estabelecimento para re-
finação de banha na capital do Estado. Anton Jacob Renner, filho de co-
merciante proprietário de refinaria de banha, de serraria e de empresas
construtoras de moinhos do Caí, tornou-se sócio da firma comercial de
seu sogro, Christian Jacob Trein. Em 1911, montou uma fábrica de capas
impermeáveis em Caí, com Frederico Engel [...]. Em 1916, transferiu-se
43 GERTZ, René. O Aviador e o Carroceiro: política, etnia e religião no Rio Grande do Sul dos anos 1920. Porto
Alegre: EdiPUCRS, 2002, p. 56.
44 FLORES, Hilda. As empresas de João Gerdau. Porto Alegre: Gerdau, 1980, p. 99; e MARCOVITCH, Op. cit.,
2005, p. 273.
45 LLOYD’S, Op. cit., 1913, p. 819-820. Ver também: PESAVENTO, Op. cit., 1994, p. 201.
224
Varsóvia, com vinte. Outro ramo com significativa participação foi o têxtil, com um
total de oitocentos e sessenta e seis operários em greve. Se fossem somados os
empregados do setor têxtil com os da Cia Força & Luz, daria um total de 65,94% dos
operários acima relacionados. Devo observar, contudo, que o quadro omite impor-
tantes categorias em greve, como os carpinteiros, os sapateiros, os alfaiates e os
operários do ramo metalúrgico, por exemplo. Segundo o Correio do Povo, cerca de
seiscentos metalúrgicos teriam aderido ao movimento51, o que elevaria o número
de grevistas para três mil, demonstrando a força daquele movimento.
49 PERROT, Op. cit., 1984, p. 35-36. Tradução minha. (A referência completa não foi citada anteriormente.)
50 Correio do Povo, Porto Alegre, 06 set. 1919, p. 3.
51 Correio do Povo, Porto Alegre, 18 jul. 1919, p. 4.
52 O Syndicalista, Porto Alegre, 27 maio 1919, p. 2.
53 O Syndicalista, Porto Alegre, 01 maio 1919, p. 3.
54 Idem.
55 O Syndicalista, Porto Alegre, 01 maio 1919, p. 4.
dias, até que os proprietários das alfaiatarias apreciassem uma nova tabela de pre-
ços elaborada pelo sindicato, que foi posteriormente atendido em suas reivindica-
ções.56
Ainda no mês de maio, o Sindicato Padeiral declarou-se em greve, postulan-
do que fossem postos em liberdade os padeiros presos na greve anterior e que
uma comissão de higiene fiscalizasse as padarias mensalmente.57 Este sindicato
também foi bem-sucedido em suas reivindicações.58 No final de julho, o Sindica-
to dos Operários em Calçados proclamou-se em greve, exigindo aumento de 25%
nos ordenados e redução da jornada de trabalho.59 De acordo O Syndicalista, vários
proprietários já teriam cedido às intenções dos grevistas, entre eles: Fábrica Castor,
Sapataria Pontual, Casa Condor, A Pontualidade, Bota de Ouro, Jacinto Pandolpho,
Botinha de Ouro, Sapataria Roma, Pedro Mansur, Theobaldo Klein, João Martineli,
J. Buanove, Maximílio Ouriques, Arthur Hultsch, E. Lima e Cia., Gustavo Hartz, Fre-
derico Strassburger, Avelino Freitas, Alcides Ignácio Moreira e Francisco Brino.60
Uma estratégia desenvolvida pelos proprietários de certos estabelecimentos
com o objetivo de desestimular os operários a aderirem aos movimentos paredistas
e de garantir a continuidade da produção era substituir os trabalhadores em greve.
Segundo Sirot, durante as greves, “a necessidade de manter a produção, reduzi-
da ou suspensa pela greve, se impõe. A maneira mais elementar e a mais direta
consiste na contratação de novos trabalhadores”.61 E em 1919, esse foi um artifício
bastante recorrente por parte do empresariado. A diretoria da Cia. Força e Luz, por
exemplo, “havia conseguido contratar vários maquinistas e foguistas licenciados
225
da armada que aqui se achavam e que deram começo ao trabalho de aquecimento
das caldeiras da usina”, contratando também em São Paulo “pessoal para trabalhar
na sua usina, o qual [tinha] embarcado pela estrada de ferro com destino a essa
capital”.62 A mesma Companhia publicou uma série de anúncios nos quais oferecia
empregos a maquinistas e foguistas interessados em substituir os grevistas.63 A em-
presa, ainda, divulgou na imprensa e afixou o seguinte aviso nas suas portas:
56 O Syndicalista, Porto Alegre, 27 maio 1919, p. 2. Neste número d’O Syndicalista encontra-se a tabela apre-
sentada pelos alfaiates e um boletim da categoria. A tabela foi transcrita em minha tese de doutorado.
Ver também: Gazeta do Povo, Porto Alegre, 15 maio 1919, p. 2. Até o início de junho, apenas “os srs. João
Meneghetti e Sassen não haviam dado a definitiva resposta que, entretanto, sabia-se satisfatória”. Gazeta
do Povo, Porto Alegre, 06 jun. 1919, p. 3.
57 O Syndicalista, Porto Alegre, 01 maio 1919, p. 3. Esta greve foi abordada no capítulo III de minha tese de
doutorado.
58 Gazeta do Povo, Porto Alegre, 26 maio 1919, p. 3.
59 Correio do Povo, Porto Alegre, 29 ago, 1919, p. 4.
60 O Syndicalista, Porto Alegre, 02 ago 1919, p. 3.
61 SIROT, Op. cit., 2002, p. 207.
62 A Federação, Porto Alegre, 05 set. 1919, p. 5. Ver também: Correio do Povo, Porto Alegre, 05 set. 1919, p. 5.
63 Correio do Povo, Porto Alegre, 05 set. 1919, p. 1.
64 A Federação, Porto Alegre, 06 set. 1919, p. 5.
85 PACHECO, Ricardo de Aguiar. A Vaga Sombra do Poder: vida associativa e cultura política em Porto Alegre
da década de 1920. Tese (Doutorado em História), Porto Alegre: UFRGS, 2004, p. 125.
86 Idem, p. 124.
87 FAUSEL, Erich. Alberto Bins: o merlense brasileiro. São Leopoldo: Rotermund & Cia. Ltda., s/d, p. 12.
88 A Federação, Porto Alegre, 29 set. 1920, p. 4.
89 ���������������������������������������������������������������������������������������������������������
Em 1918, Victor Adalberto Kessler havia sido eleito por unanimidade suplente da diretoria do Banco Nacio-
nal do Commércio em Porto Alegre. Correio do Povo, Porto Alegre, 21 mar. 1918, p. 4.
90 A Federação, Porto Alegre, 03 out. 1924, p. 3.
91 QUEIRÓS, César A. B. O governo do Partido Republicano Rio-grandense e a questão social (1895-1919). Dis-
sertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2000.
92 MENSAGEM do Presidente do Estado à Assembleia dos Representantes. 1903, p. 8.
93 PINTO, Celi Regina. Positivismo: um Projeto Político Alternativo (RS: 1889-1930). Porto Alegre: L&PM,
1986, p. 15.
94 PESAVENTO, Op. cit., 1988, p. 238.
95 Idem, p. 239.
Horário ― o horário oficial será de oito horas por dia. Toda vez que em
uma oficina houver trabalho fora do horário, “o operário por dia” perce-
berá neste caso o correspondente por hora de trabalho, sobre sua diária.
96 Ibidem, p. 241.
97 PESAVENTO, Op. cit., 1988. p. 239-240.
98 O Syndicalista, Porto Alegre. 03 set. 1919, p. 3. Sobre este movimento, Friedrich Kniestedt ― que era tesou-
reiro do referido Sindicato ― menciona que os trabalhadores em madeira tinham entrado em greve em
solidariedade aos trabalhadores da indústria metalúrgica que reclamavam por uma jornada de oito horas
de trabalho. GERTZ, Op. cit., 1989, p. 127.
99 RELATÓRIO do Chefe de Polícia Interino Eurico de Souza Lustosa, Porto Alegre, 1920, p. 355-357 (BPERS).
100 Fundada por Simon Kappel e Edmundo Arnt em 1869, passou a chamar-se Arnt, Depperman & Cia. após a
saída do sócio João Kappel Sobrinho, filho de Simon Kappel.
101 Correio do Povo, Porto Alegre, 06 ago. 1919, p. 4.
102 Correio do Povo, Porto Alegre, 12 ago. 1919, p. 4. Segundo Pesavento, “a remuneração por peça atuava
como um estímulo para trabalhar mais e obter um maior salário, o que redundava, na prática, em dilatação
da jornada de trabalho”. PESAVENTO, Op. cit., 1988, p. 52.
103 Correio do Povo, Porto Alegre, 12 ago. 1919, p. 4. O Sindicato dos Marceneiros, Carpinteiros e Classes Ane-
xas distribuiu um boletim intitulado Aos trabalhadores e ao Povo em geral no qual justificava a recusa da
oferta dos proprietários de fábricas e oficinas. Aos Trabalhadores e ao Povo em Geral. Anexo 21. In: ESTADO
DO RIO GRANDE DO SUL. Arquivo Público do Estado. Processo-Crime n.º 1016. Porto Alegre: 1917.
104 GERTZ, Op. cit., 1989, p. 127.
105 Correio do Povo, Porto Alegre, 12 ago. 1919, p. 4.
106 Correio do Povo, Porto Alegre, 12 ago. 1919, p. 4.
107 SIROT, Op. cit., 2002, p. 210.
108 TREU, Tiziano. Lock-Out. In: BOBBIO, Norberto (org.). Dicionário de Política. Brasília: Universidade de Bra-
sília, 1998, p. 731.
109 SIROT, Op. cit., 2002, p. 210.
patrões combativos ou bem organizados [...] como uma resposta, quase imediata,
destinada a mostrar a sua vontade de resistir e, assim, colocar um fim rápido ao
conflito”.110 Segundo Treu, o lockout pode ser defensivo ou ofensivo, sendo que o
objetivo comum a ambas as formas é o de “pôr o empresário numa posição mais
vantajosa em relação aos trabalhadores envolvidos na disputa”.111
O emprego de tal estratégia também pode ser observado em outras ocasi-
ões: na greve dos tecelões e chapeleiros do mesmo ano, por exemplo, os proprie-
tários das fábricas Companhia Têxtil Rio-Grandense, Companhia Fiação e Tecidos
Porto-Alegrense, Companhia Fabril Porto-Alegrense, A. J. Renner & Cia, F. C. Kes-
sler, Eduardo Sommer e Oscar Teichmann deliberaram “fazer cessar o funciona-
mento” das fábricas.112 Todavia, no período aqui estudado, as ameaças de lockout
foram mais comuns do que a sua aplicação.
Enfim, as principais estratégias usadas pelos patrões durante as greves abor-
dadas, em especial na de 1919 (quando as reivindicações operárias dirigiram-se,
sobretudo, a eles), foram a substituição dos operários grevistas, a ameaça ou a
efetivação de lockouts, o apelo à intervenção do Poder Público (fortalecida pela
participação de empresários no campo político) e a negociação coletiva dos pa-
trões. Tais métodos sinalizam que, no processo de enfrentamento com os trabalha-
dores, também o patronato estava constituindo-se e organizando-se como classe.
paulistanos durante a greve geral ocorrida no mês de maio naquela cidade, quando
os proprietários negociaram diretamente com seus operários, não adotando uma
posição conjunta como na capital gaúcha. Lá, alguns operários “saíram vencidos
totalmente, outros parcialmente e alguns vencedores”.137 Isso porque a simples
posição de classe ― propriedade dos meios de produção ― não implica necessa-
riamente determinada ação política classista. Como evidenciei, no caso de Porto
Alegre, ao contrário da capital paulista, a ideia de se organizar a classe patronal já
vinha de, pelo menos, 1906.
Percebo, também, no processo analisado, uma nítida influência da questão
étnica na organização da classe patronal porto-alegrense. Como observei na pri-
meira parte deste artigo, o patronato da capital era composto por significativo
número de teutodescendentes ou mesmo de imigrantes alemães, fazendo com
que as identidades étnicas e de classe se mesclassem entre o empresariado porto-
-alegrense. Anteriormente, durante a greve de 1906, a conformação étnica desse
patronato já havia sido determinante para os rumos do movimento. Bak, ao tratar
de tal aspecto, destaca que, em 1906, “a etnicidade compartilhada [dos proprietá-
rios] era algo em comum que inicialmente permitiu que os empresários de origem
alemã se movimentassem com respostas individuais, dadas aos trabalhadores em
um estabelecimento, para respostas coletivas de um empresariado unido, dire-
cionadas a todo o movimento grevista”.138 Conforme demonstrei antes, o mesmo
ocorreu em 1919, quando o componente étnico reforçou a identidade de classe. A
composição étnica do patronato local ― com muitos teutodescendentes ― e os
laços econômicos e pessoais estabelecidos entre eles reforçaram um sentimento
137 RODRIGUES, Edgar. Trabalho e Conflito: pesquisa histórica (1906/1937). Rio de Janeiro: Ed. Arte Moderna,
1975, p. 213.
138 BAK, Joan. Classe, etnicidade e gênero no Brasil: a negociação de identidade dos trabalhadores na Greve
de 1906, em Porto Alegre. MÉTIS: história & cultura, v.2, n.4, p. 181-224, 2003, p. 36.
139 PESAVENTO, Op. cit., 1988, p. 15.
140 Idem, p. 238.
141 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. 1.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 10.
142 THOMPSON, E. P. Algumas observações sobre classe e ‘falsa consciência’. In: NEGRO, A. L.; SILVA, Sergio.
(org.). As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Edunicamp, 2001, p. 274.
143 THOMPSON, E. P. Folclore, antropologia e história social. In: NEGRO, Antonio Luigi; SILVA, Sergio (orgs.).
Idem, p. 169.
144 BOURDIEU, Op. cit., 1983, p. 201.
145Gazeta do Povo, Porto Alegre, 15 set; 1919, p. 1.
146 Gazeta do Povo, Porto Alegre, 15 set. 1919, p. 1.
147 Correio do Povo, Porto Alegre, 16 set. 1919, p. 5.
do Sul (Cinfa), uma consequência direta dos eventos relacionados à chamada Re-
volução de 30 e ao isolamento ao qual o estado foi submetido naquele contexto, e
da necessidade da classe de organizar-se, mais uma vez, para enfrentar e controlar
a chamada “questão social”.148
A greve aqui examinada acabara. A união dos patrões, apoiados pelo gover-
no, dobrou a resistência dos sindicatos operários, e suas lideranças ― denomina-
das pela grande imprensa como “aves de arribação” ― sofreram um abalo em sua
credibilidade. Os “traços infernais”, bem como seus “ideais macabros”, haviam
sido derrotados ― ao menos naquele momento...
•••
Recebido em 28/10/2012
Aprovado em 26/01/2013
Abstract: This article explores the relationship between political education and
unions’ actions: are formative instances seen as an enhancer or an obstacle for
struggle? We analyze the experience of the Instituto de Capacitación y Formación
Social Sindical (ICFSS) created by the CGT, and developed simultaneously with the
national Plan de Lucha that this Confederation prompted between 1963 and 1965.
Considering the spaces of workers’ education as a terrain of struggle in itself, we
intent to complex the range of actors who played in it. We wonder how and with
what goals this learning experience was articulated to a context of intense social
conflict. We analyze the contents developed in the Institute, particularly the issue
of co-management linked to the factories’ occupation process.
Introducción
Nuestra indagación gira en torno a la relación que se establece entre for-
mación política y acción sindical, cómo se lleva adelante o profundiza la reflexión
sobre o en relación a dicha práctica. Para nosotros la problemática de la formación
político-sindical se ubica en un campo mayor que remite al proceso de formación/
recomposición de la clase obrera, y dentro de éste a la centralidad que ocupan las
disputas políticas intragremiales. En este marco general, nos preguntamos por el
lugar de las instancias formativas como potenciadoras u obstaculizadoras, como
parte o aparte de la misma dinámica de lucha.
Desde una mirada que articula la concepción que parte de Marx por la cual
las clases sociales se constituyen como tales en el proceso de enfrentamiento so-
cial, con aquella que proviene de la epistemología genética de Piaget donde el
conocimiento se encuentra mediado por la acción1, entendemos que hablar de
conciencias obreras remite a un proceso nunca acabado y contradictorio, que
se desarrolla fundamentalmente (aunque no únicamente) como resultado de la
experiencia de lucha, pero cuya resultante no es unidireccional sino que puede
asumir un carácter de superación o mantenimiento del orden establecido. Es pre-
cisamente este devenir abierto, el que habilita la pregunta por las formas en que
la transmisión de la experiencia histórica o la reflexión sobre la práctica cotidiana
-que ocurren mediadas por la formación político-sindical-tornean dicho resultado.
De allí que nuestro interés apunte a reconocer la importancia de las instan-
cias de formación política en la profundización de la actividad práctica como pri-
mera instancia de toma de conciencia. Las entendemos como un momento dentro
del proceso de toma de conciencia (práctico-teórico-práctico)2, que nos permite
240
pensar la dinámica de reflexión sobre la propia práctica3, remite más específica-
mente al vínculo entre acción y conceptualización del que habla Piaget.
Nos interesa pensar cómo esta tarea es desarrollada por las propias instan-
cias gremiales. Así, entendemos por experiencias de formación político-sindical
aquellas que definen como interés o preocupación la preparación de cuadros, diri-
gentes o activistas sindicales para la intervención/acción gremial, sin seleccionarlas
a priori por su orientación político-ideológica. Cómo estas tareas o rol del activista
gremial (y por lo tanto el tipo de formación y su contenido) se amplíen o acoten,
tendrá que ver con tradiciones ideológicas, contextos, etc. Aquí a su vez realiza-
mos un recorte de nuestro objeto, al abocarnos a una experiencia sistematizada de
formación, elaborada por una central obrera para los dirigentes y delegados de los
sindicatos afiliados.
Como una primera aproximación al tema, indagaremos en la relación entre
educación y lucha ubicándonos en un momento de alza de la conflictividad social.
Para ello, en este artículo tomamos una experiencia desarrollada en Argentina en-
tre los años 1963 y 1965, cuando desde la Confederación General del Trabajo (CGT)
1 Al respecto véase los trabajos de MARIN, Juan Carlos. Conversaciones sobre el poder. Una experiencia co-
lectiva. Buenos Aires: IIGG-FCS-UBA, 1996; IZAGUIRRE, Inés y ARISTIZABAL, Zulema. Las luchas obreras
1973-1976. Buenos Aires: IIGG-FCS-UB, 2000; MULERAS, Edna. Sacralización y desencantamiento. Las for-
mas primarias del conocimiento del orden social. Buenos Aires: Miño y Dávila, 2008.
2 Siguiendo a Piaget, pensamos el proceso de toma de conciencia en tres niveles/momentos que trazan un
movimiento práctico-teórico-práctico. El primero indica un plano de la acción material sin conceptualización,
pero cuyo sistema de esquemas constituye ya un saber elaborado; el segundo remite a un plano de la con-
ceptualización, que obtiene sus elementos de la acción; y el tercero es un plano donde aparecen abstraccio-
nes y operaciones nuevas sobre la base de las anteriores, ahora compuestas y enriquecidas por la realización
de combinaciones novedosas. PIAGET, Jean. La toma de conciencia. Madrid: Morata, 1976, pp. 254-274.
3 GRAMSCI, Antonio. El materialismo histórico y la filosofía de Benedetto Croce. Buenos Aires: Nueva
Visión, 1997.
se impulsaron dos importantes acciones. Por un lado, el Plan de Lucha que abarcó
aquellos años y en el marco del cual se dio un extendido proceso de ocupaciones
de establecimientos fabriles; por otro, la creación del Instituto de Capacitación y
Formación Social Sindical (ICFSS). Nos interesa conocer cómo es que ambos proce-
sos se articularon, complementaron y nutrieron entre sí, si es que efectivamente
dicha vinculación existió o fue pensada explícitamente por las dirigencias sindica-
les y/o por el equipo de formadores de aquél entonces.
Es necesario destacar que tanto el Plan de Lucha de 1963-1965 como espe-
cíficamente las ocupaciones de fábrica del año 1964 han sido profundamente es-
tudiados. En general, los distintos autores que han abordado la temática se han
manifestado en torno a un mismo eje de discusión: la mayor o menor planificación,
organización y direccionalidad con que contó el proceso y vinculado a lo anterior,
el mayor o menor peso y control de las cúpulas de las 62 Organizaciones Peronistas
(rama político-sindical del movimiento) y la CGT entre las bases obreras, enfati-
zando en este caso un importante nivel de autonomía gremial a lo largo de todo
el conflicto4. Sin embargo, ninguno articula dicho Plan de Lucha con la actividad
sistematizada de formación que de modo paralelo impulsó la propia CGT. Tampoco
se ha prestado atención a la importante tarea de propaganda realizada a través del
Boletín Informativo Semanal de la CGT que fue editado durante esos mismos años.
