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Mundos do TrabalhoPublicação eletrônica semestral do GT “Mundos do Trabalho” - ANPUH

Dossiê
Trabalhadores e Poder Municipal

Organização
Cristiana Schettini
Paulo Cruz Terra

Apoio logístico Janeiro/Junho 2013 Apoio institucional


PPGHIS UFSC Volume 5 - Número 9 PPGHIS UNICAMP
Mundos do Trabalho Publicação eletrônica semestral do GT “Mundos do Trabalho” - ANPUH

GRUPO DE TRABALHO “MUNDOS DO TRABALHO”


(http://www.ifch.unicamp.br/mundosdotrabalho/)

Coordenação Nacional
Aldrin Castellucci
Coordenações Estaduais
Mato Grosso Do Sul
Vitor Wagner Neto de Oliveira
Rio Grande Do Sul
Alisson Droppa - Coordenador
Icaro Bittencourt - Vice-Coordenador
Santa Catarina
Adriano Luiz Duarte
São Paulo
Dainis Karepovs
Paraná
Antônio de Pádua Bosi

ISSN 1994-9222

http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/
mundosdotrabalho

Apoio logístico Apoio institucional


Janeiro/Junho 2013
Programa de Pós-graduação Programa de Pós-graduação
Volume 5 - Número 9 em História da UNICAMP
em História da UFSC
Equipe Editorial

EDITORES Dick Geary


Clarice Speranza Nottingham University, Grã-Bretanha
Universidade Federal de Pelotas Flavio dos Santos Gomes
Cristiana Schettini Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Universidad Nacional San Martín John D. French
Deivison Gonçalves Amaral Duke Universtiy, Estados Unidos
Universidade Estadual de Campinas José Ricardo G. P. Ramalho
David Lacerda Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Universidade Estadual de Campinas José Sérgio Leite Lopes
Fabiane Popinigis Museu Nacional - Universidade Federal do Rio
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro de Janeiro, Brasil
Isabel Aparecida Bilhão Juan Suriano
Universidade de Passo Fundo Universidad de Buenos Aires, Argentina
Henrique Espada Marcel Van Der Linden
Universidade Federa de Santa Catarina International Institute of Social History, Holanda
Larissa Correa Marcelo Badaró Mattos
Correspondente do Instituto Internacional de Universidade Federal Fluminense, Brasil
História Social de Amsterdam no Brasil Marco Aurélio Santana
Marcelo Mac Cord Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Universidade Federal Fluminense Maria Célia P. M. Paoli
Osvaldo Batista Acioly Maciel
Universidade de São Paulo, Brasil
Universidade Federal de Alagoas
Michael Mcdonald Hall
Paulo Cruz Terra
Universidade Estadual de Campinas, Brasil
Universidade Federal Fluminense
Michel Ralle
Vinícius de Rezende
Université de Paris IV (Sorbonne), Paris
Escola DIEESE de Ciências do Trabalho
Mirta Zaida Lobato
CONSELHO EDITORIAL Universidad de Buenos Aires, Argentina
Alexandre Fortes Norberto Osvaldo Ferreras
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil Universidade Federal Fluminense, Brasil
Antonio Luigi Negro Prabhu Mohapatra
Universidade Federal da Bahia, Brasil University of Delhi, Índia
Barbara Weinstein Sidney Chalhoub
New York University, Estados Unidos Universidade Estadual de Campinas, Brasil
Beatriz Ana Loner Vitor Wagner Neto de Oliveira
Universidade Federal de Pelotas, Brasil Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Brasil
Beatriz Mamigonian
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil GERENTES
Cláudio Henrique de Moraes Batalha Henrique Espada Lima
Universidade Estadual de Campinas, Brasil Fabiane Popinigis

FICHA TÉCNICA
ORGANIZAÇÃO DO NÚMERO Cristiana Schettini e Paulo Cruz Terra
REVISÃO DE TEXTO Denize Gonzaga
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Virgínia Loureiro
COLABORARAM COM ESSE NÚMERO
Ana Carina Azevedo (Universidade Nova de Lisboa), Anderson Pires (UFJF), Antonio Luigi Negro (UFBA),
Carlos Augusto Pereira dos Santos (Universidade Estadual Vale do Acaraú), Carlos Zacarias de Sena
Júnior (UFBA), Cesar Monaco (UNGS), Claudia Baeta Leal (IPHAN), Cristina Scheibe Wolff (UFSC), Elizabete
Rodrigues da Silva (SEC-BA, UFRB), Endrica Geraldo (UFSC), Gladyson Stélio Brito Pereira (UNEAL),
Luciana Aparecida Aliaga de Oliveira (UEL), Marcelo Badaró Mattos (UFF), Márcia Cury (UNICAMP), Mar-
cos Tadeu Del Roio (UNESP/Araraquara), Maria Celma Borges (UFMS), Maurício Sardá Faria (UFPB),
Osvaldo Batista Acioly Maciel (UFAL), Raquel Cardeira Varela (Universidade Nova de Lisboa), Rinaldo
José Varussa (UNIOESTE), Victoria Basualdo (CONICET), Vinícius de Rezende (Escola DIEESE de Ciências
do Trabalho) e Wellington Castelucci Jr. (UFRB).
Apresentação do dossiê
Trabalhadores e Poder Municipal
Cristiana Schettini*
Paulo Terra**

Enquanto preparávamos este dossiê, observamos os diversos grupos de ho-


mens e mulheres que voltam a ocupar as ruas de muitas cidades do Brasil para pro-
testar. Uma vez mais parece tratar-se de uma dessas ocasiões especiais que con-
tribuem à formulação de novos desafios para a política e para a história, e também
para a renovação das perguntas que alimentam o ofício. A tarefa de entender, des-
crever e avaliar quem são esses agentes e o que os motivam volta a estar na ordem
do dia. Pelo menos para aqueles de nós que nesses momentos compartilhamos o
incômodo de Ciro Flamarion Cardoso com “uma historiografia que não se mostra
preocupada com o mundo ao qual pertence”. 1
Os historiadores sociais já tiveram incontáveis oportunidades para aprender
que as razões que levam as pessoas às ruas costumam ser diversas e mutáveis.
Ao longo do tempo, muitas dessas manifestações nos ensinaram a ampliar o que
consideramos como política e a reconhecer tradições de lutas, noções de direitos
e do justo compartilhadas, que alimentam e delineiam esses momentos cruciais
da experiência social. Dificilmente podem ser agrupadas e restringidas a pares di-
cotômicos, tentação para os apressados e boa parte da imprensa (de outros e de
tempos mais próximos aos nossos). Também não surpreenderá os historiadores
sociais a observação de que, quaisquer que sejam os motivos de tantas gentes,
eles costumam incluir questões da vida cotidiana e de acesso a determinados servi-
ços. Se hoje em dia a garantia a muitos deles se considera como parte dos direitos
universais básicos, é evidente que continuam faltando para uma parte grande dos
trabalhadores instalados nas cidades.
A imagem da capa deste dossiê nos lembra um desses momentos da história
do Rio de Janeiro. Em novembro de 1904, foi difícil para muitos contemporâneos
decifrar a fúria daquelas pessoas que viraram os bondes nas ruas das adjacências
da praça da República, assim como saber quem eram e o que queriam. De fato, até
hoje os historiadores continuam discutindo sobre o que despertou a ira daqueles
grupos: foi a vacina obrigatória, foi o avanço das reformas urbanas violentas e ex-
cludentes, foi a péssima qualidade do transporte e da moradia? Ou havia motiva-
ções golpistas de grupos políticos republicanos radicais ou monarquistas?2 Mais

* Pesquisadora do CONICET com sede no Instituto Interdisciplinario de Estudios de Género – Universidad de


Buenos Aires. Professora no Instituto de Altos Estudios Sociales da Universidad Nacional de San Martín.
Contato: cschettini@hotmail.com
** Professor da Universidade Federal Fluminense, Polo Campos dos Goitacazes. Contato: p003256@yahoo.com.br
1 Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, n. 84, set. 2012.
2 Para um balanço completo do debate historiográfico sobre a revolta da vacina nas últimas duas décadas,
ver: PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. As barricadas da saúde: vacina e protesto popular no Rio de
Janeiro da Primeira República. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002.

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CRISTIANA SCHETTINI, PAULO TERRA

provavelmente se tratava de tudo isso junto. Os acontecimentos de novembro


pareciam expressar lutas materiais e simbólicas nas quais se confrontavam tradi-
ções culturais e experiências sociais diversas. Mas se é difícil chegar a um acordo
sobre motivações, parece que sempre esteve claro, tanto para os contemporâne-
os como para os historiadores, quem foi que teve que pagar a conta das custosas
obras de reforma urbana, que embelezou ruas, alargou avenidas, modernizou a
iluminação pública, mas não melhorou as condições de transporte e de moradia da
maioria dos moradores da capital da ainda jovem República.3
E com isso nos aproximamos do que inspira este dossiê. Resguardadas as es-
pecificidades de cada período histórico, o poder público mais próximo e talvez mais
fortemente identificado com a provisão desses serviços era o municipal. Este âmbi-
to, talvez o mais cotidiano, de encontro entre o Estado e os trabalhadores, e ainda
tão pouco conhecido em suas peculiaridades, surge cada vez mais como um recorte
promissor para os historiadores do trabalho. Nesta breve introdução, queremos cha-
mar a atenção para as possibilidades analíticas que se abrem a partir do tratamento
do âmbito municipal como um prisma para iluminar certas dimensões de conflito
social que perpassavam a experiência cotidiana dos trabalhadores na cidade.
Se o poder municipal foi visto pela historiografia como um dos elementos
essenciais na análise da sociedade colonial4, o mesmo não se pode dizer para o
período pós-Independência. Nesse sentido, enfatizou-se a perda de importância
das câmaras municipais diante, por exemplo, da criação de outras esferas, como
o Governo das Províncias e a Assembleia Legislativa Provincial5, o que explica, em
parte, os poucos estudos que se dedicaram à análise das instituições camarárias
no período imperial. 6
 6
Os artigos do presente dossiê, no entanto, demonstram que, apesar das
tentativas de controle sobre as câmaras municipais, elas se mantiveram, ao longo
do Império, como espaços importantes de regulação da vida nas cidades. Assim,
somos apresentados pelos autores aqui reunidos a uma diversidade de leis e re-
gulamentos municipais que incidiam sobre o trabalho e os trabalhadores. A aná-
lise sobre essa dimensão nos auxilia a rever a imagem ainda presente na nossa
historiografia que insiste sobre a ausência do Estado na regulação das relações
de trabalho antes da aprovação das leis trabalhistas. A legislação municipal abre,
então, um amplo campo de possibilidades analíticas para repensar periodizações e
marcos explicativos para aqueles interessados na história social do trabalho.
A articulação das leis, a implementação e a sua fiscalização indicam que o
poder municipal não tinha nada de monolítico e uniforme. Pelo contrário, os con-
flitos ― e, muitas vezes, a negociação ― estavam presentes nas relações entre os

3 Vale a pena mencionar que a historiografia também indicou os antecedentes destas formas de luta forja-
das nas últimas décadas do período monárquico, como na chamada Revolta do Vintém. Ver, em especial:
GRAHAM, Sandra L. “O motim do vintém e a cultura política no Rio de Janeiro - 1880”, Revista Brasileira de
História. São Paulo, v.10, n.20, mar./ago. 1991.
4 Sobre as análises das câmaras municipais no período colonial, ver: BOXER, C. R. O império colonial portu-
guês [1415-1825]. Lisboa. Edições 70, 1981; BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro
no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; BICALHO, Maria Fernanda. “As câmaras muni-
cipais no Império Português: o exemplo do Rio de Janeiro”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 18,
n.36, 1998; BICALHO, Maria Fernanda; FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima S. “Uma leitura do Brasil
colonial: bases da materialidade e da governabilidade no Império”. Penélope, Lisboa, v. 23, 2000.
5 FERLINI, Vera Lúcia Amaral. “O município do Brasil colonial e a configuração do poder econômico”. In:
BICALHO, Maria Fernanda; FURTADO, Junia Ferreira; SOUZA, Laura de Mello (orgs.). O governo dos povos.
São Paulo: Alameda, 2009, p. 392.
6 Um exemplo de análise sobre as câmaras municipais no período Imperial: SOUZA, Juliana Teixeira. A auto-
ridade municipal da Corte imperial: enfrentamentos e negociações na regulação do comércio de gêneros
(1884-1889). Tese (Doutorado em História). Campinas: Unicamp/IFCH, 2007.

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APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ TRABALHADORES E PODER MUNICIPAL

trabalhadores e os fiscais, entre estes e os diferentes funcionários da municipalida-


de, e ainda entre o Executivo e o Legislativo municipal.
Por incidir diretamente na organização da vida cotidiana urbana, o poder mu-
nicipal tornou-se um importante espaço de lutas por direitos. Os trabalhadores e
trabalhadoras tinham suas próprias leituras e expectativas sobre as medidas que
buscavam controlar suas atividades, e alguns deles recorreram ao poder municipal
com o intuito de que este interviesse mais diretamente nos conflitos entre empre-
gados e patrões. A historiografia recente vem mostrando justamente como muitas
categorias profissionais e grupos sociais tiveram nas leis e regulamentos munici-
pais um importante foco para suas mobilizações e reivindicações, tais como, por
exemplo, os empregados do comércio, as quitandeiras, os carregadores, os co-
cheiros e carroceiros.7 Esses trabalhadores demonstravam seus diversos anseios
por meio de requerimentos, abaixo-assinados e greves.
Este dossiê reúne as reflexões de cinco historiadores que oferecem diversas
aproximações ao poder municipal, sua organização e conflitos internos, e as rela-
ções que estabeleciam com diferentes grupos de trabalhadores. Na escuridão da
noite ou em plena luz do dia, em Inhaúma ou no Mercado Público, nos conflitos
políticos dentro da Câmara dos Vereadores, o poder público municipal aparece,
nos vários textos aqui reunidos, como uma das chaves para a compreensão do
trabalho, da sociabilidade e de outros momentos da vida de trabalhadores do Rio
de Janeiro.

 7 Um balanço dos estudos que analisam as relações entre trabalhadores e o


poder municipal nos é apresentado no artigo de Juliana Teixeira de Souza. A au-
tora nos mostra que ainda são poucas as pesquisas nesse âmbito, mas não por
isso deixam de representar uma contribuição significativa ao conhecimento das
formas de organização e de luta no século XIX. Souza analisa, ainda, as circunstân-
cias em que os escravizados aparecem na legislação municipal da Corte imperial,
estando elas muito ligadas à regulação do mundo do trabalho.
Amy Chazkel, por sua vez, nos conta uma desconhecida história sobre o To-
que de Recolher no Rio de Janeiro do século XIX, que designava a noite como uma
jurisdição à parte. Chazkel nos mostra como o Toque de Recolher estava relaciona-
do ao controle dos trabalhadores e, em especial, da maioria não branca da cidade.
Além disso, as pessoas presas com base nessa medida legal foram utilizadas em
obras públicas. A Câmara Municipal, assim, cumpriu um papel fundamental na re-
distribuição da mão de obra na organização do espaço urbano.
Já Juliana Barreto Farias enfoca a relação da municipalidade do Rio de Janeiro
com os trabalhadores da Praça do Mercado, importante ponto de abastecimento
de gêneros de primeira necessidade no Rio de Janeiro oitocentista. A autora acom-
panha as relações cotidianas travadas entre os pequenos negociantes, nas quais o
convívio entre portugueses e africanos se mostrou bem mais amistoso do que em
outras partes da cidade. Verificam-se também as relações diferenciadas que esses
pequenos negociantes mantinham com fiscais, agentes municipais e vereadores.

7 Exemplos da produção que aborda a relação dos trabalhadores com o poder municipal: REIS, João José. A
greve negra de 1857 na Bahia. Revista USP. São Paulo: USP/Superintendência de Comunicação Social, n.18,
1993; POPINIGIS, Fabiane. Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1922. Campinas:
Editora da Unicamp. 2007; FARIAS, Juliana Barreto. Mercados minas: africanos ocidentais na Praça do Mer-
cado do Rio de Janeiro (1830-1890). Tese (Doutorado em História Social). USP, 2012; TERRA, Paulo Cruz.
Cidadania e trabalho: cocheiros e carroceiros no Rio de Janeiro (1870-1906). Tese (Doutorado em História).
Niterói: UFF/ICHF, 2012.

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CRISTIANA SCHETTINI, PAULO TERRA

O mundo ainda pouco explorado das posturas municipais, suas infrações e


os tortuosos caminhos de cobranças de multas é o foco de Cristiane Myasaka. Em
seu texto, a difundida ideia de que foi o povo que pagou a conta da reforma ur-
bana ganha contornos muito concretos e matizes importantes. Acompanhar de
quem e por que a prefeitura cobrava multas nos permite ter uma noção detalha-
da de como o poder público se capitalizava neste momento de grandes gastos.
Mas principalmente desvia a nossa atenção do centro da cidade para os subúrbios,
em pleno processo de explosão demográfica, onde se foram concentrar grandes
contingentes da classe trabalhadora naqueles primeiros anos do século XX. Na ne-
gociação entre engenheiros, agentes da prefeitura e guardas da polícia, vamos
descobrindo quanta política pode existir na construção de um puxadinho.
Finalmente, ao desenvolver uma perspectiva mais estritamente da história
política, Marcelo Magalhães nos oferece uma minuciosa radiografia da organiza-
ção interna daquilo que chamamos de “poder municipal”. Nas muitas vezes tensa
e instável relação entre o prefeito e os intendentes, os problemas relativos ao fun-
cionalismo público eram recorrentes e iam esboçando as funções do Estado como
patrão e, ao mesmo tempo, as relações de poder locais. Ao acompanhá-los ao lon-
go dos primeiros anos republicanos por meio da questão dos vetos, Magalhães
nos recorda da imperiosa necessidade de uma melhor compreensão dos acordos e
das políticas que informavam os debates portas adentro do Legislativo municipal
e na sua relação com o Poder Executivo.
Esperamos que este dossiê cumpra o objetivo de expor os principais nós pro-
blemáticos da recente e significativa produção historiográfica que privilegia a dimen-
são municipal como recorte e problema de pesquisa. Principalmente, confiamos que
 8
os artigos aqui reunidos estimulem a reflexão historiográfica e apontem possíveis
desdobramentos de uma perspectiva que se mostra tão prometedora e fundamen-
tal para a compreensão da experiência social dos trabalhadores brasileiros.

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Dossiê
Trabalhadores e Poder Municipal
As câmaras municipais e os
trabalhadores no Brasil Império

Juliana Teixeira Souza*

Resumo: Considerando o interesse crescente da História Social do Trabalho pe-


los homens e mulheres do século XIX, a proposta deste artigo é mostrar como
a documentação produzida pela administração municipal pode trazer novos ele-
mentos para as reflexões sobre as experiências de resistência e luta dos trabalha-
dores urbanos no Oitocentos. Num segundo momento, analisando a implantação
do Código de Posturas e Editais da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, propomos
discutir como as atribuições do governo municipal no que diz respeito à polícia e à
economia local repercutem na regulamentação das relações e formas de trabalho
no espaço urbano, com ações voltadas, sobretudo, para as atividades em que pre-
domina a presença dos trabalhadores africanos e seus descendentes.

Palavras-chave: governo municipal, legislação municipal, trabalhadores urbanos


no século XIX

Abstract: Considering the growing interest of the Social History of Labor for men
and woman of the 19th Century, the purpose of this article is to show how docu-
mentation produced by the municipal administration can bring new elements to
the reflections on the experiences of resistance and struggle of urban workers
in that time. Secondly, analyzing the implementation of the Code of Conduct and
Edicts of the City Council of Rio de Janeiro, we propose to discuss how the func-
tions of municipal government, concerning police and local economy, affect the
regulation of relations and ways of working in the urban space, with actions par-
ticularly for activities in which the presence of the African workers and theirs des-
cendants is predominant.

Keywords: City Government, city legislation, urban workers in the 19th Century.

Introdução
Nas últimas duas décadas, os estudos sobre a formação da classe operária
no Brasil têm recuado progressivamente sua cronologia, de modo que 1888 e a

* Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Contato: julianasouza@cchla.ufrn.br

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JULIANA TEIXEIRA SOUZA

instauração do regime republicano já não se constituem como pontos de partida


obrigatórios, colocando em xeque algumas premissas do velho debate sobre a
transição da escravidão para o trabalho livre no Brasil. Assim vem se desenhando
um movimento historiográfico que questiona as secções derivadas dessa perio-
dização, estimulando o diálogo entre os trabalhos dedicados à história da escra-
vidão, do operariado e dos trabalhadores pobres livres. Ao se debruçar sobre as
diversas formas de associação e de luta desses sujeitos entre os séculos XIX e XX,
essa produção tem discutido problemas como as formas de organização dos tra-
balhadores, a possibilidade de antagonismos de caráter classista numa sociedade
escravocrata, a formação das identidades entre os trabalhadores urbanos e as lu-
tas pelos direitos de cidadania.
Embora o Brasil Império seja comumente caracterizado como um período
marcado pelo precário exercício da cidadania e pela ausência de direitos trabalhis-
tas, esses estudos têm mostrado que trabalhadores recorrendo à mediação legal
em defesa dos seus interesses não eram casos incomuns no século XIX. Nas teses
e dissertações produzidas a partir dos anos de 1990, são coligidas evidências de
que na segunda metade do Oitocentos são operadas mudanças significativas no
comportamento político dos trabalhadores urbanos, e um dos indicadores des-
sa mudança seria o aparecimento do debate sobre o papel do poder público na
organização do mundo do trabalho. Ao investigar as lutas travadas nos espaços
institucionalizados, essas pesquisas vêm reforçando um aspecto que já havia sido
apontado pelos estudos dedicados às práticas políticas e culturais populares: a
destacada atuação das câmaras municipais no controle e na vigilância sobre os
trabalhadores, e na construção de espaços de demanda, aos quais a população  12
recorria nas suas lutas cotidianas.
Para discutir essas questões, apresentaremos algumas notas sobre o debate
historiográfico no qual essa nova produção sobre a História Social do Trabalho
está inserida e mostraremos como os estudos com base em acervos produzidos
pelas câmaras têm contribuído para o desenvolvimento de pesquisas sobre os tra-
balhadores urbanos no século XIX. Num segundo momento, discutiremos a atu-
ação do governo municipal sobre a regulação dos mercados e outras atividades
econômicas locais, de modo a definir mais claramente o papel das câmaras no que
diz respeito à polícia e à economia local, e como isso incidia sobre a rotina de ga-
nhar o sustento dos trabalhadores da cidade. Por fim, abordaremos as circunstân-
cias em que o trabalhador negro aparece na legislação municipal, tomando como
referência o Código de Posturas e Editais da Ilustríssima Câmara Municipal do Rio
de Janeiro, em vigor a partir de 1838.

Os novos paradigmas da História Social do Trabalho


Desde a década de 1980, os historiadores vêm realizando um movimento
de revisão dos modelos interpretativos formulados entre as décadas de 1950 e
1970 sobre a história da escravidão e do operariado, conferindo um novo sentido
às experiências de resistência e luta dos grupos subalternos. Nos anos de 1990,
pareceu para alguns historiadores que o processo de estabelecimento de novos
paradigmas para os estudos sobre o mundo do trabalho não estaria completo sem
a derrubada da velha periodização que supunha não haver história do operariado
durante a vigência do sistema escravista, e excluía os negros egressos da escra-
vidão da história do operariado. A proposta, então, seria unir as duas vertentes

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AS CÂMARAS MUNICIPAIS E OS TRABALHADORES NO BRASIL IMPÉRIO

historiográficas num mesmo campo, que também abarcasse os trabalhadores que


não fossem operários e os negros que não fossem escravos.
Em 1996, Antonio Luigi Negro publicou um artigo no qual destacava que os
estudos de Edward P. Thompson haviam mostrado que, mesmo não havendo uma
“história contínua”, linear e evolutiva que relacionasse a cultura da plebe (século
XVIII) e a cultura operária (1790-1832), não se pode ignorar as permanências nas
práticas culturais, valores, normas e crenças, assim como no processo de cons-
trução das identidades entre esses trabalhadores. Então, para uma melhor com-
preensão da cultura operária, seria forçoso derrubar as barreiras que tendiam a
separar de forma muito rígida as diferentes fases da história dos trabalhadores
ingleses. No fim do artigo, Negro afirmou que essa discussão poderia trazer contri-
buições à historiografia brasileira, especialmente no que se refere ao debate sobre
“a periodização da história da classe trabalhadora e a discussão do peso de sujei-
tos diferentes na sua formação”. Sua opinião foi taxativa: “já é hora de investigar-
mos outros modos, historicamente particulares, pelos quais o século 19 informou
o 20 no Brasil”.1 Nesse sentido, Negro sugeriu que os historiadores se debruçassem
sobre dois itens de pesquisa: “Um, trata da trajetória específica dos trabalhadores
negros (escravos e libertos) e das associações mutualistas dos trabalhadores li-
vres (geralmente qualificados) e outro, das relações estabelecidas entre elas”. De
acordo com ele, as perspectivas de pesquisa indicadas por E. P. Thompson, espe-
cialmente no que se refere à luta de classes sem classes, estimulavam o estudo dos
trabalhadores brasileiros no século XIX, “mesmo que não afirmassem fazer parte
 13 de uma classe operária”.2
Nos anos seguintes, outros historiadores ligados à UNICAMP se manifestariam
favoravelmente a esse encaminhamento. Em 1998, foi publicada a primeira edição de
Historiografia Brasileira em perspectiva, contando com um capítulo escrito por Clau-
dio Batalha, cuja proposta era analisar a historiografia da classe operária no Brasil e
discorrer sobre as novas tendências da pesquisa. Para os anos finais daquela década,
Batalha destacou como grande novidade o surgimento de estudos que rompiam o
tabu cronológico representado por 1888. No seu ver, esses estudos mostravam que
não seriam apenas superficiais as relações entre a formação da classe operária no
século XX e as experiências dos trabalhadores urbanos no século XIX.3
Maior repercussão teve o artigo publicado por Silvia Lara, também em 1998,
intitulado “Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil”. Lara questionou
a exclusão de escravos e ex-escravos dos estudos dedicados à História Social do Tra-
balho, contestando a validade da “teoria da substituição” do escravo (negro) pelo
trabalhador livre (branco e imigrante). Ao analisar as implicações historiográficas
dessa teoria, Silvia Lara ressaltou que, embora as pesquisas sobre a classe operária
tivessem ampliado seu eixo temático e cronológico, os negros que vivenciaram a
escravidão de forma direta ou indireta continuavam desaparecidos dessa história.
Para uma nova perspectiva sobre o tema, sugeria que os interessados na História
Social do Trabalho retornassem à segunda metade do século XIX, com atenção às
manifestações reivindicatórias e aos espaços de trabalho, sociabilidade e convívio
dos trabalhadores negros, fossem livres ou cativos. Lara creditava que dessa for-
ma se compreenderia “o sentido da luta secular pela cidadania empreendida por

1 NEGRO, Antonio Luigi. Imperfeita ou refeita? O debate sobre o fazer-se da classe trabalhadora inglesa.
Revista Brasileira de História. São Paulo: Contexto, v.16, n. 31/32, 1996, p. 57-58.
2 Idem, p. 58.
3 ������������������������������������������������������������������������������������������������������������
BATALHA, Claudio. A historiografia da classe operária no Brasil: trajetórias e tendências. In: FREITAS, Mar-
cos Cézar de (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. 6.ed. São Paulo: Contexto, 2010, p. 156-157.

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JULIANA TEIXEIRA SOUZA

homens e mulheres de pele escura que, mesmo cativos, lutaram para ser e foram
sujeitos de sua própria história”.4
Em meados da década seguinte, o problema retornaria à pauta de discussão.
Num balanço sobre a produção historiográfica pós-1980, Ângela de Castro Gomes
chamou atenção para as significativas mudanças operadas nos estudos sobre as
relações entre senhores, escravos, dependentes e o estado durante o Império. O
mesmo se verificava nos estudos sobre as relações entre classe trabalhadora, pa-
tronato e o estado no regime republicano, realizados sob o impacto da nova histó-
ria política e da história cultural. De acordo com ela, esses estudos têm em comum
“o fato de sustentarem que os trabalhadores ― todos eles, inclusive os escravos
― são sujeitos de sua própria história, abandonando abordagens simplistas, dico-
tômicas, teleológicas etc.” No entanto, a despeito de suas “profundas conexões
e influências mutuas”, permaneciam como “campos de análise que guardam inde-
pendência relativa entre si”.5
Mas, em 2009, numa perspectiva mais otimista quanto ao fim dessas cliva-
gens, Sidney Chalhoub e Fernando Teixeira da Silva avaliaram que os estudos so-
bre a história dos trabalhadores produzidos até aquele momento já ameaçavam
“derrubar o muro de Berlim historiográfico, decorrente do paradigma menciona-
do, que ainda emperra o diálogo necessário entre os historiadores da escravidão e
os estudiosos das práticas políticas e culturais dos trabalhadores urbanos pobres
e do movimento operário”.6 Sobre as inquietações e interesses compartilhados
pelas duas vertentes, os autores mencionaram a crítica às teorias generalizantes
da escola sociológica paulista, o princípio de que os subalternos são sujeitos de
sua história, a preocupação em conferir inteligibilidade e sentido político às expe-
 14
riências dos dominados, e o interesse pela participação dos trabalhadores numa
cultura legal. Para que esse movimento de aproximação prosseguisse, seria funda-
mental explorar as convergências entre esses campos, que permitiria a elaboração
de agendas de pesquisa e a construção de conceitos operatórios comuns, “que
consistem em novas apropriações e reelaborações contínuas do aparato teórico
clássico da história social”.7 No âmbito do Centro de Pesquisa em História Social
da Cultura - CECULT, a construção dessa agenda comum foi posta em curso com os
projetos temáticos que envolviam professores e alunos de graduação e pós-gra-
duação, tendo em comum o interesse por discutir identidade, cultura e cotidiano
no século XIX e primeiras décadas do XX, procurando “distinguir sem seccionar”
os trabalhadores escravos, pobres livres e operários, como se afirma na apresen-
tação do livro Trabalhadores na cidade, publicado em 2009.8
Na busca por acervos documentais que respondessem à nova pauta de in-
teresses dos historiadores, vários estudos foram demonstrando que nos arquivos
referentes à administração municipal havia material com dados ainda pouco explo-
rados sobre o mundo do trabalho. A historiografia dedicada às práticas políticas
e culturais dos populares no século XIX recorria a esse material há algum tempo,

4 LARA, Silvia Hunold. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. Projeto História. São Paulo:
EDUC, n.16, fev. 1998, p. 38.
5 GOMES, Ângela de Castro. Questão social no Brasil do pós-1980: notas para um debate. Estudos Históricos.
Rio de Janeiro: FGV, n.34, jul./dez. 2004, p. 160.
6 �����������������������������������������������������������������������������������������������������
CHALHOUB, Sidney; SILVA, Fernando Teixeira da. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalha-
dores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL. Campinas: UNICAMP/IFCH, v.14, n.26,
2009, p. 15.
7 Ibidem, p. 45.
8 AZEVEDO, Elciene et al. Trabalhadores na cidade: cotidiano e cultura no Rio de Janeiro e em São Paulo,
séculos XIX e XX. Campinas: Editora da UNICAMP, 2009, p. 13.

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interessando-se principalmente pelos requerimentos, queixas e reclamações en-


caminhados pelos populares para as câmaras municipais, e pela correspondência
oficial que dava conta dos conflitos entre diversos agentes do poder – vereadores,
fiscais, policiais, médicos etc. ― sobre a definição das diretrizes e implantação das
políticas de controle social, abordando temas relacionados à saúde, à moradia, e
ao lazer.9 Ainda que fosse de forma dispersa e fragmentada, as iniciativas com
vistas a derrubar o tal “muro de Berlim historiográfico” têm evidenciado como a
atuação dos governos municipais incidia sobre a organização do mundo do traba-
lho e sobre a rotina de ganhar o sustento de uma parcela considerável dos traba-
lhadores das cidades. Vejamos alguns desses estudos.

As municipalidades e os trabalhadores urbanos no


século XIX
Em linhas gerais, é possível perceber que duas indagações têm mobilizado
a atenção dos estudos mais recentes sobre o mundo do trabalho: haveria uma
dimensão classista nos movimentos, manifestações e formas de associação dos
trabalhadores urbanos antes de 1880? Seria possível pensar na formação de iden-
tidades étnicas ou identidade operária entre trabalhadores do século XIX? Essas
questões entram em pauta no início dos anos de 1990, época em que João José

 15
Reis publicou um notável artigo sobre a greve dos carregadores de Salvador. Ocor-
rida em 1857, foi uma das primeiras greves da história do Brasil, com a peculiari-
dade de ter sido protagonizada por africanos escravos e libertos, a maior parte
nagôs, cuja presença era dominante entre os trabalhadores “informais” que po-
voavam as ruas da capital baiana. A paralização foi motivada pela promulgação de
uma postura municipal, que obrigava os ganhadores a se matricularem na câmara
e portarem uma licença, pela qual se cobrava o preço equivalente ao de uma arro-
ba (quinze quilos) de carne, um valor nada desprezível para aqueles tempos de ca-
restia. Além disso, os carregadores seriam obrigados a trazer uma chapa de metal
com o número de sua inscrição em lugar visível, trazendo pendurada no pescoço
a marca da sua condição social inferior. Para Reis, essa determinação estava inse-
rida num projeto mais amplo de disciplinamento do negro no espaço público. De
acordo com os relatos da época, a mobilização contra a postura municipal parou a
cidade. A greve durou vários dias, deixando desertas as ruas de Salvador e trazen-
do enormes prejuízos para os comerciantes e para os consumidores.
Conforme avaliou o historiador, “o movimento de 1857 suscita questões mais
amplas”, por combinar a mobilização defensiva, contra a intervenção do Estado
nas rotinas de trabalho tradicionalmente estabelecidas, com a greve, que “é um
método de luta típico do trabalhador urbano moderno, sobretudo do trabalhador
fabril”. No seu entender, a opção de luta daqueles trabalhadores seria justificada
pelo “fato de serem gente urbana, consciente de sua importância para o funcio-
namento da cidade, inserida num mercado de trabalho monetarizado”.10 No fim

9 É o caso dos trabalhos de CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996; ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular
no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; SOUZA, Juliana Teixeira. A autoridade
municipal na Corte imperial: enfrentamentos e negociações na regulação do comércio de gêneros (1840-
1889). Tese (Doutorado em História). Campinas: [s. n.], 2007.
10 REIS, João José. A greve negra de 1857 na Bahia. Revista USP. São Paulo: USP/Superintendência de
Comunicação Social, n.18, 1993, p. 29.

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das contas, para os grevistas, o movimento trouxe uma vitória parcial: a câmara
municipal aboliu a taxa, mas manteve a determinação de trazerem a chapa no pes-
coço. Para os historiadores, o movimento reforça os argumentos sobre a inconsis-
tência dos velhos esquemas explicativos, por revelar a capacidade de organização
dos trabalhadores informais e a operacionalidade do conceito de identidade étnica
para a compreensão das experiências da população negra de Salvador. Ademais,
ao mostrar que os vereadores recuaram em sua decisão inicial, ao menos em parte,
a greve negra revelou que a legislação municipal não estava imune às pressões des-
ses trabalhadores, entre os quais se contavam muitos escravos.
Para se avaliar o caráter precursor da greve dos carregadores negros, vale
destacar que ela foi deflagrada um ano antes de ser registrada a primeira greve
operária do país, organizada pelos compositores tipográficos do Rio de Janeiro
em 1858. Esta paralisação foi motivada pela recusa dos proprietários das três prin-
cipais folhas diárias da Corte em aumentar o salário dos empregados, que também
sofriam com a carestia que grassava em todo país. De acordo com Artur Vitorino,
após cruzar os braços, eles recorreram à intervenção do Imperador e procuraram
angariar o apoio da opinião pública, que “era a forma dos operários conseguirem
o equilíbrio justo entre partes desiguais, pois, como não havia lei positivamente
fixada sobre o assunto pendente, o Imperador e o público detinham a necessária
potencialidade para que pudesse prevalecer a justiça”.11 Por meio desse estudo,
Vitorino pôs em xeque a periodização tradicionalmente adotada para a história do
operariado, recuando para a década de 1850 a discussão sobre a formação de uma
identidade coletiva a partir das associações de trabalhadores qualificados.
Marcelo Mac Cord estudou outro grupo de trabalhadores qualificados em
 16
sua tese de doutoramento Andaimes, casacas, tijolos e livros, sobre uma associação
de artífices pardos e negros, que congregava pedreiros, carpinteiros, marceneiros
e tanoeiros no Recife, entre 1836 e 1880, discutindo a formação de uma identida-
de étnica entre os homens de cor. O objetivo da associação era o de aperfeiçoar
o trabalho dos artífices por meio da educação profissional e promover práticas de
auxílio mútuo, defendendo o trabalho realizado com dignidade, precisão e inteli-
gência como fator de distinção social, num discurso que procurava se alinhar aos
valores defendidos pelas elites locais. Por intermédio de documentação produzida
por diversas instâncias do governo, como a câmara municipal, a presidência da
Província e a Assembleia Legislativa, Mac Cord mostrou que a estratégia dos artí-
fices foi exitosa no sentido de lhes proporcionar a proteção das autoridades pú-
blicas, pois para os homens do governo, também interessava prestar apoio a uma
organização que “poderia ser utilizada como exemplo de morigeração, disciplina
e ordem para uma crescente mão-de-obra livre e pobre que se amontoava pelos
cortiços da capital da Província”.12
Mac Cord mostra que, para evitar a desclassificação social, os artífices recor-
reram continuamente ao governo municipal. Não obtiveram o almejado controle
sobre o processo de habilitação dos artistas que atuariam como mestres de obra
na cidade, mas conseguiram com que os mestres associados fossem privilegiados
nos contratos de vistorias e obras realizadas pela câmara municipal, garantindo as

11 VITORINO, Artur José Renda. Escravismo, proletários e a greve dos compositores tipográficos de 1858 no Rio
de Janeiro. Cadernos AEL: sociedades operárias e mutualismo. Campinas: UNICAMP/IFCH, v.6, n.10/11, 1999,
p. 80.
12 MAC CORD, Marcelo. Andaimes, casacas, tijolos e livros: uma associação de artífices no Recife, 1836-1880.
Tese (Doutorado em História). Campinas: [s. n.], 2009, p. 10.

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boas relações entre as instituições.13 Na década de 1840, enquanto os Praieiros e a


oligarquia Rego Barros-Cavalcanti disputavam publicamente o apoio desses mes-
tres, os artífices convenceram os vereadores a defender com os deputados provin-
ciais a disponibilização de uma verba anual para a associação.14 Interessante notar
que apesar de enfrentarem um duplo estigma, por serem de pele escura e artistas
mecânicos, esses trabalhadores conseguiram escapar do processo de proletariza-
ção, alcançaram algum prestígio e chegaram a participar da burocracia imperial com
o apoio das elites pernambucanas. A despeito da singularidade do caso, para Mac
Cord foi importante frisar que aqueles artífices negros organizados em grupos de
socorros mútuos apresentavam um alto de grau de “coesão de classe”. Por conta
disso, ele considerou que o estudo desse grupo podia “contribuir com a historiogra-
fia que procura revelar a importância das experiências laborativas dos não brancos
na formação da(s) identidade(s) do(s) trabalhador(es) no Brasil Imperial”.15
No Rio de Janeiro oitocentista, outras categorias profissionais também lu-
tavam contra o processo de proletarização, mas sem o sucesso registrado pelos
artífices recifenses. Então, no lugar de tentar manter e alargar possíveis privilé-
gios, optaram por concentrar seus esforços em convencer as autoridades públicas,
sobretudo o governo municipal, a garantir por lei algumas medidas de proteção ao
trabalhador. Foi o que demonstrou Fabiane Popinigis em Trabalhadores e patuscos,
dissertação sobre a organização dos empregados do comércio na cidade do Rio de
Janeiro entre 1850 e 1912, que tratou do movimento protagonizado pelos caixeiros,
reivindicando o fechamento das portas dos estabelecimentos comerciais durante
 17 a noite, assim como nos domingos e dias santos, o que significava tentar transfor-
mar o descanso semanal num direito dos trabalhadores. Como ela demonstrou,
já durante o Império, conforme a categoria se proletarizava e se desvanecia a ex-
pectativa de ascensão social, os apelos particulares aos patrões cederam lugar aos
enfrentamentos públicos e às exigências de intervenção da câmara municipal nos
conflitos entre patrões e empregados. Dessa forma, as reivindicações adquiriam
um caráter classista, culminando com “a criação de associações que não incluís-
sem patrões e lutassem por uma legislação específica, em contato direto com os
poderes públicos”.16
Na tese de doutoramento, Popinigis discutiu mais detidamente o papel da câ-
mara municipal no encaminhamento às demandas dos caixeiros. Em sua opinião, a
elaboração de posturas determinando o fechamento das portas, registradas desde
a década de 1850, mas aprovadas apenas nos anos de 1870, foi um sinal da rendição
dos vereadores às reivindicações dos empregados. Nas cartas, queixas, requerimen-
tos e representações dos caixeiros, remetidos à imprensa e à câmara municipal, Po-
pinigis percebeu que, durante o regime monárquico, o movimento manteve certa
dose de ambiguidade e dissimulação, recorrendo aos argumentos religiosos para
defender a regulamentação das horas de trabalho. Os argumentos foram aceitos,
mas apenas temporariamente. Diante da grande mobilização dos proprietários con-
tra as interferências do poder público num assunto que consideravam de caráter
privado, no início da década de 1880, a câmara municipal revogou sua decisão, frus-
trando os caixeiros que ansiavam pelo reconhecimento do poder público quanto à

13 Ibidem, p. 329.
14 Ibidem, p. 60-61.
15 MAC CORD, Op. cit., p. 8.
16 POPINIGIS, Fabiane. Trabalhadores e patuscos: os caixeiros e o movimento pelo fechamento das portas no
Rio de Janeiro (1850-1912). Dissertação (Mestrado em História). Campinas: [s.n], 1998, p. 4.

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propriedade de suas demandas.17 No prolongamento da luta, durante as primeiras


décadas da República, o comportamento político dos caixeiros continuou marcado
pela opção de se manterem dentro da legalidade, buscando apoio da imprensa e
das autoridades públicas para transformar os direitos que reclamavam em lei.18
O debate travado no âmbito do governo municipal sobre a regulamentação
do trabalho dos caixeiros não foi um caso isolado. Em artigo publicado na Revista
do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Flavia Fernandes de Souza recuperou
os projetos elaborados pela câmara municipal na década de 1880 com o propósi-
to de organizar o funcionamento e estabelecer um controle mais eficaz sobre os
criados de servir. Sob o argumento de que era necessário prevenir confrontos e
conciliar os interesses entre patrões e empregados domésticos, cujo “permanen-
te antagonismo” parecia ameaçar a tranquilidade das famílias e de toda organi-
zação social, os seis projetos encontrados apresentavam alguns pontos comuns.
Além da vigilância e fiscalização sobre os trabalhadores domésticos, os projetos
previam a intervenção do poder público nas relações entre patrões e empregados,
orientando “a delimitação das obrigações e dos direitos das partes envolvidas”.19
Entre os projetos analisados por Flavia Souza, aparece com destaque o apre-
sentado em 1888 sob o impacto da Abolição, que durante meses foi intensamente
debatido pelos vereadores. Conforme explica, a partir da fala do vereador José do
Patrocínio foi possível inferir que o projeto provocou grande mobilização entre os
criados de servir, que se opuseram à proposta e procuraram angariar apoio da opi-
nião pública a seu favor. Desempenhando “o papel de ‘porta-voz’ da indignação
dos trabalhadores domésticos” na câmara municipal, José do Patrocínio denun-
ciava que a proposta protegia apenas os patrões, impondo “severa fiscalização e
 18
vigilância sobre os criados. Porém, mecanismos semelhantes de segurança e de
cumprimento de contrato de prestação de serviços não eram exigidos em relação
ao patrão para com o empregado”. Para Patrocínio, a transformação do projeto
em lei poderia provocar “uma revolta por parte dos homens livres”, ameaçando a
segurança e a paz na Corte.20
Mas os setores patronais também fizeram objeções ao projeto, como dei-
xou transparecer o relatório emitido pelo Conselho de Estado. Os conselheiros
consideraram “inadmissíveis” algumas cláusulas do projeto elaborado pelos vere-
adores, por obrigarem os patrões a “certificar na caderneta do criado o motivo da
saída deste e a maneira como se portou no serviço”, determinando que “o amo
não poderia despedir o criado, antes do término do contrato, sem pagar-lhe o salá-
rio correspondente ao tempo que faltar”, impondo multa aos patrões infratores.21
Como Souza destaca, essas cláusulas sugeriam que os patrões também tinham
deveres a ser cumpridos e que deveriam compartilhar com seus empregados a
responsabilidade pela “instabilidade do serviço doméstico” e os problemas daí
resultantes. No entanto, na perspectiva do Conselho de Estado, a origem do pro-
blema estava restrita à inaptidão e à negligência dos criados. No fim das contas,
enfrentando a oposição dos patrões e a resistência dos trabalhadores domésticos,
o projeto do governo municipal foi vetado pelo governo central.

17 POPINIGIS, Fabiane. “Operários de casaca”? Relações de trabalho e lazer no comércio carioca na virada
dos séculos XIX e XX. Tese (Doutorado em História). Campinas: [s. n.], 2003, p. 86-95.
18 Ibidem, p. 136-137.
19 SOUZA, Flavia Fernandes de. Entre nós, nunca se cogitou de uma tal necessidade: o poder municipal da
Capital e o projeto de regulamentação do serviço doméstico de 1888. Revista do Arquivo geral da Cidade
do Rio de Janeiro, n.5, 2011, p. 33.
20 Ibidem, p. 37-38.
21 SOUZA, Flavia, Op. cit., p. 40.

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A profusão de projetos de posturas e regulamentos propostos, encaminha-


dos, debatidos, aprovados, modificados e revogados nas câmaras municipais si-
nalizava que as leis não serviram em proveito dos dominantes de forma tranquila.
Os avanços e recuos nas estratégias de controle e vigilância impostas pelas au-
toridades municipais indicam que os governantes tinham dificuldades de chegar
a um consenso acerca do papel que desempenhariam na organização do mundo
do trabalho, e que na segunda metade do século XIX o debate sobre os limites
entre o poder público dos governantes e o poder privado dos proprietários não
esteve restrito ao tema da escravidão. No processo de elaboração e implantação
da legislação municipal, ocorriam intensas disputas, nas quais tomavam parte não
apenas os governantes, patrões e proprietários, como também os trabalhadores
livres e cativos das cidades, que buscavam incansavelmente melhores condições
de trabalho. Ao mostrar as municipalidades cedendo às pressões dos trabalhado-
res escravos e livres, ainda que as vitórias fossem esparsas, parciais e temporárias,
esses estudos reforçam o papel das câmaras como um espaço de demanda, ao
qual a população recorria em suas lutas cotidianas.
O quadro de profunda desigualdade e exclusão que sempre marcou a histó-
ria do Brasil não permitia que os trabalhadores do século XIX, brancos e negros,
livres e cativos, nutrissem esperanças de produzir mudanças radicais nas relações
de poder. O anseio era tornar um pouco menos incerta e degradante a exploração
de seu trabalho. Era tornar a dura rotina de ganhar o sustento um pouco menos

 19
distante de suas concepções sobre relações justas de trabalho. E o que vimos nas
pesquisas aqui abordadas foi que a satisfação dessa expectativa não poderia se dar
de qualquer forma. Parte significativa desses anseios, sendo reconhecidos como
direitos, deveriam ser assegurados por meio de medidas legais. Fazendo greve,
encaminhando cartas à imprensa, recorrendo a algum vereador para representar
seus interesses ou enviando suas queixas e reclamações para serem apreciadas
nas sessões da câmara, os trabalhadores deixavam claro que lhes interessava, so-
bremaneira, ver suas reivindicações e a definição dos limites à exploração do seu
trabalho sendo registrados nos textos legais, sobretudo as posturas municipais.

A regulação e o policiamento dos mercados pelo


governo municipal
Flávio Gomes e Antonio Luigi Negro, num estudo comparativo sobre a for-
mação da classe operária nos séculos XIX e XX, comentaram brevemente o papel
desempenhado pelas câmaras municipais em cidades como Salvador, Rio de Janei-
ro, Recife, São Luiz e São Paulo, que apresentavam grande participação da popu-
lação negra, livre e cativa nos setores de comércio, transporte, abastecimento e
serviços. Eles contestaram a ideia de que o sistema escravista seria incompatível
com os espaços marcados pela densidade urbana, e que os senhores teriam dificul-
dade de manter um controle eficaz sobre os escravos ao ganho e de aluguel. Con-
forme destacaram, as fontes indicam que esses trabalhadores foram submetidos a
diferentes estratégias de vigilância e fiscalização, como as adotadas pelas câmaras
municipais, “que davam autorização para que os escravos trabalhassem ao ganho
e cobravam impostos dos senhores”. Além disso, ressaltaram que “o maior núme-
ro de escravos nas ruas fez aumentar as formas de controle social nas cidades por

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meio de posturas municipais, multas e aparato policial”22, reforçando a importân-


cia das atribuições policiais do governo municipal.
De acordo com a lei do 1.º de Outubro de 1828, conhecida como regimento
das câmaras, a vereança teria a seu cargo tudo quanto dissesse respeito à polícia e
à economia das povoações e seus termos, pelo que tomariam decisões e elabora-
riam posturas. No código de posturas promulgado pela Câmara Municipal do Rio
de Janeiro, em 1830, revisado e ampliado em 1838, e acrescido anualmente por de-
zenas de editais, o exercício dessa competência se traduziu num conjunto amplo e
diversificado de artigos, que regulavam o trabalho ao ganho, o horário de funcio-
namento dos estabelecimentos comerciais, o transporte público, a pesca e venda
de peixes, o desembarque dos gêneros, a distribuição e circulação de mercadorias
pela cidade, o funcionamento das praças de mercado e casas comerciais varejis-
tas, a venda ambulante de alimentos, a venda de bebidas espirituosas, a constru-
ção de moradias populares, as festas, danças e cantorias etc. Pela extensão desse
rol de atribuições, para muitos trabalhadores, o governo municipal parecia ser a
instância mais adequada para o encaminhamento de suas demandas. No fim das
contas, na ausência de um código civil que regulasse as relações de trabalho, era
a legislação municipal que incidia mais diretamente sobre diferentes aspectos da
rotina de ganhar o sustento dos trabalhadores livres e cativos da cidade.
Até a década de 1840, competia apenas aos fiscais de freguesia e aos guar-
das municipais fiscalizar o cumprimento das posturas municipais. Mas a lei n.º 261,
de 3 de dezembro de 1841, que reformava o Código do Processo Criminal, deter-
minou que a Secretaria de Polícia também ficasse encarregada de providenciar o
cumprimento dos assuntos de polícia previstos no código de posturas, seção em
 20
que estavam incluídos os parágrafos dedicados à regulação dos mercados e outras
atividades econômicas locais. De acordo com essa lei, os chefes de polícia deveriam

Art.4.º, §5.º Examinar se as Câmaras Municipais têm providenciado so-


bre objetos de Polícia, que por lei se acham a seu cargo, representando-
lhes com civilidade as medidas que entenderem convenientes, para que
se convertam em Posturas, e usando do recurso do art. 73 da lei do 1.º
de Outubro de 1828, quando não forem atendidos.

De acordo com esse recurso, presente no regimento das câmaras, os cida-


dãos que se sentissem agravados pelas deliberações, acordos e posturas das câma-
ras poderiam recorrer à Assembleia Geral Legislativa e ao Ministério dos Negócios
do Império, contanto que a matéria fosse meramente econômica e administrati-
va. Nesse sentido, a reforma do código processual pretendia tornar os chefes de
polícia uma espécie de supervisores das municipalidades, observando seus erros,
abusos e omissões, para propor medidas adequadas às suas correções. De acordo
com Thomas Holloway, um dos efeitos da reforma do Código do Processo Crimi-
nal foi “estender formalmente poderes judiciais à polícia. Pela reforma de 1841, os
chefes de polícia, delegados e subdelegados tinham plena autoridade, no âmbi-
to das violações das posturas municipais e de todas as contravenções”, podendo
prender, julgar e sentenciar sem intervenção de outras instâncias do poder.23
A dificuldade de se estabelecerem limites mais precisos entre as alçadas do sis-
tema policial e da administração municipal vinha de longa data. No período joanino,

22 GOMES, Flávio; NEGRO, Antonio Luigi. Além de senzalas e fábricas: uma história social do trabalho. Tempo
Social, 2006, v.18, n.1, p. 226-227.
23 HOLLOWAY, Thomas. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 158.

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as atribuições da Intendência Geral de Polícia da Corte sobre as questões rela-


cionadas à “preservação da ordem social e do bem-viver no centro-sul do Brasil”
mantinham “fronteiras muito tênues em relação às históricas jurisdições até então
exercitadas pelo Senado da Câmara”.24 No processo de construção do estado im-
perial, aquilo que se considerava como assunto de polícia continuou incorporado
à jurisdição da administração municipal, gerando sobreposição de competências.
Como o Código Criminal do Império não apresentava disposições sobre as viola-
ções menores da ordem pública, elas continuaram sendo reguladas pelas posturas
policiais. As deliberações da administração municipal tinham caráter obrigatório,
mas a infração de postura previa apenas pena de prisão simples, multa, ou ambos.
Por conta disso, conforme explica Martha Abreu, “o não cumprimento de uma
postura caracterizava uma contravenção”, diferente das violações ao Código Cri-
minal, que se configuravam como crime ou delito. Outro aspecto destacado pela
autora, a despeito da criação da Chefatura de Polícia da Corte em 1832, o que se
verificou nessa primeira organização do sistema policial e judicial do estado impe-
rial foram as câmaras municipais e os juízes de paz assumindo a maior parte das
atribuições antes exercidas pela Intendência, especialmente no que diz respeito à
manutenção da ordem pública.25 Nesse sentido, a proposta da reforma implantada
em 1841 era a de restituir ao chefe de polícia algumas das antigas atribuições do in-
tendente, minando a autonomia municipal e reforçando a centralização do poder.
Apesar do esforço nesse sentido, os chefes de polícia da Corte não ficaram
plenamente satisfeitos com os dispositivos que lhes foram facultados pela refor-
ma do Código do Processo Criminal para o exercício de suas novas atribuições.
 21 Como o regulamento das câmaras não sofreu qualquer reformulação ao longo de
todo o regime monárquico, o código de posturas foi mantido em vigor, apesar de
vários representantes da secretaria de polícia considerarem que a câmara munici-
pal não era capaz de providenciar sobre os objetos de polícia previstos no código.
Em 1849, o chefe de polícia Antonio Simões da Silva sintetizou bem esse posicio-
namento em relatório enviado a Eusébio de Queirós Coutinho Matoso, então Mi-
nistro da Justiça, no qual afirmou: “as atuais Posturas da Câmara são uma coleção
de determinações soltas, vagas, e algumas, além de tudo isto, inconsequentes, e
inexequíveis, do que um Código Policial”.26 Em sua opinião, além do recurso que
o decreto lhe facultava ser insuficiente para assegurar o cumprimento das obriga-
ções que lhe foram atribuídas, mesmo nas ocasiões em que a vereança se mostra-
va disposta a cooperar no atendimento às suas solicitações, outras dificuldades
se impunham para o policiamento da cidade. No seu relatório, Antonio Simões da
Silva escreveu:

Por vezes, atenta as necessidades, que sobre o Município da Corte por


falta de Polícia Administrativa Municipal, tive de representar á Ilustríssi-
ma Câmara a respeito de providências sobre diversos objetos, que me
pareceram de intuitiva necessidade, mas Vossa Excelência que não ig-
nora a importância, que deve ter, atenta a organização viciosa das câ-
maras municipais, as representações dos Chefes de Polícia, pode avaliar
quanto é nula e inexequível a disposição do referido artigo 4º § 5º da Lei
de 3 de Dezembro de 1841, e o quanto é ilusório e até risível o recurso do
artigo 73 da Lei do 1º de Outubro de 1828 que se concede aos Chefes de
Polícia. Entretanto em alguns objetos, tem a Ilustríssima Câmara Muni-
cipal atendido as minhas requisições, e as vezes que o não tem feito me

24 GOUVÊA, Maria de Fátima. Poder, autoridade e o senado da câmara do Rio de Janeiro, ca.1780-1820. Tem-
po – Revista do Departamento de História da UFF. Rio de Janeiro, v.7, n.13, 2002, p. 122.
25 ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 188-196.
26 Arquivo Nacional, Secretaria de Polícia da Corte, maço IJ6-212, 13 nov. 1849, fl. 22.

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têm declarado que é em consequência da falta de recursos pecuniários,


ou mesmo por outras quaisquer razões de dificuldade.27

A fala do chefe de polícia expressa, em parte, o ressentimento motivado pela


manutenção da ingerência das câmaras nos assuntos relacionados ao policiamento
da cidade, contrariando as críticas largamente difundidas no governo central so-
bre aquilo que consideravam “organização viciosa das câmaras municipais”. Para
Antonio Simões da Silva, as limitações impostas à atuação da polícia resultavam
em grande mal, “porque o povo que sempre olha por alto as coisas, sem se dar ao
trabalho do exame, entende, que a Autoridade é incompetente”. E a falta de vigi-
lância para o cumprimento das posturas também era prejudicial, porque habituava
“o povo a olhar com pouco respeito para essas disposições sem dúvida legais, mas
que não tendo utilidade por mal concebidas, e pior desenvolvidas, ele julga poder
infringi-las”. Como considerava que “por uma correlação mal entendida [o povo]
aplica o mesmo falso raciocínio a tudo quanto é restrição legal”, o chefe de polícia
reforçava a representação das ruas como o espaço da desordem, para o que con-
tribuiria a ação “fraca e improfícua” da câmara.28
Não obstante a fala de Simões da Silva fosse atravessada por uma intensa
disputa por poder e autoridade, e lhe interessasse chamar atenção para as limi-
tações da administração municipal como forma de legitimar as pretensões da se-
cretaria de polícia no sentido de ampliar seu próprio espaço de atuação29, isso não
significa que fosse completamente infundada sua avaliação sobre a dificuldade de
os vereadores providenciarem a vigilância e a fiscalização das posturas. Em 1849,
ano em que o chefe de polícia Antonio Simões da Silva redigiu seu relatório, o  22
recenseamento da população do Município da Corte informava que a cidade con-
tava com um contingente de 110.602 trabalhadores escravos, correspondendo a
41,5% da população total, a maior parte concentrada nas freguesias urbanas, aos
quais se unia uma massa crescente de homens pobres livres.30 Em contrapartida,
para regular o mercado e as outras atividades econômicas em que essa população
estava envolvida, a câmara dispunha de um vereador encarregado das Praças do
Mercado e Marinhas, um fiscal por freguesia e um número sempre insuficiente de
guardas municipais para prevenir as infrações que pudessem ser cometidas por
comerciantes e trabalhadores, livres e cativos. Portanto, os problemas eram crôni-
cos, fosse pela falta de recursos ou pela falta de pessoal.

A legislação municipal e os trabalhadores negros


De acordo com a Lei do 1º de Outubro de 1828, cabia aos vereadores formular
posturas que promovessem e mantivessem a tranquilidade, a segurança e a co-
modidade de seus habitantes, assegurando que nas ruas, praças, feiras e demais
lugares públicos prevalecessem a regularidade, a civilidade, o decoro e a moral,
princípios bastante caros à “boa sociedade”.31 Na compreensão dos membros do

27 Arquivo Nacional, Secretaria de Polícia da Corte, maço IJ6-212, 13 nov. 1849, fl. 11v-12.
28 Ibidem, fl. 22v-23.
29 Sobre os conflitos entre a Câmara Municipal e a Secretaria de Polícia, ver: SOUZA, Juliana Teixeira. Carne
podre, café com milho e leite com água: disputas de autoridade e fiscalização do comércio de gêneros na
Corte imperial, 1840-1889. História, Ciências, Saúde – Manguinhos.  Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz,
Casa de Oswaldo Cruz,  v.18,  n.4, out./dez. 2011.
30 VITORINO, Artur José Renda. Cercamento à brasileira: conformação do mercado de trabalho livre na Corte
das décadas de 1850 a 1880. Tese (Doutorado em História). Campinas: Campinas: [s.n], 2002, p. 95-99.
31 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do Estado imperial. Rio de Janeiro: HUCITEC, 2004.

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governo municipal e de parte da população, para cumprir com essas atribuições,


era indispensável que a câmara regulasse, fiscalizasse e mantivesse um controle
mais atento sobre as atividades dos trabalhadores urbanos, especialmente nos
setores em que predominasse a presença do trabalhador negro, fosse livre ou es-
cravo. Ainda que, nas décadas de 1820 e 1830, a interferência do estado nas re-
lações entre senhores e escravos fosse bastante limitada ― num centro urbano
como o Rio de Janeiro, que sempre contou com um contingente significativo de
escravos que em seu cotidiano mantinham-se praticamente livres da sujeição se-
nhorial ―, as medidas referentes à regulação da economia local expressavam a
preocupação das autoridades com o controle sobre esses trabalhadores.
Ao discutirem o papel atribuído ao cativo na legislação imperial, é comum
os historiadores mencionarem que a palavra “escravo” não aparece em nenhum
artigo da Constituição de 1824, de modo que sua humanidade e capacidade de
praticar atos de vontade seriam reconhecidas apenas no Código Criminal de 1831. A
esse respeito, seria muito comentada a polêmica sentença de Jacob Gorender: “o
primeiro ato humano do escravo é o crime”.32 Sidney Chalhoub contestou a valida-
de da sentença, por ela sugerir que a rebeldia aberta era “a única forma de os es-
cravos negarem sua coisificação social e afirmarem sua dignidade humana”.33 Mas
Manolo Florentino e José Roberto Góes ponderaram: o escravo “era uma proprie-
dade. O ordenamento jurídico da sociedade o constituía como tal, exceto no que
concerne à transgressão da lei. Gorender tem razão [...]. Pode-se dizer, portanto,
que o crime era o primeiro e único ato do escravo que o humanizava ― na lei”.34
 23 No entanto, o Código Criminal não era o único instrumento legal a definir
os escravos como sujeitos de delito. Os códigos de posturas não costumam ser
mencionados nesses debates, mas nas posturas municipais do Rio de Janeiro, por
exemplo, se reconhecia a humanidade dos escravos no uso de expressões como:
“nenhum homem, de qualquer cor e condição que seja”, ou “nenhuma pessoa,
de qualquer estado, condição ou sexo”.35 Ou seja, eles também assumem que os
cativos praticavam atos de vontade e por isso deveriam responder pessoalmente
por suas infrações.
No código de posturas da Câmara Municipal do Rio de Janeiro havia sanções
impostas somente aos escravos, como andar nas ruas depois das 7 horas da tarde
sem justificativa escrita e datada do mesmo dia pelo senhor.36 E havia medidas di-
recionadas às manifestações culturais dos africanos e seus descendentes, como a
proibição dos “batuques, cantorias e danças de pretos” que pudessem incomodar
a vizinhança.37 Também havia artigos que previam punições mais severas e exclusi-
vas aos cativos que cometessem alguma contravenção. Exemplo disso: as pessoas
que proferissem palavras ou praticassem gestos indecentes em locais públicos

32 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978, p. 65. A resposta de Gorender às críticas
que recebeu aparece em: GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática; Secretaria de Estado
da Cultura, 1990.
33 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 42.
34 ������������������������������������������������������������������������������������������������������
Na perspectiva desses autores, o fato de os escravos serem juridicamente identificados como proprieda-
de não implicava que os senhores pretendessem a sua coisificação social, por considerarem que, para a
manutenção do sistema escravista, era fundamental que os senhores reconhecessem a humanidade dos
cativos. FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlânti-
co, Rio de Janeiro, c.1790 – c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p. 31.
35 CODIGO DE POSTURAS DA ILUSTRISSIMA CAMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO E EDITAES DA
MESMA CÂMARA. RIO DE JANEIRO: EDUARDO & HENRIQUE LAEMMERT, 1870, P. 19-20.
36 Sobre a vigência do Toque de Recolher no período imperial como forma de controle de poder municipal
sobre a população afrodescendentes, cf. o artigo de Amy Chazkel neste dossiê.
37 Ibidem, p. 28 e 36.

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seriam multadas e conservadas na cadeia por oito dias, mas se fosse escravo a
pena passava para vinte e cinco açoites.38 Os indivíduos flagrados jogando entrudo
no município pagariam multa ou ficariam presos, mas no caso dos escravos, as al-
ternativas eram oito dias de prisão ou cem açoites.39 Os escravos que fizessem de-
sordens seriam conduzidos ao calabouço, dando-se parte aos seus senhores para
que lhes aplicassem a pena de cem açoites, se acusados de serem os promotores
da desordem.40
Em contrapartida, nas posturas também se registra a preocupação com os
castigos impostos aos escravos por particulares. Isso mostra que, apesar de tratá-
-lo juridicamente como um bem semovente, a legislação do Império não negava
que os escravos deveriam ser tratados como uma propriedade diferenciada, por
serem pessoas.41 No âmbito de suas atribuições policiais, competia ao governo mu-
nicipal prevenir os excessos dos senhores, que não raro seviciavam seus escravos.
Mais especificamente, competia aos fiscais da municipalidade o dever de vigiar
“sobre o mau tratamento e crueldades que se costumam praticar com escravos,
indicando os meios de preveni-los, e dando de tudo parte à Câmara”.42
Outro aspecto a ser considerado, diferente do que ocorre em outros códi-
gos legais, nas posturas e editais promulgados pela Câmara Municipal do Rio de
Janeiro se verifica que a humanização do escravo se dava, sobretudo, por meio da
regulação do mundo do trabalho. No código de posturas, o título correspondente
à polícia dos mercados afirmava que era permitido “a todas as pessoas vende-
rem pelas ruas da cidade legumes, frutas, aves e peixe, bem como outro qualquer
comestível”.43 Os escravos, evidentemente, estavam entre essas “pessoas”. Por
outro lado, o código de posturas também explicitava as atividades que não pode-
 24
riam ser exercidas pelos escravos. Pelo documento: “todos os que tiverem casa
pública de negócio, não poderão ter nelas, vendendo ou administrando, pessoas
cativas”,44 enquanto que o Regulamento da Praça do Mercado, aprovado pelos ve-
readores em agosto de 1844, determinava em seu primeiro artigo que suas bancas
e casas só poderiam ser alugadas por “pessoas livres e capazes”.45 O regulamento
também proibia “andarem pretos de ganho dentro da praça, e os escravos, que ali
forem mandados por seus senhores fazer compras, não deverão se demorar além
do tempo necessário para efetuá-las”.46 Somente os escravos que estivessem a
serviço dos locatários tinham autorização para permanecer na Praça do Mercado,
e por isso cabia aos fiscais fazer dispersar os pretos que insistissem em peram-
bular e permanecer no local sem motivo que lhe parecesse justificado. O último
artigo do regulamento informava que as penas ali previstas “compreendem todas
as pessoas, de qualquer posição que seja, de um ou outro sexo, respondendo o
senhor pelo escravo em todas as disposições”.47

38 Ibidem, p. 20.
39 CODIGO DE POSTURAS, OP. CIT., P. 28.
40 Ibidem, p. 36.
41 No âmbito das discussões sobre o direito civil no Oitocentos, estudos mais recentes têm destacado que
esse tipo de regulação mostra o escravo como uma propriedade de natureza diferenciada, com condição
jurídica transitória, por ser um bem em propriedade de alguém e poder se tornar um homem livre, capaz
de adquirir direitos de cidadania. Sobre os escravos serem coisa e pessoa, e também serem coisa que po-
dia virar pessoa, ver: GRINBERG, Keila. Código civil e cidadania. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p. 47 e segs.
42 CODIGO DE POSTURAS, OP. CIT., P. 39.
43 Ibidem, p. 22.
44 Ibidem, p. 23.
45 Ibidem, p. 51.
46 CODIGO DE POSTURAS, OP. CIT., P. 55.
47 Ibidem, p. 56.

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A seção do código dedicada aos assuntos de polícia informava que era


“proibido a quaisquer trabalhadores” fazer vozerias e andar gritando pelas ruas,
sendo permitido, “nas horas que não forem de silêncio, o canto para facilitar o
trabalho”.48 Entre esses trabalhadores estavam incluídos os escravos, sobretudo
se considerarmos que em 1838, quando a medida foi promulgada, eles predomina-
vam como força de trabalho, correspondendo a 42,71% da população do município
da Corte.49 Para a elite senhorial, essa concessão poderia contribuir para que os
pretos aliviassem a faina diária e melhor desempenhassem sua função. Para os ne-
gros escravos e libertos, que tinham essa prática entre seus costumes, tratava-se
do reconhecimento de suas manifestações culturais e formas de organização do
trabalho, pois o canto, além de marcar o ritmo do trabalho duro que realizavam,
por meio de suas letras e melodias, poderia se tornar um canal de denúncia quanto
às condições da dominação a qual estavam submetidos.50
Entre os trabalhadores que tinham o costume de trabalhar cantando, esta-
vam os escravos ao ganho. As posturas determinavam que “ninguém poderá ter
escravos ao ganho sem tirar licença na Câmara Municipal, recebendo com a licença
uma chapa de metal numerada”, que o ganhador deveria trazer pendurada em lu-
gar visível. O ganhador que fosse pessoa livre também deveria trazer essa chapa,
e só poderia tirar a licença se apresentasse um “fiador que se responsabilize por
ele”. Se fossem encontrados sem a chapa, o cativo passaria oito dias no calabouço
e o homem livre seria recolhido por oito dias na cadeia.51 Foi essa medida que duas
décadas depois inspirou os vereadores de Salvador. Como foi apontado por João
 25 José Reis, o alvo do controle não era apenas o escravo, mas todos os trabalha-
dores daquele setor, em que a presença negra era maciça. E parece que a pouca
diferença entre as obrigações e penas impostas aos ganhadores livres e ganhado-
res escravos reforça esse argumento. Vale notar que a maior parte das infrações
previstas no código de posturas de 1838 e nas dezenas de editais publicados nas
décadas posteriores não previam multas e penas distintas para pessoas livres e
escravas. Apenas na prevenção das formas mais graves de rebeldia e controle das
manifestações festivas havia uma forte tendência ao estabelecimento de punições
específicas para os escravos.52 No caso das infrações de artigos que não incorriam
em pena de prisão, os fiscais estavam mesmo autorizados a pôr os escravos em
custódia e soltá-los assim que satisfizessem a multa, sem que fosse explicitada a
necessidade de darem parte ao senhor sobre a ocorrência.
Como as leis municipais estavam vinculadas aos costumes e ao cotidiano da
cidade, sobre esse aspecto talvez pesasse a “existência de zonas amplas de incer-
teza social sobre as fronteiras entre escravidão e liberdade”, que criavam “territó-
rios sociais ambíguos”.53 Na Corte, o mundo do trabalho era perpassado por essas
ambiguidades, por conta da dificuldade de se separar completamente os espaços
de atuação exclusivos de escravos e homens pobres livres. Se todos os pretos e
parte dos pardos pobres viviam sob suspeita de serem escravos, em contraparti-
da, uma parte dos escravos urbanos vivia se passando por livre. Eles dispunham
de alguma liberdade, ainda que precária, proporcionada pelo trabalho ao ganho e

48 Ibidem, p. 20.
49 VITORINO, 2002, Op. cit., p. 94.
50 REIS, Op. cit., p. 12.
51 CODIGO DE POSTURAS, OP. CIT., P. 27-28.
52 Sobre o controle das festas negras, ver: ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura
popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 198.
53 CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2012, p. 233.

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de aluguel, pois o desempenho dessas atividades permitia que se mantivessem a


maior parte do tempo longe do olhar vigilante de seus senhores, “vivendo sobre
si”, mantendo rotinas de viver e ganhar o sustento muito próximas dos homens
pobres livres, inclusive no que se refere à prestação de serviço mediante remune-
ração. Prática comum, os escravos acertavam diretamente com os locadores sobre
os termos do contrato para a prestação de serviço, decidindo e assumindo respon-
sabilidade sobre o recebimento de seu pagamento.54 Como esse quadro foi se tor-
nando mais complexo na medida em que o século XIX avançava, no que se refere
à regulação das atividades econômicas, a legislação municipal se ocupou mais em
implantar estratégias de controle que pudessem alcançar todos os trabalhadores.
O reconhecimento da humanidade do escravo não comprometia, de modo
algum, que as posturas municipais cumprissem o papel tradicionalmente atribuído
às leis, nesse caso, defendendo as pretensões dos proprietários e governantes no
que se refere ao controle sobre a força de trabalho, assim contribuindo para a con-
solidação do poder da classe senhorial. No entanto, as sanções previstas nas pos-
turas não asseguravam que os escravos se comportassem nas praças e mercados
da cidade da forma pretendida pelos proprietários, sendo relativamente comuns
as reclamações quanto à incapacidade das autoridades municipais de prevenirem
os conflitos envolvendo os trabalhadores negros. Em 3 de novembro de 1858, na
seção de publicações a pedido do Correio da Tarde, um leitor sugeriu que alguns
policiais pedestres fossem destacados para dar apoio ao fiscal da municipalidade
que vigiava o Mercado da Praia do Peixe. No seu ver, somente assim se poderia
evitar que os negros continuassem proferindo “desaforos” e “insultos” contra os
cidadãos que por lá faziam suas compras. Sobre o episódio que motivou a queixa,  26
ele escreveu:

Consta que um destes dias foi ali um indivíduo e querendo comprar na


banca n. 19 um peixe a um preto lanhado de nome Tibério, este pedira
2$500, e oferecendo-lhe o indivíduo 1$000, aquele atrevido africano lhe
dissera “isso é uma asneira” e ponderando-lhe o indivíduo que ele não
sabia o que era “asneira”, retorquiu Tibério com insultos.
Já algumas vezes se tem chamado a atenção da polícia para aquela pra-
ça, porque estando a provisão pública ali nas mãos, pela máxima parte
de pretos escravos, e libertos, e sendo todos sumamente insolentes, e
confiados, veem-se os cidadãos honestos privados de fazerem pessoal-
mente suas compras para se não exporem a repugnância de tratar com
uma cáfila que desrespeita a todos porque julga que todos são tão bons
como eles. [...]
Façam os leitores ideias de como ficaria o sobredito indivíduo, cidadão
livre, e homem de posição, ao ver-se insultado por um negro da costa
da África que já foi escravo do bacalhau!! [...]
Finalmente a ousadia dos escravos e libertos do mercado da praia do
Peixe, requer pronta “correção”, e talvez ela se não fizesse tão comple-
ta como principiando-se por cessar-se-lhes as licenças para exercerem
uma profissão que em um país civilizado só deve ser permitida aos “ci-
dadãos livres”.

Na perspectiva dos dirigentes do Império, difundida entre a minoria letrada da


população que constituía o público alvo das folhas fluminenses, era fundamental que
todos os elementos constitutivos da sociedade conhecessem e se mantivessem em

54 GRINBERG, Op. cit., p. 58-59.

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seus lugares.55 Para tanto, os cativos e homens pobres, agregados e dependentes,


deveriam prestar sinais de deferência e submissão à classe senhorial, e nas ativi-
dades cotidianas isso não poderia ser diferente. No entanto, como a historiografia
da escravidão tem insistido nas últimas décadas, o comportamento dos escravos
esteve longe de corresponder às idealizações da classe senhorial. Numa cidade
como o Rio de Janeiro, em que predominavam os trabalhadores negros e pardos,
escravos e livres, não parece tão improvável a insolência atribuída ao preto Tibério.
Ainda que trouxesse no corpo lanhado as evidências de sua condição escrava, sua
confiança talvez fosse motivada pela percepção de que os brados proferidos pe-
los cidadãos de posição nem sempre fossem repercutir como desejavam. Afinal, a
maior praça de mercado do país não dava sinais de que pretendesse prescindir dos
trabalhadores de cor, a despeito de muitos cidadãos não considerarem convenien-
te que eles continuassem exercendo determinadas ocupações.
Em 18 de setembro de 1861, foi a vez do vereador encarregado da Praça do
Mercado e Marinhas reclamar do comportamento da população cativa, solicitando
a intervenção do chefe de polícia para manter a ordem e a tranquilidade no local.
Em ofício remetido ao presidente da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, ele enca-
minhou a solicitação da seguinte forma:

Sendo a Praça de Marinhas um lugar em que o negócio é feito por gran-


de parte de gente sem educação e escrava, onde constantemente são
desrespeitadas as pessoas sisudas, que a ele vão mercadejarem, por

 27
insultos, doestos e epítetos afrontosos, acrescendo que até o guarda
encarregado da polícia municipal, naquele lugar é muitas vezes ludibria-
do, e encontra resistência, quando tem que punir os infratores do Regu-
lamento da Praça do Mercado, como aconteceu há dias, que um preto
escravo, com ele lutou, sendo ferido no rosto com o chapéu de sol que
o guarda tinha na mão, resultando disso querer o senhor do escravo ins-
taurar processo ao guarda pelo ferimento. À vista das razões alegadas,
peço a Vossa Excelência para que se digne reclamar do Excelentíssimo
Chefe de Polícia, uma força policial, que ali permaneça durante o dia, a
fim de que aquela gente insolente se abstenha de proceder atrevida-
mente para com o público e o guarda encarregado da fiscalização, evi-
tando assim que eu também seja desrespeitado no exercício do cargo,
que a Ilustríssima Câmara me confiou.56

O código de posturas determinava que fossem imediatamente presas e re-


colhidas à cadeia todas “as pessoas que insultarem e menoscabarem” os fiscais e
guardas municipais que estivessem no exercício de suas funções.57 Mas a solicita-
ção feita pelo vereador, prontamente atendida pelo presidente da câmara e pelo
chefe de polícia, mostra a dificuldade enfrentada pelas autoridades municipais
no sentido de assegurar um efetivo controle sobre os trabalhadores negros, cujo
comportamento provocava grande preocupação entre as autoridades encarrega-
das de assuntos policiais e a parte sisuda da população.
Para o restante da população, as fragilidades na execução das estratégias
de controle do governo municipal poderiam ser vistas numa perspectiva diferen-
te, pois eram essas falhas, omissões e perspectivas de tolerância que ajudavam a
ampliar os espaços de manobra para os trabalhadores da cidade. Não por acaso,
em artigo que discutia a ocupação dos espaços urbanos por quitandeiras, Flávio

55 MATTOS, Op. cit., p. 122-136.


56 Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Polícia, cód. 47-3-35, 18 set. 1861.
57 CODIGO DE POSTURAS, OP. CIT., P. 39.

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Gomes e Carlos Eugênio Líbano afirmaram que “a primeira vitória de uma certa
‘cidadania’ na urbe carioca envolvendo a população negra, africana e crioula” fora
conquistada justamente no âmbito de atuação da municipalidade. Eles se referiam
ao manifesto de 1776, em que as quitandeiras escravas e libertas se dirigiram aos
vereadores contestando a decisão tomada pelo juiz de fora que pretendia retirá-
-las do costumeiro local de trabalho, em frente ao edifício do mesmo senado, a
despeito de elas pagarem em conjunto pelo aforamento do local. Mostrando que
“mantinham um nível de organização coletiva e ocupacional bastante sofistica-
do”, e contando com apoio do procurador da câmara, as quitandeiras consegui-
ram que a decisão arbitrária do juiz de fora fosse suspensa e recuperaram a posse
do terreno. É verdade que, para Gomes e Soares, a articulação das ganhadeiras
com a elite política local se perdeu no século XIX, como comprovaria um docu-
mento de 1831, mostrando que “elas passaram a ser hostilizadas até mesmo pelos
religiosos da igreja de Nossa Senhora do Rosário, a igreja dos pretos da cidade, em
virtude do barulho que provocavam no largo contíguo”.58
Mas é importante ressaltar que a queixa não era nova e não foi a última. Em
18 de maio de 1854, na seção de publicações a pedido do Correio Mercantil, um leitor
que assinava “O Rabeca” denunciou a permanência das quitandeiras naquele largo:

Atenda a Ilustríssima Câmara


Já que o sr. Fiscal da freguesia do Sacramento não quer mandar retirar
as quitandeiras que ficaram em frente à igreja de Nossa Senhora do Ro-

 28
sário, com o único fim de não dar corda, quando S. S. fez retirar todas
as outras que por infelizes não tiveram quem por elas se empenhasse,
rogamos ao digno Sr. Presidente e mais vereadores que mandem ao Sr.
Fiscal fazer retirar as que ficaram, visto que só nessa freguesia se faz da
frente de um templo praça de quitanda: finalmente seja observada a lei,
que deve ser igual para todos.

Nas queixas apresentadas pela população aparece de forma reiterada a re-


sistência imposta pelas quitandeiras ao cumprimento das posturas. Por vezes, no
lugar de recorrerem à vereança, os cidadãos aflitos chamavam a atenção das auto-
ridades policiais para o problema. Em carta publicada no Jornal do Commércio, em
22 de outubro de 1855, o leitor lastimava que “o procedimento que há em todas
as praças onde se juntam quitandeiras” não chegasse ao conhecimento do chefe
de polícia, pois a “audácia” delas tornara quase diária “as cenas como a que acon-
teceu ontem no Largo da Sé às duas horas da tarde, não só as infames palavras,
os gestos indecentes (próprios da classe), como chegaram ao ponto de levantar a
saia de uma em ar de desprezo”. Mas os chefes de polícia, tão ciosos em denunciar
a ação “fraca e improfícua” da câmara, não tiveram maior sucesso.
Em 8 de janeiro de 1857, ao comentar sobre a posse da nova Câmara Muni-
cipal da Corte, o redator do Correio da Tarde concluiu seu artigo com a seguinte
solicitação: “ocorre-nos pedir à nova câmara que ponha muito à peito desembara-
çar das quitandeiras os largos e praças, estabelecendo mais um ou dois mercados,
em lugares apropriados, no centro da cidade”. O empenho da vereança continuou
sendo insuficiente, dando lugar a tumultos como os que ocorriam na Praça do Ca-
pim, avaliada pelo chefe de polícia da Corte como “um dos lugares de mais trânsi-
to, já pelo grande número de casas de negócio que nela existem e já pelo concurso
de quitandeiros, que motivam sempre desordens, tornando, além disso, um dos

58 GOMES, Flávio dos Santos; SOARES, Carlos Eugênio Líbano. “Dizem as quitandeiras...”. Ocupações urbanas
e identidades étnicas em uma cidade escravista: Rio de Janeiro, século XIX. Acervo, v.15, n.2, 2002, p. 3-6.