Por otro lado, los escasos trabajos que refieren a la cuestión de la educación
obrera suelen vincular experiencias como la que aquí referiremos a estrategias
“pro-imperialistas” enmarcadas en el contexto de la Alianza para el Progreso, sin
241 analizar su contenido ni cómo los programas internacionales de educación obre-
ra fueron reapropiados, cuestionados o resignificados desde los actores locales5.
Tampoco ha sido un tema abordado específicamente por quienes se han abocado
a desentrañar el surgimiento y enfrentamientos entre las distintas líneas al interior
del peronismo en esta época, siendo que las mismas poseían vinculaciones o in-
fluencias con las distintas corrientes existentes en el seno de la CGT.
Así, en este artículo pretendemos abordar un tema poco transitado por los
historiadores del movimiento obrero como es el de la formación político-sindical,
analizándolo como un terreno de disputa en sí mismo. En cuanto se refiere a la
experiencia en particular, nos interesa ubicarla en el marco del Plan de Lucha y
complejizar el abanico de actores que ocuparon este espacio. Nos preguntamos
cómo y con qué objetivos se articuló una experiencia formativa a un contexto de
intensa conflictividad social. Analizaremos los contenidos desarrollados en el Ins-
tituto, particularmente la temática de la cogestión vinculada al proceso de ocupa-
ciones fabriles. Realizaremos dicha tarea a partir del análisis de distintas fuentes
sindicales de la época. Incluimos también entrevistas orales realizadas a docentes
y dirigentes gremiales que participaron de dicha experiencia.
4 Entre quienes destacan el rol de unificación jugado por la central obrera pueden consultarse los trabajos
de COTARELO, M. Celia y FERNANDEZ, Fabián. La toma de fábricas. Argentina, 1964. Buenos Aires: PIMSA
Documentos de Trabajo Nº2, 1994; GRAU, M. Isabel, IANNI, Valeria y MARTI, Analía. Una aproximación a las
acciones de la lucha de la clase obrera argentina. Primera etapa del Plan de Lucha de la CGT. 1963/1965. En:
PIMSA 2004. Buenos Aires: PIMSA, 2004, pp. 100-124. En una línea que plantea un proceso de autonomía
de las bases y de cuestionamiento y superación a la dirección de la CGT, véase SCHNEIDER, Alejandro. Los
compañeros. Trabajadores, izquierda y peronismo, 1955-1973. Buenos Aires: Imago Mundi, 2005.
5 Al respecto véase: PARCERO, Daniel. La CGT y el sindicalismo latinoamericano. Historia crítica de sus relaciones.
Desde el ATLAS a la CIOSL. Buenos Aires: Ed. Fraterna, 1987; POZZI, Pablo. El sindicalismo norteamericano
en América Latina y en la Argentina: el AIFLD entre 1961-1976. En: Revista Herramienta Nº 10, julio 1999;
BOZZA, Juan. Trabajo Silencioso. Agencias anticomunistas en el sindicalismo latinoamericano durante la
Guerra Fría. En: Revista Conflicto Social, Año 2, Nº 2, diciembre 2009.
6 CULLEN, Rafael. Clase obrera, lucha armada y peronismos. Génesis, desarrollo y crisis del Peronismo Original,
Vol. I. Buenos Aires: De la Campana, 2008, p. 204.
7 Idem, pp. 209 y 211.
8 Datos extraídos de DE IMAZ, José L. Los que mandan. Buenos Aires: Eudeba, 1965, p. 224.
9 Puede consultarse en COTARELO, M. C. y FERNÁNDEZ, F., Op. Cit., pp. 8-9.
10 CGT. Memoria y Balance 1963-1964. Periodo de Febrero 1963 – Agosto 1964. Buenos Aires, 1964.
Cabe destacar la cobertura gráfica de las ocupaciones que se realizó en el Boletín Semanal. Dos números
están enteramente dedicados a la cuestión, eligiendo relatar el conflicto visualmente a través de 137 foto-
grafías. Véase CGT. Boletín Informativo Semanal. Buenos Aires: Mayo y Junio de 1964.
11 SCHNEIDER, A. Op. Cit., p. 234.
12 DE IMAZ, J. Op. Cit., p. 229. Contrariamente a la valoración positiva de De Imaz, R. Carri, criticó fuerte-
mente a los intelectuales vinculados a Alonso, grupo que “apenas incidió en la elaboración de una línea
política, a lo sumo le agrega cierto lenguaje ‘científico’”, que por “hermético” no solo no tuvo ningún éxito
concreto en el movimiento sindical sino que además, estas “teorías políticas complicadas” tendieron a
neutralizarlo. CARRI, Roberto. Sindicatos y poder en la Argentina. Buenos Aires: Editorial Sudestada, 1967,
pp. 133-135
13 Durante estos años se compraron 624 libros, recibieron 1335 obras y publicaciones periódicas por donación
y 131 por canje; siendo las consultas bibliográficas muy numerosas (3032 consultas). Datos extraídos de
CGT. Memoria y Balance 1963-1964. Op. Cit., p. 371.
14 CGT. Memoria y Balance 1963-1964, Op. Cit., p. 357.
15 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 74. Bs. As.: 10 al 16 de agosto de 1964, p. 26.
16 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 64. Bs. As.: 1 al 7 de junio de 1964, p. 20.
17 Circular Nº 32. Bs. As., 23 de Julio de 1963.
18 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 26. Bs. As.: 9 al 15 de agosto de 1963, p. 10.
En el Plan de Lucha que tiene para llevar a cabo la Central Obrera, obser-
vamos que se va al fondo la cuestión, o sea la participación del trabaja-
dor en la distribución de la riqueza nacional, y para que ello sea una rea-
lidad, los trabajadores tendrán que ir al poder. La CGT, en ese sentido y
como complemento de ese objetivo, ha creado el Instituto de Capacita-
ción y Formación Social Sindical, con la idea de preparar esa élite de go-
bierno. Esa circunstancia no se hace como un mero medio de conformar
técnicos, sino todo lo contrario; el Instituto en cuestión alberga mate-
rias que van hacia la profundidad del cambio del sistema imperante en
la vida política, económica y social de nuestro país; la CGT ha tenido la
delicada preocupación de conformar tanto el Instituto como los distin-
tos cursos que en el mismo se desarrollan, estrechamente vinculados
al Plan de Lucha que está en vigencia en los trabajadores argentinos21.
246
to del cambio estructural de la sociedad”29, es destacable el peso que ocuparon
ciertos contenidos históricos y teóricos vinculados a aquella formación político-
técnica necesaria para llevar adelante el “cambio de estructuras”. Transcribimos
el programa completo ya que es elocuente al respecto:
30 CGT. Instituto de Capacitación y Formación Social Sindical de la CGT. Programa de Cursos y Seminarios a
realizarse en 1965. Op. Cit., pp. 6-9.
31 Los expositores fueron: H. Giberti, C. Cao Saravia, A. Cafiero, A. Ferrer, A. Sampay, J. Terza, J.L. de Imaz, J.
Villanueva, J. Alonso. CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 67. Bs. As.: 22 al 28 de junio de 1964, p. 5.
32 CGT. Instituto de Capacitación y Formación Social Sindical de la CGT. Programa de Cursos y Seminarios a
realizarse en 1965. Op. Cit., p. 31.
33 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 72. Bs. As.: 27 de julio al 2 de agosto de 1964, p. 17. Los docentes
fueron: G. Cárdenas, J.C. Neffa, J.L. de Imaz, O. Martini, F. Forni, J.J. Taccone, J. Villanueva y L. Angeleri.
34 Datos extraídos de DE IMAZ, J. Op. Cit., pp. 226-227, en base al análisis de las fichas de inscripción de los
participantes en los cursos de 1964.
35 Realizamos aquí una síntesis tomando en consideración las distintas instancias de formación (cursos, se-
minarios intensivos y especializados).
36 Entrevista realizada a Atilio Borón (Buenos Aires, agosto 2011).
37 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 72. Bs. As.: 27 de julio al 2 de agosto de 1964, p. 17.
Ocupaciones y cogestión
Una de las preguntas que queda sin responder revisando la bibliografía exis-
tente sobre las ocupaciones fabriles de 1964 es: ¿para qué se tomaron las fábricas?
En este sentido, creemos que la revisión de las tareas realizadas desde el ICFSS
puede mostrar una arista que supere aquellas miradas por las cuales estas accio-
nes simplemente respondían a la táctica vandorista de ‘golpear para negociar’, se
enmarcaban en la disputa de dicho dirigente con Perón, o perseguían el objetivo
de desestabilizar al gobierno de Illia. Sin negar que estos intereses estaban pre-
sentes, creemos que se puso mucho más en juego. La acción de tomar posesión
del lugar de trabajo constituye una avanzada obrera sobre un territorio ajeno, es-
pacio que a los trabajadores les es “social y jurídicamente ajeno pero que sienten
práctica y moralmente propio”45; constituye un cuestionamiento objetivo al régi-
men de dominación más allá de la conciencia acerca de dicha acción. Aunque poco
resaltado en la bibliografía, según testimonios algunas de esas fábricas ocupadas
continuaron produciendo:
250
de crisis económica y sobreproducción47. Por otro lado, recordemos que desde el
inicio del Plan de Lucha se reclamaba la participación obrera en las esferas de con-
ducción o dirección; anteriormente, el mismo Programa de Huerta Grande postu-
laba “implantar el control obrero sobre la producción”. El ámbito de la formación
no estuvo al margen de esta reivindicación. Cómo detallaremos a continuación, el
tema de la cogestión obrera fue un contenido trabajado en los cursos entre otras
instancias de discusión y debate. La pregunta es cómo esto se vinculó al proceso
en marcha y logró (o no) potenciarlo.
Durante las ‘Jornadas Económicas’ impulsadas por la CGT en agosto de
1963 se analizaron casos como los de Suecia, Alemania y Checoslovaquia, en don-
de “es normal que la representación obrera participe en todos los niveles de la
conducción”48. En el marco del Ciclo de Conferencias que acompañaba al Curso
de Conducción Sindical -y que eran reproducidas para un público más amplio a tra-
vés de las páginas del Boletín Semanal-, en septiembre expuso el agregado social
alemán sobre “Obreros y empleados, su coparticipación en la República Federal
Alemana”49. Asimismo, algunos dirigentes gremiales que ya habían realizado estos
cursos viajaron en abril de 1964 a Alemania “con el fin de interiorizarse de diversos
problemas laborales, entre ellos los de cogestión de las empresas”50.
Al mes del proceso de ocupaciones, en el marco del mismo Ciclo de Confe-
rencias se llevó a cabo la disertación “Una experiencia de cogestión en la Argen-
tina”, a cargo del abogado e integrante de la Comisión Jurídica de la CGT, José
45 IZAGUIRRE, Inés y ARISTIZÁBAL, Zulema. Las luchas obreras. 1973-1976. Buenos Aires: IIGG, FSOC-UBA,
2002, p. 52.
46 Entrevista a Armando Mattarazo (Buenos Aires, octubre 2005). Red de Archivos de Historia Oral de la
Argentina Contemporánea, Instituto de Investigaciones Gino Germani (UBA). Las ocupaciones no fueron
15.000 sino 11.000, según los propios datos de la CGT.
47 Véase SCHNEIDER, A. Op. Cit., pp. 194-197; CARRI, R. Op. Cit., pp. 100-122.
48 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 29. Bs. As.: 30 de setiembre al 6 de octubre de 1963, pp. 8-9.
49 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 25. Bs. As.: 2 al 8 de setiembre de 1963, pp. 2-3 y 5.
50 Comunicado de Prensa Nº 385, Buenos Aires, 3 de abril de 1964.
Terza. Éste comenzó afirmando que “el tema elegido tiene una estrecha relación
con el Plan de Lucha”51. Políticamente, la cogestión fue presentada para un con-
texto de crisis social como una herramienta de pacificación. El orador desarrolló la
experiencia de la Alemania Occidental de inicios de los años ‘50, particularmente
en sus aspectos legales; argumentó que la Constitución Nacional Argentina ampa-
raba la coparticipación obrera en la gestión. Describió luego una experiencia de
cogestión desarrollada en una fábrica metalúrgica de Capital Federal hacia fines
de 1963, en la cual se puso en práctica con adaptaciones dicha legislación europea.
Sin embargo, y a pesar de la eficiencia lograda en términos de producción, desde
la UOM local y la CGT se decidió la interrupción de la experiencia en abril por el
avecinamiento de la 2ª etapa del Plan de Lucha; con lo cual contradictoriamente
con lo postulado, se desvincula en la práctica un proceso que era presentado como
unitario: la ocupación de los establecimientos fabriles y la participación en la esfera
de la producción y la gestión.
Según uno de los docentes del ICFSS, J.C. Neffa, las ocupaciones perseguían
un objetivo político, sin que fuera puesto en cuestión el poder patronal; faltos de
una herramienta política por la proscripción del peronismo, las fábricas se conver-
tían en el lugar desde el cual presionar ya sea por exigencias gremiales o políticas.
Ello no quitó que como estas acciones sucedieron “en pleno curso de capacitación”,
fuera un tema que “se trataba en los cursos”. Al respecto, este docente explica:
251 internacional de, no tanto los consejos obreros como sería el fondo más
marxista, pero participación de los beneficios, participación en la gesti-
ón, participación en la propiedad52.
51 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 72. Bs. As.: 27 de julio al 2 de agosto de 1964, pp. 4-11 y 14-15.
52 Entrevista a Julio Neffa. Op. Cit.
53 CGT. Instituto de Capacitación y Formación Social Sindical de la CGT. Programas de Seminarios Especializados
a realizarse en setiembre de 1965. Op. Cit., p. 2.
57 EIDELMAN, Ariel. Militancia e historia en el peronismo revolucionario de los años 60: Ortega Peña y Duhalde.
Buenos Aires: Ediciones del CCC-Cuadernos de Trabajo N° 31, 2004, p. 29.
58 Ortega Peña y Duhalde se relacionaron tanto con Framini (más orgánicamente) como con Vandor (no sólo
porque se desempeñaban como abogados de la UOM, sino porque mantenían reuniones semanales con el
dirigente). Idem, pp. 19-24.
59 ‘Manifiesto preliminar al país’, Buenos Aires, junio de 1964. Véase en BASCHETTI, Roberto. Documentos de
la Resistencia Peronista. 1955-1970. Buenos Aires: de la Campana, 1997, pp. 392-399.
60 Su conferencia puede leerse en CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 32. Bs. As.: 21 al 27 de octubre de
1963, pp. 3-6 y 10.
61 BELLONI RAVEST, Hugo. Educación sindical en la Argentina. Experiencias sobre capacitación obrera en
España y Francia. Buenos Aires: S/E, 1973, p. 13.
62 CGT. Memoria y Balance 1963-1964, Op. Cit., pp. 362-364.
63 G. Gordonez dirigió una colección en la Editorial Pleamar que publicó títulos de Julio Neffa, Luis Angeleri y
Rubén Rotondaro (director del IADSL en los años 70).
64 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 43. Bs. As.: 6 al 12 de enero de 1964, p. 4.
65 Entrevista a L. Angeleri, Op. Cit. Creado en 1962, no está claro cuando el IADSL comenzó a funcionar como
tal en Argentina. Según S. Romualdi, ello sucedió hacia fines de 1963. ROMUALDI, Serafino. Presidentes
y trabajadores. Memorias de un Embajador Sindicalista en América Latina. S/L: S/Ed., 1971, p. 419. Según la
entrevista realizada por D. Parcero a Eleuterio Cardozo, recién lo hizo hacia fines de 1964. PARCERO, D.,
Op. Cit., p. 117. En esta última fecha coinciden las notas periodísticas del propio instituto y los informes del
North American Congress on Latin America. Véase respectivamente AIFLD. The AIFLD Report Vol. 7, Nº 9.
Washington: septiembre de 1969, pp. 36-37 y NACLA. Argentina in the hour of the furnaces. Nueva York:
NACLA, 1975.
66 Carta de Bernardo Ibáñez a José Alonso, México D.F., 8 de octubre de 1963, International Institute of Social
History (IISH), ICFTU Archives, Carpeta 5051.
255 sino realizarla de acuerdo a las posibilidades que existan para concretar-
la. En cuanto al segundo procedimiento para concretarla, es necesario
trabajar, vale decir, concretar todo lo teórico en la práctica70.
73 Poco se ha escrito sobre esta línea dentro del sindicalismo argentino, al respecto puede consultarse OBER-
LIN MOLINA, Matías. Acción sindical argentina. El sindicalismo cristiano y su relación con la formación de
la guerrilla urbana (1955-1976). En: www.scribd.com.
74 En el contexto de radicalización política y peronización de los sectores medios y universitarios, esta ex-
periencia docente se desarrolló entre 1968 y 1972 en la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad
de Buenos Aires, especialmente en la Carrera de Sociología. De orientación peronista de izquierda y ter-
cermundista, sus docentes postularon el desarrollo de una ciencia articulada a los procesos de liberación
nacional –en confrontación abierta con el cientificismo de la tradición germaniana-.
75 Fue Director del Instituto de Formación Social Sindical (IFSS) y del Instituto para la Educación y Capacitación
de los trabajadores (ITEC); Secretario de Coordinación del Centro Argentino de Economía Humana (CAEH).
76 CARRI, R. Op. Cit., p.134.
77 Entrevista a J. Neffa, Op. Cit.
Preguntas abiertas
A partir de la experiencia relatada hemos visto cómo en un contexto de fuer-
te confrontación social, la educación obrera entendida como formación político-
sindical lejos de ser soslayada fue terreno en disputa de las distintas corrientes po-
lítico-ideológicas, sus referentes nacionales e internacionales. ¿Cuál fue el sentido
del proceso de formación que encaró la CGT en aquellos años en que la tendencia
257 revolucionaria dentro del peronismo comenzaba a cuajar organizativamente? Con-
sideramos que fue justamente ese contexto particular el que habilitó la conviven-
cia de tendencias que si bien se disputaban su influencia en América Latina –como
fueron la CLASC y la ORIT-, compartían un límite común que era el anticomunismo.
Por lo general, los historiadores han prestado casi nula atención a la temática
de la formación político-sindical, mientras que desde el campo de estudios que más
ampliamente analizan las prácticas pedagógicas de los movimientos sociales, la mi-
rada se posa sobre lo alternativo (en forma y contenido) a lo dominante. El Instituto
de Capacitación y Formación Social Sindical en cambio no fue impulsado con fines
emancipatorios ni revolucionarios, pero tampoco de reproducción de lo existente.
Esta tensión nos llevó a intentar pensar el interés de estos sectores sindica-
les (considerados burocráticos, reformistas, conciliadores, etc.) por impulsar un
tipo de actividades educativas que priorizaban el ámbito sindical como un espacio
de reelaboración y conceptualización política, advirtiendo el rol potenciador que
podían llegar a cumplir las instancias sistematizadas de reflexión sobre la propia
práctica, como parte del proceso de lucha impulsado.
Efectivamente, Plan de Lucha e Instituto de Capacitación y Formación Social Sin-
dical no solo se combinaron temporalmente sino que se nutrieron y retroalimentaron
Recebido em 01/05/2013
Aprovado em 17/05/2013
258
Resumen: Para mediados de la década de 1940 Bahía Blanca era uno de los princi-
pales nodos ferroviarios del interior del país y hacia allí confluían los ramales que
transportaba la producción rural de una amplia zona de influencia, que abarcaba el
sudoeste de la provincia de Buenos Aires y los territorios patagónicos. Como con-
secuencia de ello la ciudad contaba con un importante conjunto de instalaciones
ferroviarias, compuesto tanto por estaciones como dependencias destinadas a
logística, mantenimiento y reparación. En esos espacios la Unión Ferroviaria y La
Fraternidad contaba con un importante conjunto de afiliados adheridas a las diver-
sas seccionales que operaban en Bahía Blanca.
El propósito de la presente ponencia es analizar el proceso de peronización que
estas seccionales experimentaron en la etapa 1944-1955, a partir del estudio de las
diversas instancias electorales internas. Asimismo este trabajo tiene como meta
considerar la inserción que la dirigencia gremial ferroviaria local alcanzó dentro de
la estructura partidaria peronista local y al mismo tiempo reflexionar acerca del
grado de renovación que experimentó la conducción bahiense de las organiza-
ciones sindicales a partir de 1944.
Por último, este estudio procurará comprender la dinámica interna de las secci-
onales y su relación con los niveles superiores de la organización sindical, con la
intención de establecer el grado de autonomía que estas poseían.
By studying of the multiple internal electoral bodies and instaces, the purpose of
this paper is to analyze the process of “Peronization” each of these “Seccionales”
experienced in the 1944-1955 period. Furthermore, this approach aims to consid-
er the level of insertion reached by union leaders within the local Peronist party
structure, along with the degree of renovation experienced by the local branches
of the Union Ferroviaria during the same period. Finally, and in order to establish
their respective degree of autonomy, this study will seek to understand the inter-
nal dynamics of these local branches and their relationship to higher levels of the
organization.
Introducción
Las complejas vinculaciones del peronismo con el universo sindical han sido
el objeto de estudio de una amplia y diversa producción historiográfica que ha con-
siderado el tema desde variadas perspectivas. En un primer momento y luego por
espacio de varias décadas, el aspecto que concentró la atención de un núcleo ma-
yoritario de los aportes fue establecer la relación del peronismo con la dinámica
gremial y política precedente. En tal sentido, algunos trabajos concluyeron que el
peronismo representaba una ruptura con las tradiciones sindicales preliminares,1
mientras que otros señalaron continuidades con el gremialismo preexistente2. No
obstante ello, ambos polos interpretativos coincidieron en un punto: resaltar la
260
existencia de una relación de subordinación prácticamente homogénea, despro-
vista de contradicciones y conflictos importantes, de los sindicatos respecto al li-
derazgo del Perón.
Al mismo tiempo estos aportes concordaron en otro aspecto significativo,
como lo es concentrar su interés en el rol de los trabajadores y sus organizacio-
nes en la instancia gestacional del peronismo. Por considerar que no tenía senti-
do avanzar en el análisis del accionar sindical ulterior, dado que desde un estadio
temprano este se encontraba completamente alineado con el régimen peronista.
A partir de mediados de la década de 1990, una serie de estudios, que no ne-
cesariamente confrontan con los aportes antes expuestos, comenzaron a indagar
sobre el tema pero resaltando el carácter autónomo de los sectores trabajadores
y sus organizaciones sindicales durante las dos primeras presidencias peronistas.
1 Es el caso de estudios PEÑA, Miliciades. Masas, caudillos y elites. La dependencia argentina de Yrigoyen a
Perón, Buenos Aires: Ediciones Fichas, 1973; ROMERO, José Luis. La experiencia argentina y otros ensayos,
Buenos Aires: Editorial de Belgrano, 1980; GERMANI, Gino. Política y sociedad en una época de transición. De
la sociedad tradicional a la sociedad de masas, Buenos Aires: Paidos, 1971; GERMANI, Gino. “El surgimiento
del peronismo: el rol de los obreros y de los migrantes internos”. En: Desarrollo Económico. Buenos Aires, v.
13, n.51, octubre-diciembre 1973, entre otros.
2 Por mencionar solo algunos casos emblemáticos se puede mencionar TORRE, Juan Carlos. La vieja guardia
sindical y Perón. Buenos Aires: Sudamericana, 1990; HOROWITZ, Julio. Los sindicatos, el Estado y el surgi-
miento de Perón 1930 / 1946. Buenos Aires: EDUNTREF, 2004; DEL CAMPO, Hugo. Sindicalismo y Peronismo.
Los comienzos de un vínculo perdurable. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005. Una excepción a esta tendencia la
constituyen los trabajos: y BAILY, Samuel. Movimiento obrero, nacionalismo y política en la Argentina. Bue-
nos Aires: Hyspamerica, 1985; MURMIS, Miguel; PORTANTIERO, Juan Carlos. Estudios sobre los orígenes
del peronismo. Buenos Aires: Siglo XXI, 1973. TORRE, Juan Carlos. “Interpretando (una vez más) los oríge-
nes del peronismo”. En: Desarrollo Económico, v.28, n.112 (enero-marzo 1989); TORRE, Juan Carlos (comp.).
La Formación del sindicalismo peronista. Buenos Aires: Legasa, 1988. Una revisión completa sobre el tema
puede encontrarse en SURIANO, Juan “¿Cuál es hoy la historia de los trabajadores en Argentina?”. En: Revista
Mundo do Trabalho, v, 1, n.1, janeiro-junho 2009.
3 Es el caso de los trabajos SCHIAVI, Marcos. La resistencia antes de la resistencia. La huelga metalúrgica y
las luchas obreras de 1954. Buenos Aires: El Colectivo, 2008; ACHA, Omar. Las huelgas bancarias de Perón a
Frondizi (1945-1962). Buenos Aires: Ediciones del CCC, 2008; CONTRERAS, Nicolás, “En rio revuelto ganan-
cias de Pescador. El gremio marítimo y el peronismo. Un estudio de la huelga de 1950”. Revista de Estudios
Marítimos y Sociales, año 1, n.1, 2008; NIETO, Agustín. “Conflictividad obrera en el puerto de Mar del Plata:
del anarquismo al peronismo. El Sindicato Obrero de la Industria del Pescado, 1942-1948”. En: Revista de Estu-
dios Marítimos y Sociales, año 1, n.1, 2008; RUBINSTEIN, Gustavo. Los sindicatos azucareros en los orígenes
del peronismo tucumano. Tucumán: UNT, 2005; ASCOLANI, Adrián. El sindicalismo rural en la Argentina.
De la resistencia clasista a la comunidad organizada. Universidad Nacional de Quilmes, Buenos Aires, 2009;
SCHNEIDER, Alejandro. Trabajadores, Un análisis sobre el accionar de la clase obrera argentina en la segunda
mitad del siglo XX. Buenos Aires: Herramienta Ediciones, 2009; FERNANDEZ, Fabián. La huelga metalúrgica
de 1954. Buenos Aires: Instituto Movilizador de Fondos Cooperativos, 2005; IZQUIERDO, Roberto. Tiempo
de trabajadores. Los obreros del tabaco. Buenos Aires: Imago Mundi, 2008; GUTIÉRREZ, Florencia. “La diri-
gencia de FOTIA y los sindicaos de base: tensiones y conflictos en el proceso de sindicalización azucarera,
1944-1955” en Florencia Gutiérrez y Gustavo Rubinstein (comps.). El primer peronismo en Tucumán. Avan-
ces y nuevas perspectivas. Tucumán: EdUNT, 2012, entre otros.
4 Estos aportes constituyeron una continuación de trabajos como DOYON, Louise. “Conflictos obreros
durante el régimen peronista, 1946-1955”. En: Desarrollo Económico, v. 17, n.67, Buenos Aires, octubre-
diciembre 1977; DOYON, Louise. “El crecimiento sindical baho el peronismo”. En: Desarrollo Económico, v.
15, n.57, Buenos Aires, abril-junio 1975; LITTLE, Walter. La organización obrera y el Estado peronista, 1943-
1955”. Desarrollo Económico, v.19, n.75, Buenos Arires, octubre-diciembre 1979 y MAINWARING, Scott. “El
movimiento obrero argentino y el peronismo (1952-1955). En: Desarrollo Económico, v. 21, Buenos Aires,
enero-marzo 1982. Más recientemente los aportes de Louise Doyon se reunieron en el libro DOYON,
Louise. Perón y los trabajadores. Los orígenes del sindicalismo peronista, 1943-1955. Buenos Aires,:Siglo XXI,
2006.
5 DI TELLA, Torcuato. Perón y los sindicatos. Buenos Aires: Ariel, 2003; CONTRERAS, Gustavo Nicolás. “Ferro-
viarios. Un capítulo de sus luchas: Las huelgas ferroviarias de fines de 1950 y principios de 1951”, ponencia
presentada en el V Congreso de Historia Ferroviaria, Palma de Mallorca, 2009 ; MENGASCINI, Hugo. Huel-
gas y conflictos ferroviarios. Los trabajadores de Tandil en la segunda mitad del siglo XX. Rosario: Prohis-
toria, 2011; BADALONI, Laura. “Control, memoria y olvido. “Marcha de la Paz” y huelga ferroviaria durante
el primer gobierno peronista”, ponencia presentada II Jornadas Inter-institutos de formación docente en
Historia I.E.S. “Olga Cossettini”, Rosario, agosto de 2003.
6 Entendiendo por peronización a “…la imposición del mando incuestionado de una burocracia leal al go-
bierno o, más profundamente, la difusión de una identificación con Perón en la mayoría de las bases gre-
miales”, ACHA, Omar. Op. cit., p. 40.
las tensiones que ese proceso generó, en especial ante la persistencia de posicio-
nes ideológicas alternativas. El carácter local de esta aproximación orientada a re-
flexionar sobre una temática particular desde un espacio local, permitirá distinguir
realidades y sujetos excepcionales que, lejos de invalidar los grandes procesos y
relatos macrohistóricos, los matizan y enriquecen de manera notable7.
Por último, teniendo en cuenta el objeto de estudio seleccionado el abor-
daje metodológico elegido justificó la utilización de registros tanto cuantitativos
como cualitativos8. En relación a los primeros se destacan los censos e informes
estadísticos, efectuados por diversas agencias estatales, que permiten reconstruir
las dimensiones que el universo laboral ferroviario presentaba en Bahía Blanca al
promediar la década de 1940. Por su parte, las fuentes cuantitativas fueron de múl-
tiples orígenes, por un lado se destacan los periódicos de índole local y la prensa
sindical, por otro los relatos orales de de sujetos que fueron actores directos de
los procesos analizados y por último los registros generados por los servicios de
inteligencia pertenecientes a la policía bonaerense (Archivo DIPBA-Comisión Pro-
vincial por la Memoria)9. En su conjunto la interpretación de estos registros permi-
tió primero reconstruir los procesos desde una perspectiva de carácter narrativo,
especialmente a partir de la prensa. Para luego avanzar en la interpretación de los
procesos, desde una perspectiva dual, por un lado los relatos de los trabajadores,
por el otro la mirada policial de las acciones por intermedio de los informes gene-
rados por el trabajo de campo de las fuerzas de seguridad. En ambos casos, resultó
necesario recurrir a una metodología comparativa, que reveló tanto contradiccio-
263 nes como coincidencias entre las fuentes empleadas, y permitió complejizar las
explicaciones sobre los procesos considerados. Fundamentalmente, al momento
de considerar la dinámica interna a nivel de seccional, una labor que implica la uti-
lización de registros específicos que reflejen la especificidad de la dimensión local,
que compensen la ausencia de documentación gremial de orden local (como actas
de comisión, actas de asamblea, etc.) irremediablemente perdida.
7 CAMPAGNE, Fabián. “La búsqueda de la historia. Reflexiones sobre las aproximaciones macro y micro en
la historiografía reciente”. En: Entrepasados, año VI, n.13, 1997, p. 93.
8 En relación a las fuentes cuantitativas resulta necesario aclarar que no fue posible consultar actas o docu-
mentación de las diversas seccionales de la Unión Ferroviaria o La Fraternidad, porque no están disponi-
bles tanto en las oficinas locales como en las sedes centrales de las entidades gremiales.
9 KAHAN, Emanuel. “¿Qué represión, qué memoria? el “archivo de la represión” de la DIPBA: problemas y
perspectivas”. En: Question, v. 1, n. 16, 2007.
10 Para 1954 existían en Bahía Blanca 3389 establecimientos comerciales que empelaban a 4567 empelados
y 2691 obreros. Dirección Nacional de Estadísticas y Censos, Censo de Comercio 1954, Buenos Aires, 1959.
11 Como se puede verificar en los datos estadísticos provistos por los censos industriales. El de 1935 indicó
que Bahía Blanca contaba con 731 establecimientos industriales, que empleaban a 5281 obreros y emple-
ados, ocupando el quinto lugar entre los municipios bonaerenses, mientras que el censo de 1946 reveló
una cantidad de establecimientos de 668 y un total de 6881 personas empleadas, que dejaban a la ciudad
en el doceavo lugar en la provincia de Buenos Aires, muy por detrás de los municipios del área próxima a la
ciudad de Buenos Aires. Ministerio de Hacienda, Buenos Aires, Censo Industrial de 1935, Buenos Aires, 1938;
Ministerio de Asuntos Técnicos, Censo Industrial de 1946, Buenos Aires, 1952.
12 Existía una cuarta seccional de la Unión Ferroviaria: Rosario-Puerto Belgrano. Solo contaba con un número
muy reducido de afiliados y en 1946 fue absorbida por la seccional Bahía Blanca Sud.
13 De acuerdo a los aportes sindicales que cada seccional enviaba a la administración central de la Unión
Ferroviaria, la seccional Bahía Blanca se encontraba entre la siete filiales más importantes del país.
14 Sobre las condiciones del trabajo ferroviario, consultar: HOROWITZ, Joel. “Los trabajadores ferroviarios
en Argentina”. En: Desarrollo Económico, v.25, n. 99 (octubre-diciembre 1985), p. 426-433.
15 Julio César Martella. “El proceso obrero en Bahía Blanca”. En: La Nueva Provincia, Numero Especial 41º
Aniversario, 1939.
16 Archivo DIPBA, Mesa B, Carpeta 13, Legajo 57 (UF Noroeste), Archivo DIPBA, Mesa B, Carpeta 15, Legajo 2
(U.F. Ingeniero White), Archivo DIPBA, Mesa B, Carpeta 13, Legajo 57 (U.F. Sud).
17 Aurelio Diez empleado administrativo de la seccional Noroeste de la Unión Ferroviaria sostiene que el nú-
mero de afiliados alcanzaba a los 1500 en 1945. AMUNS, Entrevista 223 B a Aurelio Diez, realizada el 29 de
julio de 2005.
18 El Obrero Ferroviario, año XXI, n.457, 1 de marzo de 1942, p. 9.
sus seccionales Noroeste e Ingeniero White. Con una formación orientada a la pre-
paración del personal en labores específicas (motores diesel, telégrafo, dibujo téc-
nico, etc.), como a la instrucción de su grupo familiar en quehaceres domésticos
(bordado, corte y confección, dibujo artístico, etc.). Del mismo modo la faz recrea-
tiva y cultural también era atendida por las seccionales de la UF, especialmente en
filial Noroeste, que periódicamente organizaba en su amplia sede bailes familiares,
proyecciones de cine y espectáculos teatrales. Cumpliendo así un papel similar al
de un club o biblioteca de carácter barrial, que favorecía a la generación un senti-
miento de pertenencia colectiva a una “comunidad”, que trascendía lo meramen-
te laboral y se vinculaba con el intenso asociacionismo de la época.
Esta intensa vida asociativa de los afiliados de la UF se complementaba con
la labor de la Cooperativa Ferroviaria de Consumo Ltda., fundada en 1919 con el fin
de brindar productos diversos a bajo costo y con financiamiento a los obreros y
empleados de los diversos ramales que operaban en la ciudad y la región. En 1944
la Entidad alcanzaba los 2924 socios, que aumentaron a 4000 para 195319, un incre-
mento acorde con el número de personal empleado por el ferrocarril en el área de
Bahía Blanca y con el crecimiento de los niveles de consumo.
En función de esto la conducción del gremio una vez normalizado dio seña-
les de apoyo al proyecto político impulsado por Perón, no obstante en situacio-
nes concretas como el debate que se generó en la CGT al momento de declarar la
huelga general el 18 de octubre, los delegados ferroviarios optaron por proponer
acciones alternativas22. Dejando entrever la persistencia de un sentido apolítico en
sus acciones, que los llevaba a no inmiscuirse en cuestiones ajenas al plano estric-
tamente gremial.
19 Ver: PASTORINO, Guido “El cooperativismo en Bahía Blanca”. En: La Nueva Provincia, Número aniversario,
agosto de 1944 y “Notables cooperativistas hablan para El Atlántico” El Atlántico, 4 de julio de 1953.
20 Al respecto ver: HOROWITZ, Joel. Op. cit., p. 274-283.
21 DOYON, Louise. Op. cit., p.115.
22 TORRE, Juan Carlos. Op. cit., p. 134-135.
Este proceso ha sido objeto de diversos análisis entre lo que se pueden men-
cionar los aportes de Joel Horowitz y Torcuato Di Tella, que coinciden en recono-
cer que las medidas dispuestas por el gobierno nacional en el período 1943-1945
mejoraron sensiblemente las condiciones laborales de los trabajadores ferrovia-
rios, e impulsaron una progresiva peronización de su conducción, como lo refleja la
conformación de las sucesivas comisiones directivas nacionales de la organización a
partir de 194523. En ellas continuaron participando una proporción importante de
dirigentes con antecedentes en puestos directivos en el período previo a 194324.
En Bahía Blanca, durante la etapa 1944-1945 las disposiciones impulsadas por
Perón desde la Secretaría de Trabajo y Previsión impactaron en la extensa comuni-
dad ferroviaria residente en Bahía Blanca, promoviendo la adhesión política de los
afiliados y de buena parte la dirigencia. En este acercamiento influyeron las mejo-
res de orden salarial y laboral que, con carácter nacional, obtuvieron los trabajado-
res ferroviarios conjuntamente con la concreción de postergadas reivindicaciones
de orden local, como la apertura de un centro médico asistencial.
Las gestiones para la apertura de un hospital ferroviario fue el origen de una
serie de acciones conjuntas entre las seccionales locales de la UF y La Fraternidad,
a partir de 194225. Sin embargo, el desinterés de las agencias estatales no permitió
disponer de los fondos necesarios para la apertura del nosocomio. Es por ello que
la apertura de una clínica propia en marzo de 1944, durante la gestión de Domingo
Mercante como interventor de los gremios ferroviarios, con el decisivo apoyo de
la Secretaria de Trabajo y Previsión, conducida por Perón, constituyó una acción
267 trascendental para la comunidad ferroviaria local y resultó funcional al proceso
de peronización de los trabajadores. Esta adhesión se evidenció cuando en agosto
de 1945 un conjunto de 450 trabajadores de la seccional de la UF Noroeste, la más
numerosa y consolidada de todas las filiales, envió un pergamino firmado por el cual
se manifestaba su apoyo a la gestión del General Farrel y el Coronel Perón26, en fran-
ca oposición a la oposición al criterio de la comisión directiva de esa seccional que
optó por no adherir al homenaje27.
Asimismo, poco después de la apertura del policlínico en Bahía Blanca se ini-
ció un conflicto a partir de la renuncia de un conjunto de médicos, que se solidari-
zaron con colegas porteños que habían sido desplazados del Hospital Ferroviario
central a raíz de discrepancias políticas. A parir de esta situación se produjo una
verdadera ruptura en la comunidad médica, que luego se hizo extensiva a los di-
versos sindicatos que reunían a los trabajadores del riel en la ciudad. Fue así como
mientras que miembros de la delegación Ingeniero White de la Fraternidad se so-
lidarizaron con los médicos renunciantes del Hospital Ferroviario, debido a ·…que
han preferido trabajar gratis que traicionar a sus camaradas…”28, la conducción de
la seccional Bahía Blanca Noroeste de la Unión Ferroviaria optó por “Hacer público
su repudio a los médicos que renunciaron y abandonaron a los enfermos en dicho
29 El Atlántico, 14 de enero de 1946. La seccional Bahía Blanca Noroeste reunía a casi un millar y medio de
obreros ferroviarios que trabajaban en los talleres del mismo nombre.
30 Jesús Gómez formaba parte de la conducción de la seccional Noroeste al menos desde 1934.
31 La Nueva Provincia, 3 de junio de 1946,
32 DOYON, Louise. “Conflictos obreros durante el régimen peronista (1946-1955)”. En: Desarrollo Económico,
n. 67, oct-dic. 1977, p. 466.
33 Unión Ferroviaria, Estatuto Buenos Aires, Imprenta Unión Ferroviaria, 1952. pp.29-31.
34 AMUNS, Entrevista n.º 223 D a Aurelio Diez, realizada el 10 de junio de 2010. En la misma entrevista El en-
trevistado recordó “Mandolesi era comunista declarado, fue preso infinidad de veces, pero el peronismo
lo votaba a Mandolesi porque sabían que ponía la cabeza para defender al compañero. Otro caso de la
misma tendencia de Mandolesi, José Magnani, era comunista declarado, fue a Rusia un montón de veces
mandado por el partido, pero la gente lo votaba porque sabía que defendía “
35 Sobre este tema, consultar: CONTRERAS, Gustavo Nicolás. Op. cit., p.7.
36 A esta conclusión llegan los informes realizados por los servicios de inteligencia de la policía provincial.
Archivo DIPBA, Mesa B, Carpeta 13, Legajo 57 (UF Noroeste), Archivo DIPBA, Mesa B, Carpeta 15, Legajo 2
(U.F. Ingeniero White), Archivo DIPBA, Mesa B, Carpeta 13, Legajo 57 (UF Sud).