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pontos escolhidos pelos capoeiras para suas costumadas correrias”. Por esse mo-
tivo, em 5 de Maio de 1862, ele comunicou ao Ministro da Justiça que estabeleceria
um posto de guarda naquela mediação.59
Conforme registraram os chefes de polícia, os fiscais da municipalidade e a
população, por muito tempo ainda, as negras quitandeiras e outros tantos traba-
lhadores negros, que pareciam integrados à paisagem urbana desde os tempos
coloniais, continuaram prestando seus serviços e por vezes incomodando os mo-
radores da cidade, com seus tabuleiros, cestos, caldeirões e alaridos costumeiros.
Para isso, contavam com o respaldo da câmara municipal, fosse lhes assegurando
o direito a permanecer nos largos e praças destinados às suas atividades econômi-
cas, fosse realizando seu trabalho de vigilância e prevenção de forma ineficaz, per-
mitindo, assim, que também ocupassem os espaços não autorizados, a despeito
das queixas e reclamações das autoridades policiais e dos cidadãos incomodados
com os “gestos indecentes” tão comumente atribuídos aos trabalhadores negros.

Conclusão
Para se pensar nas câmaras municipais como instâncias reguladoras do tra-
balho urbano é preciso, primeiramente, reconsiderar a ideia largamente difundida
nos estudos que dizem respeito à história política do século XIX sobre o fato de a
subordinação das municipalidades a outras instâncias do governo permitir o esva-
ziamento das suas atribuições políticas e administrativas ao ponto de nulifica-las.60
 29 Conforme os estudos no campo da História Social têm demonstrado, especialmen-
te aqueles que se ocuparam do Rio de Janeiro no Oitocentos, as prerrogativas da
municipalidade quanto à regulação da economia local, ordenamento do espaço
urbano e saúde pública conferia aos seus agentes participação significativa nas de-
cisões sobre o governo da cidade e sobre o cotidiano de sua população. Na legis-
lação municipal, a extensão dos setores que sofrem ingerência da administração
municipal é expressa no código de posturas, com seus inúmeros artigos regulando
a vida da população no espaço urbano, prescrevendo normas que deveriam ser
observadas nas ruas, no ambiente de lazer e também no trabalho.
Como temos mostrado, a jurisdição da câmara municipal sobre as ativida-
des econômicas locais se traduzia, fundamentalmente, na regulação das relações
e formas de trabalho tipicamente urbanas. Na administração do governo munici-
pal, se destaca a preocupação com a vigilância e com a fiscalização das atividades
em que predominava a presença de africanos e seus descendentes, fosse com as
posturas explicitando ocupações que não poderiam ser exercidas pela população
cativa ou por meio de medidas que procuravam assegurar ao governo municipal
algum controle sobre esses trabalhadores.
Em contrapartida, também é possível considerar que a atuação da adminis-
tração municipal contribuía para que os escravos ampliassem seu campo de ação
e adotassem formas de viver que deveriam ser restritas aos homens livres. Nesse
sentido, os casos dos ganhadores e vendedores ambulantes são exemplares. Ao mes-
mo tempo em que impunha dispositivos de controle, obrigando-os a tirar licença, a

59 Arquivo Nacional, Secretaria de Polícia da Corte, maço IJ6-516, 5 maio 1862.


60 ����������������������������������������������������������������������������������������������������
O argumento se mantém a despeito das divergências sobre ter prevalecido a centralização ou a autono-
mia das províncias no processo de construção do Estado Imperial. Ver: FAORO, Raymundo. Os donos do
poder: formação do patronato político brasileiro. v.2. São Paulo: Globo, 1993; HOLANDA, Sérgio Buarque
de. A herança colonial ― sua desagregação. In: HOLANDA, S. B. O Brasil monárquico. 1. O processo de
emancipação. História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo; Rio de Janeiro: Fidel, 1976; DOLHNIKOFF,
Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Ed. Globo, 2005.

Revista Mundos do Trabalho | vol. 5 | n. 9 | janeiro-junho de 2013| p. 11-30


JULIANA TEIXEIRA SOUZA

câmara reconhecia que os escravos, assim como as pessoas livres, poderiam viver
dessas atividades. Lembramos que, de acordo com o Dicionário de Luiz Maria da
Silva Pinto (1832), ganhador é aquele “que vive do ganho do seu trabalho”, e ga-
nho significa “o mesmo que lucro”.61 No caso dos ganhadores, esse lucro era ob-
tido ao alugarem sua mão de obra pelo tempo e pelo preço que acertassem com
os contratadores dos seus serviços, muito embora, como afirma Keila Grinberg,
não houvesse previsão jurídica para a atividade realizada por esses escravos que
firmavam contrato de trabalho com pessoas livres.62 Portanto, se por um lado a
legislação municipal criava dispositivos que contribuíam para o controle da escra-
vidão urbana, por outro, oferecia amparo legal para a existência desses territórios
ambíguos no mundo do trabalho, que poderiam ser ocupados por todas as pes-
soas, a despeito de sua cor ou condição jurídica, como as posturas costumavam
frisar, tornando mais fluidas as fronteiras entre o mundo dos cativos e o mundo
dos homens pobres livres.

Recebido em 25/04/2013
Aprovado em 10/05/2013

 30

61 PINTO, Luiz Maria da Silva. Dicionário da Língua Brasileira por Luiz Maria da Silva Pinto, natural da Pro-
víncia de Goya. Na Tipografia de Silva, 1832. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/3/
ganhador. Acessado em: 26 de maio de 2013.
62 GRINBERG, Op. cit., p. 60.

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O lado escuro do poder municipal:
A mão de obra forçada e o Toque
de Recolher no Rio de Janeiro
Oitocentista*
Amy Chazkel**

Resumo: Durante mais da metade do século XIX, cobrindo boa parte do período im-
perial, as noites da cidade do Rio de Janeiro estiveram, quase sem interrupção, sob
toque de recolher. Este artigo analisa a implementação dessa medida no contexto
da história social e legal da cidade no período. Seu principal foco será o Edital de
1825, que estabeleceu o chamado “Toque de Aragão”, a norma municipal batizada
em homenagem ao Intendente de Polícia do Rio de Janeiro, responsável por ordenar
a severa limitação da liberdade de circulação de pessoas durante a noite, bem como
por impedir ou dificultar a reunião de determinados grupos de moradores daquela
cidade, investigando suas causas e efeitos. A designação da noite como uma cat-
egoria jurídica e, com efeito, uma jurisdição à parte, estava relacionada ao controle
dos trabalhadores e, em particular, à evolução do panorama do trabalho forçado na
cidade mais populosa e politicamente significativa do Brasil recém-independente.

Palavras-chave: noite, toque de recolher, Rio de Janeiro

Abstract: The city of Rio de Janeiro was under curfew for a continuous period that
lasted for more than half of the nineteenth century, for nearly the entire Empire.
This article analyzes the implementation of a nighttime curfew in Rio in the con-
text of the social and legal history of the decades to follow. The principal focus is
the so-called Toque de Aragão—the edict named after its author, Fernando Teix-
eira de Aragão, the head of Rio’s police—that imposed severe limitations on the
nighttime freedom of movement and association for certain groups of persons,
especially those of African descent. The designation of the nighttime as a legal cat-
egory and, in effect, a separate jurisdiction, was related to the control of workers,
and in particular to the changing landscape of forced labor in the most populous
and politically significant city in newly independent Brazil.

Keywords: night, curfew, Rio de Janeiro

* Esta pesquisa foi realizada com o apoio financeiro da PSC-CUNY Research Foundation, do Queens College
Dean of the Social Sciences Research Fund e do National Endowment for the Humanities. A autora
agradeçe o auxílio de Mila Burns Nascimento, Henrique Espada Lima, Cristiana Schettini Pereira e Paulo
Terra. Uma versão incipiente deste texto foi apresentada no Programa de Pós-Graduação em História/
Centro de Pesquisa em História Social da Cultura da Universidade Estadual de Campinas e aproveitou os
comentários de Sidney Chalhoub e de os outros participantes do seminário.
** Department of History, City University of New York, Queens College and the Graduate Center. Contato:
amy.chazkel@qc.cuny.edu

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AMY CHAZKEL

Em 1936, Gilberto Freyre publicou um livro que traçava a “decadência do pa-


triarcado rural”, para citar o seu subtítulo, e o desenvolvimento do seu correlato
urbano. Com o título de Sobrados e Mucambos, foi publicado três anos depois de
Casa-Grande e Senzala e ganhou a forma de um ensaio histórico-sociológico que
analisava de maneira criativa a geografia humana do campo e da cidade no Brasil.
Utilizando-se principalmente de relatos de viagem estrangeiros, assim como evi-
dências da arquitetura vernacular e da cultura material contemporâneas, Freyre
narrava a ruptura da antiga ordem socioeconômica, quando a elite de fazendeiros
passou a prestar menos atenção na Casa-Grande e mais nas mansões da cidade,
no século XIX. De acordo com seu argumento, o crescimento das cidades havia
modernizado ― “re-europeizado” ― as classes dos lavradores, enquanto eles se
acostumavam com a vida pública. Assim, os até então separados domínios da casa
e da rua começavam a entrelaçar-se; as famílias patriarcais da elite gradualmente
permitiram que suas mulheres e crianças ultrapassassem a clausura da vida do-
méstica e passaram a conformar-se com o fim da escravidão.
O subtexto da análise, decididamente espacial, de Gilberto Freyre sobre a
formação do “homem brasileiro” contém reflexões sobre um modo de interpre-
tação histórica que ainda está por ser plenamente desenvolvido, algo que não foi
feito por Freyre nem em seu amplo corpo de trabalho: o estudo de como a vida
cotidiana foi contida por mudanças e limites não apenas espaciais, mas também
temporais. A sociabilidade dentro de casa (em oposição a que se dá na rua), no
que se refere à dinâmica do sobrado, não se configurava apenas pelo modo como
os quartos eram distribuídos, mas também se desenhava pela maneira como eram
iluminados. Freyre ainda descreve como a iluminação pública, anteriormente uma
questão estritamente privada e encontrada exclusivamente nas casas dos mais
 32
abastados, passou a ocupar, também, as ruas. Com isso, os espaços urbanos co-
muns se tornaram verdadeiramente públicos, e chegaram “os primeiros brilhos de
dignidade da rua, outrora tão subalterna que era preciso que a luz das casas parti-
culares e dos nichos dos santos a iluminasse pela mão dos negros escravos ou pela
piedade dos devotos”.1 A diferença entre o que Freyre chama de “privatismo” e o
espírito público (ou virtude pública) havia surgido por causa do fim das restrições
habituais e legais à circulação durante a noite ― e não apenas por causa da nova
presença dos moradores nas ruas das cidades brasileiras.
A ascensão da cultura urbana poderia ocorrer apenas quando as ruas da ci-
dade se tornassem um lugar hospitaleiro, um local de prestígio, segundo Freyre.
Repleta de cadáveres de animais, frutas apodrecidas e de esgoto a céu aberto, a
rua era, anteriormente, um lugar inacessível durante a noite. O “respeito” tinha,
para a rua, uma dimensão especificamente temporal: ele descreve, por exemplo,
as regras que proibiam os senhores de baterem publicamente nos escravos depois
que os sinos da igreja soassem às 9 horas da noite. Implícita na análise espacial
icônica de Freyre, em outras palavras, está a percepção de que a relação entre a
jurisdição pública e a privada, entre o poder público e o privado ― central tanto
para a história urbana quanto para o estudo das sociedades escravocratas e da for-
mação do Estado ― se desenrolou não apenas no espaço, mas também no tempo.
O que aconteceria se tornássemos o tempo urbano, em vez do espaço urbano,
o objeto de nossa análise? Histórias urbanas do Brasil têm habitado na diferença
entre casa e rua, e as histórias mais recentes e críticas têm questionado e complica-
do essas distinções gritantes. Pesquisas fascinantes sobre a efervescência cultural

1 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: Decadência do Patriarchado Rural no Brasil. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1936, p. 18-19.

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O LADO ESCURO DO PODER MUNICIPAL: A MÃO DE OBRA FORÇADA...

nas regiões boêmias da cidade, os trabalhadores portuários radicalizados nos dis-


tritos marítimos, a vida social singular das famosas praias do Rio de Janeiro e os
espaços de resistência e rebelião em praças públicas têm proporcionado uma rica
análise da importância central de disputas pelo espaço urbano para a história social
e política do Brasil, da América Latina, do Mundo Atlântico e, de fato, do chamado
Sul Global. É claro, porém, que, assim como o espaço, o tempo também merece
atenção analítica, visto que delimita dramaticamente a ação e o comportamento de
um modo distinto das já amplamente estudadas disputas pelo território da cidade.
No Rio de Janeiro, no período tratado neste artigo, o tempo funcionava
como um recurso renovável para aqueles que buscavam o abrigo da escuridão e
do descanso de seu trabalho diário, e para as autoridades, em seus esforços para
manter o controle sobre a população crescente e diversificada da cidade. A impo-
sição de um toque de recolher durante certas horas e para determinadas pessoas
condicionou o trabalho diário e as rotinas de lazer dos moradores da cidade que
eram mais vulneráveis socioeconomicamente, lembrando-os diariamente de que
alguns eram mais iguais do que outros.
Se ninguém seguiu a tentativa de Freyre de sistematicamente se debruçar
sobre o ritmo diário da vida urbana e reconhecer a importância analítica da noite
em oposição ao dia, o mesmo não ocorreu com a narrativa de modernização que
também fundamenta amplamente o seu trabalho. Os poucos que trataram da ilu-
minação gradual da cidade, que tornou possível a vida pública durante as 24 horas
do dia, a associaram a um avanço tecnológico inevitável que formou um espaço ur-
 33 bano reconhecidamente moderno.2 A análise dos documentos administrativos ―
relativos à iluminação pública no Rio de Janeiro do século XIX ― produzidos pelas
autoridades municipais parece corroborar com essa história familiar e previsível de
modernização e progresso, de moradores que se aventuraram nas ruas, pouco a
pouco, se unindo para formar um público moderno.
Os documentos da polícia, no entanto, proporcionam uma visão diferente.
A cidade do Rio esteve sob o toque de recolher por um período ininterrupto que
durou por mais da metade do século XIX, durante quase todo o Império. Este arti-
go analisa a implementação do toque de recolher, no contexto da história social e
legal das décadas seguintes à implementação dessa medida. O principal foco é o
Edital de 1825, que estabeleceu o chamado “Toque de Aragão” ― a norma munici-
pal no Rio batizada em homenagem ao Intendente de Polícia que ordenou a severa
limitação da liberdade de circulação de pessoas durante a noite, e as reuniões de
determinados grupos de cariocas ―, investigando suas causas e efeitos.
Durante o dia, os visitantes estrangeiros no Rio, nas primeiras décadas do
Império, se valiam de referências sonoras para evocar o clamor urbano, repleto de
grupos de escravos e sua “tagarelice incessante”, que eles muitas vezes contras-
tavam com o silêncio profundo após o dobrar dos sinos das igrejas, que sinalizava
o início do toque de recolher.3 Um visitante inglês, escrevendo na década de 1830,

2 O trabalho clássico que trata da história social da iluminação urbana: SCHIVELBUSCH, Wolfgang.
Disenchanted Night: The Industrialization of Light in the Nineteenth Century. trans. Angela Davies. Berkeley,
CA: University of California Press, 1995. Outros exemplos são: BOONE, Christopher. The Rio de Janeiro
Tramway, Light, and Power Company and the “Modernization” of Rio de Janeiro during the Old Republic.
Toronto: Univ. of Toronto Press, 1995 e FERREIRA, Milton Martins. A evolução da iluminação na cidade do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Synergia; Light, 2009.
3 WALSH, Robert. Notices of Brazil in 1828 and 1829, reproduzido em: CONRAD, Robert E. Children of God’s
Fire: A Documentary History of Black Slavery in Brazil. Princeton: Princeton University Press, 1984, 219; EBEL,
Ernst. O Rio de Janeiro e seus arredores em 1824. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1972, p. 73. Ver em
geral: LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Livros de viagem (1803-1900). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.

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AMY CHAZKEL

observou que os escravos corriam para evitar a violação do toque de recolher das
10 horas da noite, e “ai daquele que fosse flagrado” pela polícia na rua depois
dessa hora. Ele escreve: “Nada poderia ser mais surpreendente para um estranho
do norte... do que encontrar as ruas e os belos bairros da cidade praticamente de-
sabitados e silenciosos como as ruínas de Tebas ou Palmyra”. 4 Tal impressão, no
entanto, não corresponde plenamente à verdade.
Existem poucas ― se é que existem ― narrativas da vida pública cotidiana
depois do escurecer. Apesar do senso comum sobre os espaços públicos “deser-
tos” durante a noite na Corte Imperial, as ruas do Rio evidentemente não estavam
vazias no período da escuridão. A história da vida cotidiana do Rio de Janeiro do
século XIX termina no pôr do sol, mas a documentação a esse respeito, ao que
parece, não. O toque de recolher a que aquele viajante inglês se referia entrou em
vigor logo após a Independência, junto com uma série de decretos policiais e re-
gulamentos municipais que criminalizaram, para a maioria, o ato de estar em qual-
quer espaço público após o dobrar dos sinos das igrejas à noite. Na medida em que
as interdições são um indício do que as pessoas realmente fazem, podemos supor
que, no século XIX, o Rio estava vivo depois do escurecer. Os registros nos arqui-
vos das prisões que tais interdições produziam são vislumbres inestimáveis de um
pequeno e fundamental período na vida pública após o pôr do sol, em um momen-
to anterior à era da famosa vida noturna do Rio de Janeiro ― em outras palavras,
em uma época em que muitos duvidavam da sua própria existência. Além disso,
esses documentos são artefatos fascinantes do exercício diário do poder munici-
pal na sua relação com os trabalhadores da cidade.
O controle do ritmo diário da vida é um exemplo do poder local por excelên-  34
cia; é uma questão cotidiana sem qualquer efeito direto sobre as leis e a jurispru-
dência em nível nacional. Aqueles que exerciam o poder municipal designavam
jurisdições temporais e não apenas espaciais. A mudança legal que ocorria a cada
noite, com o pôr do sol, se deu no contexto de contínuas lutas pelo poder entre a
polícia, os indivíduos (especialmente os proprietários de escravos) e a Coroa. Pres-
tar atenção ao tempo cotidiano pode proporcionar uma nova forma de examinar
a questão crucial de quem ― quais instituições ou indivíduos ― deve decidir, es-
tabelecer e fazer cumprir as normas de moralidade pública e do comportamento
correto.5 As maneiras pelas quais as regras do período noturno foram impostas
têm fortes implicações para a compreensão do poder municipal, não apenas como
o equilíbrio, às vezes tenso, entre a Câmara Municipal e a polícia, mas, além disso,
como o equilíbrio entre os poderes público e privado.6 Os escravos podiam ser
açoitados e encarcerados no Depósito Geral se fossem flagrados nas ruas depois
do anoitecer; senhores de escravos, no entanto, poderiam escrever um bilhete
concedendo-lhes isenção de tal regulamento. O nexo das interdições legais e prá-
ticas de policiamento depois de escurecer criou uma jurisdição muito especial,
que desaparecia ao nascer do sol, mas se renovava todas as noites. Parece claro
que não apenas a escravidão ilegal, mas também a mudança legal ocorrida duran-
te a noite, completa o quadro da paisagem sociolegal e explica a precariedade
da liberdade para a maioria não branca da cidade.7 A designação da noite como

4 HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de Janeiro: Repression and Resistance in a Brazilian City. Stanford, CA:
Stanford University Press, 1993, p. 22-23.
5 Ver: HARTOG, Hendrik. “Pigs and Positivism”. Wisconsin Law Review. Madison, WI. 901, 1985, p. 899-935.
6 ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudos sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro: 1808-1822.
Petrópolis: Vozes, 1988; SCHULTZ, Kirsten. “The Crisis of Empire and the Problem of Slavery: Portugal and
Brazil, c. 1700- c. 1820”. Common Knowledge. Durham, NC: Duke University Press, 11:2, 2005, p. 275-77.
7 CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: Ilegaldade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.

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O LADO ESCURO DO PODER MUNICIPAL: A MÃO DE OBRA FORÇADA...

uma categoria jurídica e, com efeito, uma jurisdição à parte, estava relacionada ao
controle dos trabalhadores e, em particular, à evolução do panorama de trabalho
compulsório na cidade mais populosa e politicamente significativa do Brasil recém-
independente.
Uma regra aparentemente excêntrica e arcaica como a criminalização de es-
tar nas ruas depois do anoitecer parece fazer tanto sentido quanto a sua eventual
extinção, à medida que a cidade se modernizava e se livrava do duplo anacronismo
da escravidão e da monarquia. Por causa das tensões sociais inerentes a uma cida-
de de trabalhadores escravizados, e da violência necessária para governá-la, o po-
liciamento tirânico parece ser uma característica orgânica da paisagem urbana. A
história geralmente contada sobre o policiamento da cidade enfoca estreitamente
a questão da ordem e da desordem social urbana e o controle de escravos, e da mi-
tigação de potenciais revoltas pela instituição policial, então em desenvolvimento.
Este artigo se une a uma útil conversa iniciada pelos historiadores que começaram
a investigar o que existe para além da importante, mas já familiar, história do con-
trole social e do policiamento draconiano. Esses trabalhos recentes procuram não
apenas identificar, mas perscrutar o poder oficial para entender seu funcionamen-
to no nível municipal e obter uma visão mais concreta de como a lei age sobre a
cultura e a sociedade.8 Da mesma maneira, o que emerge dos registros arquivísti-
cos produzidos pelo Toque de Aragão é uma história de repressão, e os documen-
tos mostram claramente a presunção racista de culpabilidade de qualquer pessoa
afrodescendente. Mas essa história é mais do que apenas outro exemplo do Es-
tado autoritário esmagando o povo, e a criminalização de estar na rua depois de
 35 anoitecer vai além da questão de desigualdade social. Em vez de ser uma relíquia
do Antigo Regime, foi uma prática antiga, mas também uma novidade do século
XIX, que virou lei na esteira de uma crise de mão de obra urbana.
O toque de recolher diferenciava abertamente as classes sociais e só era
aplicado aos escravos, aos que pudessem ser confundidos com escravos, como as
pessoas livres de ascendência africana e, algumas vezes, aos estrangeiros. Os mais
abastados e de pele mais clara foram explicitamente isentos.
Todas as pessoas não escravas nascidas no Brasil, independente da sua con-
dição jurídica ao nascer (livres ou não), de acordo com a primeira Constituição do
Brasil independente (ratificada em 1824) eram cidadãos a quem a igualdade era
garantida perante a lei. É interessante notar, contudo, que, embora todos fossem
capazes de exercer muitos desses direitos políticos e civis livremente, independen-
temente da sua etnia, no tangente à liberdade de ir e vir e ao uso da cidade, houve
uma divisão racial gritante.9 O toque de recolher não apenas discriminava as pessoas
de acordo com a cor da sua pele, mas também exigia que a polícia o fizesse. Depois de
escurecer, o regime legal mudava sutil, mas significativamente; o Rio se tornou uma
cidade de não cidadãos em estado de emergência sob o domínio da polícia.10

8 SOUZA, Juliana Teixeira. “A autoridade municipal na Corte Imperial: Enfrentamentos e negociações na


regulação do comércio de gêneros (1840-1889)”. PhD diss. Universidade Estadual de Campinas, 2007;
ABREU, Martha. O Império do divino: Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. São
Paulo: Editora Nova Fronteira, 1999, cap. 3.
9 Este é mostrado dramaticamente na historiografia atual sobre a prática da re-escravização ilegal no Brasil
dos Oitocentos. Ver principalmente: CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: Ilegaldade e costume no
Brasil oitocentista. Op. cit. A questão da liberdade de ir e vir e da associação nos espaços públicos da cidade
lembra o conceito do “direitos públicos” desenvolvido na obra da Rebecca Scott; ver: SCOTT, Rebecca.
“Public Rights, Social Equality, and the Conceptual Roots of the Plessy Challenge”, Michigan Law Review.
Ann Arbor. v. 106, p. 777-804, 2009; e SCOTT, Rebecca; HEBRARD. Jean M. Freedom Papers: An Atlantic
Odyssey in the Age of Emancipation. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2012.
10 Para uma comparação instrutiva, ver: SPIELER, Miranda Frances. Empire and Underworld: Captivity in
French Guiana. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2012, p. 8-16.

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AMY CHAZKEL

Até mesmo os homens e mulheres cuja circulação noturna na cidade era li-
mitada pelo toque de recolher, tomavam as ruas constantemente após o anoite-
cer. Durante todo esse período, temos os registros policiais de pessoas que foram
presas depois de escurecer, “fora de horas”, para usar a linguagem corriqueira
dos policiais. É bastante claro que os regulamentos e editais destinados a reduzir
a socialização pública e a circulação de pessoal depois de escurecer não conseguiu
fazê-lo, ainda que essas leis certamente tenham tido outros efeitos.11
Curiosamente, o toque de recolher não parece ter gerado muita controvérsia.
Ele foi discutido ocasionalmente e com naturalidade em jornais e, mais tarde, na
literatura folclórica. Aparece em trabalhos de ficção ambientados no início do Im-
pério, servindo para destacar o quão diferente era a vida diária no passado. Juristas
e ensaístas políticos do início e de meados do período imperial, que escreveram
abundantemente sobre uma infinidade de outros assuntos ― da punição corporal
ao habeas corpus para o direito marítimo ― não se preocuparam com o toque de
recolher noturno. Essa marginalidade teórica em si é reveladora. A escassez de es-
crita jurídica, abordando diretamente o toque de recolher também significa que,
para estudar a sua imposição e os seus efeitos, é preciso contar com os registros de
prisões, e não muito mais que isso. Há certamente outras histórias a serem conta-
das sobre a vida depois do escurecer no Rio do século XIX, mas a história social e le-
gal do toque de recolher fornece um começo promissor para a compreensão desse
mundo ainda desconhecido. Os registros policiais indicam simultaneamente alguns
dos tipos de trabalho e lazer noturnos em que cariocas do século XIX se envolviam
e revelam a criação da noite como uma categoria sociojurídica. Com isso, podemos
capturar o processo de um “sistema social e cultural se definindo”. 12  36
Este artigo deixa para futuros estudos a importante tarefa de reconstruir
a história da sociabilidade pública e talvez, além de tudo, o trabalho que se fazia
depois do pôr do sol a despeito da interdição criminal de estar na rua depois do
toque de recolher. É impossível, porém, considerar estes aspetos da vida noturna
da cidade ― os batuques, os encontros religiosos e cívicos clandestinos, o povo
que circulava indo e vindo das tavernas até de madrugada, e eventualmente (de
meados do século em adiante) as sessões noturnas do teatro e os cafés-concertos,
as regatas que saiam à meia-noite ― sem parar primeiro para considerar o fato de
que, durante todo este tempo, estar no espaço público depois de anoitecer era
oficialmente um crime.

O que a lei enxergava no escuro, 1825-1878


Formas pré-modernas de iluminação pública eram caras, fracas e dependiam
completamente da iniciativa particular. Quando a sede do vice-reino do Brasil se
mudou de Salvador para o Rio, em 1763, a iluminação pública não existia no país,
em lugar nenhum. Os únicos vislumbres de luz após o pôr do sol vinham de lanter-
nas penduradas na frente de edifícios religiosos, candelabros, lanternas a óleo de
baleia ou velas de cera. Chamas em nichos e altares nas paredes de algumas esqui-
nas ou em fachadas de edifícios deixavam que os devotos rezassem até que os vi-

11 Os exemplos são muitos; veja Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ), códice 40.3.78, folha 2.
(Ofício, 18 de junho de 1836); Arquivo Nacional (AN), Polícia da Côrte, Códice 327, v.1 and 2; AN, Polícia da
Côrte, Códice 330, v.6 and 7. Incidentes de prisões por estar nas ruas após o horário também são citados
em CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: Ilegaldade e costume no Brasil oitocentista. Op. cit., p. 432.
12 MUIR, Edward; RUGGIERO, Guido. History from Crime: Selections from Quaderni Storici. trans. Corrada
Biazzo Curry, Margaret A. Galucci, Mary M. Galucci. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1994, p. 226.

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O LADO ESCURO DO PODER MUNICIPAL: A MÃO DE OBRA FORÇADA...

gias noturnos fizessem suas rondas. Os moradores da cidade fechavam-se dentro


de casa. Ruas estreitas eram perigosamente escuras. Residentes que precisavam
se mobilizar pela cidade de noite usavam o luar ou sua própria lanterna.
Como parte dos melhoramentos do final do século XVIII na capital do vice-
-reino, a iluminação pública foi introduzida; as primeiras cem lâmpadas de azeite
de peixe foram colocadas nas ruas centrais às custas do Estado, e ficavam acesas
quando a lua não estava cheia. No início da década de 1850, o município firmou um
contrato com uma empresa particular para a instalação de lâmpadas iluminadas a
gás, colocadas nas áreas centrais da cidade.13 Enquanto o Rio noturno se iluminava
gradualmente, durante as primeiras décadas depois da Independência, a questão
da iluminação pública surgia repetidamente na correspondência administrativa en-
tre as forças policiais e o governo municipal como um assunto da maior gravidade
para a segurança e a “tranquilidade” públicas, para citar a linguagem que frequen-
temente aparece nos documentos.14 O número exato e a localização das lanternas,
quem financiava e assumia a responsabilidade pela sua instalação, e a rapidez e
eficiência dela eram temas debatidos, mas o desejo de iluminar as ruas da cidade
parece ter gerado pouca controvérsia. Também parece claro que a iluminação pú-
blica havia se tornado, ao menos por volta de 1840, uma questão para a polícia.15
A noite é definida nos textos jurídicos como o período entre o pôr e o nascer
do sol. O momento em que a noite oficialmente começa e exatamente o que o
escuro devia significar variava muito na tradição jurídica ocidental, mas um regi-
me diferente sempre começava depois da escuridão. As leis visigótica e ibérica
 37 medieval, fontes para a lei ibero-americana, determinavam uma diferença entre
alguns crimes que se cometiam depois do pôr do sol, para os quais os acusados
recebiam castigos mais severos do que os mesmos crimes cometidos durante o
dia, chegando até mesmo a serem avaliados de acordo com uma jurisdição separa-
da.16 Na jurisprudência inglesa, que é frequentemente citada nos escritos jurídicos
portugueses e brasileiros, a noite começa “depois do pôr do sol e cessa quando há
luz do sol suficiente para discernir o semblante de um homem”.17 As Ordenações
Filipinas, (o código português do século XVI em efeito antes do Código Criminal
de 1830) prestam muita atenção à noite; as Ordenações mandam tocar o sino de
recolher ― o que, é importante notar, refere-se não ao horário do dia, mas à ne-
cessidade de permanecer em casa ― indicando o tempo em que devem tocar e
precisamente a que horas.18
Formalmente, as forças policiais profissionalizadas não existiam, seja de dia
ou de noite, até o século XIX, mas o patrulhamento noturno tem raízes profundas
na história ibero-americana. Na Europa medieval, guardas, “notáveis armados”,
se mantinham atentos aos portões da cidade durante o dia. À noite, guardas de-
sarmados faziam patrulha, atentos a incêndios, intrusos e outros perigos. Esse foi,

13 Centro Cultural da Light, “A iluminação no Rio de Janeiro,” ms.


14 Ver: AGCRJ, códices 8.4.57, 8.4.58, e 47.3.30.
15 Ver, por exemplo: AGCRJ, códice 8.4.58, folha 49; AGCRJ, códice 8.4.58, folha 70; AGCRJ, códice 8.4.57,
folha 3; AGCRJ, códice 8.4.57, folhas 27-29.
16 VERDON, Jean. Night in the Middle Ages. Trans. George Holoch. Notre Dame, Indiana: University of Notre
Dame Press, 2002, p. 100.
17 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1982 (1950), pp. 203-
205; SHUMAKER, Walter A.; LONGDORF, George Foster. The Cyclopedic Law Dictionary, 3. ed. Chicago:
Callaghan and Company, 1940, p. 753.
18 Ordenações e Leis do Reino de Portugal, Tomo 1, Título 65, par. 13 and 14. Ver também: BARRETO FILHO,
João Paulo de Mello; LIMA, Hermeto. História da polícia do Rio de Janeiro: Aspectos da cidade e da vida
carioca. Rio de Janeiro: Editora A Noite, 1939, p. 33, 36.

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por vezes, um projeto de trabalho compulsório para o qual os privilegiados po-


diam “comprar substitutos”. As Ordenações Filipinas também estipulavam as re-
gras para o recrutamento e para o controle das patrulhas noturnas, os chamados
quadrilhas e quadrilheiros. Os homens estavam sujeitos ao recrutamento forçado
para fazer parte da força de segurança pública em Lisboa e em outras grandes
cidades, cuja principal vantagem para o recruta era o fato de ser permitido a ele
estar fora de casa durante a noite, sem precisar se submeter a qualquer pergun-
ta.19 No Rio de Janeiro, o primeiro policiamento noturno, que incluiu não apenas
quadrilheiros, mas também capitães do mato, encarregados de capturar escravos
fugidos nas áreas em torno das cidades, consistiu, na verdade, de caçadores de
recompensas empregados por proprietários de escravos e pelo governo municipal
durante a era colonial.20
No Rio do início do século XIX, as restrições ao ir e vir depois de escurecer
vinham da tradição portuguesa, mas essa história é inseparável da prevalência de
escravos, cuja população foi estimada em 46% dos moradores do Rio em 1821.21 A
Constituição de 1824 estabeleceu a liberdade de associação e igualdade perante
a lei, mas também manteve os direitos de propriedade dos senhores de escravos
e não deu nem direitos, nem o status de “pessoa” legal para os escravos no terri-
tório brasileiro. A constituição tampouco providenciou regras explícitas para lidar
com escravos, e o Brasil nunca adotou um código específico para eles (um “Code
Noir” como nos domínios coloniais franceses), levando a um equilíbrio frágil entre
a jurisdição particular dos proprietários e a lei criminal para “controlar” os escra-
vos. A polícia, a Câmara Municipal e os senhores de escravos trabalhavam juntos
— embora frequentemente em desacordo — para controlar escravos nos espaços  38
públicos do Rio. O toque de recolher em si não entrou no Código Criminal de 1830,
que valeu durante todo o Império, mas a noite, sim. No Código Criminal, a noite é
uma “circunstância agravante”: entrar na casa alheia de noite levava a uma pena
de prisão duas vezes maior do que de dia.22 Porém, a antiga distinção entre o dia
e a noite apareceu no policiamento e na prática judicial pós-Independência como
um destes meios de controle. Estar na rua depois do toque de recolher foi um
dos crimes relativamente leves que preocupavam a polícia, mas não constavam
no Código Criminal de 1830; essa infração caía em uma ampla categoria de ativi-
dades (como a jogatina e a capoeira) que foram deixadas aos cuidados de uma
combinação de regulamentos locais por um lado, e uma tradição vaga que agia no
interesse de “ordem e tranquilidade pública” por outro.23
A regulação do tempo diurno no início do período imperial, e em particular
as horas de trabalho, precisa ser entendida em conexão com a relação particular
entre a polícia, o governo da cidade, representado pela Câmara Municipal, e os
indivíduos privados que exerciam sua autoridade sobre os escravizados. As primei-
ras leis referentes ao trabalho, e em particular as duas leis de contratos de “Loca-
ção de Serviços” de 1830 e 1837 não faziam referência alguma às horas de trabalho,
deixando implicitamente a questão sobre quando e por quanto tempo o trabalho
iria acontecer inteiramente nas mãos da relação privilegiada entre empregadores

19 Sobre o final do século XIX e o início do século XX, ver: BRETAS, Marcos Luiz. Guerra das ruas: Povo e polícia
na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, n.17, cap. 3, 1997, p. 59.
20 BARRETO FILHO, João Paulo de Mello; LIMA, Hermeto. História da polícia do Rio de Janeiro: Aspectos da
cidade e da vida carioca. Op. cit., p. 36.
21 KARASCH, Mary. Slave Life in Rio de Janeiro, 1808-1850. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1987, p. 60.
22 Lei de 16 de dezembro de 1830. Código Criminal do Império do Brasil. cap. III, Secção 1, artigo 16; secção VI,
artigo 211. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm
23 HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de Janeiro: Repression and Resistance in a Brazilian City. Op. cit., p. 61.

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e empregados. Na lei de 13 de setembro de 1830 (“Lei de Locação de Serviços”),


que definia obrigações de serviço e punia trabalhadores que não as cumprissem,
a definição das horas de trabalho estava incluída na categoria genérica de “todas
as outras condições do contrato”, a serem definidas fora do alcance do estado.24
As autoridades administrativas do Rio ― e principalmente a Câmara Municipal ―
também não deram muita atenção ao tempo do dia, tratando desse assunto ape-
nas de modo periférico. O Código de Posturas Municipais, em 1838, não estipulava
um toque de recolher e não continha mais do que regras esparsas e pouco estritas
― além de frequentemente desrespeitadas ― sobre as horas de funcionamento
do comércio.25 Durante o mesmo período, entretanto, a Intendência de Polícia pas-
sou a responsabilizar-se por um leque amplo de responsabilidades administrativas,
incluindo a supervisão de obras públicas, o controle sobre a pequena criminalidade
e o policiamento dos escravos, entre outras tarefas do gênero. O desejo do Estado
de tornar a cidade mais ordeira e adequada ao papel de sede do império português
levou as autoridades a tentar impor um maior controle sobre a instituição que cos-
tumava manter-se sob a jurisdição privada. Isso levou os representantes do poder
público a entrar em conflito com os proprietários de escravos.26 Assim, em suma, o
tempo diário era uma frente importante na luta diária pelo controle social, mas foi
basicamente deixado de fora das Posturas Municipais e dos regulamentos sobre
o trabalho diurno. Assim, se havia algum tipo de regulação, esta era uma questão
para a polícia, bem como para o sistema paternalista de controle social operado
pelos proprietários de escravos.
 39 Numa cidade atordoada pela última década e meia de mudanças políticas e
demográficas da época da Independência, e sobretudo uma cidade onde mais ou
menos a metade dos residentes eram propriedade da outra metade, não é nem
um pouco surpreendente que o assunto de “tranquilidade pública” fosse cons-
tantemente levantado. Lendo a torrente diária de ofícios e outros documentos
que fluíam da Intendência Geral da Polícia da Corte, fica clara a ampla variedade
de temores que tal instituição policial, ainda em formação e em fluxo, enfrentava.
Naturalmente, o medo da “desordem pública” foi dominado pelos escravos (mas
não limitado a eles), que percorriam a cidade durante o trabalho cotidiano. Logo
depois de assumir sua posição como o sexto Intendente de Polícia da Corte, o fi-
dalgo lisboeta e jurista Francisco Alberto Teixeira de Aragão escreveu para os seus
colegas na Corte Imperial e nas outras cidades sobre os perigos das “sociedades
ilícitas”, dos estrangeiros que existiam em abundância, andando pelas ruas sem
documentação alguma, e das mais variadas ameaças à segurança geral.27 Aragão,
como autoridade máxima da polícia, introduziu várias medidas que estabeleceram
na Corte uma força policial centralizada e poderosa cujo funcionamento se dava
vinte e quatro horas por dia.28

24 Coleção das Leis do Império do Brazil, 1830. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1876, p. 31.
25 Código de Posturas Municipais. Seção 1—saude pública; seção 2—polícia. Ver: ABREU, Martha. O Império do
Divino, p. 193-97.
26 SCHULTZ, Kirsten. “The Crisis of Empire and the Problem of Slavery”. Op. cit., p. 276-77.
27 Ver por exemplo AN, Seção de Guarda SDE 001, códice 325, v. 4; AN, GIFI, Caixa 6J 80.
28 Em um documento comprido reorganizando a força policial carioca (Intendência Geral da Polícia) e
criando comissários e cabos para trabalharem sob o Intendente, em novembro de 1825, Aragão afirmou
o policiamento profissional contínuo da cidade ao longo dos 24 horas do dia: “Toda a pessoa, seja de que
condição for, poderá recorrer dos Comissários e Cabos da Polícia a qualquer hora do dia, ou da noite,
para requerer a manutenção da sua probidade, segurança individual ou familiar e para reprimir todos
aquelles factos que sendo legalmente prohibidos lhe podem ser prejudiciais por alguma maneira”; AN,
Fundo: Polícia da Côrte, códice 332, folhas 2-3.

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Um dos primeiros problemas que Aragão enfrentou nos seus primeiros me-
ses como Intendente da Polícia no Rio foi um debate furioso sobre o recrutamento
forçado de escravos para trabalharem nas obras públicas e a necessidade deses-
perada de mais mão de obra para acompanhar a crescente necessidade de infraes-
trutura. Parece que os escravos, que de fato eram ganhadores fazendo o trabalho
determinado por seus senhores, estavam sendo “apanhados” das praças públicas
e colocados para fazer trabalho compulsório, construindo fortificações para a ci-
dade. Senhores de escravos e, em alguns casos, oficiais da polícia, expressavam
horror em relação às supostas violências contra o direito de propriedade, enquan-
to as autoridades municipais se preocupavam em terminar os muitos projetos de
obras não completados pela cidade sem a disponibilidade da mão de obra neces-
sária. Os requerimentos e as portarias sobre esse assunto saindo do gabinete do
próprio Aragão eram cada vez mais conturbados nos meses finais de 1824.29
Imediatamente depois dessa controvérsia sobre como conseguir trabalha-
dores para as obras públicas sem ameaçar a ordem escravista, em um dos seus
primeiros atos como intendente, Aragão emitiu novos regulamentos policiais num
edital datado de janeiro de 1825. Esse edital determinava que qualquer pessoa,
fosse escravo ou livre, que fosse parada “por qualquer ronda”, teria que ser sub-
metida à interrogação. Resistir era automaticamente considerado um ato crimino-
so (“importa uma resistência”), e “será até empregada a força, ser for necessário,
àquele que se insurgir”. A provisão central no edital de 1825 estabeleceu o que
logo passaria a ser conhecido como o “toque de Aragão”: pela lei às 10 horas no
verão e às 9 horas no inverno começava a hora de se recolher dentro de casa; ron-
das tinham o direito absoluto de fazer revistas a qualquer pessoa que estivesse  40
na rua depois do famoso “Toque de Aragão”, para verificar se a pessoa carregava
qualquer instrumento que pudesse ser usado em um crime. Os sinos da igreja de
São Francisco de Paula e do convento de São Bento tocavam por meia hora para
anunciar o momento de recolha a todos e excluir a possibilidade que alguém pu-
desse alegar que não soubesse da hora.30
Ironicamente, era exatamente quando não se podia mais enxergar o rosto
de uma pessoa ― parafraseando a definição legal da noite — que os policiais ga-
nhavam poderes fortalecidos (e principalmente extralegais) para prender pesso-
as. O “Toque de Aragão” fazia parte de uma tendência de policiamento no Rio
durante o primeiro século pós-Independência, um padrão emergente que dava
cada vez mais autoridade aos policiais quando tratavam dos crimes e contraven-
ções mais comuns, como a vadiagem e o sair “fora de horas”, efetivamente dando
aos representantes da Justiça nas ruas o papel de policial, juiz e júri, de uma só vez.
A regra para a aplicação dessa nova lei exigia que não se abusassem dela, nem a
aplicassem a “pessoas notoriamente conhecidas e de probidade”; a lei era feita
explicitamente para ser aplicada seletivamente, de acordo com a classe social e as

29 AN, Polícia da Côrte, Códice 323, v. 8; AN, Polícia da Côrte, Códice 327, v.1 e 2. Os esforços constantes para
obter mão de obra forçada para as obras públicas na Corte Imperial, além da historiografia volumosa
sobre os africanos livres, são bastante documentados. Além dos outros documentos aqui citados, ver:
AGCRJ, códice 6.1.25, folha 14.
30 BARRETO FILHO, João Paulo de Mello; LIMA, Hermeto. História da polícia do Rio de Janeiro: Aspectos da
cidade e da vida carioca. Op. cit., p. 288-89. José Vieira Fazenda consta que o convento de Santa Teresa
também tocava um aviso cada noite 20 minutos antes do sino de recolher, como um gesto de “piedade” para
os escravos, que não teriam tempo de ir correndo para casa e evitar o castigo que recebiam por estarem
nas ruas “fora de horas”; citado em: Idem, Ibidem, p. 289. Ver também: HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de
Janeiro: Repression and Resistance in a Brazilian City. Op. cit., p. 46-47; BRANCO, Zoraia Saint’Claire. “Estórias
da Polícia do Rio de Janeiro”. Cadernos de Segurança Pública. Rio de Janeiro. 1:0, 2009, p. 3.

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desigualdades raciais da época.31 José Vieira Fazenda, no seu conto nostálgico do


Toque de Aragão, lembra que “era o sinal de correr ou de recolher, e o negrinho
que andasse na rua desta hora em diante, sem bilhete de seu senhor, ser engalfi-
nhado no xadrez ou no calabouço e chegavam-lhe a roupa ao pelo”.32
A ordem de Aragão mostrava como a noite podia fazer ruir a diferença entre
escravo e livre. Dependendo das circunstâncias, entretanto, o novo regime jurídi-
co que começava com o pôr do sol também podia alargar essa diferença. Depois
do sino de recolher, tornava-se ilegal assobiar nas ruas ou fazer qualquer coisa
que pudesse ser encarada como um sinal. Essa proibição aplicava-se “aos negros
e gente de cor a qualquer hora depois de escuro, mesmo que fosse antes do sino
de recolher.” Um escravo nas ruas fora de horas “em qualquer loja, taverna, bote-
quim ou casa de tavolagem” podia ser mandado para o Calabouço e estar sujeito
a açoites; pessoas não escravas eram obrigadas a pagar uma multa.33 O edital tam-
bém tinha como alvo pequenos negócios nos quais as pessoas se reuniam depois
do horário de trabalho, sugerindo que o tipo de pessoa que estaria sujeito a tal
toque de recolher, de fato, era cliente de lugares como tabernas no Rio do início
do século XIX, apesar da escuridão extrema e de ruas supostamente inóspitas. De
acordo com o historiador Thomas Holloway, em sua obra clássica sobre a polícia
do Rio de Janeiro,

as instruções de Aragão, centrando-se no toque de recolher e nos locais


de entretenimento público e interação social tanto para os escravos
quanto para os não-escravos de classes mais baixas, colocavam as dis-

 41
posições de direitos civis da constituição em um contexto mais realista.
“A lei será a mesma para todos” acabou por ser uma declaração entu-
siasmada desde o princípio, tendo pouco a ver com a vida nas ruas.

Em parte, o tratamento desigual de pessoas diferentes depois de escurecer


deriva do fato de que os escravos não tinham personalidade jurídica, mas eram
propriedade de alguém, e a sua fuga foi uma das preocupações centrais da polícia
do Rio de Janeiro. Os negros livres, no entanto, encontravam o mesmo problema
que os escravos, assim como os pobres em geral. Para citar Holloway novamente:
“... as pessoas de ‘integridade’ foram poupadas das restrições do toque de reco-
lher” e da indignidade das revistas corporais”.34 O regulamento levou à suposição
patentemente falsa de que a polícia poderia reconhecer visualmente quem era es-
cravo e quem não era.
Quando o “Toque de Aragão” foi implementado, esse regulamento ostensi-
vamente deixava as atividades normais ocorrerem do jeito como sempre ocorriam;
ainda que fosse contra a lei estar nas ruas à noite, o comércio diurno andava como
era preciso nessa cidade portuária em expansão. Além de limitar os movimentos de
algumas pessoas depois de escuro, o Toque de Aragão literalmente transformava a
vida material. Como Sandra Lauderdale Graham explica, depois de anoitecer

os escravos carregavam cartas escritas pelos senhores para explicar


sua presença na rua e os cortiços trancavam os seus portões contra
escravos fugidos e desordeiros, mantendo os seus residentes no lado

31 HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de Janeiro: Repression and Resistance in a Brazilian City. Op. cit., p. 46.
32 Citado em BARRETO FILHO, João Paulo de Mello; LIMA, Hermeto. História da polícia do Rio de Janeiro:
Aspectos da cidade e da vida carioca. Op. cit., p. 289.
33 HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de Janeiro: Repression and Resistance in a Brazilian City. Op. cit., pp. 46-
47. Sobre a dificuldade em determinar quem era escravo e as mudanças na prática jurídica de quem teve
o ônus da prova nesse respeito, ver: CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: Ilegaldade e costume no
Brasil oitocentista. Op. cit., cáp. 9.
34 HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de Janeiro: Repression and Resistance in a Brazilian City. Op. cit., p. 47-48.

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de dentro. As ferramentas que um artesão carregava diariamente sem


problema nenhum, durante as horas úteis do dia, viravam armas depois
do sino vespertino da “Ave Maria” e eram proibidas.35

O fato de ela mencionar as horas úteis aqui é significativo: o Toque de Aragão


dizia respeito à imposição de restrições a certas liberdades sem prejudicar a eco-
nomia urbana. Não era somente um medo da “rua” que inspirava essas restrições,
como sugere Lauderdale Graham; foi a maneira com que os oficiais administravam
a diferença entre o dia e a noite, considerando o seu medo do caos potencial na
vida pública urbana e não perdendo de vista, também, o jogo de interesses econô-
micos. O trabalho diurno e o recolhimento noturno funcionavam juntos.

Fora de horas
Em abril de 1829, o Intendente Geral da Polícia da Corte mandou uma carta
ao Inspetor do Arsenal da Marinha. Essa carta avisava que haviam sido presos oito
homens, todos marinheiros, que “andavam fazendo desordens” e, além do mais,
estavam “fora de horas”. Em nome do interesse da “tranquilidade pública” e do
bom policiamento, foram todos mandados para o trabalho que o inspetor achava
conveniente.36 Quatro anos mais tarde, em 1833, e também na cidade do Rio, o Juiz
do Crime do Bairro de São José relatou à Inspetoria Geral da Polícia que “o preto
João Braga, que diz ser forro e espanhol”, foi preso “por ser encontrado a uma
hora da noite por um pedestre”.37
Nesses dois casos, e em outros tantos semelhantes encontrados nos arqui-  42
vos da polícia e Justiça do início do Império, os policiais do Rio nos anos de 1820,
30, e 40 varriam pessoas das ruas da Corte Imperial e as mandavam à cadeia, sujei-
tavam-nas a açoites (no caso dos escravos) e, além de tudo, as enviavam ao traba-
lho compulsório nas várias obras públicas na Corte, para a construção de estradas,
a limpeza das praças, a construção e o conserto das fortificações da cidade. O cri-
me pelo qual essas pessoas foram presas era antigo, mas estava aparecendo nas
ocorrências policiais das décadas de 1820, 30, e 40 em um contexto e uma forma
muito novos: “andar na rua fora de horas”, na linguagem da época.
O famoso Toque de Aragão iniciou um período contínuo de cinquenta e três
anos durante os quais o anoitecer ativava um estado de exceção no funcionamen-
to normal da Justiça, o que em princípio previa um estado de direito, apesar da
identificação persistente entre as funções de polícia e Justiça. Outros regulamen-
tos subsequentes alteraram ou refinaram o edital de 1825. Em 1831, o toque de
recolher foi renovado por causa do que se considerou ser uma onda de crimes. A
partir de então, ele começaria ao pôr do sol (por volta de 18h30), em vez das 9 ou
10 horas, e se aplicava somente aos escravos e marinheiros. Naquele ano, das 224
pessoas presas entre o final de maio e o início de junho, 34 o foram por estar fora
de horas (14 marinheiros e 20 escravos), 35 por vadiagem e 25 por estarem com
armas ilegais, as duas outras categorias mais comuns. Apesar do nervosismo da
polícia na década de 1830, muitos eventos noturnos nos espaços públicos do Rio
eram povoados por escravos, pessoas livres de cor, e outros que seriam sujeitos

35 LAUDERDALE GRAHAM, Sandra. “Making the Private Public: A Brazilian Perspective”. Journal of Women’s
History. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press, 15:1, 2003, p. 28-42.
36 AN. Fundo: Polícia da Côrte, Códice 330, v. 6.
37 AN. Fundo: Polícia da Côrte, Códice 330, v. 7. Essa história é mais complexa ainda; ele foi encontrado com
três chapéus e algumas roupas, dizendo que pertencia ao seu senhor, mas a polícia disse descobrir que
foram roubadas. A resolução do caso não aparece nesse códice.

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ao toque de recolher. Se esses eventos atraíam um grande número de pessoas ou


se a polícia achava que os participantes estavam em desordem, ou quando ocor-
riam depois do toque de recolher, os soldados da polícia dispersavam o grupo, e
de acordo com o edital de 1825, prendiam qualquer pessoa que resistisse. Novas
regras policiais, que foram emitidas em 1858 e buscavam profissionalizar e trazer
mais eficiência à força policial, reforçaram a exigência de fechar toda taberna e
botequim às 10 horas da noite, e reafirmaram que qualquer pessoa que fosse en-
contrada na rua “fora de horas” seria presumida criminosa.38
A polícia prendia mais escravos que pessoas livres por estar fora de horas,
mas os dois grupos eram sujeitos ao regulamento, que deu muita margem à polícia
para rondar à noite e administrar a Justiça nas ruas, prendendo pessoas que viola-
vam uma lei que não existia no Código Criminal e que discriminava entre sujeitos
que tinham garantia de igualdade perante a lei. Na pesquisa minuciosa de Thomas
Holloway, usando o arquivo da polícia da Corte (a única pessoa que já estudou esse
fenômeno do toque de recolher, que ele trata em algumas páginas de seu livro
clássico sobre a polícia do Rio), ele descobriu que nenhuma pessoa considerada
portuguesa foi presa por andar “fora de hora”. Ele mostra ainda que “o toque de
recolher se aplicava rotineiramente e quase exclusivamente às pessoas negras e
pardas”.39 Holloway descobriu nos livros de matrícula do Calabouço, em 1857-58,
que 25 dos 288 escravos recolhidos lá por ordem judicial eram presos por estarem
“fora de horas”.40 Nos anos de 1862 e 1865, andar na rua depois do toque de reco-
lher foi o motivo mais comum para ser preso, seguido pela vadiagem. Em ambos
 43 os anos, os presos por estar “fora de horas” compuseram um quarto do total de
pessoas presas.41
Prisões por violações do toque de recolher e por outras infrações que se tor-
navam mais graves por acontecerem à noite aparecem espalhadas aleatoriamente
em toda a documentação da polícia durante o período em que o toque de recolher
vigorou. Embora esses casos sejam muito esparsos para permitir uma generaliza-
ção sobre as circunstâncias em que a polícia tendia a efetuar as prisões, eles forne-
cem evidências do que estava em jogo para a polícia, ao parar e deter indivíduos
encontrados nas ruas depois do anoitecer, e oferecem algumas dicas sobre a dinâ-
mica de poder que governava o mundo noturno do Rio de Janeiro.
A ordem jurídica que entrava em vigor a cada noite depois do pôr do sol
deve ser entendida no contexto da relação melindrosa entre os poderes público
e privado que caracterizava esta época. De certo modo, a maneira como a polícia
seletivamente aplicava o toque de recolher reafirmava a jurisdição privada dos se-
nhores sobre seus bens humanos, tendendo, por exemplo, a conceder exceções
para indivíduos escravizados, normalmente trancados dentro de casa depois do
anoitecer, para atravessarem as ruas com a permissão de seus donos. Donos de
escravos parecem ter frequentemente ignorado o toque de recolher, enviando
trabalhadores escravizados às ruas à noite, certas vezes, ao que parece, intencio-
nalmente em busca da proteção da escuridão. Em várias ocasiões, nos registros
municipais de 1842, por exemplo, os escravos foram detidos e os seus senhores
multados por despejo ilegal de lixo nas ruas (“deitar um pouco de sisco à praia”),

38 HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de Janeiro: Repression and Resistance in a Brazilian City. Op. cit., p. 79, 161, 191.
39 HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de Janeiro: Repression and Resistance in a Brazilian City. Op. cit., p. 198
40 Idem, Ibidem. “O Calabouço e o Aljube do Rio de Janeiro no século XIX”. In: MAIA, Clarissa Nunes; NETO, Flávio de
Sá; COSTA, Marcos; BRETAS, Marcos Luiz. História das prisões no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, v. 1, p. 260-61.
41 HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de Janeiro: Repression and Resistance in a Brazilian City. Op. cit., p. 201.

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após os sinos noturnos da igreja.42 A aplicação extraordinariamente seletiva do to-


que de recolher parece ter permitido alguma negociação; aqueles cujos escravos
foram presos por estarem fora após horas, vez por outra contestavam a multa,
não negando que haviam violado o toque de recolher, mas simplesmente implo-
rando por clemência. Nesse mesmo ano de 1842, uma mulher escrava chamada
Ermelinda foi presa por estar na rua depois do horário e, tornando a situação ain-
da pior, jogando na rua água suja que havia sido usada para lavar os pés. Dona
Maria Ignacia de Negreiros Macedo, sua proprietária, enviou uma carta à Câmara
Municipal implorando que Ermelinda fosse liberada do Depósito Público, “a ser
a Supplicante pobre... e carregada de filhos, tendo seu marido fora em Serviços
Públicos, hajão [por] bem aliviá-la da multa, que sem fundada Justiça lhe querem
fazer sofrer os dos guardas…”.43
O período noturno ressaltava o poder que os senhores tinham de regulamen-
tar o trabalho dos escravizados e de controlar os seus movimentos pela cidade
depois do anoitecer, mesmo a despeito de leis rigorosas destinadas a impedir tal
movimento. Ao mesmo tempo, porém, o toque de recolher deu ao governo muni-
cipal, em seu papel como o protetor do bem público, um poder adicional às custas
dos senhores de escravos. O período noturno como uma categoria sociolegal se
tornou uma parte crucial do desenvolvimento da relação entre o poder público e a
alocação e o tratamento de trabalhadores ― não apenas os trabalhadores escravi-
zados, mas todos os socioeconomicamente vulneráveis e, especialmente, aqueles
que pudessem ser confundidos com os escravos por causa de sua etnia aparente.
Nos anos de 1820 e 1830, a cidade do Rio passou por mudanças dramáticas
que geraram um impacto sobre a questão de como o trabalho seria distribuído e  44
em benefício de quem. Ondas de imigrantes, estrangeiros, exilados e imigrantes
europeus e, especialmente, escravos africanos inundaram a cidade. Tanto a pre-
ocupação com a segurança em meio a uma série de revoltas (nos anos de 1830
para os de 1840) quanto as reivindicações por obras públicas que elevariam o perfil
da nova capital do Império criaram uma premente necessidade por tais projetos
civis, como a construção de fortificações e estradas. A chegada da Corte portu-
guesa em 1808, a abertura dos portos e o aumento vertiginoso da população do
Rio de Janeiro criaram novas demandas de serviço e muitos dos exilados portu-
gueses recém-chegados, incluindo os membros da Corte real, “adotaram a prática
de comprar escravos com o objetivo de alugá-los como trabalhadores em obras
públicas”.44 Pessoas livres já estavam submetidas ao recrutamento militar força-
do, com poucas proteções legais contra as ações arbitrárias de recrutadores e até
mesmo de autoridades que o usavam como uma ferramenta para vinganças pes-
soais.45 É importante lembrar que os que estavam sujeitos a prisões por violações
do toque de recolher e, em seguida, eram usados em trabalhos involuntários não
eram apenas escravos, mas entre os presos e forçados a trabalhar em obras públi-
cas estavam aqueles que caíam nas outras categorias que estavam sujeitas a esse
dispositivo. Com o toque de recolher e a prática frequente de mandar as pessoas
presas no arrastão noturno ao trabalho forçado, o governo municipal utilizou o
regulamento contra o ato de estar nas ruas depois de escurecer para exercer o
poder de atribuição do trabalho, assim como para trazer escravos, que eram ante-
riormente utilizados no trabalho doméstico, para os serviços nas ruas, reparando

42 AGCRJ, códice, 6.1.45, folhas 2 e 5.


43 Ela foi solta do Depósito cinco semanas depois, a multa paga; AGCRJ, códice, 6.1.45, folha 14.
44 SCHULTZ, Kirsten. “The Crisis of Empire and the Problem of Slavery”. Op. cit., p. 274.
45 LOVEMAN, Mara. “Blinded Like a State: The Revolt against Civil Registration in Nineteenth-Century Brazil”.
Comparative Studies in Society and History, Cambridge, UK: Cambridge University Press, 49:1, 2007, p. 27.

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O LADO ESCURO DO PODER MUNICIPAL: A MÃO DE OBRA FORÇADA...

estradas e realizando obras de construção. Tais serviços funcionavam como um


sistema de cobrança compulsória de tributo, no qual o Estado no nível mais local
assumiu o papel de redistribuir a mão de obra. Restrições à liberdade de ir e vir à
noite, portanto, estavam diretamente relacionadas com a redefinição daquilo quer
era considerado público.
A transição para um novo significado do “público” no final do período colo-
nial e no decorrer do século XIX tem sido objeto de muitas pesquisas e estudos. A
imposição do toque de recolher mostra que a nova abordagem do início do Impé-
rio para a vida pública se relacionava ao trabalho urbano, não apenas como uma
mudança do paternalismo para o laissez-faire do liberalismo, como é classicamente
entendido, mas também como uma nova relação entre o Estado e os seus cida-
dãos, envolvendo o poder do Estado para extrair tributo.46
O fluxo de correspondências administrativas entre o gabinete do presidente
da Província e o Comando do Corpo Policial da Província do Rio de Janeiro mostra
a interessante ambiguidade a respeito da responsabilidade pelo toque de recolher
durante o período em que sua vigência chegava ao fim, em 1870-1871. Em agos-
to de 1870, um ofício vindo do Palácio do Governo da Província do Rio de Janei-
ro procurou “um agente de sua confiança” para “fazer o toque de recolher às
10 horas da noite… mediante uma gratificação conveniente…”. Nem os soldados
do corpo da polícia, nem o sacristão da igreja “Matriz d’esta Capital” queriam se
“prestar a esse penoso serviço”. Como sua necessidade parecia menos evidente
para as autoridades, ninguém quis assumir o dever de fiscalizar o toque dos sinos
 45 da igreja. Essa conversa burocrática mundana, mas reveladora, não mostra apenas
a importância minguante do toque de recolher, mas também deixa claras as ques-
tões interessantes sobre quem deveria assumir a responsabilidade de administrar
a diferença entre o dia e a noite.47
Nos anos de 1870, o toque de recolher parece ter se tornado menos eficaz.
Nunca fica muito claro o que uma queda no número de prisões realmente significa,
mas nesse caso parece provável que a diminuição relativa a prisões por violações
do toque de recolher indique uma falta de empenho na aplicação do bloqueio à
noite, em vez de uma diminuição da atividade noturna. O toque de recolher estrito,
ao que parece, começou a enfraquecer. Em julho de 1873, o comandante da Polícia
Militar emitiu um lembrete de que todas as empresas deveriam fechar às 10 horas.
Quando essa ordem foi defrontada com um clamor público, ela foi relaxada um
pouco: às 10 horas como horário de fechamento ainda se aplicavam a “tabernas,
casas onde bebidas alcoólicas ou cerveja eram vendidas, tascas e estabelecimen-
tos similares que podem servir como pontos de encontro de bêbados, vagabundos
e desordeiros”. Mas os novos quiosques da cidade, em estilo europeu, assim como
as confeitarias e os hotéis, foram dispensados e podiam ficar abertos até 1 hora da
madrugada. A diferença, é claro, era de classe; à medida que a vida pública tornou-
-se mais comercializada, o toque de recolher aumentou a diferença de aplicação da
lei, para ricos e pobres. Notadamente, se os estabelecimentos comerciais estavam
agora isentos do toque de recolher às 10 horas da noite, logo seus clientes também
o estavam. Durante essas três horas, das 10 horas da noite a 1 hora de madrugada,

46 GRAHAM, Richard. Feeding the City: From Street Market to Liberal Reform in Salvador, Brazil. 1780-1860.
Austin, TX: University of Texas Press, 2010; VELLASCO, Ivan de Andrade. “Clientelismo, ordem privada e
Estado no Brasil oitocentista: notas para um debate”. In: CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lúcia Maria
Bastos Pereira das (orgs.) Repensando o Brasil dos oitocentos: Cidadania, política, e liberdade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 73-100.
47 AN, PP, notação 0529; AN, PP, notação 0513.

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AMY CHAZKEL

estava inteiramente a critério das patrulhas policiais prender alguém por violar o
toque de recolher tecnicamente ainda em vigor.48 Em 1878, a Câmara Municipal
aprovou uma lei deixando todos os negócios legítimos ficarem abertos até 1 hora
de madrugada. Enfim, o Toque de Aragão foi formalmente revogado alguns meses
depois, ainda em 1878.49
Vale notar que justamente quando o toque de recolher finalmente foi revo-
gado depois daquelas muitas décadas, a cidade do Rio de Janeiro começou a con-
tratar uma força policial particular para vigiar as ruas de noite. A Guarda Noturna
rondava depois do escuro e continuava a tradição do Império do policiamento ar-
bitrário. Agora sem o toque de recolher, o governo municipal controlava o comér-
cio por meio da cessão de licenças; pequenos comerciantes que não conseguiam
tirar uma licença tinham que fechar ― o que muitos faziam ― ou eram forçados a
funcionar clandestinamente (às vezes pagando à polícia), ― o que muitos outros
também faziam.50

A era da luz elétrica, a vida noturna carioca e o


estado de exceção: um epílogo
A iluminação pública se expandiu dramaticamente no final do século XIX; as
lanternas de gás alcançaram a periferia suburbana, ainda iluminada a azeite de
peixe, em 1877. Uma lei de 1879 deu início ao processo de trazer uma nova inven-
ção, a luz elétrica, ao Rio. Em 1933, as últimas lanternas de gás que sobraram nos  46
subúrbios foram substituídas por lâmpadas elétricas, assim terminando a carreira
de quase oitenta anos do acendedor de lâmpada, um tipo popular da rua às vezes
chamado de “profeta” por causa da vara que ele costumava usar para alcançar
as lanternas altas.51 A iconografia popular, assim como a propaganda da empresa
Light do início da época da luz elétrica, dava muita atenção ao desaparecimen-
to dessa figura do século passado, o acendedor, que apareceu retratado como
um escravo descalço e bagunçado, um trabalhador noturno que era o símbolo de
atraso vergonhoso. No lugar do acendedor de lâmpada escravizado, foi colocado
o técnico elétrico profissional, retratado como uma figura decididamente branca,
um homem sorridente cumprindo seu devido trabalho de manutenção durante o
horário útil do dia.52
Os cariocas já começavam a ocupar as ruas para diversão e sociabilidade à
noite até bem antes da revogação, em 1878, do regulamento que havia começado
com o edital de Aragão em 1825. O entretenimento comercial noturno tinha bro-
tado numa escala pequena nos anos de 1860 e as elites começaram a colonizar as
ruas iluminadas a gás. A existência de uma vida noturna comercializada incipiente
nos meados do século é evidenciada pelo pedido ocasional que a Câmara Munici-
pal permitisse que negócios de entretenimento ficassem abertos mais tarde, citan-
do tanto o costume quanto a demanda popular. O dono de um “Caffé Cantante”
no Campo de Santana insistiu, numa carta escrita à Câmara em 1858, que “sendo-

48 HOLLOWAY, Thomas. Policing Rio de Janeiro: Repression and Resistance in a Brazilian City. Op. cit., pp. 257-258.
49 Idem, Ibidem, p. 257-58. Logo depois do fim do toque de recolher, porém, o governo declarou um estado
de sítio e reativou durante a Revolta do Vintem em 1880.
50 AN. Gifi 8N 014; BRETAS, Marcos Luiz. Guerra das ruas: Povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Op. cit.,
p. 54, 59, 60, 84.
51 Centro Cultural da Light, “A iluminação no Rio de Janeiro,” unpubl. ms.
52 Light, ano 2, v.2, número XIV (março de 1929), capa.

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O LADO ESCURO DO PODER MUNICIPAL: A MÃO DE OBRA FORÇADA...

-lhe apenas permitido ter este divertimento até às 10 horas da noite, recebe inúme-
ras reclamações” da clientela que queria “gastar mais tempo, visto como é curta
a hora determinada”. Ele queria oferecer “ao respeitável público, mas exigindo os
distintos e qualificados espectadores que o frequentam, que por mais tempo deve
aquele divertimento, pelo menos até às 11 horas, visto como é curto o espaço que
esse preenche”.53 O deferimento desse tipo de requisição ficou cada vez mais co-
mum no final da década de 1850 e ao longo da década de 1860. A partir da década
de 1880, lâmpadas funcionavam extensamente na zona urbana do Rio, o toque de
recolher não existia mais e o povo podia sair mais facilmente depois de escuro.54
Contudo, vale dizer que a história do estado de exceção noturno não parece
estar vinculada, pelo menos de um jeito simples e direto, às mudanças tecnológi-
cas. Não foi a introdução gradual da luz artificial que mitigou a imposição do toque
de recolher e os estados de sítio que foram impostos mais tarde. A história mais
óbvia, que fala do progresso tecnológico, de fato também aparece aqui: vemos
a crescente capacidade de iluminar os espaços públicos da cidade ― em termos
de financiamento público e também em termos da capacidade de produzir uma
luz cada vez mais forte, barata e menos fedorenta. Mas o aparato jurídico que se
desenvolvia para definir a noite como perigosa não se sincronizava com o ritmo de
mudanças tecnológicas. Em vez disso, o governo municipal impunha essas leis nos
momentos de conflito político ou da percepção de caos social. Regulamentos in-
terditando que os cidadãos andassem na rua depois de uma dita hora passado do
pôr do sol pretendiam limitar ao máximo a liberdade de movimento sem interferir
 47 no funcionamento normal das cidades: ou seja, deixando a distribuição das mer-
cadorias para exportação das regiões agrícolas para a zona portuária da cidade
e aprovisionando os trabalhadores que faziam essas indústrias funcionarem. Um
centro comercial muito ativo como o Rio, que dependia de mão de obra cativa,
cumpria o seu propósito econômico assim: a liberdade de movimento de dia, o
recolhimento total de noite.
Embora não possamos reduzir a motivação por essa lei à necessidade de
mão de obra cativa, o Toque de Aragão também não pode ser entendido separa-
damente desse fenômeno. A medida oficial que o impôs e as leis semelhantes que
se seguiram faziam muito sentido no contexto do conflito que desabrochou nos
meses anteriores à imposição do famoso edital: o conflito sobre o recrutamen-
to de escravos (alheios) para trabalharem nas obras públicas que o governo local
desenvolveu para responder à necessidade desesperada por mão de obra gerada
por um sistema tributário. O edital de 1825 pode ser visto à luz da lei de novembro
de 1831, que criou a categoria de “africanos livres”, pessoas aprendidas do tráfico
negreiro ilícito que logo acabaram providenciando a mão de obra forçada para a ci-
dade (bem como para pessoas particulares), em resposta à preocupação constan-
te da liderança municipal: quem iria providenciar o trabalho individual necessário
pelo bem público ― não em casas particulares, mas nos espaços compartilhados
da cidade? O edital surgiu para resolver um problema específico e agudo: uma cri-
se de abastecimento de mão de obra, o que logo foi combinado com o horror a
qualquer tipo de “aglomeração” de gente avulsa e o medo da rebelião depois dos
tumultos que aconteceram nas cidades do Norte e do Nordeste do país na déca-
da de 1830. Essas regulações que restringiam o movimento noturno para algumas
classes de cariocas foram impostas por motivos específicos, mas essas restrições
se implantaram por motivos diferentes; desse modo, uma situação emergente e a

53 AGCRJ, códice 42-3-17, folhas 4-5.


54 A Vida Fluminense. ano 1, n.3 (January 18, 1868), 40; ano 1, n.26 (jun. de 27, 1868) n/p.

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AMY CHAZKEL

sua solução provisória se tornaram parte do funcionamento normal do estado no


nível municipal.
Se o Toque de Aragão fazia sentido no contexto do início do Império e nas
décadas seguintes, revogar esse regulamento também fazia todo sentido, uma
vez que a vida comercial da cidade começou a se organizar em torno do entrete-
nimento e da circulação nas ruas à noite, e uma vez que a mão de obra cativa foi
substituída pelo trabalho livre. É possível dizer que a aplicação da lei contra a va-
diagem entrou no lugar do toque de recolher como o dispositivo abrangente mais
utilizado pela polícia para prender pessoas socioeconomicamente vulneráveis,
simplesmente por estarem no espaço público da cidade, no lugar errado na hora
errada. A vadiagem é uma contravenção mais adequada para trabalhadores não
escravizados pegos no momento em que não estão trabalhando, numa cidade se
industrializando que não parava mais ― que não podia parar ― com o pôr do sol.
Em outras palavras, o Toque de Aragão não deve ser visto simplesmente
como uma antiguidade que desapareceu com o avanço tecnológico e a moderni-
dade. O sino da igreja parou de tocar, mas a normalização da suspensão de direi-
tos persistiu.55 Durante a Primeira República, quando o Toque de Aragão já tinha
virado um assunto para os folcloristas nostálgicos, em vez de uma questão da polí-
cia, o governo repetidamente invocava a razão do Estado para suspender direitos
individuais e normas jurídicas durante períodos de resistência operária.
O estudo da noite apresenta desafios fascinantes para quem está interes-
sado no estudo da sociedade urbana: como é que podemos estudar a ascensão
da famosa vida noturna moderna carioca enquanto pensamos, ao mesmo tempo,
na imposição de estados de sítio repetidas vezes no século XX que mirava a noite
 48
como cheia de possibilidades perigosas? Voltar ao início do Império e traçar a his-
tória das restrições à liberdade de movimento (como o Toque de Aragão), ao lado
das mudanças tecnológicas, pode nos livrar da observação aparentemente óbvia
de que a noite é mais perigosa que o dia, por motivos simplesmente biológicos e
psicológicos. As reações políticas e jurídicas à noite são sintomas de uma dinâmica
social e política. Até mesmo quando se tornou tecnologicamente possível para a
cidade funcionar durante todas as 24 horas do dia sem parar, a noite ainda impor-
tava como um período distinto, um período que influenciava profundamente a
relação entre o Estado no seu nível mais local e os seus cidadãos.

Recebido em 24/05/2013
Aprovado em 10/06/2013

55 O debate histórico e legal sobre os significados da lei suntuária no estado moderno é instrutivo
aqui; GOODRICH, Peter. “Signs Taken for Wonders: Community, Identity, and a History of
Sumptuary Law”. Law and Social Inquiry, Malden, MA: Wiley-Blackwell/ American Bar Foundation,
23:3, 1998, p. 707-28. CHAZKEL, Amy. Laws of Chance: Brazil’s Clandestine Lottery and the Making
of Urban Public Life. Durham, NC: Duke University Press, 2011, p. 6-7.

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A Câmara e o mercado.
Os trabalhadores da Praça do
Mercado do Rio de Janeiro e suas
relações com a municipalidade no
século XIX

Juliana Barreto Farias*

Resumo: Neste artigo, procuro discutir a relação da municipalidade do Rio de Janei-


ro com os trabalhadores ― especialmente aqueles identificados como locatários
ou arrendatários de bancas ― da Praça do Mercado do Rio de Janeiro, principal
centro de abastecimento de gêneros de primeira necessidade no período oitocen-
tista. Para tanto, examino em detalhes as disputas travadas entre dois locatários
da Praça ― Domingos José Sayão, liberto africano de “nação calabar”, e Antonio
Joaquim Franco, “cidadão brasileiro” ― pela posse de uma banca de peixe, em
1846. Nesse percurso, tanto será possível avaliar quem estava “habilitado” a ocupar
― e efetivamente ocupava ― os diferentes espaços de venda no interior do mer-
cado como também acompanhar as relações, igualmente diferenciadas, que esses
pequenos negociantes mantinham com fiscais, agentes municipais e vereadores.

Palavras-chave: Rio de Janeiro – Câmara Municipal – Praça do Mercado – peque-


nos comerciantes – africanos – “cidadãos brasileiros”

Abstract: In this article, I discuss the relationship of the municipality of Rio de Ja-
neiro with the workers - especially those identified as renters or tenants of stalls
- the Praça do Mercado (literally, Market Square) in Rio de Janeiro, the main sup-
ply center staples during the eighteenth century. Therefore, I examine in detail the
disputes waged between two tenants Square - Domingos José Sayão, freed Afri-
can “nação” calabar and Joaquim Antonio Franco, “Brazilian citizen” - for posses-
sion of a fish stall in 1846. Along the way, both will be possible to assess who was
“enabled” to occupy - and effectively occupied - the different sales areas within
the market, as well as follow the links, also differentiated these small dealers had
with tax, municipal officials and councilors.

Keywords: Rio de Janeiro - City Hall - Market Square - small traders - Africans - “Bra-
zilian citizens”
* Universidade Federal da Bahia

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JULIANA BARRETO FARIAS

No Rio de Janeiro, desde pelo menos meados do século XVII, negras de tabu-
leiro e vendedores de peixe reuniam-se à beira-mar, nas proximidades do terreiro
do Ó, mais tarde chamado de Largo do Paço.1 Como portas de entrada da cidade,
essas áreas litorâneas, conhecidas como praias de marinha, constituíam pontos
centrais para o pequeno comércio de pescado e outros gêneros que vinham das la-
vouras do Recôncavo da Guanabara e de locais mais distantes. Administrados pelo
Senado da Câmara, só podiam ser ocupadas por quem tivesse licenças e pagasse
foros anuais.2 Entretanto, novas bancas e quitandas iam se juntando num ritmo
acelerado e desordenado. Para contê-las, os senadores promoviam reformas, limi-
tavam os espaços para as trocas e chegavam mesmo a tentar expulsar os peque-
nos comerciantes. Especialmente perto da Alfândega, entre a rua do Mercado e
o cais das Marinhas, onde foi se formando um pequeno e ruidoso mercado ― o
“Mercado da Praia do Peixe”3.
Com o seu contínuo crescimento, o vice-rei Luiz de Vasconcellos ordenou, em
1789, que as barracas de peixe fossem reconstruídas com regularidade e simetria.
Ainda assim, a “algazarra” dos vendedores, a lama e os restos de frutas, legumes
e peixes amontoados ali não deixavam de desagradar autoridades e moradores
da capital. Alguns diziam que o “vozerio” era tal que perturbava as sessões no Se-
nado.4 Mesmo com protestos de lado a lado e as determinações para que fossem
removidos para outro local, um novo mercado só começou a ser construído na
década de 1830.5
Com projeto do arquiteto francês Grandjean de Montigny, as obras do edifí-
cio da Praça do Mercado, também chamada de Mercado da Candelária, iniciaram-
-se nos primeiros meses de 1835, mas só foram totalmente concluídas em 1841.6
 50
Ocupando todo um quarteirão da freguesia da Candelária, o local ficou interna-
mente dividido em três áreas: o centro, destinado para venda de hortaliças, legu-
mes, aves e ovos; o lado do mar, para peixe fresco, seco e salgado; e o lado da rua
(voltado para a rua do Mercado e para o Largo do Paço), para cereais, legumes,
farinha e cebolas.7 Na Praça das Marinhas, em frente à doca contígua ao mercado,

1 Inicialmente terreiro do Ó – e depois da Polé –, a área ficou conhecida como terreiro do Carmo quando ali
construíram a igreja e o convento dos carmelitas. Mais tarde, foi chamada de Largo do Paço e, depois, de
praça d. Pedro II. Com a proclamação da República, ganhou a denominação de Praça XV de Novembro,
nome que continua até hoje. Cf.: GERSON, Brasil. História das ruas do Rio. 5.ed. Rio de Janeiro: Lacerda
Ed., 2000, p. 26-32; GORBERG, Samuel; FRIDMAN, Sergio. Mercados no Rio de Janeiro. 1834-1962. Rio de
Janeiro: S. Gorberg. 2003, p. 2.
2 BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003, p. 203-204; 220.
3 COARACY, Vivaldo. Memórias da cidade do Rio de Janeiro. 3.ed. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; Edusp,
1988, p. 60. Em 1638, a Câmara do Rio estabeleceu que os pescadores venderiam suas mercadorias no
trecho que compreendia a Praia de Nossa Senhora do Carmo até a porta do Governador, ou seja, entre a
atual Praça XV e a rua da Alfândega. Cf.: FRIDMAN, Sergio; GORBERG, Samuel, Op. Cit., p. 2.
4 Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (doravante AGCRJ), Ofício da Secretaria de Estado de Negócios
para o Senado da Câmara de 21/04/1823.
5 Cf.: FRIDMAN, Sergio; GORBERG, Samuel, Op. Cit., p. 12. COARACY, Vivaldo, Op. Cit.
6 Em 1836, quando os dois corpos do prédio voltados para o Largo do Paço ficaram prontos, seus
compartimentos já começaram a ser alugados, gerando uma receita de 2:366$500 réis. Com a crônica falta
de recursos da Câmara, as obras da Praça só foram retomadas em 1839, sob o comando do engenheiro
João Vicente Gomes. Finalmente concluídas em setembro de 1841, o custo total chegou a 170:396$073 réis.
7 Desde sua construção até 1908 (quando o mercado foi demolido), essa estrutura básica da Praça do
Mercado passaria por diversas reformas e acréscimos. E os trabalhadores, fossem locatários, pequenos
lavradores, quitandeiras ou pombeiros, nem sempre concordavam com essas transformações. Em 1885,
por exemplo, quando novas barracas foram construídas no cais das Marinhas, em substituição aos antigos
chapéus de sol, os pequenos comerciantes já instalados naquela área recusaram-se a pagar a taxa exigida
pelos empresários, que arrendaram o local e paralisaram suas atividades. Durante uma semana, a “greve
das Marinhas” mobilizou vendedores de diferentes procedências, imprensa, vereadores e o próprio
governo imperial. Para uma análise mais ampla desses protestos, ver: FARIAS, Juliana Barreto. “Mercado

Revista Mundos do Trabalho | vol. 5 | n. 9 | janeiro-junho de 2013| p. 49-73


OS TRABALHADORES DA PRAÇA DO MERCADO DO RIO DE JANEIRO...

desembarcavam os gêneros da roça e o pescado que escravos e outros trabalha-


dores traziam em canoas de ganho, saveiros, faluas e barcos vindos das zonas su-
burbanas do Rio de Janeiro e das áreas rurais de Niterói. Bem próximo, lavradores,
seus consignatários, negociantes e quitandeiras vendiam, revendiam e compravam
“gêneros de primeira necessidade”, como frutas, ovos, legumes e cereais, “sem o
menor abrigo, apenas algumas pequenas barracas volantes ou algum chapéu de
sol”.8 E ainda havia os pombeiros (mercadores avulsos de peixe) que, apesar das
proibições, atuavam como intermediários entre pescadores e consumidores.
Até o final da década de 1860, todas essas áreas de comércio estiveram sob
a administração direta da Câmara Municipal do Rio.9 Em termos práticos, isso sig-
nificava que qualquer alteração em sua estrutura, regulação sobre seu funciona-
mento ou demanda de diferentes categorias deviam ter apreciação e aprovação
dos vereadores. Um deles era designado para ser o comissário do mercado e vol-
ta e meia formavam-se grupos para resolver assuntos específicos. Porém, no dia
a dia, eles pouco frequentavam o lugar. Quem diariamente exercia “a rigorosa
observância”das regras era o fiscal da freguesia da Candelária, também encarre-
gado da inspeção cotidiana do mercado.
E ainda que o Regulamento apresentado na sessão da Câmara de 17 de no-
vembro de 1843 e ratificado por portaria da Secretaria de Estado dos Negócios do
Império em 16 de agosto de 1844 fosse o principal guia para sua ocupação e “boa
administração”, muitas questões não estavam previstas ali. Para resolvê-las, fiscais
e membros da Câmara se valiam de novas posturas, avaliações ou votações, mas
também recorriam a disposições e interesses que escapavam a qualquer formali-
 51 dade. Isso era bem comum, por exemplo, no momento da concessão ou da trans-
ferência de uma vaga.
Neste artigo, vejamos mais de perto como tudo isso podia ocorrer. Para tanto,
examinarei em detalhes as disputas travadas entre dois locatários da Praça ― Do-
mingos José Sayão, liberto africano de “nação calabar”, e Antonio Joaquim Franco,
“cidadão brasileiro” ― pela posse de uma banca de peixe, em 1846. Num primei-
ro momento, buscarei avaliar quem estava “habilitado” a ocupar – e efetivamente
ocupava – os diferentes espaços de venda no interior do mercado. Nesse percurso,
também pretendo acompanhar as relações, igualmente diferenciadas, que esses
pequenos negociantes mantinham com a municipalidade. Ao final, ainda será pos-
sível observar como esses processos acabavam revelando redes, interesses e parti-
cularidades que caracterizavam homens e mulheres de procedências tão diversas.