37 AMUNS, Entrevista n.º 223 E a Aurelio Diez, realizada el 28 de agosto de 2010.
Esta situación, que se reitera en los relatos de trabajadores, afectó los la-
zos de solidaridad interna que había caracterizado a la comunidad ferroviaria. Del
mismo modo esta tendencia trastornó en forma progresiva la disciplina laboral
dentro de las instalaciones ferroviarias, debido a que quienes alcanzaban posicio-
nes de responsabilidad con personal a cargo, no siempre eran reconocidos por sus
subordinados como los mejor instruidos para esa función, sino simplemente como
quienes habían obtenido el aval necesario.
273 figuraron autoridades de las seccionales locales de la UF, conjuntamente con otros
trabajadores ferroviarios con estrechas vinculaciones con el Partido Peronista. In-
cluso algunas de ellos ocuparían bancas como representantes en el Honorable
Concejo Deliberante de Bahía Blanca, como Roberto Maccarini, Adolfo Ferrari y
Aquiles Franco, o en la Legislatura de la provincia de Buenos Aires como el senador
Federico Ciccola. Asimismo, también participaron como activistas o dirigentes en
las diversas facciones internas del Partido Peronista que participaron de las elec-
ciones internas de 1947 y 1949.
Su conformación revela como al menos hasta comienzos de la década de
1950 seguía vigente dentro de la UF la tradición de evitar que los asuntos político-
partidarios afectasen la dinámica interna sindical, como advierte un entrevistado
“ Lo que pasa era lo siguiente que aun estando formada la agrupación peronista,
eran activistas cierto pero no incorporados al gremio en si, años después empezó
a politizarse más el sindicato pero hasta ese momento no”43.
La existencia de estas organizaciones fue duramente criticada por el congre-
so de delegados de 1950, cuyos miembros repudiaron su funcionamiento a través
de una resolución donde sostuvieron:
42 En las elecciones del 24 de febrero de 1946, en las que Juan Perón fue electo presidente, se resolvieron
cargos legislativos y ejecutivos de carácter nacional y provincial, pero no así de carácter municipal.
43 AMUNS, Entrevista n.º 223 D a Aurelio Diez, realizada el 10 de junio de 2010.
44 El Obrero Ferroviario, Septiembre de 1950, n.594, p. 12.
del área pampeana hacia los sitios de embarque, entre las cuales se destacaba el
puerto bahiense de Ingeniero White, por entonces el tercero del país en volumen
de carga luego de Buenos Aires y Rosario47.
Esta instancia inicial del conflicto generó una paralización de los servicios y
finalizó con un acuerdo entre los huelguistas y el Ministerio de Transporte, por
entones a cargo del coronel Juan Castro. Por el cual los ferroviarios retornaron al
trabajo el día 24 de noviembre, luego de recibir un aumento salarial y de tener la
certeza que las sanciones aplicadas a los huelguistas quedarían sin efecto. Para lle-
gar a esa conclusión se conformó con delegados de cada línea una Comisión Con-
sultiva de Emergencia, que llevó adelante las negociaciones con el propio Castro48.
En Bahía Blanca la adhesión a la medida de fuerza fue importante en la totali-
dad de las seccionales. El 22 de noviembre se paralizaron los servicios y no llegaron
ni partieron trenes desde las estaciones bahienses, a raíz del paro de cambistas y
guardabarreras iniciado en el Ferrocarril Roca49. El 27 del mismo mes la principal
seccional bahiense UF Noroeste emitió un comunicado por el cual se solicitaba a
la Comisión Directiva que, con carácter urgente, reclamase a las autoridades una
mejora en las condiciones salariales de las categorías iniciales. En el mismo docu-
mento, la seccional se declaró en estado de asamblea permanente, hasta tanto no
se resolviese el conflicto.
Al igual que en el resto del país los ferroviarios bahienses retornaron a sus
labores luego del acuerdo al que se arribó el 24 de noviembre. No obstante esto,
en la primera semana de diciembre, el gobierno nacional resolvió dejar sin efecto
275 el compromiso, medida que fue acompañada por detenciones, despidos e inter-
venciones a diversas seccionales de la Unión Ferroviaria.
Este cambio de actitud del gobierno provoco la inmediata reacción de las sec-
cionales bahienses de la UF, que con diversa intensidad reiniciaron las medidas de
fuerza que recién culminaron entre el 18 y 20 de diciembre, según cada filial50. Cuan-
do culminó la protesta se produjo una asamblea general extraordinaria de asocia-
dos de la UF Noroeste, que se reunió con “…el objeto de considerar el conflicto
suscitado en el gremio a raíz de la situación que afecta al personal de baja remu-
neración…”. En la oportunidad los trabajadores presentes reconocieron que es la
comisión directiva de la seccional era la única autorizada a actuar en nombre de los
trabajadores, por lo que le solicitaron que reclame con “carácter urgente” ante las
autoridades pertinentes una recomposición salarial51. Asimismo el conjunto de afi-
liados decidió declararse en asamblea permanente hasta tanto no se resolviese el
conflicto laboral que los afectaba. Estas acciones si bien revelan un reconocimiento
explicito de las autoridades seccionales, también dejan en claro como el desconten-
to ascendía desde las bases de la organización hacia la conducción.
Los restantes puntos presentes en el documento se orientaban a peticiones es-
pecíficas, para lo que se resolvió “…encomendar a la C. E. (comisión ejecutiva seccio-
nal) por delegación, que en plazo breve gestione y obtenga de las autoridades” una
serie de reclamos, dejando en claro el reconocimiento de la seccional al rol mediador
de la máxima autoridad de la UF por sobre la Comisión Consultiva de Emergencia.
47 Sobre el tema consultar GERCHUNOFF, Pablo; ANTÚNEZ, Damián. “De la bonanza peronista a la crisis de
desarrollo”. En: TORRE, Juan Carlos (director). Los años peronistas (1943-1955), Nueva Historia Argentina,
Tomo 8, Buenos Aires: Sudamericana, 2002, p. 165
48 Este proceso fue analizado extensamente por CONTRERAS, Gustavo Nicolás. Op. cit., p. 10-11.
49 Democracia, 22 de noviembre de 1950.
50 Democracia, 18 de diciembre de 1950.
51 El Atlántico, 20 de diciembre de 1950.
Claro el asunto se había puesto muy espeso y entonces Perón habla esa
misma noche, fue cuando decreta la militarización de todo el personal
ferroviario y anuncia que será juzgado por tribunal militar, pudiendo lle-
garse hasta el fusilamiento. La gente se da por vencida para entrar a
trabajar, a mi que me causo mucha indignación, en ese momento, com-
prendí después que era muy distinta la situación, yo tenía 22 años, mis
padres no dependían de mi, no tenía familia; la demás gente si, la ma-
yoría de la gente era casada, los padres dependían de ellos, tenían sus
hijos, etc. Así que frente a una amenaza de ese tipo…..57.
de haber anulado sus relaciones con el cuerpo central”. Al mismo tiempo que “La-
menta la comisión organizadora que una minoría regimentada no haya permitido
hacer una asamblea para poder oír la información de la misma y a la vez escuchar
la opinión de los socios con toda libertad66. En tal sentido, la prensa local informó
poco después “La comisión reorganizadora de la Fraternidad, llama a los compa-
ñeros a la reflexión y cordura, en vista del cariz que han tomado los acontecimien-
tos producidos por la acción disolvente de elementos perturbadores que se dicen
auténticos fraternales y que respondiendo a directivas foráneas han lanzando al
gremio a un paro injustificado”67. A través de ese mismo comunicado la comisión
deslegitimaba el reclamo sindical, por considerar que su origen presentaba un sen-
tido político y no gremial.
Según denunciaron los medios de prensa controlados por el gobierno, la
huelga fue dirigida por el ex presidente de La Fraternidad Jesús Fernández y se
organizó sobre la base de cinco subcomisiones: Remedios de Escalada, Ingeniero
White, Tandil, Olavarría y Bolivar. En su totalidad distritos ubicados dentro del
territorio bonaerense, un aspecto significativo puesto que allí se concentraba la
mayor parte del tráfico ferroviario y por ende de afiliados fraternales.
En el caso de Ingeniero White los dirigentes vinculados a la organización de
la medida de fuerza fueron Antonio Tuminello, Horacio Bonini y Gines García, to-
dos ellos dirigentes fraternales68. Su detención fue inmediata al igual que la de un
importante grupo de maquinistas, que resultaron arrestados y fueron trasladados
a Buenos Aires para ser alojados en la cárcel de Villa Devoto69. Al mismo tiempo
en la propia localidad de Ingeniero White se improviso un centro de detención,
controlado por la Prefectura Argentina, en algunos vagones ferroviarios especial-
280
mente acondicionados, donde fueron confinados entre 20 y 30 fraternales. En su
conjunto apresados en la localidad portuaria, en sucesivas redadas efectuadas por
fuerzas policiales.
Superado este periodo de tensión numerosos afiliados de La Fraternidad
fueron cesanteados y se conformaron “listas negras” de los dirigentes y afiliados
fraternales que había expresado públicamente su adhesión a las medidas de fuer-
za impulsadas por la organización. Estas medidas desarticularon los equipos gre-
miales que habían conducido a la organización desde comienzos de la década de
1940, ligados en su mayoría al socialismo, como así también cualquier otro polo de
oposición al peronismo. Es por ello que al producirse la normalización de las sec-
cionales, las conducciones electas se constituyeron mayoritariamente a partir de
afiliados o simpatizantes peronistas.
Consideraciones finales
La irrupción del peronismo en la esfera política y sindical argentina constitu-
yó un punto de inflexión para los trabajadores agremiados y los ferroviarios sin-
dicalizados que trabajaban en el área de Bahía Blanca, no resultaron ajenos a ese
fenómeno. Sin embargo, la manera en que ese proceso impactó en las diversas
trabajadores. Tal es así que los ferroviarios bahienses participaron de las medidas
de fuerza en las tres etapas que presentó el conflicto, provocando la paralización
de los servicios. En ello influyó la pervivencia de una tradición participativa y mo-
vilizadora en el interior de las seccionales ferroviarias y en especial en sus bases,
que superó el encuadramiento transmitido y propiciado desde los niveles supe-
riores de la organización sindical. Un rasgo que se puede apreciar a las acciones
de resistencia de los fraternales frente al proceso interventor de 1951, que solo se
desactivan con la detención de sus principales dirigentes y el despido de centena-
res de maquinistas.
282
Abstract: The poor backwoodsmen who lived and worked in the valley of the To-
cantins River between 1890 and 1940 belong to a category of workers who, having
built their social experience in the sphere of organized struggle were, until recently
dispossessed of historicization. In this article our objective is to reconstruct some
of the dimensions of the work culture of Brazil nut gatherers who lived between
the 1890s and 1940s, the valley of the Tocantins River, and whose work practices
are central to their way of living and thus constitute the link between culture and
exploitation, strength and fitness everyday.
Introdução
Desde a década de 1970, a historiografia do Trabalho e das relações de tra-
balho tem ampliado suas abordagens ao voltar seu olhar, principalmente, para a
cultura dos trabalhadores, seu cotidiano e suas práticas. Essa renovação significou
um avanço, sobretudo, nos estudos que investigam as práticas de resistência e de
negociação dos sujeitos que não se adaptam aos modelos tradicionais de lutas de
Desviando-se dessa visão tradicional, cujo exemplo nos apresentou Van der
Linden, surge um campo historiográfico que se volta para a reconstrução das prá-
ticas e das experiências dos trabalhadores. Os trabalhos de Christopher Hill, sen-
do o mais conhecido no Brasil “O Mundo de Ponta-Cabeça”2 e sua atuação como
presidente da revista “Past & Present” aglutinaram em torno de si estudiosos que
discutiam o lugar e a importância de elementos “não econômicos” na vida social.
Teóricos como Raymond Williams e historiadores como Edward Palmer Thomp-
son, Eric Hobsbawm e Rodney Hilton desenvolveram estudos sobre a produção,
a interpretação, a recepção e a ressignificação de práticas culturais concernentes
aos mundos do trabalho e dos trabalhadores. A contribuição desses marxistas,
atualmente reconhecidos como praticantes da “história social inglesa”, reverbe-
rou positivamente na historiografia brasileira que, principalmente a partir da déca-
da de 1980, deu um salto quantitativo e qualitativo nessa mesma senda.
Com efeito, a partir dessa década, a historiografia brasileira do trabalho envi- 284
da esforços para incorporar outros trabalhadores, sobretudo aqueles que vivem à
margem da luta organizada, e valorizar suas práticas de subsistência e seus valores
culturais como elementos importantes de sua constituição como trabalhadores.
Diversos foram os trabalhos que contribuíram para esse avanço, discutindo por
meio de abordagens inovadoras o trabalho e os trabalhadores: desde um trata-
mento diferenciado à própria noção de trabalhador, como é o caso de Silvia H.
Lara3, ao incluir os escravos na categoria trabalhadores, até pesquisas voltadas
para o trabalho feminino e para a mulher, que passou a ser vista também enquan-
to trabalhadora e não apenas como pertencente a um “gênero”, caso do trabalho
de Alice R. P. Abreu.4
Igualmente, historiadores (as) como José Carlos Barreiro, Luiz Felipe de
Alencastro, Antonio Luigi Negro, Frederico de Castro Neves, Deá Ribeiro Fenelon e
Maria Antonieta Antonacci contribuíram significativamente, não só com a recons-
trução de processos por esse olhar inovador, mas também para a consolidação
dessa perspectiva em termos teóricos e metodológicos. E é nessa perspectiva que
estamos tratando aqui do universo dos trabalhadores dos castanhais, pois os ser-
tanejos pobres que viveram e trabalharam no Vale do rio Tocantins entre 1890 e
1940 pertencem a uma categoria de trabalhadores que, não tendo sua experiência
social construída na esfera da luta organizada, foram, até recentemente, despoja-
dos de historicização.
1 LINDEN, Marcel Van der. História do Trabalho: o novo, o velho e o global. Revista Mundos do Trabalho, v.1,
n. 1, jan.-jun. 2009, p. 12.
2 HILL, Christopher. O Mundo de Ponta-Cabeça: ideias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. Tradu-
ção e apresentação de Renato J. Ribeiro. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda.,1987.
3 LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
4 ABREU, Alice Rangel de Paiva. O Avesso da Moda: trabalho a domicílio na indústria da confecção. São Pau-
lo: Hucitec, 1986.
costumes que realizam algo ― não são formulações abstratas dos sig-
nificados nem a busca de significados, embora possam transmitir um
significado. Os costumes estão claramente associados e arraigados às
realidades materiais e sociais da vida e do trabalho, embora não deri-
vem simplesmente dessas realidades, nem as reexpressem. Os costu-
mes podem fornecer o contexto em que as pessoas talvez façam o que
seria mais difícil de fazer de modo direto [...].6
5 Atual cidade de Marabá, localizada na confluência do rio Itacaiúnas com o rio Tocantins, região Sudoeste
do estado do Pará.
6 GERARD, Sider apud THOMPSON, Edward P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradi-
cional. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 22.
7 �����������������������������������������������������������������������������������������������������������
A primeira Revolta de Boa Vista foi um conflito que, iniciado no ano de 1892 na cidade de Boa Vista, extre-
mo Norte de Goiás, envolveu: a Igreja, representada pelo Frei da Ordem Dominicana Gil Villanova; a admi-
nistração goiana e o governo republicano, que chegou a enviar duas forças federais para Boa Vista; e os
coronéis e oligarquias dos estados do Maranhão e de Goiás. Apesar dos períodos de trégua, essa revolta
durou até o ano de 1895. Sobre essa questão ver: PALACÍN, Luis G. Coronelismo no extremo norte de Goiás:
o padre João e as Três Revoltas de Boa Vista. Goiânia: CEGRAF, 1990.
8 MOURA, Ignácio B. de. De Belém a São João do Araguaya: Valle do Rio Tocantins. Rio de Janeiro: H. Garnier,
1910, p. 311-12.
fito de construir espaços de manutenção da vida em meio à luta social. Por outro
lado, uma cultura partilhada por apanhadores de castanha e patrões, os explora-
dores da indústria castanheira, deve ser problematizada, considerando-se a ques-
tão das práticas como um feixe de ações, rituais e valores que se sobrepõe ou
caminha paralelamente.
Por outras palavras, é necessário compreendermos que a cultura constitui
uma mediação entre as tentativas de negociar melhores condições de vida, por
um lado, e a inevitabilidade de uma sofrida submissão, por outro. É nesse senti-
do que o par negociação/resistência cede lugar à adequação, às vezes preferida
como estratégia de manutenção da vida. De fato, à medida que um trabalhador
se encontra na posição de «perdedor» de uma negociação, ele pesa, de um lado, o
«preço» a pagar pela resistência e, de outro, se o caminho não seria “adequar-se”
às imposições do “vencedor”, ao menos provisoriamente, até que surja uma nova
oportunidade de negociar.
287 em sua forma mais densa: imensas florestas que comportam árvores com altura
média entre 25 e 40 metros. Os frutos dessas árvores têm a forma arredondada
do coco: ouriços que, recobertos de um maciço lenho, possuem no seu interior
de doze a dezesseis sementes, as castanhas, que também são revestidas por uma
casca lenhosa. A produção da castanha antecede a década de 1890, mas é a partir
desse período que sua exportação alcança importância na economia do estado
do Pará e, especialmente, na da região do Tocantins: fronteira entre Maranhão e
Goiás. A constituição de um mercado europeu, no qual a demanda pela castanha
cresceu vertiginosamente na década de 1910, foi determinante para a definição do
tipo de exploração comercial e também das (co) formações das relações de traba-
lho praticadas no interior dos castanhais.
Nesta década, a baixa comercial do látex se anunciava, mas substituindo-lhe
surgia o febril comércio da castanha, que podia, conforme Josias de Almeida, ser
divisado “nos batelões que acorriam de todos os pontos espalhados pelas flores-
tas” em direção ao entreposto de Marabá.12 Nos anos que se seguiram a 1914, Ma-
rabá, antigo Burgo de Itacaiúnas, estabelece-se como o centro econômico do Pará,
representando, nas palavras de Umberto Peregrino,
12 ALMEIDA, Josias de. Do Araguaya às Índias Inglezas. São Paulo: Nacional, 1935, p. 66.
13 PEREGRINO, Umberto. Imagens do Tocantins e da Amazônia. Rio de Janeiro: Americana, 1942, p. 27.
14 RODRIGUES, Lysias Augusto. Roteiro do Tocantins. Rio de Janeiro: Nacional, 1935, p. 193.
15 Camarada, segundo Ana Lúcia da Silva, era qualquer trabalhador que fizesse um ajuste de trabalho com
outrem para prestação de serviços na lavoura, pecuária, empreitadas de viagens, extrativismos e serviços
domésticos. Ou seja, em termos gerais, o apanhador de castanha era também um camarada, conforme o
costume e a linguagem regional. Cf.: SILVA, Ana Lúcia. A Revolução de 30 em Goiás. Goiânia: Cânone, 2001.
16 Grifo do autor.
17 NEIVA, Arthur; PENNA Belisário. Viagem Científica: pelo norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco e de
norte a sul de Goiás. Coleção Memória Brasileira. v. 17. 2. ed. Brasília: CEGRAF, 1999, p. 180.
18 ����������������������������������������������������������������������������������������������������������
EMMI, Marília F. A oligarquia do Tocantins e o domínio dos castanhais. 2.ed. Belém: Gráfica e Editora Uni-
versitária da UFPA, 1999.
19 EMMI, Marília F. Os castanhais do Tocantins e a Indústria Extrativa no Pará até a década de 1960. Paper do
NAEA 166. Belém: UFPA, out. 2002, p. 03. Ver: http://www.ufpa.br/naea/det_publicacao.php?id=78
20 PATERNOSTRO, Júlio. Viagem ao Tocantins. Col. Brasiliana. v. 248. São Paulo: Nacional, 1945, p. 80-1.
pelo pouco cuidado com que [aquela] gente ia às matas ― sem calçado,
pisando em charcos, logo pela madrugada, bebendo água das fontes
infecciosas, mal se abrigando em palhoças provisórias, contra as chuvas
abundantes e alimentando-se insuficientemente.24
ele aponta para um caminho diferente daquele trilhado por Rodrigues, que afir-
mou que os apanhadores de castanha “naturalmente não traziam as famílias nes-
sa empreitada doida de meter-se no Inferno Verde”.26
Rodrigues não chegou a afirmar que inexistiam mulheres nos castanhais,
mas, para ele, a presença feminina estava restrita às prostitutas que se embre-
nhavam nas matas com o objetivo de “reter” o que o apanhador de castanha teria
recebido durante a safra. Segundo esse piloto-aviador, “as mulheres todas são de
todos, desde que haja dinheiro, [...] crian[do] uma mentalidade normal de concu-
binato, dada a maioria desses homens ser casados”.27 No que concerne à domina-
ção, as diferenciadas relações entre homens e mulheres descritas por Rodrigues
nos leva a questionar os significados da articulação construída entre trabalho e
moralidade na região dos castanhais do Vale do Tocantins-Araguaia.
A representação de Rodrigues sobre os apanhadores acerca-se de metáforas
cujos sentidos construídos por esse piloto-aviador articulavam a constituição implí-
cita de normas e valores sociais à prática ideológica de ordenamento hegemônico
com vistas a desqualificar o apanhador de castanha em sua condição de trabalha-
dor. Em sua compreensão, “não havia guias morais [fosse] de qual religião fosse”
em Marabá ou na região, pois, em 1931, “ainda se v[ia] um indivíduo publicamente
amasiado com a mulher do outro, vivendo os três em comum como se fosse a
coisa mais natural do mundo”.28 Afirmar que não houvesse famílias, organizadas
nos moldes tradicionais, na região dos castanhais e que as mulheres ali presentes
fossem todas prostitutas é um argumento que, em primeiro lugar, volta-se para a
ideia de desordem e, por conseguinte, para a necessidade de ordenamento social.
A esse respeito, Rodrigues expõe, sucinta e claramente, que essa regulação social 292
chegaria a Marabá “so[mente] com a lei”.29
Mas a ordem/desordem sobre a qual a lei e seus agentes atuavam preferen-
cialmente não era aquela que tratava das relações amorosas ou conjugais naquele
sertão particular, embora esta última tenha servido muitas vezes de justificativa
para a manutenção e a intervenção de forças policiais nos castanhais. O campo de
atuação dessas forças era, a despeito da manutenção da moralidade, quase sem-
pre “uma desculpa” para controlar os trabalhadores, o que Neiva e Penna esclare-
cem com primor ao narrar a ação da polícia como braço armado dos barraquistas
em 1912.
A “rebelião” ou a tentativa de fuga empreendida por trabalhadores cativos
de barraquistas eram punidas com violência e com força pela polícia, conforme
relatam estes médicos:
para domesticar o jacamim era necessário ir “na época própria [...] à mata [...] tra-
zer companheira para o quintal, que também se acostuma e fica”, porém o acos-
tumar-se e ficar das aves é traduzido por Rodrigues para a experiência humana por
meio da seguinte expressão: “Quantos jacamins humanos andam por aí?! [...] Que
se domesticam como cachorros”.36
Transpondo essa metáfora para o cotidiano dos trabalhadores nas matas de
castanhais, percebemos vestígios de que Rodrigues relaciona-a com uma das es-
tratégias de exploração construídas pelos patrões: a utilização das “mulheres da
vida” para endividar e finalmente escravizar os apanhadores, uma prática usual
dentro dos castanhais e que Rodrigues, assim como Moura, deve ter tido a opor-
tunidade de observar. Atentando ao significado dessa lenda na narrativa de Ro-
drigues, compreendemos que esse piloto-aviador, ao se referir aos homens que
se deixavam domesticar, estaria aludindo ao caráter da dominação sofrida pelo
apanhador de castanha: a regulação do trabalho exercida pelos patrões por meio
da prostituição.
Contudo, somente no dia 27 de março de 1944, mais de uma década após
sua passagem por Marabá, é que surgem evidências da relação construída por
Rodrigues entre a “domesticação” do jacamim e a dos trabalhadores por inter-
médio das “fêmeas”. Advogando a causa da criação de um território federal que
englobasse o Norte de Goiás e o Sul do Maranhão, publica nessa data um artigo no
Jornal À Tarde, editado na cidade Carolina, estado do Maranhão, apontando que
a causa da pobreza e da decadência da região eram a falta de iniciativa privada, o
esquecimento por parte do estado e
294
os frouxos laços de moralidade que, além de destruir as famílias, são
artifícios da escravização dos trabalhadores nas fazendas, nas roças e
nas matas de castanhais. A exploração é ajudada pela fraqueza da pu-
dicícia que a par do desleixo experimentado pelos trabalhadores que
frequentam parte do ano o baixo meretrício, se deixa domesticar como
na lenda das aves negras do amazonas.37
38 Gaiola é uma embarcação a motor movida à gasolina, típica dos rios Tocantins e Amazonas, apropriada
para águas de navegação franca.
39 PATERNOSTRO, Op. cit., p. 83-4.
Panero é o nome que Júlio Paternostro utiliza para identificar o cesto que,
inclusive, ainda hoje é muito utilizado para o transporte de produtos extrativos da
lavoura, na região dos vales do Tocantins-Araguaia. Em média, cada cesto compor-
tava sessenta quilos de castanha, que eram transportadas nas costas do apanha-
dor do centro da mata até as pontas, locais onde embarcações esperavam para
embarcar o produto em direção a Marabá. Dos centros das matas de castanhais
até essas pontas, o percurso nunca era inferior a quinhentos metros, o que tor-
nava o trabalho extenuante. Entretanto, cansaço sofrido pelo trabalhador casta-
nheiro não pode ser compreendido apenas como um trabalho penoso, pois aquela
experiência conduzia, para além da fadiga, à invalidez e à morte do trabalhador.
Moura também aponta a precariedade da vida dos apanhadores, quan-
do diz que, “perseguidos pelas febres intermitentes, muitos eram dizimados
anualmente”.40 A manifestação lacônica de Moura, ao informar sobre a “dizima-
ção” do trabalhador da castanha, talvez ocorra em razão de esse engenheiro res-
ponsabilizar o próprio trabalhador pela situação. Não obstante, do termo dizima-
do surgem rastros de uma carga sintagmática que vale a pena perseguir em outros
relatos da mesma época ou de épocas aproximadas, isso porque podem revelar
indícios da realidade do trabalhador nas regiões centrais do Brasil entre o fim do
século XIX e as primeiras décadas do século XX.
Em Paternostro, esses rastros estão particularmente marcados quando ele
destaca que as condições precárias da vida determinavam a doença, a invalidez
e a morte do apanhador de castanha. Esse médico descreve pontualmente algu-
mas das doenças que atacavam os trabalhadores dos castanhais, o que nos auxilia
a entender as experiências que preenchem o sentido da “dizimação” cotidiana 296
enunciada por Moura. Segundo Paternostro:
Além da malária endêmica, tive notícia de uma infecção que nos meses
de maio a junho vitima os extratores de castanha. Segundo informa-
ções dum Sr. Juvêncio Alves, em 1924, esta doença matou trinta indi-
víduos em Joana Peres. Os sintomas descritos coincidem com os dos
casos clínicos observados pelo Dr. Júlio Barcas de Marabá. Febre, vômi-
to, escarros sanguinolentos. Parece tratar-se duma forma epidêmica de
bronco-pneumonia, a que os nativos chamam catarro.41
43 LIMA, Nísia Trindade. Uma brasiliana médica: o Brasil Central na expedição científica de Arthur Neiva
e Belisário Penna e na viagem ao Tocantins de Julio Paternostro. In: História, ciência, saúde. Mangui-
nhos. v.16 supl.1. Rio de Janeiro. jul. 2009. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-
59702009000500011&script=sci_arttext. Acessado em: 20/04/2012.
44 RODRIGUES, Ana Rosa. Lembranças de um castanheiro do Pará. Belém: Lusíada, 1942, p. 39.
nove filhos, e não pensava em parar, o pai dizia: ‘que muié era pra parir i home pra
criar’ e assim foi até a aurora do século”49, quando a febre da borracha levou a família
Rodrigues para a região de Conceição do Araguaia, cidade no Sul do estado do Pará.
Contudo, quando no ano de 1914 a crise da borracha se instalou, o “pai de Braulino,
com d. Alfonsina e mais os 15 meninos, se mudaram para o castanhal do Itacaiúnas”.50
No final da década de 1910, contando com aproximadamente vinte e cinco
anos de idade, Braulino Rosa já era apanhador de castanha respeitado entre os
camaradas por “conseguir coletar mais de um hectolitro do fruto por dia”. Segun-
do a autora, o pai era um homem “muito trabalhador, desde a juventude, e que se
orgulhava de nunca ter sido chamado no barracão por qualquer causa”51, e com-
plementa narrando como começava o dia do apanhador de castanha:
299 enlameado.52
iam junto com ele três de seus irmãos mais novos e os dois filhos mais
velhos [...]. Chegavam ainda dia, mas escuro, de volta a casa com os
ossos frios [...] meu irmão mais novo foi atacado de asma, conhecida no
castanhal com “puxado”, meu pai correu no barracão e deram-lhe mui-
tos comprimidos, que ele não consegue lembrar o nome, mas que não
salvou o menino. Sobre esta tragédia, o que mais marcou a lembrança
de meus pais não foi o pormenor do acontecido com meu irmão, mas a
consequência dos comprimidos, “descontrolou a conta no barracão” e
nunca mais puderam sair.55
Naquele dia, a febre atingiu com muita força o menino. Meizinha [re-
médios caseiros] não adiantava. Meu pai dizia: “Ver o menino naquele
‘sufrimento’ não tava aguentando”. Foi ao encarregado do barracão
que lhe entregou os remédios e fez as anotações no caderno de conta.
Ele voltou aliviado para casa, pensando que a vida do filho estava salva.
Mas depois de três dias ele morreu nos braços de minha mãe [...]. Brau-
lino [o pai da autora] olhava de longe, com olhos duros e perdidos de
dor, seguro no punho da rede.59
O sertanejo está destinado, pela sorte, a viver longe dos meios chama-
dos civilizados, privado de muitas vantagens de que gozam os habitan-
tes das zonas adiantadas. De tudo quanto lhe foi recusado pelo destino,
recebe, de vez em quando, informações detalhadas, talvez exageradas,
que não deixam de fazê-lo sonhar. E, todavia não se lamenta, nem é
atormentado pela inveja. Suporta, de bom grado, as dificuldades e pri-
vações [...] e chega a gostar da solidão e aspereza de sua existência.61
A “resignação imperturbável” que Audrin explicou ter sido forjada por “pro-
fundas convicções religiosas” e ser uma característica geral dos sertanejos que ha-
bitavam, nas primeiras décadas do século XX, os vales dos rios Araguaia-Tocantins,
foi descrita por Rosa Rodrigues como um traço particular do caráter de seu pai,
cuja origem parecem ser as tradições e os valores sociais do sertão dos vales. Não
cabe nos limites deste artigo problematizarmos as aproximações e os distancia- 302
mentos entre as dimensões religiosas e costumeiras dessa “resignação” na cons-
trução da dominação e da legitimação da escravização por dívida, porém, para
além da tradição cultural ou religiosa, parece-nos pertinente afirmar que, diante
das experiências partilhadas no interior dos castanhais, os trabalhadores faziam
suas escolhas de acordo com as condições e com as possibilidades que poderiam
ser vislumbradas em seus horizontes.
Por outras palavras, não é improvável que Braulino Rosa, antes de assumir a
dívida “resignadamente”, tenha avaliado suas reais condições de manter a famí-
lia e de “escapar” das consequências físicas, escolhendo, ao final, permanecer no
castanhal. Não se trata apenas de submissão, trata-se de ser capaz de entender os
caminhos da negociação e da resistência em meio aos espaços da dominação por
meio da adequação a determinadas situações que, como experienciavam os apa-
nhadores de castanha, poderiam ser transitórias e culminarem, ao menos poten-
cialmente, em novas negociações e/ou resistências futuras. No caso dos apanha-
dores de castanha, os caminhos da resistência e da negociação eram uma opção
pouco segura e, em função das sutilezas presentes em sua constituição, dificilmen-
te identificáveis nas evidências deixadas para a posteridade.
Em se tratando, especificamente, das práticas de resistência desses traba-
lhadores, podemos demarcar com segurança, como apresentado na primeira par-
te deste artigo, que as tentativas de fuga foram uma das estratégias que expres-
savam a potencialidades dos trabalhadores para resistir à exploração. Com efeito,
em muitos dos relatórios de funcionários públicos que passaram pela região dos
castanhais, tenham sido eles militares ou civis, há referências ao fato de que o
apanhador de castanha vivia permanentemente vigiado. Além disso, na maioria
dessas referências, essa prática é explicada como parte do arsenal de controle dos
patrões, cujo fito seria impedir aqueles trabalhadores de fugirem ou de descansa-
rem de suas fadigas cotidianas.
Entretanto, Paternostro apresenta, durante sua passagem pelo castanhal de
Joana Peres, alguns elementos que nos encaminham para outras possibilidades de
resistência que não apenas a fuga ao cativeiro. Esse médico, ao narrar suas impres-
sões acerca da indústria da castanha, afirma, como vimos acima, que os patrões
impediam seus apanhadores de saírem das matas, o que, inicialmente, parece ser
apenas uma estratégia de controle dos trabalhadores. Mas o que escreve algumas
linhas abaixo ilumina outra perspectiva:
É necessário aqui buscar ler nos silêncios de Paternostro as práticas dos apa-
nhadores. Quando esse médico expõe que os trabalhadores da castanha têm sua
mobilidade restrita pelos patrões, não está, exclusivamente, apontando para a
questão da escravização por dívida, mas enunciando uma estratégia para controlar
o produto do trabalho do apanhador que, dentro de suas possibilidades, procurava
303 levar suas castanhas para a vila e negociar longe dos olhos e dos preços compulsó-
rios de seus patrões. Nesse sentido, os barcos a vapor significaram um braço forte
ao patrão que, indo buscar a produção nas pontas dos castanhais, impedia que os
trabalhadores levassem as castanhas coletadas para a cidade de Marabá em “suas
pequenas embarcações”. A questão era o controle da produção de castanhas.
Nessas situações, o apanhador de castanha era ilhado nos centros da mata
e mantido isolado até o fim da safra. O isolamento era garantido pela presença
de um vigia que era pago pelo “dono do castanhal” para combater os ataques de
índios e, principalmente, para impedir que os trabalhadores se dirigissem às vilas
e conseguissem comercializar sua safra por um preço melhor do que aquele pago
pelo “patrão”. No relato de Rosa Rodrigues, encontramos uma referência a essa
prática, quando diz:
Não é possível saber mais acerca do cunhado de Braulino Rosa e nem mesmo
Rosa Rodrigues esclarece. Contudo, considerando-o um acontecimento e sujeito
representativo de uma prática que parece não ter sido única, podemos fazer algu-
mas inferências. Em primeiro lugar, evidencia-se um “jogo de valores” que, cons-
Conclusão
Esse mundo d’água e de exploração realizava-se no universo do apanhador
de castanha, estabelecendo os limites de sua movimentação física, construindo
fronteiras simbólicas que favoreciam a exploração e a dominação, ao colocarem
no centro inundado dos castanhais as famílias daqueles trabalhadores. De fato, a
organização do trabalho nos castanhais em moldes capitalistas demandava uma
articulação entre determinada “resignação à exploração” e uma moralização do
trabalhador. Nesse jogo, valores como honestidade e empenho da palavra eram
Recebido em 07/12/2012
Aprovado em 21/04/2013
Introdução
Em função das conhecidas intervenções do governo brasileiro no mercado de
café e de uma legislação altamente vulnerável no que se referia à apropriação (legal
ou ilegal) de terras em São Paulo, a fronteira agrícola avançou nesse estado num
ritmo, até então, sem precedentes na história nacional. Nos vinte anos compreen-
didos entre 1917 e 1937, assistiu-se no chamado “oeste paulista” o vil espetáculo do
extermínio indígena mediante a ação dos bugreiros (nomenclatura dada aos ho-
mens que se especializaram na matança do gentio), das recorrentes trapaças, que
1 A nomenclatura “colono” aqui designa a totalidade dos trabalhadores rurais alocados na cafeicultura
paulista, não se referindo unicamente aos trabalhadores submetidos às relações de colonato.
circulavam nas principais cidades do país, tais como o Fanfulha. O trabalho com
esse tipo de fonte sempre exige certo cuidado por parte do pesquisador, uma vez
que muitos desses veículos de informação eram dominados ora por membros da
elite cafeeira, ora por pessoas ligadas à “causa imigrante”, tendendo as interpreta-
ções dos fatos, respectivamente, a uma visão “benéfica” ou “cruel” em relação à
condição de vida dos trabalhadores. De qualquer forma, as fontes impressas cum-
priram importante missão na divulgação de dados atinentes ao que ocorria nas
lavouras de café, no que se refere à relação entre empregadores e empregados.
As estatísticas e os relatórios governamentais, sobretudo as estatísticas
organizadas pelo Departamento Estadual do Trabalho, criado em 1911, também
fornecem aos pesquisadores algumas informações preciosas sobre o tema em
tela, entretanto, há que se fazer uma ressalva a essas fontes, pois se tratam de
documentos oficiais produzidos com o claro intuito de mascarar as vicissitudes
impelidas às famílias de trabalhadores alocados nas fazendas de café. O fato é
que a partir de 1902, ano no qual Giulio Prinetti ― chefe do Comissariado Geral da
Emigração na Itália ― proibiu a emigração subvencionada para o Brasil, inúmeros
documentos oficiais foram produzidos pelo governo brasileiro e circularam inter-
nacionalmente, procurando ressaltar a “excelente” condição de vida proporciona-
da pela labuta nas lavouras aos italianos e aos trabalhadores em geral, de modo
que debruçar-se incautamente sobre esses registros pode levar o pesquisador a
aproximações não fidedignas, prejudicando sua análise.2
As correspondências enviadas pelos imigrantes aos seus países de origem
309 constituem importante registro para o estudo das relações de trabalho na cafei-
cultura paulista. O estudo de Chiara Vangelista3 valeu-se de algumas cartas envia-
das à Itália por imigrantes, nas quais encontrou relatos que ora vangloriavam as
condições de vida na fazenda, convidando os compatriotas a aventurarem-se na
América, e ora denunciavam as dificuldades existentes na realidade rural. Certa-
mente, essas correspondências traziam algumas informações sobre poupanças,
salários e outras remunerações, sendo estas informações de grande relevância ao
estudo da questão do trabalho nas fazendas de café. O trabalho de Alves4 também
evidenciou a importância das cartas como fonte histórica, ao tratar das correspon-
dências enviadas por imigrantes alemães sediados no Rio de Janeiro em meados
do século XIX.
O trabalho de Alvim5, cujo objetivo era o estudo da vida privada de imigran-
tes sediados nas fazendas de café, também trouxe importante contribuição para o
entendimento do trabalho e das condições da mão de obra no campo, atentando
para as possibilidades de estudos sobre o cenário rural que considerem as condi-
ções de moradia, de higiene pessoal, de alimentação, de religiosidade e de repre-
sentações. O texto nos permite pensar nas potencialidades de utilização de novas
fontes históricas para o entendimento das relações de trabalho travadas naquele
universo, tais como os objetos e as anotações pessoais, as fotografias, os hábitos
e as celebrações.
2 Ver o trabalho de Thomas Holloway (1984), especialmente o capítulo n. 04, onde são demonstradas fontes
desta natureza.
3 VANGELISTA, Chiara. Os Braços da lavoura. Imigrantes e “caipiras” na formação do mercado de trabalho
paulista (1850-1930). São Paulo: Hucitec; Instituto Italiano di Cultura; Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1991.
4 ALVES, Débora Bendocchi. Cartas de imigrantes como fonte para o historiador: Rio de Janeiro ― Turíngia
(1852-53). São Paulo, Revista Brasileira de História, v. 23, n. 45, 2003.
5 ALVIM, Zuleika. Imigrantes: a vida privada dos pobres no campo. In: NOVAIS, Fernando. História da vida
privada no Brasil. v. 03. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.
6 BENINCASA, Vladimir. Velhas fazendas. Arquitetura e cotidiano nos Campos de Araraquara. 1830-1930. São
Paulo: Edufscar; Imprensa Oficial, 2003.
7 FERRÃO, André Munhoz de Argollo. Arquitetura do café. Campinas; São Paulo: Editora da Unicamp;
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004.
8 SALLUM JR., Brasílio. Capitalismo e Cafeicultura. Oeste Paulista: 1888-1930. São Paulo: Duas Cidades, 1982.
9 THOMPSON, Paul R. A voz do passado:história oral. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
10 FERREIRA, Marieta M. & AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
11 BASSANEZI, Maria Silva C. Beozzo. Fazenda Santa Gertrudes, uma abordagem quantitativa das relações
de trabalho em uma propriedade rural paulista, 1895-1930. Rio Claro: FFCL, 1973. Tese (Doutorado em
Ciências Sociais).
12 DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura 1820-1920. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1977
13 FALEIROS, Rogério Naques. Os colonos do café e a crise de 1929: o “dever” e o “haver” nas cadernetas da
fazenda Pau d’Alho de Campinas. In: I Seminário de História do Café: História e Cultura Material. Itu: Museu
Paulista, 2006. Disponível em: www.mp.usp.br/cafe/textos.