Quem era “livre e capaz”?


Se quisermos estabelecer uma hierarquia entre os trabalhadores da Praça,
certamente os locatários das cento e doze bancas e casas internas, tais como

em greve: protestos e organização dos trabalhadores do pequeno comércio no Rio de Janeiro – Outubro,
1885”. Anais da Biblioteca Nacional, 127, 2010, p. 99-157; Idem. “Greve nas Marinhas: protestos, tradições e
identidades entre pequenos lavradores, quitandeiras e pombeiros (Rio de Janeiro, século XIX)”. ArtCultura.
Uberlândia, v.11, n.19, jul-dez. 2009, p. 35-55.
8 AGCRJ, Códice 61-2-17: Mercado da Candelária (1870-1879), p. 28.
9 Em 1869, a Praça foi arrendada, pelo prazo de nove anos, aos empresários Aureliano Dias da Costa Cabral
e Antonio José da Silva, sob a firma Aureliano Cabral & C. Abriam-se, assim, as portas para a entrada
da iniciativa privada no mercado. E daí em diante elas não mais se fechariam. Embora esses novos
administradores pudessem auferir grandes lucros com o aluguel de casas e bancas para antigos e novos
locatários, a fiscalização do local e outros assuntos cotidianos continuavam a cargo da municipalidade.
Mas isso estava longe de aplacar os conflitos ― que pouco a pouco se tornaram uma constante ― entre
Câmara e empresários, empresários e pequenos comerciantes ou entre estes e os vereadores e fiscais.
Para acompanhar os detalhes sobre esses arrendamentos, ver: FRIDMAN; GORBERG. Op. Cit., p. 23-32.

Revista Mundos do Trabalho | vol. 5 | n. 9 | janeiro-junho de 2013| p. 49-73


JULIANA BARRETO FARIAS

Sayão e Antonio Franco, ficarão em destaque.10 E não apenas porque apareciam


como os principais autores de solicitações e petições enviadas quase diariamente
à municipalidade, ou porque eram, a todo o momento, mencionados em descri-
ções, avaliações e relatórios feitos por fiscais e vereadores. Durante boa parte do
século XIX, eles desfrutaram de maior prestígio e poder na condução das vendas
cotidianas, mesmo em relação a outras categorias profissionais. E, evidentemen-
te, tudo isso era assegurado pela própria Câmara Municipal.
Mas nem todos podiam se tornar arrendatários. Embora os aluguéis não
fossem proibitivos (e pudessem variar bastante de ano a ano ou de uma banca
a outra), era necessário dispor de capital suficiente para montar ― e sobretudo
manter ― os negócios. Afinal, para armar uma quitanda de verduras, frutas e aves,
uma barraca de peixe ou um pequeno armazém de louças, precisavam de banca-
das, tabuleiros, armações, estantes, mesas ou eventualmente alguns caixeiros ou
serventes (muitas vezes escravos). E, sobretudo, fornecedores regulares. Para ter-
mos uma ideia de como os investimentos podiam ser elevados, vejamos os valo-
res empregados numa sociedade entre cinco portugueses, estabelecida em 1867,
para compra e venda de peixe salgado, cebolas, alhos e comissões em sete bancas
da Praça. O capital da sociedade era de dezesseis contos e quinhentos mil réis,
divididos entre os sócios. José Bessa Teixeira, por exemplo, entrava com quatro
contos e trezentos mil, ao passo que Antonio Gonçalves Vieira e Antonio de Bessa
Teixeira despenderam, cada um, dois contos e oitocentos mil. Com esses recursos
totais, era possível comprar pelo menos dez escravas minas, que nessa época che-
gavam a valer de um conto a um conto e quinhentos mil réis.11
Além do mais, conforme o Regulamento de 1844, somente “pessoas livres e
 52
capazes” poderiam ocupar as vagas internas. À primeira vista, poderíamos supor
que a condição de liberdade estivesse diretamente associada a indivíduos “bran-
cos”, fossem homens ou mulheres. De acordo com a historiadora Hebe Mattos,
essa correlação persistiria no Sudeste escravista até pelo menos meados do sé-
culo XIX, quando o crescimento de “negros e mestiços”, livres ou libertos, já não
permitia perceber os não brancos livres como exceções controladas.12 Na Praça do
Mercado, essa associação parece ter sido desfeita antes desse período. Ali, por
livres, entendia-se não escravos. Mesmo que isso não estivesse explícito nas re-
gras, outros registros ― de autoria dos próprios vereadores ― permitiram chegar
a essa conclusão.
No final da década de 1830, já se discutia na câmara municipal a redação das
normas que integrariam o regimento do Mercado da Candelária. Num dos rascu-
nhos, encontramos o 2.º artigo, justamente o que trata sobre as condições para
habilitação dos arrendatários, com uma pequena ― e reveladora ― rasura. No meio
do texto em que se definia que “o arrematante será pessoa livre e capaz, e que por
si, seu sócio ou caixeiro esteja à testa do negócio”, o trecho “e nunca poderá alugar

10 Na caudalosa documentação sobre o mercado depositada no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro,
esses locatários também são identificados como arrendatários, inquilinos ou banqueiros. Neste artigo,
privilegiarei essa categoria de trabalhadores da Praça, da qual fazia parte Domingos José Sayão e Antonio
Franco. Já analisei outras categorias do mercado em: FARIAS, Juliana Barreto. “Entre pequenos lavradores
e quitandeiras”. Mercados minas: africanos ocidentais na Praça do Mercado do Rio de Janeiro (1830-1890).
Tese (Doutorado em História Social). USP, 2012; Idem. “Pombeiros e o pequeno comércio no Rio de Janeiro
do século XIX”. In: SOARES, Mariza de Carvalho; BEZERRA, Nielson Rosa. Escravidão africana no Recôncavo
da Guanabara. Niterói: Editora da UFF, 2011.
11 AGCRJ, Códice 61-3-18: Comércio de peixe, pp. 6-8. Para os preços dos escravos, ver valores das alforrias
pagas nesse período.
12 MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade do Sudeste escravista – Brasil, século
XIX. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

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OS TRABALHADORES DA PRAÇA DO MERCADO DO RIO DE JANEIRO...

a banca a escravos” estava riscado.13 Por que eles não acharam necessário deixar
no texto final a proibição aos cativos? E os libertos? Também estavam sendo consi-
derados na genérica categoria de livres? De uma forma ou de outra, mesmo tentan-
do ordenar aquele espaço de trocas, afastando os cativos dali (onde estavam desde
princípios do Oitocentos, e até antes disso), eles não conseguiram alcançar seus
intentos. Ao longo do século XIX, escravos continuariam vendendo quitandas e pei-
xe nas bancas, como prepostos ou mesmo como subinquilinos dos arrendatários.
Por outro lado, as definições de uma pessoa “capaz” não eram tão eviden-
tes assim. Consultando o Dicionário da Língua Portuguesa (1813), de Antonio de
Moraes Silva, constatamos que o termo designava alguém “apto, hábil, suficiente
em talentos; esforço; probidade; decoroso; decente”.14 Luiz Maria da Silva Pinto
também confere o mesmo significado no seu Dicionário da Língua Brasileira (1832):
“suficiente em probidade; intentos, apto, decente”.15 De que forma qualidades um
tanto subjetivas poderiam ser provadas pelos interessados em uma vaga no mer-
cado? No regulamento e em outros editais publicados posteriormente, não havia
quaisquer informações nesse sentido. Para outras categorias até se exigiam regis-
tros e comprovação de habilitação em órgãos competentes. Os pescadores que
ofereciam seus produtos nas canoas ancoradas no cais das Marinhas, por exem-
plo, deviam ter licenças e aprovação da Capitania do Porto. Ainda assim, muitos
pombeiros conseguiam tirar essas autorizações sem estarem, segundo os fiscais
da Praça, “capacitados” para a atividade.
No caso dos locatários, só uma parte remetia à Câmara Municipal pedidos
 53 mais detalhados. Sem um modelo obrigatório a seguir, a maioria praticamente
apenas incluía nos requerimentos os seus nomes e o que pretendiam fazer nas
bancas. É bem provável que muitos julgassem que as relações pessoais e o “re-
conhecimento profissional” que gozavam ali, afinal alguns comerciavam naquela
área antes mesmo da construção do prédio do mercado, fossem garantias satisfa-
tórias. E de fato as seleções deviam mesmo se valer dos interesses e das disposi-
ções e idiossincrasias de fiscais e vereadores.
Quando as solicitações chegavam à municipalidade, a vereança, que raramen-
te tinha contatos mais diretos com o mercado e seus trabalhadores, encaminhava
os documentos aos fiscais da Praça, para que estes avaliassem os pedidos e lhes
fornecessem informações adicionais. De acordo com o Regulamento, esses agen-
tes eram responsáveis pela “rigorosa observância” das regras, podendo empregar
todos os meios que suas atribuições lhes conferiam, autuando quem infringisse o
regimento e outras posturas ou requisitando, se necessário, auxílio de força arma-
da. Para os arrendatários e demais comerciantes do mercado ― que diariamente
viam os fiscais fazendo rondas, inspecionando mercadorias e ouvindo reclamações
―, eles eram a expressão mais visível do poder municipal.16 Sendo assim, a aprova-
ção de um pedido de locação e o reconhecimento da capacidade de um candidato
dependiam, no final das contas, da rede de relações que ele mantinha na Praça ― e

13 AGCRJ, Códice 61-1-20: Mercados (1820-1827), p. 21.


14 SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portugueza - recompilado dos vocabularios impressos ate
agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado. Lisboa: Typographia Lacerdina,
1813, v.2, p. 466. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/2/capaz. Acessado em: 19 set. 2011.
15 PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Língua Brasileira, por Luiz Maria da Silva Pinto, natural da
Provincia de Goyaz. Typographia de Silva, 1832. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/3/
capaz Acessado em: 19 set. 2011.
16 Cf.: Regulamento da Praça do Mercado, apresentado em sessão da Câmara Municipal de 17 de novembro
de 1843 e publicado em edital no dia 20 de agosto de 1844, transcrito em: FRIDMAN; GORBERG. Op. Cit., p.
14-23. Cf.: SOUZA, Juliana Teixeira. A autoridade municipal na Corte imperial: enfrentamento e negociações
na regulação do comércio de gêneros (1840-1889). Tese (Doutorado em História). Unicamp, 2007.

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JULIANA BARRETO FARIAS

mesmo fora dela ― e da avaliação, muitas vezes subjetiva e interessada, dos fis-
cais. Entretanto, para que tudo isso também ficasse claro para os vereadores, era
preciso deixar registrado, formalmente, num papel.
Mas, se as apreciações das solicitações estavam mesmo sujeitas aos “olha-
res” dos fiscais e às relações construídas dentro e fora do ambiente de trabalho,
por que os pretos forros ― tão evidentemente mais próximos da escravidão ―
quase não se autoidentificavam em seus registros, sobretudo quando compara-
dos aos ditos “cidadãos brasileiros”? Pela Constituição de 1824, os libertos tinham
seus direitos civis assegurados. Mas isso só valia para os que nascessem no Bra-
sil. Os alforriados africanos não gozavam do mesmo status dos brasileiros e nem
possuíam as garantias de estrangeiros protegidos por seus países de origem.17 No
dia a dia, ao menos que possuíssem uma prova em contrário, eles eram constan-
temente confundidos com escravos. Daí ser tão importante ter a comprovação de
sua liberdade consignada em cartório e um atestado sempre à mão.18
No Mercado da Candelária, nenhum preto forro apresentou carta de alforria
para ratificar sua condição de liberdade. Em geral, suas solicitações para locação
das barracas ou renovação das licenças continham apenas seus nomes e o número
das vagas pretendidas. Em 15 de dezembro de 1846, por exemplo, Emília Soares do
Patrocínio, viúva de Bernardo Soares, pediu para “continuar com a banca na Praça
do Mercado n. 96, pagar o semestre que corre de janeiro e passar-se os recibos em
nome da suplicante visto que seu marido é falecido”. No verso do documento, o
fiscal Bernardino José de Souza anotou que tudo quanto Emília alegava era verda-
de e parecia ser o “caso de lhe passar em seu nome a banca no corrente semestre
futuro”. Dois dias depois, um comentário não assinado ― certamente feito por  54
algum vereador ― confirmava o parecer do agente municipal.19 Emília Soares do
Patrocínio permaneceu como locatária do mercado por quase 40 anos. E tanto ela
como seu marido Bernardo eram “pretos forros” de “nação” mina. Mas Emília pa-
rece não ter considerado necessário incluir essa informação em seu requerimento.
E o fiscal também não fez qualquer questionamento nesse sentido.20
Já Matias José dos Santos, ao se candidatar à barraca 106 , “vaga por faleci-
mento de um Francisco de tal” em janeiro de 1848, informou que era um “preto
forro com negócio de verduras na Praça do Mercado”. Em seu parecer, o fiscal An-
dré Mendes da Costa considerou que sua “pretensão não tinha lugar”, porque o
irmão ― e sócio ― do antigo arrendatário já pagara o semestre adiantado. Porém,
Mathias não desistiu da locação e as discussões sobre o caso se estenderam na
Câmara Municipal, chegando até a Secretaria dos Negócios do Império. Durante
os debates, a condição social e a procedência de Mathias só foram mencionadas
novamente em um requerimento do irmão do locatário, Francisco, que se referiu
a ele como “o preto mina Matias José dos Santos”.21
Apenas em alguns poucos casos os pretos forros se autoindentificavam des-
sa forma. Porém, quando se envolviam em disputas pela posse das bancas, muitas

17 Entre os poucos trabalhos que tratam do tema, destaco: MAMIGONIAN, Beatriz Galloti. “Razões de direito
e considerações políticas: os direitos dos africanos no Brasil oitocentista em contexto atlântico”. Texto
apresentado no 5º Encontro Escravidão e liberdade no Brasil meridional. Porto Alegre, maio 2011.
18 CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo:
Brasiliense, 1985, p. 76-89.
19 AGCRJ, Códice 61-2-2: Mercado da Candelária (1844-1849), p. 61.
20 Para mais detalhes sobre a trajetória da preta mina Emília, ver: FARIAS, Juliana Barreto. “De escrava a
Dona: a trajetória da africana mina Emília Soares do Patrocínio no Rio de Janeiro do século XIX”. Revista
Locus. UFJF, 2013.
21 AGCRJ, Códice 61-2-2: Mercado da Candelária (1844-1849), p. 107. Voltaremos ao caso da transferência
dessa banca no próximo capítulo.

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OS TRABALHADORES DA PRAÇA DO MERCADO DO RIO DE JANEIRO...

vezes acabavam tendo o estatuto legal, a cor ou a “nação” africana revelados por
seus oponentes. Foi o que também aconteceu com Vicente Antonio Francisco. Em
23 de outubro de 1855, o locatário Agostinho d’Almeida Figueiredo, procurador de
Bernardina de Oliveira, tentou mais uma vez recuperar o arrendamento da banca
21, que pertencera ao finado Apolinário de Campos. Segundo Agostinho, desde
novembro de 1850 apossara-se dela “o preto Vicente A. Francisco, que iludiu a
Bernardina, viúva do dito Campos, dizendo que ia fazer a arrematação em nome
dela”.22 A contenda começara em janeiro daquele ano, mas em nenhum momento
Vicente indicou sua cor ou seu status. Depois de várias negativas da Câmara Muni-
cipal, talvez Agostinho quisesse, ao chamá-lo de “preto”, colocar em dúvida sua
condição de liberdade e, em consequência, sua habilitação para ocupar uma vaga
na Praça. Seja como for, o certo mesmo é que o fiscal da Praça e os vereadores não
atentaram ― ou não deram importância ― para esse detalhe e a banca continuou
com o “preto” Vicente.
Ao mesmo tempo em que Agostinho Figueiredo tentava destacar essa infor-
mação, “silenciava” a cor e a condição social de Bernardina Oliveira e de seu fale-
cido marido nos requerimentos enviados à municipalidade em janeiro de 1855. Só
que os dados acabaram emergindo da documentação comprobatória anexada às
petições. Na procuração passada a Agostinho, em abril de 1854, o tabelião classi-
ficou Bernardina como uma “preta livre”. Já na certidão de casamento, celebrado
na matriz de Santa Rita, em 21 de fevereiro de 1835, consta que ela era “filha na-
tural de Marianna, preta de nação benguela, escrava que foi de Manuel d’Oliveira,
 55 natural e batizada nesta freguesia de Santa Rita”. No mesmo documento, Apoliná-
rio de Campos é descrito como um “preto de nação mina”, antigo escravo de Do-
mingos de Campos, batizado na freguesia do Sacramento. Por sua vez, no registro
de óbito assinado pelo escrivão da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia,
em março de 1849, ele aparece como “preto forro de nação de mina”.23
Conforme veremos mais à frente, os pretos forros, sobretudo os africanos
ocidentais, genericamente identificados como minas, com frequência pediam para
continuar com o arrendamento das bancas que estavam em nome de cônjuges
falecidos. E quando encaminhavam solicitações desse tipo, quase sempre incluíam
assentos de óbito, batismo e casamento, testamentos e mesmo ações de divórcio.
Para além da comprovação do vínculo matrimonial mantido com o antigo inquili-
no, esses registros ainda serviam para atestar sua habilitação às vagas. Afinal, na
época, a condição civil de uma pessoa era legalmente decidida no registro paro-
quial, onde se encontravam livros de “livres” (incluindo-se aí também os libertos)
e de “escravos”.24
Embora esses novos candidatos ― alguns nem tão novos assim, já que tra-
balhavam nas bancas junto com seus falecidos parceiros ― apresentassem docu-
mentos que também certificavam sua capacidade para ocupar uma vaga na Praça,
em geral, os alforriados africanos seguiam o padrão da maior parte dos arrendatá-
rios: encaminhavam pedidos concisos, indicando basicamente seus nomes e os lu-
gares pretendidos. Como alguns vendiam suas quitandas naquela área antes mes-
mo da construção do prédio do mercado, talvez se valessem de um certo prestígio
e do reconhecimento de fiscais e vereadores. E por isso mesmo não precisavam

22 AGCRJ, Códice 61-2-9: Mercado da Candelária (1855-1859), p. 24. [grifo meu]


23 Todos esses documentos foram anexados às petições encaminhadas em janeiro de 1855 e reunidas em:
AGCRJ, Códice 61-2-9: Mercado da Candelária (1855-1859), p. 4-20.
24 Todos esses documentos foram anexados às petições encaminhadas em janeiro de 1855 e reunidas em:
AGCRJ, Códice 61-2-9: Mercado da Candelária (1855-1859), p. 4-20.

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JULIANA BARRETO FARIAS

apresentar maiores informações sobre suas vidas. Quem sabe também a fama dos
“pretos minas” como “exímios quitandeiros” fosse acionada ― e percebida ―
como uma espécie de garantia de suas aptidões. Quando Lauriana Maria da Con-
ceição mencionava que era uma “mina”, ao solicitar a aprovação de uma socieda-
de com Bernardino José Ribeiro, podia estar evidenciando com esse atributo um
resumo de sua condição. Uma africana, não escrava, com “habilidade”, “talento”
para o comércio de verduras, legumes e frutas.25 Da mesma forma que essas “qua-
lidades” talvez estivessem sendo levadas em conta no momento em que o fiscal
Bernardino José de Souza dizia saber, “por ver” ou “ter informações”, que Emília
e Bernardo Soares haviam sido casados e, enquanto “pretos minas”, tinham “ca-
pacidade” para os negócios na Praça do Mercado.
No Rio de Janeiro Oitocentista, senhores de escravos, viajantes estrangeiros,
políticos e, de resto, boa parte da população da cidade enfatizava essas “aptidões
mercantis” de cativos e forros minas, especialmente quando comparados a africa-
nos de outras “nações”.26 Na Praça, essas imagens e estereótipos também eram fre-
quentemente evocados. Em 1865, a norte-americana Elizabeth Agassiz, por exem-
plo, acompanhava seu marido, o naturalista Luiz Agassiz, até o mercado do Rio,

pelo prazer de ver os mostruários cobertos de laranjas, flores e legu-


mes, e para observar os grupos pitorescos dos negros tagarelando ou
vendendo suas mercadorias. Sabemos agora que esses negros atléti-
cos, de rosto distinto e tipo mais nobre que os dos negros dos Estados
Unidos, são os Minas, originários da Província de Mina na África oci-
dental. É uma raça possante, e as mulheres em particular têm formas
muito belas e um porte quase nobre. Sinto sempre grande prazer em
 56
contemplá-las na rua ou no mercado, onde se vêem em grande núme-
ro, pois as empregam mais como vendedoras de legumes e frutas que
como criadas.27

O senador Hollanda Cavalcanti também dizia, na década de 1850, que bas-


tava ir ao mercado de peixe, criação, frutas ou verduras da capital carioca “para
se ver que a maior parte dos vendedores são libertos ostentando ainda as marcas
tribais”.28 Embora não mencione a procedência desses forros, certamente fiscais
e outros frequentadores da Praça sabiam, somente “por ver”, de quem se trata-
va. As “nações” dos africanos no Rio de Janeiro eram reconhecidas por muitos
moradores e visitantes a partir de determinados signos, indumentárias e marcas
corporais. Como ressalta a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, cada grupo
podia dispor e manipular símbolos variados em diferentes contextos, mas, para
que construísse, efetivamente, um padrão de identificação, eles tinham de ser in-
teligíveis a todos os demais.29
De qualquer maneira, essas breves referências ajudam a reforçar a hipótese
de que o reconhecimento e os “olhares” de fiscais e outras autoridades eram de-
terminantes para a habilitação de velhos e novos locatários da Praça. “Tomando

25 AGCRJ, Códice 61-2-7: Mercado da Candelária (1850-1854), p. 89. O pedido de Lauriana é de 16 de julho de
1852. Nesse documento, ela não informa a condição de Bernardino José Ribeiro.
26 Cf.: SELA, Eneida Maria Mercadante. Modos de ser em modos de ver: ciência e estética em registros de
africanos por viajantes europeus (Rio de Janeiro, ca. 1808-1850). Tese (Doutorado em História). Unicamp,
2006.
27 AGASSIZ, Luiz; CARY, Elizabeth. Viagem ao Brasil. 1865-1866. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1975, p. 68.
28 Hudson a Palmerston, Rio de Janeiro, 27 jul. 1850, Encl. 2 in n. 85. apud CUNHA, Manuela Carneiro. Negros,
estrangeiros. Op. Cit., p. 92.
29 CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil: mito, história e etnicidade. São Paulo: Brasiliense;
Edusp, 1986, p. 94-95.

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OS TRABALHADORES DA PRAÇA DO MERCADO DO RIO DE JANEIRO...

conhecimento”, “sabendo por ver” ou por ser “público e notório”, os agentes mu-
nicipais identificavam quem estava apto ou não.30 Como tantos habitantes do Rio,
eles possivelmente também saberiam distinguir as “marcas tribais” dos vendedo-
res libertos entrevistos pelo senador Hollanda Cavalcanti na década de 1850. Caso
descobrissem – ou suspeitassem – que eram “pretos minas”, poderiam associá-los
às “habilidades mercantis” tão propaladas no próprio mercado e em outros locais
da cidade, e mesmo em outras áreas do país. O que, por si só, já poderia ser sufi-
ciente para habilitá-los às vendas na Praça do Mercado.

Nas bancas

Entre todos os requerimentos sobre a ocupação das bancas que recolhi nos
códices do Arquivo da Cidade, seja para ocupá-las pela primeira vez, seja para pedir
a renovação das locações ou a transferência para terceiros, encontrei os seguintes
termos usados para identificar os arrendatários (tanto por eles próprios como por
funcionários municipais, vereadores e outros trabalhadores): “cidadão brasileiro”
ou “brasileiro”; “preto forro”, “preto de nação” e “preta livre”; “nação calabar”,
“preto mina”, “mina” e “nação mina forra”; “natural d’Hispanha”; “português”,
“nacionalidade portuguesa” ou “súdito português”. Como se vê, as expressões ―
mencionadas por diferentes atores em momentos distintos e com objetivos diver-
sos ― indicavam nacionalidades (portuguesa, por exemplo), “nações” africanas
 57 (mina ou calabar) e ainda a combinação de condição social e nacionalidade, como
o designativo “cidadão brasileiro”.
Tomando como referência apenas esses documentos remetidos à Câmara Mu-
nicipal por candidatos às bancas, locatários ou seus procuradores, poderia se con-
cluir que esses grupos eram os principais ― ou mesmo os únicos ― que ocupavam
as áreas internas da Praça do Mercado. No entanto, essas categorias muitas vezes
obscureciam procedências, cores e condições. Assim, para dimensionar a composi-
ção étnica e social dos trabalhadores ali instalados, incorporei outras fontes à análi-
se. Não foi possível seguir a trajetória de todos os arrendatários que passaram pelo
mercado ao longo do século XIX. Ainda que os “brasileiros” tenham sido os que
mais se autoidentificaram na documentação enviada à municipalidade, foram os
que menos apareceram em outros tipos de registros. Já “portugueses” e “pretos
forros” foram localizados em vários conjuntos documentais, tais como inventários,
testamentos, ações de divórcio, registros de hipotecas ou cartas de alforria.
Para as décadas de 1830 e 1840, não dispomos de fontes regulares. O Alma-
nak Laemmert ― lançado em 1844 ― só começou a divulgar listas completas de
mercadores da Praça a partir de 1853. Entre a documentação da Câmara Municipal,
apenas vez ou outra localizamos relações de locatários com os valores despendi-
dos pelo aluguel das vagas. Em 1836, por exemplo, quando somente dois corpos
do edifício voltados para o Largo do Paço haviam sido finalizados, uma “relação
das pessoas” que “remataram as bancas do pescado” incluía os nomes de trinta e
dois arrendatários, dos quais consegui identificar a origem de apenas cinco (dois
africanos minas e três “brasileiros”31).
Confrontando essa listagem com um conjunto de licenças de 1831 e com ou-
tra lista divulgada em 1840, pude constatar que alguns pequenos comerciantes já

30 Esses termos eram constantemente usados pelos fiscais nos pareceres que enviavam à Câmara ―
31 Usarei o termo “brasileiro” conforme indicado pelos próprios locatários. Em alguns casos, acrescentarei
os locais de naturalidade, de acordo com o informado nas fontes.

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JULIANA BARRETO FARIAS

estavam instalados ali antes mesmo da construção da Praça, e continuariam se


destacando nos anos subsequentes à sua inauguração. Entre os registros de 1831,
encontramos Domingos José Sayão, identificado como “preto forro” de “nação
calabar”, compartilhando a banca 31 com Francisco do Espírito Santo, de quem
não sabemos a procedência. Sayão permaneceria na Praça até o ano de 1870 (com-
pletando 39 anos no local). Junto com eles estavam ainda dois serventes: José
Ganguela e Anacleto crioulo. Possivelmente, ambos eram escravos.
Desde as primeiras décadas do século XIX, era comum que africanos ― em
geral cativos ― auxiliassem os vendedores nas barracas montadas na Praia do Pei-
xe.32 Porém, já nessa época, a presença dos escravos incomodava alguns banquei-
ros. Em 1836, eles enviaram uma petição à Câmara Municipal, reclamando que, nas
arrematações anteriores, a posse e o uso das bancas haviam sido transferidos a
“pessoas que não são daquela profissão e comércio”, incluindo-se aí muitos “ho-
mens escravos”. O que trazia “gravíssimo prejuízo aos banqueiros de boa fé, em
especialmente aqueles que têm a propriedade de seus vasos, redes, escravos e
mais utensílios de pescaria”. Sendo assim, pediam que somente fossem aceitos
como novos arrematantes “pessoas da própria profissão e nunca negociantes e
pessoas das diferentes repartições”.33
Mas os escravos nem sempre eram obstáculos. Num abaixo-assinado de de-
zembro de 1840, 16 arrendatários no “Mercado do peixe” (entre os quais quatro
“cidadãos brasileiros” e um português) diziam que, “sendo notório quão laborio-
so é um tal tráfico”, necessitavam de serventes que se sujeitassem “ao árduo e

 58
desagradável serviço indispensável à venda do pescado, o que não pode ser fei-
to, geralmente falando, por pessoas livres, que exigirão extraordinários e one-
rosos ordenados, encarecendo deste modo o preço de um gênero de primeira
necessidade”.34
De um lado, os banqueiros queixavam-se da existência de cativos à frente
das bancas. Por outro, pediam à Câmara que os deixassem ter mais serventes e
caixeiros ― de preferência escravos, já que os livres exigiriam “onerosos ordena-
dos”. Toda essa discussão, é certo, não escapou aos vereadores. Em 1844, na hora
de redigir as normas do mercado, eles procuraram uma espécie de conciliação.
Ao mesmo tempo em que só admitiam locatários “livres e capazes”, permitiam
que os escravos pernoitassem nas bancas e casas, desde que seus senhores ficas-
sem responsáveis por eles e entregassem ao fiscal uma lista com seus nomes e de
quem mais fosse permanecer ali.35 Entretanto, durante o dia, os “pretos de ganho”
estavam proibidos de andar dentro da Praça. E os cativos que fossem mandados
por seus donos para fazer compras não deviam demorar “além do tempo neces-
sário para efetuá-las”. Quanto isso representava exatamente, eles não disseram.
De qualquer forma, essa medida decerto era uma tentativa de coibir a ação de
“pretos cativos atravessadores”, que causavam “graves inconvenientes e prejuí-
zos” aos locatários, chegando o “escândalo ao ponto de já não ser quase possível
hoje a um cidadão o poder empregar-se neste gênero de indústria comercial sem
se expor a continuados insultos e comprometimentos”.36
Só que a questão não parecia tão simples assim. Em geral, esses atravessa-
dores ― que revendiam o pescado a preços mais elevados ― atuavam como pre-

32 AGCRJ, Códice 61-3-13: Comércio de peixe (1831), pp. 39 e 43.


33 AGCRJ, Códice 61-1-21: Mercado da Candelária (1832-1839), p. 48.
34 AGCRJ, Códice 61-3-15: Comércio de peixe (1840-1848), p. 2.
35 “Regulamento da Praça do Mercado...”, citado em Mercados no Rio de Janeiro, p. 20. Entre os códices sobre
o mercado, guardados no Arquivo da Cidade, não encontrei essas listas mencionadas no Regulamento.
36 AGCRJ, Códice 61-3-15: Comércio de peixe (1840-1848), p. 6. As queixas estavam num abaixo-assinado en-
viado à Câmara em dezembro de 1847, por cinco arrematantes das bancas de peixe da Praça do Mercado.

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OS TRABALHADORES DA PRAÇA DO MERCADO DO RIO DE JANEIRO...

postos de seus senhores, que, muitas vezes, eram também arrendatários da Praça.
Apesar da vigilância constante de fiscais e vereadores, muitos conseguiam driblá-
los, ou mesmo contar com sua conivência. Ao longo do século XIX, os agentes mu-
nicipais que presidiam comissões fiscalizadoras constantemente apontavam essas
irregularidades, sem, contudo, eliminá-las de vez. Por isso, as listas de mercadores
divulgadas pelo Almanak a cada início de ano não correspondiam, necessariamen-
te, aos vendedores que as ocupavam de fato. Em 1865, de um total de 112, 48 (ou
seja, um terço) estavam sublocadas “sem o consentimento da Ilma. Câmara”, ou
tinham “figurando no negócio pessoas diversas”.37 Ainda assim, como esse fenô-
meno ― apesar de recorrente ― não era generalizado, podemos tomar essas re-
lações como ponto de partida para uma análise mais sistemática da composição
étnica e social dos arrendatários que, se não de forma efetiva, ao menos nominal-
mente, estavam ali instalados.38
Percorrendo o interior do mercado, especialmente entre as décadas de 1840
e 1870, constatamos que vendedores de diferentes gêneros tendiam a persistir
por longos períodos em suas bancas. Às vezes, ficavam de posse de dois ou mais
lugares em uma mesma área ou em pontos diferentes do Mercado da Candelária.
Mesmo que não tenha sido possível avaliar a proporção de todos os inquilinos con-
forme suas origens, consegui estimar que, naquele período, os portugueses esta-
vam presentes em todas as áreas. Os africanos, e especialmente os minas, concen-
travam-se nas vendas de legumes, verduras, aves e ovos. E os brasileiros ficavam
mais nos negócios com pescado. Ainda que, por vezes, os minas estivessem, de
 59 fato, nas bancas alugadas em nome de portugueses. Ou estes, nas de brasileiros.
E assim por diante.
Vejamos, por exemplo, a distribuição nas 30 bancas do centro (de números
79 a 112), destinadas ao comércio de hortaliças, legumes, aves e ovos. Em 1853,
havia 29 mercadores registrados no Almanak, dos quais reconheci a procedência
de 23 (cerca de 79%): oito portugueses; nove africanos minas; um africano Angola
e quatro brasileiros. Como podemos perceber, esse pedaço era uma espécie de re-
duto dos africanos da Praça. Na banca 96, a mina Emília Soares do Patrocínio dava
continuidade aos negócios abertos em 1840 por seu primeiro marido, o também
mina Bernardo Soares. Logo ao lado, na vaga 95, sua amiga Antonia Rosa, preta
forra da mesma “nação”, também seguia com as vendas iniciadas por seu mari-
do, o preto mina Januário Francisco de Mello. Quando Antonia deixou o local, em
1865, o mina Joaquim Manuel Pereira, segundo marido de Emília, tornou-se o novo
inquilino, e ficou ali por mais de 20 anos. Para completar, a preta mina ainda firmou
uma sociedade com Feliciana, africana da mesma “nação”. Ex-cativa do crioulo
Antonio José de Santa Rosa, Feliciana trabalhara com seu senhor na banca 98 por
pelo menos seis anos. Em 1846, com a morte de Santa Rosa, ela ganhou sua carta
de alforria. E não hesitou em solicitar a posse da quitanda, onde labutou sozinha
durante cinco anos. De 1852 a 1857, dividiu as vendas com Emília. Com o fim da so-
ciedade, esta última manteve-se na barraca até 1885.
Seguindo pelo mesmo corredor, encontramos, lado a lado, diversos “pretos
forros”. Na banca 100, Maria Alexandrina Rosa, de “nação” Angola, vendeu suas
quitandas entre os anos de 1853 e 1859. Depois de passar para Joaquim José Leite
& C. (de 1859-1862), a vaga foi ocupada pelo preto mina Amaro José de Mesquita
até 1869. Já a mina Maria Rosa da Conceição ficou por 20 anos (de 1840 a 1860) nas

37 Idem.
38 Para acompanhar uma análise mais detalhada dos locatários de todas as áreas internas da Praça do Mercado
do Rio, ver o capítulo 2 de minha tese, “Entre locatários e quitandeiras”. In: Mercados minas. Op. Cit.

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bancas 102 e 103. Mais adiante, estavam mais africanos e africanas minas: Lauriana
Maria da Conceição (104: de 1852 a 1858); Matias José dos Santos (106: de 1847 a
1858); Luiz Laville (107: 1859 a 1870) e João José Barbosa (108: 1842 a 1865).
E os portugueses também compartilhavam essa área do mercado. Nas rela-
ções do Almanak, o imigrante José Maria de Paula Ramos é citado em 1844 como
um dos “principais mercadores”. Natural de Coimbra, ele chegara ao Rio de Janei-
ro dois anos antes, com 35 anos de idade. Ao se registrar em 1842, afirmou que
tinha a ocupação de negociante e morava na Praça do Mercado, número 84. Até
1858, ele esteve à frente dessa banca. E ainda arrendou outras duas (83 e 85) para
negociar os mesmos gêneros. Depois de sua morte, em 1859, o português Anto-
nio Maria de Paula Ramos, seu filho e genro do locatário Bonifácio José da Costa,
instalou-se em seu lugar. Nas imediações, outro conterrâneo, o luso José da Costa
e Souza, contava com duas locações. Entre os anos de 1856 e 1870, manteve socie-
dade na banca 89 com a preta mina Felicidade. E na 109, com a quitandeira Josefa,
no período de 1854 a 1870. À semelhança dos africanos minas, alguns negociantes
de Portugal, como o próprio José Souza, também chegavam a somar de 10 a 20
anos de Praça.
Uma estratégia que parecia generalizada era a transferência das bancas entre
locatários de igual procedência ou de uma mesma família. Quando um imigrante
luso falecia, seu filho ou um conterrâneo o substituía. Ao saírem, os minas também
davam lugar a outros africanos da mesma “nação”. Aparentemente semelhan-
tes, essas práticas podiam guardar especificidades para cada grupo. A formação
de sociedades entre indivíduos de mesma procedência era igualmente recorrente.
Mesmo assim, não faltavam parcerias entre portugueses e brasileiros; africanos e
 60
brasileiros ou portugueses e minas. Ao contrário do que ocorria em outras partes
da cidade, estes dois últimos grupos não estavam permanentemente em conflito.39
Nas bancas internas da Praça do Mercado (e em outras de suas áreas), as
relações diárias entre eles envolviam concorrência e rixas, das corriqueiras às
mais “sérias”. Ainda assim, rivalidades e conflitos não eram o “comportamento
padrão” na Praça. Desde as primeiras décadas do Oitocentos, pretos minas mon-
tavam sociedades comerciais com imigrantes de Portugal e até mesmo realizavam
parcerias para comprar escravos. Como boa parte dos africanos não sabia ler e
escrever, negociantes portugueses assinavam, em seus nomes, abaixo-assinados
e petições. E ainda atuavam como testemunhas em seus processos de divórcio.
Não obstante, homens e mulheres da Costa da Mina preferiam labutar junto com
seus “parentes de nação”. Do mesmo modo que os arrendatários de Portugal as-
sociavam-se a irmãos, primos e compadres europeus. Como se vê, o trabalho e a
convivência diária entre eles poderiam ser bem mais complexos, incluindo tanto
aproximações como diferenças e hierarquias.

Transferências
Assim que as bancas do mercado vagavam ― seja por desistência ou faleci-
mento do locatário ―, sócios, amigos, herdeiros, cônjuges e outros parentes não

39 Cf.: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. “Proletários e escravos: imigrantes portugueses e cativos africanos
no Rio de Janeiro, 1850-1872”. Novos Estudos Cebrap, n.21, jul. 1988, p. 30-56; RIBEIRO, Gladys Sabina. A
liberdade em construção: identidade nacional e conflitos antilustianos no Primeiro Reinado. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2003.

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demoravam a ocupar seus lugares. Só que essas transferências por vezes acaba-
vam rendendo muita discussão. Especialmente porque não havia, no Regulamento
de 1844, uma postura muito bem definida sobre o assunto. Como recorrentemente
acontecia ali, as decisões sobre quem seriam os novos inquilinos também depen-
diam das circunstâncias, dos interesses e das personagens envolvidas. A história
de Domingos José Sayão, preto forro de nação calabar, ilustra, de muitas manei-
ras, essas questões.
Em 17 de novembro de 1846, ele enviou um requerimento à Câmara Mu-
nicipal, pedindo para continuar na banca 23, já que seu sócio Joaquim de Souza
acabara de falecer. No verso do documento, o fiscal Bernardino José de Souza
confirmou a informação. Logo em seguida, foi a vez do vereador Tristão Ramos
da Silva aprovar a solicitação. Alguns dias antes, o “cidadão brasileiro” Antonio
Joaquim Franco também havia requerido a ocupação da vaga. Nesse caso, porém,
Bernardino indeferiu o pedido, justificando que Domingos, como antigo parceiro
de Joaquim, já estava de posse do lugar.40
Mas a seleção ainda não estava encerrada. Embora, normalmente, apenas
o vereador encarregado da Praça do Mercado confirmasse ― ou refutasse ― as
avaliações dos fiscais, a decisão sobre a ocupação dessa vaga foi levada à votação
no plenário da Câmara. Em 24 de novembro, o vereador José de Silveira Pilar dizia
concordar com o parecer de Ramos da Silva e decidira apresentar suas razões. Em
primeiro lugar, era incontestável que Sayão e Antonio haviam sido sócios. Sendo
assim, por “vigorosa justiça” e pela “boa conduta” que sempre manteve, ele devia
 61 continuar no local. No entanto, mesmo com todas as deliberações a seu favor e as
negativas ao pedido de Antonio Franco, essas informações foram desprezadas, e
isso poderia “ser qualificado na opinião pública como um patronato escandaloso”.
E prosseguia, destacando que

o referido Saião, um infeliz preto, sócio e representante de um homem


cego, qual o falecido Joaquim de Souza, não tendo por si pessoa alguma
que por ele falasse, tendo aliás muitas que se interessavam por Franco,
o que é público e notório e foi declarado na discussão pelo dito Verea-
dor Ramos da Silva, pode geralmente acreditar-se que na Câmara Muni-
cipal só se consegue as coisas por empenhos e não pelos princípios da
razão e da justiça.41

Para finalizar, fazia questão de lembrar que esta era a primeira vez que a mu-
nicipalidade agia dessa forma:

expelindo por falecimento do locatário o sócio do mesmo, que o re-


quereu e obteve as melhores informações, para dar a um indivíduo de
fora, ao qual nenhum direito assistia, e a quem se podia dar uma das
duas que se acham vagas, ou qualquer das que tem de vagar no fim de
dezembro. Por tudo isso, muitos acreditariam que a instituição servira
de instrumento de vingança, cometendo de mais uma violência, uma
iniquidade.42

Acompanhando o vai e vem de petições e pareceres nos códices municipais


conservados no Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro, não localizei qualquer ofício

40 Cf.: AGCRJ, Códice 61-2-2: Mercado da Candelária (1844-1849), p. 51 (requerimento de Domingos José
Sayão); Códice 61-3-15: Comércio de peixe (1840-1848), p. 59-59v.
41 AGCRJ, Códice 61-2-2: Mercado da Candelária (1844-1849), p. 52. [grifo meu]
42 AGCRJ, Códice 61-2-2: Mercado da Candelária (1844-1849), p. 52.

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atestando a concessão da banca a Antonio. Ainda assim, as palavras de Silveira


Pilar não deixam dúvidas de que o concorrente de Domingos Sayão conseguira
reverter a situação. Mais especificamente na sessão do dia 24 de outubro, a muni-
cipalidade escolhera Antonio Franco como novo locatário.43 Só que isso, como se
vê, também não representou o fim das disputas. Por volta do dia 10 de dezembro,
Sayão decidiu tentar recuperar a vaga, dessa vez dirigindo-se ao governo imperial.
De acordo com o recurso do artigo 73 da lei de 1.º de outubro de 1828, incluso no
regimento das Câmaras, os “cidadãos residentes na Corte” que se sentissem agra-
vados pelas deliberações, acordos e posturas das Câmaras Municipais podiam re-
correr, na defesa de seus interesses, à Assembleia Geral Legislativa e ao Ministério
dos Negócios do Império, contanto que a matéria fosse meramente econômica e
administrativa.44
Acontece que libertos africanos como Domingos José Sayão não eram, como
vimos, considerados “cidadãos” no Império brasileiro. Nem por isso eles deixavam
de pedir proteção ao Ministério ou mesmo diretamente ao imperador. Entre os
papéis da Câmara sob a guarda do Arquivo da Cidade, não encontrei a petição de
Sayão. Contudo, em 10 de dezembro, um ofício encaminhado à instituição pelo ga-
binete ministerial mencionava o documento e solicitava mais informações sobre
o caso. Antes de os vereadores apresentarem uma resposta, o “preto forro” lhes
remeteu mais um requerimento, informando que, por se sentir “ferido em seus
mais lícitos direitos”, solicitara proteção da “Imperial Justiça e Bondade de S. M.
I. [Sua Majestade Imperial]”. E dessa feita tratava de apresentar os mesmos moti-
vos expostos naquela súplica, para que as autoridades municipais se “dignassem
a resolver a questão”. Além de indicar que fora sócio de Joaquim Souza durante 11
 62
anos, recordava o “exemplo que se praticou com Joaquim José Maria”, também
“preto forro”, de “nação” mina. Na “qualidade de sócio de um locatário falecido”,
ele havia sido “considerado na mesma banca, não obstante a apresentação de um
novo pretendente, no que deu certamente a Ilustríssima Câmara uma prova de sua
retidão e justiça”.45
Sayão não apresentava muitas informações novas, mas sua petição mais uma
vez provocou discussões entre os membros da instituição camarária. O primeiro
a se manifestar foi Joaquim Vicente Torres Homem. Antes de explicar a decisão
tomada na sessão de 24 de novembro, achava necessário expor alguns esclare-
cimentos que fundamentaram aquela resolução. Para ele, era notório ― e “infe-
lizmente sabido” ― que há muito tempo havia se fixado no mercado um “tão es-
candaloso abuso no transpasse das bancas sem o consentimento da Câmara”, que
nem todas as medidas tomadas em diferentes administrações foram suficientes
para coibi-lo. No ano anterior, sócios de uma banca tiveram que entregar “avulta-
das luvas” a certos indivíduos para se apoderarem de suas vagas. Nas vendas de
pescado, alguns arrendatários as sublocavam a três ou quatro atravessadores, que
passavam a oferecer os gêneros em grupos diferentes. A “convenção entre eles
era tal” que os consumidores, por necessidade, acabavam se sujeitando aos altos
preços estabelecidos. E certamente todas as infrações eram de conhecimento dos
fiscais ou então se valiam de sua negligência. Disso tudo, resultava o seguinte:

43 A informação consta de um documento enviado pelo Ministério dos Negócios do Império em 10 de


dezembro de 1848. Ver em: AGCRJ, Códice 61-3-15: Comércio de peixe (1840-1848), p. 61
44 Brasil. Lei de 1.º de outubro de 1828, sobre o regimento das Câmaras Municipais do Império, art. 73. Citado
em: SOUZA, Juliana Teixeira. A autoridade municipal na Corte imperial. Op. Cit., p. 34.
45 AGCRJ, Códice 61-2-2: Mercado da Candelária (1844-1849), p. 62.

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Quando o arrendatário de qualquer banca quer se retirar do negócio,


recebe de um desses atravessadores luvas, declarando à Câmara que
ele era sócio e consequentemente a ser preferido a outro qualquer, de-
clarando esta que não sendo acompanhada de documento comproba-
tório, em nenhum caso pode ser considerada como valiosa, e que, pelo
contrário, deve ser rejeitada pelo conhecimento que tem a Câmara de
semelhantes abusos.46

Para Torres Homem, esse era justamente o caso de Domingos Sayão. Como
não apresentara qualquer registro para atestar sua sociedade com o falecido Jo-
aquim de Souza, ele não teria o “menor direito” à banca. No “estado em que as
coisas existem na Praça do Mercado”, uma informação passada por um vizinho,
que “comercia o mesmo gênero e quer especular da mesma maneira”, também só
podia ser suspeita. Sendo assim, o melhor, na opinião do vereador, seria responder
ao governo que Sayão não apresentava título algum. Pelo contrário: devia ser con-
siderado como “intruso”, em consequência de todas as irregularidades relatadas.
Por outro lado, de acordo com os dados apurados (pessoalmente?), fora possível
confirmar que Antonio Joaquim Franco era “homem capaz e com proporções de
se estabelecer naquela praça sem cometer abuso de sublocar a atravessadores
parte de sua banca, com prejuízos do público”.47
Nem todos os vereadores tinham a mesma opinião. Ao comentar o parecer
de Joaquim Torres Homem, um outro tribuno, cuja assinatura não consegui deci-
frar, considerava “pouco exato o que nele se diz em geral a respeito de passagens

 63 de bancas” e das providências tomadas pela municipalidade. Além disso, já estava
“plenamente provado que o dito Sayão era sócio de Joaquim Souza”. Sua convic-
ção baseava-se nas evidências apresentadas pelo fiscal e pelo vereador encarrega-
do da Praça, cujas conclusões haviam sido confirmadas pelas “pessoas mais acre-
ditadas” do mercado. Mas também se reportava a outras fontes. Como podiam
certificar os empregados da Tesouraria da Câmara, era “público e notório” que, no
“tempo em que vivia o cego Souza”, Sayão sempre ia pagar o aluguel da banca 23,
sozinho ou em sua companhia. E, de acordo com o vereador Filgueiras, os próprios
herdeiros de Souza reconheceram no “preto forro” a qualidade de sócio de seu fa-
lecido parente. Nenhum deles tinha qualquer intenção de assumir seus negócios,
“antes deixando a Sayão na mansa e pacífica posse e no livre direito de continuar
só nos semestres futuros”.
Dessa forma, não havia “interesse ou conveniência alguma” em expulsá-lo
dali, para colocar um “indivíduo de fora, a quem com quanto se façam elogios pré-
vios”; não se podia “pôr acima daquele que, já experimentado, tem em seu favor
as melhores informações de muitas pessoas e de autoridades em quem a Câmara
tem obrigação de acreditar”. Finalmente, lembrava mais uma “razão mui podero-
sa”: em junho de 1845, na ocasião de aumentar o aluguel das bancas, todos con-
cordaram, por unanimidade, em manter os locatários pelo prazo de quatro anos,
com o valor inicial que fora marcado. Por isso mesmo, conforme a lotação de 1845,
Sayão tinha de ser conservado no seu local, não podendo ser “expelido sem que à
Câmara falte a obrigação que contraíra”.48
Apesar de mais este voto favorável ao “preto forro”, a sentença da vereança
não sofreu qualquer modificação. Em 22 de dezembro de 1846, um ofício foi en-
viado ao Conselheiro Joaquim Marcelino de Brito, Ministro e Secretário de Estado

46 AGCRJ, Códice 61-3-15: Comércio de peixe (1840-1848), p. 62.


47 AGCRJ, Códice 61-3-15: Comércio de peixe (1840-1848), p. 62.
48 Idem.

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dos Negócios do Império, confirmando a decisão da sessão de 24 de novembro e


reproduzindo algumas palavras de Torres Homem. Não obstante, ainda não seria
dessa vez que Domingos Sayão ficaria de fora da Praça. Em 26 de março de 1847,
ele pediu uma nova licença para vender peixe fresco e salgado na banca 55. À
sua sucinta solicitação, o agente municipal responsável também deu uma breve
resposta: concedida.49 Nenhuma menção ao atribulado episódio de meses ante-
riores. No final das contas, contrariando as razões apontadas por Joaquim Torres
Homem, quem se revelou um verdadeiro especulador foi Antonio Joaquim Franco.
Quase um ano após a contenda com Sayão, o fiscal André Mendes da Cos-
ta encontrou, na banca alugada a Franco, um indivíduo de nome José Fortunato,
oferecendo peixe ao público pelo miúdo, sem ser consignatário de pescador ou
arrendatário do local. Quando intimado a retirar-se dali, ele respondeu que fora
convidado pelo dono, “o qual lhe assegurou que pessoa alguma seria capaz de o
fazer sair do lugar em que estava”. De imediato, Fortunato foi detido pelo fiscal,
que acabou “injuriado” por Antonio Franco, “com maneiras indecentes e grossei-
ras”. Por isso, o locatário também foi levado preso. Os autos da apreensão foram
enviados ao Chefe de Polícia e André da Costa rogou aos vereadores que não dei-
xassem “impune um escândalo tão revoltante”.50 Infelizmente, não achei outros
registros que elucidassem o final dessa história. Voltando aos embates entre Fran-
co e Sayão, talvez possamos esboçar algumas explicações.

Um “patronato escandaloso”?
 64
Logo no início das discussões na Câmara, o vereador-presidente José Silveira
Pilar afirmara que até então nenhuma transferência havia sido decidida pela muni-
cipalidade de maneira tão arbitrária. De fato, ao examinar a documentação sobre
o mercado nas décadas de 1830 e 1840, não me deparei, pelo menos até o ano de
1846, com situações que gerassem tamanho debate. O caso de Sayão foi tão em-
blemático que, em 1848, serviu como referência ― a não ser seguida ― em outra
disputa pela posse de uma banca, também envolvendo um forro africano, o mina
Matias José dos Santos.51 Entretanto, se o desenrolar do pedido aparentemente
corriqueiro de Domingos Sayão surgia como uma “novidade”, as práticas que per-
mearam boa parte das avaliações subsequentes não eram tão inéditas assim.
Mais uma vez, o discurso de Silveira Pilar nos fornece evidências nesse sen-
tido. Avaliando a conduta da vereança diante das solicitações de Sayão, ele men-
cionava um “patronato escandaloso”. Como o “preto forro” não tinha “pessoa
alguma que por ele falasse, tendo aliás muitas que se interessavam por Franco”,
a “opinião pública” poderia acreditar que, na Câmara, “só se consegue as coisas
por empenho e não pelos princípios da justiça”. Por certo, essas apreensões não
se fundamentavam apenas no caso em questão. Ainda que fiscais e vereadores

49 AGCRJ, Códice 61-3-15: Comércio de peixe (1840-1848), p. 70.


50 AGCRJ, Códice 61-2-2: Mercado da Candelária (1844-1849), p. 73. No documento, o fiscal também pedia que
a Câmara colocasse em execução o 1.º artigo do Regulamento da Praça, onde se determinava que, “no caso
de alguém não cumprir ou fazer pouco caso das ordens que lhe forem intimadas pelo respectivo fiscal, ou
for turbulento, o mesmo Fiscal lhe intimará incontinente o despejo da banca, lhe sendo restituída a quantia
correspondente ao tempo que faltar para o complemento do arrendamento”. Ver: Regulamento da Praça do
Mercado.., citado em: FRIDMAN; GORBERG. Op. Cit., p. 14.
51 Os requerimentos e pareceres sobre o caso do mina Matias estão em: AGCRJ, Códice 61-2-2: Mercado da
Candelária (1844-1849), p. 92-94; 99-100, 107-111; 113. Mais adiante, voltarei a tratar de alguns pontos dessa
discussão.

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constantemente se referissem ao Regulamento da Praça do Mercado como ponto


de partida para as suas resoluções, muitas situações e possibilidades não eram
previstas ali. Nessas circunstâncias, outros critérios e interesses eram levados em
conta, como, por exemplo, a intervenção dos chamados “protetores”.
Em momentos diversos, locatários, quitandeiras, fiscais e outros agentes mu-
nicipais faziam referências ― quase sempre indeterminadas ― a redes de prote-
ção que se ramificavam por todas as áreas do mercado e chegavam, também por
vias incertas, à Câmara Municipal. Como eram interditas, revelavam-se muito mais
em situações de conflito ou por meio de “denúncias” daqueles que não contavam
com tal amparo. Em novembro de 1846, por exemplo, a ex-escrava mina Feliciana
de Santa Rosa tentava arrendar as bancas 97 e 98, que haviam pertencido a seu an-
tigo senhor, o “crioulo” Antonio José de Santa Rosa. Mas, como ela assinalava, já
existiam outros pretendentes “com muitas proteções”. De onde elas vinham exa-
tamente, quase ninguém informava. Talvez fossem representadas por vereadores,
fiscais ou os próprios arrendatários, como o português José da Costa e Souza, que
dizia ter duas escravas como suas “protegidas” nas vagas alugadas em seu nome.
Aliás, em muitas situações, os imigrantes lusos ainda podiam contar com o apoio
― efetivo e legal ― do Consulado de Portugal.
Mas muito raramente se falava sobre as maneiras pelas quais essas “prote-
ções” eram acionadas. Não obstante, nas entrelinhas de discursos, avaliações e
até de alguns requerimentos bem concisos, é possível perceber que elas se enqua-
dravam numa espécie de “economia de concessão e favores”. Em troca da “pro-
 65 teção” da vereança, alguns locatários, especialmente aqueles que tinham mais
recursos, ofertavam joias ou mesmo faziam barganhas eleitorais. Quanto maiores
fossem o “reconhecimento” do inquilino e as “vantagens oferecidas aos cofres”
da municipalidade, maior seria a “ajuda” recebida. Porém, não eram somente os
trabalhadores do mercado que agiam assim.
Segundo a historiadora Juliana Teixeira Souza, os comerciantes varejistas do
Rio de Janeiro oitocentista também estavam habituados a oferecer donativos em
troca de benefícios que só poderiam ser conferidos pelo poder constituído. Para tan-
to, recorriam a uma prática consagrada no Antigo Regime e largamente utilizada no
jogo político entre o rei e seus vassalos. Contudo, existiam diferenças fundamentais
entre as estratégias que vigoravam no século XVIII e as das primeiras décadas do Oi-
tocentos. Nestas, o objetivo essencial não era empreender qualquer modificação na
conduta social, mas sim assegurar a manutenção da margem de lucro nos negócios
e a acumulação de capital. A busca incessante por prestígio dava lugar à tentativa de
obter maiores vantagens pecuniárias. Com efeito, os diversos grupos que atuavam
nas vendas a varejo pareciam compartilhar a certeza de que mereciam maior prote-
ção da Câmara os munícipes que pagassem os tributos mais pesados.52
No Mercado da Candelária, esses artifícios e as redes oblíquas que os envol-
viam nem sempre eram explicitados. Só mesmo em ocasiões bem específicas. A
transferência de arrendatários nas bancas era uma delas. O fenômeno, no entanto,
não era novo. Ao menos desde a década de 1830, banqueiros, fiscais e vereadores
reclamavam dos seguidos repasses feitos sem o consentimento da Câmara. E por
diversas vezes foram ensaiadas tentativas ― muitas em vão ― para impedi-los.
Ceder a posse e o uso das bancas não era proibido. O que não se permitia
era passá-las a terceiros por conta própria. Ou seja, o inquilino que quisesse fazer
a transferência para outro comerciante deveria informar, por escrito, sua intenção

52 SOUZA, Juliana Teixeira. A autoridade municipal na Corte imperial. Op. Cit., p. 173.

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à Câmara Municipal, solicitando também que os recibos do aluguel fossem lan-


çados em nome do novo ocupante. Os valores cobrados permaneceriam os mes-
mos. Acontece, porém, que muitos não avisavam à municipalidade e continuavam
passando suas bancas sem serem incomodados. E ainda estipulavam valores mais
altos, para assim garantir seu lucro. De tal forma que alguns arrendatários, cons-
tantemente referidos como especuladores, formavam verdadeiros monopólios.
Tudo isso à vista – e decerto com a anuência ― dos fiscais, que diariamente de-
viam fazer rondas na Praça para assegurar o cumprimento do regulamento.
Em julho de 1865, como o problema ainda persistia, a Câmara resolveu no-
mear um vereador para investigar o assunto pessoalmente. No relatório apresen-
tado logo em seguida, o Dr. Bezerra constatou que as irregularidades encontradas
ali eram reflexos diretos da “benevolência” da municipalidade “para com vários
especuladores que dispõem da Praça como de sua propriedade, e outros da ne-
gligência dos fiscais até hoje encarregados da polícia daquele estabelecimento
pela falta de seus deveres”.53 Conforme constatou, todas as 112 bancas estavam
arrendadas, “ou antes ocupadas”. Algumas, subarrendadas sem a aprovação da
Câmara. Outras mantinham à frente do negócio pessoas com o título de gerentes
ou administradores. Após percorrer as diferentes áreas do mercado e inquirir seus
ocupantes, o encarregado municipal concluíra que

A série de abusos e defeitos de sua administração, devidos à falta de


execução de seu regulamento, assim como o prejuízo causado às rendas
da municipalidade pelo sistema de lotação das bancas até hoje seguido,
abusos que redundam todos em prejuízo do público, por isso que con-
centrado em mãos de meia dúzia de homens, por homens privilegiados
 66
[...]. Daqui resulta a indeclinável necessidade em que está a Ilustríssima
Câmara de tomar algumas medidas que reprimam tais abusos, e façam
conhecer aos especuladores e monopolistas da Praça do Mercado, que
ela não está disposta a tolerar mais tanto escândalo [...].54

Como resultado mais imediato às suas enfáticas palavras, os vereadores lan-


çaram um edital com novas posturas, a fim de melhorar a fiscalização das praças
do mercado e das marinhas. Para começar, intimavam todos os indivíduos que
estavam nas bancas, sem serem seus locatários, a apresentarem, no prazo de oito
dias, os títulos de posse e as autorizações ou procurações dos verdadeiros inquili-
nos. Quem não mostrasse “título legítimo” podia legalizar sua situação, desde que
se sujeitasse às condições exigidas e aos mesmos preços que a Câmara cobrava
naquele momento. Todos esses “novos” arrendatários ― e também os antigos
que ainda não o tivessem feito ― deviam apresentar “fiadores idôneos”. De outra
parte, aqueles que pretendiam retirar-se do Império ou do negócio deviam, igual-
mente, comunicar à municipalidade, indicando quem ocuparia o lugar a partir de
então. No caso de falecimento dos atuais inquilinos, os “favores até hoje concedi-
dos aos sucessores” só seriam feitos quando eles fossem maiores de idade. Caso
contrário, a liquidação da casa e a arrecadação (ou arrematação) dos bens seriam
reclamadas em juízo competente, e o local posto em lotação novamente.55 Ime-
diatamente após o lançamento dessas medidas, muitos trabalhadores enviaram

53 AGCRJ, Códice 61-2-11: Mercado da Candelária (1865), p. 9.


54 Idem.
55 O edital foi publicado no dia 4 de julho de 1865 e anunciava oito medidas: as seis primeiras eram relativas
à regulação da ocupação das bancas internas e as duas últimas versavam sobre o comércio de peixe
dentro e fora do mercado. Para conferir o documento completo, ver: AGCRJ, Códice 61-2-12: Mercado da
Candelária (1866-1867), p. 175.

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requerimentos e os respectivos comprovantes para a regularização perante a Câ-


mara. Entretanto, a longo prazo, tudo isso não se mostrou suficiente para debelar
o problema.
Das avaliações de Bezerra também emergiram os nomes dos principais “es-
peculadores e monopolistas da Praça”. À frente da lista estava o português José
da Costa e Souza. Com as informações apuradas in loco, o vereador concluíra que
o imigrante, também conhecido pelo apelido de José da Lenha, era, “por assim di-
zer, o verdadeiro dono da Praça do Mercado”. Como exercia bastante “influência”
e “poderio” sobre a maior parte dos banqueiros, muitos tinham certeza de que ele
podia fazer tudo quanto pretendesse. Bastava olhar para as atenções que a Câma-
ra lhe dispensava, concedendo-lhe qualquer banca que quisesse locar ou arrendar
por sua própria conta.
“Frequentemente zombando” do Edital de 20 de agosto de 1844, como en-
fatiza o vereador em seu relatório, este “homem notável nos fatos da história” do
mercado, “para o qual tem havido sempre tanta benevolência”, era locatário ― e
também tinha “debaixo de diversas pessoas” ― 13 bancas, correspondente a mais
de 1/10 do total das vagas ali existentes. Segundo os cálculos feitos pelo agente
municipal, elas estavam assim divididas: peixe (banca 13); cereais (50 e 52); gelo
(86 e 87) e verduras (88, 89 e 109). Além dessas, também dispunha, como procura-
dor, das de números 91, 102 e 103. Não satisfeito com isso, também solicitara a pos-
se de mais dois lugares e, por resolução da Câmara Municipal em 31 de dezembro
de 1864, lhe foram concedidas as bancas 24 e 77.56 O fato de possuir tantos locais e
 67 ainda manter, em dois deles, depósitos de gelo, o que era expressamente contrá-
rio às disposições do regulamento, só revelava seu “pouco caso” com as regras da
Praça e a “proteção que parece ter até hoje merecido da Câmara”.57
Só que a atuação deste “dono do mercado” ia além. Seguindo sua trajetória
ao longo dos 30 anos (de 1840 a 1870) em que ficou ali, constatei que o português
fazia e desfazia sociedades com seus conterrâneos e com comerciantes de outras
procedências (entre os quais forros africanos e até mesmo escravas), afiançava
novos locatários, figurava como inventariante e testemunha em processos diver-
sos, formava parcerias com outros arrendatários para compra de novos cativos,
emprestava dinheiro a juros e ainda assinava petições a rogo daqueles que não
sabiam ler e escrever, incluindo-se aí boa parte dos pretos minas.
Sem dúvida, José da Costa e Souza desfrutava de muitas “proteções” no
Mercado da Candelária e, sobretudo, na Câmara Municipal. Senão, como explicar
que, mesmo após as acusações divulgadas no relatório de Bezerra e a publicação
do edital de 4 de julho de 1865, ele ainda tenha sido indicado como fiador por
muitos arrendatários, sem que fiscais e vereadores esboçassem qualquer objeção?
Pelo contrário, ele era descrito nos pareceres então emitidos como um “reconhe-
cido locatário” da Praça, que gozava de probidade e “todo conceito no comércio”
do Rio de Janeiro.58

56 AGCRJ, Códice 61-2-11: Mercado da Candelária (1865),p. 11-12.


57 Como completa Bezerra, “este abuso, porém, seria tolerável se o depósito de gelo não fosse instituído
com fins especulativos e prejudiciais aos interesses econômicos e do povo, e à saúde pública, por quanto
ninguém desconhece que esse depósito é principalmente destinado para guardar o peixe que, em virtude
do alto preço que por ele exigem, não se vende em um dia, para o vender no dia seguinte ou mesmo
depois, infringindo assim, em detrimento da saúde pública, o artigo 16 do citado regulamento, que
terminantemente dispõe que o peixe não pode ser guardado de um dia para o outro senão salgado”.
AGCRJ, Códice 61-2-11: Mercado da Candelária (1865), p. 11-12.
58 No Códice 61-2-12: Mercado da Candelária (1866-1867), há diversos requerimentos enviados à municipalidade
após a divulgação do edital de 7 de julho de 1865. Em boa parte deles, José da Costa e Souza aparece como

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Caso esbocemos uma espécie de hierarquia dos trabalhadores mais influen-


tes da Praça, Costa e Souza decerto ocuparia o topo, usando e abusando de suas
bancas e contando, para isso, com o amparo de poderosos ― e supostamente in-
visíveis ― protetores. Já indivíduos como o “cidadão brasileiro” Antonio Joaquim
Franco, embora menos protegidos que o imigrante português, também tinham
muitos que se “interessavam” por eles. No outro extremo, apareciam aqueles que
não possuíam “por si pessoa alguma”, ou nenhuma tão influente, para falar em
seu nome. Nesse grupo, estaria o liberto Domingos José Sayão.

•••

Não tenho muitas informações sobre a vida de Sayão. Nos requerimentos


enviados à Câmara, ele se identificava como um “preto forro” de “nação calabar”.
A expressão fazia referência a dois portos da baía de Biafra (na atual Nigéria): Ve-
lho Calabar e Novo Calabar. Em diferentes registros oitocentistas, escravos e li-
bertos dessa “nação” constituíam uma minoria entre os africanos ocidentais que
viviam no Rio de Janeiro. E nunca eram designados conforme seus grupos étnicos.
Entretanto, sob o genérico termo, certamente estavam homens e mulheres dos
grupos ibos, mokos, efiks ou ibibios.59 A partir dos documentos disponíveis, inferi
que Sayão nascera por volta do ano de 1790 e, desde a década de 1830, já vivia no
Rio de Janeiro.60 Mas não pude precisar quando e como exatamente chegara à
capital carioca. Ou tampouco sobre o tempo em que permaneceu como escravo.
Ainda assim, é possível afirmar que ele rapidamente se inseriu na comunidade de  68
africanos minas da cidade.
Além de trabalhar lado a lado com eles na Praça do Mercado, desde 1841 per-
tencia à Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, congregação católica cria-
da pelos minas no século XVIII, que também reunia outros locatários africanos.61
Como um dos comerciantes mais longevos do mercado, ele construiu importantes
relações de amizade e de prestígio entre “os seus”62(como indica o cargo de juiz
de Santa Efigênia que ocupou na irmandade em diferentes anos compromissais63)

fiador de muitos locatários, inclusive de forros minas. Na mesma época, o português Antonio Maria de
Paula também afiançou vários arrendatários.
59 Cf.: KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras,
2000, p. 65-66; BEZERRA, Nielson Rosa. Mosaicos da escravidão: identidades africanas e conexões
atlânticas do Recôncavo da Guanabara (1780-1840). Tese (Doutorado em História), UFF, 2010, p. 165-170.
60 Em 28 de fevereiro de 1871, o Diário do Rio de Janeiro informou em seu obituário o falecimento de Domingos
José Sayão: “africano, 80 anos, viúvo, febre perniciosa [a causa do óbito]”.
61 Arquivo da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia (doravante AISESE). Registros de Entrada de
Irmãos (1843-1900). Documentação sem catalogação. Nesse livro, Domingos aparece registrado em 1844,
mas, ao final, foi acrescentada a informação de que o registro era de 12 de agosto de 1841 e vinha do
“livro velho de 1768”. Além dessas indicações, só mais uma foi anotada: a data de seu falecimento, 20 de
fevereiro de 1871. Outras informações sobre a participação de Domingos na irmandade também podem
ser consultadas no Livro de Atas da ISESE – 1857-1926. Documentação sem catalogação.
62 Cf.: OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. “Viver e morrer no meio dos seus. Nações e comunidades africanas na
Bahia do século XIX”. Revista USP, São Paulo, n.28, dez. 1995 e fev, 1996.
63 Nas eleições anuais para os cargos da mesa diretora da irmandade, os juízes eram, geralmente, escolhidos
entre aqueles de maior posse, reputação e importância social em sua comunidade. Afinal, eles contribuiriam
com esmolas, por vezes de valores consideráveis, e ainda teriam de preparar a festa dos oragos. Durante
essas comemorações anuais, as confrarias promoviam a confraternização e o fortalecimento dos laços
entre os irmãos e destes com seus santos. Celebrá-los solenemente era uma garantia de proteção na vida
e na morte. Quanto mais espetacular fosse a homenagem, maior seria a retribuição dada a seus devotados
fiéis. Além disso, essas ocasiões também serviam para testar o prestígio da devoção e de seus juízes.
OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção negra: santos pretos e catequese no Brasil Colonial. Rio
de Janeiro: Quartet; FAPERJ, 2008, p. 264-265.

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e também com fiscais e mesmo com alguns vereadores. Mas, conforme acompa-
nhamos, ele decerto não tinha “defensores” tão poderosos (ou mais que os de
Antonio Franco) na Câmara Municipal.
Não à toa, decidiu buscar apoio na “Justiça e Bondade de Sua Majestade Im-
perial”. Nada mais adequado do que recorrer à principal autoridade do “mundo do
governo” para arbitrar aquela disputa. Entre as muitas “obrigações” do impera-
dor, estava o dever de zelar pela paz, pela defesa e pelo proveito de todos os seus
súditos. Segundo Ilmar de Mattos, isso lhe outorgava o “monopólio da responsa-
bilidade”, cuja contrapartida era a submissão de todos.64 Ao se valer dos rituais de
deferência ao imperador, ainda comuns em petições desse tipo, certamente Sayão
também pretendia reforçar a ideia de que, melhor do que qualquer outro agente
do governo atuando em nome da lei (e no seu caso, eles estavam agindo além da
lei), era a autoridade imperial quem detinha a faculdade de julgar conforme o di-
reito e a melhor consciência.
A popularidade de d. Pedro II era alta entre os negros ― escravos ou for-
ros ― da cidade do Rio, que viam o soberano como árbitro imparcial na justiça e
protetor maior “dos fracos e oprimidos”.65 Aliás, essa percepção já se fazia sentir
desde o século XVIII. Como mostra o historiador Russell-Wood, durante o período
colonial, africanos que viviam em Salvador, Recife e no Rio de Janeiro ― e também
em outras possessões portuguesas ― costumavam servir-se deste meio extrajudi-
cial, levando seus casos diretamente ao monarca ou aos mais altos representantes
da Coroa. Para os vassalos destituídos de meios financeiros, ou cuja condição so-
 69 cial os relegava para as ínfimas camadas da sociedade, sem relações influentes ou
acesso à máquina judiciária, esse mecanismo era fundamental, pois transcendia a
possibilidade de evitar magistrados indiferentes ou insensíveis e uma burocracia
inacessível e muitas vezes corrupta. Segundo Russell-Wood, era o único caminho
para uma forma de justiça privada que operava independentemente das leis escri-
tas, dos canais legais e da magistratura e que, no espírito popular, era função de
uma interpretação personalizada da monarquia.66
Ainda que com intenções, caminhos e resultados diferenciados, essa crença ain-
da persistiria entre os “pretos” do Rio até os últimos anos da monarquia, inclusive en-
tre os comerciantes do Mercado da Candelária. Em outubro de 1885, durante a greve
que paralisou as atividades na Praça das Marinhas, uma quitandeira negra apareceu
recorrendo a D. Obá, o descendente de africano tido como “príncipe do povo” das
ruas da cidade, para que ele, por meio de seus artigos constantemente publicados na
imprensa, escrevesse ao imperador para tentar angariar apoio a seu protesto.67

64 Cf.: MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do Estado imperial. São Paulo: Hucitec,
2004, p. 161-163. SOUZA, Juliana Teixeira. A autoridade municipal na Corte imperial. Op. Cit., p. 190.
65 Cf.: REIS, João José. “Quilombos e revoltas escravas no Brasil”. Revista USP. São Paulo, 1996, n.28, p. 11;
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: d. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2.ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008, p. 15-22.
66 RUSSELL-WOOD, J. R. “Vassalo e soberano: apelos extrajudiciais de africanos e indivíduos de origem
africana na América portuguesa”. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.). Cultura portuguesa na terra de
Santa Cruz. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, p. 215-233.
67 Trata-se da representação ― uma espécie de charge publicada no jornal ilustrado O Mequetrefe, de 10 de
outubro de 1885, e intitulada “O que é ser príncipe” ― do encontro de uma quitandeira negra, com seu
tabuleiro de frutas, com o Príncipe D. Obá (identificado pelos seus trajes elegantes, reproduzidos em diversas
ilustrações do período). Entre eles, trava-se o seguinte diálogo: “– Abença?...Home, esse greve! Um!...tá bão...
Vossucê percisa fazê o escrevê a imperadô, desse cosa q si chama ballaquinha que tá lá na Plaça. /– Oh!...vai acabar.
Já tenho alguns artigos prontos!” Para uma análise mais detalhada dessa imagem, ver: FARIAS, Juliana Barreto.
“Mercado em greve: protestos e organização dos trabalhadores do pequeno comércio no Rio de Janeiro –
Outubro, 1885”. Op. Cit., p. 140-141. Sobre o Príncipe D. Obá, ver: SILVA, Eduardo. Dom Obá II D’África, o Príncipe
do Povo. Vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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Seja como for, segundo Juliana Teixeira Souza, teoricamente, não cabia ao
governo central julgar o mérito ou a oportunidade das resoluções tomadas pela
municipalidade, mas tão somente impedir que os vereadores infringissem as leis
gerais as quais deviam se ajustar. Não obstante, as deliberações pendentes de
aprovação ou sanção das autoridades superiores à Câmara eram tantas ― e de tal
forma indefinidas ―, que o resultado final acabava comprometendo a autonomia
municipal, mesmo em temas exclusivos à administração local.68 Na disputa entre
Sayão e Franco, a decisão da vereança foi reafirmada pelo governo imperial sem
maiores discussões. Certamente influências subterrâneas, inclusive denunciadas
por alguns vereadores, foram bem determinantes. No entanto, o fato de Domin-
gos Sayão não possuir documentos escritos que comprovassem sua sociedade na
banca conferiu um caráter legal à resolução.
É certo que no regulamento de 1844, ou mesmo nas posturas que se segui-
ram, não existia qualquer determinação nesse sentido. Contudo, fiscais e agen-
tes municipais afirmavam que, “como era sabido”, “sempre que há sociedade, há
escritura pública, ou papel de trato particular”. Na falta deles, podiam até lançar
mão de depoimentos fidedignos ou de investigações in loco. Mas eles nem sempre
eram encarados como garantias. Em 1848, Francisco da Cunha, cuja procedência
não consegui identificar, disputava a posse da banca 106 com o mina Matias dos
Santos, asseverando que era parceiro do antigo locatário (seu próprio irmão) que
acabara de falecer. Como não tinha registros que atestassem a dita sociedade, ele
remeteu à Câmara um abaixo-assinado por cinco indivíduos que a confirmavam.
Porém, para o fiscal da Praça, o documento não era “suficiente para fazer valer
ser um indivíduo sócio de outro, e desgraçados dos negociantes se semelhante
argumento fosse valioso, porque esta forma assim que qualquer que falecesse se
 70
improvisam sociedades em nome dos falecidos”.69
Nesse ponto, os africanos ― especialmente os solteiros ― já partiam, de
antemão, em desvantagem. Bem diferente dos “cidadãos brasileiros” e, sobre-
tudo dos portugueses, eles não costumavam registrar suas parcerias em cartó-
rios ou mesmo estabelecer contratos sociais. Nos diferentes acervos documentais
em que pesquisei, só localizei um único acordo escrito, firmado entre um africano
mina e outro locatário, de quem não foi possível saber a origem. Em 1.º de março
de 1849, o mina Jerônimo José Rodrigues e Francisco Pereira da Rosa contrataram
uma sociedade na banca 18, pelo período de um ano, mediante algumas condi-
ções. Enquanto Jerônimo entrava com a posse e as benfeitorias do lugar, Pereira
fornecia os fundos que fossem precisos, atuando como caixa e gerente da socie-
dade. E ainda “obrigava-se” a conceder a Rodrigues a quantia de trezentos e qua-
renta mil réis de lucro durante aquele prazo, mesmo se tivessem algum prejuízo.70
Outros “pretos forros” até encaminhavam ofícios informando fiscais e ve-
readores sobre a existência ― ou o desmonte ― de suas sociedades. Mas não
costumavam registrá-las em cartório. Geralmente, os negócios de africanos e afri-
canas baseavam-se na confiança, na palavra empenhada, muito mais difíceis de
constatar. Como a maior parte não sabia ler e escrever, e por isso dependia de ou-
tros que o fizessem (quase sempre os próprios locatários da Praça, especialmente
os portugueses), os acertos orais feitos entre os parceiros de trabalho acabavam
ganhando foro de contrato equivalente àqueles escritos e assinados em cartório.71

68 SOUZA, Juliana Teixeira. A autoridade municipal na Corte imperial. Op. Cit., p. 31


69 AGCRJ, Códice 61-2-2: Mercado da Candelária (1844-1849), p. 90-91.
70 Idem, p. 153.
71 É uma situação de alguma forma semelhante ao que acontecia nas juntas de alforria que unia africanos
em Salvador, conforme analisado em: REIS, João J. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão,
liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 210-211.

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Contudo, para a municipalidade, acordos desse tipo não eram suficientes para
certificar a existência de sociedades, sobretudo quando se tratava de transferir a
posse das bancas. Como então explicar que ― afora Domingos Sayão e Matias dos
Santos, que se envolveram em demoradas disputas ― a maior parte dos “pretos
forros” associados permanecesse por longos períodos numa mesma banca e ainda
transferisse a vaga para parentes e cônjuges de sua “nação”?
Uma eficiente rede de informações estava permanentemente em funcio-
namento no Mercado da Candelária. Não por acaso, assim que um local ficava
disponível, parceiros de trabalho, parentes, amigos e outros pretendentes mais
próximos, de posse da informação, corriam para pleitear a vaga na Câmara, antes
mesmo que um leilão público fosse aberto, oferecendo lances tidos como mais
vantajosos. Além do mais, boa parte desses africanos estava no mercado há mui-
to tempo (alguns instalados ali antes da construção do seu prédio) e gozava “de
muita reputação” e “boa estima” no lugar, o que era confirmado tanto por outros
arrendatários como por alguns fiscais e vereadores. Entretanto, tal reconhecimen-
to não valia apenas para esses libertos africanos. Novos e antigos banqueiros por-
tugueses e “brasileiros” também eram aprovados quase que imediatamente em
função do “bom conceito” que desfrutavam ali e na própria cidade do Rio de Ja-
neiro. Mas os “pretos forros” ― e, em especial, os minas ― ainda contavam com
uma particularidade a seu favor.
Enquanto os imigrantes lusos estavam habituados a estabelecer sociedades

 71
formais em suas vendas primordialmente com conterrâneos homens, com quem
tinham algum parentesco consanguíneo (filhos, primos ou irmãos), os minas não
registravam seus contratos de parcerias, mas trabalhavam lado a lado com ho-
mens e mulheres da mesma procedência (os chamados “parentes de nação”),
quase sempre seus próprios cônjuges. Em geral, apenas um deles (mais frequen-
temente, os homens) aparecia como titular da vaga e se colocava à frente das
petições e demais documentos encaminhados à municipalidade. Mas ― na labuta
cotidiana ― as atividades eram divididas entre os dois. O que, por certo, não esca-
pava aos agentes da fiscalização e a outros trabalhadores da Praça. Talvez por isso,
na hora em que o locatário inscrito deixava a sociedade ― geralmente por faleci-
mento ―, o pedido feito pelo companheiro (ou companheira) para continuar nos
negócios era aprovado de forma automática. Nessas ocasiões, eles enfim apresen-
tavam documentos comprobatórios. Não eram registros em cartórios atestando
as relações comerciais, mas certidões de casamento, óbito, batismo ou testamen-
tos. Será que, aos olhos dos avaliadores municipais, essas “provas” de suas uniões
matrimoniais também equivaliam a comprovantes de suas parcerias profissionais?
Se a argumentação delineada até aqui não nos convence de todo, ao menos
é possível afirmar com segurança que essa prática costumeira, demandada pre-
ferencialmente pelos minas, acabou virando uma regra no mercado, afixada em
edital de 30 de outubro de 1855, garantindo assim que cônjuges e filhos tivessem a
preferência no arrendamento das bancas de inquilinos falecidos. De meados da dé-
cada de 1840 até a publicação dessa nova postura, não achei, como era de se pre-
ver, portugueses ou portuguesas solicitando os lugares ocupados anteriormente
por seus companheiros. Entre os “cidadãos brasileiros”, apenas uma viúva dese-
java permanecer nos negócios iniciados pelo falecido marido. Já para os pretos
minas, localizei cinco casos desse tipo. A história do casal Luiz Laville e Felicidade
Maria da Conceição, dois forros dessa “nação”, é bem exemplar. Em novembro de
1851, Laville dirigiu uma súplica aos vereadores, onde dizia que

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sendo casado com Felicidade Maria da Conceição (hoje falecida), como


prova pelo documento junto, e tendo o suplicante arrendado em nome
da dita mulher a banca número 41 da Praça do Mercado, acontece que
sendo o suplicante falto de um braço, e tendo cinco filhos menores para
alimentá-los e não tendo outro modo de vida se não o pequeno negó-
cio de quitanda de verduras na dita banca, vem por isso o suplicante
implorar as Vossas Senhorias a graça de lhe conceder a continuação do
arrendamento da mesma banca em seu nome portanto.72

De acordo com o fiscal Antonio Joaquim de Mello, todas as informações


apresentadas eram verdadeiras, mas ― “sendo as transferências expressamente
proibidas” ― só a Câmara poderia despachar favoravelmente, “se assim o enten-
der”. O vereador encarregado da Praça compreendeu que a proibição, na qual se
fundara o fiscal, não podia ser extensiva ao caso, já que o “requerente [era] mari-
do/como prova/ da falecida locatária da banca em questão e vivendo em harmo-
nia e sendo ele de fato o dono do negócio, entendo se fará justiça, deferindo-se a
sua pretensão”.
E assim foi feito. Laville permaneceu na banca 51 até 1858. No ano seguinte,
mudou-se para a de número 107, onde ficou instalado por mais 11 anos. De suas
declarações, e também das do vereador, depreendemos que, apesar do primeiro
lugar estar em nome de Felicidade, ele era o verdadeiro “dono do negócio”. Talvez
fosse apenas mais um modo de reforçar o papel masculino, já que, à época, o ho-
mem era considerado o “cabeça do casal”. O certo mesmo é que, como apresen-
tou “provas” de sua condição (o assento de óbito de Felicidade, no qual constava
ser casada com o “preto mina”), Laville conseguiu a aprovação de seu pedido.  72
A partir de 1855, com a normatização desse mecanismo, outros pretos minas
e também portugueses e brasileiros passaram a usá-lo com regularidade, incluin-
do-se aí ― como previsto na postura ― filhos e herdeiros dos antigos locatários. É
claro que esses processos não ficaram destituídos de conflitos. Ou tiveram sempre
o mesmo desenrolar e igual continuidade. De qualquer forma, no caso dos minas,
essas práticas mais uma vez evidenciavam a importância do trabalho entre “paren-
tes de nação”. E como tudo isso também estava diretamente relacionado às suas
vivências cotidianas em outros espaços sociais.