14 FALEIROS, Rogério Naques. Homens do café: Franca 1880-1920. Campinas: IE/Unicamp, 2002. Dissertação
(Mestrado em História Econômica). FALEIROS, Rogério Naques. Homens do Café. Franca, 1880-1920.
Ribeirão Preto: Holos; Fapesp, 2008.
15 Inventário de Maria Clara de Jesus. Caixa 202, n.110. Arquivo Histórico Municipal de Franca-SP.
16 FALEIROS, Loc. cit.
ocorrido em São Paulo entre 1917 e 1937, trabalhamos com duas mil e quarenta
e sete escrituras cartoriais registradas em quatorze municípios, sendo que todas
elas envolviam a formação e o trato de cafeeiros.17
Essas escrituras forneceram importantes informações, tais como o nome
das partes contratantes, a quantidade e o estado dos cafeeiros a serem formados
ou cuidados, as formas de remuneração, o nome das fazendas, as cláusulas que
regulavam as possibilidades de acesso dos trabalhadores ao cultivo de outras cul-
turas, as multas rescisórias, os termos de garantia, os adiantamentos previstos e a
duração dos contratos. Além disso, a consulta à documentação cartorial permitiu-
-nos perceber as regiões em expansão no intervalo de nossas preocupações, for-
necendo grandes potencialidades no que se refere à observação do movimento da
cafeicultura numa perspectiva dinâmica, ou seja, do ponto de vista da realização e
do registro cotidiano dos negócios, no caso, a formação de novas lavouras de café.
Como veremos adiante, a consulta a essa documentação revelou mecanismos de
exploração dos colonos ainda pouco discutidos pela historiografia. Por outro lado,
esse tipo de fonte apresenta uma limitação pelo fato de que as informações lá
contidas são muito específicas e fragmentárias, sendo que, vistas isoladamente,
podem não ser representativas de realidades mais amplas. Deriva dessa limitação
a necessidade de se relacionar as fontes cartoriais com registros de outra nature-
za, tais como almanaques, jornais, boletins, estatísticas e relatos memorialistas.
17 FALEIROS, Rogério Naques. Fronteiras do Café: fazendeiros e colonos no interior paulista (1917-1937).
Bauru; São Paulo: Edusc; Fapesp, 2010, p. 21.
18 O contrato padrão previa um pacote salarial e outros incentivos. Três formas principais de remuneração
eram especificadas: salário em dinheiro para o trato das plantações de café, para a colheita dos frutos
e para o trabalho diário não especializado (diária). Além disso, o contrato fornecia moradia gratuita e
usufruto da terra para culturas de subsistência. Todos os salários se estabeleciam numa base por unidade
― uma quantia fixa de dinheiro por mil pés tratados, por unidade de volume colhido de café ou por dia
trabalhado. Porém, existiam outras formas de contratação de mão de obra para as fazendas, tais como
as empreitadas e parcerias, recorrentes nas escrituras pesquisadas, nas quais não necessariamente se
efetivavam pagamentos em dinheiro. Podemos entender essas modalidades de arregimentação de mão
de obra como variações do dito “contrato padrão”.
21 MARTINS, José de Souza. O Cativeiro da Terra. São Paulo: Livraria e Editora Ciências Humanas, 1979, p. 20.
22 MARTINS, op. cit., p. 88.
Com base nesse mecanismo, as fronteiras criariam um efeito de atração quase irre-
sistível, o que redundaria, também nas zonas antigas, em melhorias nas condições
de ascensão dos colonos.
Maurício Font parece distinguir, também a partir das possibilidades criadas
pela expansão das fronteiras em São Paulo, uma forma de colonização específi-
ca, distinta. Segundo o autor, existem bases suficientes para argumentar que as
fases posteriores da expansão do café em São Paulo, notadamente nas décadas
de 1920, 1930 e 1940, presenciaram o surgimento de outras formas de produção,
principalmente de pequenos e médios proprietários. Esse argumento é sustenta-
do pelos dados fornecidos por Sérgio Milliet (1939) e José Francisco de Camargo
(1952), que apontam a existência crescente de pequenas e médias propriedades
em São Paulo neste período, sobretudo nas regiões de recente desbravamento.
A hipótese central desenvolvida pelo autor é a de que as combinações próprias
das relações de colonato permitiram que alguns trabalhadores rurais se trans-
formassem em produtores independentes de mercadorias, provendo, assim, as
bases que tornaram possível a mudança para a produção cafeeira independente.
Além de garantir sua subsistência, o direito de usufruto da terra permitiu a produ-
ção de excedentes alimentícios que, naquele contexto de expansão da urbaniza-
ção da economia paulista, se tornaria, cada vez mais, uma das fontes básicas de
receita monetária.
As conclusões de Font apontam para a existência de uma estrutura de opor-
tunidades fluidas em São Paulo, que permitiria aos trabalhadores buscar as me-
lhores oportunidades dentro ou fora do sistema da fazenda. A dramática expan- 316
são na demanda de culturas alimentares, em virtude da urbanização, possibilitou
às famílias com suficiente força de trabalho atingir economias consideráveis, ao
destinar o usufruto dos lotes à produção de culturas comercializáveis. Para o au-
tor, a economia mais ampla, nascida do setor de exportação do café, desenvolveu
uma dinâmica própria que sustentou o surgimento de acordos alternativos de uti-
lização e posse da terra, principalmente no contexto da fronteira em expansão.
“Lá, os pequenos proprietários, prosperando na produção de diversos gêneros
agrícolas, tornaram-se um elemento predominante na organização social. Esses
processos minaram o íntimo monopólio da terra e do trabalho tradicionalmente
reivindicado pelos fazendeiros.”27
28 Entendia-se por trato, as atividades de carpa, combate aos brotos, adubação, cuidados com doenças,
espalhamento do cisco, colheita, secagem, e, em alguns casos, beneficiamento dos grãos.
29 Uma cova abrigava de duas a cinco mudas. Sobre as que não “vingavam” era cobrada uma multa, e sobre
as que pouco se desenvolviam, estabelecia-se uma proporção: “cova de dois anos”, “cova de três anos”,
para as quais se pagava metade ou três quartos do valor combinado, respectivamente.
Esse tipo de contrato foi predominante nas novas zonas de expansão da cafeicul-
tura paulista entre 1917 e 1937.
A documentação consultada corrobora o que já foi escrito sobre o tema?
Sim, de uma forma geral. As escrituras cartoriais pesquisadas fortalecem a consen-
sual tese de que as melhores condições de remuneração pelo trabalho se concen-
travam nas regiões de avanço da fronteira agrícola. Porém, as escrituras cartoriais
também revelam algumas informações novas acerca dessa questão. Autores aqui
já citados, como T. Holloway, Brasílio Sallum Júnior e Chiara Vangelista, argumen-
tam que o trabalho nas lavouras novas permitia ao “colono” maior renda em fun-
ção da maior disponibilidade de terras para o plantio das chamadas culturas inter-
calares (milho, feijão e arroz) plantadas entre as “ruas” do café.30 Isso decorria da
pouca idade dos cafeeiros em formação nas zonas de fronteira, o que possibilita-
va o plantio de uma maior quantidade destas outras culturas, diferentemente do
que ocorria em regiões de cafeicultura madura, onde os espaços eram diminutos.
Justamente por isso os trabalhadores do café preferiam as fazendas situadas nas
zonas de expansão, pois, comercializando os excedentes, poderiam auferir rendas
monetárias e não monetárias. Segundo a bibliografia, as cláusulas contratuais que
versavam sobre o plantio intercalar eram até mais importantes para os trabalha-
dores do que as que regulavam a remuneração em dinheiro, uma vez que lhes
permitia o acúmulo de algum pecúlio. Nas palavras destes autores:
30 Os cafeeiros são geralmente plantados em fileiras, de modo que entre elas existe um espaço de
aproximadamente três metros e meio, no qual se plantavam outras culturas.
31 VANGELISTA, op. cit., p. 198-199. (grifos nossos)
32 SALLUM JR., op. cit., p. 184. (grifos nossos)
33 HOLLOWAY, op. cit., p. 122. (grifos nossos)
319
as ruas do cafezal formado e
em cada rua do cafezal; cada rua do cafezal;
duas carreiras de milho em
pasto de cinco alqueires. pasto para animais.
cada rua do cafezal novo;
Quatro carreiras de Uma carreira de milho,
Uma carreira de milho e arroz, quatro de feijão duas de feijão ou duas
4º Ano uma de feijão em cada rua ou uma de milho em carreiras de arroz em
do cafezal (novo ou velho); cada rua do cafezal; cada rua do cafezal;
pasto de cinco alqueires. pasto para animais.
Fonte: Livro de Notas n. 167, folha 32. 1.º Ofício Civil de Campinas 05/10/1923 e Livro de Notas n. 97, folha 12.
2.º Ofício Civil de Franca. 20/03/1920. Livro de Notas n. 4 (Vila Adolpho). Fls. 61. 2.º Ofício Civil de Catanduva.
01/07/1918.
320
Existe por parte da bibliografia aparente subestimação da importância das
cláusulas monetárias para as contas dos colonos, como depreendemos dos ex-
certos acima destacados. Não estamos aqui negando a importância da produção
de gêneros alimentícios para esses trabalhadores, apenas considerando que os
pagamentos em dinheiro também poderiam ter um grande peso em suas contas, e
que certamente contribuíam para o “nomadismo” da mão de obra anteriormente
citado, uma vez que um maior número de contratos envolvendo pagamentos em
dinheiro foi encontrado justamente nas regiões novas. Exemplificando, compare-
mos abaixo duas situações, a de Daniel Cruz, um empreiteiro em Pirajuí, que foi
contratado por Jorge Elias para formar dez mil cafeeiros na fazenda São Sebas-
tião, situada numa região de fronteira36, e a de Virgílio Dias Fernandes, parceiro em
Franca arregimentado por Justiniano Alves Taveira para tratar de uma lavoura de
mesma dimensão na Fazenda Aliança, situada numa região intermediária na déca-
da de 1920.37 Nesses dois casos, os trabalhadores foram submetidos a contratos
com duração de quatro anos que expirariam em 1929. Nesse contrato de forma-
ção lavrado em Pirajuí, a remuneração do empreiteiro seria composta por toda a
produção do quarto ano da lavoura e por uma determinada quantia paga por cada
cova formada, no caso 1$000 (valor que pouco variava de região para região). Já a
remuneração do parceiro de Franca seria formada unicamente por metade da pro-
dução de café. Abaixo, para calcular os rendimentos desses trabalhadores, consi-
deramos a produtividade anual dos cafeeiros de cada um desses municípios38 (em
arrobas por mil pés), multiplicando-a pelo preço pago pela arroba ao produtor.
Cabe salientar que utilizamos os preços praticados em Ribeirão Preto, importante
321 contos de réis pela totalidade da produção de café do quarto ano e dez contos por
cada cova formada, totalizando cerca de dezenove contos. Ou seja, nessa situação,
o que permitiria que o empreiteiro situado na fronteira tivesse uma remuneração
próxima a de um parceiro sediado numa região já “madura” seria o pagamento em
dinheiro, e parece-nos um exagero afirmar que os colonos pouca atenção davam a
essas cláusulas, privilegiando unicamente o acesso à produção intercalar, confor-
me destacou Holloway no excerto anteriormente citado. Evidentemente, como já
observamos, os colonos arranchados nas fronteiras teriam maiores possibilidades
para o plantio das culturas intercalares, tornando esses contratos mais atraentes
também sob esse aspecto. Esses exemplos contrariam a inversa relação entre ren-
da e salário constatada por Sallum Júnior, pois justamente nas regiões de frontei-
ra, onde era possível se auferir uma renda maior, plantando-se maior quantidade
de gêneros alimentícios, era mais recorrente o pagamento por cova formada. A
própria inflexibilidade do salário agrícola contraria tal tese, pois, ao observarmos
contratos lavrados em diferentes regiões, tanto novas quanto antigas, percebe-se
que o valor pago por cada cova formada não se altera substancialmente.40
Ponto comum na bibliografia sobre o tema das relações de trabalho na ca-
feicultura aqui considerado é o fato de que, para esses autores, os colonos, em-
preiteiros e parceiros possuiriam liberdade para negociar suas produções de café
e de gêneros alimentícios. Os trechos em negrito dos excertos evidenciam isso,
indicando que os colonos teriam total controle sobre os alimentos que produziam,
ou mesmo sobre a quantidade de café que lhes pertenceria. Mais do que isso, as
produções de arroz, milho, feijão e demais culturas seriam mecanismos centrais no
processo de produção de café, pois permitiam a redução dos custos monetários
de produção, ampliando a possibilidade de elevados lucros para os fazendeiros.
Tanto os autores de marcada veia marxista (Martins e Sallum Júnior) quanto os
41 Ver a atuação de algumas Companhias de Colonização, tais como a CAIC, que facilitavam a aquisição de
lotes, parcelando o pagamento pela propriedade.
42 Livro de Notas n. 105, fls. 188. 1.º Ofício Civil de São Manuel. 19/11/1930.
43 Livro de Notas n. 123A, fls. 28. 1.º Ofício Civil de Botucatu. 29/11/1928.
44 Livro de Notas n. 128A, fls. 150. 1.º Ofício Civil de Botucatu. 22/12/1936.
45 FALEIROS, op. cit., 2006.
46 FALEIROS, op. cit., 2010, p. 159.
47 Livro de Notas n. 11, fls. 74. 1.º Ofício Civil de Lins. 20/01/1930.
“dar preferência ao contratante para a venda de cereais, exceção feita aos colhi-
dos no primeiro ano, que deveriam lhe ser vendidos com a diferença, para menos,
de 2$000 por saca, de acordo com os preços vigentes na ocasião”.48 Essa cláusula
contratual identifica nitidamente a possibilidade de o fazendeiro adquirir parte da
produção dos colonos a preços menores do que os praticados no mercado.
Nesse mesmo sentido, atuou Pedro Altenfolden Cintra Silva, que em 1934
contratou Rosalino Bellini para tratar de trinta mil e oitocentos cafeeiros abando-
nados, em regime de parceria, na Fazenda Nossa Senhora da Solette, em São Car-
los. Bellini receberia como remuneração dois terços da produção dessa lavoura,
e também teria direito ao plantio intercafeeiro.49 Chama a atenção nesse caso o
fato de Cintra Silva estabelecer em contrato a compra da produção do contratado
a 80% do valor de mercado na ocasião da venda, revelando ser plausível a hipóte-
se de os trabalhadores se submeterem às táticas de estreitamentos de mercado
impostos pelos fazendeiros. Caso os trabalhadores estivessem endividados por
conta dos adiantamentos e das compras realizadas nas “Vendas”, esses estreita-
mentos poderiam ser ainda maiores, de modo que boa parte da produção que lhe
cabia nem sequer chegava às suas mãos.
Outra forma de se extrair excedentes dos trabalhadores era obrigá-los a
ceder gratuitamente parte da produção de alimentos. Na escritura lavrada entre
Francisco Guzzo e Miguel Rubi (espanhol), “obrigava-se o outorgado a dar ao ou-
torgante, por ano, das plantações que tiverem quatro sacos de milho debulhado,
quatro sacos de feijão e dois sacos de arroz limpo”.50 Pode parecer uma quanti-
dade irrisória (quatro sacos anuais), porém, imagine as quantidades de alimentos
acumulados pelo fazendeiro ao estabelecer esse tipo de expropriação com todos
324
os trabalhadores da fazenda. Certamente o objetivo prioritário de tais cláusulas
era minorar os gastos do fazendeiro com a compra desses alimentos nos merca-
dos citadinos, tornando-se o casarão da fazenda praticamente uma unidade autos-
sustentável, bem como o palacete ou a casa construída no espaço urbano. Pode-
-se pensar também que, de alguma forma, caso angariasse grandes quantidades
de alimentos, o fazendeiro poderia organizar a colocação dessa produção no mer-
cado, abastecendo as vendas rurais e as casas de comércio localizadas na cidade,
auferindo lucros a partir de um circuito promissor, dado o avanço da urbanização.
Essa espécie de “talha” praticada na cafeicultura fora recorrente em outras escri-
turas, variando-se as quantidades repassadas gratuitamente ao fazendeiro. Láza-
ro Carlos Gonçalves, por exemplo, ao contratar Constante Pope para “tocar” em
parceria os cafeeiros da Fazenda São João da Boa Vida, em São Carlos, estendera a
divisão igualitária da produção também para o arroz, o milho, o feijão e as demais
culturas, beneficiando-se de culturas que eram reconhecidamente pertencentes
aos trabalhadores, segundo o que indica a bibliografia.51
Ainda tratando dessa questão, um indício interessante sobre a concentra-
ção da produção de alimentos nas mãos dos proprietários é a escritura lavrada
em 1923 entre Antônio Petraglia e os trabalhadores Waldemar Berdini e Marcelino
Miguel Berdini, em Franca. Nesse contrato, os Berdini se obrigavam a tratar de
oito mil cafeeiros, já plantados na chácara Vila Euphrásia, recebendo 0$400 por
cada cova formada, além de toda a produção de café num prazo de quatro anos.
58 Livro de Notas n.124, fls. 68. 2.º Ofício Civil de Franca. 01/10/1925.
59 FALEIROS, op. cit., 2010, p. 475.
60 Livro de Notas n. 215, fls. 21. 2.º Ofício Civil de Jaú. 27/07/1935.
61 Livro de Notas n. 13, fls. 92. 2.º Ofício Civil de Novo Horizonte. 04/03/1926.
62 FALEIROS, op. cit., p. 365.
Seixas contratou Faustino Martins para formar vinte e cinco mil cafeeiros na Fa-
zenda Boa Vista, em Araraquara, durante quatro anos. Receberia como remunera-
ção 1$000 por cada cova formada ao final do período, além de toda a produção de
café. Contudo, caso fizesse alguma benfeitoria na propriedade, não seria ressarci-
do, mesmo que essas construções fossem fundamentais para o bom andamento
da empreitada, tais como terreiros, tulhas, curvas de nível para as enxurradas etc.
Definiu-se a seguinte cláusula entre as partes:
63 Livro de Notas n. 32. fls. 95. 2.º Ofício Civil de Araraquara. 19/06/1928.
64 Livro de Notas n.111, fls. 18. 2.º Ofício Civil de Franca. 28/07/1923.
65 Livro de Notas n. 99. fls. 95. 2.º Ofício Civil de São Carlos. 24/01/1928.
66 Livro de Notas n. 61, fls. 21. 2.º Ofício Civil de Pirajuí. 02/02/1932.
67 Livro de Notas n. 03, fls. 79. 2.º Ofício Civil de Pirajuí. 08/04/1922.
68 Livro de Notas n. 35, fls. 56. 2.º Ofício Civil de Pirajuí. 28/11/1927.
Considerações Finais
Os exemplos e situações aqui considerados revelam mecanismos de explora-
ção dos trabalhadores rurais sediados na cafeicultura paulista até então não con-
siderados pela bibliografia sobre o tema, indicando para o fato de que as relações
de trabalho travadas eram mais deletérias aos trabalhadores do que se supunha.
Tal revelação decorre da utilização de uma fonte documental até então pouco uti-
lizada ― os Livros Cartoriais. Nossos apontamentos corroboram a tese de uma
melhor remuneração pelo trabalho existente nas zonas novas (fronteira) em fun-
ção não somente das rendas não monetárias advindas de um maior espaço para as
culturas intercalares, como também dos pagamentos em dinheiro pela formação
de lavoura, mais recorrentes nessas regiões. Por outro lado, vimos que no conjun-
to das regiões paulistas de cafeicultura foram colocadas em prática estratégias de
rebaixamento dos ganhos dos trabalhadores no que se refere às suas produções
de café e de gêneros alimentícios. Há que se considerar que tais estratégias foram
aplicadas num cenário marcado por hierarquias sociais e políticas extremamente
rígidas que esvaziavam qualquer sentido de igualdade pressuposto entre as partes
contratantes. As formas de exploração aqui desveladas assinalam para a perpetu-
ação dos desnivelamentos da sociedade brasileira, reiterando a desigualdade no
tempo e no espaço.
329
ANEXOS
330
Recebido em 20/09/2012
Aprovado em 10/01/2013
Abstract: This article examines the multiple and heterogeneous sources of profes-
sional guidance in Argentina, in order to show that its configuration in the present
is partly unique and partly constitutes a reformulation of longer-standing issues.
Through the analysis of a corpus comprising historical (1920-1955) and current dis-
courses (1999-2012), belonging to the field of expertise and policy, we observe the
continuities and discontinuities that characterizes its problematization: the limita-
tion of its purposes, the persistence of the “theme” of employability, the displace-
ment between an initial emphasis on meeting social goals to the current emphasis
on personal fulfillment and its continued operation as an “compromise” strategy
which seeks the fit between individual desires and market requirements.
I. Introducción
En la actualidad argentina, la orientación profesional designa un campo espe-
cífico de estudios e intervenciones con su correspondiente repertorio de institucio-
nes, revistas especializadas y textos fundadores. Inscripta en el ámbito más general
* Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas. Universidad Nacional del Litoral (Ar-
gentina). vhaidar@fcjs.unl.edu.ar
1 KLAPPENBACH, Hugo y PAVESI, Pablo. “Una historia de la psicología en Latinoamérica”. Revista Latinoa-
mericana de Psicología, Bogotá, v. 26, n. 3, p. 445-481, 1994.
2 La psicotécnica es el término que se utiliza desde los primeros años del siglo XX para designar el estudio
analítico de las diversas aptitudes que el hombre emplea en cualquier forma de actividad. Definida por pri-
mera vez por William Stern en 1903, el concepto recién fue puesto en circulación por el psicólogo alemán
Hugo Münsterberg hacia 1911.
3 ROSSI, Lucía. “Los socialistas y la psicología: tres momentos en el marco de la cátedra de psicología fisiológica
y experimental en la Universidad de Buenos Aires”. En ROSSI, L. y colaboradores. Psicología: su inscripción
como profesión. Buenos Aires: Eudeba, 2001, p. 101-112. Si bien relevantes, a lo largo del artículo no volvere-
mos sobre estos antecedentes porque los mismos no incluyen referencias a la orientación profesional.
4 El krausismo es una filosofía espiritualista que emergió a comienzos del siglo XIX en oposición al positi-
vismo materialista, y cuyo creador fue el filósofo alemán Karl C.F. Krause (1781-1832). En Argentina, dicha
corriente tuvo incidencia sobre el pensamiento y las prácticas del partido radical, particularmente sobre
el ex presidente Hipólito Irigoyen. Sobre la incidencia de esta filosofía en dicho país vid. BIAGINI, Hugo
(comp.). Orígenes de la democracia argentina. El trasfondo krausista. Buenos Aires: Legasa, 1989.
5 La biotipología es una corriente fundada en Italia en la primera posguerra por Nicola Pende que se pensó
como la instrumentación práctica de la eugenesia en el mundo latino. En la Argentina, el clima propicio
para su difusión llegó con el golpe de Estado de 1930, por la simpatía que despertaba en su líder castrense
las ideas del fascismo italiano
6 ROMERO, Luis. Breve historia contemporánea de la Argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica,
2001.
7 El artículo 37 de la Constitución de 1949 prescribía que “la orientación profesional de los jóvenes (…) es
una función social que el Estado ampara y fomenta mediante instituciones que guíen a los jóvenes hacia
las actividades para las que posean naturales aptitudes y capacidad, con el fin de que la adecuada elección
profesional redunde en beneficio suyo y de la sociedad”. Por su parte, el Segundo Plan Quinquenal esta-
blecía que una de las bases sobre las que debía organizarse la política social y laboral era el “establecimien-
to de correlaciones racionales entre la aptitud del trabajador y su ocupación, a fin de obtener los más altos
índices de productividad y de retribución.” KLAPPEBACH, Hugo. “Historia de la orientación profesional en
Argentina”. Orientación y Sociedad, La Plata, n. 5, p. 1-14.
8 GONZÁLEZ BELLO, Julio. “La orientación profesional en América Latina. Fortaleza, Debilidades, Amenazas
y Oportunidades”. REMO, México, v. 5, n. 13, p. 44-49, nov. 2007-feb. 2008.
9 Desde la historia de la psicología se vinculan las transformaciones tanto de las prácticas de orientación y
selección profesionales como de los dispositivos de inscripción utilizados en el curso de las mismas con
dos grandes procesos de carácter socio-político: la democratización y la individualización de la sociedad.
Lucía ROSSI (Abordaje genealógico de protocolos según géneros y áreas profesionales. Sujeto implícito. Po-
nencia presentada en el II Congreso Internacional de Investigación y Práctica Profesional en Psicología,
Buenos Aires, 2010) encuentra una correspondencia entre el uso de dispositivos que permitían represen-
tar a los sujetos en tanto individualidades biográficas y los períodos de “democracia con participación am-
pliada” (década del ’20 y 1946-1955) y entre el empleo de fichas que tornan irrepresentable la singularidad
y el régimen de “democracia con participación restringida” (1930-1946). H KLAPPENBACH (“Historia de
la orientación…”, op. cit.) distingue dos etapas: una etapa de la orientación profesional colectiva, coinci-
dente con la implementación de políticas “planificadoras” (hasta fines de los’ 50) y una segunda etapa de
orientación individual que coincide con el ocaso de las ideologías planificadoras y el giro “clínico” que se
le imprimió desde los’ 70.
10 Así, a lo largo del artículo nos concentraremos en analizar de qué manera esas dos cuestiones (en el sen-
tido de “temas” y de “formas de interrogación”) se hicieron pensables en toda una serie de discursos.
Eso involucra, de por sí, la desconsideración de otras preguntas relevantes, tales como aquellas referidas
a la realización de acciones de orientación profesional, su impacto sobre las poblaciones, el logro de los
objetivos que se perseguían con ellas etc. Más allá de ello, en diferentes momentos del texto haremos
algunas referencias (en función de los datos disponibles) a esas dimensiones atinentes a la “efectuación”,
en las prácticas, de la orientación profesional, con la finalidad de incorporar a la reflexión elementos que
permitan ponderar la relevancia que los expertos, entre otras autoridades, le atribuían.
11 Por “gobierno” nos referimos a lo largo de este artículo a una forma específica de ejercer el poder, en-
tendido en términos de conducción de conductas. En este sentido, el gobierno no se refiere solamente a
la dirección política del Estado, sino que designa una actividad práctica más o menos calculada y racional,
llevada a cabo empleando una variedad de técnicas y formas de conocimiento, que procura modelar la
conducta (de uno mismo, de un individuo, grupo o población) operando sobre los deseos, aspiraciones,
intereses y creencias de los sujetos (cf. FOUCAULT, Michel. “Porqué estudiar el poder. La cuestión del
sujeto”. En: DREYFUS, Hubert y RABINOW, Paul. Michel Foucault: más allá del estructuralismo y la herme-
néutica. Buenos Aires: Nueva Visión, 2001, p. 241-259 y DEAN, Mitchell. Governmentality. Power and Rule in
Modern Society. London: Sage, 1999).
12 Por “tecnología de gobierno” entendemos aquí una regularidad que organiza las acciones de los individu-
os según cierto conocimiento, orientándolas hacia un fin. De lo que se trata, en el caso de la orientación
profesional como de muchas otras tecnologías de gobierno, es de modelar la conducta con la finalidad de
aumentar y optimizar las capacidades, las aptitudes o el estado de los individuos.
13 La “historia del presente” es un enfoque emplazado entre la historia de las ideas políticas y la sociología de
las tecnologías de gobierno que ha sido desarrollado por un conjunto de investigadores de habla inglesa, a
partir de la recuperación de los conceptos foucaultianos de “gobierno” y “gubernamentalidad”. En tal clase
de análisis, el presente se aborda como un “conjunto de cuestiones”. Su finalidad es revelar la pluralidad de
piezas de procedencias diversas que lo componen, la nuda contingencia y la historicidad de lo que parece
coherente, natural y contemporáneo (cf. BARRY, Andrew; OSBORNE, Thomas & ROSE, Nikolas. “Introduc-
tion”. En: BARRY, A.; OSBORNE, T. y ROSE, N. Foucault and Political Reason. England: UCL Press, 1996).
14 El dominio de referencia (COURTINE, Jean-Jacques. “Análisis del discurso político”. Langages, n. 62, p.
1-100, 1981.) incluye los textos que delimitan el corpus y funcionan como centro orientador del análisis. En
este caso está conformado por enunciados que, entre 1999 y 2012, tematizan la orientación profesional,
tanto en el campo de la política social como académico.
15 El Programa de Calidad del Empleo y de Formación Profesional fue creado en el año 2004 por la Secretaría
de Empleo del MTEySS en el ámbito de la Dirección Nacional de Orientación y Formación Profesional. Su
finalidad consiste en implementar mecanismos de asistencia técnica a una serie poblaciones formadas por
individuos ocupados y desocupados, con la finalidad de incrementar su empleabilidad.
16 El dominio de memoria (COURTINE, Jean-Jacques “El discurso…” op. cit.) se delimita a partir de series
discursivas que conforman las capas de la memoria (citadas, retomadas, contestadas, eludidas, olvidadas
o denegadas) de los documentos del campo de referencia.
336
marco de las políticas públicas, incluyen múltiples referencias relativas al mundo
del trabajo y de la producción. Sin dejar de reconocer la distancia que los separa,
el discurso de la política social y el discurso de la expertise “psi” convergen – como
mostraremos en la subsección siguiente – en pensar la orientación como una tec-
nología que, en sus múltiples áreas de actuación, busca optimizar el ingreso y la
actuación de los individuos en el mundo del trabajo, así como asistirlos en la ges-
tión de las múltiples situaciones de “transición” y “cambio” que, a lo largo de sus
vidas, deberán experimentar.
Por el contrario, el análisis de los discursos correspondientes a nuestro “domi-
nio de memoria”18, muestra que, entre 1920 y 1955, la preocupación por el empleo,
si bien preponderante, no alcanzaba a explicar el sentido que entonces se atribuía a
la orientación, y, en todo caso, se planteaba en el marco de otra red conceptual, en
donde los temas de la “empleabilidad” y su reverso, la “inempleabilidad” no eran
desconocidos, aunque se articularan con significantes diversos a los actuales.19
17 Esta sección del corpus, correspondiente al dominio de memoria, se constituyó a partir de las siguientes
fuentes, correspondientes al período 1920-1955: las memorias del Congreso del Trabajo (1923), los Anales
de la I Convención de Médicos de la Industria (1944), las Memorias de la II Conferencia para el Bienestar
del Lisiado (1946), el Segundo Plan Quinquenal (1952), las publicaciones del Instituto de Psicotécnica y de
Orientación Profesional dependiente del Ministerio de Justicia e Instrucción de la Nación y del Instituto
de Psicología Experimental de la Universidad de Cuyo, manuales y tratados de psicotécnica, orientación
profesional y medicina del trabajo y una serie diversa de artículos publicados en las revistas La Semana
Médica, Jornada Médica, Humanidades, Clínica del Trabajo, Seguridad e Higiene Industrial, Anales de Bio-
tipología, Eugenesia y Medicina Social y Medicina del Deporte y del Trabajo.
18 Nos referimos al corpus constituido a partir de las fuentes detalladas en la nota anterior.
19 A pesar de que la empleabilidad es un término de moda, una suerte de buzzword que se utiliza con fre-
cuencia, no se trata de una invención del presente. Para la historia del concepto vid. GAUTIÉ, Jêrome. “De
l’invention du chomage a sadeconstruction”, Genese, n. 46, p. 60-76. En el ámbito argentino: GRONDONA,
Ana. Tradición y traducción: un estudio de las formas contemporáneas del gobierno de las poblaciones
desempleadas en la Argentina. Tesis de Doctorado en Ciencias Sociales. En: http://www.centrocultural.
coop/uploads/tesisanaluciagrondona.pdf
20 MTEySS. Orientación Profesional. Manual de Formación. Programa Calidad del Empleo y Formación Profe-
sional. Disponible en: http://www.trabajo.gob.ar/downloads/capacitacion/calidad_programa.pdf, p. 84 y
85, 2006.
24 Nos referimos al corpus constituido por los documentos enumerados en la nota n. 17.
25 FRADE, Carlos. “Gobernar a los otros y gobernarse a sí mismo según la razón política liberal”. Revista Es-
pañola de Investigaciones sociológicas, n. 119, p. 35-64, 2007.
26 Cf. GRONDONA, Ana. Tradición y… op. cit.
27 ORGANIZACIÓN INTERNACIONAL DEL TRABAJO. Orientación Profesional. Trigésima Segunda Reunión.
Informe IX. Ginebra: OIT, 1948, p. 34.
28 WIÑAR, David. Poder Político y Educación. El peronismo y la Comisión Nacional de Aprendizaje y Orientación
Profesional. Buenos Aires: Instituto Torcuato di Tella, 1970.
29 WEINBERG, Daniel. La enseñanza técnica industrial en la Argentina1936-1966. Buenos Aires: Instituto Torcu-
ato di Tella, 1967.
30 KAPLAN, Juan. “Selección y orientación profesionales”. Medicina del Deporte y del Trabajo, Buenos Aires,
n. 67, p. 1.766, 1948.
31 FINGERMANN, Gregorio. Fundamentos de Psicotécnica. Buenos Aires: El Ateneo, 1954, p. 40.
32 FINGERMANN, Gregorio. Fundamentos… op. cit., p. 172.
33 BOCCIA, Donato. Tratado de Medicina del Trabajo. T.I. Buenos Aires: El Ateneo, 1947, p. 264.
34 FINGERMANN, Gregorio. Fundamentos… op. cit., p. 56.
35 Al finalizar la Primera Guerra Mundial el “productivismo” se convirtió en un común tanto para el manage-
ment industrial europeo como para los movimientos tecnocráticos y pro-tayloristas de los Estados Unidos.
Dicho paradigma estaba alimentado por una triple utopía: la eliminación de la crisis económica y social, la
expansión de la productividad a través de la ciencia y el re-encantamiento de la tecnología (RABINBACH,
Aaron. The human motor. Berkeley: UCP, 1992, p. 272).
36 MIRA y LÓPEZ, Emilio. Manual de Orientación Profesional. Buenos Aires: Kapeluz, 1947, p. 1.
37 KAPLAN, Juan. “Selección y…”, op. cit., p. 1752.
38 YANKILEVICH, León. “La reeducación profesional de los accidentados del trabajo”. Anales de Biotipología,
eugenesia y medicina social, n. 90, p. 41, 1940.
39 SAGARNA, Antonio y JESINGHAUS, Carlos. “Proyecto de creación de un ‘Instituto Central de Orientación
Profesional’. Congreso del Trabajo. Santa Fe: Imprenta de la Provincia de Santa Fe, p. 334.
40 BOCCIA, Donato. “Constitución y Orientación Profesional”. Anales de Biotipología, eugenesia y medicina
social, n. 35, p. 10, 1935.
41 JESINGHAUS, Carlos. “Sobre la creación del Instituto Central de Orientación Profesional”. Humanidades,
VIII, p. 397, 1923.
42 SAGARNA y JESINGHAUS, “Proyecto de creación…” op. cit., p. 335. INSTITUTO DE PSICOTÉCNICA Y
ORIENTACIÓN PROFESIONAL. Guía de Estudios Superiores en la República Argentina. II Edición. Ministerio
de Justicia e Instrucción Pública. Buenos Aires: Talleres Gráficos de la Penitenciería Nacional, 1928, p. 15.
Al igual que la “clínica”, también las acciones que, en el marco del Programa
de Formación para el Empleo procuran asistir a los individuos en la búsqueda de
empleo y la definición de estrategias de inserción en el mercado de trabajo, se
inscriben en la gran familia de orientación individual. Ninguna de esas dos prácti-
cas “orientadoras” asume, strictu sensu, una modalidad clínica, aunque en algunos
casos se prevé la utilización de la entrevista personal. Ahora, si bien el enfoque de
tal clase de iniciativas no es en sí mismo particularizador, la orientación aparece
como un instrumento dedicado a combatir un problema cuya explicación y solu-
ción se definen en términos individuales, es decir, como una cuestión de grados de
empleabilidad/inempleabilidad. Asimismo, la reflexión acerca de la orientación que
emerge del Manual de Formación de orientadores, está articulada, al igual que la
modalidad clínica, en términos de una semántica de “autonomía”, la “elección”, y
la “decisión responsable”.
Más allá de las distancias que separan el pensamiento sobre la orientación
profesional al interior del campo académico y de la política social, a los fines de
este trabajo nos interesa resaltar cuatro aspectos.
Primero, que la acción de orientación se despliega desde un punto de vista
“individual”, en el sentido de que tiende a optimizar, a volver más eficaz, el mo-
mento – todavía revestido de un aurea casi sacra – de la elección. Aun en aquellos
planteos que tienden a deconstruir la noción de identidad vocacional/ocupacional,
la orientación se define como el “acompañamiento en un determinado período de
transición a construir una decisión”.59
347 Segundo, que independientemente del “contexto” en que se desarrolle la
orientación – una institución de formación profesional co-ejecutora de un progra-
ma social del MTEySS, la consulta privada, una escuela etc. – en todos los casos, el
consultante está lejos de pensarse como una ficha suelta: se lo representa empla-
zado en una comunidad (la familia, la escuela, los beneficiarios de planes sociales).
Esta última operación resulta estratégica para obtener la información que consti-
tuye, de alguna manera, el “combustible” del proceso en su conjunto. Pero ni la
familia, ni el barrio, ni la escuela ni el colectivo de beneficiarios se piensan como
interlocutores, co-partícipes o socios en el proceso de decisión.
Tercero, quién demanda la orientación aparece articulado en los discursos
como un ser activo o que resulta “activado” en el proceso mismo de orientación.
De lo que se trata – aún en el marco de los planes sociales – es de promover el
desarrollo de la “capacidad de optar”60, la “realización de un hacer”61, de tomar
decisiones atinentes a la formación o a la inserción en el mercado de trabajo.
Cuarto, el consultante – ora un joven estudiante de clase media o el benefi-
ciario de un plan social – se concibe como una suerte de “proyectista” de sí mismo,
como un arquitecto de su propia vida profesional. Lo que se espera de los “orien-
tados” es que, a partir del conocimiento de sí mismos y de la realidad laboral que
los circunda, elaboren un “proyecto personal de inserción social”62, identifiquen y
construyan un “proyecto profesional” o un “proyecto ocupacional”63; valorándo-
se, ambos, en términos de “proyectos de empleabilidad”.
Para interpretar adecuadamente esta última característica, pero, en térmi-
nos más generales, la afinidad entre estas formas de “orientación individual” y la
64 Cf. FOUCAULT, Michel. Nacimiento de la Biopolítica. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007.
65 Cf. O’MALLEY, Pat. Riesgo, neoliberalismo y justicia penal. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2006.
66 MARCAIDA, Elena; RODRÍGUEZ, Alejandra & SCALTRITTI, Mabel. “Los cambios en el Estado y la sociedad.
Argentina (1880-1930)”. En: AAVV: Historia Argentina contemporánea. Buenos Aires: Dialektik, 2008, p. 90.
67 MARCAIDA, Elena (et. al.) “Los cambios…” op. cit.
68 ROSSI, Lucía. “Los socialistas…” op. cit. y ROSSI, Lucía. “Instituciones de psicología aplicada según pe-
ríodos políticos y cambios demográficos en Argentina. Vestigios de profesionalización”. En: L. ROSSI y
colaboradores. Psicología: su inscripción como profesión. Buenos Aires: Eudeba, 2001, p. 141-161.
69 JESINGHAUS, Carlos. “La función social de la orientación profesional”. Revista de Criminología, Psiquiatría
y Medicina Legal, n. 121, p. 75, 1934.
Con la progresiva intensificación, durante la década del ’20, de las ideas nacio-
nalistas y fascistas, el sesgo “patriótico” que se imprimía a la orientación profesio-
nal de los jóvenes se fue acentuando. Así, en un texto escrito por un ex juez de me-
nores, que expresaba la preocupación por el destino profesional de los estudiantes,
se insistía sobre la “inutilidad” de los “doctores” y la necesidad apremiante de for-
mar “técnicos” y hombres prácticos.70 Y ante la amenaza de su cierre, Jesinghaus
defendía la utilidad del Instituto de Orientación Profesión en términos nacionalis-
tas: “En estos tiempos difíciles la orientación profesional se pone al servicio de toda
la nación unida solidaria e inexorablemente en una sola comunidad de trabajo”.71
Frente a la ausencia de indicadores macroeconómicos relativos a los mer-
cados de trabajo de las distintas profesiones y, más aun, de datos que permitan
conocer el impacto que tuvieron los servicios prestados por el Instituto de Psico-
técnica y Orientación Profesional sobre los mismos, no estamos en condiciones de
ponderar el grado en que todos aquellos objetivos “sociales” se realizaron, si es
que lo hicieron en alguna medida. Ello se dificulta, asimismo, por la ausencia de in-
formación relativa a la porción de la población universitaria y trabajadora que fue-
ra efectivamente “orientada”. Ciertamente, en las memorias anuales que elabo-
raba dicha institución están consignados la cantidad de “pedidos individuales” de
orientación atendidos, el número de consultas detalladas realizadas (provenientes
de todas las provincias) y la cantidad de interesados que pasaron por el Instituto
para solicitar la “Guía de Estudios Superiores”.