•••

Embora se dispusesse de um regulamento específico para a Praça do Mer-


cado (ratificado em 1844), e constantemente fossem aprovados ― e colocados
em prática ― novos editais e normas, as decisões municipais sobre diferentes de-
mandas dos trabalhadores ali instalados muitas vezes dependiam de motivações e
resoluções que escapavam às formalidades legais. Como vimos, aqueles que des-
frutavam de maior proteção, fosse de fiscais da Praça, vereadores ou dos próprios
comerciantes do mercado, tinham suas reivindicações ― ou até os pedidos mais
simples ― logo satisfeitas. De outro lado, também não era difícil encontrar escra-
vos ― cujos senhores podiam trabalhar no mercado ou não ― vendendo gêne-
ros em diferentes bancas ou apenas comprando produtos, apesar das diferentes
proibições nesse sentido. Bem mais complexos do que um primeiro olhar poderia
sugerir, esses processos em geral envolviam redes de interesse, solidariedades,
contatos e proteções em geral indeterminadas.

72 AGCRJ, Códice 61-2-7: Mercado da Candelária (1850-1857), p. 78.

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Além do mais, a experiência de trabalho no local, em muitos casos, anterior


à construção do mercado, e o reconhecimento de uma certa “aptidão mercantil”
pareciam igualmente fundamentais nas avaliações, em especial quando estava em
jogo a concessão de uma vaga ou a aprovação de uma transferência. E isso conse-
guimos acompanhar a partir das trajetórias de alguns pretos minas. Não obstante
se tratasse de africanos libertos, e, portanto, mais próximos da escravidão, eles
praticamente não tiveram suas “habilidades” para o ofício ou sua condição de li-
berdade questionada por agentes municipais ou pela vereança.
Mas essas constatações não podem ofuscar, é certo, a agência dos próprios
trabalhadores da Praça. Conforme também observamos, locatários ou candidatos
a uma vaga, assim como quitandeiras e pombeiros ocupados em outras áreas do
mercado, embora muitas vezes partissem de interesses e objetivos distintos (e
por que não conflitantes), valiam-se de diferentes dispositivos e estratégias para
garantir o que consideravam “justo” ou um “direito”. Nesse caminho, podiam ir
longe e chegar ao imperador, como o fez o calabar Domingos José Sayão. Adotar
posturas coletivas, como constatamos a partir da profusão de abaixo-assinados e
petições conjuntas encaminhados à Câmara, e hoje compilados nos muitos códices
do Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro. Ou, no limite, organizar uma greve, como
aconteceu em outubro de 1885. De um jeito ou de outro, ao final, podiam conse-
guir que práticas e direitos costumeiros fossem ratificados pela Câmara e incorpo-
rados aos regulamentos da Praça do Mercado.

 73 Recebido em 13/05/2013


Aprovado em 10/06/2013

Revista Mundos do Trabalho | vol. 5 | n. 9 | janeiro-junho de 2013| p. 49-73


Na mira dos funcionários municipais:
considerações acerca das infrações de
postura nos distritos suburbanos do
Rio de Janeiro no início do século XX
Cristiane Regina Miyasaka*

Resumo: O presente artigo tem como objetivo traçar um panorama da aplicação de


multas por infração de posturas no Rio de Janeiro, no início do século XX, sobretudo
nos distritos suburbanos. Tal proposta tem como intenção dialogar com a historio-
grafia que trata das reformas urbanas empreendidas na cidade nessa época, procu-
rando compreender os mecanismos adotados pelo poder público para garantir o
cumprimento da legislação municipal, bem como os conflitos oriundos dessas me-
didas. Nesse sentido, foram analisadas as diferenças entre as autuações realizadas
nos distritos urbanos e suburbanos, as multas mais recorrentes, as estratégias em-
pregadas pelos infratores para não pagá-las, entre outras questões.

Palavras-chave: Infração de posturas – Rio de Janeiro – Subúrbios

Abstract: The objective of this article is to provide an overview about the appli-
cation of fines for law infraction in Rio de Janeiro, in the early twentieth century,
especially in suburban districts. It proposes a dialogue with the historiography re-
lated to the urban reforms undertaken in city in that period, seeking to understand
the mechanisms adopted by public authorities to ensure the enforcement of local
legislation, as well as the conflicts that arose from those measures. Therefore, it
emphasizes the differences between the enforcement of fines in urban and subur-
ban districts, which fines were more frequent, what strategies were employed by
offenders to avoid the payment of them, and so forth.

Keywords: Law Infraction - Rio de Janeiro - Suburbs

Durante a década de 1870, começou a ser esboçado o primeiro projeto de


reforma urbana para a Corte. A Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de
Janeiro foi nomeada por Dom Pedro II em 1874. Pereira Passos estava entre os en-
genheiros que faziam parte dessa comissão.1 O alargamento de ruas, a construção

* Bolsista Fapesp (Processo n.º 2012/20580-9). Unicamp. Contato: crismiyasaka@gmail.com


1 Embora Pereira Passos seja lembrado em razão da polêmica administração da capital federal entre 1902 e
1906, o engenheiro ocupou cargos importantes desde o final da década de 1850. Entre 1857 e 1860, fez par-
te da legação brasileira em Paris, acompanhando parte das obras empreendidas na capital francesa durante
a gestão de Haussmann. Ao retornar ao Brasil em 1860, trabalhou na construção de ferrovias, elaborando
estudos para o prolongamento da Estrada de Ferro de Cantagalo e colaborando com o assentamento dos
trilhos da segunda seção da Estrada de Ferro Dom Pedro II. Em 1870, ocupou o cargo de consultor técnico
do Ministério da Agricultura e Obras Públicas. Para informações mais detalhadas sobre sua carreira, ver:
BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussmann Tropical. A renovação urbana na cidade do Rio
de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de
Documentação e Informação Cultural, 1992, cap. 11.

Revista Mundos do Trabalho | vol. 5 | n. 9 | janeiro-junho de 2013| p. 75-100


CRISTIANE REGINA MIYASAKA

de avenidas, de uma grande praça de mercado e de uma estação marítima para a


Estrada de Ferro Dom Pedro II, além da reforma do porto, estavam entre as obras
projetadas.2 Tais melhoramentos não foram levados a cabo durante o final do sé-
culo XIX, porém a discussão sobre a necessidade de mudanças na infraestrutura da
cidade começou a se configurar nessa época. A recorrência de surtos epidêmicos
de febre amarela contribuiu para a intensificação desse debate, já que passaram a
ser associados às condições de salubridade do Rio de Janeiro. Eles foram especial-
mente graves em 1873 e 1876.3
Com a Abolição da Escravidão e a onda imigratória do final do século XIX, a
crise habitacional enfrentada pela capital federal se agravou. Segundo o médico
demografista Aureliano Portugal, o número de habitações coletivas na cidade qua-
se quadruplicou entre 1888 e 1890.4 Dados referentes ao recenseamento de 1890
indicam que 81% da população carioca residiam nos distritos urbanos e 18% nos
suburbanos.5 A despeito dessa diferença, ainda na década de 1890 começaram a
aparecer pessoas interessadas em ampliar a ocupação da zona suburbana, que em
diversos distritos ainda tinha um aspecto bastante rural.
Em janeiro de 1891, foi firmado um contrato entre João Luis dos Santos e o
Conselho Municipal do Rio de Janeiro, que previa a construção de cinco avenidas
(habitações coletivas) e a realização de “melhoramentos”, como ruas e praças,
nos distritos de Engenho Novo, Inhaúma e Irajá.6 Nesse mesmo ano, Prudêncio
Paschoal Telles dos Reis, Ignácio Antonio Teixeira Jr. e José Baldraco apresenta-
ram a seguinte proposta ao Ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas:

[...] fundar com as duas freguesias suburbanas de Irajá e Jacarepaguá,


 76
a partir do Campinho, uma espécie de cidade, onde, em terrenos quase
abandonados e de fácil aquisição, serão construídas três mil casas, não
só para a habitação de operários e classes pobres, oficinas e comércio
local [...].
Pretendem os suplicantes com estas edificações não só facilitar a todas
as classes a obtenção, por aluguel ou compra razoável, de uma casa
com as condições higiênicas e em um bairro aprazível e perto da Capi-
tal (onde atualmente se encontra com dificuldade casas para alugar, o
que significa que o número destas é insuficiente para a população da
cidade), como também povoar um bairro que, pelas vantagens que ofe-
rece, terá em breve grande desenvolvimento, superior, talvez, ao que já
se nota em outros que não oferecem iguais vantagens.7

Como é possível notar, os interessados justificaram a construção de tais casas


em razão do problema habitacional enfrentado pela cidade, especialmente grave
nos distritos centrais. Vale destacar a intenção em edificar casas com “condições
higiênicas” para os “operários e classes pobres”. Subentende-se, a partir desse
raciocínio, que aqueles que viviam nas áreas centrais da cidade não gozavam de
boas condições de moradia.

2 Cf.: BENCHIMOL, Jaime. Op. cit., cap. 8.


3 Para acompanhar os debates a respeito das epidemias de febre amarela, suas formas de transmissão e
suas relações com a imigração e a decadência da escravidão, ver: CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: corti-
ços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, cap. 2.
4 Relatório dos trabalhos da Inspetoria Geral de Higiene apud BENCHIMOL, Jaime. Op. cit., p. 181.
5 Cf.: Diretoria Geral de Polícia Administrativa, Arquivo e Estatística. Recenseamento do Rio de Janeiro (Dis-
tricto Federal): Realizado em 20 de setembro de 1906. Rio de Janeiro: Oficina de Estatística, 1907, p. 23. A
população marítima da capital federal correspondia a 1% em 1890.
6 AGCRJ, Códice 33.1.2, Logradouros Públicos – Freguesias do E. Novo, Inhaúma e Irajá. Melhoramentos.
(1891-1892).
7 AGCRJ, Códice 46.2.70, Melhoramentos em Irajá e Jacarepaguá. (1891).

Revista Mundos do Trabalho | vol. 5 | n. 9 | janeiro-junho de 2013| p. 75-100


NA MIRA DOS FUNCIONÁRIOS MUNICIPAIS: CONSIDERAÇÕES ACERCA...

No bojo das discussões sobre a necessidade de reformar a estrutura da ci-


dade, as habitações coletivas tornaram-se alvos preferenciais de perseguição por
parte da municipalidade e da polícia. Casas de cômodos, cortiços e estalagens pas-
saram a ser vistos como um dos principais focos para a proliferação de doenças,
bem como o espaço onde viviam as “classes perigosas”.8 No alvorecer do regime
republicano, durante a breve administração de Barata Ribeiro, a demolição do fa-
moso cortiço Cabeça de Porco marcou o período.
Ao longo da década de 1890, é possível notar também uma preocupação
do poder público municipal em controlar as construções e reconstruções na ci-
dade, especialmente na área urbana. Nessa época, vários decretos e posturas fo-
ram aprovados definindo restrições para a edificação ou reforma de prédios nos
distritos urbanos. Tais regulamentos dificultaram, principalmente, a execução de
melhorias em cortiços e estalagens. Para a área suburbana, todavia, os habitantes
não precisavam solicitar licença de construção, tampouco pagar emolumentos.
De acordo com a resolução de 17 de junho de 1893, a única orientação para as
obras realizadas nessa região era a de que os prédios precisavam ficar três metros
afastados do alinhamento das ruas. Ou seja, no final do século XIX, a atenção da
municipalidade estava voltada, sobretudo, para os distritos urbanos, ainda que os
subúrbios começassem a despertar o interesse de pessoas dispostas a construir
habitações coletivas e casas para operários. A própria instalação de diversas esta-
ções de trens nos subúrbios contribuiu para a sua ocupação.
Porém, o que realmente impulsionou o crescimento dessa área da cidade foi
 77 a realização das reformas urbanas durante a administração do presidente Rodri-
gues Alves e do prefeito Pereira Passos, no início do século XX. Em razão delas, o
traçado da região central e portuária do Rio de Janeiro foi alterado consideravel-
mente. Ruas foram alargadas, avenidas foram construídas, prédios foram demoli-
dos, o porto foi ampliado e revitalizado. Tamanha reforma teve grande impacto na
vida daqueles que moravam na região, habitada, em sua maioria, por trabalhado-
res — que residiam em cortiços e estalagens — e por pequenos proprietários e co-
merciantes. Estavam entre as alternativas de moradia para as pessoas que foram
obrigadas a sair da área renovada: a busca por habitações coletivas remanescen-
tes, a ocupação dos morros próximos ao centro ou a ida para os subúrbios.
Tal processo de transformação urbana foi objeto de estudo de vários auto-
res , sendo a obra Pereira Passos: um Haussmann Tropical, de Jaime Benchimol, a
9

referência clássica dentre os trabalhos produzidos ao longo da década de 1980.10


Pautado em uma vasta pesquisa empírica, o autor apresentou informações sobre
os diversos contratos assinados pela municipalidade, bem como as concessões re-
alizadas. Detalhou aspectos da infraestrutura da cidade antes e após as reformas,
assim como descreveu minuciosamente as obras empreendidas. Em termos teóri-
cos, partiu de um instrumental marxista para interpretar os motivos que levaram
à realização do projeto de renovação urbana. Do seu ponto de vista, a reestrutu-

8 A respeito da perseguição aos cortiços no final do século XIX, ver: CHALHOUB, Sidney. Op. cit., cap. 1.
9 Diversos autores investigaram o processo de reforma urbana no Rio de Janeiro. Merecem destaque as
seguintes obras: PECHMAN, Sérgio; FRITSCH, Lilian. “A reforma urbana e seu avesso: algumas considera-
ções a propósito da modernização do Distrito Federal na virada do século”. Revista Brasileira de História.
São Paulo: Marco Zero, v. 5, n. 8/9, p. 139-195, set.1984/abr.1985; CARVALHO, Lia de Aquino. Contribuição
ao estudo das habitações populares: Rio de Janeiro, 1886-1906. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de
Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1986; ROCHA, Oswaldo Porto. A
era das demolições: cidade do Rio de Janeiro, 1870-1920. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura,
Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1986; ABREU, Maurício de A. A evolução
urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO & Zahar, 1987.
10 BENCHIMOL, Jaime. Op. cit.

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CRISTIANE REGINA MIYASAKA

ração da cidade estava diretamente relacionada à transição do sistema escravista


para o capitalista. Como no início do século XX a utilização do espaço urbano não
atendia mais aos interesses dos capitalistas estrangeiros e brasileiros, nem aos do
Estado republicano, elas foram realizadas. A passagem a seguir é exemplar da tese
defendida por Benchimol:

[...] a operação de renovação urbana tinha em mira: a criação de uma es-


trutura portuária condizente com o volume, a velocidade e a qualidade
do movimento comercial de exportação e importação que constituía a
base da vida econômica do Rio de Janeiro; criação de vias de comunica-
ção compatíveis com o volume e a velocidade da circulação de cargas e
homens no âmbito da própria cidade; erradicação das frequentes epide-
mias, em particular a febre amarela, que ceifavam a vida de milhares de
pessoas, comprometendo o êxito da política de estímulo à imigração,
além de colocar em permanente risco vidas no seio das próprias classes
dominantes; a estratificação do espaço urbano carioca e a criação de
espaços destinados ao lazer e ao desfrute das classes dominantes.11

Em sua análise, o autor destaca o papel do Estado nesse processo de trans-


formação urbana, apontando diferenças em relação ao século XIX. Até então, o
poder público deixava sob responsabilidade da iniciativa privada a realização de
obras, por meio de concessões, que geralmente tinham natureza especulativa e
não resultavam em melhorias. Durante a administração de Pereira Passos e Rodri-
gues Alves, o Estado tomou para si a tarefa de empreender as obras de renovação
urbana. Tal intervenção, de amplitude inédita, representou  78
[...] a expropriação ou segregação de um conjunto socialmente dife-
renciado de ocupantes de um espaço determinado da cidade — modi-
ficado pela ação do Estado — e sua apropriação por outras frações de
classe. Essa “transferência” realizou-se por intermédio de mecanismos
de expropriação e valorização acionados diretamente pelo Estado.12

Como bem destacou Benchimol, a ação do Estado contribuiu decisivamente


para a redistribuição demográfica no âmbito da cidade, uma vez que muitos habi-
tantes dos distritos centrais e da zona portuária não puderam mais residir nessa
região da cidade. Ao compararmos os dados dos recenseamentos de 1890 e 1906,
podemos notar o processo de mobilidade espacial que se deu na capital federal.
Em 1890, 92.906 pessoas residiam nos subúrbios. Dezesseis anos depois, essa po-
pulação duplicou, atingindo 185.687 habitantes. No caso dos distritos urbanos, o
crescimento foi de aproximadamente 46%, pois sua população passou de 425.386
habitantes para 619.648. Distritos centrais, como Candelária e Sacramento, dire-
tamente atingidos pelas obras de renovação, sofreram decréscimos populacionais
de 54% e 20%, respectivamente. Entretanto, distritos mais afastados do centro,
como Engenho Velho e Engenho Novo, aumentaram 147% e 126%. Na zona subur-
bana, Inhaúma cresceu 293% e Irajá, 109%.13
A despeito da amplitude das pesquisas desenvolvidas, que enfocaram prin-
cipalmente o desenrolar das reformas e quais grupos sociais foram beneficiados
ou prejudicados, ainda é possível explorar questões pertinentes ao tema. A admi-

11 BENCHIMOL, Jaime. Op. cit., p. 317.


12 BENCHIMOL, Jaime. Op. Cit., p. 245.
13 Diretoria Geral de Polícia Administrativa, Arquivo e Estatística. Recenseamento do Rio de Janeiro (Districto
Federal): Realizado em 20 de setembro de 1906. Rio de Janeiro: Oficina de Estatística, 1907, p. 23.

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NA MIRA DOS FUNCIONÁRIOS MUNICIPAIS: CONSIDERAÇÕES ACERCA...

nistração de Pereira Passos não foi marcante apenas por ter demolido inúmeros
prédios e ter dado ares europeizados ao Rio de Janeiro. Sem dúvida, esse foi o seu
aspecto mais visível. Entretanto, durante a sua gestão, a ação fiscalizadora do po-
der público, bem como a cobrança de impostos aumentaram consideravelmente.
Sendo assim, esse artigo tem dois objetivos principais. O primeiro deles é
traçar um panorama a respeito da aplicação de multas por infração de posturas no
Distrito Federal, no início da administração de Pereira Passos, atentando para as
diferenças entre os distritos urbanos e suburbanos. Ao identificar as especificida-
des dessas duas áreas, pretendo ampliar o olhar sobre o processo de renovação
urbana, uma vez que a historiografia relacionada ao tema privilegiou as mudanças
ocorridas nos distritos centrais e portuários. Dado que uma quantidade significa-
tiva de pessoas, dentre elas muitos trabalhadores, acabaram se mudando para os
distritos mais afastados do centro e também para os subúrbios, é fundamental
deslocar o foco de análise para outras regiões da cidade. Por isso, darei ênfase à
análise da aplicação de multas nos subúrbios, identificando em quais áreas a fisca-
lização era mais intensa e quais eram as infrações mais recorrentes.
Esse artigo também tem como propósito apresentar os embates que ocor-
reram nos subúrbios — sobretudo no distrito de Inhaúma, em razão da aplicação
de multas relacionadas à construção — e as estratégias dos trabalhadores subur-
banos diante delas. Além de ter sido o distrito que mais cresceu, em termos pro-
porcionais, entre 1890 e 1906, o número de trabalhadores em Inhaúma aumen-
tou consideravelmente. Em 1890, aqueles que trabalhavam na indústria somavam

 79 apenas 815 indivíduos, porém, em 1906, eles passaram a representar 10% de toda
a categoria, atingindo a quantia de 11.240 operários. Com isso, Inhaúma tornou-se
o distrito carioca com o maior número de trabalhadores da indústria. Os emprega-
dos em serviços domésticos também compunham uma parte importante de sua
população, pois, em 1890, correspondiam a 1.343 pessoas e subiram para 8.709,
em 1906. Nesta última data, jornaleiros e trabalhadores braçais correspondiam a
9.403 indivíduos. Essas três categorias somadas correspondiam a 81% dos habitan-
tes de Inhaúma que declararam a sua ocupação no recenseamento de 1906. Ou
seja, após o período das reformas, Inhaúma tornou-se uma área de residência de
muitos trabalhadores.
Como veremos com mais detalhes adiante, durante a administração de Perei-
ra Passos, esse distrito foi incluído na cobrança de emolumentos para a construção
ou reconstrução de edifícios. Até então, em nenhum distrito suburbano era neces-
sário requerer licença para a realização de obras. Com a mudança na legislação e
a consequente autuação de indivíduos que a descumpriam, muitos trabalhadores
recorreram ao prefeito para evitar o pagamento das dívidas. A partir da análise
desses requerimentos, acompanharemos os conflitos decorrentes da fiscalização
municipal em Inhaúma.

A aplicação de multas por infração de posturas no


início da administração de Pereira Passos
As posturas eram regulamentos elaborados pela Intendência Municipal (Po-
der Legislativo) para normatizar diversos aspectos da vida urbana. Definiam, por
exemplo, regras e valores para a obtenção de vários tipos de licença, tais como a
abertura de estabelecimento comercial, a construção de prédios, o exercício do
comércio ambulante, entre outros. Também determinavam restrições em relação

Revista Mundos do Trabalho | vol. 5 | n. 9 | janeiro-junho de 2013| p. 75-100


CRISTIANE REGINA MIYASAKA

à comercialização de produtos, como a proibição da exposição de mercadorias


na porta dos estabelecimentos e a obrigatoriedade da aferição dos pesos usados
no comércio. Interferiam ainda nas relações de trabalho, uma vez que passaram
a proibir o funcionamento das casas de comércio aos domingos, após o meio-dia,
e determinaram que motorneiros deveriam realizar exames para a execução de
suas funções. Versavam também sobre os usos do espaço urbano, ao normatizar
o corte de matas, bem como definiam prescrições sanitárias, ao proibir o depósito
de lixo em via pública ou o despejo das águas servidas.
No início do regime republicano, a infração a tais posturas era punida com o
pagamento de multas e até mesmo com a prisão temporária do infrator, segundo
a Lei n.o 85, de 20 de setembro de 1892, que reorganizou a administração munici-
pal. As multas poderiam atingir até 200$000 (duzentos mil réis) e a prisão poderia
ser de até cinco dias. A observância dessa legislação, assim como a elaboração dos
autos de infração era realizada pelos agentes da Prefeitura, que tinham como seus
auxiliares os guardas do distrito.
Dez anos mais tarde, Rodrigues Alves promulgou novo regulamento a res-
peito da organização do Distrito Federal assim que assumiu a presidência do país.
Segundo a Lei n.o 939, de 29 de dezembro de 1902, as multas aplicadas poderiam
chegar a 1:000$000 (um conto de réis) e os infratores poderiam ser presos por até
quinze dias. Além disso, chama a atenção os dispositivos legais disponibilizados ao
Conselho Municipal, que poderia deliberar sobre

a cassação de licença, fechamento, interdição, destelhamento e demo-


 80
lição de prédios, obras e construções, apreensão, destruição dos bens
apreendidos e venda deles por conta e risco de seus donos, despejo,
sequestro e venda de objetos para indenização de despesas feitas.14

Tais prerrogativas denotam o respaldo presidencial à ação do Poder Legis-


lativo do Distrito Federal, especialmente no que diz respeito ao gerenciamento
do espaço urbano. Ao permitir que o Conselho Municipal pudesse legislar sobre
todas essas questões, Rodrigues Alves preparou o arcabouço jurídico necessário
para a realização das reformas urbanas. Vale notar, entretanto, que todas essas
prerrogativas só começariam a valer após a eleição dos intendentes, que deveria
ser realizada em seis meses. Até lá, a administração do Distrito Federal ficaria sob
a responsabilidade do prefeito, que gozaria de plenos poderes para administrar a
capital federal, exceto o de criar e elevar impostos. Um dia após a sanção dessa
lei, Pereira Passos foi nomeado prefeito da cidade. Durante o primeiro semestre
de seu mandato, uma série de posturas municipais foram revistas ou criadas e en-
traram em vigor.
Para termos noção da especificidade da atuação da poder público municipal
durante a administração de Pereira Passos, no que diz respeito à aplicação de mul-
tas por infração de posturas, apresento a seguir um exercício comparativo, que
tomou como base os balancetes da Prefeitura, entre 1901 e 1903.15

14 Lei n.o 939, de 29 de dezembro de 1902. Art. 7.º §1.º.


15 Antes mesmo de ser contratada pela Prefeitura do Distrito Federal para a publicação dos seus atos oficiais,
a Gazeta de Notícias já divulgava o balancete de receita e despesa do Rio de Janeiro. O contrato firmado
entre as partes foi publicado pelo próprio periódico, em 3 de maio de 1901, p. 2.

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Tabela 1 - Multas arrecadadas por infração de posturas (1901 – 1903)


1901 1902 1903
Janeiro - 90$000 9:393$500
Fevereiro - 5:565$600 12:515$200
Março 17:565$100 6:421$800 18:904$400
Abril 13:663$300 9:679$600 18:403$000
Maio 21:408$916 7:106$200 29:058$500
Junho 19:640$100 5:413$900 17:203$500
Julho 9:101$850 9:315$400 23:177$000
Agosto 8:342$420 9:113$500 16:539$100
Setembro 13:903$600 6:270$500 21:815$100
Outubro 9:787$560 6:772$900 24:039$900
Novembro 7:534$400 5:128$994 22:370$880
Dezembro 3:402$340 4:317$300 15:513$100
Total 124:349$586 75:195$694 228:933$180

Ainda que as informações referentes ao ano de 1901 estejam incompletas, é


possível chegar a algumas conclusões. No primeiro ano considerado, o valor arre-
cadado com as multas oscilou bastante. No mês de dezembro, a arrecadação foi
quase sete vezes menor do que a do mês de maio. Em 1902, o montante obtido

 81 mensalmente diminuiu significativamente, se comparado ao ano anterior. Em ne-


nhum mês a marca dos 10:000$000 (10 contos de réis) foi atingida. Mesmo sem os
valores referentes aos meses de janeiro e fevereiro, em 1901, o valor total arreca-
dado foi 65% maior do que o de 1902. Em 1903, entretanto, sob a administração de
Pereira Passos, a arrecadação mensal e anual com multas por infração de posturas
aumentou consideravelmente. Triplicou em relação a 1902 e foi 85% maior em re-
lação a 1901.
Tanto Benchimol como Sérgio Pechman e Lilian Fritsch apontaram para
a intensificação da fiscalização municipal a partir do período das reformas urba-
nas. O primeiro afirmou que essas medidas “serviram para descarregar parte do
ônus da ‘modernização’ sobre a heterogênea plebe carioca”.16 Ao apresentar os
diversos regulamentos aprovados durante a administração de Pereira Passos, o
autor privilegiou as transformações que ocorreram no âmbito da legislação. Dei-
xou de considerar, todavia, os conflitos decorrentes dessa atuação mais incisiva
da municipalidade. Partindo do pressuposto de que as reformas urbanas foram
um desdobramento inerente à transição do sistema escravista para o capitalista, a
população pobre e trabalhadora do Rio de Janeiro foi tratada como vítima desse
processo. Nessa perspectiva de análise, portanto, não havia espaço para as tenta-
tivas de negociação com o poder público municipal.
Pechman e Fritsch também abordaram as mudanças que ocorreram na le-
gislação carioca. Entretanto, eles procuraram evidenciar que a implementação de
novas formas de regulação dos hábitos e costumes levou a população a buscar
estratégias para lidar com a nova conjuntura:

O projeto de reforma do Rio proposto pela administração Rodrigues


Alves ilustra à perfeição como os setores populares, em certas ocasiões,
mesmo não conseguindo barrar a implementação, no seu conjunto, de

16 BENCHIMOL, Jaime. Op. cit., p. 277.

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CRISTIANE REGINA MIYASAKA

uma série de medidas oficiais, podem forçar as autoridades à negocia-


ção, logrando com isso, minorar os males que lhes seriam causados.17

Para os autores, o repúdio popular a essa intensificação do controle sobre


suas práticas se expressou por meio dos motins, do desrespeito às leis e da manu-
tenção de seus hábitos. Ainda que concordassem com a ideia de que a consolida-
ção do capitalismo impulsionou a realização das reformas no Rio de Janeiro, os au-
tores buscaram matizar esse processo, defendendo que a população não aceitou
passivamente tais mudanças.
Para ampliar esse debate, faz-se necessário levar em consideração outras
formas de atuação da população frente ao aumento do controle por parte da mu-
nicipalidade. Um caminho para isso tem sido delineado mediante a investigação
das estratégias de negociação com o Conselho Municipal e com o próprio prefei-
to. As queixas e os abaixo-assinados enviados aos meios de comunicação e aos
intendentes, assim como os recursos e questionamentos remetidos ao chefe do
Executivo dão indícios dos conflitos oriundos do recrudescimento da legislação
municipal e demonstram, ao mesmo tempo, o aspecto relacional desse processo.
Os habitantes não aceitaram tacitamente as reformas. Ainda que trabalhadores e
pobres em geral não estivessem em condições de barrar o projeto de renovação
urbanística, eles buscaram expressar o seu descontentamento, assim como em-
preenderam esforços para minimizar o seu impacto.
Dependendo da região da cidade onde se residia, a cobrança de impostos
podia variar. Sendo assim, apresento a seguir os dados a respeito das multas arre-
cadadas nas áreas urbanas e suburbanas do Rio de Janeiro, em 1903:  82
Tabela 2 - Multas arrecadadas por infração de posturas no Distrito Federal,
segundo distritos urbanos e suburbanos (1903)18
Distritos Urbanos Distritos Suburbanos
  Total mensal
Arrecadação mensal % Arrecadação mensal %
Janeiro 8:265$940 94% 520$500 6% 8:786$440
Fevereiro 7:413$100 86% 1:236$500 14% 8:649$600
Março 10:879$800 93% 803$500 7% 11:683$300
Abril 11:457$900 88% 1:557$520 12% 13:015$420
Maio 18:683$700 93% 1:319$600 7% 20:003$300
Junho 10:830$500 83% 2:216$000 17% 13:046$500
Julho 15:133$500 94% 1:040$500 6% 16:174$000
Agosto 11:791$100 96% 523$500 4% 12:314$600
Setembro 13:808$000 95% 663$000 5% 14:471$000
Outubro 12:234$600 92% 1:126$000 8% 13:360$600
Novembro 11:894$600 88% 1:653$000 12% 13:547$600
Dezembro 9:820$700 90% 1:054$300 10% 10:875$000
Total anual 142:213$440 91% 13:713$920 9% 155:927$360

17 PECHMAN, Sérgio; FRITSCH, Lilian. Op. cit, p. 178.


18 Em 16 de junho de 1903, foi promulgado o Decreto n.º 434, que reorganizou a divisão territorial do Distrito
Federal. Até aquela data, o Rio de Janeiro contava com 27 distritos, dos quais 10 eram considerados subur-
banos. Após o referido decreto, passou a ter 25 distritos, sendo 7 suburbanos. As equivalências necessá-
rias foram realizadas para a elaboração da tabela. Ao longo do artigo, prevaleceu a organização adotada
a partir do Decreto n.º 434.

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Antes de dar início à análise, é importante esclarecer que mensalmente a Pre-


feitura publicava nas páginas da Gazeta de Notícias tanto o balancete de receitas
e despesas como um quadro demonstrativo das multas arrecadadas por distrito,
o que permitiu a elaboração da Tabela 2. Como é possível notar, os valores totais
mensais provenientes desses quadros não correspondem aos montantes também
mensais que apareceram na Tabela 1. Nenhuma informação que justificasse essa
diferença foi encontrada na seção que publicava os atos oficiais da municipalidade.
A despeito dessas incompatibilidades, é bastante evidente a diferença entre
o valor arrecadado com as multas nas áreas urbana e suburbana. Durante o ano de
1903, o mês com o maior percentual de pagamento de multas nos distritos subur-
banos foi junho, com 17%. Alguns aspectos devem ser considerados para entender
essa discrepância. O primeiro deles está relacionado à diferença nos impostos, se-
gundo a área de residência. De acordo com o Decreto n.º 391, a cobrança de emo-
lumentos para a construção, reconstrução e reforma de prédios incidia sobre toda
a área urbana e apenas sobre alguns distritos suburbanos. Como a infração a esse
decreto foi um dos principais motivos de autuação durante a administração de Pe-
reira Passos, é fundamental levar em conta esse aspecto para entender a diferença
entre as multas pagas pelos moradores dos distritos urbanos e suburbanos.
Outro fato a ser considerado diz respeito à quantidade de pessoas que re-
sidiam em cada uma das áreas. Tomando como base os recenseamentos de 1890
e 1906, os suburbanos correspondiam a 18% da população do Distrito Federal em
1890 e atingiram 23% em 1906.19 Ou seja, havia um contingente bem maior de pes-

 83 soas nos distritos urbanos do que nos suburbanos, o que leva a crer que a possibili-
dade de autuação era maior no caso dos primeiros. Vale observar ainda que a área
dos distritos urbanos era menor, o que deve ter facilitado o trabalho de fiscaliza-
ção dos funcionários municipais responsáveis pela aplicação das multas.
Além da diferença entre os distritos urbanos e suburbanos, a aplicação de
multas era mais recorrente em alguns distritos dos subúrbios do que em outros,
como pode ser visualizado na tabela a seguir:

Tabela 3 - Multas arrecadadas por infração de posturas, segundo os distritos


suburbanos do Rio de Janeiro (1903)20
Total anual
1º tri 2º tri 3º tri 4º tri
por distrito
Valor Valor Valor Valor Valor
% % % % %
arrecadado arrecadado arrecadado arrecadado arrecadado
Inhaúma 478$000 19% 1:652$000 32% 557$000 25% 2:924$300 76% 5:611$300 41%
Irajá 760$000 30% 943$600 19% 240$500 11% 198$500 5% 2:142$600 16%
Jacarepaguá 310$000 12% 172$000 3% 77$000 3% 76$000 2% 635$000 5%
Campo
296$000 12% 1:140$000 22% 556$000 25% 268$000 7% 2:260$000 16%
Grande
Guaratiba 24$000 1% 685$000 13% 160$000 7% 12$000 0% 881$000 6%
Santa Cruz 672$500 26% 480$520 9% 454$500 20% 225$000 6% 1:832$520 13%
Ilhas 20$000 1% 20$000 0% 182$000 8% 129$500 3% 351$500 3%

19 Diretoria Geral de Polícia Administrativa, Arquivo e Estatística. Recenseamento do Rio de Janeiro (Districto
Federal): Realizado em 20 de setembro de 1906. Rio de Janeiro: Oficina de Estatística, 1907, p. 23.
20 �����������������������������������������������������������������������������������������������������
Tabela elaborada com base nos quadros demonstrativos das multas arrecadadas em cada distrito e publi-
cados quinzenalmente ao longo de 1903, exceto nos casos de janeiro e fevereiro, cujas publicações foram
mensais. Esses dados também foram utilizados para a construção da Tabela 4.

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A partir desses números, é possível notar que na zona suburbana os habi-


tantes de Inhaúma foram os que mais pagaram multas por infração de posturas
ao longo de 1903, atingindo a cifra de 41% do total enviado aos cofres municipais.
Chama a atenção, inclusive, o 4.º trimestre, onde Inhaúma foi responsável por 76%
do montante pago. Seguem com uma arrecadação intermediária os distritos de
Irajá, Campo Grande e Santa Cruz. Os distritos que tiveram um número pequeno
de autuações foram Guaratiba, Jacarepaguá e Ilhas.
Existem algumas razões para que os habitantes de Inhaúma tenham sido
mais multados. Esse foi o distrito que mais cresceu, em termos demográficos, en-
tre 1890 e 1906, pois era o mais próximo da área urbana. Sua população passou de
17.448 habitantes para 68.557 no período. Outros distritos também tiveram um au-
mento populacional considerável, tais como Irajá e Campo Grande. Aquele passou
de 13.130 habitantes para 27.410. O último, por sua vez, possuía 15.950 moradores
em 1890 e subiu para 31.248 em 1906.21 Os percentuais de crescimento dos três
distritos foram, respectivamente: 293%, 109% e 96%. Tanto em números absolutos
como em termos percentuais, esses três distritos foram os que mais destacaram
na zona suburbana. Tal aumento demográfico foi acompanhado pelo crescimento
predial. Vejamos:

Tabela 4 – Crescimento predial na zona suburbana (1890-1906)22


Número de domicílios

Inhaúma
1890
2.315
1906
9.140
Diferença em nos absolutos
6.825
 84
Irajá 1.614 4.201 2.587
Jacarepaguá 1.324 1.947 623
Campo Grande 1.868 3.905 2.037
Guaratiba 1.335 2.868 1.533
Santa Cruz 1.203 1.844 641
Ilha do Governador 563 837 274
Paquetá 285 306 21
Total 10.507 25.048 14.541

Como é possível notar, Inhaúma tem um aumento acentuado no número de


prédios, seguido por Irajá e Campo Grande. Uma característica interessante deve
ser considerada para compreender o aumento demográfico e predial especifica-
mente nesses distritos: a Estrada de Ferro Central do Brasil cruzava seus territó-
rios. Sem dúvida, essa alternativa de transporte pesava na escolha do local de mo-
radia, sobretudo quando a possibilidade de residir nos distritos centrais tornava-se
cada vez menor, em razão das reformas. Dado que nem todos os distritos subur-
banos contavam com linhas férreas, a existência delas foi um diferencial para a
ocupação da região, contribuindo para que alguns distritos fossem mais populo-

21 Diretoria Geral de Polícia Administrativa, Arquivo e Estatística. Recenseamento do Rio de Janeiro (Districto
Federal): Realizado em 20 de setembro de 1906. Rio de Janeiro: Oficina de Estatística, 1907, p. 23.
22 Cf.: Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas, Diretoria Geral de Estatística. Recenseamento geral da
Republica dos Estados Unidos do Brazil em 31 de dezembro de 1890 (Districto Federal). Rio de Janeiro: Tipo-
grafia Leuzinger, 1895, p. 424-5; Diretoria Geral de Polícia Administrativa, Arquivo e Estatística. Recensea-
mento do Rio de Janeiro (Districto Federal): Realizado em 20 de setembro de 1906. Rio de Janeiro: Oficina
de Estatística, 1907, p. 36-7.

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sos do que outros. Jacarepaguá, por exemplo, era mais próximo do centro do que
Campo Grande, mas não contava com linhas férreas. Entre 1890 e 1906, teve um
crescimento predial bem menor que Campo Grande.
Além de divulgar os balancetes de receita e despesa da Prefeitura e os qua-
dros demonstrativos das multas arrecadadas por distrito, a municipalidade pas-
sou a publicar também os nomes dos infratores, seus endereços, os motivos pelos
quais foram autuados e os valores das multas.23 Ao longo do primeiro ano de man-
dato de Pereira Passos, foram 460 autuações na zona suburbana:

Tabela 5 - Multas aplicadas e recebidas nos distritos suburbanos (1903)


% do valor pago (em
Valor das multas Valor recebido
Distritos relação ao valor
aplicadas pelas multas
total)
Inhaúma 20:221$000 5:611$300 28%
Irajá 7:560$000 2:142$600 28%
Jacarepaguá 7:486$000 635$000 8%
Campo Grande 4:460$000 2:260$000 51%
Guaratiba 4:870$000 881$000 18%
Santa Cruz 940$000 1:832$520 195%
Ilhas 2:790$000 351$500 13%

 85 Total 48:327$000 13:713$920 28%

Esses dados são muito reveladores, pois mostram que o valor corresponden-
te ao total de multas aplicadas (48:527$000 — quarenta e oito contos e quinhen-
tos e vinte e sete mil réis) é quase quatro vezes o total arrecadado. Excetuando o
caso do distrito de Santa Cruz, em todos os outros o montante pago foi bem infe-
rior ao valor das autuações. Ainda que possam existir incoerências nos números
divulgados pela Prefeitura, especialmente no que diz respeito ao valor recebido
pelas multas, tudo indica que, em 1903, houve uma intensa fiscalização por parte
da municipalidade. A despeito disso, em muitos casos, os esforços dos agentes
municipais não resultaram na devida ampliação de receita nos cofres municipais,
dada a significativa diferença entre as multas aplicadas e recebidas.
Ao separarmos as autuações por distrito e segundo as principais infrações,
foi possível identificar características relevantes para compreender as especificida-
des dentro do próprio subúrbio. Observemos:

Tabela 6 – Principais multas aplicadas nos distritos suburbanos (1903)24


(Continua)
Campo Santa
Inhaúma Irajá Jacarepaguá Guaratiba Ilhas Total
Grande Cruz
Irregularidades sanitárias 9,8% - 0,6% 0,2% 0,8% - 0,2% 11,7%
Estabelecimentos comerciais
11,8% 4,8% 1,1% 6% 1,8% 1,5% 2% 28,9%
sem licença ou irregulares

23 A publicação dos nomes dos infratores foi determinada pelo art. 19 da Lei n.º 939, de 29 de dezembro de
1902, a mesma lei que reorganizou a administração municipal logo após a posse de Rodrigues Alves.
24 As porcentagens foram calculadas com base nos valores das multas aplicadas.

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Tabela 6 – Principais multas aplicadas nos distritos suburbanos (1903) (Continuação)
Campo Santa
Inhaúma Irajá Jacarepaguá Guaratiba Ilhas Total
Grande Cruz
Obras de construção sem
15,7% 5% - 0,2% - - 0,2% 21,1%
licença ou irregulares
Corte de matas sem licença - 2,1% 5,8% 1,7% 7,4% - - 17%
Veículos sem licença e/ou
- - 7,3% - - - 1% 8,4%
irregulares
Vendedores ambulantes
1% 1,3% - - - 0,4% 0,4% 3,1%
sem licença
Outros 1,1% 2,3% - 0,6% - - 0,4% 4,5%
Não identificado 2,4% 0,2% 0,7% 0,5% - - 1,5% 5,3%
Total 41,8% 15,6% 15,5% 9,2% 10,1% 1,9% 5,8% 100%

O principal motivo que levou os suburbanos a serem autuados foi o da falta


de licença para o funcionamento de estabelecimentos comerciais. Diversos pro-
prietários foram multados por terem iniciado atividade comercial sem a devida
permissão, por não terem feito a sua renovação, porque mudaram de endereço
sem aguardar autorização para tal ou porque colocaram letreiros ou mastros em
frente aos seus negócios sem solicitarem licença. Também foram autuados os pro-
prietários que não cumpriam os horários para o fechamento de portas ou cujos
estabelecimentos apresentavam irregularidades, tais como a falta de esterilizador
(no caso dos barbeiros), a exposição de alimentos às moscas, ao pó ou nas om-
breiras das portas, a ausência dos jogos de pesos ou porque eles não estavam
devidamente aferidos.
 86
Inhaúma aparece como o distrito que mais recebeu esse tipo de autuação,
seguido por Campo Grande e Irajá. Embora poucas multas desse tipo tenham sido
aplicadas nos demais distritos, todos eles tiveram autuações. Esses dados dão indí-
cios, portanto, de que o crescimento populacional vivenciado pela região foi acom-
panhado pela ampliação dos serviços existentes e, consequentemente, da oferta
de locais de trabalho no próprio subúrbio. Mais uma vez, verificamos que nas áreas
que contavam com as linhas férreas a expansão da atividade comercial foi maior.
A falta de licença para a realização de obras foi o segundo motivo pelo qual
os suburbanos foram autuados. Nesse caso, as multas foram aplicadas majorita-
riamente em Inhaúma e Irajá. Para entender por que apenas esses distritos re-
ceberam esse tipo de autuação, há que se levar em consideração, novamente, a
especificidade do Decreto n.º 391. Observemos:

Artigo 1.o Nenhuma obra de construção, reconstrução, acréscimos e


modificações de prédios poderá ser começada nas freguesias da Can-
delária, Santa Rita, Sacramento, S. José, Santo Antônio, Espírito Santo,
Santana, Glória, Lagoa, Gávea, S. Cristóvão, Engenho Velho, Engenho
Novo, Inhaúma e Irajá sem licença da Prefeitura.

A partir desse decreto, Inhaúma e Irajá foram os únicos distritos suburbanos


cujos moradores deveriam requerer licença para a realização de obras de constru-
ção ou reconstrução. É por isso que parte considerável desse tipo de multa incidiu
sobre esses distritos. A única autuação referente a Campo Grande ocorreu porque
o infrator não solicitou autorização para a construção de um coreto no largo da
capela, descumprindo o artigo 56 do Decreto n.º 843. A infração ocorrida na Ilha de
Paquetá, por sua vez, foi aplicada porque um morador não aterrou o seu terreno.

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O terceiro motivo mais recorrente para a aplicação de multas foi o do corte


de matas sem licença, proibido segundo o Decreto n.º 691, de 17 de julho de 1899.
Como é possível notar, essa infração foi aplicada em distritos menos urbanizados,
como Guaratiba e Jacarepaguá, o que indica, portanto, que parte da vegetação de-
les estava provavelmente sendo desmatada para a realização de loteamentos. Por
fim, vale observar que as irregularidades sanitárias foram multadas principalmente
em Inhaúma, o distrito suburbano que contava com o maior número de habitan-
tes. Estavam entre as infrações o depósito de lixo e água servida em via pública e
a falta de limpeza dos quintais.
A grande quantidade de multas não foi casual. A publicação de várias circu-
lares ao longo de 1903, com orientações aos agentes fiscais e guardas de distrito,
dão indícios da preocupação de Pereira Passos quanto à devida aplicação das au-
tuações. Em 12 de fevereiro, por exemplo, ele comunicou aos agentes fiscais que
a partir daquele momento deveriam observar “escrupulosamente [...] as disposi-
ções do Regulamento para o processo administrativo das infrações de posturas,
leis e regulamentos municipais”, promulgado no dia 4 do mesmo mês.25 Em 2 de ju-
lho, recomendou que os agentes observassem “com a máxima vigilância no intuito
de serem fielmente cumpridas as disposições do dec. nº 444, de 27 de junho último,
que dispõe sobre escavações nas ruas, travessas e praças”.26 Em 25 de setembro,
a seguinte circular foi publicada:

Sr. Agente da Prefeitura no Distrito de ...

 87 De ordem do Sr. Prefeito do Distrito Federal vos recomendo que é de


vosso dever lavrar imediatamente auto de qualquer infração de postura
ou lei municipal, embora sejam pagas as multas no ato da contraven-
ção, devendo cessar, por completo, a praxe que seguem alguns Agen-
tes de fazer intimações para o pagamento das mesmas multas, visto
constarem essas intimações do próprio auto que deve ser entregue à
parte interessada. Saudações. – O Diretor Geral, Dr. A. F. do Amaral.27

Essa circular fornece pistas de que o Decreto n.º 395, de 4 de fevereiro de 1903, já
não estava sendo cumprido com o rigor necessário oito meses após ter sido promulga-
do. Ele continha orientações sobre como os agentes deveriam proceder para realizar
as autuações. Para reverter tal situação, Pereira Passos publicou a circular.
No dia 1.º de outubro, o expediente dos guardas passou a ser mais longo. De
acordo com a Circular n.º 90, os agentes deveriam fazer com que eles começassem
o serviço da fiscalização desde as primeiras horas do dia e o prolongassem até a
noite, “não devendo fazê-lo, como até agora, das 10 da manhã às 4 da tarde”.28
Não bastasse toda a vigilância sobre a correta execução da legislação municipal,
o trabalho dos guardas deveria ser organizado de modo que a população fosse
fiscalizada por mais tempo.
Esses são apenas alguns exemplos das circulares publicadas no início da ad-
ministração de Pereira Passos. Se por um lado elas colocam em evidência os es-
forços do poder público municipal para garantir a observância dos decretos e das
posturas vigentes, por outro, demonstram que o controle não recaiu apenas sobre
a população, mas também sobre os próprios funcionários da Prefeitura. A reitera-
ção das circulares, bem como a insistência no fiel cumprimento da legislação em

25 Circular n.º 26, de 12 de fevereiro de 1903.


26 Circular n.º 63, de 2 de julho de 1903.
27 Circular n.º 2.072, de 25 de setembro de 1903.
28 Cf.: Circular n.º 90, de 1 de outubro de 1903.

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vigor dão pistas da complexa relação entre habitantes, funcionários municipais e


Poder Executivo. Para aprofundarmos a compreensão dessas relações, sobretudo
no que diz respeito aos trabalhadores que viviam ou passaram a residir nos subúr-
bios, trato a seguir da fiscalização das construções, reconstruções e reformas no
distrito de Inhaúma.

Tensões entre trabalhadores suburbanos e


funcionários municipais: negociações em torno
da questão da moradia29
Embora a quantidade de autuações nos subúrbios tenha sido grande, como
foi verificado, uma boa parte dos infratores não realizou o pagamento das multas.
Um dos principais motivos para esse fato está relacionado aos pedidos de perdão
das dívidas, que eram remetidos ao prefeito. Segundo Lea Iamashita, no início do
Império, a adoção de alguns princípios liberais na Constituição de 1824, e no Código
do Processo Criminal de 1832, passou a garantir aos cidadãos a possibilidade de
reclamar por escrito ao Poder Legislativo e ao Executivo.30
Podemos acompanhar o uso dessa estratégia em estudos como o de Fabia-
ne Popinigis, que investigou a luta dos caixeiros cariocas para garantir a folga aos
domingos. Dentre outras formas de reivindicação, eles recorreram à negociação
com a Câmara Municipal para a aprovação de uma legislação que lhes assegurasse
o descanso.31 Paulo Terra, por sua vez, analisou diversos requerimentos enviados à
 88
instituição camarária para questionar posturas que regulavam o trânsito na cidade
e interferiam diretamente no trabalho de cocheiros e carroceiros.32 Tais pesquisas
privilegiaram o estudo de categorias profissionais específicas e debateram como a
Câmara Municipal pode ser vista como um espaço de disputa e demanda.
No caso das autuações por infrações de posturas, pelo menos desde a dé-
cada de 1890, era comum recorrer ao chefe do Executivo para tentar evitar o pa-
gamento das multas. Na própria legislação que entrou em vigor em 1903, estava
regulamentada a possibilidade de recurso.33 Cabia ao prefeito, auxiliado pelos pa-
receres dos funcionários municipais envolvidos na autuação, avaliar se o suplican-
te merecia ter a dívida perdoada ou não.
Do panorama apresentado na primeira parte deste artigo, quase 30% das mul-
tas aplicadas nos distritos suburbanos estavam relacionadas à falta de licença dos
estabelecimentos comerciais. Como esses negociantes não configuram os sujeitos
históricos que privilegio em minha pesquisa, não me detive à análise dos recursos a
esse tipo de multa. Levando em consideração o perfil do distrito de Inhaúma, que
passou a contar com um grande contingente de trabalhadores do final do século

29 Discuto em detalhes a respeito dessa questão no capítulo 2 de minha dissertação de mestrado, que foi
publicada sob o título Viver nos subúrbios: a experiência dos trabalhadores de Inhaúma (Rio de Janeiro,
1890-1910). Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura; Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro,
2011.
30 Cf.: IAMASHITA, Lea Maria Carrer. A Câmara Municipal como instituição de controle social: o confronto em
torno das esferas pública e privada. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Secretaria Municipal de Cultura; Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, n. 3, p. 41-56, 2009.
31 Cf.: POPINIGIS, Fabiane. Operários de casaca? Relações de trabalho e lazer no comércio carioca na virada
dos séculos XIX e XX. Tese (Doutorado em História Social). Campinas: Unicamp/IFCH, 2003, cap. 2.
32 Cf.: TERRA, Paulo Cruz. Cidadania e trabalho: cocheiros e carroceiros no Rio de Janeiro (1870-1906). Tese
(Doutorado em História). Niterói: UFF/ICHF, 2012, cap. 2.
33 Cf.: Decreto n.º 395, de 4 de fevereiro de 1903, Art. 9.

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XIX para o início do XX, optei por investigar os conflitos e as estratégias de nego-
ciação que se deram em razão da infração à legislação sobre construções, pois,
a partir da administração de Pereira Passos, parte dos moradores dos subúrbios
começaram a pagar emolumentos para a realização de obras.
Antes de dar início à análise, faz-se necessário apresentar algumas informa-
ções a respeito da organização municipal. De acordo com o Decreto n.º 399, de 6
de março de 1903, as agências da Prefeitura eram compostas por agentes fiscais e
guardas municipais, e eram “repartições subordinadas imediatamente ao Prefeito,
destinadas a representá-lo nas divisões territoriais do Distrito Federal”. Entre as
atribuições dos agentes estava a de “fazer executar as posturas e deliberações
do Conselho”, bem como de “lavrar e remeter à autoridade competente os autos
de flagrante contra os infratores de posturas”.34 O prefeito possuía a prerrogativa
de designar anualmente os guardas que trabalhariam em cada distrito, podendo
removê-los de uma agência para outra, se assim julgasse necessário. Para ser no-
meado guarda era imprescindível ser cidadão brasileiro, saber ler e escrever, pos-
suir aptidão para o desempenho da função e ter bom procedimento.
Em 27 de junho de 1903, entrou em vigor o Decreto n.º 445, que dava novo
regulamento à Diretoria Geral de Obras e Viação. Fazia parte de suas atribuições
a “superintendência de todos os serviços relativos a obras municipais, carta ca-
dastral, [...] construção, reconstrução, acréscimos e reparos de prédios ou edifí-
cios”. Tal diretoria era composta por diversos funcionários, entre eles um diretor-
-geral, três subdiretores e quinze engenheiros de circunscrição. Cabia aos últimos
 89 “velar pelo cumprimento exato das posturas no que for atinente aos serviços de
obras a seu cargo, devendo promover os meios de repressão e fazer as devidas
comunicações”.35
Isso significa que a população era fiscalizada tanto por agentes e guardas
municipais como por engenheiros de circunscrição. Assim, quando um requeri-
mento era enviado ao Prefeito, com o intuito de recorrer de uma multa, ou ele era
encaminhado à Diretoria Geral de Obras e Viação, ou à agência da Prefeitura no dis-
trito em questão, para que se prestassem os esclarecimentos necessários. Como
duas esferas de poder eram responsáveis pela vigilância das posturas, foi possível
perceber que, em diversos momentos, os funcionários a elas subordinados entra-
ram em conflito, porque divergiam a respeito do modo como elas deveriam ser
aplicadas. Apresentadas essas informações sobre os possíveis caminhos percor-
ridos pelos recursos remetidos ao chefe do Executivo, comecemos a analisá-los.
Em 11 de maio de 1903, Manoel Silveira Costa Tavares foi autuado pelo agen-
te Luiz Maggessi Corimbaba, pois estava “construindo um acréscimo na casa de
sua propriedade” sem a devida licença.36 Por ter infringido o art. 1.º do Decreto
n.º 391, de 10 de fevereiro de 1903, que determinava que toda obra de “constru-
ção, reconstrução, acréscimos ou modificações” deveria ter licença da Prefeitura,
Manoel foi multado em 100$000 (cem mil réis). Em vista disso, três dias depois de
autuado, recorreu ao Prefeito:

Exmo. Sr. Dr. Prefeito do Distrito Federal


Manoel Silveira Costa Tavares, residente à rua Dr. Leal n. 66, freguesia
de Inhaúma, tendo sido intimado por um auto de infração do respectivo
Agente da Prefeitura por estar construindo um acréscimo na casa citada

34 Decreto n.º 399, de 6 de março de 1903, Art. 5.


35 Decreto n.º 445, de 27 de junho de 1903, Art. 13.
36 AGCRJ, Códice 10-1-9, Infração de posturas de Inhaúma (1903-1910).

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de sua propriedade, vem submissamente ponderar a V. Exa que não é


isso de todo o ponto exato, pois que o pequeno acréscimo que fez em
sua casa já vem de longa data, pelo que o suplicante não julga ter infrin-
gido o art. do decreto citado no referido auto de infração. Pede, pois,
respeitosamente que V. Exa, dignando-se atendê-lo, mande sindicar da
suposta falta cometida e, ao menos pela equidade que tanto tem carac-
terizado a administração de V. Exa, se digne ordenar a relevação da mul-
ta, aliás atenuado esse ato pelo seu estado de pobreza; visto que o Su-
plicante é um simples jornaleiro, sobrecarregado de numerosa família.37

Como podemos notar, Manoel usou algumas estratégias para tentar mos-
trar a Pereira Passos que não era justo que pagasse a multa imposta pelo agente.
Inicialmente, buscou demonstrar “submissamente” que a acusação feita pelo fis-
cal municipal era apenas parcialmente verdadeira. De fato, ele fazia um acréscimo
em sua propriedade, porém tal obra era de “longa data”. Ou seja, se por um lado
Manoel não negou que realizava melhorias em sua casa, por outro, procurou con-
vencer o Prefeito de que esse acréscimo teve início antes do Decreto n.º 391 e,
portanto, não o havia infringido. Mas sua argumentação não parou por aí, pois,
em seguida, pediu que fosse instaurada sindicância para verificar se houve mesmo
infração. Desse modo, tinha como intuito dar credibilidade ao seu recurso, uma
vez que colocava sua propriedade à disposição para averiguações.
Manoel solicitou também a “relevação” da multa por equidade, o que, em
suas palavras, era uma atitude característica da administração de Pereira Passos.
Realmente, diversos foram os casos em que o pedido de “relevação” de multa foi
aceito, tendo como contrapartida o pagamento dos emolumentos. Para Manoel  90
ter afirmado isso, é provável que circulasse entre a população a informação de
que o Prefeito costumava deferir recursos por “equidade”. Isso significa que era
comum recorrer das multas recebidas, assim como socializar o despacho dado.
Senão, como Manoel teria afirmado que a “relevação da multa por equidade” era
uma característica da administração de Pereira Passos? Provavelmente, a quanti-
dade de recursos por ele deferidos deve ter contribuído para essa imagem: entre
1903 e 1904, foram remetidos 40 recursos relacionados à construção no distrito de
Inhaúma e desse total, 19 foram deferidos, sendo três por equidade.
Para finalizar o recurso, Manoel argumentou que o seu estado de pobreza
servia de atenuante para a falta cometida, uma vez que era “um simples jornaleiro,
sobrecarregado de numerosa família.” Nas entrelinhas, o infrator julgava merecer
o “perdão” da multa, porque não tinha condições de arcar com ela, em vista de
sua situação econômica.
Ao chegar às mãos do agente, para que desse o seu parecer, Luiz Corimbaba
reiterou sua opinião de que Manoel havia cometido a infração. Semelhante apre-
ciação foi dada pelo engenheiro em 25 de maio de 1903. Com base nessas infor-
mações, três dias depois, Pereira Passos indeferiu o pedido do requerente. Apesar
das estratégias adotadas por Manoel para livrar-se da multa, ele não obteve êxito.
A seguir, acompanharemos um caso que teve início pelo mesmo motivo que esse,
mas o desenrolar da história foi bem diferente.
Em 15 de maio de 1903, foi a vez de Antonio Jose Marques Pereira ser mul-
tado pelo agente Luiz Corimbaba, “por estar construindo paredes na casa de sua
propriedade”.38 De acordo com o auto de infração, ele descumpriu o art. 1.º do

37 Ibidem.
38 Ibidem.

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Decreto n.º 391 e, por isso, foi multado em 100$000 (cem mil réis). O prazo para
quitação da multa era até 20 de maio. Porém, em vez de pagá-la, Antonio escreveu
ao prefeito:

Exmo Sr. Dr. Prefeito do Distrito Federal


O abaixo-assinado, morador do barracão à rua Tavares n. 6A, no Encan-
tado, freguesia de Inhaúma, há dias multado por ter feito um pequeno
puxado para uma cozinha, ignorando a proibição municipal, apela para
V. Exa.
O requerente é muito pobre, tendo numerosa família; assim, na mani-
festação mais respeitosa, pede que V. Exa o releve desta pequena fal-
ta, devida unicamente ao desconhecimento da lei, ato a que sempre se
sujeitou.
Confiado na magnitude do sentimento de V. Exa.
Pede favorável despacho.39

Com base na leitura do recurso, podemos perceber que o infrator utilizou


dois argumentos para tentar evitar o pagamento da multa: inicialmente, afirmou
que desconhecia a legislação acerca das construções e por isso cometeu a “peque-
na falta” de ter feito um “pequeno puxado para uma cozinha”. Em outras palavras,
não teria infringido a lei, se dela soubesse, inclusive, porque “sempre se sujeitou”
às imposições legais. Com essa alegação, procurou construir uma imagem positiva
a respeito de si mesmo perante o prefeito. Queria mostrar-se como um cidadão

 91
responsável, que cometera um deslize por ignorância. Ao mesmo tempo, Antonio
justificou o pedido para que a multa fosse relevada devido à sua condição social:
era pobre e tinha família numerosa, ou seja, seria difícil arcar com a despesa de
100$000 (cem mil réis). Soma-se a esse fato a caracterização apresentada por ele
acerca de sua habitação: um barraco. Como a Prefeitura poderia cobrar uma multa
com aquele valor de um cidadão pobre e que fez melhorias em seu barraco, mas
não obteve a licença por desconhecer a legislação sobre construções?
Apesar do recurso, o engenheiro da circunscrição afirmou que a multa foi
bem aplicada, pois Antonio reconheceu sua infração. Portanto, a cobrança deveria
ser mantida. O ajudante de 1.ª classe, Augusto C. Camisão de Mello40, por sua vez,
deu o seguinte parecer:

Trata-se de um pequeno melhoramento feito em triste abrigo como tal


nome merece um barracão de madeira, fechado, coberto de zinco, com
8m0 de área e a uma distância de 23m0 da rua, tendo 2m10 de altura e
que está servindo de habitação. O seu proprietário apenas aumentou-
-o de 9m0, conservando o mesmo pé direito, com paredes de tapume
e argamassa de pura terra. Tal é a infração que a Agência com a maior
solicitude procurou punir com um auto de multa quando junto dessa
miserável choupana, no n. 4, em um prédio nobre, há um acréscimo que
sem licença está sendo feito há um mês e que a despeito de ofício da
digna Diretoria a Agência nenhuma providência se dignou tomar.41

Como é possível notar, temos aqui uma polêmica envolvendo os funcioná-


rios municipais, posicionando-se o ajudante de 1.ª classe a favor do infrator e o en-

39 Ibidem.
40 Segundo informações encontradas no Almanak administrativo, mercantil e industrial, Augusto C. Camisão
de Mello consta como condutor de 1.ª classe. O cargo por ele ocupado fazia parte do quadro da Diretoria
Geral de Obras e Viação. Cf.: SAUER, Arthur (org.). Almanak administrativo, mercantil e industrial do Rio de
Janeiro para 1904. Rio de Janeiro: Companhia Tipográfica do Brasil, 1904, p. 501.
41 AGCRJ, Códice 10-1-9, Infração de posturas de Inhaúma (1903-1910).

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genheiro contra, ambos empregados da Diretoria Geral de Obras e Viação. Atente-


mos para as condições precárias de habitação em que vivia Antonio: seu barracão
era feito de madeira, possuía 8m2 de área e era coberto com “argamassa de pura
terra”. Nesse local, o pobre infrator residia com sua “numerosa” família. Embora
tivesse mais do que dobrado a área construída, Antonio ainda vivia numa situação
de penúria. Para tentar livrá-lo da multa, Camisão apontou para a injustiça cometi-
da pela agência municipal, uma vez que próximo ao barracão de Antonio havia um
“prédio nobre”, que também fazia obras de acréscimo sem licença e seu proprie-
tário não tinha sido multado.
Apesar do “contra-ataque” de Camisão, o engenheiro manteve-se firme em
seu posicionamento: a multa deveria ser mantida, pois as obras estavam em desa-
cordo com a lei. Outro parecer semelhante foi dado, mas não foi possível identifi-
car sua autoria, nem o cargo de quem o emitiu. Certo é que, em 26 de maio, Pereira
Passos deferiu por “equidade” o recurso de Antonio, que apenas ficou obrigado
a pagar os emolumentos referentes ao acréscimo, calculados em 36$000 (trinta e
seis mil réis), valor bem menor do que o da multa inicialmente imposta. A dívida foi
quitada em 13 de junho.
Esse caso é interessante pelas tensões que apresenta: a municipalidade, por
intermédio de seu agente, aplicou uma multa elevada contra um indivíduo que
vivia em condições precárias — em uma “choupana” que sequer ficava perto do
alinhamento da rua Tavares. Porém, deixou de enquadrar nos mesmos critérios
uma construção próxima e “nobre”, diga-se de passagem. Cientes da injustiça pra-
ticada, tanto Antonio como o ajudante de 1.ª classe lançaram mão dos recursos
de que dispunham para negociar tal imposição. A Prefeitura, se não conseguiu  92
receber pela multa, pelo menos fez com que Antonio cumprisse com a obrigação
de pagar pelos acréscimos.
Ainda sobre as relações estabelecidas entre os funcionários municipais e os
cidadãos que construíam nos subúrbios, vale a pena acompanhar a seguinte histó-
ria. Em 20 de maio de 1904, Coriolano Goes, engenheiro responsável pelo distrito
de Inhaúma, remeteu um memorando à Diretoria de Obras e Viação, solicitando a
remoção do guarda que trabalhava em Bonsucesso, pois ele permitia “toda sorte
de infrações” sem comunicar ao agente municipal, nem a ele, engenheiro.42 No do-
cumento, ele apresentou alguns exemplos da negligência do guarda: na rua Silva,
três casas foram edificadas em desacordo com a lei; na casa n.º 4 da rua 4 de No-
vembro foi feito “um puxado lateral ao prédio”, assim como no n.º 47 da estrada
da Penha foi construído outro “puxado” nos fundos da propriedade.
Por causa da queixa dada pelo engenheiro, o agente Frederico Augusto Xa-
vier de Brito, da agência de Inhaúma, foi instado a informar a respeito. Diante da
solicitação, o agente percorreu as ruas de Bonsucesso, acompanhado de Coriola-
no, com o intuito de averiguar as infrações apontadas. Registrou toda a “sindicân-
cia” realizada e anexou-a em sua resposta ao diretor-geral de Polícia Administrati-
va, Arquivo e Estatística.
De acordo com tais documentos, na rua Silva, s/n.º, residia Guilherme Teixei-
ra Bastos. Questionado sobre a casa de sapé que construíra, disse:

Que no dia quinze do corrente, principiou a construir dentro do terre-


no que arrendou em princípio do mês próximo passado, um rancho de
sapé, para sua habitação e guarda de ferramentas empregadas na la-
voura que tem no referido terreno.

42 AGCRJ, Códice 10-1-12, Infração de posturas de Inhaúma (1904).

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Que na segunda-feira – dezesseis do corrente, das oito para as nove ho-


ras da manhã, compareceu em sua casa o guarda Municipal Hermógenes,
encarregado da secção que determinou ao depoente que parasse com
as obras, visto não ter pedido licença e que dando-se por intimado com-
pareceu na Agência do 19o. Distrito de Inhaúma, a fim de dar explicações.
Que o depoente agiu por seu motiv [ilegível] próprio e porque diversas
pessoas lhe haviam garantido, que tratando-se de construção em zona
rural, não havia necessidade de licença.
Que o guarda não sabia que o depoente pretendia fazer semelhante
construção nem dele exigiu remuneração alguma.43

A versão de Guilherme indica que ele não conhecia a legislação sobre cons-
truções, mas seus conhecidos sim, visto terem-lhe garantido que não era neces-
sária licença para construir nos subúrbios. No final do documento, percebe-se a
tentativa de isentar o guarda Hermógenes das irregularidades cometidas pelo in-
frator. Até aqui, não fica claro se essa iniciativa partiu do agente que levou a cabo
a “sindicância” ou de Guilherme, ao perceber que o guarda seria punido.
Manoel do Rego Medeiros, residente no mesmo logradouro que Guilherme,
porém na casa de n.º 1, também foi procurado pelo agente Frederico. Na ocasião, in-
formou que sua habitação foi construída entre setembro e outubro de 1902, “época
que não havia exigências de licença para construções no local que reside e é pro-
prietário”. Ao fazer tal declaração, demonstrou que tinha conhecimento do Decre-
to n.º 391, assim como justificou a edificação de sua casa sem ter requerido a licen-

 93 ça. Ainda de acordo com Manoel, nesse período, o guarda que ali trabalhava era o
Sr. Hyppolito, “o qual à vista de não haver exigências, consentiu que o depoente
construísse o prédio, não tendo portanto recebido remuneração alguma”. Nota-se,
desse modo, que Manoel procurava mostrar que não havia cometido infração.
Para concluir suas explicações, afirmou que todas as construções da rua Sil-
va eram anteriores à sua. Em outras palavras, nem ele, nem seus vizinhos tinham
cometido qualquer irregularidade, tampouco o guarda responsável pela seção.
Temos aí, portanto, mais uma tentativa de livrar o guarda Hermógenes das acusa-
ções feitas pelo engenheiro Coriolano.
Por fim, o agente Frederico procurou Alvaro Martins Teixeira para prestar
esclarecimentos sobre a “construção do puxado em que reside”. Morador à rua 4
de Novembro, “junto ao nº 4”, afirmou que o dito puxado fora feito em dezembro
de 1902, inclusive, havia dado “coleta em 18 de Dezembro de 1903”, ou seja, tinha
pagado os devidos impostos referentes àquele ano. Estranhou que “depois de de-
corrido ano e meio seja intimado para dar explicações sobre uma construção feita
em época que não havia lei que regulasse o assunto”. Observamos aqui, mais uma
vez, o mesmo argumento: Alvaro fez o seu “puxado” antes do Decreto n.º 391.
Inclusive, declarou que “Sr. Dr. Engenheiro suspeita ser nova [sua casa] apesar de
ter passado por ela diversas vezes.” Assim, procurava reforçar seu argumento e
lançar dúvidas sobre o trabalho do engenheiro.
Com base em tais declarações, em 1.º de junho de 1904, o agente Frederico
oficiou ao diretor-geral de Polícia Administrativa, Arquivo e Estatística. Em sua res-
posta, afirmou que, além de ter interrogado Guilherme, Manoel e Alvaro, colheu
“informações de pessoas da circunvizinhança” a respeito das construções da rua
Silva e 4 de Novembro. Elas disseram “que as referidas casas foram construídas
há muito tempo”. Ou seja, confirmavam o que havia sido dito pelos próprios “in-

43 Ibidem.

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fratores”, assim entendidos apenas aos olhos de Coriolano, o engenheiro. Espe-


cificamente sobre a casa de sapé, o agente declarou que foi lavrado auto contra
Guilherme, tão logo o guarda comunicou as irregularidades à agência de Inhaúma.
Em seguida, concluiu:

Assim julgo que houve equívoco por parte do Sr. Dr. Engenheiro, que,
encontrando as casas em questão, sem estarem rebocadas e emboça-
das supôs tratar-se de construções novas, entretanto na referida locali-
dade muitas outras casas estão nas mesmas condições.
[...]
O guarda em questão, tem até a presente data cumprido os seus de-
veres com escrúpulo, sendo de notar que na época em que se fizeram
essas construções não era ele o guarda dessa seção.44

Ora, como podemos observar, o agente posicionou-se a favor do guarda,


contrariando as acusações feitas pelo engenheiro da circunscrição. Além de ter
apresentado provas para demonstrar que o guarda Hermógenes cumpriu com
seus deveres, Frederico também construiu sua argumentação de maneira a com-
provar essa tese. Para tal, Manoel e Alvaro apareceram como inocentes em rela-
ção às irregularidades de suas casas.
Após o recebimento do ofício do agente, solicitou-se que o engenheiro apre-
sentasse a sua versão da história. Surpreso com o que afirmou Frederico, Coriola-
no escreveu longa resposta contrariando o que disse o agente. Para ele, a casa da
rua 4 de Novembro, “junto ao n. 4” não era antiga, pois “o madeiramento empre-
gado e exposto ao ar e luz, ainda não mudou de cor, não estava nem caiada, nem
 94
pintada, inclusive as portas e janelas”. Embora Alvaro tenha afirmado que pagara
o imposto referente a 1903, exibindo documento comprovando tal pagamento,
Coriolano afirmou que verificou na Diretoria de Rendas e “a única casa sem núme-
ro da referida rua pertence a Theophilo [ilegível] A. Barbosa e não a Alvaro Martins
Teixeira” (ênfase no original).
Em relação à casa de n.º 1 da rua Silva, Coriolano declarou que quando rea-
lizava uma “excursão às estradas do Distrito”, acompanhado pelos engenheiros
Bezerra Cavalcanti e Rossi, perguntou à proprietária a respeito da licença, que os
informou que não a possuía. Que sua habitação fora construída há uns seis meses,
ou seja, no fim de 1903. “Essa afirmação foi confirmada por todas as pessoas a
quem eu e o Sr. Agente nos disse [ilegível] pedindo informações. Entretanto, o Sr.
Agente no documento n. 2 [referente a Manoel do Rego Medeiros] transporta a
construção da dita casa para o ano de 1902!!!”.45 Não foi apenas essa declaração
do agente que deixou o engenheiro indignado. A respeito da casa de sapé, que
ele encontrou em fase de construção durante as mesmas andanças pelo distrito,
assim procedeu: “Ordenei imediatamente parar as obras e perguntei se o guarda
tinha conhecimento das mesmas o que me foi dito negativamente!”
Vale lembrar que no documento que enviou inicialmente solicitando a re-
moção do guarda Hermógenes, Coriolano citou a falta de fiscalização em relação
às casas da rua Silva, ao “puxado” da rua 4 de Novembro e a outro “puxado” na
estrada da Penha, que não foi incluído na “sindicância”. Segundo o engenheiro,
esse último “puxado” foi construído em frente à casa do guarda. Diante de tais
irregularidades,

44 Ibidem.
45 Ibidem.

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Me dirigi com o Sr. Agente à casa do guarda e as informações que ti-


vemos é que as obras foram feitas sem licença com consentimento do
guarda. Nesse ínterim, uma professora pública municipal cuja escola
fica ao lado da casa da infratora pediu ao Sr. Agente que não multasse a
proprietária e que nada fizesse ao guarda, o que de fato tem sido cum-
prido por parte daqueles.
Conclui-se portanto que o guarda, em vez de fiscalizar o que lhe com-
pete, deixa fazer obras clandestinas, todas contra a lei; que os docu-
mentos juntos não merecem fé, foram feitos ao sabor do guarda, man-
comunado com os infratores e que os mesmos documentos contêm
declarações descabidas e que muito previnem o espírito, como aqueles
que se referem à remuneração do guarda pelos infratores, outras con-
traditórias, como o que existe no final do documento n. 2 “que todas
as construções feitas na rua Silva são anteriores a do depoente (1902!),
comparada com as que são feitas no documento n. 1 e finalmente inve-
rídicas e adulteradas, apesar de ser invocado o meu testemunho, em
virtude da fiel narração que faço e que estou pronto a provar com fatos
e testemunhas de pessoas insuspeitas.46

Se as acusações de Coriolano fossem descabidas, provavelmente o agente


Frederico não teria tido a preocupação de realizar uma “sindicância” para provar
o contrário. Em nenhum dos livros de autos de infrações de posturas consultados
encontrei procedimento semelhante por parte do agente do distrito. Além disso,
do desenrolar dessa história, outras questões surgem: será que o engenheiro teria
se equivocado em tantos casos, como quis provar o agente em sua sindicância?
 95 Por que justamente a infração da estrada da Penha, onde também residia o guar-
da, não foi verificada pelo agente?
Ora, todas essas perguntas nos levam a crer que as afirmações de Coriolano
eram verídicas ou, pelo menos, factíveis. Sendo assim, tudo indica que existia um
acordo entre aqueles que estavam sob a fiscalização do guarda, o próprio guarda
e o agente de Inhaúma, para que os proprietários das construções feitas na região
de Bonsucesso não pagassem licença. Com isso, ganhariam tanto os que constru-
íam como os funcionários municipais envolvidos. Os primeiros porque não paga-
riam o valor da licença e os últimos porque, provavelmente, receberiam alguma
recompensa em dinheiro.
Há que se observar também o fato de que a maioria dos infratores não go-
zava de boas condições financeiras, pois suas habitações eram precárias: alguns
tinham construído “puxados” de madeira para residir, outro edificou uma casa de
sapé. Ou seja, se recorreram a um acordo com o guarda ou com o agente do dis-
trito, foi porque essa era uma das alternativas de que dispunham para diminuir as
suas despesas. Aliás, essa estratégia era legítima, pelo menos, aos olhos dos envol-
vidos, pois até mesmo a professora primária sabia das irregularidades e pediu para
que o engenheiro não punisse um dos infratores, nem o guarda. Se, por algum
motivo, ela discordasse de tal prática, teria pedido a apuração das irregularidades
e não o contrário. Vale destacar, inclusive, que o fato de Manoel do Rego Medeiros
ter afirmado que todas as construções da rua Silva tinham sido feitas em 1902 ou
anteriormente, também é indício da solidariedade entre aqueles habitantes, que
procuraram, de diversas maneiras, esconder o acordo que existia entre eles.
Como a resposta de Coriolano está incompleta no livro de autos de infração
consultado no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, resta acompanhar o úl-
timo trecho disponível:

46 Ibidem.

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Lamento bastante que o Sr. Agente não fosse o primeiro a punir o guar-
da quando antes me havia dito que se admirava do seu procedimento,
porquanto dera ordem ao guarda para que só viesse poucas vezes por
semana à Agência a fim de melhor fiscalizar a sua seção. Longe disso
fazer, corre a acobertá-lo com a sua proteção, empa[ilegível] as faltas
arguidas e provadas contra o mesmo e ofendendo oficialmente e facil-
mente à minha dignidade, quando entre nós ambos tem havido, até a
presente data, a mais completa harmonia de vistas na administração!
Espero entretanto que as providências necessárias hão de ser tomadas
a bem das garantias das leis e da Repartição [...]47

Provavelmente, trata-se do final do ofício. A partir de sua leitura, podemos


concluir que para Coriolano, o agente do distrito de Inhaúma não procurou livrar
o guarda Hermógenes das acusações, o que o deixou surpreso, pois até aquela
data Frederico e ele tinham convivido em harmonia, mesmo ocupando cargos dis-
tintos. Na verdade, o que indignou Coriolano foi Frederico ter demonstrado um
comportamento diante dele, mas ter apresentado relatório totalmente diferente
ao diretor-geral de Polícia Administrativa, Arquivo e Estatística, inclusive, colocan-
do em dúvida a sua palavra.
Em razão das versões contraditórias apresentadas pelos funcionários, recor-
reu-se à opinião do consultor técnico, Ernesto Silva. Segundo ele, os depoimentos
dos donos das casinhas, utilizados por Coriolano e Frederico para argumentar so-
bre a questão, eram “imprestáveis para qualquer prova, visto partirem dos inte-
ressados diretos na questão”. Diante disso, pareceu-lhe conveniente, “a bem do
serviço público e para evitar atritos”, que o guarda Hermógenes fosse removido  96
para outra seção até que os fatos fossem esclarecidos. Infelizmente, na documen-
tação encontrada não consta o desfecho da história, que foi remetida ao Prefeito,
mas cujo despacho não foi dado. De qualquer maneira, vale ressaltar que, mais
uma vez, encontrei funcionários da agência municipal (um fiscal e um guarda) que
se posicionaram ao lado da população e em contraposição ao engenheiro.
Em 26 de novembro de 1903, Joaquim Fernandes da Silva Maia foi autuado
em razão de uma irregularidade cometida por seu inquilino. Em vez de realizar o
pagamento da multa, escreveu o seguinte requerimento ao Prefeito:

Exmo. Sr. Dr. Prefeito


Joaquim Fernandes da Silva Maia tendo sido multado como infrator do
art. 12 do Decr. no. 391 de 10 de Fevereiro do corrente ano, segundo a
cópia do Auto junto, na importância de Rs200$000 por ter construído
sem licença uma cerca de tela de arame em frente ao seu terreno a Rua
Goiás no. 138, vem respeitosamente recorrer para V. Excia. da imposi-
ção da referida multa.
O suplicante não foi quem construiu, nem quem mandou construir a
referida cerca.
Segundo o doc. Junto, recibo da Agência do Distrito de Inhaúma, a licença
foi requerida em 23 de Abril do corrente ano, pelo Sr. Antonio José da
Silva, um pobre preto velho, inquilino do suplicante em aquele local.
Se não houve pagamento dos respectivos emolumentos, é porque, se-
gundo lhe disse o próprio inquilino, na Agência lhe disseram que não
era preciso pagar licença para cercar o dito terreno, por tratar-se de
uma substituição, visto como o dito terreno já era cercado com estacão
e arame farpado, em muito mal estado.

47 Ibidem.

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O suplicante nenhum intuito tinha nem tem em prejudicar os Cofres


Municipais. Por uma quantia relativamente pequena que lhe custaria a
licença, não iria sujeitar-se aos incômodos de uma multa de 200$000.
O suplicante está expondo os fatos, conforme chegaram a seu conheci-
mento. Não aumenta, nem diminui o que se passou.
Não é justo, porém, que o suplicante pague uma multa para cuja existên-
cia não concorreu.
Em última análise, se há emolumentos ou impostos a pagar a fim de
legalizar a cerca do referido terreno, o suplicante quer pagá-los, como
de direito e justiça.
Se assim for, o suplicante pede a V. Excia. que por espírito de equidade,
se digne de deferir a presente petição, pagando o suplicante os impos-
tos e emolumentos devidos.
Justiceiro, como o é, V. Excia há de fazer Justiça.48

Nota-se que o suplicante procurou justificar seu pedido de isenção da multa


dando a entender que o agente fiscal agiu de má fé, pois informou o seu inquili-
no que não era necessário pagar emolumentos para cercar o seu terreno, porém,
resolveu autuá-lo após a realização da obra. Utilizou-se ainda de duas estratégias:
tentou demonstrar que não faria sentido deixar de pagar os emolumentos para de-
pois ter que arcar com o valor de uma multa e se prontificou a quitar os impostos
em troca da “relevação” da infração.
O agente, por sua vez, apresentou outra versão dos fatos: em abril de 1903,

 97 o inquilino Antonio José da Silva solicitou a licença para a construção da cerca,
porém não quitou os emolumentos. Sendo assim, anexou ao processo uma cópia
do pedido de licença com a informação de que os emolumentos somavam 35$400
(trinta e cinco mil e quatrocentos réis). Afirmou ainda:

Embora não seja Antonio José da Silva o proprietário, me parece que


em todo o caso, não teria requerido a licença sem que fosse autorizado
pelo recorrente ou ao menos por este ouvido; tanto mais que sendo ele
pobre como alega o recorrente não se achava em condições de arcar
com as despesas.
É o que me cumpre informar no presente momento; o Sr. Dr. Prefeito
resolverá como julgar de justiça.49

Os argumentos apresentados pelo agente eram plausíveis, especialmente


por considerar o grau de pobreza do inquilino. Ao incluir uma cópia do pedido de
licença no processo, buscou deixar claro que a justificativa de Joaquim era incon-
sistente, pois o valor dos emolumentos constava no documento. Mesmo assim,
Pereira Passos optou por aceitar o pedido de Joaquim, solicitando apenas que pa-
gasse os impostos devidos em 48h. Esse é mais um caso que evidencia as tensões
entre os funcionários municipais e a população, bem como entre o prefeito e seus
subordinados, pois o suplicante elaborou uma versão para evitar o pagamento da
multa, que colocava em dúvida a atuação do agente e que foi acolhida pelo chefe
do Executivo.
Em suma, as justificativas para solicitar a “relevação” das multas eram diver-
sas. Alguns infratores afirmavam desconhecer a legislação, mas se dispunham a
pagar os emolumentos necessários, cujos valores geralmente eram bem inferiores
aos da autuação. Outros procuravam comprovar que tinham dado início à obra an-

48 AGCRJ, Códice 10-1-9, Infração de posturas de Inhaúma (1903-1910). Grifos no original.


49 Ibidem.

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CRISTIANE REGINA MIYASAKA

tes da publicação de determinada postura ou decreto, dando a entender, portan-


to, que a autuação foi equivocada e que a legislação não era retroativa. Também
havia aqueles que simplesmente alegavam ser muito pobres e que não tinham
condições de pagar a multa. Outros, por sua vez, combinavam os argumentos aci-
ma e ainda apostavam no espírito “justiceiro” de Pereira Passos, ou na “equidade
que tanto tem caracterizado a administração de V. Excia.”.
Os conflitos decorrentes da observância das posturas municipais também
transparecem nas circulares. Em 24 de agosto de 1903, por exemplo, foi publicada
a Circular n.º 80, que revela as dificuldades em colocar em prática as determina-
ções do Decreto n.º 391. Como muitos autos eram lavrados sem as devidas especi-
ficações, a municipalidade acabou por enfrentar problemas. Observemos:

Sr. Agente da Prefeitura no distrito de...


Recomendo-vos, de ordem do Sr. Prefeito do Distrito Federal, que, nos
casos de infrações de obras em que há consertos em divergência com a
licença, deveis declarar especificamente nos respectivos autos de mul-
ta no que consiste a divergência encontrada e não simplesmente, como
fazeis, — que existem reparos, ou obras excedentes da licença, sem
indicar entretanto quais sejam elas.
Como tal falta de declaração tem dado lugar a contínuas absolvições na
Junta de Contravenções com grave prejuízo da Municipalidade, sereis
doravante responsáveis por tal fato, se este resultar do não cumpri-
mento das ordens que vos transmito.
O que levo ao vosso conhecimento para os devidos fins.
Saudações. – Aureliano Portugal.50  98
Como é possível notar, a intensificação do controle sobre as construções e
o consequente aumento no número de autuações esbarrou na atuação da Junta
de Contravenções, uma esfera do Poder Judiciário.51 Diante disso, a Prefeitura lan-
çou mão de duas medidas para minimizar os prejuízos: destacou a necessidade de
preencher corretamente os autos de infração, assim como usou da coerção para
obrigar os agentes fiscais a obedecer às recomendações da circular, caso contrá-
rio, seriam responsabilizados pelas absolvições na referida junta. Um mês após a
publicação dessa circular, ela foi reiterada com os mesmos argumentos, pois ainda
eram constantes a “insuficiência e irregularidade nas declarações e outros vícios
de nulidade dos autos de infração lavrados nas agências da Prefeitura”.52 A atua-
ção do Poder Judiciário, portanto, é outro fator a ser considerado para entender a
discrepância entre as multas aplicadas e pagas.
É importante levar em consideração também que o Decreto n.º 391, colocado
em vigor no início da administração de Pereira Passos, era bastante rigoroso em
relação aos critérios que deveriam ser seguidos por aqueles que construíam ou
reformavam suas moradias, sobretudo no que diz respeito à salubridade. A legis-

50 Circular n.º 80, de 24 de agosto de 1903.


51 De acordo com o Decreto n.o 4.769, de 9 de fevereiro de 1903, sancionado pelo presidente da República,
pertencia à Junta de Contravenções o “processo e o julgamento das infrações de leis, posturas e regula-
mentos municipais”. Ela deveria ser composta pelo juiz dos feitos da Fazenda Municipal e por dois pre-
tores. Suas audiências deveriam ser realizadas duas vezes por semana. Findo o processo administrativo,
após a verificação das infrações, o infrator era citado para se ver processar e julgar. Durante a audiência,
era lido o auto de infração, o infrator era qualificado, as testemunhas de defesa e de acusação prestavam
os seus depoimentos, se presentes, o procurador ou solicitador dos feitos da Fazenda Municipal produzia
a sua acusação e o “infrator” ou o seu procurador proferia a defesa oral. Em seguida, o julgamento era
realizado e proferido.
52 Circular n.º 89, de 26 de setembro de 1903.

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NA MIRA DOS FUNCIONÁRIOS MUNICIPAIS: CONSIDERAÇÕES ACERCA...

lação que predominou durante a década de 1890 não era tão escrupulosa. É plau-
sível supor, portanto, que os próprios agentes tivessem dificuldades em garantir o
fiel cumprimento do referido decreto e cometessem equívocos no preenchimento
dos autos de infração, fato que o Prefeito tentou coibir por meio das punições
supracitadas.
Por outro lado, a preocupação com a observância de tais preceitos sanitá-
rios e higiênicos, característica marcante da administração de Pereira Passos e dos
debates travados à época em razão das reformas, também deve ser considerada
para entender a intensificação da fiscalização por parte da municipalidade. Soma-
-se a esse aspecto a necessidade de angariar fundos para financiar as obras proje-
tadas. A comparação entre os valores arrecadados com as multas por infração de
posturas entre 1901 e 1903 evidencia essa política.
Ainda que a quantidade de infrações nos distritos suburbanos tenha sido pe-
quena se comparada a da zona urbana, isso não quer dizer que a fiscalização naque-
la região tenha sido inexistente. A disparidade entre as multas aplicadas e pagas
demonstra o quão intensa foi a atuação do poder público municipal nos subúrbios.
Contudo, seus habitantes não aceitaram tacitamente esse controle. Sempre que
possível, procuraram questionar as multas aplicadas e evitar o pagamento delas.
Os argumentos utilizados para alcançar tal objetivo foram diversos. Entretanto, é
importante destacar uma característica que unificava todos eles: os requerentes
acreditavam na possibilidade de negociação com a municipalidade, caso contrário
não entrariam com recurso. Os constantes deferimentos concedidos pelo Prefeito
 99 reforçavam essa crença. Durante 1903, foram 54 autuações referentes à falta de
licença para construção ou por irregularidades em obras, em Inhaúma. Desse total,
pelo menos 12 infratores entraram com recurso para não pagá-las, o que corres-
ponde a 22% dos autuados, e apenas quatro tiveram os seus pedidos negados. Por-
tanto, embora tenha ocorrido uma intensificação do controle sobre a população
— e até mesmo sobre os funcionários municipais — para garantir a observância da
legislação municipal, tal política foi frequentemente contestada, resultando, pelo
menos nos subúrbios, na nulidade de diversas multas aplicadas.
Como bem afirmou Benchimol, o ônus das reformas recaiu sobre a popu-
lação. O aumento no número de autuações é uma evidência disso. Entretanto,
ao investigar o modo como os trabalhadores suburbanos lidaram com as multas
que lhes foram impostas, é possível perceber que muitos deles vislumbraram a
negociação com o poder público como uma alternativa possível, para não dizer
necessária em diversos casos. Para muitos desses trabalhadores, que gozavam de
condições precárias de habitação, a contestação das autuações era uma forma de
minimizar as dificuldades que enfrentavam, sobretudo em termos econômicos.
Sob influência dos estudos recentes a respeito das Câmaras Municipais como
espaços de demanda e disputa, procurei explorar um outro aspecto da experiência
dos trabalhadores no âmbito da cidade, ao investigar as relações estabelecidas
entre esses sujeitos históricos, os funcionários municipais e o chefe do Executi-
vo. Duas características importantes dessas relações podem ser apontadas. Uma
delas diz respeito aos usos políticos da legislação vigente. Vários requerentes co-
nheciam os meandros das posturas em vigor e construíam os seus argumentos
procurando brechas que pudessem livrá-los das autuações. Longe de serem víti-
mas indefesas do amplo processo de reestruturação urbana em curso na capital
federal, forjaram maneiras, no âmbito da legalidade, para diminuir o seu impacto.
A configuração de laços de solidariedade entre os indivíduos que vivencia-
ram essa intensificação da fiscalização por parte da municipalidade carioca é outra

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CRISTIANE REGINA MIYASAKA

característica a ser considerada. Curiosamente, não foram raros os casos em que


os funcionários tomaram partido daqueles que deveriam ser autuados, demons-
trando a complexidade de tais relações. Para compreender esse aspecto, é im-
portante levar em consideração as divergências na interpretação da legislação,
as disputas entre os próprios funcionários, assim como a insatisfação de muitos
deles com a pressão exercida pelo Prefeito para que cumprissem as suas funções.
A recorrência de circulares publicadas com orientações sobre como eles deveriam
proceder, sobretudo os agentes fiscais, dá indícios das tensões que permeavam
essas esferas de poder. A própria atuação de Pereira Passos tornava as relações
entre habitantes e funcionários mais problemática, pois, ao mesmo tempo que
exigia rigor no cumprimento da legislação, desautorizava agentes e engenheiros
diante dos infratores, perdoando a multa de indivíduos que claramente tinham
cometido a infração.
Por fim, vale destacar que o deslocamento do eixo de análise dos distritos di-
retamente atingidos pelas obras de renovação urbana para a zona suburbana está
relacionado à necessidade de matizar esse processo. A historiografia que abordou
o período do “bota-abaixo” durante a década de 1980 se dedicou ao estudo das
principais mudanças que ocorreram nos distritos centrais e portuários e na legis-
lação em vigor, destacando o papel do Estado nesse processo e identificando os
grupos sociais beneficiados e prejudicados. Entretanto, ao se concretizarem não
apenas pela realização de obras de grande vulto e na revitalização do porto, mas
também pela intensificação dos mecanismos de fiscalização de seus habitantes,
elas atingiram a cidade como um todo, porém com intensidades diferentes. A in-
vestigação da experiência dos trabalhadores suburbanos diante desse processo  100
é uma alternativa para complexificar o entendimento a respeito dos impactos de
tais reformas.

Recebido em 23/04/2013
Aprovado em 05/05/2013

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Tensão e conciliação na política:
o poder de veto e a questão do
funcionalismo municipal (Capital
Federal, 1892-1902)
Marcelo de Souza Magalhães*

Resumo: Neste artigo, busco refletir sobre o poder de veto do prefeito do Distrito
Federal em relação aos projetos de lei aprovados pelos membros do Poder Legisla-
tivo municipal entre 1892 e 1902. A análise minuciosa do andamento das resoluções
aprovadas pela casa legislativa, que foram ora sancionadas ou vetadas pelo pre-
feito, ora sancionadas pelo presidente da instituição, é uma forma de compreender
melhor as tensões e conciliações na política municipal da capital federal. Um tema
conflituoso na municipalidade, que colocava os poderes locais em pé de guerra, foi
o do funcionalismo público, que receberá atenção especial ao longo do artigo.

Palavras-chave: história política carioca, funcionalismo municipal, poder de veto

Abstract: This article addresses the issue of the right of veto of the Federal District
mayor concerning the bills passed in the Municipal Legislature between 1892 and
1902. A thorough analysis of the progress of the resolutions adopted by the legisla-
tive house, which were either sanctioned or vetoed by the mayor or sanctioned by
the institution’s president, allows us to better understand the tensions and recon-
ciliations proper to the municipal politics in the federal capital. The issue that will
receive special attention throughout the article is the topic of civil service; it was
such a contentious issue to the municipality that put local authorities on warpath.

Keywords: Rio de Janeiro political history, municipal civil service, right of veto

De acordo com a Lei Orgânica de 18921, ao prefeito do Distrito Federal com-


petia vetar ou sancionar as resoluções aprovadas pelo Conselho Municipal. O veto
só poderia ser oposto a uma resolução do Legislativo caso ela estivesse em de-
sacordo com as leis e com os regulamentos em vigor no distrito. Logo, consistia
numa exposição dos motivos que levaram o prefeito a não sancionar determinada
resolução do Conselho, visando convencer a instituição avaliadora do veto da per-
tinência de sua manutenção.

* Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO.


1 Lei n.o 85, 20 de setembro de 1892.

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MARCELO DE SOUZA MAGALHÃES

Inicialmente, de acordo com a Lei de 1892, ao Senado Federal coube o papel


de instituição avaliadora dos vetos, decidindo, ao menos nesse caso, os embates
entre Executivo e Legislativo municipais. No entanto, a Lei n.o 493, de 19 de setem-
bro de 1898, repartiu entre o Senado e o Conselho a atribuição de avaliar os vetos.
Aos senadores cabia analisar as resoluções vetadas que podiam ir de encontro
ao texto constitucional, às leis federais e aos direitos dos outros municípios ou
estados. Por sua vez, os intendentes, atuais vereadores, ficaram responsáveis por
avaliar as resoluções vetadas que podiam ser contrárias às leis municipais. A atu-
ação dos intendentes não durou muito: cinco meses após a sanção da Lei n.o 493,
entrou em vigor o Decreto n.o 5432, que atribuiu novamente ao Senado o papel
exclusivo de analisar os vetos opostos pelo prefeito da capital.
O veto consiste num procedimento político estratégico para compreender a
dinâmica das relações entre os poderes. Na política, existem ao menos duas possi-
bilidades de ação de um chefe do Poder Executivo: a de fazer acontecer e, o seu in-
verso, a de fazer não acontecer. A primeira possibilidade diz respeito à capacidade
de acionar, dirigir e interferir, de estar à frente de uma determinada ação. Quanto
à segunda, trata de barrar uma ação feita por outros, como, por exemplo, pelos
membros do Conselho Municipal. O poder do veto está no âmbito do fazer não
acontecer. É um poder que interfere no ritmo da política, pois, ainda que muitas
vezes não possa alterar o curso dos acontecimentos, pode modificar sua velocida-
de, adiando ou antecipando decisões.3
Se o prefeito era o único membro dos poderes municipais que podia fazer uso
da ação de se opor ao veto, no caso da sanção de uma resolução do Conselho, o jogo
político era mais delicado. O artigo 21 da Lei Orgânica de 1892 estabeleceu o prazo
 102
máximo de cinco dias para que o prefeito sancionasse ou vetasse qualquer resolu-
ção aprovada pela maioria dos intendentes. Findo o prazo, caso o prefeito não se
posicionasse, cabia ao presidente do Conselho Municipal o ato da sanção. Isso impli-
ca dizer que o Poder Legislativo municipal, na figura de seu presidente, também pos-
suía a atribuição de transformar em lei uma resolução aprovada pelos intendentes.
O objetivo deste artigo é fazer uma análise minuciosa — quantitativa e qua-
litativa — do andamento das resoluções aprovadas pela casa legislativa munici-
pal, que foram ora sancionadas ou vetadas pelo prefeito do Distrito Federal, ora
sancionadas pelo presidente da instituição. Além disso, dar atenção especial aos
debates em torno de questões relativas ao funcionalismo municipal.
Entre 1892 e 1902, foram apresentadas e discutidas 1.872 resoluções pelos
intendentes do Conselho Municipal. Resoluções que possuíam autoria individu-
al (apresentadas por um intendente) ou coletiva (apresentadas por um grupo
de intendentes ou pelas comissões permanentes da casa legislativa). Dos dois ti-
pos de autoria, as resoluções apresentadas de forma coletiva eram as que tinham

2 Decreto n.o 543, de 23 de dezembro de 1898.


3 No campo da Ciência Política, os estudos que analisam os poderes legislativos do Executivo fazem uso
de duas variáveis: poderes proativos e poderes reativos. Os primeiros são os que permitem ao chefe do
Executivo ditar a agenda política a ser discutida e votada pelos membros do Poder Legislativo. Eles são
constituídos pelo poder de decreto, de iniciativa exclusiva de matérias, de convocar referendos, e pelos
poderes excepcionais de emergência. Os segundos estão relacionados basicamente ao poder de veto.
No Brasil, existem atualmente dois tipos de poderes de veto: o total e o parcial. Este permite ao chefe do
Executivo limpar as matérias de seu interesse das modificações feitas pelo Poder Legislativo. Já aquele
é o que apresenta o menor nível de poder reativo, pois o chefe do Executivo só tem a opção de vetar
por inteiro um projeto de lei aprovado pelo Legislativo. Como exemplo de trabalhos que utilizam essas
variáveis, cf.: FIGUEIREDO, Argelina Cheibub e LIMONGI, Fernando. Executivo e Legislativo na nova ordem
constitucional. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001; SANTOS, Fabiano (org.). O Poder Legislativo nos estados:
diversidade e convergência. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.

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TENSÃO E CONCILIAÇÃO NA POLÍTICA: O PODER DE VETO E A QUESTÃO...

maiores chances de obtenção de sucesso dentro dos trâmites legislativos. Nesse


mesmo período, foram sancionadas 971 resoluções pelos prefeitos, bem como pe-
los presidentes do Conselho. Por outro lado, os prefeitos terminaram por vetar um
total de 231 resoluções aprovadas pelos intendentes.
Logo, de um total de 1.202 projetos que tiveram suas tramitações iniciadas no
Conselho Municipal, 2/3 foram aprovados pelos intendentes e chegaram às mãos
dos prefeitos, para obterem sanção ou veto. O 1/3 restante (570 resoluções) é
constituído de projetos que apresentaram dois tipos de encaminhamentos: foram
rejeitados pelos intendentes, quando das votações em plenário, ou ficaram pen-
dentes de decisão, o que significa a suspensão da tramitação na casa legislativa.
Desse modo, nos dez primeiros anos de organização político-administrativa nos
moldes da Lei Orgânica de 1892, grande parte da produção legislativa do Conselho
obteve a sanção ou o veto do prefeito. Algumas variáveis ajudam a compreender
o poder de veto do prefeito do Distrito Federal.

1. A rotatividade de um cargo: variável tempo de


mandato dos prefeitos
Entre 1892 e 1902, existiu uma significativa diferença na distribuição dos ve-
tos e decretos entre os prefeitos do Distrito Federal, que se justifica, em grande
parte, pela considerável variação no tempo de permanência no cargo.
 103
Quadro 1
Período do mandato e meses de gestão dos prefeitos
do Distrito Federal (1892-1902)
Prefeito Mandato N.o de meses
de gestão**
Candido Barata Ribeiro 12/12/1892 a 25/05/1893 5
Antônio Dias Ferreira (interino)* 26/05/1893 a 26/06/1893 1
Henrique Valadares 27/06/1893 a 31/12/1894 18
Francisco Furquim Werneck de Almeida 01/01/1895 a 15/11/1897 34
Joaquim José da Rosa (interino)* 16/11/1897 a 24/11/1897 0
Ubaldino do Amaral Fontoura 25/11/1897 a 15/11/1898 11
Luiz Van Revén (interino) 17/11/1898 a 30/12/1898 1
José Cesário de Faria Alvim 31/12/1898 a 31/01/1900 13
Honório Gurgel (interino)* 05/05/1899 a 23/05/1899 0
Antônio Coelho Rodrigues 01/02/1900 a 06/09/1900 7
João Felipe Pereira 06/09/1900 a 10/10/1901 13
Joaquim Xavier da Silveira Junior 11/10/1901 a 27/09/1902 11
Carlos Leite Ribeiro (interino)* 27/10/1902 a 29/12/1902 2
Fonte: REIS, José de Oliveira. O Rio de Janeiro e seus prefeitos. Rio de Janeiro: Prefeitura da cidade do Rio de
Janeiro, 1977; CARVALHO, Carlos Delgado de. História da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria
Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação, 1990.
* presidente do Conselho Municipal / ** foram levados em consideração somente os meses completos

Os resultados do Quadro 1 mostram que os anos de 1892 a 1902 foram de imen-


sa instabilidade política no âmbito dos poderes municipais, com alta rotatividade de
prefeitos. Nenhum permaneceu nesse cargo por quatro anos, tempo de mandato
definido pela Lei Orgânica de 1892. Na verdade, esse prazo foi alvo de modificação

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MARCELO DE SOUZA MAGALHÃES

por parte do Congresso Nacional. Passados seis anos de vigência da Lei, o artigo
2.o do Decreto n.o 543, de 23 de dezembro de 1898, suprimiu o tempo de mandato,
definindo que o prefeito nomeado continuaria desempenhando suas funções en-
quanto bem servir. Modificação que consistiu em uma clara restrição da liberdade
de atuação da pessoa nomeada para estar à frente do cargo de prefeito.
A indefinição do tempo, condicionada à avaliação subjetiva do prefeito pelo
crivo do bem servir, provavelmente tinha a intenção de aproximar a atuação do
chefe do Executivo municipal dos interesses de quem lhe delegou o poder, o pre-
sidente da República. A partir do Decreto n.o 543, — sancionado por Campos Sales
(15/11/1898 a 15/11/1902), presidente que buscou intervir de forma muito decisiva no
jogo político carioca — ficou superado o constrangimento a que teria de passar o
chefe do Executivo federal devido ao fato de exonerar um prefeito antes do tér-
mino de seu mandato.
A supressão do tempo de mandato do prefeito ajuda a relativizar a interpre-
tação de sua atuação como um interventor federal, ao menos entre 1892 e 1902.
Tal interpretação valoriza muito fortemente o fato de o poder do prefeito ser de-
legado pelo presidente da República, pressupondo que a atuação do primeiro é
orquestrada de acordo com os interesses do segundo. Isto é, a prefeitura seria
quase um órgão do aparelho administrativo da União. Contudo, tal suposição fica
abalada quando se pensa nas razões políticas que produziram o Decreto n.o 543.
Isso porque esse decreto mostra claramente o quanto, nos anos iniciais da Prefei-
tura do Distrito Federal, era pouco provável a existência de uma grande sincronia
entre os dois executivos. Do mesmo modo, não teria sentido o investimento feito
na modificação legal do tempo de mandato, caso o prefeito não estivesse incomo-
 104
dando alguém. O bem servir é seguido certamente de uma interrogação: a quem?
No caso, ao Executivo federal, que tentava, com o controle do tempo de mandato,
obter uma efetiva aliança com o prefeito.
Assim, entre 1892 e 1902, o cargo de prefeito foi ocupado por 14 pessoas, o
que evidencia sua fantástica rotatividade. Destes, seis assumiram interinamente,
sendo cinco presidentes do Conselho — Alfredo Augusto Vieira Barcellos, Antonio
Dias Ferreira, Joaquim José da Rosa, Honório Gurgel e Carlos Leite Ribeiro — e um
nomeado pelo presidente da República — Luiz Van Erven.4
De acordo com a Lei Orgânica de 1892, em caso de vacância do cargo, ca-
bia ao presidente do Conselho assumir interinamente a chefia do Executivo local.
Isso indica que o presidente do Legislativo era detentor de um considerável poder,
uma vez que, entre outras atribuições, desempenhava o papel de substituto oficial
do prefeito.
Somente em 1902, num momento de grande restrição das atribuições do
Conselho Municipal dentro do campo político-institucional carioca, é que o seu
presidente perdeu o direito de substituir o prefeito, o que ocorre com a sanção da
Lei n.o 939, de 29 de dezembro.
Dos oito prefeitos efetivos, apenas dois permaneceram no cargo em torno
de seis meses: Candido Barata Ribeiro (cinco meses) e Antonio Coelho Rodrigues
(sete meses), sendo o primeiro o único nomeado pelo presidente da República

4 Nasceu em 1857, na então Província do Rio de Janeiro, e faleceu em 1927. Engenheiro formado, foi diretor
da Repartição de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro antes de assumir interinamente a Prefeitura do
Distrito Federal. As referências biográficas dos prefeitos do Distrito Federal foram extraídas, sobretudo,
de: PINTO, Surama Conde Sá. Elites políticas e o jogo do poder na cidade do Rio de Janeiro (1909-1922). Tese
(Doutorado em História Social). Rio de Janeiro: PPGHIS-UFRJ, 2002.

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TENSÃO E CONCILIAÇÃO NA POLÍTICA: O PODER DE VETO E A QUESTÃO...

que teve seu nome rejeitado pelos membros do Senado Federal.5


A soma do tempo de mandato dos demais prefeitos efetivos (Henrique Va-
ladares, Francisco Furquim Werneck de Almeida, Ubaldino do Amaral Fontoura,
José Cesário de Faria Alvim, João Felipe Pereira e Joaquim Xavier da Silveira Junior)
equivale a pouco mais de oito anos à frente da prefeitura. Em conjunto, portanto,
são esses seis prefeitos que governam por 80% da década estudada.
Mas esse resultado ainda pode ser matizado, caso se leve em conta a modi-
ficação na política do governo federal para a capital da República, ocorrida após o
atentado à vida do presidente Prudente de Morais, em 1897. O atentado provocou
uma tentativa de enquadrar a política na capital, reduzindo a ingerência das forças
locais nos poderes municipais, o que foi levado às últimas consequências na ges-
tão de Campos Sales.6
O marco produzido pelo atentado reflete-se claramente no tempo de perma-
nência no cargo. Antes do atentado, Henrique Valadares (18 meses) — nomeado
por Floriano Peixoto — e Francisco Furquim Werneck de Almeida (34 meses) —
nomeado por Prudente de Morais — permaneceram, em conjunto, pouco mais de
quatro anos (52 meses) à frente da prefeitura.7 Após o atentado, já na presidência
de Campos Sales, em apenas quatro anos, passaram pela prefeitura sete pessoas,
dentre as quais cinco nomeadas: Luiz Van Erven (1 mês), José Cesário de Faria Al-
vim (13 meses), Antonio Coelho Rodrigues (7 meses), João Felipe Pereira (13 me-
ses) e Joaquim Xavier da Silveira Junior (11 meses).

 105
A rotatividade no cargo foi sem dúvida mais intensa no governo Campos Sa-
les, o que aponta para tensões entre o Executivo municipal e o Conselho e entre
aquele e o Executivo federal. Tensões que possuíam, ao menos, uma explicação.
Os anos iniciais da República foram de profunda aprendizagem política. Neles, anti-
gas e novas forças políticas passaram a atuar em instituições que acabavam de ser
criadas, o que implicava, dentre outras coisas, a invenção de tradições diferentes
do fazer política: outros vocabulário, cargos, rituais, formas de se relacionar etc.8
É justamente nesse momento que, com a Lei Orgânica de 1892, se criou a
figura do prefeito, até então inédita no âmbito dos poderes que administravam
a cidade. Vale assinalar que, no período colonial, o governo da cidade era feito,
sobretudo, pelo Senado da Câmara e, no período imperial, pela Câmara Municipal.
Portanto, até 1892, a cidade do Rio de Janeiro possuía apenas instituições colegia-
das como responsáveis por sua administração.9
Criada a função de prefeito, ela ficou muito dependente das decisões toma-

5 ara acompanhar o processo de rejeição da indicação de Barata Ribeiro, cf.: BASTOS, Ana Marta Rodrigues.
O Conselho de Intendência Municipal: autonomia e instabilidade (1889-1892). Rio de Janeiro: CEH/FCRB,
1984, mimeo. WEID, Elisabeth von der. O prefeito como intermediário entre o poder federal e o poder
municipal na Capital da República. Rio de Janeiro: CEH-FCRB, 1984, mimeo.
6 Cf.: FREIRE, Américo. Uma capital para a República: poder federal e forças políticas locais no Rio de Janeiro
na virada para o século XX. Rio de Janeiro: Revan, 2000, em especial, o capítulo 3.
7 O que equivale a 40% da década estudada e/ou 52% do tempo de mandato dos seis prefeitos que mais
estiveram no cargo entre 1892 e 1902.
8 Para se ter uma noção das disputas entre projetos políticos nos primeiros anos republicanos, cf.: LESSA,
Renato. A invenção republicana: Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira República brasileira.
São Paulo: Editora Vértice, 1988; GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. São Paulo: Editora
Vértice, Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988, em especial, a 1.a parte. CARVALHO, José Murilo de. A formação das
almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
9 É importante ressaltar que o tipo de organização administrativa que teria o município não foi definido
na Constituição da República de 1891. Logo, alguns municípios, como o Distrito Federal, criaram o cargo
de prefeito, separando os poderes Executivo e Legislativo; outros municípios mantiveram um tipo de
organização próximo ao das Câmaras Municipais do Império, sendo o presidente da Câmara um cargo
com responsabilidades mais administrativas.

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das pelos membros do Conselho, pelo fato de a Lei Orgânica ter definido nada me-
nos do que 37 atribuições10 para a casa legislativa. Ou seja, para governar, qualquer
prefeito nomeado tinha que, minimamente, tentar conseguir o apoio de boa parte
dos intendentes, o que por vezes, pode ter implicado ir de encontro aos interesses
de quem lhe delegou o poder, o Executivo federal.

2. Os sentidos do poder de veto


Os vetos: quantos são?
O tempo de permanência no cargo de Prefeito do Distrito Federal, entre 1892
e 1902, permite compreender, em parte, a significativa diferença dos números ab-
solutos presentes na Tabela 1.

Tabela 1
Distribuição de vetos e de decretos por mandato de Prefeito
do Distrito Federal (1892-1902)
Prefeito N.o de N.o de Total % veto
vetos decretos
Candido Barata Ribeiro 15 42 57 26,3
Antônio Dias Ferreira (interino)* 0 5 5 0,0
Henrique Valadares
Francisco Furquim Werneck de Almeida
12
38
93
341
105
379
11,4
10,0
 106
Joaquim José da Rosa (interino)* 1 12 13 7,7
Ubaldino do Amaral Fontoura 44 161 205 21,5
Luiz Van Revén (interino) 13 18 31 41,9
José Cesário de Faria Alvim 55 72 127 43,3
Honório Gurgel (interino)* 0 8 8 0,0
Antônio Coelho Rodrigues 11 30 41 26,8
João Felipe Pereira 21 56 77 27,3
Joaquim Xavier da Silveira Junior 16 77 93 17,2
Carlos Leite Ribeiro (interino)* 5 56 61 8,2
TOTAL 231 971 1202
Fonte: Boletim da Intendência Municipal do Distrito Federal (1892-1902)
* presidente do Conselho Municipal

Uma das variáveis que levou o prefeito Francisco Furquim Werneck de Al-
meida a apresentar o maior número absoluto resultante da soma dos vetos com
os decretos (379) foi a de ter estado à frente da prefeitura por mais tempo, isto
é, 34 meses. O mesmo pode ser dito em relação aos prefeitos interinos, que, pelo
fato de permanecerem, em média, um mês à frente da prefeitura, apresentaram
os menores números absolutos.
Porém, o tempo de permanência no cargo de prefeito não é a única expli-
cação da diferença. Outra variável que deve ser levada em consideração é a do
volume da produção legislativa, do número de resoluções que eram aprovadas
no Conselho e que chegavam ao prefeito para sanção ou veto. Tal número variou
muito de acordo com as conjunturas políticas da década.

10 Para as atribuições, cf.: Art. 15, da Lei n.o 85, de 20 de setembro de 1892.

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TENSÃO E CONCILIAÇÃO NA POLÍTICA: O PODER DE VETO E A QUESTÃO...

Dos seis prefeitos que, juntos, permaneceram o total de oito anos à frente
do Executivo, tirando a média por mês das resoluções do Conselho vetadas e san-
cionadas, temos: Ubaldino do Amaral Fontoura (18,63 resoluções/mês), Francisco
Furquim Werneck de Almeida (11,14), José Cesário de Faria Alvim (9,76), Joaquim
Xavier da Silveira Junior (8,45), João Felipe Pereira (5,92) e, por fim, Henrique Va-
ladares (5,83).
A média ajuda a perceber o volume da produção legislativa, dissociando-o da
variável tempo de permanência no cargo de prefeito. Apenas como exemplo, ela
permite chegar ao seguinte resultado: o prefeito Ubaldino do Amaral, em 11 meses
de gestão, vetou e sancionou três vezes mais, por mês (18,63), do que o prefeito
Henrique Valadares (5,83), que permaneceu no cargo durante um ano e meio.
Feitas as ressalvas quanto à diferença existente entre os números absolutos,
vamos à análise dos resultados da Tabela 1. A hipótese é a de que o percentual de
vetos interpostos por cada prefeito seja um indício do tipo de relação construída
com os membros da casa legislativa municipal. Logo, quanto maior o percentual,
maior é a possibilidade de que a gestão do prefeito tenha sido caracterizada por
uma relação conflituosa com os intendentes; sendo o inverso também verdadeiro:
quanto menor o percentual, mais o prefeito teria uma relação amistosa ou conci-
liatória com os intendentes.
Os prefeitos Henrique Valadares e Furquim Werneck de Almeida, ao longo de
pouco mais de quatro anos de mandato, vetaram por volta de 10% das resoluções
aprovadas pelo legislativo municipal. Ambas as gestões possuíram um percentual

 107 extremamente pequeno de vetos e um significativo número de resoluções san-


cionadas, transformando-se em decretos (93 e 341, respectivamente). Para se ter
uma ideia desse volume, basta verificar que os dois prefeitos juntos sancionaram
quase 45% das resoluções apresentadas entre 1892 e 1902.
O percentual de vetos interpostos por Valadares e Almeida está, inclusive,
próximo ao dos prefeitos interinos, sempre abaixo dos 10% — Joaquim José da
Rosa (7,7%) e Carlos Leite Ribeiro (8,2%). Tal proximidade é um indício de que esses
prefeitos efetivos procuraram de alguma forma construir administrações capazes
de dialogar com os membros do Conselho, uma vez que, sem isso, seria impossível
tal resultado. Como vimos, de acordo com a Lei Orgânica de 1892, a origem dos
prefeitos interinos, excetuando Luiz Van Erven, era a própria casa legislativa. O
fato de pertencerem ao Conselho, provavelmente explica o baixo percentual de
vetos enquanto estiveram à frente da prefeitura.
Outro indício que corrobora a argumentação de terem sido as gestões de Va-
ladares e Almeida as de maior diálogo com os intendentes, no sentido de conciliar
interesses diversos, está relacionado com o número absoluto de vetos. O total de
vetos dos quatro anos de administração desses prefeitos — em número de 50 — é
próximo aos vetos interpostos em 11 meses de gestão de Ubaldino do Amaral (44
vetos) e em 13 meses de gestão de José Cesário de Faria Alvim (55 vetos). Dito de
outra forma, ao longo da década estudada, os quatro anos de Valadares e Almeida
correspondem a quase 22% dos vetos totais e os dois anos de Fontoura e Alvim
correspondem, praticamente, ao dobro: 43% dos vetos totais.
O quarto prefeito efetivo, Ubaldino do Amaral Fontoura, que substituiu Wer-
neck de Almeida, vetou, percentualmente, um pouco mais que o dobro (21,5%) dos
vetos interpostos pela gestão anterior. Como veremos adiante, esses dois prefei-
tos vivenciaram o início do processo de enquadramento político da capital, após o
atentado fracassado contra a vida de Prudente de Morais. Ambos foram nomea-
dos por esse presidente — Almeida antes e Amaral depois do referido atentado, o
que torna suas administrações bastante interessantes.

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O fato de vetar um pouco mais de 1/5 das resoluções aprovadas pelos inten-
dentes indica que a atuação de Ubaldino do Amaral à frente da prefeitura esteve
longe de ser conciliatória em relação ao Conselho, ao menos se compararmos com
as gestões anteriores de Valadares e Almeida, em que os vetos ficaram próximos
de 1/10 das resoluções aprovadas. No mínimo, pode-se dizer que, na gestão de
Ubaldino do Amaral, ocorreu um aumento de tensão na relação com o Conselho,
tornando-se o diálogo entre Executivo e Legislativo municipal mais difícil.
Com José Cesário de Faria Alvim, quinto prefeito efetivo e o primeiro no-
meado por Campos Sales, mais uma vez, o percentual total de vetos interpostos
(43,3%) foi o dobro do da gestão anterior, de Ubaldino do Amaral, que já era alto.
Em números absolutos, isso equivale dizer que Alvim vetou 55 e sancionou 72 re-
soluções aprovadas pelo Conselho.
Comparando a gestão de Alvim com as de Valadares e Almeida, a diferença
percentual de vetos passa a ser brutal, chegando a um aumento de 400%. Isto é,
o prefeito Cesário Alvim, em pouco mais de 1 ano de administração, vetou 4 vezes
mais resoluções que Valadares e Almeida em 52 meses de administração. Esse au-
mento significativo não deixa dúvidas de que, ao menos no momento de vetar, a
relação entre Cesário Alvim e os membros do Conselho foi conflituosa.
Os dados analisados até aqui possibilitam caracterizar a gestão de cada pre-
feito, no que tange à relação com a casa legislativa municipal, tomando-a como
um todo, sem nuances. Isto é, pela menor quantidade de vetos, infere-se que as
gestões de Valadares e Almeida mantiveram relações amistosas com o Conselho.
O inverso ocorreu no caso de gestões como as de Fontoura e Alvim, pelo fato de
possuírem maior quantidade de vetos.
 108
Uma forma de sofisticar essa visão das administrações dos prefeitos quanto
à relação que mantinham com o Conselho, é a de distribuir os vetos ao longo de
cada gestão. Os resultados presentes no Quadro 2 permitem perceber quais são
os momentos, no interior das gestões, em que ocorreram os vetos, o que situa,
com precisão, o aumento do conflito com a instituição legislativa.

Quadro 2
Distribuição dos vetos por mês (prefeitos efetivos do Distrito
Federal, 1892-1902) (continua)
Prefeito Mandato Período total de Meses Quantidade
gestão de gestão de vetos
Henrique Valadares 27/06/1893 18 meses 11/1893 1
a 31/12/1894 01/1894 3
02/1894 1
04/1894 1
05/1894 2
06/1894 1
10/1894 2
11/1894 1
TOTAL 18 meses 12

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Quadro 2
Distribuição dos vetos por mês (prefeitos efetivos do Distrito
Federal, 1892-1902)
(continuação)
Prefeito Mandato Período total de Meses Quantidade
gestão de gestão de vetos
Francisco Furquim 01/01/1895 a 34 meses 01/1895 1
Werneck de Almeida 15/11/1897 05/1895 1
07/1895 1
08/1895 2
09/1895 2
10/1895 4
11/1895 4
02/1896 1
04/1896 3
05/1896 3
08/1896 2
10/1896 1
11/1896 1
12/1896 1
04/1897 2
05/1897 4
09/1897 1
10/1897 2

 109 TOTAL
11/1897
34 meses
2
38
Ubaldino do Amaral 25/11/1897 a 11 meses 11/1897 2
Fontoura 15/11/1898 12/1897 4
01/1898 1
04/1898 2
05/1898 18
09/1898 1
10/1898 6
11/1898 10
TOTAL 11 meses 44
José Cesário de 31/12/1898 a 13 meses 11/1898 1
Faria Alvim 31/01/1900 01/1899 15
03/1899 2
04/1899 8
06/1899 5
09/1899 4
10/1899 12
11/1899 2
12/1899 6
TOTAL 13 meses 55
João Felipe Pereira 06/09/1900 13 meses 09/1900 3
a 10/10/1901 10/1900 8
11/1900 1
12/1900 1
04/1901 4
05/1901 2
09/1901 1
10/1901 1
TOTAL 13 meses 21

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Quadro 2
Distribuição dos vetos por mês (prefeitos efetivos do Distrito
Federal, 1892-1902) (continuação)
Prefeito Mandato Período total de Meses Quantidade
gestão de gestão de vetos
Joaquim Xavier da 11/10/1901 a 11 meses 10/1901 2
Silveira Junior 27/09/1902 11/1901 4
12/1901 2
01/1902 1
02/1902 1
03/1902 3
04/1902 1
05/1902 1
09/1902 1
TOTAL 11 meses 16
Fonte: Boletim da Intendência Municipal do Distrito Federal (1892-1902).
* foram contados apenas os meses completos

No caso das gestões de Henrique Valadares e Werneck de Almeida, a distri-


buição de vetos por mês não acrescenta grande novidade. Ela apenas corrobora a
argumentação de que foram prefeitos que buscaram construir boas relações com
o Conselho. Ambas as gestões são desprovidas de momentos de concentração no

 110
número de vetos. Inclusive, o primeiro veto de Valadares ocorreu somente no seu
quinto mês de gestão (novembro de 1893), sinalizando um início de mandato com
relações bastante tranquilas com os intendentes.
Diferente das anteriores, na gestão de Ubaldino do Amaral, os meses de maio
e novembro de 1898 foram de picos. Nesses dois meses estão concentrados 63,62%
dos vetos interpostos pelo prefeito. Em novembro, todos os vetos ocorreram na
primeira quinzena, pelo fato de o prefeito ter deixado o cargo no dia 15. A con-
centração de vetos no final da gestão permite pensar que sua saída da prefeitura
ocorreu num clima de embate com os membros da casa legislativa. Aprofundando
a análise, vi que as resoluções que beneficiavam de alguma forma o funcionalismo
municipal foram o alvo principal dos vetos de Ubaldino do Amaral. Em maio, seis
das 18 resoluções vetadas e, em novembro, cinco das dez resoluções, diziam res-
peito a tal temática (33,33% e 50%, respectivamente). Mas pode-se dizer que as re-
soluções relativas ao funcionalismo ocuparam o primeiro lugar dos vetos, ao longo
de toda a gestão de Ubaldino do Amaral: 16 das 44 resoluções vetadas, ou 36,36%.
As medidas que beneficiavam o funcionalismo municipal possuíam um largo
espectro: concessão de licença, reintegração no cargo, aposentadoria, contagem
de tempo de serviço etc. Apenas como exemplo do tipo de questão em que prefei-
to e intendentes se envolviam, em 9 de maio de 1898, Ubaldino do Amaral vetou
a resolução que concedia licença, por seis meses, à professora adjunta Obdulia
Carolina Vasconcellos de Loureiro, com todos os vencimentos.11
Para além das demandas do funcionalismo, os vetos interpostos em maio e
novembro de 1898 versavam sobre assuntos como: concessões diversas, ensino
municipal, intervenção em logradouro público, patrimônio municipal, repartições
públicas, transporte de bondes e posturas municipais. Algo, em princípio, mais
substancial para a vida da cidade do que questões que incidiam sobre o destino
dos servidores públicos.

11 Boletim da Intendência Municipal, de abril a junho de 1898, p. 36.

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Na administração do prefeito José Cesário de Faria Alvim também houve momen-


tos de concentração significativa de vetos, sinalizando um acirramento da relação com
os membros do Conselho. Acirramento que ocorre logo em seu primeiro mês à
frente da prefeitura, quando vetou 15 resoluções aprovadas pelos intendentes (ja-
neiro de 1899). Abril e outubro deste ano também foram meses de picos de vetos:
8 e 12, respectivamente. Em apenas três dos 13 meses de sua gestão, estão concen-
trados 63,62% dos vetos.
Durante o mês de janeiro, repetiu-se o padrão de concentração em um de-
terminado assunto, tal como ocorreu na gestão de Ubaldino do Amaral, sendo que
6 das 15 (40%) resoluções vetadas eram relativas a medidas que beneficiavam o
funcionalismo. O mesmo não se verifica em abril e outubro, quando os vetos inter-
postos por Cesário Alvim possuíam temas diversos. As resoluções vetadas diziam
respeito à mudança de denominação de ruas, ao calçamento e ao prolongamento
de logradouro público; à revisão no contrato assinado com empresa de bonde; à
prorrogação no pagamento de impostos; à abertura de crédito extraordinário no
orçamento; a concessões de licença, de reintegração, de indenização e de equipa-
ração de vencimentos do funcionalismo municipal etc.
O fato de os meses de alta concentração de vetos não serem dominados por
um assunto específico é indício de que a gestão de Cesário Alvim apresentava um
padrão de conflito difuso com a casa legislativa municipal, ou seja, que não havia
apenas uma única e grande questão, como no caso das resoluções voltadas para
beneficiar o funcionalismo, como ocorreu com Ubaldino do Amaral. A existência

 111 de um padrão difuso de vetos pode significar um conflito exacerbado com o Con-
selho, ao menos no que diz respeito à produção legislativa, em que qualquer reso-
lução podia ser alvo de veto do prefeito.
Entretanto, a existência e predominância de um assunto específico, como
elemento que estimula uma alta concentração de vetos, voltou à cena na gestão
de João Felipe Pereira. No segundo mês à frente do Executivo (outubro de 1900),
concentram-se 38,09% das resoluções vetadas por esse prefeito, sendo que quatro
dos oito vetos diziam respeito à questão do transporte de bonde. Em 4 de outubro
de 1900, por exemplo, ele vetou a resolução que autorizava renovar o contrato
celebrado em 1.o de julho de 1899 com a Companhia de São Cristóvão.12 Dois dias
depois, em 6 de outubro, vetou duas resoluções que concediam autorização para
construir linhas de bonde.13
Apesar da questão do transporte de bonde ter sido geradora de um aumen-
to de tensão na relação entre o prefeito e os intendentes, ao longo da gestão de
Felipe Pereira ela não se constituiu em um ponto constante de conflito. Em seus
13 meses de administração, excetuando outubro de 1900, as resoluções vetadas
eram relativas a assuntos diversos, tais como: o abastecimento de carne, as con-
cessões públicas, o funcionalismo municipal, o orçamento, as posturas municipais,
as subvenções públicas etc.
O último prefeito efetivo nomeado por Campos Sales, Joaquim Xavier da
Silveira Junior, contrariando o padrão da gestão de seus colegas anteriores, não
possuiu, ao longo de seus onze meses de mandato, nenhuma alta concentração
de vetos. Apesar de não existir um mês com pico de vetos, a administração de
Xavier da Silveira Junior, do mesmo modo que a de Ubaldino do Amaral, também
apresentou uma concentração em torno de medidas que beneficiavam o funcio-
nalismo municipal, perfazendo o total de seis das 16 resoluções vetadas, ou 37,5%.

12 Idem, de abril a junho de 1899, p. 83-86.


13 Cf.: Ibidem, p. 89-90 e p. 87-89.

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Eram resoluções que concediam a aposentadoria com todos os vencimentos, o


aproveitamento de uma pessoa num determinado cargo, a transferência de fun-
cionários, a reintegração e a contagem de tempo de serviço.
Os dados analisados até aqui reforçam o argumento de que as gestões de
Valadares e de Almeida buscaram construir relações senão amistosas, ao menos,
pouco conflituosas com o Conselho, considerando o menor uso do poder de veto.
No caso dos prefeitos posteriores, é possível perceber as nuances de cada ges-
tão. Nenhuma dessas administrações pode ser caracterizada como tendo mantido
sempre uma relação de conflito com a casa legislativa municipal. Ao longo de cada
gestão, o que ocorreu foram períodos de melhores ou piores relações com os in-
tendentes.

Os vetos: o que se veta?


Outra variável importante para compor o quadro das relações existentes
entre os prefeitos e os intendentes do Conselho é o da natureza das matérias ve-
tadas. Ao menos para os meses de alta concentração de vetos, já tivemos uma
prévia dos resultados dessa variável. Resta agora analisar a década estudada para
compreender melhor o tipo de matéria que era alvo das disputas políticas entre
Executivo e Legislativo municipal. A Tabela 2 constrói uma panorâmica das maté-
rias, a partir do exercício do veto do prefeito.
 112
Tabela 2
Natureza das matérias vetadas pelos prefeitos do Distrito Federal (1893-1902)
Matérias Total %
Funcionalismo Municipal 65 28,14
Obras Públicas 29 12,55
Posturas Municipais 27 11,69
Transporte Público 26 11,26
Ensino Municipal 14 6,06
Impostos 12 5,19
Orçamento 8 3,46
Abastecimento 6 2,60
Patrimônio Municipal 6 2,60
Administração Pública 5 2,16
Loteria 5 2,16
Comemorações e Homenagens 3 1,30
Iluminação Pública 3 1,30
Limpeza Urbana 3 1,30
Desconhecidas e Outras 19 8,23
TOTAL 231 100,00
Fonte: Boletim da Intendência Municipal do Distrito Federal (1892-1902)

Pelos resultados, concluo que as medidas que envolviam o funcionalismo mu-


nicipal ocuparam o primeiro lugar nas resoluções vetadas por todos os prefeitos
entre 1893 e 1902. Das 231 resoluções vetadas, nada menos que 65 versavam sobre
o funcionalismo, ou seja, cerca de 1/4. Para um período posterior, que vai de 1909 a
1922, Surama Conde de Sá Pinto também constatou a prevalência das medidas que

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incidiam sobre o funcionalismo público nos vetos interpostos pelos prefeitos. De


347 resoluções vetadas, 244 tratavam do tema, isto é, 60%.14 Isso equivale a dizer
que os prefeitos, de 1892 até 1922, fizeram do tema funcionalismo um dos maio-
res pontos de discórdia da administração da capital federal. O que tem significado
ainda mais expressivo se, como foi exemplificado, for observado o tipo de ques-
tão pontual que a matéria envolvia. Algo absolutamente cotidiano e distante de
ser imaginado como causa de tensões políticas graves e que só ganha significado
quando recebe tratamento quantitativo.
Sob essa classificação, estão agrupados procedimentos que se referem ao
decorrer da vida profissional de um funcionário, tais como a dispensa de concur-
so; a nomeação; a inclusão ou o aproveitamento em certo cargo; a gratificação; a
transferência; a equiparação de vencimentos; a contagem de tempo de serviço; a
licença — sem ou com vencimentos ou ordenado; a aposentadoria — com todos
os vencimentos ou com o ordenado; entre outros. Poucas dessas resoluções iam
além do caso específico de um funcionário, possuindo um caráter mais geral.
As obras públicas, as posturas municipais e o transporte público ocuparam
segundo, terceiro e quarto lugares das resoluções vetadas pelos prefeitos, respec-
tivamente. Em se tratando das obras públicas — 29 vetadas, ou 12,55% —, grande
parte das resoluções dizia respeito a algum tipo de intervenção nas ruas da cidade,
havendo as que concediam ou prorrogavam o prazo estipulado para a abertura
de ruas; as que autorizavam a aceitação de ruas abertas por particulares; as que
mandavam efetuar o calçamento de ruas; as que concediam o direito de desapro-

 113 priação por utilidade pública a particulares, para abrir ou prolongar ruas; as que
mandavam construir bueiros; e, por fim, as que autorizavam a realização da limpe-
za e do embelezamento de certos espaços públicos.
Já as resoluções sobre posturas municipais — 27 vetadas, ou 11,69% — diziam
respeito, por exemplo, à localização dos depósitos de inflamáveis e de explosivos
na cidade; à forma de enterramento nos cemitérios; à proibição de trabalho de
menores de 16 anos em lugares de divertimentos públicos; ao Código de Polícia
municipal; e, principalmente, a regras de construção e reconstrução de edifícios
na cidade. Esse último caso correspondia a nada menos que dez das 27 resoluções
vetadas, ou 37,03%. Eram resoluções que, em sua maioria, criavam exceções ao re-
gulamento geral de construção, como a que permitia construções independentes
de licença e arruação em vários distritos, vetada por Francisco Furquim Werneck
de Almeida, em 12 de setembro de 1895.15
No caso do transporte público, as medidas relacionadas à questão das linhas
de bonde da cidade foram focos constantes de tensão. Para se ter uma ideia de
sua dimensão, das 26 resoluções vetadas, apenas duas fugiam ao tema. Uma delas
autorizava a abertura de concorrência para o serviço de barcas entre a capital fe-
deral e as ilhas de Paquetá e do Governador, e foi vetada por Henrique Valadares,
em 22 de maio de 1894.16
As outras 24 resoluções vetadas praticamente se dividiam em concessões
para construção de linhas de bonde (oito resoluções) e autorizações para a revi-
são, a revogação de parte e a renovação de contratos firmados com companhias
de ferro carril (nove resoluções). Isto é, as decisões sobre concessões e contratos
firmados equivaliam a quase 71% das resoluções vetadas relacionadas ao transpor-
te de bonde. Os outros 29% diziam respeito à alteração de tráfego nas linhas, à

14 Cf.: PINTO, Surama Conde Sá. Op. cit., p. 157.


15 Boletim da Intendência Municipal, de julho a setembro de 1895, p. 19.
16 Idem, de janeiro a junho de 1894, p. 54-55.

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elevação dos preços das passagens, entre outras.


O restante das resoluções vetadas — quase 30% do total — eram relativas à
admissão de alunos, à dispensa de exames de ensino, à subvenção de escolas e à
regulamentação do ensino municipal; à dispensa, à isenção, à criação, à redução e
à prorrogação de pagamento de impostos; à abertura de créditos extraordinários
e suplementares no orçamento municipal e o estorno entre rubricas do orçamen-
to; ao abastecimento de carne verde; ao patrimônio municipal; à criação e à reor-
ganização das repartições públicas; à concessão de extração de loterias; à atribui-
ção de nome a um espaço público; e, por fim, à limpeza das casas particulares e do
espaço público.
Feito todo esse balanço, cabe perguntar. De que maneira o tipo de matérias
vetadas ajuda a compreender as relações entre os prefeitos e os intendentes do
Distrito Federal? A separação por ano das matérias vetadas possibilita olhar com
maior cuidado o período estudado.

Tabela 3
Matérias 1893 1894 1895 1896 1897 1898 1899 1900 1901 1902 T %
Funcionalismo 1 3 3 3 6 19 13 5 6 6 65 28,14
Municipal
Obras Públicas 7 2 2 2 8 6 1 1 29 12,55
Posturas 3 2 4 4 1 1 7 3 1 1 27 11,69

 114
Municipais
Transporte 1 1 4 2 4 8 5 1 26 11,26
Público
Ensino 1 1 1 4 3 1 2 1 14 6,06
Municipal
Impostos 2 2 1 1 1 2 2 1 12 5,19
Orçamentos 1 3 2 2 8 3,46
Abastecimento 1 1 2 1 1 6 2,60
Patrimônio 1 4 1 6 2,60
Municipal
Administração 1 2 1 1 5 2,16
Pública
Loteria 1 1 1 1 1 5 2,16
Comemorações 1 1 1 3 1,30
e Homenagens
Iluminação 2 1 3 1,30
Pública
Limpeza 1 2 3 1,30
Urbana
Desconhecidas 3 4 8 2 1 1 19 8,23
e Outras
TOTAL 16 11 15 12 18 52 54 24 16 13 231 100,00

Natureza das matérias vetadas pelos prefeitos do Distrito Federal (1893-1902)


Fonte: Boletim da Intendência Municipal do Distrito Federal (1892-1902)

Logo se percebe que os anos de 1898 e 1899 foram os de mais alta concen-
tração de vetos: 152 e 54 resoluções vetadas, respectivamente. O que equivale
a 46% do total de resoluções vetadas entre 1893 e 1902. Para se ter dimensão da
aceleração do ritmo de vetos interpostos, basta informar que o volume de resolu-
ções vetadas em 1898 equivale a quase três vezes o ocorrido em 1897 que, até 15

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de novembro, correspondia à gestão de Werneck de Almeida.


Os anos de 1898 e 1899 foram justamente os de intensificação do processo
de enquadramento político da capital federal, que visava, sobretudo, reduzir a atu-
ação das forças políticas locais, por meio do enfraquecimento do Conselho e do
fortalecimento do prefeito. O primeiro ano correspondeu ao final do governo de
Prudente de Morais e o segundo ao início do governo Campos Sales. Como vimos,
esse foi o período em que Ubaldino do Amaral e Cesário Alvim estavam à frente
da prefeitura. No intervalo entre os dois prefeitos, por pouco mais de um mês, a
gestão interina de Luiz Van Erven vetou 41,9% das resoluções apresentadas para
sanção, sinalizando, no que diz respeito aos vetos, uma relação bastante difícil
com o Conselho. A gestão de Van Erven pode ser interpretada como uma prévia do
que aconteceria na de Cesário Alvim.
A observação dos vetos por ano permite também perceber que somente a
partir de 1898 é que as medidas que beneficiavam o funcionalismo passaram a estar
sempre no primeiro lugar das resoluções vetadas. No caso, 49 dos 65 vetos (75,38%)
ocorreram entre 1898 e 1902. Nos anos restantes, excetuando 1894 e 1897, as pre-
valências de vetos referiam-se a medidas de intervenção em logradouro público
(1893), no transporte público (1895) e nas posturas municipais (1895 e 1896).
Retornando às resoluções vetadas sobre as demandas do funcionalismo, vê-se
que elas efetivamente se concentraram nos anos de 1898 e 1899, correspondendo a
32 dos 65 vetos, ou 49,23%. Logo, tudo leva a crer que tais demandas eram as mais ex-
plosivas em se tratando das relações entre o Conselho e os prefeitos Amaral e Alvim.
 115 Uma última variável que permite reunir mais pistas sobre as relações que
existiram entre os prefeitos e o Conselho é a da distribuição dos decretos por ins-
tituição de sanção.

Tabela 4
Divisão dos decretos de acordo com o poder municipal que
os sancionou (D.F., 1892-1902) (Continua)
Prefeito N.o de Total por Sanções do Sanções do
decretos mandato prefeito Conselho
% %
Henrique Valadares 74
Antônio Dias Ferreira* 14
João Baptista Maia de Lacerda* 2
90 82,23 17,77
Francisco Furquim Werneck de 238
Almeida
Joaquim Xavier da Silveira Junior* 44
Honório Gurgel** 13
Joaquim José da Rosa* 42
Eugenio Guilherme de Magalhães 4
Carvalho**
341 69,79 30,21
Ubaldino do Amaral Fontoura 61
Joaquim José da Rosa* 39
Tertuliano da Gama Coelho* 51
Manoel Corrêa de Mello** 10
161 37,89 62,11

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Tabela 4
Divisão dos decretos de acordo com o poder municipal que
os sancionou (D.F., 1892-1902) (Continuação)
Prefeito N.o de Total por Sanções do Sanções do
decretos mandato prefeito Conselho
% %
José Cesário de Faria Alvim 72
72 100 0
João Felipe Pereira 56
56 100 0
Joaquim Xavier da Silveira Junior 77
77 100 0
Fonte: Boletim da Intendência Municipal do Distrito Federal (1892-1902)
* presidente do Conselho Municipal / ** vice-presidente do Conselho Municipal

O artigo 21 da Lei Orgânica de 1892 estabeleceu o prazo máximo de cinco


dias para que o prefeito sancionasse ou opusesse veto por escrito a qualquer reso-
lução aprovada pela maioria dos intendentes. Findo o prazo, caso o prefeito não
se posicionasse, caberia ao presidente do Conselho o ato da sanção. Isto implica
dizer que o legislativo municipal, na figura de seu presidente, também possuía a
atribuição de transformar em lei uma resolução aprovada pelos intendentes. Po-
rém, é extremamente importante frisar que o exercício de tal atribuição pelo pre-
sidente da casa legislativa dependia sempre da ação de abstenção do prefeito.
Logo, o fato de se abster de sancionar ou de vetar uma resolução pode ser enten-
 116
dido como uma forma de delegar tal atribuição ao legislativo.
Na gestão de Werneck de Almeida, 103 das 341 resoluções foram sancionadas
pelo presidente ou pelo vice-presidente do Conselho: 30,21%. O ato de se abster da
sanção ou da oposição de veto ocorreu, sobretudo, quando as resoluções visavam
beneficiar o funcionalismo e intervir nos logradouros públicos, nas obras públicas.
Nada menos que 58 das 103 resoluções (50,31%) sancionadas pela casa legislativa
versavam sobre tais temáticas. Isso pode ajudar a corroborar duas ideias: 1) a de
que os temas do funcionalismo e da intervenção em logradouros são muito caros
para o Conselho (por meio deles, os intendentes podem satisfazer os interesses
de seus possíveis eleitores, travando uma aproximação maior com os habitantes
da cidade); e 2) representam temas passíveis de barganha ou temas conciliadores,
por meio dos quais o prefeito pode estreitar suas relações com o Conselho, permi-
tindo que este decida sobre os temas que lhe são caros.
O prefeito Ubaldino do Amaral foi o que mais se absteve de sancionar ou ve-
tar uma resolução aprovada pelo Conselho. Ao longo de sua administração, 62,11%
das resoluções foram sancionadas pela chefia do legislativo municipal, ou cem de
161, em números absolutos. Comparando com as gestões anteriores, esse prefei-
to se utilizou do recurso da abstenção quase quatro vezes mais do que Henrique
Valadares e mais que o dobro de vezes que Werneck de Almeida. Com tais dados,
é possível afirmar que, ao menos no que diz respeito à produção legislativa, o Con-
selho praticamente governou no período em que Ubaldino do Amaral esteve à
frente da prefeitura.
Similar à gestão de Werneck de Almeida, as medidas relacionadas ao funcio-
nalismo municipal e a obras públicas também ocuparam o primeiro lugar entre as
resoluções sancionadas pela casa legislativa durante a administração de Ubaldino
do Amaral, perfazendo o total de 41 entre cem resoluções.

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Pela divisão dos decretos de acordo com o poder municipal que os sancio-
nou, percebi, no período, a existência de três situações básicas: a de prefeitos que
não delegavam ao Poder Legislativo municipal a atribuição de sancionar resolu-
ções; a de prefeitos que delegavam em parte tal atribuição; e, por fim, a de um
prefeito que delegou a maior parte dessa atribuição ao Conselho.
O ato de delegar uma parcela das atribuições do Executivo para o Legislati-
vo municipal podia significar uma tentativa, por parte dos prefeitos, de manter,
minimamente, boas relações com os intendentes. Principalmente, se a abstenção
fosse uma solução/alternativa encontrada pelos prefeitos para não interferir nas
resoluções do Conselho, para vetá-las ou para sancioná-las. Com isso, dependendo
da situação, os prefeitos terminavam por evitar a criação de impasses intransponí-
veis em suas relações com a casa legislativa.
É preciso lembrar que se abster podia também significar o inverso, ou seja, o
aumento da tensão na relação entre o prefeito e o Conselho. Apenas como exem-
plo, vale o caso do prefeito Barata Ribeiro. Ele deixou passar o prazo de cinco dias
para sancionar ou vetar uma resolução, ficando a cargo do presidente do Conselho
desempenhar tal atribuição. Porém, ela possuía um prazo bastante específico para
que fosse efetivada, e que era menor que os cinco dias legais para a sanção. Logo,
ao deixar o prazo se esgotar, longe de evitar entrar em conflito com os intenden-
tes, o prefeito não só vetou a resolução, que não mais se aplicava, como abriu uma
crise com o Conselho.17

 117 3. O calcanhar de Aquiles das gestões municipais: o


funcionalismo público
O passo seguinte, visando compreender melhor as relações entre os inten-
dentes e o prefeito, é acompanhar as justificativas utilizadas por Werneck de Al-
meida, Ubaldino do Amaral e Cesário Alvim para vetar resoluções, especialmente
aquelas sobre o funcionalismo municipal que, como se demonstrou, são as que
envolvem maiores tensões políticas.
A primeira gestão é a de Francisco Furquim Werneck de Almeida.18 Republica-
no histórico, em 1891 foi eleito como um dos representantes do Distrito Federal na
Câmara dos Deputados, participando da Constituinte e da 1.a Legislatura. Em mar-
ço de 1894, foi reeleito deputado federal para a 2.a Legislatura. Como deputado,
participou da comissão responsável por elaborar um projeto acerca da organiza-
ção municipal do Distrito Federal. Essa comissão era composta por sete deputados
cariocas e possuía Tomas Delfino como relator. Ao longo de sua trajetória política,
fez parte dos quadros do Partido Republicano da Capital Federal (PRCF), ao lado de
políticos como Aristides Lobo e Tomas Delfino e, posteriormente, foi membro da
seção carioca do Partido Republicano Federalista (PRF do DF), fundado em 1893.
Foi no período de domínio político do PRF que o presidente da República
Prudente de Morais nomeou Werneck de Almeida. Aos 46 anos de idade, assumiu
a Prefeitura do Distrito Federal, permanecendo no cargo de 1.o de janeiro de 1895 a

17 Cf.: BASTOS, Ana Marta Rodrigues. Op. Cit., p. 79.


18 Nasceu em 29 de setembro de 1846, em Pati do Alferes, na então Província do Rio de Janeiro. Era filho
de Francisco de Assis e Almeida — doutor em direito, proprietário de terras em Vassouras e deputado no
Império — e Mariana Isabel de Lacerda e Almeida. Bacharelou-se em 1869 pela Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro e exerceu a profissão de médico na cidade. Como parte de sua atividade profissional,
tornou-se membro da Academia Nacional de Medicina.

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15 de novembro de 1897. Foi exonerado justamente por estar ligado politicamente


a Francisco Glicério, liderança influente do PRF que entrou em rota de colisão con-
tra o presidente Prudente de Morais, logo após o atentado de 1897.
Werneck de Almeida foi o primeiro prefeito pertencente às forças políticas
cariocas. Seu partido — o PRF — possuía então a maioria das cadeiras do Conselho,
o que ajuda a entender o baixo percentual de vetos interpostos pelo prefeito (10%)
e a razoável abstenção do ato de sancionar resoluções (30%). Nesse aspecto, seu
mandato é caracterizado por um amplo compartilhamento da responsabilidade de
aprovar decretos entre Executivo e Legislativo municipal.
Outro indicativo das boas relações entre os poderes municipais pode ser en-
contrado nas razões dos vetos interpostos às resoluções sobre o funcionalismo.
Das 38 resoluções vetadas, apenas nove diziam respeito a esse tema (23,68%). Tais
resoluções eram referentes à concessão de aposentadoria (duas), à inclusão no
quadro de funcionários (três), ao preenchimento do lugar de professor catedrático
(uma), à contagem de tempo de serviço (uma) e à reintegração de ex-funcionários
(duas). O prefeito argumentou ter o Conselho invadido o raio de competência do
Poder Executivo municipal, no que não podia concordar. As razões listadas para
vetar nunca o colocavam numa situação de embate cerrado com os intendentes,
o que aponta para um equilíbrio nas relações entre os dois poderes, e justamente
no momento em que o regime republicano se iniciava.
Seu sucessor, Ubaldino do Amaral Fontoura nasceu na vila da Lapa, então
pertencente à Província de São Paulo, no dia 27 de agosto de 1842. Bacharelou-se
em 1867 pela Faculdade de Direito de São Paulo. Depois de formado, construiu
uma carreira profissional de sucesso. Em 1874, transferiu-se para a cidade do Rio
 118
de Janeiro — então sede da Corte imperial — a convite de Saldanha Marinho, vin-
do a trabalhar em sua banca de advogado. Entre outras atividades, foi professor
na Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro e magistrado, chegando ao topo
da carreira em dezembro de 1894, quando o presidente da República, Prudente de
Morais, o nomeou Ministro do Supremo Tribunal Federal. Permaneceu no cargo
por quase um ano e meio, sendo exonerado, a pedido, em 4 de maio de 1896.
Sua atividade legislativa é extensa, tendo sido eleito, em janeiro de 1891, se-
nador pelo estado do Paraná. Durante a Constituinte, presidiu a Comissão dos 21,
responsável pela revisão do projeto da Constituição. Em 30 de dezembro de 1891,
renunciou à sua cadeira no Senado. Contudo, foi reeleito pelo mesmo estado em
15 de junho de 1892. Na Câmara Alta, exerceu os cargos de 1.o secretário e vice-
-presidente, entre maio de 1894 e maio de 1895.
Aos 55 anos de idade, e depois de ter saído do Supremo Tribunal Federal,
assumiu a Prefeitura do Distrito Federal, nomeado por Prudente de Morais. Per-
maneceu no cargo por um ano — de 25 de novembro de 1897 a 15 de novembro
de 1898 —, isto é, até o fim do mandato do presidente da República. Ubaldino do
Amaral, portanto, assumiu o cargo num momento político conturbado, para o que
o seu perfil de homem experiente e maduro muito deve ter contribuído. Ou seja,
apenas 20 dias após o atentado à vida de Prudente de Morais, que vitimou o ma-
rechal Carlos Machado Bittencourt, ministro da Guerra, e no mesmo ano em que a
República destruiu o arraial de Canudos.
Em 2 de março de 1898, na primeira mensagem proferida diante dos inten-
dentes do Distrito Federal, como parte da cerimônia anual de abertura dos traba-
lhos legislativos, Ubaldino do Amaral definiu claramente a conduta que adotaria
enquanto estivesse à frente da prefeitura:

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[...] a ação do Prefeito há de se restringir às funções de obscuríssimo


administrador, mais preocupado com o orçamento do que com a exibi-
ção de programa, tanto mais falaz mais perigoso, quanto mais brilhante.
Cumpri-lhe resistir às pretensões individuais e partidárias, ainda com o
risco de ver-se isolado, servindo de alvo a todos os ataques.19

Esse trecho sinaliza para a mudança ocorrida em relação à gestão anterior.


No lugar de desempenhar uma função “política”, Ubaldino se assumia como um
“administrador”, afastado de pretensões individuais e de programas partidários.
Percebe-se que o prefeito atribuiu à sua forma de agir características absoluta-
mente opostas às de Werneck de Almeida.
O ideal de política como boa administração é fundamental para se entender
o fato de o prefeito ter, ao mesmo tempo, vetado de forma significativa e deixado
o Conselho sancionar mais de 60% das resoluções aprovadas.
Ao se comparar a natureza das resoluções sancionadas pelo prefeito (61) e
pelo presidente do Conselho Municipal (cem), logo se percebe não existir nenhu-
ma matéria que tenha sido exclusiva de um dos poderes municipais. Isto é, am-
bos sancionaram resoluções sobre os mais diversos assuntos: orçamento, ensino
municipal, posturas, administração pública, patrimônio municipal, limpeza urbana
etc. Além disso, as resoluções que diziam respeito ao funcionalismo e à interven-
ção nos logradouros públicos — obras públicas — foram destaques nos trabalhos
dos dois poderes.

 119 O fato de o prefeito delegar ao presidente do Conselho Municipal a maior


parte da atribuição de sancionar as resoluções aprovadas pelos intendentes podia
significar, como já foi dito, uma tentativa de evitar um impasse instransponível
com a casa legislativa. Porém, também podia indicar a transferência da responsabi-
lidade sobre a sanção para o Legislativo, livrando-o do peso das críticas da opinião
pública. Se levarmos em conta o discurso de Ubaldino do Amaral, defendendo o
ideal da política como “administração”, o sentido de transferir tal responsabilida-
de parece o mais verossímil. Logo, como administrador, supostamente distante de
paixões e interesses, deixava para os intendentes não apenas a função de legislar,
mas também, a de “governar”.
No que diz respeito aos vetos, as resoluções sobre o funcionalismo muni-
cipal eram os alvos principais do prefeito Ubaldino do Amaral (17 dos 44 vetos,
ou 38,64%).20 Nas resoluções vetadas, o prefeito sempre lançou mão da mesma
justificativa, argumentando, sobretudo, que tais resoluções violavam os preceitos
estabelecidos pela Lei Orgânica de 1892. Vejamos um caso.
Em 30 de novembro de 1897, o prefeito vetou a resolução que concedia um
ano de licença, com todos os vencimentos, ao 2.o oficial do Arquivo Municipal, João
Nepomuceno Bezerra Cavalcante, para tratar de sua saúde.21 Ubaldino do Amaral
alegava que a resolução era contrária à Lei Orgânica, devido ao fato de o Conselho
invadir as atribuições exclusivas do Poder Executivo municipal, atribuindo licença a
um funcionário em particular. O argumento defendido era o de que a Lei Orgânica
delineava papéis diferenciados para os poderes municipais: o §4o, do art.15, definia
competir ao Conselho Municipal legislar, firmando regras gerais relativas ao fun-
cionalismo; já o §7o, do art.19, definia competir ao prefeito pôr em prática as regras

19 Mensagem do prefeito do Distrito Federal ao Conselho Municipal, 02/03/1898. Boletim da Intendência


Municipal, janeiro a março de 1898, p. 47.
20 Cf.: Boletim da Intendência Municipal (1897-1898).
21 Boletim da Intendência Municipal, julho a dezembro de 1897, p. 118-119.

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gerais, nomeando, suspendendo, licenciando ou demitindo funcionários. Isto é, ao


Conselho cabia desempenhar a função de legislar e ao prefeito a de administrar.
A justificativa de que o Conselho invadia as atribuições exclusivas do Executi-
vo municipal foi utilizada também no momento em que Ubaldino vetou resoluções
relativas à reintegração de ex-funcionários e à contagem de tempo de serviço.
Nessa linha de argumentação, cabia ao prefeito mandar contar o tempo de serviço
prestado pelo funcionário, por ser uma atribuição tipicamente administrativa. Ao
reclamar da invasão das atribuições do Executivo municipal, Ubaldino do Amaral
criticou o Conselho Municipal de forma indireta, lembrando-se das reclamações de
seus antecessores:

Leis de exceção, de privilégio e monopólio, contra as quais muitas vezes


reclamaram os meus antecessores, têm reduzido o Distrito Federal a
uma situação que é para gerar cuidados e apreensões. Não desconheço
o patriotismo e as retas intenções dos legisladores municipais, nem es-
tranho que no tirocínio do sistema atual de governo se dêem vacilações
e desvios.
Penso, porém, que cumpre velar incessantemente pela pureza das ins-
tituições.22

Ao analisar os motivos listados para justificar o veto interposto a cada uma


das resoluções, percebi a presença do ideal de política como administração. O pre-
feito, quase invariavelmente, argumentava que o Conselho invadia as atribuições
exclusivas do Executivo municipal. Nesse argumento, estava presente a perspec-
tiva de caber ao prefeito o papel de administrador da municipalidade e aos inten-
dentes o papel de elaboradores de leis.
 120
A gestão de Ubaldino do Amaral parece marcada por uma relação bastante
tensa com o Conselho Municipal. Os vetos das resoluções sobre o funcionalismo
mostram, a todo o momento, uma efetiva disputa entre os poderes municipais, ao
menos no que se refere à delimitação de competências e de atribuições.
Os embates com o legislativo municipal certamente se avolumaram na ges-
tão de José Cesário de Faria Alvim.23 Tanto no Império quanto na República, ocu-
pou uma série de cargos no Executivo e no Legislativo. Membro do Partido Liberal,
no Segundo Reinado foi eleito deputado provincial (1864-1866) e geral (1867-1868,
1877-1880, 1886-1889) por Minas Gerais. Republicano de última hora, participou do
Governo Provisório, sendo Ministro da Justiça e do Interior, talvez por possuir for-
tes ligações com o marechal Deodoro da Fonseca. Em seguida, foi eleito senador,
também por Minas, para participar dos trabalhos de elaboração da Constituição
republicana. Renunciou à cadeira senatorial para assumir a primeira presidência
constitucional do estado de Minas (18/06/1891-10/02/1892). Antes disso, já havia
ocupado a chefia do estado de Minas (25/11/1889-10/02/1890) e sido presidente da
Província do Rio de Janeiro (1884-1886).
Aos 59 anos de idade e com vasta experiência política, assumiu a Prefeitu-
ra do Distrito Federal, nomeado por seu colega de Governo Provisório, Campos
Sales. Permaneceu no cargo de 31 de dezembro de 1898 a 31 de janeiro de 1900
e, após 13 meses de gestão, renunciou, devido a desavenças com o ministro da
Justiça Epitácio Pessoa.

22 Ibidem, p. 119. Veto à resolução que mandava contar para todos os efeitos e pelo dobro o tempo de
serviço militar em defesa do governo legal, prestado por José Rockert, escrivão da Agência da Candelária.
23 Filho do coronel José Cesário de Faria Alvim e de Thereza Januária Carneiro, nasceu em 7 de junho de
1839, no povoado de Pinheiro, município de Piranga, na então Província de Minas Gerais. Bacharelou-se,
em 1862, pela Faculdade de Direito de São Paulo.

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Cesário Alvim chegou à prefeitura num momento em que a partilha de poder


estabelecida pela Lei Orgânica de 1892 sofria, ao menos no âmbito legal, modificação
significativa. Oito dias antes, o presidente da República Campos Sales sancionou o
Decreto n.o 543, que restringia as atribuições do Conselho Municipal e aumentava
tanto o poder do prefeito como o controle deste por parte do Executivo federal.
Em se tratando da restrição de atribuições, o decreto constituiu-se num duro
golpe para os intendentes. O art. 9.o definia competir exclusivamente ao prefeito
a “iniciativa da despesa, bem como a da criação dos empregos municipais e do
recurso a empréstimos e operações de crédito”. Essa mudança retirava dos inten-
dentes uma das principais moedas que ajudavam na manutenção de suas redes de
influência. Sem poder criar empregos e despesas, teriam que encontrar formas al-
ternativas para responder às demandas de seus representados. Além disso, o Con-
selho também perdeu a atribuição de avaliar uma parte dos vetos opostos pelo
prefeito, o que voltava a ser uma competência exclusiva do Senado Federal. Logo,
a gestão de Cesário Alvim foi a primeira a ensaiar o novo experimento político pelo
qual passavam os poderes municipais. Experimento que tentava fortalecer a figura
do prefeito em detrimento do Conselho.
Os dados quantitativos analisados até aqui mostram que a gestão de Cesário
Alvim na prefeitura foi marcada por uma relação bastante conflituosa com o Con-
selho, tendo o prefeito vetado mais de 40% das resoluções apresentadas para a
sanção. Ao longo de sua gestão, as resoluções que diziam respeito a medidas que
beneficiavam o funcionalismo municipal também foram as mais vetadas (13 dos 55
 121 vetos, ou 23,64%).24
As 13 resoluções vetadas referentes ao funcionalismo não apresentam ne-
nhuma concentração significativa sobre um determinado assunto, sendo relati-
vas à reintegração de ex-funcionário (três), a vencimentos (duas), à concessão
de licença (duas), a aproveitamento em determinado cargo (duas), ao montepio
(duas), à equiparação entre cargos (uma) e à indenização (uma). Quanto às razões
dos vetos apresentadas por Cesário Alvim, elas eram, na maioria das vezes, simila-
res às utilizadas por Ubaldino do Amaral, sendo a acusação de invasão da área de
competência do prefeito central em oito dos 13 vetos.
Como as duas resoluções sobre vencimentos geraram uma imensa disputa
de poder, envolvendo o prefeito Cesário Alvim e os membros do Conselho, só so-
lucionada depois de muitos ataques de ambos os lados, com a decisão oficial dos
senadores, é importante acompanhar o caso mais de perto, mais detidamente.
Em 6 de março de 1899, Cesário Alvim vetou a Indicação do Conselho contrá-
ria à redução de 10% nos vencimentos do funcionalismo.25 Na justificativa do veto,
dirigida aos senadores, o prefeito fez um breve histórico acerca do que o levou a
promulgar o Decreto n.o 123, de 27 de janeiro de 1899, que reduziu em 10% os ven-
cimentos do funcionalismo.
Ao ocupar a chefia da prefeitura, afirmou ter encontrado a municipalidade
numa precária situação financeira, com contas a pagar vencidas, obras paradas,
condenações judiciárias, fama de devedora e três meses de vencimentos atrasa-
dos do funcionalismo. Para reverter essa situação, elaborou um programa de seve-
ra economia, que o credenciou a conseguir um empréstimo vantajoso no Banco da
República. Programa que tinha como ponto central atacar o problema de excesso
de funcionários, diagnosticado pelo prefeito como sendo a causa do desequilíbrio

24 Boletim da Intendência Municipal do Distrito Federal (1898-1900).


25 Cf. o teor da Indicação do Conselho em: Boletim da Intendência Municipal, janeiro a março de 1899, p. 90.

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financeiro, já que o pagamento dos vencimentos consumia quase 2/3 da receita da


municipalidade. Por tudo isso, estabeleceu, como ato do Poder Executivo, a contri-
buição de 10% nos vencimentos dos funcionários, condicionando a sua suspensão
no orçamento de 1900 ao fato de conseguir folga de recursos e restabelecimento
de crédito.
Feito o histórico dos motivos para promulgar o Decreto n.o 123, o prefeito
não perdeu a oportunidade de acusar o Conselho de falta de colaboração para
reverter a precária situação financeira da municipalidade, preferindo ficar do lado
fácil da defesa dos funcionários:

E em tais circunstâncias que o Conselho profere, como a primeira pala-


vra de sua colaboração, que espero, será mais tarde fecunda em bens
para o município, a presente indicação revogatória dos atos do Prefeito
em matéria de tanta magnitude!26

Cesário Alvim defendeu que seu ato estava baseado na autorização, conce-
dida pelo próprio Conselho, de reorganizar as repartições públicas, reduzindo o
pessoal e suprimindo os lugares dispensáveis. Como o fim último dessa autoriza-
ção era o de conter as despesas municipais, sendo a reorganização um processo
moroso, de resultados a longo prazo, decidiu-se por reduzir os vencimentos dos
funcionários, já que reverter a situação financeira era algo inadiável.
Por fim, depois de levantar a questão da competência do Conselho quanto à
criação de despesa, concluiu a justificativa do veto à indicação, fazendo uma crítica
muito ácida aos intendentes, acusando-os de agir em favor de seus próprios inte-
resses, ao invés dos interesses gerais.27
 122
Os 10% de redução nos vencimentos do funcionalismo voltaram a ser discuti-
dos no Conselho em 6 de setembro de 1899, cinco dias depois de o prefeito apre-
sentar a proposta orçamentária de 1900, sem fazer menção de suspender a redu-
ção. Na sessão ordinária, o intendente Leite Ribeiro, o mesmo responsável pela
formulação da indicação vetada em março por Alvim, apresentou o projeto de lei
n.o 108, que anulava o Decreto n.o 123, de 27 de janeiro de 1899.
Antes de iniciar o trâmite legislativo o projeto já possuía o apoio da maioria
dos intendentes, tendo sido assinado por mais sete membros da casa.28 Tal grau de
apoio sinalizava o quanto essa questão era cara ao Conselho, algo que foi ressalta-
do por Leite Ribeiro em seu discurso de apresentação do projeto:

[...] o Conselho Municipal não pode ficar indiferente à questão dos 10%.
Julga preciso terminar de vez essa causa, na qual estão comprometidos
os interesses dos funcionários; já não fala do interesse dos Intendentes,
interesse moral, bem entendido, pelo desprestígio que nessa questão
tem sofrido o Conselho.29

Aceito pela Mesa do Conselho, o projeto foi encaminhado para entrar na or-
dem dos trabalhos. Aprovado sem debates em primeira e em segunda discussão,
somente na terceira, quando Leite Ribeiro fez um histórico da questão, houve um
forte embate com o prefeito.