Teniendo en cuenta esos datos, particularmente el “aumento constante del
movimiento de consultas” Jesinghaus llegaba a la conclusión, en 1931, que la ins-
titución satisfacía “una necesidad realmente sentida en la población”, tanto de
350
las familias como de los educadores. Así, para las autoridades, el hecho de que en
algunas instituciones educativas hubieran comenzado a ensayar las propuestas di-
vulgadas por el Instituto, era una prueba por demás de elocuente de que el proble-
ma de la orientación había despertado el interés espontáneo de los educadores.72
Pero resultaría inadecuado evaluar la “recepción” que las prácticas desarrolladas
desde ese ámbito tuvieron entre las poblaciones de estudiantes, educadores y tra-
bajadores, considerando solamente las “voces” de los especialistas; más aún cuan-
do sus opiniones tendían a justificar (frente al Estado) la necesidad de financiar sus
propias actividades profesionales. Por otra parte, tampoco es posible afirmar que,
por ejemplo, los “2.089” interesados que en 1930 pasaron por el Instituto a retirar
la “Guía de Estudios Superiores”73 fuera efectivamente “orientados”.74
En la década del ’30, como ya mencionamos, los esfuerzos relativos a la
orientación provinieron del campo privado. Pero eso no impidió que su proble-
matización quedara asociada a motivos anti-liberales. Esto último es claro en la
reflexión que se desarrolló en el ámbito de la biotipología, dada la afinidad entre
esta última y las ideas corporativistas que inspiraron el golpe de Estado con el cual
el general José F. Uriburu derrocó, en 1930, el gobierno constitucional de Hipólito
Irigoyen. La biotipología soñaba con colocar “cada hombre en su justo lugar, con
70 PUCIARELLI, Carlos. Orientación profesional de la juventud argentina. Marcos Paz: Colonia Hogar Ricardo
Gutierrez, 1928, p. 27.
71 JESINGHAUS, Carlos. “Instituto de Psicotécnica y Orientación Profesional. Memoria del año 1930”, Sema-
na Médica, n. 26, p. 1800, 1931.
72 JESINGHAUS, Carlos. La cooperación de la escuela primaria en la orientación profesional. Buenos Aires: Ins-
tituto de Psicotécnica y Orientación Profesional, 1927, p. 12.
73 JESINGHAUS, Carlos. “Instituto…” op. cit., p. 1797.
74 Ello requeriría adentrarnos en las peripecias de los efectos que tal clase de prácticas tuvieron sobre los
individuos y grupos, lo cual excede el propósito de este artículo.
86 KNOBEL, Mauricio. Etiología del ausentismo. Tesis de Doctorado. Facultad de Ciencias Médicas, 1952, p. 97.
87 RASCOVAN, Sergio, “Lo vocacional…” op. cit., p. 2.
Esta clase de mirada marca una distancia importante respecto del estudio analítico
de las aptitudes. Asimismo, da cuenta de la afinidad entre esta forma de concepción
integral de la personalidad, el uso de test ergológicos y el enraizamiento, en algunos
círculos políticos e intelectuales de los años ’20, de ideas krausistas.95
También para la biotipología la psicotécnica estaba conectada con la preocu-
pación por moralizar el mundo del trabajo mediante la asignación de cada indi-
viduo al puesto que le correspondía de acuerdo a su biotipo. Asimismo, al igual
que la orientación de inspiración “psi”, pero sobre los fundamentos de la medicina
constitucionalística, los biotipólogos pensaban a los sujetos en términos de “in-
dividualidad” y “personalidad” y defendían la idea de la unidad fundamental del
355 hombre. Esta visión integral de lo humano se explica porque la biotipología junto
a otros saberes constituía una de las ramificaciones del holismo médico de entre-
guerras, que se caracterizaba por pensar el cuerpo de manera sistémica, enfatizar
las conexiones entre las diversas dimensiones, propender a una mirada “sintética”
e interdisciplinaria etc. Sin embargo, a diferencia de los psicólogos que compartían
las ideas krausistas, los biotipólogos argentinos no fueron totalmente consecuen-
tes con el “holismo” que defendían. Así, en los escritos de D. Boccia convivía la
idea del ser humano como “personalidad” con la metáfora fisicalista del “motor
humano”.96 Asimismo, mientras los métodos que preconizaban Jesinghaus y Fin-
germann eran ergológicos, para estudiar la «individualidad» los biotipólogos pro-
cedían a descuartizar al ser humano en varias facetas para luego reconstituirlo,
integrando y correlacionando los datos acumulados en la investigación de cada de
ellas. Idéntico reduccionismo transpiraba la obsesión por la elaboración de «bioti-
pos» que, por su carácter ideal, generaban tensiones con la idea de individualidad.
Durante los gobiernos peronistas las experiencias en materia de orientación
siguieron el modelo de los test que venían aplicándose desde 1931 por el Instituto
de Orientación Profesional del Museo Social, con lo que existe continuidad entre
los exámenes practicados en el marco del gabinete psicotécnico de la Comisión de
Enseñanza y Orientación Profesional y la evaluación de las aptitudes realizada por
los psicólogos krausistas. También en el caso del peronismo, y más allá del objetivo
de formar la mano de obra calificada que requería la industria, se advierte el pro-
yecto de moralizar el mundo de la producción, contribuyendo a la “dignificación”
del trabajo y a la armonía entre las clases sociales. Pero los fundamentos de este
programa “ético” no deben buscarse en este caso en el krausismo, sino en la doc-
trina social de la Iglesia.
IV. Conclusiones
Emergente en la década del ’20 del siglo pasado, la problematización sobre
la orientación profesional asumió a lo largo del tiempo diversas significaciones,
explicables en función de la acción de múltiples y heterogéneas condiciones, en-
tre las que se cuentan. a) Condiciones de carácter epistémico, relativas a la forma
cómo diversos saberes expertos hicieron pensable la orientación en el transcurso
de los años. Así, la misma asumió una modalidad “psicotécnica”, que fue racio-
nalizada y se nutrió del conocimiento producido por la psicología experimental,
la psicología diferencial, la psicología aplicada, la biotipología, y una modalidad
“clínica”, de inspiración psicoanalítica. b) Factores de orden técnico, vinculados
con los cambios que sufrieron los instrumentos utilizados para conocer las “apti-
tudes”, “competencias” y “potencialidades” (así: test analíticos, test ergológicos,
entrevistas) y con las expectativas que los expertos depositaban sobre ellos (me-
dición o esclarecimiento de las aptitudes, etc.). c) Cuestiones ligadas a problemas
del “gobierno” de diversas poblaciones (jóvenes, incapacitados, desempleados).
Tal como mostramos a lo largo del artículo, la orientación profesional es una tec-
nología lo suficientemente dúctil como para ser integrada en diversas estrategias
políticas. Así, a lo largo de las décadas, se incluyó en los programas de armoniza-
ción social y moralización de la vida profesional que encarnaron tanto los gobier-
nos radicales como los psicólogos krausistas; en las utopías corporativistas de los
médicos de inspiración biotipológica; en el programa nacionalista, católico-social y
neo-keynesiano del peronismo y, finalmente en el esquema de gobierno neoliberal
que expresa el programa de formación profesional del MTEySS. d) Factores eco-
356
nómico-sociales: tanto los expertos como las autoridades políticas atribuyeron a
la orientación la función de atender a diversas “urgencias”, derivadas de la rápida
e improvisada industrialización, la carencia de mano de obra idónea, el aumento
de la conflictividad social, el incremento del desempleo y la necesidad de atender
a las demandas de competitividad provenientes del mercado global.
Lejos de estar sobredeterminada, como en la actualidad, por los problemas
del mercado de trabajo, entre 1920 y 1955 la orientación se alineó hacia la realiza-
ción de diversos fines, que venían definidos tanto desde el campo experto como
desde el ámbito de la política: pacificación social, moralización de la vida profesio-
nal, prevención de los accidentes de trabajo, racionalización del trabajo, gobierno
de las poblaciones incapacitadas. Pero el carácter polivalente que dicha tecnología
asumió en sus orígenes no debe opacar la existencia de continuidades a lo largo del
tiempo. También la cuestión de la “empleabilidad” (aunque la “palabra” no fuera
utilizada) se articulaba, por entonces, en términos semejantes a los contemporá-
neos, es decir, como un problema de las capacidades para el empleo. Sin embargo,
mientras en el presente (más allá de la acción “facilitadora” y “promotora” del
Estado) la empleabilidad se concibe como una responsabilidad de los individuos,
hasta la primera mitad del siglo XX era, a la vez, un asunto tanto de los individuos
(cuya ineptitud era causa legítima de despido) como del Estado.
Así, bajo diversas formas, entre 1920 y 1955, la orientación se pensó como
una tecnología que permitía organizar, mediante una intervención ad hoc, los de-
sarrollos espontáneos que venían realizándose en el ámbito de la educación y del
trabajo, de manera de acoplar la producción de profesionales, técnicos, obreros
calificados etc. a los requerimientos de la “economía nacional” y/o del “mercado”.
Esta pretensión de “acoplamiento” y “armonización” entre los proyectos fami-
liares/individuales y aquellos capitalistas/estatales, asumió una forma autoritaria
Recebido em 10/2012
Aprovado em 02/2013
358
* Doutora em História Social pela Unicamp, correspondente do Instituto Internacional de História Social de
Amsterdam. Email: larissarosacorrea@hotmail.com
** Doutorando em Sociologia pelo IESP. Email: alexcoueng@gmail.com
*** Funcionários da Seção de Gestão de Memorial do TRT 1ª Região, pós- graduados em História e Sociologia.
Contato: secmei@trt1.jus.br
1 Exemplos nesse sentido podem ser observados no TRT 4.ª Região, no Rio Grande do Sul, no TRT da 6.ª
Região, em Pernambuco, no TRT 3.ª Região, em Minas Gerais. Ver: CAIXETA, Maria Cristina D.; DINIZ, Ana
Maria M.M.; CUNHA, Maria Aparecida C.; CAMPANTE, Rubens G. (orgs.). IV Encontro Nacional da Memória
da Justiça do Trabalho. Cidadania: o trabalho da memória. São Paulo: LTr, 2010.
2 MONTENEGRO, Antonio. “História e trabalho – o TRT 6.ª região e a UFPE: memória e pesquisa historiográ-
fica”. In: CAIXETA; DINIZ. Idem, p. 48.
3 Embora o uso das fontes da Justiça do Trabalho seja ainda recente, podemos dizer que há disponível uma
bibliografia considerável sobre o uso e sobre a análise das fontes judiciais trabalhistas. Ver exemplos em:
NEGRO, Antonio Luigi. “O que a Justiça do Trabalho não queimou”. POLITEIA: Hist. e Soc. Vitória da Con-
quista, v. 6, n. 1, 2006, p. 193-209.
4 A jurisdição da 1.ª Região abrangia os estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo. Em 1991, o estado do
Espírito Santo se desmembrou e se tornou a 17.ª Região.
5 CORRÊA, Larissa Rosa. A tessitura dos direitos. Patrões e empregados na Justiça do Trabalho, 1953-1964. São
Paulo: LTr, 2011.
6 No caso do TRT do Rio de Janeiro, os acórdãos adquirem extrema importância para os estudos do mundo
do trabalho e da justiça trabalhista na região, uma vez que os dissídios coletivos e individuais referentes
aos anos de 1940 e 1970 foram descartados.
7 SPERANZA, Clarice G. “Cavando direitos. As leis trabalhistas e os conflitos entre trabalhadores e patrões nas
minas do Rio Grande do Sul nos anos 40 e 50”. Tese de doutorado. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação
em História – UFRGS, 2012, p. 29.
8 A contextualização dos anos selecionados para a catalogação teve como base a linha do tempo publicada
no livro: GOMES, Angela de Castro. Ministério do Trabalho: uma história vivida e contada. Rio de Janeiro:
Cpdoc, 2007.
9 Em 1946, a jurisdição do TRT da 1.ª Região abrangia, além do Distrito Federal, o antigo estado do Rio de
Janeiro e do Espírito Santo. O primeiro grau de jurisdição era composto por Juntas de Conciliação e Jul-
gamento, distribuídas da seguinte forma: nove na capital e uma nos municípios de Niterói, Campos, Pe-
trópolis, Cachoeiro do Itapemirim e Vitória. Ver: “Memória institucional – história e cronologia” do TRT 1.ª
Região. Disponível em: http://www.trt1.jus.br/breve-historico-e-cronologia. Acesso em 8 de julho de 2013.
365 uma vez que o seu conteúdo variava conforme o relator. No entanto, alguns dados
apresentam-se de maneira regular e nos permitem traçar um retrato da instituição
a partir das seguintes questões:
• Quais grupos instauravam mais processos nas Juntas de Conciliação e Jul-
gamento: empregados ou empregadores?;
• Homens ou mulheres? (aqui também é ������������������������������������
possível comparar
�������������������������
gênero por cate-
gorias profissionais e por data);
• Processos instaurados por cidade;
• Análise do número de dissídios individuais, coletivos e homologações por
ano no TRT da 1.ª região;
• Ideia geral dos tipos de demandas, pois não é possível saber se o relator
reproduzia a lista completa de reclamações apresentadas no processo;
• Análise das decisões dos tribunais de 1.ª e 2.ª instâncias. É possível saber se
os juízes eram mais favoráveis ou não às reclamações impetradas por tra-
balhadores e empregadores;
• Quem entrava mais com recursos: patrões ou empregados?
• Pesquisa pelo nome do relator;
• Pesquisa por ano, empresa, cidade e por categoria profissional.
12 Trata-se de recursos instaurados após os resultados das reclamatórias julgadas nas Juntas de Conciliação
e Julgamento.
13 Essa afirmação não tem comprovação empírica. Ainda é preciso realizar um estudo quantitativo minucioso
sobre a média de tempo de duração de um processo trabalhista individual.
Apontamentos da amostra
Numa primeira análise dos dados sistematizados no projeto, percebemos que
os acórdãos julgados pelo Conselho Regional do Trabalho (CRT) da 1.ª Região, de
14 A partir de 1999, as Juntas de Conciliação e Julgamento passaram a ser denominadas Varas do Trabalho,
conforme determinação da emenda constitucional n. 24, de 9 de dezembro desse mesmo ano.
15 CORRÊA, Larissa R. A tessitura dos direitos, op. cit., p. 102.
1941, mostram que mais de dois terços das reclamações que chegaram ao grau de
recurso foram impetradas por categorias de empregados, de forma individual, nas
Juntas de Conciliação e Julgamento.16 Igualmente, informamo-nos de que naquele
período, mais de 80% dos trabalhadores que entraram com ações e chegaram ao
grau de recurso na Justiça do Trabalho eram homens, em sua maioria pertencentes
às categorias de trabalhadores marítimos, ferroviários e os empregados da Cia
Carris, Luz e Força do Rio de Janeiro.
Outra questão observada na amostra analisada sobre este momento
inaugural do funcionamento da Justiça do Trabalho foi o elevado número de
inquéritos impetrados pelas categorias de empregadores. Essas ações tinham o
intuito de demitir por justa causa os trabalhadores detentores de estabilidade.
Entre as justificativas mais comuns alegadas pelos empregadores para a demissão
dos trabalhadores estáveis, encontra-se o abandono de emprego, o cometimento
de falta grave por indisciplina e desídia.
Já a amostra de oitocentos e vinte e três acórdãos, referente ao primeiro
semestre de 1947, é marcada por um significativo crescimento da proporção de
empregados que entraram em 1.ª instância na Justiça do Trabalho em relação
à quantidade de ações iniciadas pelos empregadores. Se, em 1941, 73,06%
dos processos foram iniciados pelos trabalhadores, em 1947, esses números
aumentaram para 92,22%. De modo semelhante, o número de dissídios coletivos
aumentou: de apenas dois em 1941 para mais de cinquenta em 1947. Esses dados
apontam para a construção do processo de institucionalização da ação coletiva
Recebido em 11/2012
Aprovado em 07/2013
1 Um importante esforço neste sentido vem sendo constituído pelo Memorial da Justiça do Trabalho no
Rio Grande do Sul (TRT da 4ª.Região) que, em 2010, lançou o primeiro volume de Trajetórias de Juízes, or-
ganizado por Ângela de Castro Gomes e Elina Gonçalves Pessanha, reunindo a transcrição de entrevistas
realizadas com juízes que atuaram naquele tribunal.
como, por exemplo, o uso da impressa produzida no período por diversos atores,
tais como a militância comunista, contemplando o leitor com a interpretação dos
sentidos atribuídos à legislação por estes e de que maneira isto se expressava nas
disputas judiciais, fazendo com que o livro, para além do que se apontou sucinta-
mente aqui, agregue positivamente aos esforços das últimas décadas na interpre-
tação da Justiça do Trabalho no Brasil.
Recebido em 16/05/2013
Aprovado em 17/05/2013
374
Latina, y lo atrae e inserta en el interior del mundo del trabajo. Para ello la autora
dialoga con algunos trabajos referentes que brindan importantes elementos de
análisis, como el de Sonia Pérez Toledo sobre el artesanado y primeras experien-
cias del asociacionismo en la ciudad de México, o el de Carlos Illades sobre las
sociedades mutualistas y su debilidad jurídica, cuestión clave para comprender el
éxito de Porfirio Díaz en la subordinación de las organizaciones laborales1. Al volver
sobre algunas cuestiones planteadas a partir de la renovación metodológica y con-
ceptual de los últimos años en torno a estos temas, Gutiérrez intenta responder
una serie de preguntas a la vez que deja planteada una línea de análisis que puede
ser retomada en futuras investigaciones.
El mundo del trabajo y el poder político. …, al indagar desde el interior de
los distintos espacios del mundo del trabajo sobre los intereses, relaciones con
el poder político e identidades de las clases trabajadoras, ofrece una perspectiva
de análisis que puede resultar útil para pensar en otras experiencias latinoameri-
canas. Una de las claves analíticas que brinda el libro es el estudio de la agencia
histórica de ciertos sectores sociales que en otros estudios aparecen como sujetos
pasivos, sometidos a los vaivenes de las políticas de las clases dominantes. Actu-
almente, y gracias a estudios como los de Gutiérrez, podemos comenzar a vislum-
brar y desgranar todo un mundo al interior de las clases trabajadoras que permite
acercarnos a sus motivaciones, iniciativas, estrategias, ideologías y acciones.
Es destacable la operación historiográfica de la autora quien, además de
indagar en el interior de ese mundo del trabajo, examina los intereses y estrategias
que el gobierno de Porfirio Díaz desplegó para asimilar y subordinar al contingente
trabajador, particularmente al mutualismo, a su proyecto político. El desafiante 376
objetivo de la obra, inspirado en el clásico de E.P. Thompson, La formación de la
clase obrera en Inglaterra, es contribuir al entendimiento del proceso de formación
de la clase trabajadora en el México finisecular, teniendo en cuenta su singularidad,
sin pretender acomodar el análisis a un modelo ideal. Lo novedoso es que Gutiérrez
apuesta “por una historia que entreteje la perspectiva `desde abajo´ con la mirada
`desde arriba´” (p. 26), o sea por integrar la historia política a la historia social,
configurando “una historia social de la política”. En este sentido, retoma los
estudios de los historiadores marxistas británicos sobre las experiencias y acciones
de “los de abajo” en el marco de la lucha de clases, para comprender el proceso
de construcción y definición de la identidad de la clase trabajadora de la ciudad de
México durante el Porfiriato. Y a su vez, cruza este análisis con un estudio de las
acciones que desde el poder se desplegaron en relación a estos trabajadores y que
también contribuyeron a forjar su identidad como clase. Así, uno de los principales
méritos de la obra se encuentra en el cruce entre la perspectiva política y la social,
que resulta decisivo para recuperar la agencia de los “de abajo” y analizar el diálogo
tejido entre estos sectores y “los de arriba”.
La obra se nutre de un vasto corpus documental de fuentes varias, provenientes
del mundo laboral así como también de instancias gubernamentales, que la autora
entrecruza ofreciendo un sustento sólido a sus interpretaciones. Incluye gran
cantidad de bibliografía específica y general sobre el tema, análisis de decenas
de periódicos, de legislaciones, debates y discursos parlamentarios, petitorios,
correspondencia, datos censales, informes y documentos oficiales, crónicas
1 Ambos autores son doctores en Historia por el Colegio de México. Sonia Pérez Toledo, Los hijos del trabajo.
Los artesanos de la ciudad de México, 1780-1853, México, Universidad Autónoma Metropolitana Iztapalapa/el
colegio de México, 1996 , y Carlos Illades, Hacia la República del Trabajo. La organización artesanal en la ciudad
de México, 1853-1876, México, Universidad Autónoma Metropolitana Iztapalapa/El Colegio de México, 1996.
Recebido em 21/06/2013
Aprovado em 05/07/2013