26 Ibidem, p. 90.
27 Cf.: Ibidem, p. 91.
28 Antônio José Leite Borges, Figueiredo Rocha, Manoel Rodrigues Alves, Mattos Rodrigues, Pereira Braga,
Numa Vieira e Leôncio de Albuquerque.
29 Anais do Conselho Municipal, 2.a sessão ordinária de 01/09 a 30/10/1899, p. 54.

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TENSÃO E CONCILIAÇÃO NA POLÍTICA: O PODER DE VETO E A QUESTÃO...

Em 27 de janeiro de 1899, aproveitando-se do recesso do legislativo munici-


pal, o prefeito Cesário Alvim decretou um ato que reduzia em 10% os vencimentos
do funcionalismo. O texto do decreto trazia a ressalva de que o ato seria submeti-
do à futura deliberação do Conselho. Antes de decidir apresentar uma indicação,
Leite Ribeiro pensou em falar diretamente com o prefeito, para tentar convencê-lo
de suspender a redução dos vencimentos, porém, desistiu de tomar tal atitude.
Segundo ele mesmo:

O orador se achava disposto, nessa ocasião, a ir ao gabinete do Sr. Pre-


feito fazer-lhe ver que o Conselho não poderia, sem quebra de dignida-
de, aprovar aquele ato. Quando, porém, ouviu a leitura da Mensagem
inaugural de S. Ex., o orador se sentiu inibido de levar a efeito aquela
sua resolução diante dos termos da aludida Mensagem que parecia que-
rer dar ao Conselho lições de honestidade.30

Com isso, em 2 de março de 1899, em vez de ir ao prefeito, apresentou uma


indicação, aprovada pela maioria dos intendentes, que declarava sem efeito o ato
do Poder Executivo municipal. Em 6 de março, obviamente, a indicação foi vetada
pelo prefeito. As razões apresentadas por Cesário Alvim agravaram ainda mais a
relação com o Conselho. O Senado Federal devolveu o veto para o prefeito, ale-
gando não poder se posicionar, pelo fato de se tratar de uma indicação em vez de
uma resolução. Porém, alguns senadores deram sinais de que consideravam ilegal
o ato do prefeito. Logo, para obrigar o Senado a se posicionar, Leite Ribeiro deci-
 123 diu transformar a indicação num projeto de lei. No encerramento de seu discurso,
qualificou a ação do prefeito como ditatorial: “O que o orador não pode é deixar
passar sem um veemente protesto o ato ditatorial do Poder Executivo, ato esse
que atenta contra a dignidade do Poder Legislativo Municipal”.31 Em seguida, o
projeto foi aprovado por maioria absoluta de votos dos intendentes.
Em 15 de setembro de 1899, adicionando mais um capítulo ao impasse com
o Conselho, o prefeito Alvim vetou a resolução que anulava o Decreto n.o 123. Nas
razões do veto, argumentou que faltava competência ao Conselho para anular os
atos do Executivo municipal, expedidos no uso legal de suas atribuições: “Assim
procedendo, arvora-se em Juiz supremo do Prefeito, que não lhe é subordinado;
e, a vigorar semelhante doutrina tornar-se-ia o Conselho o único poder administra-
tivo do Distrito, convertendo-se o Prefeito em seu Delegado”.32
O prefeito argumentou que não havia, em nenhuma das leis de organização
do Distrito Federal, a autorização — conferida ao Poder Legislativo municipal —
de invalidar qualquer ato do prefeito, mesmo pressupondo ser contrário às leis em
vigor. Na dúvida sobre a legalidade de qualquer ato do prefeito, defendeu caber
ao Judiciário, em vez do Conselho, o papel de julgar a questão.
Chegando o veto ao Senado, foi encaminhado aos membros da Comissão
de Constituição, Poderes e Diplomacia para interpor parecer. Na sessão de 21 de
setembro de 1899, foi apresentado o parecer da comissão, propondo a rejeição do
veto, assinado pelos senadores Vicente Machado e Pedro Velho. A tônica presente
no parecer era a de que o Executivo municipal invadiu as atribuições do Conselho,
ao se achar competente para legislar.33

30 Ibidem, p. 70.
31 Ibidem, p. 71.
32 Boletim da Intendência Municipal, de julho a setembro de 1899, p. 21.
33 Cf.: Anais do Senado Federal, sessão em 21 de setembro de 1899, p. 191.

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MARCELO DE SOUZA MAGALHÃES

Por se tratar de um assunto já conhecido pela Casa, desde o envio da indica-


ção vetada pelo prefeito, um membro da comissão, o senador Vicente Machado, re-
quereu que o parecer fosse dado para a Ordem do Dia seguinte, sem a necessidade
de aguardar a publicação em avulso. Aprovado o requerimento, o parecer entrou
na Ordem do Dia da sessão de 22 de setembro de 1899. Após uma breve tentativa
infrutífera de adiar a discussão, feita pelo senador Domingos Vicente, começou o
debate, que foi polarizado pelos senadores Coelho e Campos e Vicente Machado.
A discussão entre os senadores circulou em torno da questão do Conselho
ter ou não competência para anular um ato do prefeito considerado ilegal, devido
ao fato de invadir atribuição exclusiva do próprio legislativo municipal. A posição
defendida pelo parecer da Comissão de Constituição, Poderes e Diplomacia foi vi-
toriosa no Senado, reconhecendo o direito do Conselho. Por 35 votos contra seis a
favor do parecer, o veto do prefeito foi rejeitado pelos senadores.
Passados sete meses de conflito entre os intendentes e o prefeito, com trocas
de acusações de ambos os lados e com atribuições de qualificativos nada amistosos,
o Conselho Municipal — que se posicionou a favor do funcionalismo — saiu vitorio-
so, conseguindo a sanção do Decreto n.o 706, de 25 de setembro de 1899, que decla-
rava nulo, para todos os efeitos, o Decreto n.o 123, de 27 de janeiro de 1899.
Ao longo do tempo, como uma das soluções para a obtenção de um equi-
líbrio financeiro do Distrito Federal, os prefeitos, numa espécie de consenso, co-
meçaram a defender as necessidades de reduzir os benefícios atribuídos aos fun-

 124
cionários públicos, de diminuir o próprio número de funcionários e, também, de
reorganizar as repartições municipais, no sentido de torná-las mais modestas e
econômicas. Dentre os que ocuparam o cargo de Prefeito, Barata Ribeiro foi uma
voz dissonante, pelo fato de propor, ao invés da redução, o aumento do número
de funcionários. Qual era o lugar de Ribeiro na municipalidade? Por que essa dife-
rença em relação aos seus sucessores?
Em 1.o de março de 1893, Cândido Barata Ribeiro proferiu sua primeira men-
sagem ao Conselho, que acabaria sendo também a última, pois deixou o cargo
em 25 de maio de 1893, logo após a rejeição de sua indicação pelos membros do
Senado. Na mensagem, argumentou que, devido à implantação da Lei Orgânica,
a administração municipal passava por um período de transição. Isto é, o Conse-
lho de Intendência, instituição provisória criada em 1889 e que perdurou até 1892,
estava sendo substituído pelos poderes Executivo e Legislativo municipais. Por
isso, a lei transferiu diversas atribuições que eram da competência da União para
a municipalidade.
O alargamento do raio de ação da municipalidade — que o prefeito diag-
nosticava como crescente desde 1889, quando se extinguiu a Câmara Municipal
do Império — foi uma das justificativas para não apresentar aos intendentes a
proposta orçamentária de 1893. Outra razão dizia respeito ao argumento de ser a
proposta orçamentária dependente tanto das receitas quanto das despesas que
estavam sendo criadas pelos membros do Conselho Municipal. Os dois argumen-
tos reforçavam a ideia de que não adiantava a prefeitura apresentar uma proposta
orçamentária, tomando como base os valores monetários gastos no ano anterior,
quando a administração municipal era desempenhada pelo Conselho de Intendên-
cia e possuía um número muito menor de atribuições.
A partir do princípio de que a municipalidade passava por um período de
transição institucional, Barata Ribeiro apresentou dois problemas a serem enfren-
tados pelo Conselho Municipal: o de organizar as repartições municipais de acordo

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TENSÃO E CONCILIAÇÃO NA POLÍTICA: O PODER DE VETO E A QUESTÃO...

com as necessidades dos novos serviços e o de suprir a municipalidade com novos


funcionários. Com relação à falta de pessoal, o prefeito citou como exemplo a si-
tuação da Diretoria de Obras, em que cada funcionário ficava responsável por dar
andamento a dezenas de processos.
A mensagem inaugural de Barata Ribeiro ajuda a colocar em perspectiva o
calcanhar de Aquiles das demais gestões municipais. Em pouco tempo de organi-
zação municipal aos moldes da Lei Orgânica de 1892, a questão do funcionalismo
sofreu uma inflexão, deixando de incomodar pela falta e passando a incomodar
pela presença, altamente detectada nas gestões de Ubaldino do Amaral Fontoura
e José Cesário de Faria Alvim. As mensagens dos prefeitos posteriores a Barata
Ribeiro atribuíam ao significativo número de funcionários parte dos males finan-
ceiros enfrentados pela municipalidade. Logo, em apenas uma década, de 1892 a
1902, os funcionários municipais passaram de solução a problema, o que colocava
em guerra o prefeito e os intendentes. A análise minuciosa dos vetos é um cami-
nho para entender as tensões e conciliações na política municipal.

Recebido em 16/05/2013
Aprovado em 10/06/2013

 125

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ARTIGOS
O Trabalho Escravo Contemporâneo
e os Usos da História©*
Rebecca J. Scott**1

Resumo: O uso da palavra “escravidão” para descrever várias formas contemporâ-


neas de exploração suscita questões de definição legal. A escravidão nas Américas
no século dezenove estava ancorada na reivindicação de propriedade sobre pes-
soas, portanto usar o termo para caracterizar abusos modernos, quando nenhum
Estado reconhece mais a propriedade sobre pessoas, pode representar um risco
de anacronismo. Em debates parlamentares recentes, tanto na França quanto no
Brasil, a acusação de anacronismo foi feita pelos opositores do reconhecimento
legal do crime de escravização. Evidências históricas demonstram, entretanto, que
o exercício dos poderes inerentes ao direito de propriedade não necessariamen-
te derivam de um prévio direito legal à propriedade. O controle sobre pessoas,
equivalente à posse, podia ocorrer fora da lei e no entanto ser reconhecido como
propriedade legal após o fato. Na justaposição de um caso de 1810, de Nova Orle-
ans, na Louisiana, com a situação que deu origem à decisão do caso Siliadin contra
França pela Corte Europeia de Direitos Humanos, esse artigo analisa os paralelos
nas circunstâncias de escravidão urbana e os mecanismos através dos quais os
“poderes inerentes ao direito de propriedade” foram exercidos, independente de
qualquer direito de fato. O argumento apoia tanto a reforma do código penal fran-
cês para tornar o crime de escravização explícito, e a emenda proposta à Constitui-
ção brasileira que elevaria as penas para o uso de trabalho escravo.

Palavras-chave: escravidão contemporânea, direitos inerentes ao direito de pro-


priedade, Fran��������������������������������������������������������������������
ça, Brasil, São�����������������������������������������������������
Domingos, Corte Europeia de Direitos Humanos, Silia-
din contra França

Abstract: The use of the word “slavery” to describe various contemporary forms of
exploitation raises questions of legal definition. Slavery in the 19th century Ameri-
cas was rooted in the claim of property in persons, so using the term to character-
ize modern abuses, when no state any longer recognizes the ownership of persons,
seems to pose a risk of anachronism. During recent parliamentary debates in both
France and Brazil, the charge of anachronism has been levied by opponents of
the explicit recognition in law of a criminal offense of enslavement. Historical evi-
dence demonstrates, however, that the exercise of the powers attaching to a right

* Copyright pela autora, 2013.


** Departamento de História e Faculdade de Direito, University of Michigan. Contato: rjscott@umich.edu
1 Agradeço a meus colegas Beatriz Mamigonian, Silvia Hunold Lara, Mariana Dias Paes e Leonardo Barbosa
por sua ajuda na preparação dessa tradução. As fontes documentais e arquivísticas para este ensaio po-
dem ser encontradas no meu artigo “Under Color of Law: Siliadin vs France and the Dynamics of Ensla-
vement in Historical Perspective”. In: Jean Allain (ed.). The Legal Understanding of Slavery: From the His-
torical to the Contemporary. Oxford: Oxford University Press, 2012. Acesso em: http://papers.ssrn.com/
abstract=2292681

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REBECCA J. SCOTT

of ownership did not, in fact, necessarily derive from a prior legal right of owner-
ship. Control over persons, tantamount to possession, could occur quite outside
the law, though it might be cognized as legal ownership after the fact. Juxtaposing
an episode from New Orleans in 1810 with the situation that gave rise to the 2005
European Court of Human Rights decision in Siliadin contra France, the paper ana-
lyzes the parallels in the circumstances of urban slavery, and the mechanisms by
which “powers attaching to a right of ownership” came to be exercised, quite in-
dependent of any actual right. The argument thus supports both the proposed 2013
reforms to the French penal code that would make the crime of enslavement ex-
plicit, and the proposed amendment to the Brazilian Constitution that would raise
the penalties for the use of slave labor.

Keywords: contemporary slavery, powers attaching to the right of ownership,


France, Brazil, Saint-Domingue, European Court of Human Rights, Siliadin v. France

No Brasil, como em outros países, as campanhas contra o trabalho escravo


são frequentemente confrontadas com questões complexas de definição. Alguns
juízes evitam usar a palavra “escravidão”, alegando que esse termo implica con-
dições de sujeição absoluta, em que uma pessoa seria propriedade de outra. É co-
mum encontrar a ideia de que a escravidão envolve grilhões e chicotes, e que a
palavra “escravo” não pode ser aplicada a uma pessoa que é juridicamente livre e

 130
formalmente capaz de sair do lugar em que trabalha.
Os que se opõem à criminalização da exploração do trabalho escravo, e à
expropriação de propriedades em que o uso de trabalho escravo for confirmado,
usam o argumento de que a definição legal de uma situação de escravidão não é
clara e que as medidas previstas pela Proposta de Emenda Constitucional atual-
mente em debate no Senado abririam a possibilidade de abusos por parte de fiscais
ou procuradores. Assim, em vez de examinar os parâmetros bem concretos usados
por procuradores e fiscais que atuam nessa área, preferem apenas sugerir que a
definição de “trabalho escravo” ainda é bastante abstrata e controvertida.
Sabemos todos que esses argumentos são frequentemente movidos pela má
fé e pelo desejo de lucro. Para fazer frente a esses problemas e questionamentos,
no entanto, é importante que juristas e outras pessoas que lidam com essa temáti-
ca levem a sério a questão da definição. Este artigo propõe uma contribuição histó-
rica para esse esforço de esclarecimento.
Como definir “escravidão” ou “trabalho escravo”? O que fazia de alguém
um escravo no século XIX, quando a escravidão era uma instituição reconhecida e
identificada com a propriedade sobre as pessoas? Como definir alguém como es-
cravo, com alguma precisão, no século XXI, quando a propriedade sobre pessoas
não é admitida pela lei? À primeira vista, pode-se imaginar que o termo “escravo”
no século XIX significava uma pessoa sobre a qual havia um verdadeiro direito de
propriedade; e seria, portanto, enganoso usar o termo no século XXI, pois não há
nenhum legítimo direito de propriedade sobre pessoas em um mundo em que a
escravidão foi abolida.
Mas, quando examinamos os textos produzidos pela Liga das Nações e pelas
Nações Unidas, e outros documentos pertinentes ao tema, vemos que a escravidão
é definida no direito internacional do seguinte modo: “o estado ou a condição de um
indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, alguns ou todos os atribu-
tos do direito de propriedade”. É importante observar que a formulação não fala em

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O TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO E OS USOS DA HISTÓRIA©

«propriedade», mas em «atributos do direito de propriedade». Talvez seja útil pensar


nesta definição como uma fórmula algébrica: o exercício de poderes – abre parên-
teses – inerentes ao direito de propriedade – fecha parênteses – sobre uma pessoa.
Em outras palavras, existem poderes que são inerentes à propriedade e, se
esses poderes são exercidos sobre uma pessoa – mesmo que ela não seja proprie-
dade de ninguém –, a rela����������������������������������������������������������
ção pode��������������������������������������������������
, no direito internacional, ser descrita juridica-
mente como de escravidão. Em algumas decisões recentes, vários tribunais têm
reconhecido a utilidade dessa definição (que data de 1926, feita pela Liga das Na-
ções) e considerado que se pode compreender vários abusos cometidos tanto em
tempos de guerra quanto de paz como escravidão. Mas, se separamos o exercício
desses poderes do título de propriedade, propriamente dito, por que usar a pala-
vra “escravidão”? Não seria um anacronismo, já que a palavra “escravidão”, desde
pelo menos a época do Império Romano, se refere à propriedade de pessoas?
Para demonstrar por que não é assim, é importante tratar de exemplos espe-
cíficos, deixando de lado por um momento as questões abstratas.
Podemos examinar as histórias de duas mulheres, uma chamada Adélaïde
Métayer e outra Henriette Akofa Siliadin, para esclarecer a relação entre escra-
vidão e condição social. Cada uma delas se viu em uma cidade desconhecida, em
busca de segurança e de novas oportunidades, mas foi confrontada com a pers-
pectiva ou a realidade da escravização. Cada uma delas procurou o Judiciário para
garantir uma liberdade duradoura e para obter proteção jurídica para o que elas
acreditavam ser seus direitos.
 131 Essas duas mulheres viveram separadas por 200 anos e por um oceano. Ana-
lisá-las lado a lado pode parecer uma estratégia estranha, pois nós historiadores
evitamos o anacronismo a todo custo. Mas a justaposição de eventos tão distantes
no tempo torna-se inevitável diante do uso dos termos “escravidão” e “trabalho
escravo” nos textos sobre direitos humanos, no discurso público, e, no caso do
Brasil, nos textos sobre o Direito do Trabalho e sobre a Proposta de Emenda Cons-
titucional (PEC) n. 438/01, agora denominada, no Senado, PEC n. 57A/1999.
Vejamos, então, como o direito, no século XIX, discernia se alguém era ou
não escravo, examinando o caso de Adélaïde Métayer. Ela nasceu de mãe escrava,
em 1780, na cidade de Cap Français, São Domingos, na época em que a colônia es-
tava sob o domínio do antigo regime francês. Adélaïde era muito jovem durante a
grande insurreição escrava de 1791. Seu proprietário, um alfaiate chamado Charles
Métayer, fugiu da colônia com sua mulher, provavelmente em 1793, quando Adé-
laïde tinha mais ou menos 13 anos de idade. O casal a manteve como escrava e se
fixou em Nova Iorque.
Enquanto isso, em São Domingos, a revolução colocou fim à escravidão na
colônia francesa, agora sob o poder de Toussaint Louverture, ele mesmo um ex-
-escravo que havia se tornado governador geral e comandante do exército de São
Domingos, ainda sob a bandeira francesa. Louverture ofereceu aos que haviam se
refugiado em outros países a possibilidade de voltarem e retomarem suas proprie-
dades – exceto a propriedade sobre as pessoas, que havia sido abolida. Charles
Métayer e sua mulher retornaram para Cap Français, com Adélaïde.
Parecem ter conseguido que Adélaïde continuasse a trabalhar para eles por
um tempo, talvez protegidos por uma medida que obrigava alguns ex-escravos
domésticos a ficarem empregados com seus antigos donos. Mas Adélaïde, que
agora tinha um filho pequeno, viu que as pessoas ���������������������������������
�������������������������������
sua volta estavam livres e ten-
tou sair da casa dos Métayer. Ela ofereceu dinheiro a eles, para obter um reconheci-
mento por escrito de sua liberdade. Em 1801, Charles Métayer aceitou o dinheiro e

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REBECCA J. SCOTT

deu a Adélaïde um recibo que atestava sua liberdade. Mas Charles não queria deixar
que ela levasse o filho consigo, e disse que o libertaria mais tarde, “graciosamente”.
Adélaïde trabalhou por um tempo como vendedora e viveu com um homem
empregado nos fornos de cal. Porém, quando Napoleão Bonaparte enviou uma
força expedicionária da França para tirar Toussaint Louverture do poder, a colônia
foi tomada pela guerra. A autonomia de Louverture nas relações internacionais e a
insistência em acabar com a escravidão tinham enfurecido Bonaparte, que estava
determinado a retomar o controle direto sobre a colônia e restaurar a escravidão.
As tropas napoleônicas não conseguiram restaurar nem a escravidão, nem o
controle colonial, mas produziram uma catástrofe humana, espalhando a guerra
pelo território e forçando a fuga de dezenas de milhares de pessoas, que se refu-
giaram em portos seguros mais próximos. Adélaïde estava entre esses refugiados.
Ela possuía o papel que atestava sua liberdade, tinha recuperado a custódia de seu
filho, e conseguiu lugar num navio para a Jamaica.
Por volta de 1805, ela chegou a Baracoa, em Cuba. Milhares de refugiados de
São Domingos já tinham fugido diretamente para Cuba em 1803; entre eles vários
dos vizinhos de Adélaïde. Em Cuba, alguns dos refugiados, abusando da vulnerabi-
lidade de outros, haviam conseguido impor o exercício de poderes que correspon-
dem ao direito de propriedade. E, uma vez estabelecida tal relação social, o direito
espanhol simplesmente reconheceu este fato social como prova do direito de pro-
priedade. Os “criados” se tornaram “escravos” e a reescravização foi concluída.
Porém, todas as testemunhas que depuseram no processo de Adélaïde con-
cordavam que ela tinha vivido como mulher livre em Baracoa. Ali, ela tinha dado
à luz duas filhas e, no momento do batismo de cada uma delas, havia mostrado o  132
recibo assinado por Métayer que reconhecia sua “liberdade,” e as meninas haviam
sido batizadas como livres.
Entretanto, em 1808, a guerra na Europa entre a França e a Espanha levou à
expulsão dos refugiados vindos de São Domingos da colônia de Cuba, pois eram
percebidos como “franceses”. Adélaïde juntou-se a uma outra migração força-
da, dessa vez para a Louisiana. Os navios chegaram ao porto de Nova Orleans às
dezenas, levando quase dez mil refugiados de São Domingos como passageiros.
Ainda que a abolição da escravidão em São Domingos tivesse extinguido todo o
direito de propriedade sobre pessoas, a passagem pelas águas do Caribe e do Gol-
fo tinha permitido aos mais poderosos dentre os refugiados impor sua vontade
sobre outros. Uma vez estabelecida tal relação de força, os oficiais da Louisiana
entenderam a situação como escravidão. Assim, no momento em que entraram
na Louisiana, 3.226 pessoas que haviam sido emancipadas pela revolução haitiana,
uma emancipação que fora ratificada pela Assembleia Nacional da França, foram
registradas como escravas.
Mais uma vez, Adélaïde evitou esse destino. Era uma mulher confiante, segu-
ra de si, que já em Cuba desafiava qualquer um que ousasse se referir a ela como es-
crava. Ela e suas três crianças se fixaram na comunidade de refugiados, que incluía
gente que ela conhecia desde o tempo em que vivia em Cap Français. Um deles era
um alfaiate francês chamado Louis Noret, que havia sido sócio do antigo senhor de
Adélaïde. Ela tinha confiança em Noret, tanto que deu o recibo de Charles Métayer
que provava sua liberdade para que ele o guardasse em lugar seguro. Em princí-
pio, parecia lógico: Noret parecia um homem branco honesto que poderia levar a
prova de sua liberdade para as autoridades, em caso de necessidade. Na prática,
entretanto, não foi uma boa ideia.
Em março de 1810, o alfaiate Noret ajuizou uma ação e, afirmando que a fa-
milia do antigo senhor de Adélaïde tinha uma dívida com ele, pediu permissão para

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O TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO E OS USOS DA HISTÓRIA©

apreender qualquer “propriedade” da família Métayer que pudesse ser encontra-


da em Nova Orleans. Ele conseguiu a autorização e, junto com o xerife, foi ao alo-
jamento de Adélaïde e apreendeu-a com suas três crianças.
Nas semanas seguintes, o jornal local publicou um anúncio dizendo que Adé-
laïde e seus filhos seriam leiloados nos degraus do Café da Bolsa, em 28 de maio
de 1810, para liquidação da dívida no processo de Noret contra Métayer. No último
minuto, Adélaïde conseguiu obter os serviços de um advogado e entrou com um
processo contra Noret para suspender sua apreensão.
Nesse ponto é que chegamos bem perto da questão de como o estatuto
de escravo foi julgado — ou seja, como o direito determinava se uma pessoa
era escrava ou livre. O advogado de Adélaïde não argumentou que ela era livre
como resultado da revolução haitiana e da abolição da escravidão pela Assembleia
Nacional francesa, que tinha ���������������������������������������������������
extinguido todo o direito de propriedade sobre pes-
soas. Essa abolição era bem conhecida de todos, mas na cidade de Nova Orleans,
onde a posse escrava era generalizada, seria imprudente defender a liberdade
concedida por Toussaint Louverture e seu exército revolucionário de ex-escravos.
Em vez disso, o advogado apresentou como prova de sua liberdade uma cópia do
recibo que Charles Métayer havia dado a Adélaïde quando ela pagou pelo fim dos
serviços que ele lhe exigia.
Mas o recibo era datado de 1801… e que idade tinha seu filho? Adélaïde pri-
meiro tentou argumentar que o menino tinha nove anos, tendo nascido, portanto,
quando ela já era livre, depois de obter o recibo que apresentava como um “papel
 133 de liberdade”. Depois, admitiu que a criança tinha 11 anos e tinha nascido antes da
data do papel de liberdade.
A venda de Adélaïde e de suas filhas foi adiada enquanto o juiz julgava sua
reivindicação de liberdade. O menino, no entanto, como estava previsto, foi posto
em leilão. Nascido livre depois da abolição em São Domingos, o filho de Adélaïde
foi considerado escravo em Louisiana porque sua mãe não tinha nenhum docu-
mento que mencionasse especificamente o seu nome, atestando sua liberdade.
Como a venda do garoto acabou cobrindo a dívida que Noret tinha declara-
do, o caso de Adélaïde contra Noret não foi julgado. Uma vez que a dívida foi paga,
o processo judicial ficou parado. Adélaïde e suas filhas voltaram para casa, mas seu
estatuto ficou sem definição.
Mesmo assim, quando em 1816 Adélaïde deu à luz outro menino, no registro
do batismo ela aparece de novo como uma “mulata livre.” No entanto, já que a
possibilidade de reivindicar o direito de propriedade sobre Adélaïde tinha dado
dinheiro a Noret uma vez, com a venda do filho mais velho, Noret estava decidido
a tentar novamente. Depois de localizar o herdeiro do antigo dono de Adélaïde
e conseguir dele uma procuração, Noret recomeçou sua campanha para contro-
lar Adélaïde. Ajuizou um processo em que reclamava a propriedade sobre ela, em
nome do herdeiro de Charles Métayer.
É fácil constatar como é complexa a questão do estatuto de Adélaïde. Ela vivia
como mulher livre, mas era confrontada por pessoas que atuavam como proprietá-
rios dela, sem que tivessem qualquer título de propriedade — pois toda a proprie-
dade sobre pessoas fora abolida em 1794, em São Domingos, jurisdição de onde
eles todos tinham vindo, tanto os supostos proprietários como a suposta escrava.
Adélaïde vivia no período clássico da escravidão, mas existia em algum lugar
dessa cena “um verdadeiro direito de propriedade” sobre Adélaïde? E, mais impor-
tante, havia um legítimo direito de propriedade sobre os 3.226 refugiados de São
Domingos, que eram todos livres segundo a lei francesa desde a década de 1790,

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REBECCA J. SCOTT

mas que haviam sido reescravizados na chegada a Cuba ou na chegada a Nova Orle-
ans? Esses três mil e tantos homens e mulheres foram mantidos como escravos. Os
poderes inerentes ao direito de propriedade foram exercidos sobre eles, tenha sido
esse direito de propriedade (em algum sentido) válido ou falso, reconhecido ou não.
Deixemos de lado por um momento o caso de Adélaïde Métayer, para dar-
mos uma olhada rápida no caso de Henriette Siliadin, ocorrido mais de 180 anos
depois — um caso que envolve a jurisprudência internacional de direitos humanos.
Iwa Akofa Siliadin nasceu no Togo, na África Ocidental. Tinha 15 anos em
1994, quando a irmã de uma amiga da família ofereceu-se para levá-la para Paris,
prometendo matriculá-la na escola e ajuda para a obtenção do visto de residência.
Iwa Akofa era uma adolescente e sua família tinha dificuldades; a perspectiva de ir
para Paris era interessante. Ela acompanhou a mulher e entrou na França com um
visto de turista, para uma estadia curta.
Logo ficou claro, entretanto, que a oferta de matrícula na escola tinha sido
uma artimanha. A mulher colocou Iwa Akofa, agora chamada de Henriette, para
trabalhar como babá e para limpar a casa. As coisas pioraram quando essa conhe-
cida “emprestou” Henriette para outra família, para realizar os mesmos afazeres.
A nova família a mantinha sob restrições ainda maiores e sob rígida vigilância
no apartamento em que moravam em Paris. Confiscou seu passaporte e amea-
çou-a dizendo que a polícia a prenderia se ela tentasse fugir. De acordo com os
registros dos processos judiciais feitos posteriormente, Henriette era obrigada a
trabalhar das sete e meia da manhã até dez e meia da noite, todos os dias da se-
mana, sem folga. Eles lhe davam pouca comida — ela acabou ficando anêmica — e  134
proibiam-na de falar com qualquer pessoa fora da família. Ela dormia em um col-
chão no chão, no quarto do bebê, e nunca recebeu pagamento.
No início, Henriette não tinha ideia da possibilidade de questionar as
circunstâncias em que vivia, ou como poderia fazê-lo. Ela era intimidada pelo casal
que a controlava e não conseguiu obter ajuda de um tio, a quem recorreu uma vez.
A família francesa
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lhe dizia sempre que, por não ter papéis, por não possuir docu-
mentos, a polícia podia prendê-la se ela tentasse reclamar de sua situação.
Depois de quase quatro anos vivendo nessas condições, ela aproveitou o en-
contro com uma vizinha para pedir ajuda. A vizinha não tinha certeza do que pode-
ria ser feito. Naquele ano de 1998, porém, a França celebrava 150 anos da abolição
definitiva da escravidão no império francês (ocorrida em 1848) e a vizinha viu nos
jornais a referência ao Comitê Contra a Escravidão Moderna. Ela contatou, então,
o comitê, e a polícia apareceu na porta da família para investigar. Em 1999 iniciou-
-se uma sequência de processos que duraram quase tanto quanto os de Adélaïde,
dois séculos antes. O julgamento da acusação contra o casal parisiense baseou-se
em dois artigos do Código Penal francês (225-13 e 225-14), um que tornava ilegal
extrair trabalho não remunerado ou mal remunerado de uma pessoa vulnerável
ou dependente; e outro que tornava um crime sujeitar uma pessoa a condições de
vida ou trabalho incompatíveis com a dignidade humana.
O juiz rejeitou a acusação de imposição de condições contrárias à dignidade
humana, argumentando a insuficiência dos testemunhos para provar tal ponto.
Mas condenou o casal por explorar uma pessoa vulnerável — nesse caso, menor
de idade, estrangeira, cujo passaporte havia sido confiscado. O casal parisiense,
senhor e senhora Bardet, foi condenado à prisão. Eles recorreram da sentença e
conseguiram que ela fosse reformada, pois os juízes consideraram que Henriette
não era assim tão vulnerável — eles argumentaram que, como ela falava francês,

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O TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO E OS USOS DA HISTÓRIA©

poderia ter usado um telefone público para pedir ajuda. Eles tomaram cada indício
de mobilidade como evidência contra a acusação de exploração.
Restou apenas uma ação civil por salários atrasados, por meio da qual Hen-
riette recebeu o valor equivalente em salários pelo tempo que trabalhou, com um
complemento para recompensar seu trabalho nos dias de folga. Foi nesse ponto
que o Comitê Contra a Escravidão Moderna levou o caso a julgamento na Corte
Europeia de Direitos Humanos, acusando a França de falta de cumprimento do
artigo quarto da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que obriga as nações-
-membro a proteger as pessoas sob sua jurisdição contra a escravidão e a servidão.
É interessante observar que pareceu difícil à Corte Europeia decidir como
avaliar a situação. Eles não duvidaram dos registros de trabalho não remunerado,
das ameaças e do confisco dos documentos de Henriette. Mas os juízes rejeitaram
o argumento de que as condições em que a moça trabalhava eram equivalentes à
escravidão. Eles acharam que, para chamar isso de escravidão, teria que ter havido
“um verdadeiro direito de propriedade” sobre ela, com a redução da pessoa ao
estatuto de objeto.
Mas a servidão, tanto quanto a escravidão, é proibida sob o artigo quarto da
Convenção Europeia, e a corte julgou o caso como sendo de servidão. A decisão
final repreendeu a França por deixar de estabelecer um mecanismo, em sua legis-
lação criminal, que estabelecesse penalidades efetivas para a ação de manter uma
pessoa em servidão.
Esses dois casos mostram que, historicamente, o termo “escravo” podia
 135 referir-se tanto à condição de uma pessoa (submetida ao poder de outra pessoa)
quanto ao seu estatuto (reconhecida pelo direito como propriedade). A condi-
ção de Adélaïde Métayer em Nova Orleans era de mulher livre; Louis Noret ten-
tou mudar essa condição, argumentando que seu verdadeiro estatuto legal era
de escrava. Arregimentou testemunhas que declararam ter visto Adélaïde na casa
de Charles Métayer 16 anos antes, em São Domingos, e que achavam ser ela uma
“escrava”, nesse momento. Na república francesa em 1998, o estatuto de Henriet-
te Akofa Siliadin era de mulher livre, porque evidentemente no século XX já não
existia o estatuto de escrava. Essa mulher livre, entretanto, havia se tornado tam-
bém, por meio da ação de outros, uma imigrante ilegal, vivendo numa condição de
servidão. O senhor e a senhora Bardet exerceram sobre ela uma série de poderes
que reconhecemos: extração de trabalho não remunerado, proibição de ir e vir
com autonomia etc.
No século XIX, os advogados de Louis Noret e, em seguida, de Pierre Mé-
tayer quiseram demonstrar que havia um direito de propriedade sobre Adélaïde,
herdado pelo filho do seu antigo dono, que fazia dela uma pessoa com o estatuto
de escrava. Os advogados do casal parisiense no século XX, ao contrário, não qui-
seram e não puderam demonstrar um direito de propriedade sobre Henriette. Foi
o procurador quem quis mostrar que a moça havia sido escravizada, ou sujeita à
servidão, para poder culpar o casal de um crime.
É importante notar que, nos dois casos, a categorização legal da pessoa como
escrava derivou da sua condição. Em 1818, a ficção legal de propriedade sobre uma
pessoa foi reivindicada porque Adélaïde parece ter permanecido no poder da fa-
mília Métayer quando eles moravam todos em São Domingos. A abolição que lhe
conferiu liberdade formal foi ignorada. Em 2005, a condenação da França pela Cor-
te Europeia – mesmo que o abuso de Henriette tenha sido considerado “servidão”
em vez de “escravidão” — dependeu das condições a que ela foi submetida e não
de seu estatuto formal.

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REBECCA J. SCOTT

Então, quando confrontarmos o argumento de que a “verdadeira” definição


de escravidão é “ter propriedade sobre uma pessoa” ou, nas palavras de um ma-
gistrado, ter “total sujeição do indivíduo ao poder do agente do crime”, podemos
responder que nem mesmo na época da escravidão legal a necessidade de provar
a propriedade existiu. O exercício de um domínio senhorial é que foi considerado
como evidência de que a pessoa submetida a esse domínio era escrava. O suposto
“direito de propriedade” frequentemente vinha depois do exercício dos “pode-
res” que correspondiam a um tal direito — não o inverso.
Diante dos refugiados que desembarcaram em Nova Orleans, o prefeito da
cidade designou milhares dessas pessoas como propriedade de outras milhares de
pessoas, sem a menor prova de um “verdadeiro direito de propriedade.” A força e
a condição social foram fatos sociais, aos quais o direito logo depois deu um nome:
propriedade.
Além das conclusões teóricas que podemos tirar dessas duas histórias, elas
também têm epílogos. Em 1818, o processo contra Adélaïde Métayer voltou pela
segunda vez à Corte Suprema da Louisiana. Pierre Métayer procurava a ajuda do
Estado para que Adélaïde fosse posta em seu poder, porque ela se recusava a re-
conhecer que era sua escrava. Desta vez, de maneira surpreendente, o presiden-
te da corte, respondendo aos argumentos do advogado de Adélaïde, invocou os
textos sobre a escravidão codificados no tempo de Afonso, o Sábio, na Espanha
medieval. Antes de a Louisiana ser um território dos Estados Unidos, tinha sido
uma colônia francesa e, antes disso, uma colônia espanhola. Poder-se-ia dizer, por-
tanto, que as cláusulas que não tinham sido explicitamente revogadas pela França
ou pelos Estados Unidos ainda estavam em vigor.
 136
A Lei das Siete Partidas considerava que a escravidão estava sujeita à pres-
crição, isto é, que o direito de propriedade sobre uma pessoa prescrevia, era ex-
tinto, caso não fosse exercido. Um escravo que vivesse de boa fé como livre por
dez anos no mesmo país que seu senhor seria considerado livre; e um escravo que
vivesse de boa fé por 20 anos em um país diferente daquele onde vivia o senhor
também seria considerado livre.
O juiz na Louisiana em 1818 não reconheceu a abolição da escravidão duran-
te a Revolução Haitiana como capaz de tornar livre uma mulher em Nova Orleans
— isso teria emancipado mais de três mil pessoas e ele não poderia fazer isso.
Mas ele considerou que Adélaïde tinha vivido como livre, de boa fé, desde aquela
época. Se contarmos o tempo entre 1794, quando a França ratificou o decreto de
abolição de São Domingos, e 1818, quando o juiz deliberou sobre o caso, são 24
anos: quatro a mais do que o necessário para julgar alguém livre com base na Lei
das Sete Partidas de Afonso, o Sábio.
No final da história, a condição de Adélaïde como mulher livre — algo que
ela conseguiu defender com unhas e dentes contra o alfaiate Noret — levou a
uma sentença que afirmava seu estatuto jurídico de mulher livre. Ela e suas três
crianças mais novas seriam, dali em diante, livres. O menino mais velho, no entan-
to, tinha desaparecido e sido engolido pelo mercado de escravos de Nova Orleans
oito anos antes.
Felizmente, o caso de Henriette Akofa também tem um epílogo. Ela vive ago-
ra na França —casada e mãe de filhos —, com visto de residência, e trabalha como
cuidadora. Agora, em 2013, a Assembleia Nacional da França está considerando
uma modificação do código penal que pretende criminalizar a manutenção de uma
pessoa em condições de servidão ou escravidão.

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O TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO E OS USOS DA HISTÓRIA©

Se essas histórias mostram a complexidade da relação entre condição social


e estatuto legal, tanto no passado como no presente, também mostram a impor-
tância da consciência de direitos. Nesse sentido, somos todos herdeiros das lutas
de mulheres como Adélaïde e Henriette, que mobilizaram sua própria consciência
de um direito à dignidade para forçar a justiça a rejeitar que sobre elas se exerces-
se o que o advogado de Adélaïde chamou de “poderes ilícitos”.
A definição de escravidão adotada pelo ordenamento jurídico de cada país se
apoia, necessariamente, em tradições legais nacionais e pode ser mais abrangente
do que aquela estabelecida no direito internacional. O artigo do código criminal
francês que proíbe a imposição de condições de vida ou trabalho incompatíveis
com a dignidade humana não foi suficiente para proteger Henriette Siliadin con-
tra a escravização, em parte porque os juízes fizeram uma interpretação estreita
dele. A legislação brasileira, em contraste, é baseada na combinação da garantia
à dignidade humana presente na Constituição Federal de 1988, com medidas de
proteção aos direitos trabalhistas já consolidadas, e assim constitui uma definição
muito efetiva de trabalho escravo. A demanda por dignidade tem estado entre as
principais demandas sociais dos trabalhadores em vários territórios atlânticos e
conecta as lutas de hoje àquelas empreendidas sob a escravidão formal e nos anos
que se seguiram à abolição.

 137 Recebido em 10/07/2013


Aprovado em 20/07/2013

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Primer anarquismo español y cultura
obrera (1868-1910).
El peso de la subordinación a la
defensa de la identidad obrera.
Michel Ralle*

Resumo: As interpretações particulares dos grandes temas libertários por parte


dos antiautoritários espanhóis se apoiaram nas elaborações sociais e discursivas
dos coletivos operários. Iniciativas de organização e modelos de defesa levaram a
verdadeiras construções ideológicas que deram um caráter totalmente operário às
propostas habituais do anarquismo bakuninista. Tanto a exaltação da organização
concebida como fim em si mesmo como a reticência em propor a greve geral
foram duradouras. O objetivo essencial continuou sendo a defesa prioritária da
identidade operária e de suas formas de presença social. Até nos grandes conflitos
dos primeiros anos do século XX são visíveis as tensões entre estas interpretações
e a visão libertária de mudança social, mais ideológica e mais radical.

Palavras chave: anarquismo espanhol, cultura operária, greve geral.

Resumen: Las interpretaciones particulares de los grandes temas libertarios por los
antiautoritarios españoles se apoyaron en las elaboraciones sociales y discursivas
de los colectivos obreros. Iniciativas de organización y modelos de defensa
llevaron a unas verdaderas construcciones ideológicas que dieron una tonalidad
totalmente obrerista a las propuestas habituales del anarquismo bakuninista.
Fueron duraderas tanto la exaltación de la organización concebida como fin en sí
mismo como la reticencia a proponer la huelga general. El objetivo esencial siguió
siendo la defensa prioritaria de la identidad obrera y de sus formas de presencia
social. Hasta en los grandes conflictos de los primeros años del siglo XX son visibles
las tensiones con la visión libertaria, más ideológica y más radical, del cambio social.

Palabras clave: anarquismo español, cultura obrera, huelga general.

Atribuir un papel significativo a la cultura política obrera en la elaboración del


primer anarquismo español es bastante menos frecuente que considerarlo como
una consecuencia de la situación sociopolítica de los sectores populares. Una gran
parte de la historiografía suele explicar la excepcional presencia de la corriente
libertaria durante bastante más que la mitad de un siglo – entre 1870 y el fin, en
1939, de la guerra civil1 – por un contexto histórico en el que se combinarían el

* Professor da Université de Paris IV (Sorbonne).


1 Por supuesto, en las condiciones de la represión franquista, el anarquismo continuó a tener presencia
hasta principios de los años 1950, al menos.

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MICHEL RALLE

retraso del desarrollo industrial y el desfase de las clases populares con respecto a
los intentos de establecer un régimen representativo y una forma estatal similares
a los de los grandes paises de Europa. El cambio económico posterior a la crisis de
la monarquía absoluta de Fernando VII (1814-1833) proporciona un primer nivel de
explicaciones. En España el proceso industrializador fue tardío y su impacto desigual
en las distintas partes del territorio. Los colectivos obreros globalmente afectados
pero empleados a menudo en formas trabajo de tipo semiindustrial o artesanal, se
hubieran reconocido en la defensa de la autonomía individual y colectiva propia
de los proyectos ácratas. Pero sólo con determinantes de orden económico
difícilmente se explicaría que en Cataluña, único conjunto industrializado antes de
los años 1880, se dieran a la vez actitudes reformistas, las de una precoz federación
de los obreros del textil, las llamadas «  Tres Clases de Vapor  », y una influencia
libertaria en sectores significativos del trabajo, entre ellos los oficios. De hecho, las
interpretaciones recurren a menudo a la historia política subrayando en particular
el papel posible del tipo de republicanismo que se formó en España, con un peso
importante de la variante federal, y, a veces, el del antiestatismo de las capas
populares. Ambos serían significativos tanto de las dificultades para construir un
estado de apariencias liberales como de la poca capacidad de integración de los
componentes de orden democrático, los cuales, a pesar del desgaste de la forma
monárquica autoritaria –cae Isabel II con la « revolución » de septiembre de 1868–,
fueron perdiendo, de modo algo paradójico, parte de su poder de convicción en
la opinión popular urbana. Agotados, durante los años 1868-1872, los intentos de
establecer una forma monárquica representativa, una breve república, proclamada
en febrero de 1873, no consiguió evitar, unos meses después, el regreso, por la vía  140
de un pronunciamiento militar, de un tipo de monarquía que, igual que la de Isabel II,
eludía gran parte de los mecanismos de representación que formalmente admitía2.
No es la intención del presente estudio proponer una interpretación de las causas
generales del éxito del anarquismo en España –se aludirá desde luego a algunas–
sino subrayar que la cultura sociopolítica de los colectivos obreros contribuyó
mucho más de lo que se suele atribuirle en la elaboración de las primeras formas
del proyecto anarquista. Al contrario de lo que sostienen muchas evocaciones de
la corriente libertaria durante el « sexenio democrático » (1868-1874)3, no fueron
ni sencillas ni pasajeras.
Igual que en otros paises la primera elaboración anarquista que se conoció
en España fue la bakuninista. Se debió a los tan mencionados primeros contactos,
después de septiembre de 1868, con unos núcleos obreros activos y preocupados
por hacerse socialmente más visibles mientras rompían con los republicanismos4.
Planteando la « emancipación social » a través de un choque revolucionario la
lógica del bakuninismo, tal como se percibía, parecía prolongar los temas del
republicanismo federal entre aquellos obreros que ahora se apartaban de una vía
en la que los cambios sólo afectarían las instituciones políticas. En un contexto
en el que se exaltaba la virtud de la « asociación », una federación española de

2 El marco político definitivo lo fija en la constitución de 1876 el político conservador Antonio Cánovas.
3 La historiografía y la memoria histórica suelen usar la expresión para llamar el periodo comprendido entre
la caida de Isabel II, en septiembre de 1868, y el golpe de estado del general Pavía, en enero de 1874, el cual
señala el inicio del proceso « restaurador ».
4 El trabajo más preciso sobre los contactos con el bakuninista italiano Fanelli en la obra de M. Nettlau
editada por R. Lamberet, La Première Internationale en Espagne (1868-1886), Dordrecht, D. Reidel Publishing
Company, 1969. Importante también el libro pionero de MARTÍ, Cassimir. Orígenes del anarquismo en
España, Barcelona : editorial Teide, 1959. Se citan en el artículo el libro de memorias de LORENZO, Anselmo.
El proletariado militante, reed. por J. Álvarez Junco. Bilbao: ed. ZYX, 1974, y la síntesis de TERMES, J.
Anarquismo y sindicalismo en España. La Primera Internacional (1864-1881). Barcelona: ed. Ariel, 1972.

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PRIMER ANARQUISMO ESPAÑOL Y CULTURA OBRERA (1868-1910)

la Asociación internacional de trabajadores (AIT), la « Primera Internacional »,


vino a añadir a la función de defensa económica de las secciones que la formaron la
posibilidad de difundir la temática de la « revolución social ». Constituida en el « primer
congreso obrero », en la Barcelona de junio 1870, la « federación regional española »
(FRE) de la AIT hizo mucho mayor y definitiva la distancia entre los colectivos obreros
militantes y los objetivos políticos de las distintas variantes republicanas5.

La Federación española de la Primera internacional :


una recepción matizada del bakuninismo
Es lógica la insistencia de muchos estudios en la importancia de la temática
ideológica de la corriente republicana para explicar la recepción del bakuninismo en
España. Su variante federal había heredado parte del antiestatismo de Proudhon
–Pi y Margall, el dirigente más conocido, había sido su principal traductor6. Pero la
debilidad sociopolíotica de los republicanos dejaba insatisfechos a los colectivos
obreros que también esperaban efectos sociales de un cambio político7. Su dificultad
para dibujar unos perspectivas sociales en un momento de mayor actividad obrera
contribuyó a su desapego y a la receptividad de unos cuantos, más radicales, al
tema de la revolución social. En lo que esa vino a significar parecen haber sido
fundamentales las formas de la inserción social de la sensibilidad libertaria. En
la perspectiva bakuninista los medios obreros podían constituir una base social
 141 decisiva en su objetivo de separación con lo político. Era lógico además que los
primeros núcleos anarquizantes percibieran el interés de los modelos de presencia
propios de las prácticas de defensa de los colectivos asalariados –se habían
venido elaborando desde una década. Son muy perceptibles en las propuestas de
organización y de acción de la FRE. Éstas, además de favorecer la separación radical
con lo « político », orientaron el proyecto bakuninista en un sentido obrerista que
tendió a modificarlo. Integradas por la federación, la cual se inscribía, al menos de
manera implícita, en la perspectiva global de una revolución social, le dieron una
visibilidad sociopolítica particular.
Es notable que el congreso, además de rechazar la « participación política »,
también aprobara, después de un largo debate, unas modalidades precisas de
« defensa económica »8. No fueron sólo un intento, frustrado como lo veremos,
de aproximar la actividad de tipo sindical de la FRE a lo que creía ser el proyecto
bakuninista. En la combinación entre defensa social y objetivos políticos
revolucionarios, el elemento central del modelo de organización de la FRE fue
una huelga basada en la constitución de « cajas de resistencia », las cuales habían
de depender de una caja central cuyo papel consistiría en favorecer o en templar
las huelgas para poder dirigirlas en un momento oportuno, aunque lejano, hacia
el enfrentamiento decisivo capaz de provocar la frecuentemente invocada
« liquidación social ». Aunque el bakuninismo no parecía haber sido dejado de
lado, las iniciativas de huelgas de las seccionnes se encontraron subordinadas
a la cuestión de las reservas financieras de la federación la cual construyó un

5 Regional » para « española » o « nacional » remite a la presencia de la temática bakuninista


6 Lista de las traducciones de Pi y Margall entre 1869 y 1972 en JUNCO, José Álvarez., La ideología política del
anarquismo español (1868-1910). Madrid: ed. Siglo XXI, 1976, p. 363.
7 El pasaje del federalismo al bakuninismo en ARRANZ, Luiz; ELORZA, Antonio. trabajadores: la definición
bakuninista de la clase obrera madrileña ». En: Revista de Trabajo. Madrid, n 52, p 353-452.
8 Los debates en la edición de las actas del congreso de ABERLOA, V. M. I congreso obrero español, Madrid:
ed. ZYX, 1972, p. 134-198.

Revista Mundos do Trabalho | vol. 5 | n. 9 | janeiro-junho de 2013| p. 139-170


MICHEL RALLE

discurso justificativo para no declarar reglamentarios la mayoría de los intentos


de las secciones de llevar conflictos de trabajo. Insistía en la prioridad de proteger
la organización del riesgo de desaparecer por falta de fondos –la capacidad de
acumularlos constituía una de las señales de su legitimidad. En la medida en que
las instancias dirigentes aplicaron de modo cada vez más nítido el modelo hasta el
punto de ver con la mayor desconfianza el aumento de las movilizaciones sociales,
la línea de la FRE tendió a ser antagónica con los llamamientos bakuninistas a que
los conflictos puntuales se transformaran en decisivos.
Muchos trabajos consideran que el modelo de huelga de la FRE sólo fue
ocasional y pasajero. Mencionan poco la continuidad de los esfuerzos de la
federación para disuadir a la gran mayoría de los huelguistas concretos que le
pidieron ayuda en 1872 y 1873, años de claro auge de los conflictos9. Pero el modelo
de acción con caja de resistencia no fue efímero. Entre los sectores obreros que
se reconocían en la sensibilidad libertaria, volvió a asomar en 1881 bajo la forma de
una nueva federación, la de « trabajadores de la región española » (FTRE), la cual,
constituida en el contexto de la primera apertura de la monarquía instalada en
1875, intentó reproducír los modelos de organización y de acción de la FRE a pesar
de su incapacidad anterior para regular las huelgas de las secciones afiliadas10.
La trayectoria de la FRE no tiene, por consiguiente, la linearidad que
muchos le suelen atribuir. Incluso si las apariencias no muestran tensiones
internas. No aparecen como tales en los periódicos identificados a la federación
y que la acompañan en las más importantes ciudades del país, manifestación sin
precedente de una expresión propia de los sectores obreros. Los redactan en parte
los militantes interesados por los aspectos globales de la « revolución social ».  142
Ellos son, en general, los que han tenido una relación directa con la perspectiva de
ruptura bakuninista –es un núcleo activo pero muy numerosos. También escriben
obreros vinculados con las actividades de defensa concreta del trabajo sobre
las que informan subrayando la actividad de organización –a pesar de menos
estudiado este otro gran tema de la prensa « internacionalista » cubre más espacio.
Tampoco los documentos internos de la FRE señalan conflictos abiertos entre dos
orientaciones durante sus casi cuatro años de vida pública. El que el modelo de
huelga elaborado subordinara la acción a los supuestos intereses de la federación,
con un claro desfase con respecto al recurso a la capacidad de indignación,
exaltado por el discurso bakuninista11, muestra que se ha ido constituyendo una
dinámica dominantemente obrera. La señala el empleo, más que de otras, de la
palabra « antiautoritario » cuando los miembros y las instancias de la FRE quieren
autodefinirse12. En una federación de defensa las alusiones a la identidad anarquista
tenían que ser algo implícitas. El que el uso durara muestra que la palabra remite a
una percepción particular y propia de la vida de la FRE. Se empleará en este texto
para tomar en cuenta el papel de ese segundo componente, menos señalado por
los estudios aunque más numeroso dentro de la federación.
En todo caso, puede hasta sorprender la prudencia de aquellos militantes
que parecen más cercanos a los esquemas bakuninistas. Bastante presentes en

9 Un testimonio nítido en la abundante correspondencia conservada en la biblioteca Arús de Barcelona, de


hecho las copias de las cartas mandadas a las secciones. Edición por SERRANO, Carlos Seco; .SAS, Maria
Tereza Mártinez de. Cartas, comunicaciones y circulares del Consejo Federal y de la Comisión Federal de la
Región Española. Barcelona: ed. Universidad de Barcelona, 7 v., 1972-1987.
10 Lo demuestran las cartas a las secciones que pedían ayudas para sostener huelgas (Idem, sobre todo v. IV a VII)).
11 Cf. : JUNCO, José Álvarez. Op. cit., p. 381-388.
12 Ya se emplea la palabra en 1870 (BATTANER, M. Paz. Vocabulario político social en España. Anejos del
boletín de la Real Academia española, Anejo n. XXXVII, Madrid, 1877, p. 285)

Revista Mundos do Trabalho | vol. 5 | n. 9 | janeiro-junho de 2013| p. 139-170


PRIMER ANARQUISMO ESPAÑOL Y CULTURA OBRERA (1868-1910)

la realización de los periódicos13, y con unos escritos de tonalidad radical cuando


se trata de denunciar la injusticia social o de insistir en el necesario cambio de
sociedad, sólo en algunas ocasiones señalan que el modelo de huelgas de la FRE la
está llevando a desprenderse de la capacidad de la cólera trabajadora tan necesaria
para la revolución social14. Para que esta modalidad aparezca como componente
de la acción habrá que esperar al menos hasta le segunda mitad de los años 1880
–entonces ya no existía prácticamente presencia organizada bajo las siglas FTRE.
Sólo más tarde, todavía, aparecieron críticas más directas a la orientación de la
FRE. Anselmo Lorenzo, una de las más conocidas personalidades del anarquismo
español, las expuso en 1901 en el libro de « memorias » ya mencionado15. Se publicó
en un momento en el que la combatividad obrera alcanzaba un nivel inédito y
algunos sectores libertarios llamaban a realizar huelgas generales –ya se habían
convertido en tema central de los debates del sindicalismo revolucionario francés16.
Si A. Lorenzo señala que la distancia entre el modelo y la acción redujo la FRE a la
impotencia en materia de acción, lo ve como algo pasajero y casi olvidado –fue
recibido por la historiografía como una incitación a no conceder gran importancia
a las modalidades de defensa de la FRE y a su constancia17. No fueron, sin embargo,
unas iniciativas pragmáticas pronto borradas por las temáticas más claramente
anarquistas –de hecho cuando se debilitaron no las sustituyeron un modelo claro
de movilización. De hecho, el meyor interés de la corriente libertaria española
por la huelga general a partir de 1890 se debió a un estímulo externo : permitía
distinguirse de la forma de Primero de mayo introducida por los partidos obreros
de la corriente marxista. Además tardaría todavía algunos años en cuajar. Incluso
 143 cuando, a principios del nuevo siglo, pareció imponerse con la multiplicación de los
llamamientos a generalizar las huelgas, éstos no contradecían siempre una visión
más sindical de la acción – se evocará esa fase en la última parte de este estudio.
No parece posible aislar el modelo de huelga establecido, ya desde 1870,
por la FRE de lo que suponían las prácticas de la organización y los discursos que
las justificaban. Los textos la exaltan como medio de garantizar la construcción
de un espacio puramente obrero, alternativa total a lo político –y a lo que esto
lleva consigo (desde la imagen del poder hasta las modelos culturales). El modelo
organizativo no desempeñó, por consiguiente, un papel sólo funcional. Desde
el principio la forma con la que se le entendía constituyó una alternativa a las
propuestas republicanas que se habían difundido en los ámbitos urbanos. Lo fue
también después frente a aquella orientación, la marxista, que proponía que la
clase constituyera un partido político propio. En los años 1870-1880 no constituía
un rival peligroso, –el núcleo del futuro partido socialista se había formado desde
la estancia en España, en 1871-1872, de Paul Lafargue, cuando, aprovechándose del
pasaporte español que le daba su origen cubano, estaba huyendo de la represión
desencadenada después de la Commune de París. Aunque no se va a evocar aquí, el
itinerario, también particular, del socialismo español tampoco se libró de la cultura
política obrera que se quiere evocar aquí.
La defensa aferrada de un tipo de huelga llevada a partir de cajas de resistencia
de las que se esperaba que un día se convertirían en medios potentes capaces

13 La Emancipación, de Madrid, es el único que se convierte durante sus últimos meses, entre mediados de
1872 y abril de 1873, en órgano del grupo que defiende al Consejo General después de la participación de
algunos militantes en un grupo dirigido por un yerno de Marx, P. Lafargue y venido a España para huir de
la represión de la Commune.
14 “Cartas a los trabajadores del Alto y Bajo Ampurdán”. La Federación, Barcelona, verano de 1872.
15 Memorias de un internacional es el subtítulo de El proletariado militante.
16 P. Gabriel coincide en que el proceso es más interno que imitativo (Cf.: « Sindicalismo y huelga. Sindicalismo
revolucionario francés e italiano. Su introducción en España ». Ayer, n. 4, 1991, p, 34-41 y 44-45.
17 LORENZO, A., Op. cit., p. 286-303.

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de poner en dificultad, con algo de táctica, las reservas del capital, no respondía
por consiguiente a una preocupación de orden sólo funcional –en el caso que lo
« sindical » pueda limitarse a eso, para emplear una palabra que no usaba todavía
el movimiento obrero en España18. Desempeñaba un papel sociopolítico en la
perspectiva de rechazo de la participación política propia de la FRE, el cual, como se
dijo, ya estaba presente, en parte, en textos del republicanismo federal y, también,
en bastantes reacciones populares frente a las « autoridades –los « motines », por
ejemplo. La permanencia de la « organización », señal de su futuro y necesario
crecimiento, fue, para la FRE, la vía para ampliar esa perspectiva propia. Ha llamado
la atención la frecuencia del tema de la exaltación de la organización pero se ha
interpretado sobre todo como indicio de radicalización venido con la identificación
con la voluntad de revolución inmediata del bakuninismo, con sus evocaciones
de una sociedad emancipada de todo tipo de « autoridad », y no como forma de
materializar en términos sociales más que ideológicos y políticos la perspectiva de
ruptura de aquellos grupos obreros que se pueden calificar de « antitautoritarios »
y que se sintieron concernidos por los temas generales del anarquismo. El presente
trabajo quiere mostrar que la defensa prioritaria del instrumento organizativo lo
fue de una identidad que se afirma en primer lugar como social y que genera una
construcción ideológica duradera. Entrar en la llamada « política propia »19 suponía
una constante preocupación por afirmar lo obrero construyéndole un espacio a la
vez social y discursivo.
La necesidad, tantas veces repetida, de defender las organizaciones puede
considerarse, en efecto, como la prolongación de aquella cultura política obrera
que había empezado a elaborarse en los años 1860 y que cobró fuerza cuando el  144
republicanismo no consiguió convencer de su compromiso con una sociedad libre
y justa a unos colectivos obreros que dudaban de él y que pronto iban a tener a
mano los esquemas bakuninistas, tanto más convincentes cuanto que parecían
haber llevado a la constitución de un organismo nacional que se presentaba como
exclusivamente obrero. Pero la inflexión, ya señalada, del proyecto bakuninista
que los militantes libertarios más cercano a él no consiguieron imponer en su
globalidad, suponía, según el discurso de la FRE, que todo había que tener lugar
dentro del espacio obrero mientras que la lógica del primero lo llevaba a pensar
también en el conjunto de la sociedad. El proceso de conversión de la defensa
obrera en perspectiva política por la idealización que de ella se hace, tal vez pueda
interesar una revista cuyo objeto son «  os mundos do trabalho  ». Confirmaría
que éstos no fueron sólo un contexto en una fase en la que el tema de la ruptura
política estaba en la orden del día. Al fin y al cabo, la transformación, aunque
relativa en el caso español, de la situación de los asalariados y de su cultura del
trabajo tiene consecuencias de orden político. Es tanto menos secundario que por
toda la trayectoria del anarquismo español se siguió planteando la cuestión de las
relaciones entre los componentes « sindicales » y los componentes « ideológicos ».
Dar cuenta del peso que llegaron a alcanzar las elaboraciones consideradas propias
de los obreros puede sugerir preguntas para otros episodios de su historia.
Evocar la cultura política del anarquismo español supone por consiguiente
tomar en cuenta una doble presencia, ideológica y de defensa obrera. No sólo
porque a veces genera tensiones internas sino porque la inserción en la segunda
es la que dibuja durante varias décadas no sólo modelos de acción sino un discurso

18 Tal vez porque, como veremos, la función no se distingue del proyecto político hasta que la prensa de
información recorra al término usado en otras partes, en Francia en particular.
19 Cf. : La Emancipación del 10-VIII-1872. « Creemos que la Internacional tiene una política propia distinta de
todas las de los partidos ».

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ideológico apoyado en las elaboraciones que acompañaron las prácticas obrera.


Constituye una fuente imprescindible para entender la trayectoria de las iniciativas
más visibles de lo que vino a ser la corriente libertaria en España. Su lógica
configura las otras referencias y lo consigue en la medida en que las organizaciones
obreras quieren ser el lugar exclusivo de acogida de la perspectiva de cambio de la
sociedad. Para dar cuenta de su impacto parece lógico que en un primer momento
se intente mostrar la continuidad en las actitudes y en los textos tanto del papel
otorgado a la organización como del intento de imponer una forma de huelga – de
hecho no se pueden separar. Proporciona muchos de los motivos que han podido
contribuir, incluso cuando se debilitó el modelo, a que siguiera actuando entre
los colectivos obreros una defensa prioritaria de la identidad social, fundamental
en la cultura sociopolítica « antiautoritaria », la palabra más empleada, como se
dijo, para significar una proximidad con los proyectos libertarios pero también con
su inserción en términos propiamente obreros. Había identificación y diferencia
al mismo tiempo ya que para unos y para otros las posibles confusiones no
debían forzosamente ser aclaradas. El proceso de dicha idealización de la labor
de organización puede tanto menos dejarse de lado cuanto que también está
presente, al menos de forma indirecta, en los contenidos transmitidos por las
formas menores, es decir no sindicales, de solidaridad, en particular el socorro
mutuo. La presencia difusa de las huellas ideológicas de estas prácticas sociales
confirmarían el sentido de la cultura política obrera a la que el presente estudio
intenta hacer caso. Las reacciones internas y los discursos que suscitaron, tanto

 145 con los conflictos concretos como con las iniciativas de acción, han de examinarse,
aunque de modo rápido, por un periodo más largo (1890-1902). Las divergencias
suscitadas por la emergencia de « huelgas generales » a partir del cambio de siglo
pueden ser consideradas, por ejemplo, como un indicio fuerte del impacto en la
corriente libertaria, entendida en sentido amplio, de los modelos obreros que el
estudio intenta analizar.

Exaltación de la organización y resistencia


centralizada
La constitución de la FRE en el congreso fundador de Barcelona (18-26 de
junio de 1870) confirmó con términos muy severos la importancia de la necesaria
autonomía de la « clase trabajadora » con respecto al proyecto republicano y a
las formaciones política que lo constituían. Desde unos meses existía una prensa
propia que se presentaba como únicamente obrera y que precisamente dedicaba
mucho espacio a justificar la forma de la organización que reuniría las asociaciones,
al fin y al cabo de defensa «  económica  », que la formarían20. Correspondía a la
nueva federación fortalecerla a través de los medios de defensa de los colectivos
obreros, en particular los que le permitirían ganar huelgas. La organización se
constituía, desde entonces como un fin en sí mismo –« el objeto de la organización
es la organización misma »– y en primer lugar porque era un espacio alternativo a
la sociedad explotada por el capital21. La situación del asociado también afirmaba
este objeto. Entraba menos en la FRE para participar en la consecución de un

20 La Solidaridad de Madrid sale el 15-I-1870. La Federación de Barcelona empieza el 1-VIII-1869 como « organo
del Centro Federal de las Sociedades Obreras » para transformarse en órgano antiautoritario.
21 La Solidaridad, 17-IX-1870.

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objetivo que para « prácticar la solidaridad »22. La cita es de principios de 1870. La


« organización », es decir el proceso de asociación obrera, aparecía ya como un
espacio con la vocación de totalidad del proyecto libertario, pero en una lógica
predominantemente social.
El funcionamiento de una federación de secciones de defensa, de oficios en
la gran mayoría de los casos, constituía por consiguiente una entrada en aquella
sociedad nueva basada en la solidaridad, opuesta al egoismo de los capitalistas y
de los burgueses. Funcionaría de manera « perfecta 23» ya que

[…] una idea emitida por un individuo, en cualquier época o localidad,


y que sea superior en verdad y justicia a lo que se practique, obtenga la
sanción inmediata por parte de la sociedad [la organización] hasta que
otra idea superior venga a reemplazarla, siguiendo los mismos trámites
que la anterior24.

A la par que la organización se completaba entraba en una democracia


aparentemente total, espacio verdaderamente alternativo al de la sociedad
dominada y explotada por la burguesía: « La Internacional ofrece bien exactamente
el tipo de la sociedad del porvenir y […] sus diversas instituciones, mediante
las modificaciones que convengan formarán el orden social futuro  »25. En otras
palabras, todavía más precisas : « La sociedad futura no debe ser otra cosa que la
universalización de la organización que la Internacional se haya dado. Así, pués,
debemos tener cuidado de acercar todo lo posible esta organización a nuestro
ideal »26. Era la única vía para que no tardara en llegar aquella transformación radical
de fuerte contenido moral : « Que en cada pueblo se establezca rápidamente una  146
sección de la Internacional (sic) y la nueva sociedad aparecerá como por encanto
para hacer desaparecer la vieja y sus vicios, o sean privilegios, un soplo »27.
Son infinitas las variaciones sobre el tema de la organización que, abarcando
ya parte del futuro al aislarse de aquella sociedad que se rechaza, lleva a una
revolución social sin lagunas:

El proletariado moderno […] ha escogido un terreno de acción propio,


independiente de todos los partidos actuales y cerrado por su natura-
leza a las invasiones de la clase enemiga. Así como en la Edad Media,
el burgués se encerraba en la municipalidad y en el parlamento don-
de hallaba protección y garantías, el proletariado de estos tiempos se
atrinchera en la Asociación obrera Internacional: organización de los
trabajadores hoy, organización del trabajo mañana.28

Esta comparación la publica La Emancipación en mayo de 1872, es decir


cuando el periódico está a punto de convertirse en el órgano del grupo marxista
y de entrar en una polémica abierta con el antiautoritarismo. El grupo constituido
alrededor de Lafargue justificaba su ofensiva porque había que combatir los
intentos del bakuninismo de maniobrar a través de la sociedad secreta, « La
Alianza », que reunía a los militantes más directamente vinculados con la dirección
de la corriente. En cambio, prácticamente no criticaba las posturas de defensa y

22 Idem, 5-III-1870
23 Idem, 12-III-1870.
24 Ibidem.
25 Idem., 5-III-1870
26 La Emancipación, 24-12-1871.
27 Ibidem.
28 La Emancipación, 16-V-1872

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de organización desarrolladas en los órganos de la FRE. El riesgo más subrayado


era que la Alianza intentara alejar a la federación de sus principios fundadores o de
sus reglamentos aprobados desde el Congreso de Barcelona. Al dejarse manipular
por los partidarios de Bakunín los demás miembro exponían la federación al riesgo
de su destrucción29. No fue solamente una postura táctica ya que el grupo de los
futuros socialistas del partido obrero siguió identificándose con la exaltación de la
organización. Incluso la UGT se construyó, en 1888, según el modelo de las cajas de
resistencia de la FRE, prueba de que su modelo seguía teniendo un impacto en las
modalidades de defensa –se ha subrayado a menudo que el fundador del PSOE y
de su sindicato, Pablo Iglesias, exaltó sin descanso la necesidad de la organización.
Es legítimo interpretarlo como una señal suplementaria de la presencia amplia de
la efectividad de una cultura política, compartida más allá de la corriente libertaria
y cuyos temas bien no se discutían o bien, en el caso de los bakuninistas, se
comentaban con prudencia. Forma uno de los aspectos aparentemente paradójicos
de la recepción del bakuninismo.
Justificar la separación de la política suponía que las modalidades de defensa
sólo pudiesen ser interpretadas como totalmente obreras, pero para llegar a ello
era preciso, al fin y al cabo, intentar transformar las huelgas reales. En primer
lugar tenían que apartase de las intervenciones de orden político a las que a veces
daban lugar los conflictos. Era inconcebible que los huelguistas siguieran usando
alguna presión de ese orden ya que con ella políticos y notables penetraban en el
enfrentamiento dando otra apariencia, engañosa, al conflicto, el cual sólo podía

 147 oponer a las dos clases que en realidad existían. El rasgo, al menos como tema,
va a sobrevivir largo tiempo en los discursos anarquizantes. Para el periodo aquí
tratado, conservaba su intensidad veinte años después de la fundación de la
FRE30. Pero no siempre impedía que, incluso en las proximidades de la corriente
libertaria apareciesen tentaciones para aprovecharse de alguna disponibilidad de
las instancias locales o provinciales para obtener concesiones patronales. En las
conductas posteriores de los componentes sindicales de la corriente libertaria
pudo haber distancia con respecto al modelo y alguna vez alguna moderación
discursiva. En cambio, en la vida pública de la FRE, la exigencia se expresó de modo
drástico. Se trataba de dejar claro que las instituciones y las instancias políticas
no tenían otra razón de ser que la de defender los intereses burgueses, lo cual
sólo podía alcanzarse situándose en un campo exclusivamente social en el que
se enfrentarían sólo obreros y patronos. El modelo de huelga quería demostrar
precisamente que sólo existían dos espacios, el de los explotadores y el de los
explotados, el del trabajo frente al del capital.
Identificar la defensa económica y social concreta con la perspectiva de
una acción emancipadora, suponía una necesidad de resultados para la primera.
Resultó imposible, sin embargo, que, a no ser en unas ocasiones excepcionales,
la federación consiguiese ayudara los huelguistas que lo necesitasen. Para
constatarlo no fue necesario esperar el crecimiento de la conflictividad en los
años 1872-1873. La vía elegida sólo podía funcionar modificando casi totalmente
las prácticas. Antes de que la federación hubiese acumulado unas reservas
importantes no podía intervenir prácticamente en ningún conflicto –algo bastante
lejos, por consiguiente, de un objetivo visible. Durante un breve espacio de tiempo
(1870-1871) la imposibilidad de ayudar a los huelguistas pudo ser atenuada por
el gran cambio que anunciaba la existencia de la federación pero no cuando las

29 Es el tema de la polémica con La Federación en el verano 1872.


30 Se desarrolla en el apartado “El antiestatismo como sustituto del enfrentamiento decisivo. Mantener la ruptura”.

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secciones se encontraron frente a la obligación de tener una caja de resistencia


y de pedir cuotas para entregar una parte de ellas a la central de la federación.
Ya que la gestión de la defensa social concernía al corazón mismo de la identidad
obrera, la huelga, el poder de convicción de la FRE dependía en gran parte de la
posibilidad de ayudar a enfrentar los conflictos de trabajo que surgiesen para que,
por una parte, mostrasen una defensa sin concesiones de su dignidad y, por otra
parte, venciesen. De hecho, lo que el análisis ha solido considerar desde fuera
como de orden sindical, entendido como el espacio de cierto pragmatismo, dió
lugar a unas reglas invariables y abstractas. La necesidad de consolidar las cajas
de resistencia propias y obligatorias de las secciones de base o de las uniones, el
nivel intermedio, impedía que una sección entrara en una huelga sin tener medios
numerarios suficientes para sostenerla y ello no existía. El éxito de una iniciativa
particular sólo podía alcanzarse si las entidades patronales tenían una necesidad
absoluto que el trabajo continuara en sus establecimientos o si se encontraban en la
imposibilidad de conseguir sustitutos a los huelguisas, casos muy poco frecuentes.
La decisión de una organización local estaba, por consiguiente, subordinada a la
de la instancia superior. Una de las justificaciones de los derechos de la federación
de aprobar o no las huelgas era que ella iría adquiriendo el conocimiento, que
las secciones no estaban en condiciones de alcanzar, del estado preciso de las
variables que podían llevar a los patronos a ceder, como la demanda de trabajo en
un oficio o en un ramo, la dimensión de las ganancias patronales en un momento
dado, las posibilidades de contratar en otros lugares mano de obra especializada,
etc.. Formaba parte de una llamada « preparación científica de las huelgas »31. La
idealización del arma obrera por excelencia, la que permite precisamente hacer  148
visible la barrera que separa de modo drástico la « clase trabajadora » de las
demás, desembocaba por consiguiente en una desconfianza con respecto a las
convicciónes que podían formarse en un momento dado los colectivos obreros.
Venía a ser algo contradictorio con la atención que les otorgaba la prensa obrera y
también con la idea de la capacidad de la clase para rechazar su integración. Puesto
que los éxitos de las huelgas eran necesarios para savalguardar la existencia de
la federación obrera pero que, por otra parte, la capacidad de conseguir algunos
dependía de una potente organización, el camino no tenía muchas salidas.
Es de notar que las modalidades de la organización y de la caja central de
resistencia se fueron haciendo más precisas a medida que tuvieron lugar los
congresos o conferencias que siguieron al inaugural de Barcelona. Durante cierto
tiempo creció la convicción a su respecto. Era probablemente grande la de Anselmo
Lorenzo cuando, elegido representante de la FRE para la conferencia de Londres
de la AIT, en el verano de 1871, presentó a los demás delegados la propuesta de una
caja de resistencia universal, la cual correspondía a la última versión de los estatutos
de la FRE32. No correspondía por supuesto a la orientación de los partidarios de
Marx ni a la de otros militantes obreros. Tampoco parece haber despertado interés
entre aquellos que apoyaban el rechazo bakuninista de la participación política
sustituyéndola por la capacidad de rebeldía de los oprimidos33. La preocupación

31 La Emancipación, 11-V-1872 « […] se conseguirá preparar las huelgas científicamente y preparar su triunfo
antes de llevarlas a cabo, haciendo de este modo morder el polvo a la burguesía capitalista ». Es corriente
la convicción que la estadística puede ser un arma decisiva (Cf.: MYSERWICZ, L. « Karl Marx, la Première
Internationale et la statistique, ». Le Mouvement Social. n 69, octobre décembre déc. 1969, p.51-84).
32 Era la aprobada en la Conferencia de Valencia de 1871. Editada bajo el título Organización social de las
secciones obreras de la FRE, Valencia, 1871.
33 La única contestación bastante larga fue la de un delegado inglés en la conferencia, Motterhead. Además
de subrayar que en una caja de resistencia universal las decisiones escaparían a los afiliados añadió : « […]
tienen los obreros un derecho no enajenable, el de rebelarse y perciben y juzgan mejor que el Consejo

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de la conferencia era muy distinta : se había convocado porque en la cuestión


de la participación en la política se enfrentaban marxistas y bakuninistas. No es
imposible que A. Lorenzo percibiera la propuesta de una federación de resistencia
universal como una manera de dar una salida a la oposición entre « políticos » y
« antipolíticos » poniendo a todos los sectores obreros dentro de un espacio propio
y socialmente homógeneo. Al menos con un carácter exclusivamente obrero y un
número razonable de asociados una organización aparentemente compartida
por las dos orientaciones podría borrar bastantes desacuerdos. Correspondía al
proyecto sobre el que se había construido la FRE.
La federación española no se planteó por consiguiente la pregunta de su
distancia con la temática ideológica bakuninista. La mayoría de los militantes no lo
consideraron contradictorio con lo que creían saber de las perspectivas propiamente
libertarias tales como las reconocían implícitamente. Las críticas, veladas o abiertas,
que se hicieron a veces al modelo de huelga de la federación se dirigieron contra su
demasiada rigidez sin traducirse en alguna inflexión a pesar de que las dificultades
acarreadas por la intensificación del movimiento de huelgas en 1872-1873 suscitaron
más comentarios al respecto. Algunas de las personalidades de convicciones
bakuninistas empezaron entonces a criticar de manera directa las modalidades de
solidaridad. Fue el caso del autor de una serie publicada en el periódico antiautoritario
de Barcelona, el mas leido de la fase de la FRE, La Federación :

Siendo lo esencial [...] la organización, la quieren tan perfecta hasta en

 149
sus detalles, que más bien responden a las necesidades del porvenir que
a las del presente; más bien una organización positiva que negativa; una
compañía que recauda y distribuye, que da cuentas y pasa balances, que
suprime o añade artículos del reglamento; que un grupo revolucionario
que se agita en virtud de un nuevo principio34.

Pero durante sus dos últimos años, las direcciones de la federación, a pesar
de tener que confesar cada vez más su impotencia frente a las peticiones de ayuda
de muchos colectivos que habían entrado en conflictos, siguieron insistiendo en la
necesidad de dar prioridad a la defensa de la federación contra lo que interpretaban
como una ligereza de los colectivos que decidían ponerse en huelga35. La culpa
no se echaba al sistema de ayudas condicionales sino a la incomprensión de
unos obreros que sólo esperaban que la federación cumpliera con la solidaridad
anunciada. No estaban a la altura del gran compromiso de la FRE :

Es muy sensible que sólo con el aliciente de la huelga entren los obreros a
formar parte de Nuestra Asociación (sic) eminentemente revolucionaria,
cuyo fin es mucho más grande y no adopta ésta sino como remedio para
mejorar por lo pronto la miserable situación de sus afiliados. La práctica
nos ha mostrado que todos aquellos que son internacionales por la huel-
ga y que no ven otra cosa, dejan de serlo cuando pierden una36.

Estas líneas son características de las contestaciones de la Comisión federal


de la FRE a las secciones que pedían ayuda insistiendo en la urgencia de recibir algo.
Las escribe en una carta a la « Unión de noografos » (papeleros) Severino Albarracín,

Federal la necesidad de hacer una huelga ; el consejo sería impotente para impedírselo además de no
estar dispuesto a entrar en una lucha con los patronos para conservar su haber » (FREYMOND, J. (dir.). La
Première Internationale. Recueil de documents. Genève: Librairie Droz, 1962, tomo 2, pp. 178-179).
34 “Cartas a los trabajadores del Alto y Bajo Ampurdán”. La Federación. Carta IV (Barcelona, 14/09/1872).
35 SERRANO; SAS. Op. cit., v. V a VII.
36 Contestación del 26-V-1873. En: SERRANO; SAS. Op. cit, tomo IV, p. 287.

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uno de los responsables más habituales de la « comisión federal » cuando ésta


reside en la región de Valencia. Según M. Nettlau, el historiador anarquista que
desde más cerca miró, en los años 1920-1930, la vida de la corriente, S. Albarracín
compartía la « inclinación organizadora catalana » lo que lo distinguía en cierta
medida de los militantes más explícitamente bakuninistas37. Aunque no formó
parte de los primeros miembros españoles de la « Alianza » sus palabras oponen sin
embargo convicción revolucionaria y acción obrera. Lo más significativo no es que
existiera una divergencia sino que los dirigentes de la FRE continuaran asumiendo
el modelo de organización cuya importancia quiere subrayar el presente artículo,
al mismo tiempo que sus dirigentes siguieran admitiendo, al menos formalmente,
los grandes rasgos del bakuninismo. Se trataba de asumir la lógica de separación,
de naturaleza social, sobre la que, empezando por una organización, se quería
construir el espacio obrero emancipado y emancipador.

Aplazamiento del conflicto decisivo


No sorprende que con tal visión de la acción desapareciera de los objetivos
el conflicto decisivo, aquel que los esquemas bakuninistas imaginaban repentino
y con capacidad para conseguir el cambio de la sociedad. De hecho, los
antiautoritarios, pero también parte de los que se sentían más ideológicamente
anarquistas, estaban dejando de lado, y para bastante tiempo, un tema tan central
y emblemático de la ruptura social como la huelga general, ya esbozada en los
debates de la Primera Internacional fuera de España38. Había llegado de manera
algo velada a España un poco antes de que el Congreso de Barcelona discutiera
 150
de los medios de acción. El siguiente extracto de una de las intervenciones de
Anselmo Lorenzo en dicha reunión muestra que, a no ser el sintagma todavía poco
sistematizado, estaba la modalidad :

[...] nosotros, trabajadores, por medio de una resistencia universalmen-


te organizada, destruiremos por completo los inmensos medios de los
que disponen nuestros enemigos, obligándoles a abandonar sus injus-
tificables privilegios, por que ellos son impotentes para resolver nada
ante una abstención general de los trabajadores39.

Es significativo que la huelga que se evoca aquí, y a pesar de sus consecuencias


globales, oponga sólo a los dos únicos interlocutores fundamentales según la visión
ya señalada del conflicto decisivo. Lo es también que suponga la construcción de
una organización considerable. Sólo alguna vez se la relaciona más directamente
con la « Revolución Social » :

La huelga general es indudablemente el acto más grave, más importan-


te y más trascendental que la clase obrera viene a realizar en el trans-
curso de la humanidad ; es el objeto de nuestros trabajos, de nuestros
desvelos ; es el término de la odiosa explotación que por espacio de
tantos y tantos siglos, viene pesando sobre la que se considera la última
capa social ; es el fin de la miseria y la ignorancia ; es el juicio inexorable
que el obrero de la presente sociedad ; es el despertar de la humanidad
a la aureola de la nueva vida, un nuevo orden de cosas ; es transportarse

37 NETTLAU, M. La Première Internationale en Espagne (1868-1888). Colocar o restante da referrência, p. 124.


38 Por otra parte, la cuestión de la huelga universal entra en los debates de la Primera Internacional en el
congreso de Ginebra (septiembre de 1866) (Cf.: FREYMOND, J. Op. cit., tomo 1, p. 44).
39 ABERLOA, V.M. (ed.). I Congreso obrero español. Madrid: ZYX, 1972, p. 179.

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desde el mundo de la mentira, la explotación y el crimen al mundo de la


verdad, de la justicia y de la fraternidad humana ; es, en fin, le Revoluci-
ón Social »40.

Se publica este texto cuando está cerca de acabarse la vida publica de la FRE
y con pocas perspectivas frente a la inflexión autoritaria de la República, la cual
anuncia su fin. A partir de entonces la huelga general casi no se va a mencionar
como tal durante casi veinte años. Serán necesarios casi diez más para que sea
asumida concretamente, y con las palabras habituales, como modalidad de acción
mientras existía, al menos a nivel de discurso, en otros espacios nacionales.
Un estímulo venido de fuera del antiautoritarismo la hizo aparecer de nuevo.
Fue la « fiesta del trabajo », primera gran iniciativa de la nueva Internacional (la
« Segunda ») en su congreso fundador de París en 1889. La modalidad propuesta
era la manifestación de masas que las organizaciones obreras habían de llevar
cada primer día de mayo. Con ella se ejercerían fuertes presiones a nivel social y
político para conseguir medidas legales de protección social y, sobre todo, una
disminución de la jornada de trabajo con las « ocho horas ». Para la sensibilidad
anarquista era necesario mostrar su diferencia tanto a nivel de la perspectiva de la
acción –para la nueva Internacional el estado era un interlocutor que debía tomar
medidas legislativas– como de su forma –los socialistas proponían un movimiento
más visible por su intensidad que por su duración, excluyendo las situaciones de
todo o nada en las que la corriente libertaria veía la posibilidad de entrar en el

 151
enfrentamiento definitivo.
Si sólo entonces se llegó a incluirla en las perspectivas fue porque las reglas
de la FRE en materia de organización y de acción habían significado bastante
más que una función práctica sin muchas consecuencias ideológicas. El que la
línea inicial haya tenido grandes dificultades, manifiestas en la impotencia para
dar credibilidad al espacio obrero que habían de constituir las organizaciones no
puede hacer olvidar que el intento existió y duró más allá de la vida pública de
la FRE. Es decisivo al repecto el testimonio de la correspondencia dirigida a las
secciones ya que las contestaciones subrayan la necesidad de proteger antes que
nada la organización, espacio obrero separado que constituye un objetivo en sí
mismo. A pesar de la falta de éxitos concretos se consolidaron unos esquemas que
fueron constituyendo una cultura política obrera algo distinta, como ya se dijo, de
la propiamente bakuninista. Dejarla de lado significaría seguir prescindiendo tanto
de las relaciones entre proyectos de cambio social y modalidades de acción de los
diversos sectores obreros como de las preocupaciones por estructurar un espacio
obrero en el que los colectivos de la clase consiguieran situarse en un marco político
en el que los componentes populares querían entrar de forma autónoma –era un
objetivo bastante compartido desde que la corriente libertaria había asomado.
Intentar conseguirlo hacía emerger unas situaciones contradictorios a las que se
contestaba con los modelos y los discursos que acabamos de evocar.
Se consideraba como absolutamente prioritaria a la organización porque
se la veía como un espacio ideal y unívoco fuera de los espacios concretos de la
vida política. Convertirlo en el de los obreros suponía que el intento de controlar
las huelgas no fuera sólo verbal –ya se han dado ejemplos de que no lo fue. Si
una elaboración tan ambiciosa tuvo lugar fue porque la defensa de un espacio
estrictamente obrero, con toda la alternativa que representaba frente a las
perspectivas republicanas, llegó a ser una construcción ideológica articulada y

40 La Federación, 27-IX-1873.

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no sólo una recuperación de prácticas de defensa con su carga táctica, capaz de


apartarse de los choques sin preparación del bakuninismo, los cuales también
respondían a un estado de espíritu bastante corriente en los sectores populares
españoles. Son ocurrencias de aquella cultura obrera que el presente artículo
intenta describir.
Conseguir la inserción social del proyecto anarquista se había convertido en
una necesidad cuando unos militantes obreros lo prolongaron hacia colectivos de
trabajadores por medio de unos primeros periódicos y de una federación nacional
de sociedades de resistencia. Hasta entonces no había conseguido, sino de modo
marginal, ser un movimiento de ideas con eco en otros ámbitos sociales. Ello
tardaría algunas décadas y se revelaría difícil precisamente porque la perspectiva,
aparentemente libertaria, tomó una fuerte tonalidad obrerista desde el principio.
Pero por ser reflejo de la cultura sociopolítica obrera más que de una temática
ideológica los modelos de organización y de acción definidos por el primer
congreso introdujeron un desfase con la perspectiva de emancipación dibujada
por el bakuninismo. Cuando A. Lorenzo lleva el proyecto de « organización social »
a la conferencia de Londres de 1871, está probablemente convencido de que los
artículos que lo componen resuelven las tensiones que percibía, igual que algunos
grupos de internacionalistas, entre la referencia global y las propuestas elaboradas
por la federación. Para ambos aumentaron en los años 1880 cuando tuvo lugar,
con la FTRE, el intento de reproducir la FRE y aún con mayores dificultades para
conseguir que las secciones más combativas llevaran a la mayoría de ellas a que
adoptaran su tipo de presencia social41. Es muy significativo que a A. Lorenzo, a
pesar de su sinceridad, le costó dar cuenta de cómo la FRE había adoptado su  152
modelo inicial de huelgas. Cuando, en 1901, insiste en que fue una vía equivocada
echa la responsabilidad a unos jóvenes intelectuales

[…] relacionados con los trabajadores asociados de Barcelona, y miem-


bros activos de la Alianza de la Democracia Socialista [quienes con oca-
sión del primer congreso] forjaron una organización que era un meca-
nismo perfecto al que no llegaba la mentalidad ni las costumbres de los
trabajadores españoles en general42.

Por cierto, hubo en los primeros pasos de la FRE un grupo de estudiantes


y algunas personalidades no obreras que contribuyeron a darle una visibilidad
política43 –en Barcelona, más que en otras ciudades, las relaciones seguirían
existiendo. Pero sólo sería convincente la interpretación de Lorenzo si el
funcionamiento del Comité federal y de la Comisión federal durante los años 1872
y 1873, no hubiese estado bajo la responsabilidad de cuadros obreros. Ellos fueron
los que recordaron con una gran constancia los requisitos a observar en caso de
intención de declararse en huelga44. No es muy nítida, además, la interpretación
de Lorenzo en lo que se refiere a la aportación obrera a la FRE. Al evocar, el
primer congreso, distingue varias corrientes entre los delegados, subrayando
las calidades de la « idealista revolucionario », la cual « iba directamente a la
renovación de la sociedad », y distanciándose de la « societaria, que entusiasta y
apasionada por las sociedades (« asociaciones » M. R.) constituidas, mirando con

41 La insistencia en la proximidad de la FTRE con respecto a la FRE en los artículos del militante antiautoritario
Francesc Tomàs i Oliver (1850-1903) en su serie “Apuntes históricos. Del nacimiento de las ideas anarco-
colectivistas en España”, publicada en La Revista Social entre el 27 de diciembre de 1883 y el 15 de enero de 1885.
42 LORENZO, A. Op. cit., p. 287
43 NETTLAU. Op. cit., p. 52-91.
44 Cf.: SERRANO; SAS. Op. cit., v. IV a VII.

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PRIMER ANARQUISMO ESPAÑOL Y CULTURA OBRERA (1868-1910)

desconfianza las novedades de la organización obrera, tenía escaso entusiasmo


por los grandes ideales »45. Como ya se dijo, cuando Lorenzo publica la primera
parte de sus memorias se han agudizado las tensiones entre un concepto de
huelga general definida como primer paso hacia el conflicto decisivo –lo difunden
los periódicos libertarios La Huelga General y El Productor (segunda época de este
título)– y una visión sindical de ésta que la ve como una forma de acción más ancha,
menos temerosa de pasar de los límites que separan unos oficios de otros, pero
no como un primer paso hacia un conflicto que podría convertirse en global. No
es necesario decir que, para el libertario A. Lorenzo, la capacidad emancipadora
la tiene la primera –por ello sus memorias tal vez olvidaran su apego anterior
al papel de aquella organización considerada como « completa » por la prensa
internacionalista. Era la que, él mismo, había llevado a Londres. Aquellas palabras
de El proletariado militante contribuyeron probablemente a que quedara borrada
para bastante tiempo la lógica inicial de la construcción organizativa de la FRE.
En los intentos de dar cuenta de ella es notable que pocas interpretaciones
establecen una relación entre el modelo y los estatutos sociales que componían
el mundo obrero español. Tal vez porque es difícil sacar una percepción unívoca
de las elaboraciones de la FRE y, después de ella, de los componentes radicales
del movimiento obrero. Pero ya a primera vista, el modelo de organización tan
subrayado en el presente artículo parece bastante más cerca de los obreros de los
oficios que de las otras categorías. Podían abonar una cantidad mensual porque
sus ocupaciones eran más estables y mejor pagadas –era mucho más difícil para los

 153 asalariados más informales o precarios. Más que otros podían creer en las virtudes
de la organización puesto que la gran mayoría de las iniciativas de defensa tenían
lugar alrededor de un oficio. Incluso cuando tardaban en formalizarse a través
de una « sociedad » de defensa, los trabajadores de una especialidad solían tener
una vida de comunidad de la que se pueden citar muchos ejemplos46 –además en
los conflictos los obreros de un oficio pocas veces salían de los límites del suyo47.
Asoma, a veces, en los discursos la intención de atraer primero a los más educados,
a los que ocupan empleos que suponen un largo aprendizaje –su duración era el
argumento de los obreros de oficios para defender su nivel de sueldo. Es muy
significativo también que ello no impide que se considere como única la clase
obrera y que se evoque su versión española como si fuera prácticamente la
misma que las de los paises más avanzados. Lo necesitaba la función que cumplía
el mundo de los asalariados manuales en el proyecto radical de separación con
« la política burguesa », el cual implicaba que lo obrero constituyese un actor
exclusivo y sin matices. Las experiencias obreras seguían recordadas, sin embargo,
a nivel implícito ya que el argumento decisivo de la separación se apoyaba en la
experiencia cuotidiana de lo obrero –esto es de las formas, y del discurso, que
tomaba su defensa social.
Ese apego ambiguo a la unidad parece dar cuenta, al menos en parte, de
la relación de la sensibilidad anarquista, con la renovación de sus referencias

45 LORENZO. Op. cit., p. 107. Las otras dos corrientes son « la positiva », se refiere a las organizaciones prag-
máticas del textil catalán que practican la negociación, y la política, la cual deseaba un acercamiento con
el partido republicano federal. En la introducción de su Antología documental del anarquismo español, F.
Madrid y A. Venza (Fundación Anselmo Lorenzo, Madrid, 2001, v. 1, pp. 26-28) también consideran que si
consiguió constituirse el « entramado organizativo » de la FRE fue porque hubo dentro de ella un acuerdo
global a su respecto.
46 En F. Largo Caballero (Correspondencia secreta, Madrid, Nos, 1961) muchos ejemplos acerca de los
« estuquistas » de Madrid.
47 Cf.: RALLE, M., « Las huelgas antes y después del Primero de mayo ». Estudios de Historia Social, n. 54-55,
1991, p. 32-34.

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ideológicas en los años 1880. Las historias políticas del anarquismo español
señalan que entonces no sólo se interesó por las nuevas propuestas transmitidas
por los escritos de Malatesta, Kropotkine, Grave, etc. sino que sus publicaciones
tendieron a identificarse al anárquico-comunismo, y en particular al segundo
de los tres, alejándose del « colectivismo » con el que se definía a Bakunin, o al
menos matizándolo48. No es secundario que los anarquistas españoles imaginaran
la sociedad futura no como la que permitiría que cada productor recuperase el
« producto íntegro » del trabajo, según un esquema proudhoniano admitido por
Bakunín, sino que intentasen encontrar los medios para que, además de los obreros
que producían ganancias, la sociedad entera recibiese sus efectos49. Se enriqueció
el discurso libertario y ello contribuyó a que el movimiento estuviese un poco más
presente a nivel intelectual –lo demuestran los dos « Certámenes socialistas »,
el primero en 1885 y el segundo en 188950. El que se intentara corrresponder a
las definiciones que estaba usando el movimiento libertario a nivel internacional
proporcionaba un estatuto intelectual frente a la emergencia, tardía, en España de
una vertiente marxista que había demostrado, en otros paises, su capacidad tanto
para articular su presencia política e intelectual como para disputar el espacio
público con propuestas políticas y prácticas sociales. En España, sin embargo, los
nuevos postulados asomaban en un periodo en el que ni las tensiones políticas ni
los débiles movimientos sociales proporcionaban muchos ejemplos para renovar
los comentarios sobre la sociedad. La política estaba controlada por el sistema
instalado por el nuevo régimen. Los intentos republicanos sólo se limitaron en los
años 1880 a unos esbozos de pronunciamentos de simpatías republicanas como el
del « brigadier » Villacampa en 1886, carente de movilización popular y rapidamente  154
abortado. Ese relativo vacío puede explicar que muchos de los militantes libertarios
más activos, más bien que intentar dar más consistencia a su identificación con
las nuevas definiciones que habían emergido en el movimiento, insistieron en su
pertenencia global a una « anarquía sin adjetivos », una fórmula a menudo repetida51.
La actitud es lógica sobre todo si la relacionamos con aquella preocupación del
conjunto auntiautoritario por afirmar en primer lugar la pertenencia a lo obrero,
lo cual suponía que se subrayara la necesidad de un espacio político y discursivo
que lo fuese exclusivamente. Al fin y al cabo era también una manera de atenuar la
preocupación por los debates de orden ideológico y por mantener una definición
de orden social de lo obrero.

Algunas premisas de la idealización de la asociación.


Ya fue señalado que el proceso de idealización de la asociación también
tuvo un pasado en los imaginarios políticos y encontró algún que otro ejemplo
en prácticas sociales diversas. A partir de los años 1860 los círculos obreros y las

48 Una síntesis de las divergencias ideológicas en JUNCO, Op. cit., p. 353-368.


49 Escribe La Justicia humana de Barcelona en su número de1 18-IV-1886 : « […] ni el temperamento y las
condiciones físicas pueden ser nunca el resultado de un esfuerzo individual y que el privilegio de utilizar sus
aptitudes más o menos activas en beneficio propio es sustraerse a satisfacer a la sociedad los beneficios
que de ella misma recibiera ». Citado en JUNCO. Op. cit., p. 362.
50 Primer Certamen Socialista, Barcelona, Imprenta de Pedro Ortega, 1885, LXII-576p. y Segundo Certamen
Socialista celebrado en Barcelona el dia 10 de noviembre de 1889, Barcelona, Establecimiento Tipográfico
«La Academia», 1890, 440 p (Cf un análisis en MORALES, Manuel. « La subcultura anarquista en España:
el primer certamen socialista (1885): en Mélanges de la Casa deVelázquez. tomo 27-3, 1991. p. 47-60 y « El
segundo certamen socialista, 1889: notas para un centenario ». En: Mélanges de la Casa deVelázquez. tomo
25, 1989. p. 381-395.
51 JUNCO, J. A. Op. cit., p. 365, señala que se encuentra en el « Segundo certamen », celebrado en 1889.

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PRIMER ANARQUISMO ESPAÑOL Y CULTURA OBRERA (1868-1910)

« sociedades de defensa » habían ido adquiriendo unos esquemas y un vocabulario


tanto por sus contactos con algunas propuestas políticas como por las formas
obreras de solidaridad que les podían servir de modelos. Su impacto lo hizo mayor
el antipolitismo popular, en sentido amplio. Las imágenes más visibles de relaciones
libres e iguales y la idealización de la asociación las había proporcionado en parte
el discurso federalista mientras el socorro mútuo contribuyó a la idealización de
la segunda.
a) La contribución del republicanismo federal.
En la década de 1860 la corriente difundía unas propuestas de construcción
de una sociedad ideal a partir de la autonomía de las comunidades de base –en este
caso las locales, algo idealizadas. Constituye una prueba de la relativa presencia
de un visión antipolítica en los espacios sociales populares. Ya se dijo a propósito
de la difusión del bakuninismo y de las relaciones de personalidades de la FRE
con algunos de sus representantes, en particular la « Fédération jurassienne » de
Suiza, que la elaboración ideológica y las formas de acción no fueron el resultado
de una simple transferencia del bakuninismo. No fueron muchos, además, los
textos de Bakunin publicados en los periódicos habituales de la FRE –los folletos
sólo se traducen, algunos, en los años 188052. Distanciarse del republicanismo
federal no significaba que los modelos de relaciones sociales por los que éste se
había pronunciado cayeran en desuso al ser abandonados los objetivos políticos
del federalimo. Incluso algunas veces los antiautoritarios, se presentaron, en
particular al principio, como los más capaces de realizar su espíritu porque su

 155 condición social les daba la capacidad de establecer unas relaciones justas en su
espacio organizativo.
En 1868, los temas del republicanismo federal ya tenían una trayectoria
consistente. Los habían difundido personalidades como F. Garrido y F. Pí y Margall.
Intentaban responder a las interrogaciones que sobre lo político alimentaba un
estado débil y autoritario a la vez, el cual se preocupaba más por controlar, con
dureza, la sociedad que por construir una adhesión social a una forma política. Ello
reforzó las actitudes de rechazo popular a los instrumentos que se consideraban
propios del estado. El régimen que sustituyó a la República, una monarquía semi-
autoritaria y semi-parlamentaria, acentuó, él también, los motivos de desconfianza
hacia un estado que los había suscitado a pesar de su inflexión liberal despues de
1833. Las fuerzas políticas de intención democratizadora también se encontraban
afectadas por parecer cómplices del edificio institucional. La relación privilegiada
que los federales querían mantener con el conjunto de las variantes republicanas
hacía difícil que su construcción política consiguiera conservar todo su impacto
entre los componentes obreros que ya miraban más hacia la separación53. Sin
embargo, el que la perspectiva de los federales de construir un poder político desde
la base puede haber contribuido a que se impusiera como forma de relaciones en
muchos colectivos obreros. Proponer que el cambio político se articulase a partir de
las unidades de base consideradas como una alternativa global al sistema político
era un tema muy frecuente desde casi veinte años : F. Garrido ya había publicado
en 1855 un folleto en este sentido, La república democrática, federal, universal,
tantas veces reeditado que hay como una continuidad de su lectura54. Variante del
federalismo proudhoniano actua en sentido antipolítico a pesar de la intención de
su autor. También lo hicieron aquellas obras de Proudhon traducidas por el catalán

52 Cf.: Lista de publicaciones en JUNCO, Op. cit., p. 635-636.


53 ARRANZ, L; ELORZA, A. « El Boletín de las clases trabajadores… », p. 371-381.
54 1.a ed. en 1855, 2.a en 1856, 7a en 1868, 16a en 1873.

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F. Pi y Margall, la personalidad más conocida del federalismo. Con la construcción


de un espacio independiente de las formas habituales de poder y también, en cierta
medida, de un sistema representativo con un sufragio más formal que efectivo, el
federalismo contribuyó a que parte de las opiniones populares aceptasen las posturas
radicales de la separación a través de una federación de asociaciones autónomas.
Con la confluencia del bakuninismo y de una federación de defensa de la clase la
lógica de la pertenencia social, estableciendo un espacio que permanecería propio,
apartó la sensibilidad obrera, seducida en un primer momento..
Si ya no parecía convincente la forma de reunir las distintas instancias desde
la base hasta la cúpula de la nación, e incluso más allá, proporcionaba sin embargo
un modelo para una construcción que buscaba un funcionamiento ideal. El de
una nueva república en la que que todos, además de acceder a las libertades
individuales y políticas, podían convivir con una igualdad implícita, seguía siendo
un tema central en el federalismo. Sugería que era posible acceder por la vía de la
asociación a una sociedad futura. Lo decía un periódico federal en estos términos :

[…] lo más esencial e íntimo que hay en nuestro tiempo : la asociaci-


ón, la santa asociación ; esa unión fraternal, esa comunión libre de los
hombres, amparados por todos los pueblos civilizados, consagrada en
las leyes, mirada por los pensadores como el cimiento de una nueva
vida pacífica, fraternal, feliz, sin guerras y sin los horrores que ennegre-
cen los siglos que dejamos atrás, durante los cuales ha dominado como
dueña absoluta la Iglesia católica. / Esas sociedades de mutualidad de

 156
socorro, amparo, de confraternidad, son el santuario de la civilización,
y hay que respetarlas más que a los santos que se adoran en los altares.
Aquí hay ídolos, materia, formas, ya vanas ya impotentes. Allí hay esen-
cia, hay alma, hay espíritu55.

Estas frases constituyen une prueba de la preocupación republicana federal


por los sectores populares con una atención particular a los obreros. Muestran
que desde tiempo la sensibilidad antiautoritaria había podido encontrar motivos
para otorgar a la asociación la virtud de combinar la ayuda concreta que necesitan
quienes cobran un salario y los rituales de sociabilidad de los círculos republicanos56.
Correspondía a lo que se estuvo implantando progresivamente a pesar de las
críticas, en un primer momento, del obrerismo, es decir las sociedades de socorro.
Su impacto relativo participó del proceso de idealización de la asociación. Su
existencia y su trayectoria no son nada secundarias en la elaboración de la cultura
política obrera que va cuajando en los años de la FRE.
b) Las iniciativas de solidaridad. La capacidad infinita de la asociación
La historiografía tardó bastante en prestar atención a las iniciativas obreras
que se pueden calificar de modestas57. La cooperación se estudió un poco más :
parecía anunciar las ulteriores propuestas de separación de la clase al mismo
tiempo que constituía una vía de acceso a los espacios obreros para unas opciones
políticas, bien el reformismo social o bien el catolicismo social –aunque menos
el segundo– que la siguieron defendiendo como respuesta a la cuestión social.
La educación y las actividades de orden cultural, desde la alfabetización hasta
la práctica del teatro o de la poesía en los círculos obreros, interesaron por sus

55 Las Dominicales del Libre Pensamiento, 20-IX-1890.


56 Entre ellos el banquete llamado de « promiscuación ». Para la sociabilidad republicana una evocación de
su lógica en DUARTE I MONTESERRAT, A.. Possibilistes i Federals. Política i cultura republicanes a Reus (1874-
1899), Reus, 1992, p. 145-157.
57 El primer coloquio sobre el socorro mútuo en España tuvo lugar en 1992. Las actas en S. Castillo. Solidaridad
desde abajo. Madrid: UGT-Centro de Estudios Históricos, 1994.

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PRIMER ANARQUISMO ESPAÑOL Y CULTURA OBRERA (1868-1910)

intentos, trabajosos, de constituir una cultura obrera que se distinguiera de la


dominante. Al socorro mutuo, durante tiempo, sólo se le reconoció una función
transitoria que la emergencia de la organización obrera radical habría convertido
en obsoleta. Los militantes más conocidos, al recordar a veces las primeras
formas de su experiencia obrera, reproducían la misma jerarquización : el mérito
del socorro mutuo había sido de hacer más llano el camino hacia el ingreso en la
organización de clase cuando ésta apenas existía58. Las críticas intermitentes de
la prensa obrera radical contra el carácter ilusorio de las asociaciones de socorro
mútuo –a veces llamadas por sus nombres tradicionales de « montepíos » e,
incluso, de « hermandades »– parecían justificar la indiferencia de la investigación
a su respecto. Subrayaban que su funcionamiento era burocrático y que podían
llevar a los obreros hacia soluciones parciales que se revelarían falsas o permitirían
manipulaciones patronales.
El silencio ha durado mucho. No parece justificado si se tiene en cuenta
que paralelamente al aumento de las actividades de organización social y de la
militancia política obrera también el número de las sociedades de socorro creció,
y de manera notable, además, entre los años finales del siglo XIX y los iniciales del
XX59. El éxito se puede atribuir en parte, y no carecería de sentido, a la ausencia del
estado español en la protección social. Al contrario de lo que pasa en la Francia
del Segundo imperio (1851-1870) donde el estado no deja que el movimiento de
socorro se desarrolle lejos de su control no hay en España voluntad institucional
ni de desviar las iniciativas hacia horizontes conocidos –se confía en la Iglesia para

 157 que desempeñe este tipo de papel60– ni de preocuparse por ejercer un control, a no
ser el de orden público que obligaba a las asociaciones a que pusieran sus libros de
actas a disposición de los gobiernos civiles. Se dan casos de rechazo de eventuales
cajas patronales de enfermedad que combinaban intentos de integración en el
lugar de trabajo y modalidades de exclusión de los obreros considerados como
rebeldes –en los años 1880 parecen estar en declive61. De hecho el socorro mutuo
había llegado a ocupar cierto espacio que los socios podían considerar como
propio y prometedor.
Es significativo que la mayoría de las «  sociedades  », de socorro, y
particularmente las nuevas, tendieran a borrar de sus estatutos el paternalismo,
expulsando a los socios no obreros y a suprimir las referencias religiosas, incluso
en cierta medida las rituales –lo dicen sus nombres y la preocupación por formas
de gestión que vienen a ser las de una democracia directa62. La hacen posible
las pequeñas dimensiones de muchas, entre 100 y 300 miembros. Sería atrevido
atribuir dicha forma a una intención : es un límite para que la asociación sea
operativa. La gran mayoría permanecieron independientes a pesar de algunas
llamadas, esencialmente en Barcelona, de personalidales moderadas que insistían
en los ahorros de gestión que supondría una organización más centralizada de las
sociedades de socorro –el propósito era que una parte de ellas fuese absorbido por

58 El esquema para los tipógrafos de Madrid en MORATTO, Juan José. La cuna de un gigante. Historia de la
Asociación General del Arte de Imprimir, Madrid, 1925, p. 40.
59 Cf.: RALLE, M. « Protección mutualista e identidad obrera » En : CASTILLO, S. Solidaridad desde abajo…,
p. 429-430.
60 Para la situación francesa, Cf. : GIBAUD, B. De la mutualité à la sécurité sociale. Conflits et convergences.
Paris: Editions ouvrières, 1986, p. 44-53.
61 Las iniciativas son llamadas Caixas dels morts por obreros de fábricas catalanas ya que los dueños
intentaban atraer a los obreros incluyendo en el socorro el pago de los funerales. Hay testimonios en El
Productor, 17-VIII-1888 y 19-X-1890.
62 Incluso cuando llevan nombres de santos . « Toda idea política o religiosa queda rechazada » afirma el
articúlo primero del Montepío de San Miguel Arcangel de San Martí de Provensals (Archivo del gobierno
civil de Barcelona, legajo n.° 830)

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las redes caritativas que intentaban actuar en los medios obreros 63. En todo caso
las modalidades de las « asambleas » implicaban la igualdad de los socios incluso en
el acceso a los cargos cuya necesaria rotatividad subrayaban los estatutos. Incluso
si bastantes dificultades concretas impedían que el funcionamento fuese tan ideal
–el analfabetismo era un obstáculo frecuente– el que la iniciativa aparentemente
modesta del socorro asumiera ese tipo de modelo proporciona otro indicio de tal
exigencia en los sectores populares.
De las tres o cuatro mil sociedades de socorro mutuo que se constituyeron
entre 1880 y 1910 –antes de la primera fecha, salvo en Cataluña, eran pocas e la
primera fecha – se han conservado varios centenares de folletos de estatutos. El
que se materializaran bajo una forma impresa puede ser una primera señal de lo
que llegaron a representar para su público. Estatutos o preámbulos reproducen, en
algunas líneas, la temática ya señalada. De hecho junto con la perspectiva concreta
de la función de socorro aparentemente racionalizada y descrita en un lenguaje
funcional y laicizado64, evocan la capacidad infinita de la asociación de la que una
caja de socorro y las cuotas que la alimentan constituyen la primera prueba. Con las
funciones que se podrían añadir al socorro sería posible desembocar en la liberación
social. Esta es más que implícita ya que junto con la extensión de las fuentes posibles
de dinero (gracias a la venta de bebidas, a una asociación de diversión, a una
cooperativa de consumo, etc.) se podrían realizar otros fines : ayuda a la invalidez,
al paro, a la educación, a las diversiones, etc.. Algunos ya imaginaban que las
reservas podrían servir algún día en huelgas importantes. El carácter público de los
estatutos prohibía que figurase en ellos pero es bastante conocido que más tarde
parte de las reservas de sociedades de socorros paralelas con secciones sindicales,  158
en la UGT en particular, fueron utilizadas a veces para ayudar a los huelguistas del
oficio65. En lo que se refiere a la ampliación ideal de las funciones los ejemplos son
muy numerosos y se encuentran en los puntos más diversos del territorio español.
En 1899, es decir bastante después de la ruptura representada por la FRE, en estos
términos presenta sus objetivos una sociedad del municipio andaluz de la Villa de
Torredonjimeno (de la andaluza provincia de Jaén) :

Su objeto es el de reunir por medio de las cuotas que se establecen un


fondo con el que cooperando con las ventajas que reporten el consumo
de artículos de primera necesidad y otras especies, entre los asociados,
o por conciertos económicos entre los comerciantes e industriales de
la población, se adquieran economías y ahorros que permitan atender
los fines y propósitos de mejorar moral y materialmente a sus asocia-
dos; ofrecerles medios de instrucción y cultos recreos; socorrerles en
casos de aflicción, en enfermedades o reveses de fortuna; iniciarlos en
prácticas de vida sana y buenas costumbres; abrirles camino de Rege-
neración, despejarles horizontes de progresos, y habilitarlos a la vida de
actividad y tendencias de constante mejoramiento y perfección66.

Tal mezcla de preocupaciones prácticas y de construcciones ideales suponen


implícitamente que las actividades concretas, y las que estarían por venir, se dirijan
hacia una solución global a la que se llegaría, por medio de las prácticas obreras

63 ALBÓ, R; MARTÍ, Cassimir. Barcelona caritativa, benéfica y social. Barcelona, 1914, 2 v., t.2, p. 271
64 La ayuda monetaria cuotidiana suele corresponder a lo que supondría pérdida de una jornada de trabajo.
No está previsto que pueda durar más de un mes o dos.
65 El fenómeno es corriente en la Segunda República (Cf.: SANTOS, Juliá. Madrid, 1931-1934. De  la fiesta
popular a la lucha de clases. Madrid : Siglo XXI, 1984, p. 191-220).
66 Es muy significativo que en la misme fase se encuentren muchos estatutos ambiciosos en Extremadura,
Andalucía, y Nueva Catilla.

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PRIMER ANARQUISMO ESPAÑOL Y CULTURA OBRERA (1868-1910)

de solidaridad y de sociabilidad, de modo independiente al estado y a las iniciativas


políticos, y hasta a las justificaciones de la necesidad de la revolución social. Se
trata menos de proporcionar ejemplos de éxito que de mostrar la capacidad de
responder a los aspectos problemáticos tanto de la actividad de trabajo de un
obrero como, también, de su vida en sociedad. La perspectiva no había conocido
variaciones a pesar de las muchas novedades políticas que habían intervenido
después de la caida de Isabel II. Ya antes, en 1866, había escrito un periódico obrero
catalán, El Obrero :

[…] estaremos seguro de encontrar siempre amigos que nos recibirán


en su seno como individuos de una misme sociedad (= asociación, M. R.)
que tiene por objeto prestarnos amparos y protección en todos los mo-
mentos de la vida. / Establecida […] la sociedad puede constituirse a la
vez en caja de crédito mutuo sobre el trabajo, en banco de previsión por
las enfermedades e inutilidad, estableciendo una mutua relación entre
todas las secciones de la misma. / Los proyectos de consumo y producci-
ón formarían también en lugar preferente y serán de inmediata aplicaci-
ón una vez que son el principal elemento que ha de contribuir como in-
termediario a dar seguridad a las demás obligaciones de la colectividad67.

El Obrero no había estado en contacto con las propuestas de la Internacional.


Su sensibilidad era republicana federal –ya hemos visto un ejemplo de la relación
con las formas menores de solidaridad. La alusión al « banco » es probablemente
una reminiscencia de la « Banque du peuple » de Proudhon. Es significativo que la
 159 tonalidad sea muy parecida en una reproducción por el periódico anarquista La
Revista Social, y esto en 1881, de un llamamiento de Alcoy a asociarse para beneficiar
de una ayuda mútiple y de una perspectiva global68. La relativa permanencia del
proyecto asociativo para evocar de modo algo concreto el cambio social esperado,
en temas y términos tan parecidos es significativo de la presencia difusa de la
cultura obrera en la que el presente artículo quiere insistir. Se ha mantenido a
pesar de los grandes cambios políticos por los que ya había pasado el movimiento
obrero. Sigue otorgando un papel decisivo al espacio asociativo concebido como
una construcción fuera del estado y de la política. Si las propuestas de los militantes
anarquistas, aquellas que insisten en la necesidad de un conflicto decisivo, parecen
haber despertado un consenso de orden político en los sectores asalariados de las
ciudades y del campo éste no interrumpe la preocupación por mostrar el carácter
determinante de la afirmación de la identidad obrera. De hecho, tanto las cajas
de resistencia de la FRE como las reservas de las sociedades de socorro mútuo
no llegaron a cumplir el objetivo que anunciaban. El de las primeras apareció
rápidamente imposible. En cuanto a las iniciativas de socorro, los intentos de
protección a inválidos, el segundo de sus propósitos sólo tuvieron resultados
simbólicos –10 céntimos por día en el mejor de los casos. No hay mejor prueba
del carácter esencialmente compensatorio, muchísimo más que concreto, de las
iniciativas de organización o de solidaridad.

67 El Obrero, 18-III-1866.
68 « Asóciate, obrero alcoyano, que esa es tu salvación. Si no tienes instrucción en la sociedad la encontrarás ;
si abusan de tí, en la sociedad, si no hoy, más adelante hallarás justicia ; si te encuentras enfermo, en la
sociedad tendrás socorro ; si tienes hijos, en la sociedad aprenderán a ser hombres ; y hasta tu esposa,
quien comparte todos tus sufrimientos, debes inducirla a que se asocie con sus compañeras para que en
su día goce el libre albedrío, no sea humillada y maltratada injustamente, como lo es hoy por la corrupción
de nuestras degradantes costumbres. Sí, obrero alcoyano, hay que olvidar esas costumbres rancias y
repugnantes ; entra en el camino de la civilización, que las costumbres actuales son como un edificio viejo
y demolido que va a desplomarse al peso de sus años » (La Revista Social, 04-VII-1881).

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MICHEL RALLE

Este tipo de propuestas no representa sólo aquella aspiración a la autonomía


que asoma casi en todas partes con las primeras iniciativas de solidaridad de los
colectivos obreros. Tanto Thompson como Sewell han proporcionado ejemplos
de emergencias, en Inglaterra y en Francia, de tal voluntad obrera, la cual tiende a
borrarse cuando muchos sectores de la clase se integran en las contiendas politicas.
El segundo, en particular, cita el proyecto de « asociación de las asociaciones »
visible entre los obreros parisinos de la Monarchie de Juillet69, Alimentada por el eco
de las grandes ideologías obreras, por importantes conflictos sociales, por la falta
de interés de los estados en tomar medidas significativas en materia de protección
social y por una fase de expansión de temas ideológicos radicales, la diferenciacion
social conquista espacios y hasta impide, en ciertos momentos, la progresividad
del proceso de integración en la propuesta política democratizadora. Acontece
cuando existe la tentación de un repliegue sobre la clase. La tiene por ejemplo,
es una ocurrencia más tardía, el sindicalismo revolucionario francés. El proyecto
que, en España, arranca en 1870 constituye, al fin y al cabo, un caso de “autonomía
obrera” para usar el concepto –también título de un libro–, propuesto por Jacques
Julliard en su análisis del sindicalismo revolucionario francés. Frente a un campo
político en el que la clase conseguía difícilmente inserirse, las organizaciones
obreras oponen el « ser obrero » al « hacer », sospechoso de llevar a perder la
autonomía social70. El tema tiene la ventaja de señalar el carácter problemático
de la integración de un movimiento obrero nacional en el marco político en el
que actua. Puede ocurrir cuando la organización asume un discurso radical. El
comunismo francés, en su época de fuerte presencia sociopolítica –se llegó a
hablar a su respecto de « contrasociedad »– es uno de los ejemplos más conocidos.  160
En el caso del anarquismo español evocado aquí, ya que estarían fallando tanto
el sistema político como la capacidad de integración del estado, la exaltación de
lo obrero ha tenido un alto nivel afectando incluso a los « marxistas » del partido
obrero. Se percibe en las contestaciones poco convencidas de José Mesa, la primera
personalidad de la corriente marxista en España, a los llamamientos de Engels para
que en 1873 se fundara sin tardar un partido obrero71: «  […] la libertad y la igualdad
política no dan ni un bocado de pan ni un átomo de dignidad al obrero » (22-II-
1873). Casi veinte años más tarde, cuando, en la mayoría de los paises, el Primero
de mayo, ratificaba un tipo de conflictividad con el estado según la cual tenía que
arrancársele unos disposiciones sociales legales, incluso los socialistas del PSO, y en
particular Iglesias, consideraban que no se podía esperar nada de él ya que estaba
totalmente entregado a la burguesía72. Si marxistas y libertarios competían por
mostrar que eran los mejores defensores de lo verdaderamente obrero es porque
la cercanía con la pertenencia social constituía la mejor prueba de la radicalidad de
sus principios. La necesidad que tuvieron los socialistas españoles de mostrar su
inserción social no hacía fácil que se alejaran de esa temática, a no ser en ciertos
territorios, como en el Pais Vasco, donde la presión sobre las autoritades formaba

69 SEWELL, W. H. Work and Revolution in France., the Language of Labour from the Old Regime to 1848,
Cambridge : University Press, 1980 : « El movimiento obrero de 1848 era socialista en la medida en que
imaginaba un estado construido desde abajo hasta arriba en las instituciones del trabajo […] los gremios
eran por consiguiente las instituciones públicas a las que competía el poder de organizar el trabajo de
manera asociativa » (p. 355).
70 JULLIARD, Jacques. « Introduction », Autonomie ouvrière, Paris: Gallimard-Seuil, 1988, p. 9-40.
71 Cf.: RALLE, M.« La Emancipación y el primer grupo marxista español : rupturas y permanencias » En:
ELORZA, A.; RALLE, M. La formación del PSOE. Barcelona: ed. Crítica, 1989, p. 94-110.
72 En su encuentro con Sagasta, después de la manifestación del Primero de mayo de 1890, Iglesias le dice
« Fijándonos en la representación efectiva que tenéis –la de la clase que explota al pueblo trabajador… »,
El Socialista, 9-V-1890.

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PRIMER ANARQUISMO ESPAÑOL Y CULTURA OBRERA (1868-1910)

parte de las modalidades de lucha que sus compañeros habían contribuido a


implantar a nivel local73. La identificacón era más fácil para los anarquistas pero
también suponía asumir unos espacios, físicos y discursivos los cuales, atribuyendo
radicalidad a la pertenencia social, ocultaban a veces la lógica ácrata.

El antiestatismo como sustituto del enfrentamiento


decisivo. Mantener la ruptura
A medida que pasa la década de 1880, se expresan bastante más las
actitudes críticas con respecto a la construcción de una “resistencia universal”.
Algunas iniciativas y discursos parecen franquear los límites del modelo anterior.
La insistencia en considerar la espontaneidad como primer argumento para
la acción parece liberarse de restos de ambigüedad como en la resolución del
Congreso amplio de Sociedades de Resistencia (18-20 marzo 1888), el cual instituye
una « Federación de resistencia al capital » que proclama un « Pacto de Unión y
Solidaridad » entre las secciones que la constituyen. El texto final del congreso,
después de subrayar que la experiencia muestra que « no ha habido una huelga
reglamentaria en las diferentes federaciones obreras de resistencia » –el que se
siguiera hablando de este tema es una prueba más de que sigue teniendo todavía
una presencia difusa entre las asociacions obreras–, pone fuertemente de relieve
las virtudes de la espontaneidad obrera :
 161 Esto nos lleva al reconocimiento de la existencia de una fuerza que,
aplicada a la obra revolucionaria, puede ser muy aprovechable y tal vez
de resultados muy eficaces, si sabemos imitar al físico que, en cuanto
descubre una fuerza natural, trata de emplearla..../ Para favorecer esa
fuerza necesítase de la solidaridad, pero de una solidaridad espontánea
e impremeditada, no de aquella calculada y fría que sólo da una orden
emanada de la comisión correspondiente, como si dijésemos de una au-
toridad jerárquica74.

La radicalidad de las palabras podría también interpretarse como una


actitud de principio que sólo se dirige a una minoría de los sectores obreros.
Parece confirmarlo el bajo número de secciones y de localidades representadas
en el congreso75. La transformación de la FTRE en una « Organización Anarquista
Revolucionaria » tampoco reune un apoyo social considerable, a pesar de anunciarse
como un congreso –tiene lugar en Valencia a principios de 1889. La debilidad de la
federación había ido creciendo desde la represión del gobierno cuando éste había
usado, en 1883, el pretexto de que albergaba una sociedad secreta, la « Mano
Negra ». Lo que tuvo lugar fue más bien un intento de dar visibilidad a unos grupos
y círculos anarquistas al presentarlos como la continuación lógica de la primera
version de las organizaciones nacionales de defensa de 1870 y de 1881. Como lo
decía el anarquista que, con los argumentos habituales, describía, en el artículo
ya citado, la reunión de Valencia, desaparecía la defensa y llegaba el espíritu
revolucionario :

73 Un análisis global en FUSI, J. P. Política obrera en el País Vasco (1880-1923), Madrid: ed. Turner. Para las
huelgas de mineros de principios de los años 1890, cf.: RALLE, M. « ¿ Divergencias socialistas ? Madrid y
Bilbao ante el conflicto minero de 1891 ».En: RALLE, M.; ELORZA, A. La formación…, p. 186-240.
74 Acracia, 06/1888, p. 622. Edición facsímil, Barcelona: Leteradura, 1978.
75 Lista en El Productor del 25-V-1888. Son unas treinta secciones de oficios, prácticamente todas de Bareclona.

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MICHEL RALLE

Desapareciendo la organización por secciones de oficios, la Anarquía


habrá perdido aparentemente, en hombres, pero no así en la calidad de
ellos, pues si bien ser1an más pocos, a lo menos estos pocos serán cons-
cientes anarquistas, serán verdaderos anarquistas. ¿ Y qué mejor modo
de aunarse estos pocos pero verdaderos y conscientes anarquistas que
organizándose en grupos autónomos, libres, esto es anarquistas, rela-
cionándose entre sí, para mejor encauzar la propaganda ?

En el final de la década el resurgir de un espíritu ofensivo entre quienes se


sienten anarquistas no significa, sin embargo, un cambio en las actitudes de la
corriente antiautoritaria en la cual actúan. Es modesto, por ejemplo, el interés de
El Productor, el cual ha adquirido desde su inicio en 1887 el estatuto de órgano
principal de los sectores obreros anarquizantes –antes lo habían sido La Revista
Social (1881-1884) y Bandera Social (1885-1886). Después de dedicar algunos ecos
a la nueva organización deja prácticamente de citarla. Además no se modifica
su actitud en lo que se refiere a la acción ni emerge la perspectiva de presentar
las huelgas que llaman la atención como el primer paso de un conflicto decisivo.
Tampoco se alude más claramente a las capacidades de la huelga general. En esta
última parte sólo se van a dar unos ejemplos puntuales de ello porque siguen
mostrando la permanencia del peso de la prioridad de la identidad obrera en los
conflictos reivindicativos corrientes. En ese contexto ¿ cómo mostrar la necesaria
separación política sin acciones de defensa que proporcionen ocasiones de
recordar la perspectiva del conflicto decisivo ?
Sólo con ocasión de algunas huelgas concretas parecen la sensibilidad
anarquizante y el antiautoritarismo encontrar materia. Para El Productor son  162
vías hacia la ruptura. Siendo la mayoría de los conflictos breves, poco densos,
profesionalmente delimitados –en general por un oficio en una localidad–, y
guiados por las clásicas reivindicaciones sobre el salario, las horas de trabajo o
el « autoritarismo » de los maestros son pocos los que dan lugar a ese tipo de
interpretaciones76. Los periódicos libertarios guardaban silencio o pronunciaban
unas críticas tibias cuando los huelguistas se dirigían al gobierno civil o a alguna
otra autoridad. El gran movimiento de solidaridad provocado por el conflicto textil
de Manresa de 1890 no llevó a imaginar otro tipo de negociaciones. De hecho la
federación del textil, las Tres Clases, controló la huelga en la que intervinirieron
las autoridades y algunos políticos. El Productor la comentó poco a pesar de su
dimensión excepcional.
La huelga de los albañiles de Barcelona de diciembre de 1887 ofrece uno de
los pocos ejemplos de los intentos de introducir un tema rupturista a través de
un conflicto social. El Productor vio en ella la posibilidad de llamar a una gestión
solidaria del oficio. Habían emprendido la acción los que trabajaban en las obras
de la Exposición Universal prevista para el año siguiente. Pedían una reducción
de la jornada (nueve horas) a la que añadían, tal vez lo pidiera sólo un sector de
la profesión, que el trabajo disponible después de la rebaja de las horas fuera
repartido entre todos los del oficio, suprimiendo las situaciones de paro. No era
une reivindicación inédita. Obtenerla podía dar la posibilidad de plantear que la
sociedad del oficio fuera la que tuviera en adelante el monopolio de la colocación,
beneficiando, por supuesto, a sus afiliados –ese control ya había sido, y lo sería más
tarde, motivo de conflictos77. Demostraría la posibilidad de vincular la modalidad

76 La conocida y visible huelga de los tipógrafos de Madrid (febrero marzo de 1882), primer gran conflicto en el
que participó la sensibilidad socialista, no presentó novedad en las reivindicaciones ni en la marcha del conflicto.
77 Sobre la rivalidad en este campo de las organizaciones sindicales del Madrid de la II República, consúltese el
análisis fundamental de SANTOS, Juliá. De la fiesta popular a la lucha de clases, Madrid: Siglo XXI, 1984, p. 221-265.

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de defensa con el proyecto a largo plazo. Cualquiera que fuera el papel de esa
reivindicación en la huelga de los albañiles, El Productor consideró ejemplar que la
solidaridad sustituyera las reivindicaciones habituales:

[...] los trabajadores han adquirido la certidumbre de que, tanto si


existe el previo compromiso por medio de la organización, como si tal
compromiso no existe, la solidaridad obrera se establece rápida y efi-
cazmente, y sobre esta base pueden fundarse grandes esperanzas. /
Aquellas masas de hombres que [...] resisten a la tentación de exigir
aumento de salario [...] demuestran que los trabajadores han compren-
dido la acracia y se hallan en actitud de practicarla78.

A su huelga se le atribuía más de lo que decían los albañiles. Para El Productor


está claro que no introduce sólo una distancia con respecto a las reivindicaciones
más corrientes sino que instala, en cierta medida, en el presente las relaciones
sociales del futuro. Pero, para el periódico, lo esencial era que la intervención
de las autoridades deseosas de favorecer un entendimiento entre patronos y
obreros en un momento de gran necesidad –la fecha de la Exposición universal–
permitía recordar lo que habían de ser las relaciones de los trabajadores con sus
interlocutores :

Muéstrese la autoridad gubernativa completamente neutral, no se ocu-


pe para nada de las huelgas provocadas por los obreros como no se
ocupa por las decididas por los patronos cuando por una y otra causa

 163 cierran sus fábricas o talleres, y verá cómo aquellas siguen su curso na-
tural, sin transgresiones de la ley, a pesar de estar hecha ésta en favor
de los que poseen y de los desposeídos79.

La expresión « curso natural », además de indicar, una vez más, que el


conflicto sólo puede enfrentar a obreros y patronos, remite a una visión muy fija
del modelo de conflicto. El carácter en parte irreal de la propuesta –¿ cómo podría
existir una huelga pura dentro de la legalidad ?– es significativo de la dificultad de
la sensibilidad libertaria para proponer entonces acciones más ambiciosas como
lo sería la huelga general. En su ausencia sólo tienen sentido las que rechacen
cualquier contacto con lo que no forma parte de la experiencia propiamente
obrera. Los patronos, en cambio, forman parte de ella y son erigidos, de manera
formal, en interlocutores únicos. No se trataba tanto de ampliar las huelgas reales
como de poner entre paréntesis, al menos de modo simbólico, lo que significaba la
presencia de los aparatos estatales y políticos. Para ello el objetivo de un espacio
obrero estricto era el único posible.

Primero de mayo. Unas huelgas generales particular


Las primeras celebraciones del Primero de mayo proporcionan, por
consiguiente, a la corriente libertaria la oportunidad de llamar a la huelga
general. Aparecía indispensable constituir una perspectiva propia y visible frente
al modelo de « fiesta del trabajo » de la corriente marxista : un día de paro y de
manifestaciones dirigidas a reclamar a los poderes públicos medidas legislativas
sobre la jornada de trabajo. En 1890, la participación masiva, hasta en Barcelona,
de los colectivos obreros en la iniciativa socialista hacía necesario distinguirse

78 El Productor, (06/08/1888).
79 El Productor, (19/08/1887).

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MICHEL RALLE

tanto en el objetivo como en la forma del conflicto. La desconfianza expresada por


los mismos socialistas con respecto a las autoridades –otra señal colateral de la
fuerte presencia de actitudes antiestatistas en los colectivos obreros españoles–
llamaba a actuar de modo radical80. Sin embargo, llamar a la huelga general no
significaba siempre, al menos en la fase evocada aquí, un corte nítido con los
temas y las iniciativas con las que el antiautoritarismo señalaba la prioridad de la
afirmación de la identidad obrera. 1890. En vísperas del primer Primero de mayo, el
30 de abril, y cuando no se esperaba todavía una gran respuesta a la convocatoria
socialista, un manifiesto distribuido en Madrid y presentado como anarquista, pero
probablemente representativo del antiautoritarismo, indicaba que no se preveía
una acción inmediata :

Y habiendo sido siempre nuestro ideal la organización del proletariado


como clase social, frente a frente de las clases privilegiadas, estamos
conformes con la manifestación del 1° de Mayo, porque de ella ha de na-
cer el deseo, que se convertirá en hecho en breve plazo, de una huelga
europea que supone previamente la organización de la clase trabajado-
ra en sentido verdaderamente revolucionario81.

El espacio social que dijese la identidad revolucionaria de los « trabajadores »


seguía siendo el de la actividad de una organización que había de tener una
existencia « previa ». Ampliada a una « huelga europea », interfería otra vez la
lógica de su constitución en la perspectiva, aparentemente nueva, de un conflicto
que llegaría a ser total.
La indecisión permaneció en los primeros años de manifestaciones de  164
Primero de mayo. En Barcelona, en 1890, después de la exitosa manifestación de
los socialistas, los libertarios, habían tratado de llamar explícitamente a la huelga
general de manera repentina e informal. La paralización de los tranvías o el cierre
de bastantes fábricas se debieron más a disturbios callejeros provocados por
algunos grupo que a extensiones de unas huelgas puntuales en algunas fábricas.
El mando militar, haciéndose cargo del orden, puso fin al episodio. Sorprende
más lo que pasó en Valencia, único lugar donde hubo llamamiento a la huelga
general antes del día 1°. La preparación del movimiento se dio unas apariencias
estructuradas pero su desenlace decepcionante mostró la dificultad de llevarlo a
cabo y las contradicciones en las que se encontraron los organizadores. La hora
de una huelga general anarquizante pareció llegar con el siguiente Primero de
mayo, el de 1891. Para que el objetivo quedase claro, se intentó dar la prueba de
su representatividad convocando a las asociaciones de defensa a un congreso, el
conocido « Congreso Amplio »�, que lo ratificara —el riesgo de subordinar la acción
a las iniciativas de éstas cuando llegase el momento de actuar no se consideró
como contradictorio con el espíritu de un movimiento decisivo. No tuvo un mayor
impacto que la huelga de Valencia del año anterior. Por su ambición al menos
aparente –la de confirmar en el terreno de los movimientos sociales la huelga
general como modalidad de acción nueva y asumiendo una tonalidad anarquista–,
las dos iniciativas merecen ser evocadas de manera un poco más precisa.
Son los núcleos anarquistas de Valencia, influyentes en muchas asociaciones
de defensa de la ciudad, quienes dirigen, en la ciudad, el movimiento de 1890 cuyos
participantes lo designan claramente como « huelga general ». Acompañadas
de todo un aparato de actividades las huelgas concretas muestran el deseo de

80 RALLE, M. « Las huelgas antes y después del Primero de mayo »… , p, 73-79.


81 El Resumen, Madrid, 30/04/1890.

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añadir espectacularidad a la radicalidad del objetivo al que el papel central de


las asociaciones de oficios dan una figura aparentemente contradictoria. La
autonomía habitual de cada una en la toma de decisión, la atención prioritaria a las
condiciones de trabajo (duración de la jornada y también salarios) ya introducen
distancia entre el objetivo considerado como común y la posibilidad de que cada
especialidad defina el suyo. Existe sin embargo una gran preocupación por mostrar
una voluntad compartida, reuniéndose cada día los representantes de todas las
asociaciones implicadas para hacer un balance de una acción que dura varios días.
La favorece probablemente la convicción de que bastarían unos éxitos para que
el ejemplo fuese seguido por todo el país y –¿ quién sabe ?– más allá. Es notable
el cuidado puesto en los desfiles, pacíficos, y en la escenificación, en particular
el círculo dibujado en el ruedo de la Plaza de toros, donde tiene lugar el primer
meeting. Esta forma geométrica permite que las asociaciones que la componen,
con sus representantes y sus banderas, a veces las antiguas de los gremios,
aparezcan tan iguales entre sí como los puntos que hacen existir un círculo82.
Es fuerte la preocupación por no salir del espacio social propio –y una
confirmación de que la identidad obrera podía ser una manera de compensar las
insuficiencias del movimiento real. Es implícita en muchas palabras. Una octavilla
pide que «  […] los mismos huelguistas cuiden de que no se mezcle en ningún
grupo persona extraña al respectivo arte u oficio83 ». Emergen también unas frases
paradójicas y parecidas a las de El Productor cuando defendía el « curso natural »
de la huelga de albañiles. Se pronuncian cuando los animadores del movimiento
discuten con el gobernador civil –el aparato del gobierno Sagasta, bajo la amenaza
 165 de ser sustituido por un gabinete Cánovas, se muestra globalmente tolerante y
hasta cortés con los participantes del primer Primero de mayo. Se aprovechan de
la buena relación para pedir que no se transmita a Madrid su reivindicación de una
jornada de ocho horas:

El señor López [militante anarquista, M. R] manifestó al señor goberna-


dor que no procedía elevar su petición al gobierno, pues siendo anar-
quistas los manifestantes, nada quieren de los poderes públicos: se diri-
gen, no más, a los patronos para lograr sus pretensiones, encaminadas
a la completa emancipación de la clase trabajadora84.

De la misma manera que para la huelga de albañiles de Barcelona, en 1887,


se intenta el reconocimiento del derecho a un contacto directo entre patronos y
obreros, sin intromisión del Estado ni de las fuerzas políticas constituya una salida
del conflicto. Ello no impedía que se entregara al gobernador civil un documento
en este sentido:

Los obreros de Valencia y, en su nombre y representación, la comisión


general huelguista, compuesta de un delegado de cada una de las comi-
siones de oficios, significa a VS. su más solemne protesta de adhesión
a la paz y tranquilidad del género humano y sus más fervientes votos
para que, a fin de que cuanto antes concluya el estado actual de cosas,
se capaciten los patronos de su noble y enérgica actitud, y accediendo
a sus justas peticiones, no pretendan poner obstáculos al progreso, ya
que es inevitable su majestuosa marcha, único medio por el que puede
evitarse el perjuicio general con la resolución del problema social que en
la actualidad nos ocupa. / Viva la fraternidad universal / Vivan nuestros
hermanos de todo el mundo85.

82 El Mercantil Valenciano, Las Provincias. Valencia, 04/05/1890).


83 Ibidem.
84 Ibidem.
85 Ibidem.

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MICHEL RALLE

El objetivo era tan simbólico como modesto. Las iniciativas de Valencia


reflejan en parte una historia particular, con una fuerte experiencia asociativa —
entre los actores están, por supuesto, los « velluters » del Arte mayor de la seda,
en decadencia relativa en 1890. El socorro mutuo es el más denso después del
de Cataluña86 y constituye un terreno disputado en los enfrentamientos políticos
locales –en ellos interviene el republicano federal Blasco Ibáñez87. La huelga general
acaba en huelgas de oficios, con algunos éxitos parciales pero, también, con una
dispersión de la acción. El proyecto global se va reduciendo a la afirmación de una
identidad puramente obrera. Con pocas expectativas, a pesar de su capacidad de
movilización, los libertarios valencianos podían encontrar una compensación en
las apariencias simbólicas de ruptura. Al reivindicar que se respetase una identidad
obrera estricta, con un conflicto que se reducía a un enfrentamiento entre obreros
y patronos, no salían de la lógica de ésta tal como se había asumido desde la FRE.
La ambigüedad tampoco se interrumpió cuando en 1891, con ocasión del
segundo Primero de mayo, las sensibilidades libertarias y antiautoritarias parecían
estar de acuerdo para intentar ocupar todo el espacio español de la movilización.
No era tan fácil justificar un combate decisivo en la medida en que se luchaba por
la jornada de ocho horas, objetivo ideal pero fuera de alcance y condicionado
por un movimiento internacional que recurría a la interpelación del estado. Por
lo menos se proclamaba la voluntad de entrar en un conflicto largo. Anunciada la
huelga desde principios de 1891, se la iba calificando cada vez más de « general » a
medida que se iba acercando el primer día de mayo, en particular en El Productor.
La equivalencia « ocho horas / huelga general » podía parecer convincente a los
colectivos obreros masculinos de los oficios que habían entrado en acciones por las  166
nueve horas –no se pedían las ocho horas para las mujeres de la industria textil88.
La modalidad capaz de dar más legitimidad a la iniciativa, es decir la reunión de
un « Congreso amplio » de sociedades de defensa, reproducía la combinación de
las dos referencias de la huelga general de Valencia del año anterior. No borraba
la ambigüedad del objetivo, el cual no generó prácticamente ningún movimiento
real ya que el reconocimiento de una identidad prioritariamente social seguía
dando lugar a dos interpretaciones. Desde el principio del movimiento existían
por consiguiente dos salidas. La de aquellas organizaciones, en general de obreros
de oficios, con suficientes fuerzas para sacar algo de una negociación con los
patronos y la de un movimiento más global, el cual no llegó a constituirse. La acción
« impremeditada » soñada por los libertarios en 1888 no podía, por consiguiente,
alejarse mucho de la defensa prioritaria de una identidad obrera, de la que la de
los sectores de oficios no estaba lejos, en la medida en que su imagen política
la conseguían también manifestándose, igual que la FRE, como una expresión
casi pura de la clase. En aquellos años es variable el uso de « huelga general ».
Es a veces el caso de los participantes de conflictos duro para subrayar su fuerte
voluntad de seguir89. Pasa en la huelga de Manresa de abril 1890. Significaba una
presión suplementaria y no un cambio del modelo de acción. Ocurre más o menos

86 En Valencia el pensamiento liberal se había mostrado activo en la defensa de formas –las clásicas– de
asociación. Es conocida la defensa de las hermandades por PUJOL, Eduardo Pérez. La cuestión social en
Valencia, Valencia: Imprenta José Doménech, 1872.
87 En lo que se refiere a la preocupación de Blasco Ibañez por controlar ciertas sociedades obreras de Valencia,
véase REIG, Ramir. Obrers i ciutadans. Blasquisme i moviment obrer. València: I. Alfons el Magnànim, 1982,
p.249-254.
88 A propósito de los excepcionales meetings de mujeres de abril de 1891, El Productor subraya que las
oradoras apoyaban las ocho horas para sus maridos (30/04/1891).
89 «Huelga general» según Sagués de las Tres Clases (El Diluvio, La Publicidad, de Barcelona, 30-03-1890);
«paro general» en El Obrero (Barcelona), semanario de las Tres Clases, 04-04-1890

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PRIMER ANARQUISMO ESPAÑOL Y CULTURA OBRERA (1868-1910)

lo mismo en Vizcaya donde los mineros, conducidos por militantes socialistas90,


trataban de conseguir, frente a patronos que no querían negociar directamente
con los representantes de los huelguistas, una intervención de las autoridades, en
particulares las militares llamadas para impedir que los desórdenes se extendiesen.
La presencia de tropas significaba, además de un reconocimiento de hecho de
la representatividad de los delegados, una presión sobre la patronal para que
satisficiese una parte de las reivindicaciones de los huelguistas91.

Principios del siglo XX. El tema de la huelga general


En los dos momentos distintos que se acaban de evocar, las iniciativas
basadas en la movilización de las organizaciones obreras se expresaron en
términos parecidos. Son también significativos de la interferencia de la temática
de la defensa de la identad obrera en los proyectos de cambio revolucionario.
Continuaba la reticencia ya señalada con respecto a la ambición más global de
las temáticas estrictamente libertarias –es significativo que éstas estuvieran más
presentes en los paises donde el anarquismo tenía poco impacto entre los sectores
obreros. Incluso cuando, después del cambio de siglo, la vertiente ideológico del
anarquismo español empieza a ser más aparente se mantiene de hecho la prioridad
otorgada a lo sindical. No es el lugar aquí de preguntarse sobre el impacto de esas
elaboraciones iniciales en las bien conocidas divergencias ulteriores de la corriente
libertaria dentro de la CNT (Confederación nacional del trabajo constituida en
 167 191192). Fueron muy visibles tanto en los años anteriores al golpe de estado de
Primo de Rivera (1920-1923) como cuando tuvo lugar al enfrentamiento entre FAI
(Federación anarquista ibérica) y « treintismo » en los años de la República. Pero la
intención de estas últimas y breves páginas es dar una muestra de la efectividad de
la tensión durante lo que suele considerarse como un nuevo momento, a principios
del siglo XX, del anarquismo español y también de la conflictividad social.
El primer elemento de cambio es sin duda la densidad de los conflictos. El
aumento alcanza a la vez el número de las huelgas y la diversidad de los huelguistas
–entre los que se encuentran en 1902 y 1903, con números inéditos, los obreros
agrícolas del sur93. Algunas se presentan como « generales ». La más visible es
la « huelga general » de Barcelona de enero y febrero de 1902 –ya a principios
1901, en Gijón, otra « huelga general » había reunido durante largas semanas a
muchos oficios y a trabajadores del puerto. También en La Coruña había tenido
lugar un extenso conflicto. El de Barcelona empieza con un paro de obreros
« metalúrgicos », particularmente los cerrajeros, que piden la jornada de nueve
horas. La reivindicación y la solidaridad con los huelguistas se extienden más allá
de las fronteras, habitualmente bien establecidas, de los oficios. Unas actitudes de

90 Ya, en 1892, la prensa local oye entre otros gritos (« ¡ Mueran los burgueses ! », « ¡ Viva la revolución
social ! ») alusiones a la huelga general (El Noticiero Bilbaino, 30-I-1892).
91 En el caso del gran conflicto que los socialistas quisieron en vano hacer ejemplar –la huelga des las fábricas
Larios en Málaga (abril de 1894) –, no se evocó la posibilidad de llamar a una huelga general.
92 Era la continuación de la organización catalana Solidaritad obrera cuyo manifiesto inaugural salió, el 25-VII-
1907.
93 En una sesión del parlamento en la que se debate de la huelga de Barecelona, el presidente del consejo,
Sagasta admite para los once primeros meses de su ministerio (hasta principios de febrero de 1902) un
número de 600 huelgas. El movimiento se acentua en lo que queda de año (Diario de Sesiones de Cortes,
sesión del 18-II-1902). Como término de comparación, en el año 1890, excepcional con respecto a los
anteriores y a los pôsteriores, el número de huelgas hubiera sido de 267 (Cf.: RALLE, M. « Las huelgas
antes y después del Primero de Mayo (Los conflictos españoles entre 1886 y 1864 : la irrupción del Primero
de Mayo », Estudios de Historia Social. Madrid. n. 54-55, año 1991, p. 68)

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MICHEL RALLE

apariencia violenta llevan a las autoridades a declarar el estado de sitio. El motivo


de su iniciativa era también político : la huelga ponía en duda la capacidad del
régimen para asegurar el orden público tal como la proclamaba desde su proceso
de establecimiento a partir el golpe de estado contra la República del general Pavía
en enero de 1874. Recurrir más frecuentemente a medidas de suspensión de las
garantías constitucionales era una manera de afirmar que el régimen ni se dejaba
intimidar ni cambiaba94. Podían ser drásticas : la prensa de Barcelona se quedó más
de una semana sin poder salir.
La mayor movilización social de principios de siglo se suele explicar por los
cambios económicos, los de la « segunda » revolución industrial, y las iniciativas
fiscales de un estado que tenía que racionalizar sus gastos después de la reciénte
guerra de Cuba. Pero también bastantes variantes de orden político prolongaban la
dinámica de crisis acentuada por la derrota y susceptible de alimentar los discursos
anarquistas, los cuales también encontraban justificaciones en las iniciativas de la
corriente en otros paises –ya se mencionó el impacto del sindicalismo revolucionario
francés. una serie de situaciones políticas que suscitaron reacciones propiamente.
Tenía varias fuentes políticas el deseo de presencia de los núcleos anarquistas.
La tensión ya la alimentaban las actitudes de la referencia conservadora cuya
visión patrimonializada del estado seguía intacta. Venía evocando incluso la vía de
un mayor autoritarismo cuyos temas se precisan entre el Gobierno Silvela de 1899
y la propuesta de « Revolución desde arriba » de Antonio Maura después de su
primer gobierno (1903-1904). Esa perspectiva autoritaria suscitaba, por supuesto,
reacciones de los núcleos anarquistas los cuales también la podían ver en las
propuestas nuevas y a veces contradictorias del « regeneracionismo » –Joaquín  168
Costa llegó a desear la venida de un « cirujano de hierro ». Las nuevas formas de
movilización política republicana incitaban, ellas también, a constituir una respuesta
de tono revolucionario. Con las iniciativas de Lerroux en Barcelona se difundía un
tipo de presencia popular – también se manifestaba en otras ciudades como en
Valencia Blasco Ibañez95. Con un lenguaje ambiguo, pero radical, justificaba que
se intentara integrar si no parte de los medio populares al menos sectores de las
clases medias que se contentarían con excesos verbales. Aunque no consigue un
éxito electoral el intento de Costa de entrar en el campo político con la « Unión
de productores » y las llamadas « clases neutras » también refuerza los enfoques
radicales por su insistencia en denunciar las estructuras de poder tradicional –hace
del « caciquismo » un tema político central96. Los enfrentamientos sobre lo que
se veía como « autoridades » eran un motivo de intervención para la militancia
anarquista ya que podía usar contra ellos las temáticas de descalificación de
las querencias autoritaristas. Hasta entonces el componente anarquista más
ideológico había encontrado las dificultades ya evocadas para hacerse más visible.
Pero ahora podía creer en la posibilidad de llevar a la base social obrera a asumir
el enfrentamiento decisivo y global que las distintas variantes del anarquismo
consideraban como central. Son significativas de una nueva capacidad de
movilización las publicaciones que desarrollan el tema de la huelga general, El
Productor (su segunda época ») y La Huelga General97. Como es sabido, Francisco

94 CALLEJA, Eduardo González. La razón de la fuerza, Madrid: CSIC, 1998 , p. 19-73.


95 Cf.: CULLA I CLARÀ, J. B. El republicanisme lerrouxista a Catalunya (1901-1923). Barcelona: Curial, 1986 y
JUNCO, J. Álvarez. El emperador del Paralelo. Madrid: Alianza, 1990. Para la actividad de Blasco Ibánez, cf.:
REIG, R. Blasquistas y clericales. Valencia: Institució Alfons el Magnamim, 1986.
96 Un análisis articulado del pensamiento de J. Costa en MAURICE, Jacques; SERRANO, Carlos. Joaquín Costa:
crisis de la Restauración y populismo. Madrid: Siglo XXI, 1977.
97 El primer número de la segunda época de El Productor sale en Barcelona el 6-VII-1901, el de La Huelga

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PRIMER ANARQUISMO ESPAÑOL Y CULTURA OBRERA (1868-1910)

Ferrer apoya y, en gran medida, orienta el segundo periódico, haciéndose eco del
debate que tiene lugar a nivel internacional precisamente sobre la huelga general y
reproduciendo bastante de lo que escriben los órganos del llamado « sindicalismo
revolucionario » francés98.
Detrás de la nueva visibilidad que, con ocasión de la huelga general, adquiría
en Barcelona el conjunto al que pertenecía un sindicalismo con recuerdos
antiautoritarios y los círculos libertario más ideológicos99, subsistían sin embargo
las tensiones. Indudablemente hay más energía en la lucha de los huelguistas y
asumen objetivos más ambiciosos, pero éstos se siguen expresando en términos
reivindicativos incluso si insisten más en el papel de una amplia solidaridad que
deja de obedecer a las pautas formales de antes. Así lo dice un manifiesto de los
« metalúrgicos » en huelga :

Compañeros, [...] seguid en la lucha emprendida hasta conseguir que


los patronos metalúrgicos abran los talleres a sus obreros con la jornada
de 9 horas; seguid prestando vuestro simpático apoyo a una causa tan
justa y haréis que la dignidad obrera quede respetada y apreciada de
todo el universo. Un esfuerzo más y la victoria es nuestra. …. Adelante,
pues, que al lado de nuestra causa que es la de ellos, están nuestros
hermanos de Sabadell, Tarrasa, Manresa y otros que no tardarán en se-
cundarnos en la lucha por la razón y la justicia. / ¡Trabajadores todos:
unión y solidaridad! ¡Viva la huelga general100!

En este texto la « dignidad obrera », a pesar de mostrar su capacidad para


 169 dar un alcance «  universal  » al conflicto, tiene el mismo carácter central que la
defensa prioritaria de la identidad obrera de los años 1870 y 1880. En cambio no
aceptan ni un objetivo que consideran como reducido –el de la jornada de trabajo–
ni el recurso al sintagma « huelga general » quienes, más claramente anarquistas,
interpretan, en órganos militantes relativamente leidos, la huelga de los obreros
metalúrgicos como el inicio de aquel enfrentamiento decisivo que llevaría más
lejos. El que los huelguistas llamaran «  general  » su conflicto porque implicaba
todos los oficios del ramo y porque había suscitado la solidaridad de otros oficios
frente a la reacción severa de las autoridades no significaba que habían salido de
una huelga esencialmente económica –no llegaban a decir de objetivo únicamente
obrero101. Era preciso darle otro contenido y hasta usar otras palabras ya que
según La Huelga General en pleno conflicto de los metalúrgicos de Barcelona : « [...]
muchos huelguistas van a la huelga como los republicanos a los banquetes del 11 de
febrero. [...] No podrán, recurriendo a ella pacíficamente, emanciparse del salario,
su mayor yugo opresor102 ». Los enfrentamientos de 1902, con suspensión de las
garantías constitucionales, ayudaban, de momento, a proponer que en adelante
las huelgas violentas se considerasen como las únicas que pudieran beneficiar a
los obreros. Reducir a resultados de orden reivindicativo las modalidades de una
lucha de dimensión poco corriente es significativo tanto de la distancia que se

General, el 15-XI-1901.
98 No es el caso de PERE, Gabriel. « Sindicalismo y huelga ». En : BONAMUSA, Francesc (ed.). La Huelga
general, Ayer, n. 4, 1991, Madrid: Marcial Pons, 1991, pp,33-34.
99 Cf.: CALLEJA, G. Op. cit., p. 304 y ss.
100 Citado por RIQUER, Borja de. Lliga regionalista: la burguesía catalana i el nacionalismo (1893-1904).
Barcelona: Edicions 62, 1977, p. 344.
101 El uso de « huelga general » para conflictos que antes no se definían como tales se confirma en
el recurso más frecuente a la fórmula. En, 1903, en las minas de Bilbao, la huelga de los mineros se
define de entrada como « huelga general » (cf.: Instituto de Reformas Sociales. Informe referente a
las minas de Vizcaya, Madrid, 1904). Un relato del enfrentamiento en FUSI, J. P. Op. cit., p. 230-243.
102 La Huelga General. Barcelona, 25/01/1902.

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MICHEL RALLE

quería introducir con las conductas consideradas sólo sociales como con la relativa
permanencia de éstas. Un manifiesto anarquista distribuido en los días clave del
conflicto barcelonés ya le daba como objetivo la « revolución social » :

De los que trabajan que nadie se mueva, que todos sepan matar el ego-
ísmo de los vampiros acaudalados, soportando el carecer en silencio,
el hambre para todos. [...] Por consecuencia, alto; que todos efectúen
el paro del trabajo desde mañana mismo, y demostraremos a la clase
directiva y capitalista que sin los obreros, a quienes desprecian, no es
posible la vida social. ¡Viva la revolución social!103!

En el congreso de 1870, A. Lorenzo evocaba, en la frase ya citada, el paso de


la interrupción del trabajo a la situación de impotencia de los burgueses. La visión
repetida en 1902 no había perdido su carácter relativamente paradójico. Reconocía
por una parte que la revolución social había de salir forzosamente, y con algo de
violencia, de las iniciativas de los sectores que componen el trabajo asalariado. Se
mantenía sin embargo la ambigüedad de la inserción del cambio revolucionario
en un espacio social del que también se desconfiaba –el que La Huelga General del
25 de enero, atribuyera a la mayoría de los obreros la incapacidad a salir de sus
costumbres es, al fin y al cabo, muy significativo. En aquel principio de un nuevo
siglo la relación con lo que muchos anarquistas veían como una especificidad
obrera positiva seguía siendo fuente de dificultades para definir una vía de acción.
Tal vez sorprenda que la tensión habitual entre las dos expresiones obreras que
componen los movimientos obreros nacionales, la sindical y la política, afecte también
una situación atípica en la que la sindical quiere rechazar las formas de la negociación  170
en las que se inscribían casi todas sus versiones europeas. La inserción social en unos
colectivos obreros solicitados para hacer evidente la ruptura que suponía introdujo
una segunda referencia con una lógica propia. Al fin y al cabo empezó como algo
problemático el encuentro que la corriente libertaria juzgaba indispensable.

Recebido em 01/05/2013
Aprovado em 05/06/2013

103 Citado por El Liberal.Madrid, 18/02/1902.

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Caboclos, extrativistas e operários:
a formação da mão de obra industrial
na Amazônia nos anos de 1940*
Adalberto Paz**

Resumo: Este artigo pretende analisar o contexto de formação de uma classe ope-
rária industrial na década de 1940 no extremo norte amazônico, atual estado do
Amapá, a partir das noções de trabalho, cidadania e sociedade estabelecidas du-
rante o Estado Novo. Partindo dessa realidade específica, pretende-se demonstrar
como uma população ainda fora dos ditames de produtividade e regularidade ca-
pitalistas foi integrada a tais exigências, associadas aos objetivos de desenvolvi-
mento propostos como alternativa ao que era considerada uma região atrasada,
econômica e culturalmente, em relação aos grandes centros do país.

Palavras-chave: Classe operária, mineração industrial, Amazônia, Amapá.

Abstract: This article aims to analyze the context of forming an industrial working
class in the 1940 sin the far northern Amazon, the current state of Amapá, from the
notions of work, citizenship and society established during the Estado Novo. Ba-
sed on this specific situation, it is intended to demonstrate how a population still
outside the dictates of capitalist productivity and regularity was integrated to such
requirements, associated with development objectives proposed as an alternative
to what was considered a backward region, economically and culturally, in relation
to major centers of the country.

Keywords: working class, industrial mining, Amazon, Amapá.

Amazônia: auge e decadência


No começo do século XX, as duas maiores cidades amazônicas, Belém e Ma-
naus, viviam toda a opulência proporcionada pela economia da borracha, a partir do
apogeu de exploração e de comercialização iniciado há algumas décadas. Um surto
impressionante, talvez comparável apenas ao seu desmoronamento igualmente

* Algumas das reflexões neste artigo são resultado da pesquisa apresentada na dissertação intitulada “Os
mineiros da floresta: sociedade e trabalho em uma fronteira de mineração industrial amazônica (1943-1964)”,
defendida no Programa de Pós-Gradua­ção em História Social, da Unicamp, no dia 14 de março de 2011, sob
a orientação do Prof. Dr. Fernando Teixeira da Silva. Parte da pesquisa foi financiada por uma bolsa de
Mestrado do CNPq. Agradeço as considerações feitas ao trabalho acima citado pelos professores Alexan-
dre Fortes, Claudio Batalha, Michael Hall e Paulo Fontes.
** Universidade Federal do Amapá. Doutorando na Universidade Estadual de Campinas

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ADALBERTO PAZ

vertiginoso. Contudo, bem antes que os interesses da crescente industrialização


mundial levassem ao cultivo da hevea brasiliensis no Sudeste Asiático e precipitas-
sem a falência dessa sociedade, os limites do extrativismo gomífero já eram discuti-
dos pelas autoridades nortistas brasileiras. Um dos principais incômodos era repre-
sentado pelo receio de apoiar suas economias sobre um produto “selvagem” — em
vez de agrícola ―, obtido de maneira irregular, dada a sua localização dispersa e
sua produtividade sazonal.1 Não por acaso, aliás, foram justamente essas caracte-
rísticas que impediram a Amazônia de concorrer com a borracha asiática, cujas téc-
nicas de cultivo e cujo volume de produção foram concebidos especialmente para
atender as demandas das fábricas europeias, em particular, a automobilística.
Duas questões chamam a atenção quando observamos mais de perto as
especificidades do auge da borracha na Amazônia e suas consequências para os
anos posteriores ao seu declínio. A primeira, conforme destacado por Barbara
Weinstein, foi o fato de que essa economia quase não modificou as relações e os
“modos tradicionais de produção e troca” estabelecidos desde a era colonial para
a exploração de outros produtos como o cacau, óleos e madeiras, com a diferença
de que as redes de relações comerciais no século XIX se tornaram bem mais com-
plexas e sofisticadas.2 Em outras palavras, a forma como se obtinha o produto
ainda era essencialmente um tipo de coleta: o seringueiro tinha que percorrer as
“estradas” (como eram chamados os locais por onde se distribuíam naturalmente
as árvores de seringa), realizando sucessivos cortes e a instalação dos recipientes
para o recolhimento do látex, árvore por árvore, durante dias, realizando também
― por meio de métodos indígenas ― a coagulação artesanal do produto para o
transporte. Tudo geralmente sozinho.3
Outro importante aspecto dessa economia foi a excessiva concentração das
 172
riquezas em torno das elites residentes nas duas capitais amazônicas. Embora
muitos estudos tenham demonstrado as significativas transformações urbanas e
culturais características da Belle Époque, o fato é que muito pouco dessa moderni-
dade e dessa prosperidade ultrapassou os limites dos centros comerciais e finan-
ceiros de Belém e Manaus.4 Como demonstrou Cristina Cancela, analisando o caso
do Pará, as estratégias para a manutenção, para a restrição e para o domínio sobre
os ganhos obtidos com a produção gomífera passavam, inclusive, pelo estabele-
cimento de sucessivas alianças matrimoniais entre a antiga elite paraense deten-
tora de terras e fazendas de gado e importantes comerciantes e proprietários de
estradas de seringa e casas aviadoras5 — a maioria dos quais eram portugueses
― como forma de manter e ampliar sua condição de classe dominante, diante das
mudanças que vinham ocorrendo ao longo do século XIX.6

1 Não era raro ver os presidentes da Província do Pará justificando a incipiente agricultura local devido
às “facilidades” do extrativismo de subsistência e o envolvimento de grande parte da população com
a extração da borracha. Cf.: Pará. Relatório apresentado ao exm. senr. Dr. Francisco Maria Corrêa de Sá
e Benevides pelo exm. senr Dr. Pedro Vicente de Azevedo por ocasião de passar-lhe a Administração da
Província do Pará, no dia 17 de janeiro de 1875. Belém: Typ. de F. C. Rhossard, 1875, p. 60. Sobre o assunto
ver: QUEIROZ, Jonas Marçal de. Artífices do próspero mundo novo: colonos, migrantes e imigrantes em
São Paulo e no Pará (1868-1889). Tese (Doutorado em História Social), USP, São Paulo, 2005, p. 39-55.
2 WEINSTEIN, Bárbara. A borracha na Amazônia: expansão e decadência (1850-1920). São Paulo: HUCITEC-
EDUSP, 1993, p. 30-31.
3 O que não significa que o seringueiro não pudesse, em alguns casos, ter ou constituir família nos seringais.
Essa família poderia até mesmo ajudá-lo em outras atividades produtivas ou de subsistência. Cf.: OLIVEIRA
FILHO, João Pacheco de. O caboclo e o brabo. Notas sobre duas modalidades de força de trabalho na
expansão da fronteira amazônica no século XIX. Encontros com a civilização brasileira. v. 11, 1979.
4 Cf.: SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle Époque (1870-1912). Belém: Paka-Tatu, 2002.
5 Estabelecimentos que forneciam principalmente alimentação e ferramentas aos seringueiros, por meio de
um sistema de crédito, mas com valores hiperinflacionados em relação ao preço comum nas cidades.
6 CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha (Belém 1870-1920). Tese
(Doutorado em História), USP, São Paulo, 2006.

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CABOCLOS, EXTRATIVISTAS E OPERÁRIOS...

Assim, como resultado da pouca diversificação econômica regional, de téc-


nicas de produção rudimentares, de experiências agrícolas frustradas e da restrita
circulação das riquezas para além das capitais, a maior parte da Amazônia man-
teria, ainda, por muito tempo o mesmo padrão de sustentabilidade conhecido há
séculos, baseado no extrativismo (comercial ou de subsistência) como principal
atividade com a qual se ocupava a maior parte da sua população, por todo o seu
extenso território.
A partir da década de 1920, a região que compreende o atual estado do Amapá
se tornaria palco de algumas tentativas colonizadoras oficiais. Nesse momento, o
governo brasileiro enviou uma comissão às proximidades da fronteira com a Guiana
Francesa, no intuito de estabelecer as bases para uma experiência agrícola que
possibilitasse uma ocupação mais efetiva daquele território. Desse modo, nos pri-
meiros meses de 1921, chegavam “os materiais necessários à construção de um
hospital, da casa de administração e de uma escola, além de grande cópia de ferra-
gem, instrumentos de lavoura e de uma pequena serraria a vapor, para facilitar a
construção das casas dos colonos”7 — a maioria dos quais eram cearenses atingi-
dos pela grande seca de 1915-19198 ― que ocupariam o Núcleo Colonial Cleveland.
Em pouco tempo, porém, Cleveland integrou a longa lista de fracassos em
colônias agrícolas no Pará.9 Todavia, o governo federal não demorou a dar outro
destino à infraestrutura já existente naquele local. Transformada em colônia penal,
Clevelândia do Norte passou a ser o destino de muitos dissidentes, anarquistas,
comunistas e demais “indesejáveis” ao poder público em regime de exceção, a
 173 partir da chamada Revolução de 1924. Muitos jamais retornaram aos seus estados
de origem, pois, segundo Paulo Sérgio Pinheiro, um relatório encaminhado ao Mi-
nistro da Agricultura de Artur Bernardes informava “que, em 1926, dos 946 prisio-
neiros desterrados para Clevelândia, 444 haviam morrido”.10 Após 1927, com o fim
do estado de sítio, foi feita uma nova tentativa de retomar as pretensões agrícolas
em Clevelândia, tornando-a ainda um posto avançado do Exército Brasileiro. Mas,
com o regresso dos últimos prisioneiros ao Centro-Sul do país, o destacamento foi
sendo paulatinamente transferido até que, “em 1930, já não havia mais militares
em Clevelândia”.11

7 “A Noite, 7 abr. 1921”, apud ALICINO, Padre Rogério. Clevelândia do Norte. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército, 1971, p. 86.
8 ROMANI, Carlo. Clevelândia, Oiapoque ― aqui começa o Brasil: trânsitos e confinamentos na fronteira com
a Guiana Francesa (1900-1927). Tese (Doutorado em História), Campinas: IFCH - Unicamp, 2003, p. 108-120.
Sobre o impacto da seca de 1915─1919 no Ceará, e seus personagens sociais e políticos durante a criação
das frentes de serviço do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS, ver: CASTRO, Lara
de. “Avalanches de flagelados” no sertão cearense: retirantes-operários e engenheiros na lida das obras
contra as secas. Fortaleza: DNOCS/BNB-ETENE, 2010.
9 O nome “Cleveland” teria sido uma homenagem ao presidente estadunidense Grover Cleveland, em vir-
tude do alinhamento da diplomacia brasileira com aquele país, objetivando apoio nas questões de limites
internacionais com potências europeias, entre o final do século XIX e início do século XX. A existência de
uma cidade intitulada Clevelândia, no Paraná, teria motivado a mudança do nome da colônia instalada no
Oiapoque para “Clevelândia do Norte”. Cf.: SAMIS, Alexandre. Clevelândia: anarquismo, sindicalismo e
repressão política no Brasil. São Paulo: Imaginário, 2002, p. 158-160.
10 PINHEIRO, Paulo Sérgio. Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil. 1922-1935. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 95. Sobre Clevelândia, ver também: BRITO, Edson Machado de. Do sentido
aos significados do presídio de Clevelândia do Norte: repressão, resistência e a disputa política no debate da
imprensa. Dissertação (Mestrado em História), PUC/SP, 2008. Para uma análise sobre “a vida nas prisões” a
partir da repressão do Estado aos diversos tipos de movimentos sociais, operários, militantes e segmentos
populares de forma geral, na primeira metade do século XX, ver: FERREIRA, Jorge. Trabalhadores do Brasil:
o imaginário popular. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 99-122.
11 ROMANI, Carlo. Clevelândia, Oiapoque — aqui começa o Brasil. Op. cit., p. 383.

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ADALBERTO PAZ

A Amazônia nos anos de 1940: o caso do Amapá


Na década de 1940, a política federal para a Amazônia ambicionava a sua inte-
gração ao restante do país por meio da chamada “Marcha para o Oeste”. Apoian-
do-se em um discurso que preconizava a existência de “vazios demográficos” no
interior brasileiro, o governo Vargas pretendia incentivar fluxos migratórios para
esses espaços, o que incluía o Norte do país. Pode-se considerar, contudo, que
uma das medidas de maior impacto para a Amazônia durante o Estado Novo não
foi concebida exclusivamente para aquela região. Trata-se da criação de cinco ter-
ritórios federais: Amapá, Rio Branco, Guaporé, Ponta Porã e Iguaçu ― desmem-
brados dos estados do Pará, Amazonas, Mato Grosso, Paraná e Santa Catarina ―,
a serem administrados diretamente pelo governo federal, por meio de intervento-
res nomeados pelo presidente.12 Um dos objetivos era justamente criar condições
necessárias para o desenvolvimento de regiões periféricas, mas estrategicamente
importantes, entre outras coisas, por abrigarem fronteiras internacionais.
De fato, a decisão em tornar o Amapá um território federal não encontrou
resistência entre as autoridades paraenses; muito pelo contrário, parecia ser uma
resposta às sucessivas dificuldades econômicas locais, não muito diferentes das
encontradas no restante da Amazônia, com o agravante de que o Amapá não vi-
veu as transformações e o fluxo financeiro que se restringiram às capitais, embora
sempre tenha se mantido diretamente sob influência econômica e administrativa
de Belém, desde a fundação das vilas de Macapá e Mazagão, no século XVIII.
Sob esse aspecto, o primeiro governador do Amapá, Janary Gentil Nunes13,  174
tinha como principal desafio alcançar os objetivos intrínsecos à própria criação do
território federal, a partir de uma realidade caracterizada pela ausência de ativi-
dades produtivas que possibilitassem uma escalada de desenvolvimento satisfa-
tória, dentro dos padrões da moderna sociedade capitalista. Em qualquer um dos
segmentos que compunham a produção econômica local (borracha, castanha-do-
pará e outras sementes oleaginosas, madeiras, peixe salgado e o grude de peixe,
ouro, couro de boi, gado e peles de animais silvestres), a natureza era quem dire-
cionava os trabalhos, determinando fatores que controlavam invariavelmente a
quantidade e, portanto, a oferta dos produtos. Era preciso levar em conta a época
do ano, o regime de marés fluviais e oceânicas, a ocorrência de determinadas es-
pécies nativas neste ou naquele lugar, a descoberta de algum novo veio aurífero e
infinitos outros detalhes que apenas os próprios amazônidas conheciam ou sabiam
reconhecer.
Nos anos de 1940, especificamente, havia dois grandes segmentos econômi-
cos extrativistas sendo praticados, respectivamente, nas regiões Sul e Central do
território amapaense: o vegetal, com a coleta da castanha-do-pará e da borracha;
e o mineral, com a garimpagem do ouro. Embora cada atividade exigisse um tipo
de conhecimento específico, muitos trabalhadores desenvolviam mais de uma ati-
vidade durante o ano, de acordo com a região em que viviam e com o que pudesse
ser mais vantajoso em determinado momento.

12 Decreto-Lei n.º 5812, de 13 de setembro de 1943.


13 Janary Nunes era natural de Alenquer (no estado do Pará) e, após sair da Escola Militar do realengo, no Rio
de Janeiro, serviu como Oficial do Exército em cidades como Petrópolis, Curitiba e Florianópolis. Também
esteve no Pelotão Independente do Oiapoque e estava comandando a 1.ª Companhia Independente de
Metralhadoras Antiaéreas em Belém, quando foi nomeado por Getúlio Vargas para governar o Amapá, em
27 de dezembro de 1943, aos 31 anos de idade. Cf.: BENEVIDES, Marijeso de Alencar. Os novos territórios
federais. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946, p. 75.

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A colheita da castanha-do-pará era uma atividade de grande destaque entre


os rios Jari, Cajari e Vila Nova, no Sul do Amapá. Um artigo na Revista Brasileira de
Geografia, de 1943, descreve assim a atividade:

A colheita se inicia quando todos os frutos começam a cair das árvores,


o que se dá em fins de janeiro. [...] Em vista da altura da copa a colheita
se realiza no chão. Na própria mata, os colhedores partem os frutos
para retirarem as amêndoas [castanhas], comumente em número de
12 a 22 em cada ouriço [invólucro que contém as castanhas]. O traba-
lho obedece à disciplina sazonária. [...] Armada uma barraca singela
sob a floresta, com uma cobertura fortemente inclinada para o chão,
a fim de evitar o perigo da queda imprevista dos volumosos e pesados
frutos, dentro dela espera o trabalhador dos castanhais (apanhadores,
carregadores, etc.) o momento que, agitados pelos ventos, os galhos
passam a desprender todos os ouriços maduros. Cautelosamente dei-
xa, então, o abrigo e passa a encher o paneiro, (às vezes uma cangalha)
de frutos encontrados pelo chão. Realizada a primeira colheita, nova-
mente se recolhe à barraca-esconderijo a fim de aguardar a nova queda
dos frutos.14

Como se pode notar, havia um perigo iminente na coleta aparentemente fácil


da castanha. Devido à altura de quase trinta metros da Bertholletia excelsa (árvore
de castanheira) e ao peso de cerca de um quilo dos ouriços que caem a cada sopro
dos ventos, ser atingido na cabeça por um desses invólucros poderia ser fatal. Por
conta disso, não foram poucos os castanheiros que morreram tragicamente no
 175 exercício das suas funções.
A extração do látex da seringueira para a obtenção da borracha também
possuía dinamismo próprio, sendo encontrada em abundância nos municípios de
Macapá e Mazagão. Um relato de 1942 afirmava ser o seringalista (chefe, patrão
ou dono do seringal) “a réplica amazônica do fazendeiro de gado, ou de café, das
outras regiões do país”, e explicava as principais características do serviço, distin-
guindo os trabalhadores de acordo com sua origem e área de atuação:

Os seringueiros, filhos da região, trabalham nos seringais envelhecidos


da área restrita às ilhas e terras planas do baixo amazonas. [...] imigran-
tes do Ceará exercem a profissão nas cabeceiras dos rios. [...] o primeiro
é o seringueiro das ilhas, sendo o segundo o seringueiro das cabeceiras,
ou dos afluentes remotos. [...] seja qual for o seu domínio, o equipa-
mento do seringueiro se reduz à faca, balde, tigelinhas, bacia, buião,
fôrma ou tariboca. [...] O das ilhas embarcado na montaria [canoa], só
depois de nascido o sol, parte para o trabalho, na vazante da maré, ves-
tindo calças de algodão, blusa, gorro de pano à cabeça, levando balde,
terçado, e espingarda. [...] o seringueiro das cabeceiras é um madruga-
dor que, às três horas, se encontra, sem demora, preparado para a luta,
trajando calça e blusa, borzeguins de borracha, de fabricação própria,
ostentando terçado na cinta e rifle a tira-colo. Na cabeça, exibe o capa-
cete de latão, sobre o qual assenta a lamparina de querosene, auxílio
para o serviço de corte “à noite”.15

Segundo Antônio Teixeira Guerra ― um geógrafo que visitou o Amapá nos


anos de 1940 —, no Sul do Amapá era comum que muitos seringueiros também
fossem castanheiros. Isso era possível porque os trabalhadores desempenhavam

14 IBGE. Tipos e aspectos do Brasil: castanhais. Revista Brasileira de Geografia, jul.-set. 1943, p. 487-489.
15 IBGE. Tipos e aspectos do Brasil: seringueiros. Revista Brasileira de Geografia, abr.-jun. 1942, p. 127.

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suas atividades de acordo com o nível dos rios e com o índice pluviométrico de
cada região em determinadas épocas do ano. Assim, durante o período das chuvas
― entre os meses de janeiro e abril — os trabalhadores apanhavam as castanhas
nos médios e altos cursos dos rios; e na estiagem ― entre os meses de setembro
e dezembro – dedicavam-se à extração do látex das seringueiras, nos baixos cur-
sos. Nos meses intercalados ― maio a agosto — coletavam sementes oleaginosas
como murumuru, ucuuba, andiroba, patoá, copaíba etc.16
Após a coleta dos produtos, os trabalhadores os negociavam com o serin-
galista (no caso da borracha) ou com o barracão (casa de comércio situada estra-
tegicamente nos pontos de parada obrigatória das cachoeiras ou bocas dos rios),
no caso das castanhas. Porém, na prática, os barracões negociavam diversos pro-
dutos trazidos pelos caboclos, como por exemplo, peles, farinha e látex também.
Tanto os barracões quanto os seringalistas negociavam com os produtores
diretos por meio do sistema de aviamento. Esse sistema consistia no repasse an-
tecipado de mercadorias ou ferramentas, em forma de crédito, aos produtores.
Estes, por sua vez, tinham o valor do seu débito compulsoriamente abatido de
acordo com a quantidade de produto entregue aos barracões ou para o seringa-
lista. Porém, como o valor das mercadorias e das ferramentas era sempre muito
superior ao valor pago pela castanha ou látex, os coletores acabavam contraindo
uma dívida impagável com seus credores ou patrões.
Entre os anos de 1899 e 1948, o maior latifundiário, seringalista e dono de
barracões em atividade no Amapá foi José Júlio de Andrade. Os domínios do “Co-
ronel José Júlio”, como era popularmente conhecido, estendiam-se desde a cidade
de Almeirim e Porto de Móz, no estado do Pará, até a porção Sul do Território Fe-
 176
deral do Amapá, num total de aproximadamente três milhões de hectares. Muitos
castanheiros e seringueiros viviam sob a autoridade de José Júlio e continuaram
vivendo condição semelhante após ele decidir vender suas propriedades a um grupo
empresarial português que criou três grandes empresas para a comercialização
da borracha e da castanha: a Jarí Indústria e Comércio, a Companhia Industrial do
Amapá e a Companhia de Navegação Jarí S.A.17
Apesar do nomadismo que caracterizava as tradicionais atividades de serin-
gueiros e castanheiros, Lúcio de Castro Soares destaca que a maior vantagem dos
povoamentos baseados neste tipo de exploração vegetal era a formação do que
ele chamou de “centros de convergência humana”, que funcionavam como verda-
deiras “bases de penetração, pontos de partida ou focos de irradiação das entradas
na floresta”, servindo ao mesmo tempo como entrepostos distribuidores dos pro-
dutos florestais e centros do comércio regional. Esse tinha sido o caso do Amapá,
afirma Soares, até que os preços da borracha sofressem uma forte queda no início
do século XX, causando um drástico refluxo populacional.18 Mesmo assim, a explo-
ração da seringueira fora a que mais conseguira criar núcleos de povoamento entre
as regiões dos rios Jari, Cajari, Maracá, Ajuruxi, Vila Nova, Matapi e Amapari.
Se o povoamento baseado no extrativismo vegetal era instável, maior preca-
riedade havia naqueles surgidos ao redor dos garimpos. Embora possuíssem grande

16 GUERRA, Antônio Teixeira. Estudo Geográfico do Território do Amapá. Rio de Janeiro: IBGE, 1954, p. 190-191;
226-294.
17 Em 20 de março de 1967, o grupo português revendeu o espólio de José Júlio e seus empreendimentos
para um empresário estadunidense, Daniel Keith Ludwig. Este foi o início de outro grande e polêmico pro-
jeto econômico no Amapá: o Projeto Jarí. Cf.: LINS, Cristóvão. Jarí: setenta anos de história. Rio de Janeiro:
Dataforma, 1991.
18 SOARES, Lúcio de Castro. Contribuição ao estudo da ocupação humana do Território do Amapá. Boletim
da Secção Regional do Rio de Janeiro da Associação dos Geógrafos Brasileiros, ano II, n.2 e 3, p. 23-25.

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capacidade de atração populacional em curto espaço de tempo, o fim do “rush”


geralmente implicava dispersão e esvaziamento humano da área. No início da dé-
cada de 1940, a maioria dos garimpos localizados nos rios Oiapoque, Cassiporé, Cal-
çoene, Araguari e Vila Nova estava em franca decadência e praticamente extintos.

A intenção e o gesto: relações de força em um


“espaço vazio”
Não obstante as constantes intervenções dos órgãos oficiais de imprensa e
propaganda do governo de Janary Nunes, como o jornal Amapá e a rádio Difusora
― para que o homem comum amapaense adotasse um estilo de vida sedentário,
constituísse uma família estável e cultivasse hábitos saudáveis de higiene e mora-
dia ― a própria iniciativa governamental incentivava um intenso deslocamento de
trabalhadores e sua dispersão pelo interior do Território, recompensando aqueles
que descobrissem determinados tipos de minerais economicamente aproveitáveis:

Já se vem observando estes últimos dias, certo movimento de traba-


lhadores que rumam para as ricas regiões estanhíferas do rio Amapari.
É o começo, estamos certos, de uma nova era para a vida econômica
do Amapá, que sempre guardou adormecido em seu solo e entranhado
em seu sub-solo (sic) tão grande tesouro. A iniciativa oficial foi o toque

 177 de reunir. [...] Não será de admirar, portanto, vermos em breve enorme
fluxo beneficiador de braços.19

Segundo Alfredo Gama, outro pesquisador que esteve no Amapá no início da


década de 1940, a habitação típica não só dos mineradores de ouro, mas também
da maioria dos caboclos com quem teve contato, era construída com materiais da
própria floresta, de modo que “num abrir e fechar de olhos está instalado otima-
mente, tendo no momento que necessitar toda a matéria-prima ao alcance de sua
mão”. De aspecto frágil e provisório, era prontamente abandonada logo após o
esgotamento dos depósitos auríferos. Tal habitação era chamada pelos próprios
moradores de carbet ou carbé. Gama nos oferece uma descrição bastante detalhada
da sua estrutura, a partir de suas observações no vale do rio Oiapoque:

a não ser por um cipó muito resistente, é construído exclusivamente


com o assaizeiro (sic). Os troncos mais grossos servem de esteio e os
mais finos, que rachados ao meio recebem o nome de juçara, servem
para construir as paredes e o assoalho; o teto é inteiramente coberto
com folhas, que sendo bem trançadas por um perito, abrigam tão bem
quanto as melhores telhas. Toda a construção é amarrada com fortíssi-
mos cipós que existem em grande abundância em toda a região. Esco-
lhem dois dos maiores troncos e depositam paralelamente da porta do
carbé até dentro do rio, e está feito o porto.20

Na região de Santa Maria, no rio Vila Nova, o relatório do diretor do Depar-


tamento de Produção do governo territorial, Arthur de Miranda Bastos, descreve
de forma desoladora a atividade aurífera naquela região, segundo ele, explorada
de forma desordenada por “garimpeiros ignorantes”. Nesse cenário caótico, “não se
atravessa o lugarejo ― uns trinta casebres ou três casas cobertas de palha, dispostos

19 Amapá, 14 jul. 1945, p. 2.


20 GAMA, Alfredo. Um rio a serviço de dois povos. Belém, 1947, p. 57.

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de qualquer maneira ― sem se embaraçar com uma quantidade de valas, covões


e montes de terra, destroços daquelas explorações”. Terminava afirmando “a
perfeita possibilidade de transformação da atual garimpagem, incerta e precária,
numa indústria de mais alto rendimento”, utilizando o trabalho de especialistas na
descoberta e no aproveitamento de novas jazidas.21
Em livro publicado em 1947, Arthur Bastos reafirmou as suas críticas em rela-
ção à forma tradicional de extrair o ouro nos garimpos de Santa Maria. Analisando
a descrição que ele próprio fez das suas viagens, é razoável supor que Bastos ten-
tou de alguma maneira interagir com os garimpeiros e faiscadores, com o intuito
de lhes “orientar” os serviços, por meio de “conselhos”, no que deve ter sido re-
chaçado, pois, além de ignorantes, os trabalhadores lhe pareceram bastante arro-
gantes também. A reação deles lhe soou como absurda, pois

se os faiscadores fossem todos perfeitos entendidos na profissão, seu


esforço teria melhor recompensa. Muitos, entretanto, mal aprendem
a identificar o cascalho [pedaço de terra onde se localiza o ouro], con-
sideram-se mestres e não aceitam mais conselhos. O resultado é que,
com seu trabalho desordenado, não conseguem aproveitar mais do
que uma parte do ouro existente no terreno. Lavam aqui e ali, arbitra-
riamente, quando deviam abrir as catas (buracos), umas seguidas às
outras, sem desprezar nenhuma extensão de cascalho.22

A presença de uma autoridade pública dizendo como deveriam fazer algo


que muitos faziam há anos ― talvez décadas ― além de ser algo novo, certamen-
te não foi muito bem visto pelos garimpeiros naquela ocasião. Para trabalhadores
acostumados a ir de um lugar a outro, sempre por conta própria, desempenhando  178
suas atividades de maneira independente e sem nenhuma supervisão, a interfe-
rência de um estranho em seu modus operandi provavelmente lhes pareceu igual-
mente arrogante e impertinente.
Outra característica marcante nas áreas de garimpo era o elevado custo de
vida. Em geral, trocavam-se gêneros de consumo por ouro em pó, a um “câmbio”
de vinte cruzeiros por grama (em outros lugares esse valor poderia ser acrescido).
Com base nisso, mas sem divulgar os valores correspondentes aos alimentos nes-
sas regiões, Arthur Bastos calculava que um garimpeiro precisaria obter, no míni-
mo, dois gramas de ouro, por dia, para poder se sustentar na região do Vila Nova.23
Desse modo, de acordo com o primeiro Relatório das atividades do Governo
territorial, de 1946, a maior parte da população do Amapá vivia no interior do Ter-
ritório, esparsamente distribuída, “isolada em casas miseráveis, na zona de influ-
ência dos barracões ou casas de comércio que transacionam as matérias-primas”
que eram obtidas na natureza.24
Entretanto, mesmo em Macapá, capital do Território, muitas das constru-
ções também eram bastante rudimentares. Em 1946, durante as homenagens a

21 BASTOS, A. de Miranda apud. NUNES, Janary. Relatório das atividades do Governo do Território Federal do
Amapá em 1944. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946, p. 29.
22 BASTOS, A. de Miranda. Uma excursão ao Amapá. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947, p. 42.
23 Em junho de 1948, o jornal Amapá divulgou uma tabela de preços, de acordo com pesquisa realizada
nos meses de janeiro a maio nas cidades de Macapá, Amapá, Mazagão e Oiapoque. Tomando-se como
referência a média geral dos valores praticados naquele ano, a quantia de Cr$20,00 era capaz de comprar
aproximadamente: 1 kg de Arroz (Cr$4,59), 1 Kg de feijão (Cr$6,96), 1 kg de açúcar (Cr$5,52) e 1 kg de
farinha de mandioca (Cr$2,04). Esses valores servem apenas como base comparativa, já que o difícil acesso
às áreas de garimpo, a distância em relação à sede dos municípios e a especulação tendiam a encarecer
bem mais os produtos que chegavam ao interior do Território. Cf.: Custo da vida: médias mensais. Amapá,
12 jun. 1948, p. 3.
24 NUNES, Janary. Relatório das atividades do Governo do Território Federal do Amapá em 1944. Op. cit., p. 7.

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Veiga Cabral ― considerado o “herói da libertação do Amapá” na questão do Con-


testado entre Brasil e França ―, Janary Nunes discursou criticando “as palhoças,
sem higiene nem conforto, como se faz comumente nos bairros mais afastados”.
Aproveitou ainda para anunciar o aumento dos salários do funcionalismo público
e reclamou “da maneira pela qual a população, principalmente os proletários, vem
tratando sua alimentação”, desprezando, por exemplo, a ingestão de legumes,
mesmo sendo distribuídos gratuitamente pelo governo.25
As reclamações envolvendo alimentação e produção de alimentos eram
igualmente recorrentes entre as autoridades no Amapá. Em seu primeiro relatório
trimestral, Roque de Souza Penafort, prefeito do Oiapoque, expressava angústia
em relação aos fracassos da sua administração, e de outras anteriores, na tentativa
de realizar uma produção agrícola que pudesse abastecer a cidade e as localidades
próximas. Segundo ele, as culturas davam resultado praticamente nulo; “milho,
feijão e arroz é como se não se cultivasse”. E sentenciava: “se não descobrirmos
um novo método, se não houver uma modificação, continuaremos produzindo
apenas farinha, em quantidade tão reduzida que pouco sobra do consumo dos
próprios agricultores”.26
Alguns pesquisadores acreditavam que a falta de experiência, ou mesmo de
hábito, e o emprego de métodos inadequados no trato com o solo inevitavelmente
levavam os caboclos amazônidas a experiências agrícolas malsucedidas, criando
“aversão e impotência” entre populações acostumadas a obter seu sustento por
meio do extrativismo. Para Sócrates Bonfim, diante de tantas incertezas, não havia
segurança ou garantia alguma que incentivasse o abandono das “safras extrati-
 179 vas” em favor das “safras agrícolas”, principalmente porque o que estava em jogo
era a sobrevivência imediata dessas populações.27 Haveria, portanto, um misto de
desconfiança e tradicionalismo que fazia com que o homem comum não corres-
pondesse às expectativas econômicas governamentais na medida em que eles
gostariam. Se para o governo tratava-se apenas de aumentar a produção agrícola
para dinamizar o mercado interno, para o caboclo a questão principal era se ele
teria o que comer com a sua família.28
À época em que Gama, Soares e Guerra desenvolviam seus estudos, portanto,
a população amapaense já estava sob a vigência de um projeto político que visava
à profunda modificação dos seus padrões culturais e formas de reprodução social,
pois, a partir das diversas “vozes” que se sobressaem nos documentos oficiais,
percebe-se que as constantes críticas não se voltavam contra os tipos de produtos
que alicerçavam a economia regional, e sim à maneira como essa produção estava
sendo realizada. Aqui, mais uma vez, recorremos às impressões registradas por
Alfredo Gama, após conviver várias semanas entre as populações do Norte do Ter-
ritório Federal do Amapá. Segundo ele:

25 As homenagens prestadas à memória de Veiga Cabral. Amapá, 18 maio 1946.


26 “Relatório das Atividades da Prefeitura Municipal do Oiapoque Referente ao 1.º Trimestre de 1950” apud.
GUERRA, Antônio Teixeira. Estudo Geográfico do Território do Amapá. Op. cit., p. 243.
27 BONFIM, Sócrates. Reflexões em torno da valorização da Amazônia. Mimeo. 1951. Sobre as expectativas
em torno das vantagens não só econômicas, mas civilizatórias, advindas de uma “Amazônia agrícola”, e a
crítica ao extrativismo segundo diversos pensadores, ver: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. “O caboclo
e o brabo. Notas sobre duas modalidades de força de trabalho na expansão da fronteira amazônica no
século XIX”. Op. cit.,p. 101-147.
28 James Scott pesquisou tema muito semelhante a este no Sudeste Asiático, onde, devido a diversas contra-
riedades de ordem natural e econômica, os camponeses também tinham que se defrontar com a escolha
entre manter formas tradicionais de cultivo, mas que garantiam sua sobrevivência ou arriscar o empre-
go de técnicas mais sofisticadas, mas com possível comprometimento da sua segurança alimentar. Ver:
SCOTT, James C. The moral economy of peasant: rebellion and subsistence in Southeast Asia. New Haven.
Yale University Press, 1976, p. 35-55.

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O caboclo do Oiapoque é demasiado moderado e de uma calma imper-


turbável: apesar de ser bom atirador, e mesmo que a munição custe
muito caro como alegam, a carne, a pele da caça adquirida, [se quises-
sem] daria um bom negócio. Mas ele é teimoso e não sai desse princí-
pio: uma vez morta meia dúzia de caças, ele pára; põe a espingarda ao
ombro e fuma tranquilamente seu cigarro e calmamente começa a volta
rumo à margem [do rio], onde fica sentado, esperando o companheiro
que às vezes é ainda mais calmo; quando o companheiro chega, o ca-
boclo pergunta: “matou alguma coisa”? E o companheiro responde:
“Hum, Hum!”, que é de significado afirmativo [...] chegando no carbé,
desembarca toda a carga e entrega para a mulher, e fica de cócoras na
porta, até a hora do chibé [mistura de farinha de mandioca com água].
[...] Assim trabalha o caboclo do Oiapoque para garantir o sustento da
família que, na maioria, é composta dele, a mulher e uma dúzia ou mais
de filhos.29

Essa forma específica de administrar o tempo e os recursos disponíveis não


poderia mais ser tolerada. Embora o jornal Amapá buscasse utilizar uma lingua-
gem muito mais polida, cuidadosa e até laudatória, ao se referir aos trabalhadores,
o primeiro Relatório das atividades do Governo do Território não precisava medir
tanto as palavras. Sendo um documento de circulação restrita, direcionado exclu-
sivamente ao presidente da República, Arthur Bastos, por exemplo, podia utilizá-lo
para afirmar abertamente que a atividade mineradora no Amapá estava entregue
às mãos de trabalhadores estúpidos e incapazes, que cavavam a terra de maneira
bruta e primitiva, desperdiçando a riqueza que, certamente, técnicos treinados e
habilitados dariam melhor aproveitamento.
Por outro lado, um artigo publicado em janeiro de 1947 criticava o nomadis-  180
mo e a inconstância típicos das áreas de garimpo (mas também de seringueiros
e castanheiros), porém, como em outros casos, ressaltava a atuação do governo
territorial para com essas populações, destacando principalmente sua ação civili-
zatória por meio da criação de escolas, postos de saúde e, mais uma vez, a garantia
dos direitos dos trabalhadores. Segundo o articulista,

antes de o Amapá ser integrado, em definitivo, no seio da nacionali-


dade, pululavam nas zonas mineiras dezenas de aventureiros, raças,
idiomas e costumes. Corroídos pela ambição e obcecados pelo desejo
de auferir uma fortuna fácil, embrenhavam-se pelas mais ínvias regiões
[...]. Mesmo quando o ex-contestado [região disputada entre o Brasil
e a França] passou ao domínio da União, continuaram a proliferar na
região limítrofe com a Guiana, audazes contrabandistas [...]. A alimen-
tação precária causava o desgaste daqueles infelizes e heroicos desco-
bridores de riquezas, que eram presa fácil das mais terríveis moléstias
tropicais, morrendo à míngua, dessorados e esquecidos. [...] Muitos
benefícios têm sido disseminados pelo atual governo pelas regiões em
que trabucam (sic) os atuais garimpeiros, e dentre estes avultam esco-
las, postos médicos, postos fiscais e repartições policiais, fomentando
a instrução, cuidando da saúde pública, zelando pela manutenção da
ordem nesses lugares. Os trabalhadores das minas não vivem, agora, à
mercê das contingências, porque a plena consciência dos seus direitos
e a convicção no rigor da justiça são as melhores armas de que dispõem
para prosseguir no seu labor honesto.30

Afirmavam-se, assim, muitos dos elementos discursivos públicos (em contra-


posição aos relatórios “internos”) frequentemente dispensados aos trabalhado-
res. Em primeiro lugar, os garimpeiros não mais eram os protagonistas ignorantes

29 GAMA, Alfredo. Um rio a serviço de dois povos. Op. cit., p. 47-48. (itálico no original).
30 A vida dos garimpeiros. Amapá, 11 jan. 1947. (grifos nossos).

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observados por Bastos, e sim vítimas de uma realidade anterior a eles e que os
oprimia, mas que a iniciativa governamental vinha salvar. Segundo, apesar de te-
rem sido relegados ao esquecimento por governos passados, esses trabalhado-
res resistiram a toda precariedade, como verdadeiros “heróis desbravadores” e
seriam agora reconhecidos por isso. E, finalmente, a valorização do elemento e
das riquezas nacionais questionava a presença dos indesejáveis forasteiros, con-
trabandistas que “burlavam a escassa vigilância” e “escamoteavam grandes quan-
tidades de ouro para o estrangeiro”.
De fato, por muitos séculos sempre houve uma contínua e intensa circula-
ção ― tanto de pessoas quanto de mercadorias ― por meio das fluidas fronteiras
entre o Amapá e as possessões inglesas e francesas. Apesar de ser uma atividade
bem menos ativa na década de 1940 do que fora no início do século, a mineração
foi responsável pelo estabelecimento de diversos “crioulos” ― como eram cha-
mados os negros das Guianas inglesa e francesa ― no Amapá.

O início da mineração industrial na Amazônia e a


formação dos caboclos-operários
As incongruências entre as intenções do governo territorial, de um lado, e a
realidade encontrada no Amapá, de outro ― levando-se em conta que esta última

 181 não era tão “dinâmica” e nem facilmente domesticável quanto teriam desejado os
agentes públicos ―, aumentavam as dificuldades em ter que promover um impulso
de desenvolvimento e progresso, conforme as diretrizes estadonovistas preconi-
zadas para os territórios federais, mas também não impediram as ambições do
direcionamento político em vigor.
Janary Nunes era paraense e, inclusive, já conhecia a região do Oiapoque
antes mesmo de assumir o governo territorial, em janeiro de 1944. Pouco sabemos
a respeito do período em que Nunes viveu naquela região fronteiriça, servindo
ao Exército brasileiro. Ainda assim podemos supor que, de alguma forma, a ex-
periência de convívio com personagens típicos locais (seringueiros, garimpeiros,
crioulos, estrangeiros etc.) e a influência exercida por reminiscências de heroísmo
e riquezas minerais no antigo Contestado com a Guiana Francesa devem ter mar-
cado a trajetória de vida e pensamento do jovem militar.
Em decorrência desse mesmo contato, é possível que Janary tenha sido insti-
gado por estórias disseminadas por um imaginário popular muito comum em regi-
ões de garimpo, especulando sobre o que ainda poderia ser encontrado no subso-
lo amapaense. O próprio artigo publicado no jornal Amapá, citado acima, fala das
expectativas de “fortuna fácil” e lamenta a ausência de controle e aproveitamento
atribuídos a um estado fraco ― especificamente os governos da Primeira República
― que tantos prejuízos causaram à nacionalidade.
Partindo dessa hipótese, não é de se admirar que uma das primeiras medidas
do governo territorial, já em 1945, tenha sido a de concentrar esforços para que
fossem exploradas as jazidas de ferro do rio Vila Nova,31 mesmo sob o ataque de
ferrenhas críticas nacionalistas, vindas principalmente da capital federal, por Janary
Nunes ter cedido os direitos de exploração a uma empresa estrangeira: a Hanna

31 Segundo o jornal Amapá, as jazidas de ferro do rio Vila Nova foram descobertas em 1939 pelo geólogo
Fritz Ackerman, no lugar conhecido como “Santa Maria”, entre os municípios de Macapá e Mazagão. Cf.:
Amapá, 19 maio 1951, p. 3.

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ADALBERTO PAZ

Exploration Company. Durante vários meses entre os anos de 1946 e 1947, o jornal
Amapá publicou extensas reportagens acerca das potencialidades das jazidas de
ferro do rio Vila Nova. Contudo, a Hanna Exploration desistiu das jazidas, por consi-
derar que a quantidade de minério existente era insuficiente para cobrir os custos
e garantir os lucros da sua exploração.
Confiando na possibilidade de que fossem localizados outros depósitos de
ferro, Nunes ofereceu um prêmio a quem lhe trouxesse provas da existência desse
minério em qualquer lugar do Amapá.32 Ao ficar sabendo de tal prêmio, um “mas-
cate fluvial” chamado Mário Cruz levou amostras de algumas pedras escuras que
ele havia utilizado como lastro da sua embarcação, cinco anos antes, enquanto
vendia mercadorias pelos garimpos no interior do território, tal como faziam mui-
tos regatões nesse período.33 Após uma análise preliminar, o governador decidiu
enviar as amostras ao Departamento Nacional de Produção Mineral ― DNPM, no
Rio de Janeiro. A resposta revelar-se-ia surpreendente: tratava-se de manganês de
excepcional valor comercial e de teor superior a muitas das jazidas conhecidas no
mundo àquela época.34
A novidade surgiu em um momento delicado para a indústria mundial, pois,
em tempos de Guerra Fria, a Rússia havia suspendido as suas exportações de man-
ganês. A medida visava prejudicar diretamente os Estados Unidos e seus aliados
que dependiam do minério ― usado fundamentalmente na fabricação do aço ―
mas nada podiam fazer a respeito, pois o controle dos maiores depósitos mundiais
e o seu fornecimento estavam nas mãos de Stálin. Dessa forma, a ameaça de insu-
ficiência de manganês fez com que o Amapá passasse a ocupar lugar de destaque
nos debates internacionais que envolviam o abastecimento de reservas minerais
 182
estratégicas para a economia global.35
A divulgação sobre a descoberta e sobre a importância das jazidas de man-
ganês ocorreu durante as celebrações do 1.° de maio de 1946, em Macapá, em so-
lenidade no Cine–Teatro Territorial, com a presença de várias autoridades, “pondo
em evidência o papel do operário no mundo moderno; a perfeita legislação que
o ampara, livrando-o do problema das reivindicações, graças à ação do governo
de Getúlio Vargas”. E, apesar da maioria da população amapaense desempenhar
atividades rurais e extrativistas, a terminologia industrial já estava presente nas fa-
las oficiais, destacando, por exemplo, “a situação especial de proteção em que se
acha o operariado amapaense pelo descortino e pelo patriotismo do governador
do Território, que se revelou um amigo das classes trabalhadoras”.36 Encerrando
os discursos, Janary Nunes tomou a palavra e anunciou

32 Outros prêmios foram oferecidos no mesmo período: “Várias pessoas vêm informando e assegurando ao
governo a existência de Carvão de pedra no Território. A Divisão de Produção, devidamente autorizada
pelo governador, senhor capitão Janary Gentil Nunes, avisa à população, em especial aos garimpeiros e
faiscadores do Amapá, que o governo oferece um prêmio de Cr$20.000,00 àquele que trouxer ao seu
Diretor amostras e indicações que comprovem a existência e a localização real desse minério”. Prêmio de
vinte mil cruzeiros – Carvão de pedra. Amapá, 25 maio 1946.
33 A respeito dos regatões no Amapá no mesmo período, ver: CAMBRAIA, Paulo Marcelo da Costa. Na ilhar-
ga da fortaleza, logo ali na beira, lá tem o regatão: os significados dos regatões na vida do Amapá (1945-
1970). Belém: Açaí, 2008.
34 O encontro entre Mário Cruz e Janary Nunes, relacionado à descoberta do manganês, acabou sendo
utilizado pelo próprio governo como uma espécie de mito fundador de um novo momento para o Amapá,
após a criação do território federal. Cf.: PAZ, Adalberto Júnior Ferreira. Os mineiros da floresta: sociedade
e trabalho em uma fronteira de mineração industrial amazônica (1943-1964). Dissertação (Mestrado em
História Social), Campinas: IFCH – Unicamp, 2011, p. 24-28.
35 Gigantescos depósitos de manganês no Brasil: investigações de geólogos norte-americanos no Território
do Amapá. Amapá, 13 ago. 1949.
36 Os festejos em comemoração ao dia do trabalho. Amapá, 4 maio 1946.

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CABOCLOS, EXTRATIVISTAS E OPERÁRIOS...

a descoberta de um grande depósito de manganês no rio Amapary (sic),


de valor econômico considerável e que, associado à exploração do mi-
nério de ferro, vem desvendar um futuro de imprevisível riqueza para
o Território [...]. [afirmou ainda] que graças ao trabalho conjugado do
governo e do povo, tínhamos diante dos olhos os bons resultados dos
esforços despendidos na transformação significativa que se vinha ope-
rando no Território.37

O edital para aquisição dos direitos de exploração das jazidas de manganês


foi lançado no dia 26 de setembro do mesmo ano. Após uma concorrência acirra-
da, o Conselho Nacional de Minas e Metalurgia declarou vencedora a Sociedade
Brasileira de Indústria e Comércio de Minério de Ferro e Manganês (ICOMI), uma
das empresas que fornecia minérios para a Usina de Volta Redonda, no Rio de
Janeiro.38 Além desta, participaram do pleito duas outras empresas: a Hanna Coal &
Ore Corporation (associada à empresa que estava pesquisando o minério de ferro
do rio Vila Nova) e a Companhia Meridional de Mineração, subsidiária de um gigante
da mineração mundial: a United States Steel.
À parte os detalhes sobre valores e dificuldades na montagem desse com-
plexo de mineração industrial,39 é interessante notar as profundas transformações
provocadas por um projeto econômico desse porte em uma realidade como a que
existia no Amapá. Mesmo considerando-se que a área onde foram encontrados os
depósitos de manganês, chamada Serra do Navio, era extremamente isolada e o
acesso muito difícil devido à existência de inúmeras corredeiras no curso dos rios ―
o que por si só colocava importantes dificuldades de transporte e escoamento ―, a
 183 proporção do investimento, volume de trabalho e infraestrutura era impressionan-
te, inédito em grande parte da Amazônia, e não se restringia ao entorno da mina.
Podemos destacar quatro grandes instalações construídas em diferentes fa-
ses do empreendimento, entre as décadas de 1940 e 1960: um porto exclusivo
da empresa às margens do rio Amazonas, uma ferrovia com 200 km de extensão
ligando o porto à Serra do Navio, e duas cidades operárias projetadas especial-
mente para abrigar todos os funcionários empregados pela ICOMI no Amapá, jun-
tamente com suas famílias, dotadas de alojamentos e clubes recreativos diferen-
ciados por categorias funcionais e condição civil (solteiros ou casados, operários,
engenheiros etc.), escolas, hospitais, centro comercial, cinemas, restaurantes e
várias outras especificidades que as caracterizam como um exemplo clássico de
company towns, embora a própria ICOMI as chamasse de vilas operárias.40
Além de um constante aumento do fluxo migratório de outros estados do
Norte e do Nordeste para o Amapá a partir de 1944, houve uma importante modi-
ficação nas estruturas sociais e econômicas locais, provocando rearranjos e deslo-
camentos internos. Muitos trabalhadores viram na instalação de um grande pro-
jeto de mineração a oportunidade de se desvencilharem de suas antigas atividades
extrativistas e dos constrangimentos impostos pelos barracões e seringalistas, e
não hesitaram em se dirigir rumo à área manganífera no rio Amapari, em busca de
alguma colocação no empreendimento, tal como registrou Antônio Guerra:

37 Idem.
38 Após ser criada em 8 de maio de 1942, essa empresa passou por algumas mudanças de capital, status jurí-
dico e razão social, até estabelecer-se em definitivo com o nome de Indústria e Comércio de Minérios S.A
ou, simplesmente, ICOMI.
39 Sobre valores de empréstimos, capitais, receitas etc. Ver: DRUMMOND, José Augusto; PEREIRA,
Mariângela de Araújo Povoas. O Amapá nos tempos do Manganês: um estudo sobre o desenvolvimento de
um estado amazônico 1943-2000. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.
40 Sobre as diferenças entre company towns e vilas operárias ver: PAZ, Adalberto Júnior Ferreira. “Capital,
trabalho e moradia em complexos habitacionais de empresa: Serra do Navio e o Amapá na década de 1950”.
In: AMARAL, Alexandre, et. al. Do lado de cá, fragmentos de História do Amapá. Belém: Açaí, 2011, p. 461-468.

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ADALBERTO PAZ

O recrutamento de mão-de-obra está ocasionando a existência de uma


corrente de população que deixa o baixo curso da região dos lagos e
do [rio] Araguari para subir em direção a Serra do Navio. Os barracões
do curso inferior do Araguari e também as sedes das fazendas da re-
gião dos lagos estão sendo atingidos mais diretamente com a saída dos
caboclos para a zona das minas. Esse êxodo ocasiona o abandono da
coleta das sementes oleaginosas, da extração do látex e também das
fazendas de gado das áreas referidas.41

Não há relatos do uso de agenciadores por parte da mineradora ou do gover-


no territorial para a contratação de trabalhadores sem especialização, chamados
genericamente de “braçais”. Embora a ICOMI tenha publicado alguns anúncios
em jornais de Macapá e Belém, o mais provável é que as amplas redes de sociabi-
lidades tenham sido o principal meio de divulgação sobre as frentes de trabalho
no Amapá. Já em relação às funções que exigiam algum conhecimento especiali-
zado, foi necessário um esforço bem maior para conseguir atrair um conjunto de
profissionais variados, desde operadores de máquinas pesadas até engenheiros,
médicos e professores.
A significativa oferta de mão de obra não especializada mantinha um nível re-
gular de trabalhadores à disposição da mineradora para substituir aqueles que não
se adequassem àquilo que para a maioria era novidade: uma rígida disciplina de
trabalho caracterizada pelo cumprimento de horários e pela realização de tarefas.
Após a conclusão das duas primeiras fases do empreendimento, correspondentes
à pesquisa sobre a viabilidade econômica da exploração e sobre a construção da
infraestrutura básica, a ICOMI passou a fazer exigências de conduta social e moral  184
especialmente direcionadas aos seus operários, associando a normatização do tra-
balho à instituição de um padrão de família, definindo valores e papéis baseados
em noções de gênero, competências e atitudes ideais.
Nesse sentido, a ideia de construir duas company towns no interior da flo-
resta amazônica cumpria um papel fundamental que ultrapassava a simples dis-
ponibilização de moradia aos funcionários. Além da fixação propriamente dita, tal
como demonstrou José Leite Lopes em suas pesquisas sobre vilas operárias no
Nordeste,42 a ICOMI almejava alcançar dois objetivos básicos: proporcionar atra-
tivos aos empregados graduados como forma de incentivo para que eles aceitas-
sem ir morar em uma região absolutamente isolada, e adequar os trabalhadores
braçais a uma rotina de vida e trabalho operário-industrial. Para isso, cada detalhe
das cidades da empresa (incluindo móveis, instalações sanitárias, localização das
casas) foi pensado de maneira a causar nos trabalhadores braçais a impressão de
que eles estavam “evoluindo” a uma condição social muito superior ao que esta-
vam acostumados nas margens dos rios e igarapés.
Havia um “modelo ideal” de família operária. Antes de tudo, somente poderia
ocupar uma das residências da mineradora os casais que fossem oficialmente casa-
dos, comprovando sua condição por meio do registro em cartório. Os solteiros ocu-
pavam alojamentos específicos ― devidamente vigiados e inspecionados ―, cujo
acesso às áreas comuns, como clube e campos de futebol, ocorria por vias projeta-
das deliberadamente para que casados e solteiros (especificamente os homens e as

41 GUERRA, Antônio Teixeira. Estudo Geográfico do Território do Amapá. Op. cit., p. 297.
42 Cf.: LOPES, José Sérgio Leite. Fábrica e Vila operária: considerações sobre uma forma de servidão
burguesa. In: LOPES, José Sérgio Leite, et. al. Mudança Social no Nordeste: a reprodução da subordinação,
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Ver também: LOPES, José Sérgio Leite. A tecelagem dos conflitos de
classes na cidade das chaminés. São Paulo: UNB/Marco Zero, 1988.

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CABOCLOS, EXTRATIVISTAS E OPERÁRIOS...

mulheres) não se cruzassem, ou tivessem o mínimo de contato possível. É claro,


porém, que havia os momentos de transgressão dessa ordem, como os encontros
proibidos entre funcionários e empregadas domésticas nas matas que circunda-
vam Serra do Navio ou nos próprios alojamentos, mesmo que a punição aos aman-
tes fosse a demissão.43
Zenira Vieira da Silva lembra que, ao chegarem a Serra do Navio, sua mãe
e seu pai receberam uma cartilha na qual constavam as regras e as condições de
convívio elaboradas pela ICOMI, especificamente direcionadas às famílias de ope-
rários.44 Segundo tais normas, cabia, sobretudo à sua mãe, Sebastiana Vieira da Silva,
a manutenção e a limpeza da residência, além das demais funções corriqueiras
atribuídas a uma dona de casa, de maneira que seu pai, Ambrósio Lúcio da Costa,
deveria ocupar-se tão somente em cumprir suas obrigações com o trabalho e, as-
sim, prover o sustento da família.
Alguns itens da cartilha não eram apenas “orientações”. Para a esposa, a res-
ponsabilidade pela higiene e pela conservação da casa, por exemplo, estava muito
além da intenção de agradar o marido e proporcionar um ambiente saudável a
todos, pois a ICOMI realizava inspeções, sem aviso prévio, em qualquer uma das
casas das vilas primária e intermediária, a fim de verificar a maneira como a família
estava vivendo. Essas visitas eram feitas periodicamente pela equipe de inspeção
sanitária da empresa, mas eventualmente ocorriam sempre que a company town
recebia autoridades políticas ou grupos de estudantes, especialmente da área de

 185 saúde, vindos de diferentes regiões do país. Em caso de uma avaliação negativa
da residência, a mulher era chamada em particular e repreendida sobre as falhas
encontradas. Se o problema persistisse, então, o homem seria advertido pelo seu
supervisor direto sobre as possíveis medidas a serem tomadas. Finalmente, nas si-
tuações em que nenhum aviso produzisse o efeito esperado, a companhia poderia
demitir o funcionário e despejá-lo com toda a sua família.
Segundo a lógica da empresa, cada um dos aspectos relacionados ao cotidia-
no de trabalho e ao lazer dos operários solteiros e das famílias operárias ― que se
formaram ou que passaram a viver em Serra do Navio ― deveria ser conduzido de
maneira a garantir o cumprimento fiel de suas rotinas, atribuindo funções sociais e
responsabilidades econômicas, tornando a todos, enfim, elementos úteis e produ-
tivos aos desígnios da mineradora.45
O dia a dia de uma típica família serrana era baseado em uma clara distri-
buição de tarefas entre pai, mãe e filhos. As crianças deveriam estar na escola às
seis e meia da manhã, e lá permaneciam até o final da tarde. Os mineiros saíam
das suas casas e se dirigiam até as esquinas onde eram apanhados por caminhões
por volta das seis horas e quarenta e cinco minutos, para que pudessem iniciar os
trabalhos pontualmente às sete horas, quando soava um estridente apito na área
de mineração. Não havia tempo adicional de espera, nem condução reserva para
os retardatários. A jornada de trabalho era dividida em turnos de oito horas cada:
aqueles que iniciavam o serviço pela manhã, eram deixados em casa às onze horas,
para o almoço. Nesse momento, a comida já deveria estar pronta e posta sobre a

43 PAZ, Adalberto Júnior Ferreira. Os mineiros da floresta: sociedade e trabalho em uma fronteira de minera-
ção industrial amazônica (1943-1964). Op. cit., p. 145
44 Entrevista de Zenira Vieira da Silva, cedida ao autor em 2 de março de 2010.
45 Segundo Foucault, “o corpo só se torna útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso”. Cf.:
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. 34. ed. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 26.

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ADALBERTO PAZ

mesa pela esposa, pois ao meio-dia o operário retornaria para a mina, até o final do
turno, às dezesseis horas, ou mais, se houvesse hora extra.46
À noite, o limite estipulado para a circulação de pessoas no interior de Serra
do Navio era até as vinte e duas horas, havendo certa tolerância para aqueles que
estavam assistindo a algum filme no cinema da companhia, de acordo com o tér-
mino da sessão. A partir daí, a vigilância começava as rondas para inibir aqueles
que porventura tentassem ultrapassar a imposição do horário, especialmente os
casais de namorados, sobre os quais existia uma atenção especial.
Dessa forma, toda a lógica de funcionamento de Serra do Navio preconi-
zava o abandono das antigas formas de sociabilidade, ritmo de vida e trabalho
que compunham o cotidiano dos caboclos amazônidas há séculos. A ideia de uma
sociedade devotada aos padrões de moralidade burguesa como a acumulação,
a produtividade rítmica e constante, o desprezo ao ócio e ao desperdício do po-
tencial de trabalho era uma perspectiva central no primeiro governo do Território
Federal do Amapá, o que explica o entusiasmo pessoal de Janary Nunes na con-
cretização do primeiro grande projeto de exploração mineral da Amazônia. E, não
obstante tenha sido um empreendimento privado, a mineração em Serra do Na-
vio se tornou pedra angular no processo de transformação econômica e cultural
da sociedade amapaense, conforme os anseios dos agentes públicos, a partir dos
anos de 1940.47

Considerações finais  186


A criação dos territórios federais no final do Estado Novo representou uma
iniciativa no sentido de impulsionar o desenvolvimento de áreas consideradas es-
tratégicas, mas bastante atrasadas economicamente. No extremo Norte do Brasil,
a realização de tais objetivos passou por uma série de reformas visando à transfor-
mação dos hábitos locais, abarcando aspectos não apenas relacionados ao traba-
lho, mas também socioculturais e familiares.
Logo após a instalação do primeiro governo territorial, a possibilidade de
exploração de grandes reservas minerais, como o ferro do rio Vila Nova e o manga-
nês do rio Amapari, parecia ser a melhor forma de viabilizar o alicerce econômico
necessário para realizar esse ambicioso conjunto de metas. A concretização dessa
escolha criou um ponto de inflexão tanto na história quanto na memória coleti-
va amapaense, tendo Janary Nunes como um personagem central, cuja complexa
relação entre o significado e a importância de suas ações políticas e as diversas
apropriações que ainda se faz delas, só muito recentemente começou a ser objeto
de investigação.
O fato é que a mineração industrial em Serra do Navio acabou se tornando
a principal atividade econômica do Amapá até o final do século XX, e o debate em

46 Sobre a importância dos papéis atribuídos aos gêneros na formação da classe trabalhadora envolvendo
uma company town ligada à mineração na América do Sul, ver: KLUBOCK, Thomas Miller. Contested
communities: class, gender, and politics. In: Chile’s El Teniente copper mine, 1904-1951. Durham and London:
Duke University Press, 1998. Do mesmo autor: “Morality and good habits: the construction of gender and
class in Chilean copper miner, 1904-1951”. In: FRENCH, John D. and JAMES. Daniel. The gendered worlds of
Latin American women workers: from household and factory to the union hall and ballot box. Durham and
London: Duke University Press, 1997, p. 232-263.
47 Outra importante base para a realização desse plano de governo foi o sistema público educacional. Cf.:
LOBATO, Sidney da Silva. Educação na fronteira da modernização: a política educacional no Amapá (1944-
1956). Belém: Paka-Tatu, 2009.

Revista Mundos do Trabalho | vol. 5 | n. 9 | janeiro-junho de 2013| p. 171-187


CABOCLOS, EXTRATIVISTAS E OPERÁRIOS...

torno dos seus benefícios ou malefícios ainda se mantém como um tema central
nas discussões sobre o passado, presente e futuro no extremo Norte do país. Mais
recentemente, a ênfase das críticas recaiu sobre os prejuízos ambientais causados
pelas décadas de extração do manganês, sendo que, em 1999, uma Comissão Par-
lamentar de Inquérito, instalada na Assembleia Legislativa do Amapá, constatou
que a ICOMI seria responsável pelos elevados níveis de contaminação por arsênio
e bário nos “mananciais superficiais que abastecem o sistema público de água da
capital e do município de Santana”,48 como resultado do seu processo de minera-
ção industrial.
Quanto aos caboclos-mineiros, suas reminiscências tendem a enfatizar o su-
cesso em conseguir “melhorar de vida”, superando as limitações impostas pelas
regras da companhia no interior das company towns, e o legado que cada um dei-
xou à família, muitas das quais constituídas durante os anos de vida e trabalho
como operários no interior da floresta.
Nesse sentido, entender as relações entre os direcionamentos políticos e
o impacto das suas decisões em uma sociedade como a existente no Amapá na
década de 1940 significa perscrutar o campo de possibilidades entre diferentes
tipos de desenvolvimento e a maneira como as pessoas percebem, incorporam e
atribuem sentido a essas transformações em suas vidas. Por outro lado, as dispu-
tas em torno do tema da valorização econômica da Amazônia, mais recentemente
polarizados entre a perspectiva de um aproveitamento “sustentável” dos recur-
sos naturais, em contraposição àqueles de reconhecida e histórica degradação
 187 ambiental, recolocam a problemática de uma estranha modernidade ― continu-
amente anunciada para a região ― na maioria das vezes exógena e indiferente às
especificidades locais.

Recebido em 30/10/2013
Aprovado em 15/05/2013

48 MONTEIRO, Clélio Roberto. “Recomendações de ordem técnica da comissão parlamentar de inquérito


que apura o processo de desmonte da ICOMI”. In: Assembleia Legislativa do Estado do Amapá. Relatório
final da CPI da ICOMI. Macapá: ALEA, 1999, p. 4.

Revista Mundos do Trabalho | vol. 5 | n. 9 | janeiro-junho de 2013| p. 171-187


De escravo a doutor: Euzébio de
Queiroz Coutinho Barcellos
Beatriz Ana Loner*
Miguel Angelo Vieira da Cunha Filho**
Ubirajara Soares Monteiro***

Resumo: Este artigo apresenta resultados de pesquisa sobre trajetórias de ex-es-


cravos  do extremo Sul do Brasil ― parte de um detalhado esquadrinhar da so-
ciedade pelotense e da comunidade negra urbana de Pelotas durante as décadas
finais da escravidão e da Primeira República. O enfoque recai sobre os trabalha-
dores urbanos, livres, cativos ou libertos, suas lutas, organização e atividades du-
rante a campanha da abolição e o primeiro período republicano. Acompanhando
as trajetórias desse grupo, responsável pela formação de uma desenvolvida rede
organizativa negra na cidade, foram encontrados elementos suficientes para tra-
çar a biografia de alguns deles, dentre os quais se apresenta aqui a trajetória de Eu-
zébio, escravo que trabalhou em uma charqueada e que, ao conseguir se libertar,
em meados da década de 1880, buscou novos rumos para sua vida, alcançando o
posto de médico licenciado e reconhecimento pela sociedade.

Palavras-chave: pós-abolição; libertos; escravidão; curandeirismo, charqueadas.

From slave to doctor: Euzébio de Queiroz Coutinho


Barcellos
Abstract: This article presents the results of a research on the trajectories of for-
mer slaves in the Brazilian south, part of a detailed picture of Pelotas black urban
community during the last decades of slavery and in the First Republic. The fo-
cus is on the urban workers, free, enslaved or freed, their struggles, organizations
and activities during the abolitionist campaign and the first republican period. Ac-
companying the trajectories of said group, responsible for forming a well devel-
oped  black network in the city, were found enough elements to follow a biog-
raphy on some of them, among which we present here a trajectory of Euzébio, a
slave that worked in a charqueada and that, once he managed to free himself, in
the mid 1880s, search for a new path in life, reaching the stance of licensed doctor
and recognized by society.

Keywords: post-abolition, slavery, freedmen.

* Professora visitante da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).


** Licenciado em História pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e professor da Escola La Salle Hipólito Leite.
*** Graduando em História pela UFPel; Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET).

Revista Mundos do Trabalho | vol. 5 | n. 9 | janeiro-junho de 2013| p. 189-213


BEATRIZ ANA LONER, MIGUEL A. V. C. FILHO, UBIRAJARA SOARES MONTEIRO

Faleceu, ontem, o benquisto cidadão, nosso amigo Sr. Euzébio de Quei-


roz Coutinho Barcelos, médico licenciado, contando a avançada idade
de 80 anos, viúvo e natural desse estado.
O corpo foi colocado em fina urna de madeira de lei, estilo francês, e
ricamente guarnecido com emblema prateado e acolchoado com veludo
roxo, e conduzido em carro de primeira classe, ao cemitério, onde ficou
depositado na catacumba da Irmandade da Nossa Senhora do Rosário
n. 49.
As cerimônias fúnebres tiveram lugar, com crescido acompanhamento,
a cargo da casa Constantino Ribeiro.
O extinto gozava de geral apreço, sendo sua morte muito sentida.
A exma. família enlutada apresentamos sentidos pêsames.1

Esta simples notícia, publicada num dos maiores jornais pelotenses ao final
da República Velha, pouco informa da extraordinária vida do falecido, o Dr. Euzé-
bio Barcellos. O fato de ter posses lhe propiciou um rico enterro, mas a extensão
do cortejo ficou por conta de seus relacionamentos, das sociedades de que partici-
pou durante sua vida e do respeito que mereceu na região. O resumido necrológio
passou por cima de questões vitais para a reputação do doutor Euzébio, pois, por
exemplo, não falou que ele fora membro do partido republicano na cidade, nem
que era muito ligado à Igreja Católica. Claro que essas informações poderiam, em
parte, ser deduzidas a partir da matéria jornalística. Afinal, o Diário Popular per-
tencia ao Partido Republicano Rio-Grandense, que governava o estado gaúcho há
décadas. Quanto à Igreja Católica, a proximidade poderia ser facilmente deduzida  190
da referência à irmandade, que consta no texto. E, sendo Irmandade do Rosário,
nos leva a suposições sobre as tonalidades mais escuras da pele do doutor Euzé-
bio, que o necrológio também houve por bem silenciar.
Mas a não informação sobre sua cor deve ser debitada na conta das práticas
jornalísticas seguidas durante a Primeira República, com o sentido de não mencio-
nar a cor de qualquer cidadão fora das páginas policiais, o que, aliás, só era feito se
a pessoa não fosse branca. Numa sociedade racialmente misturada, partia-se do
pressuposto de que a cor padrão fosse a branca e que outro tom de pele só mere-
cesse destaque quando a conduta do indivíduo fosse desviante.
Ora, muito longe disso estava a conduta do Dr. Euzébio, católico praticante
e muito chegado à hierarquia local da Igreja Católica, na qual atuou com denodo,
tanto em irmandades quanto na consolidação de associações operárias católicas
que desenvolvessem ideias de moderação e conformidade entre os trabalhado-
res, antes do que aquelas veiculadas pela Liga Operária e outras associações que
possuíam caráter ateu e socializante.2
Por outro lado, o necrológio informa que era médico licenciado, ou, dizendo
de outro modo, que teria licença para atuar como médico no estado, embora não
fosse formado, uma peculiaridade das leis gaúchas, feitas sob forte influência da
doutrina positivista. Desse modo, havia a possibilidade de que pessoas sem diplo-
ma, mas reconhecidas como curadores por aqueles que os procuravam, pudessem
requerer licença para montar consultório e atender seus pacientes ― exatamente
desse modo que o Dr. Euzébio atuara. E era reconhecido, pois foi dessa forma que
conseguira a maior parte dos imóveis e a fortuna que possuía antes de morrer.

1 Diário Popular, 07 jun. 1928.


2 Sobre as associações operárias e suas orientações ideológicas em Pelotas, ver: LONER, Beatriz. Constru-
ção de classe. Pelotas: EDUFPel, 2001.

Revista Mundos do Trabalho | vol. 5 | n. 9 | janeiro-junho de 2013| p. 189-213


DE ESCRAVO A DOUTOR: EUZÉBIO DE QUEIROZ COUTINHO BARCELLOS

Mas, o que torna a sua vida tão interessante e extraordinária para os his-
toriadores não está nesse necrológio ou em outros que porventura tenham sido
dedicados a ele. O que o tornava tão excepcional pouco havia sido mencionado
publicamente durante os últimos quarenta e oito anos de sua vida: ele nascera es-
cravo, e nessa condição viveu toda a sua juventude. Essa era uma dimensão oculta
de sua existência, a qual nunca se reportou depois de ter recuperado a liberdade.
Mas fora uma experiência marcante, pois debaixo da infame condição de
escravo, ele nasceu e viveu, alforriando-se apenas com mais de trinta anos. Sem
dúvida isso lhe trouxe marcas, tanto na educação quanto no modo de ver a vida e
nos traços de seu caráter. A condição3 de escravo de charqueada pela qual passou
não lhe tirou a ousadia — que o fez desfeitear publicamente alguns redatores e
jornalistas brancos em 1916 —, nem a agência e a criatividade que demonstrou
durante sua vida. E são essas exatamente as qualidades que interessam investigar
neste artigo. Esse filho de africanos teve uma trajetória ímpar, que se conseguiu,
em parte, desvendar, com a análise de múltiplas fontes, cartoriais e jornalísticas,
embora alguns pontos ainda permaneçam sem esclarecimento.

A origem na charqueada
Quando morreu, Euzébio estava recolhido em casa, devido à avançada idade
que lhe impedia de continuar a frequentar as associações de que gostava. Apesar
 191 disso, ainda estava à frente da Irmandade do Rosário, no cargo de diretor (no qual
aparecia um significativo “Dr. Precedendo seu nome).4 Essa foi a entidade na qual
mais constantemente ele se fez presente, desde seus tempos de cativo, e, de certo
modo, ela representava as duas dimensões em que se apoiou em sua vida: a Igreja
Católica, da qual era ativo participante, e a comunidade negra pelotense, na qual
se criou e da qual foi respeitado membro.
Euzébio nasceu em 05 de agosto de 1848; era filho da “preta Ângela, ambos
escravos de Cipriano Rodriguez Barcellos”, como consta de sua certidão de batis-
mo, datada de mais de um ano depois.5 Sua mãe aparece como nagô em alguns
documentos, como em sua carta de alforria e nos batismos de alguns de seus filhos
e, em outros, aparece como “de nação”. Segundo Scherer, a maioria dos escravi-
zados procedentes da África desembarcados ou presentes na vizinha cidade de
Rio Grande, porto pelo qual entravam todos os cativos para o estado, eram minas,
seguidos pelos nagôs.6 Reis afirma que as comunidades minas gaúchas eram nu-
merosas e organizadas e que, para aquela província, o termo mina consistia num
“guarda-chuva étnico”, abrigando “nagôs, jejes, haussás e outros grupos impor-
tados dos portos do golfo de Benim”7, ou seja, para o estado gaúcho, os termos

3 Meillassoux, em Antropologia da escravidão, distingue entre estado e condição do escravo. Estado seria o
fato de ser escravo, condição seria o uso que teria sua força de trabalho e, consequentemente, ele próprio,
na sociedade que o escravizava. Ou seja, em alguns casos, embora o estado fosse o de escravo, a condição
poderia ensejar uma melhor posição se constratada com outros que compartilhavam do mesmo estado.
Consideramos essa distinção importante em relação à “sorte” de Euzébio e seus irmãos. MEILLASSOUX,
Claude. Antropologia da escravidão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1995.
4 Jornal A Opinião Pública, Pelotas, 10 fev. 1928.
5 BISPADO DE PELOTAS. Livro 2 de Batizados de escravos de 1835 a 1852, folha 187, frente e verso, dia 13 de
setembro de 1849.
6 SCHERER, Jovani. A nação da liberdade: os minas e outros grupos de procedência em Rio Grande (1810-
1865). Comunicação apresentada no 3.º encontro “Escravidão e Liberdade”. CD ROM. Anais do 3.º encontro
“Escravidão e Liberdade”. Florianópolis, UFSC, 2007.
7 REIS, João José. Domingos Sodré um sacerdote africano. São Paulo: Cia. das Letras, 2008, p. 260.

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mina e nagô às vezes podiam ser intercambiáveis. Ao final, sua origem africana
será retomada, mas é melhor tratarmos de sua mãe agora.
Nascida por volta de 1828, segundo a idade que aparece no Documento de
Venda de 1862 (trinta e quatro anos) juntamente com todo o lote da charqueada em
que vivia, provavelmente Ângela fez parte dos africanos escravizados ilegalmente,
porque importados depois da lei de 1831.8 Seu nome consta em algumas cartas de
batismo dos anos de 1848 e 1849 como madrinha de outros africanos adultos do
plantel de Cipriano que estavam sendo batizados, mas não se conseguiu descobrir
seu assento de batismo nos livros da catedral São Francisco de Paula, em Pelotas.
Talvez tenha sido batizada em outro local, tendo em vista que muitos charqueado-
res debandaram da cidade durante os anos da Revolução Farroupilha.
Quanto ao pai biológico, pouco se sabe. Quando se qualificou como eleitor,
muitas décadas mais tarde, Euzébio informou ser filho de Cosme Rodrigues Bar-
cellos, mas seguramente não era filho de algum branco. Na extensa genealogia de
toda a família Rodrigues Barcellos, não consta nenhum Cosme, e Euzébio não era
considerado mestiço, mas preto. Havia um cativo carpinteiro com esse nome no
plantel de Cipriano, mas que teria cerca de quatorze anos, senão menos, quando
do nascimento de Euzébio. Esse Cosme, também africano, libertou-se em 1868, por
uma bela quantia9 e, provavelmente, é o mesmo que libertou Euzébio, anos mais
tarde. Quanto aos seus padrinhos, consta que eram Manoel Redozino Vaz e Ma-
ria José da Porciúncula Vaz, casados e médios proprietários de terras em Jagua-
rão.10 Apesar disso, seja pela distância ou por falta de interesse, não parecem ter
feito muito pelo seu afilhado.
Seu proprietário, Cipriano Rodrigues Barcellos, era dono de dois saladeiros
 192
em Pelotas, local em que sua mãe, e possivelmente seu pai, trabalhavam. O regime
disciplinar das charqueadas, aliado à péssima higiene e à concentração do traba-
lho em poucos meses, não deixava entrever muitas chances ao pequeno Euzébio.
O trabalho extenuante em época de safra, iniciado à meia-noite e prolongado até
parte da tarde seguinte era árduo, não poupava esforços e era feito de forma rús-
tica, prejudicando o corpo e a saúde dos trabalhadores envolvidos em alguma de
suas tarefas. Além disso, normalmente se prolongava de novembro a maio e era
realizado à beira do rio, com calor e insetos no verão e frio cortante no outono,
especialmente durante as madrugadas, momento em que se abatiam as reses. Na
entressafra, esses trabalhadores eram empregados em olarias, em sítios e na cons-
trução civil, erguendo os palacetes de seus senhores no centro urbano da cidade.11
Estabeleceu-se a existência de trinta a quarenta charqueadas12 entre 1780 e
1890, cada com vinte e nove a cem trabalhadores escravizados, sendo dispostas

8 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Documentos da Escravidão: Livro de Compra e
venda de Escravos. Porto Alegre: Corag, 2010, v.2, p. 83. Documentos de venda de escravos de Cipriano
Rodrigues Barcellos e Domingos Pinto França Mascarenhas a Cândido Barcellos e irmão, em 1/12/1862.
9 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Documentos da Escravidão: Catálogo Seletivo de
Cartas de Liberdade dos Municípios do Interior. v. 1. Porto Alegre: Corag, 2006, p. 487. (Doravante relacio-
nado como APERS, cartas de liberdade).
10 APERS. Inventário n. 617. Inventariado: Manoel Redozino Vaz, inventariante: Maria José da Porciúncula
Vaz, ano de 1874, fundo Jaguarão.
11 Sobre as condições de trabalho nas charqueadas, ver: GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas & ola-
rias: um estudo sobre o espaço pelotense. 2.ed. Pelotas: Editora da UFPel, 2001, p. 185-191; COUTY, Louis. A
erva mate e o charque. 2.ed. Pelotas: Seiva, 2000. Sobre as doenças que acometiam os seus trabalhadores,
ver: LONER, B; GILL, L.; SCHEER, M. Enfermidade e morte: os escravos na cidade de Pelotas, RS, 1870-1880.
História, ciência e saúde. Manguinhos, Rio de Janeiro, dez. 2012, v. 19, supl.1, p. 133-152.
12 Há uma certa divergência sobre seu número, constatada no Dicionário de História de Pelotas, organizado
por Beatriz Loner, Lorena Gill e Mario Osorio Magalhães, primeira edição, Pelotas: Ed.UFPel, 2010. Verbe-
tes: Charqueadas – autora Ester Gutierrez, p. 58 a 60 e Charqueadores- autor Mario Magalhães, p. 60 e 61.

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uma ao lado da outra, ao longo do Arroio Pelotas e da Costa do São Gonçalo. Dessa
forma, o chamado sítio charqueador pelotense parecia propício a levantamentos
de escravos, dos quais os senhores tinham muito medo, empregando rígida disci-
plina sobre os cativos, para evitar revoltas ou fugas.13 Se as primeiras não passaram
de ameaças, as segundas foram constantes e contínuas, o que invalida qualquer su-
posição de um bom tratamento por parte dos senhores. Apenas se pode dizer que
a alimentação desses trabalhadores seria mais rica do que dos cativos do restante
do Brasil, devido ao farto uso da carne, especialmente miúdos e costelas de gado.
A charqueada que serviu de berço a Euzébio estava localizada na chamada
Costa, na margem direita do arroio Pelotas, região hoje conhecida como Areal. Seu
proprietário, Cipriano Rodrigues Barcellos, era membro de uma poderosa família,
da qual vários irmãos se tornaram charqueadores na cidade. Por meio dos casa-
mentos, os Rodrigues Barcellos mantinham laços entre si e com outros empresá-
rios do ramo, o que levava a um constante rearranjamento dos estabelecimentos
saladerís e, logicamente, dos trabalhadores que elas continham.14 Em 1862, Cipria-
no decidiu retirar-se da gerência ativa de seu estabelecimento, em prol da firma
Cândido Barcellos e irmãos, da qual também fazia parte.15 Na oportunidade, pas-
sou o lote de escravos de uma de suas charqueadas para a firma, em uma venda
nominal a preço simbólico (cinquenta e seis escravos foram vendidos por apenas
R 1:400$) a seus sobrinhos, administradores da empresa.16
Essa venda possibilitou a visualização do conjunto completo de trabalhado-
res desse saladeiro: quarenta e seis cativos, entre os quais trinta e três homens,
 193 seis meninos e sete mulheres adultas. A não existência de meninas explica-se, em
parte, pelo fato de que algumas foram alforriadas ainda crianças, como aconteceu
com duas irmãs de Euzébio.17 Entende-se, pois, que essa transação consistiu ape-
nas em uma troca de administração e de propriedade dentro da família Barcellos,
portanto sem alterar a rotina diária, embora a entrada de mais dez trabalhadores
e a eventual troca de capatazes e feitores trouxesse tensão e incerteza ao plantel.
Contando, também, com mais dez trabalhadores masculinos pertencentes a
Mascarenhas, cunhado de Cipriano, a nova firma funcionou por alguns anos, mas

13 ������������������������������������������������������������������������������������������������������
O fato de a fronteira com o Uruguai estar a pouco mais de cem quilômetros a pé das charqueadas, poden-
do também ser alcançada por barcos, era um incentivo às fugas individuais para fora do país. Durante a
Revolução Farroupilha, muitos cativos foram levados pelos seus senhores para o Uruguai ou para fora do
espaço charqueador pelotense, como meio de proteger seus “bens”. Com isso, disseminou-se o conhe-
cimento entre a escravaria, mesmo a africana, sobre a realidade diferenciada do Uruguai e os caminhos
a serem palmilhados para as fugas. O Uruguai conseguiu extinguir a escravidão a partir de 1846, o que
trouxe vários conflitos com estancieiros rio-grandenses, que possuíam terra nos dois países, obrigando
o pequeno Uruguai a fazer várias concessões ao grande e escravocrata vizinho, especialmente durante
os primeiros anos. Mas essa situação serviu para quebrar a continuidade do território sob domínio do
escravismo, levando cativos do Brasil a buscar rotas de fuga para o Sul, para a liberdade além fronteira.
PALERMO, Eduardo. Cautivos em las estancias de la frontera uruguaya. Trafico de escravos em la frontera
oriental em la segunda mitad del siglo XIX. História em Revista, Pelotas, v. 16, dez. 2010, p. 7-24.
14 GUTIERREZ, Ester. Barro e sangue, mão de obra, arquitetura e urbanismo em Pelotas. Pelotas: Ed. da
UFPel, 2004.
15 Idem. Negros, charqueadas & olarias: um estudo sobre o espaço pelotense. 2.ed. Pelotas: Editora da UFPel, 2001.
16 APERS. Documentos da Escravidão, Livro de Compra e venda de Escravos. Porto Alegre: Corag, 2010, v.2,
p. 79 e seguintes. Documentos de venda de escravos de Cipriano Rodrigues Barcellos e Domingos Pinto
França Mascarenhas a Cândido Barcellos e irmão, em 1/12/1862. Cipriano e Domingos eram cunhados e Cân-
dido Barcellos era sobrinho e afilhado do primeiro. A análise dos documentos demonstrou serem comuns
“vendas” com valor baixo dentro das parentelas dos proprietários, provavelmente para não pagar taxas
elevadas de transmissão de propriedade.
17 Heduviges, sua irmã, foi batizada em 21/12/1851 (Bispado de Pelotas, Livro 2 de batismo de escravos, folha
274) e alforriada em 17/04/1854 (APERS. Cartas de Liberdade. v. 1, p. 419). Sua outra irmã, Julia, foi liberta
ao nascer. Ainda outras pequenas escravas de Cipriano também foram libertadas nestes anos, como Maria
Dandá, parda, filha de Justina, cuja carta de liberdade foi passada em 31/07/1847 (Idem, p. 414).

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terminou indo à falência e deixando dívidas aos sócios. Em 1868, quando da liqui-
dação da empresa, vinte e um desses mesmos trabalhadores foram vendidos para
o comendador Domingos Faustino Corrêa, de Rio Grande, integrando um lote de
trinta escravos, pelo preço total de R 33:000$000.18
A família nuclear de Euzébio sofreu várias alterações com essas mudanças.
Na primeira transação, de 1862, Euzébio tinha quatorze anos e já trabalhava como
servente de charqueada. Ângela, sua mãe, havia conseguido sua alforria um pouco
antes, embora condicionada à morte do senhor e com um ônus de R $500,00 a
ser pago em prestações.19 Mesmo assim, ela foi arrolada como escrava em 1862,
pois seu nome consta do lote da primeira venda. Esse equívoco foi desfeito no
inventário de Cipriano Barcellos, em 1869, e ela foi considerada livre para todos os
fins. Além dos três meninos, Ângela teve pelo menos mais duas filhas: Heduviges,
liberta em 1854 com dois anos e meio e Júlia, alforriada ao nascer, em 1862, pelo
seu padrinho, justamente um dos novos donos do estabelecimento.20 Esse apa-
drinhamento, e a liberdade conseguida no batizado, por Júlia, levam a pensar em
um possível relacionamento entre Ângela e o novo senhor, Cândido Barcellos, que
poderia ser o pai do bebê.
Ângela continuou a morar na casa do senhor, até a morte de Cipriano, em
1868. Cipriano teve o inventário de seus bens feito no ano seguinte, mas nele ainda
constam referências à Ângela, como a legalização de sua situação de liberta e a
compra de “onze covados de chita e um xale” para ela, que são deduzidos como
despesas pelo inventariante.21 Portanto, sabe-se que ela seguiu morando na casa
da charqueada até 1869, quando se perde sua pista.
A morte do senhor auxiliou alguns a conseguirem sua liberdade, como Cosme,
com trinta e dois anos, carpinteiro, e Lino, quarenta anos, pedreiro. Ambos eram
 194
africanos, estavam presentes na venda de 1862 e agora, seis anos depois, conse-
guiam a alforria pela quantia de R 1:200$000 o primeiro e R 1:350$000 o segundo.
A certidão de batismo de Lino foi feita em 1848, com ele já adulto, provavelmente
ao chegar, o que significa que conseguiu dinheiro suficiente para sua alforria em
vinte anos.
Não obstante a venda, Cosme e Lino continuavam ainda sob o domínio
legal de Cipriano, pois as alforrias22 registradas um mês depois da morte deste último
reportavam-se a ele. Cândido Barcellos e Cândido Alves Pereira, os novos donos,
passaram as cartas de liberdade, referindo-se a esses escravos como tendo sido
“recebidos de herança” do tio, Cipriano Barcellos. Assim, o documento da venda de
1862 foi contestado pelas próprias cartas de alforria, que reconheceram o direito de
propriedade de Cipriano sobre eles. Essa situação corrobora a ideia de que a tran-
sação de 1862 foi apenas uma forma de legalizar o aporte de capital empatado nos
trabalhadores escravizados na empresa, visto que Cipriano era o seu maior sócio.
O ano de 1868 foi aquele da venda do lote original para outro charqueador,
significando o fim da atividade empresarial desse ramo da família Barcellos, o que
abriu um momento de mobilização dos escravos com pecúlio, buscando liberta-
rem-se, antes da passagem a um novo senhor. Foi nesse momento que Cosme,

18 APER. Livro de compra e venda de escravos. v. 2, p. 130 e seguintes.


19 APERS. Cartas de Liberdade. v. 1, p. 426. A carta foi redigida “devido ao bem que me tem servido e por ser
mãe de três filhos: Euzébio, Teófilo e Domício”.
20 APERS. Cartas de Liberdade. v.1, p. 427. Ela nasceu em 01/07/1862 e foi batizada um mês depois, em
27/08/1862, o que denota uma grande rapidez em legalizar a situação da criança. Compare-se com Euzé-
bio, que foi batizado somente um ano depois de seu nascimento.
21 APERS. Inventário do comendador Cipriano Rodrigues Barcellos e sua mulher Rita Bernarda de Barcellos,
n. 681, ano 1969, maço 42, 1.º cartório de órfãos e provedoria, fundo Pelotas.
22 BISPADO DE PELOTAS, Livro 2 de Batismos de escravos , p. 121, data 5/3/1848.

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Lino e José conseguiram suas alforrias. Ângela, por sua vez, livrou-se da condicio-
nalidade de sua liberdade, com a morte de Cipriano e deve ter ido viver com suas
filhas já libertas na cidade. Restaram os irmãos, que tiveram diferentes destinos.
Tudo indica que foram utilizados para pagamento de dívidas da firma com credores
ou sócios, o que ocasionou a divisão familiar e sua dispersão entre outros senhores.
Os inventários da família Barcellos daqueles anos indicam que houve a falên-
cia do empreendimento saladeril e que restaram dívidas por anos a fio. Embora
a maioria dos cativos que trabalhavam no estabelecimento tenham sido vendi-
dos para pagar as dívidas, outros foram entregues a pessoas da família, dentro
do acerto final de contas da empresa. Euzébio e seus irmãos devem ter passado
por essa situação, pois não foram vendidos juntos com o lote, mas também não
foram alforriados.
Domício teria provavelmente doze anos em 1868, quando da liquidação da
firma, e não há nenhum documento da venda ou passagem dele a outro senhor.
Apesar disso, oito anos depois, foi encomendado na catedral da cidade, o corpo
de um escravo com esse nome, caracterizado como “preto, 18 anos de idade, desta
província”, trabalhador de charqueada, cujos donos, herdeiros de Antonio José
Gonçalves Chaves, eram também aparentados com a família Barcellos.23 A causa do
falecimento de Domício, “tuberculoses pulmonares”, é perfeitamente compatível
com uma das principais doenças que afligiam os trabalhadores de saladeiros, visto
as precárias condições de trabalho e as atividades serem realizadas em ambiente
insalubre. Pelos dados do APERS, o único trabalhador escravizado que possuiu o
 195 nome de Domício, em todo o interior gaúcho24, foi o filho de Ângela. Se a raridade
do nome não adiantou nada a Domício, pelo menos auxiliou a identificá-lo.
Já Teófilo parece ter sido mais afortunado. Era um bebê em 1862 e estava com
sete anos em 1868, sendo muito pequeno para tarefas pesadas e, provavelmente,
foi encaminhado para aprendizagem de alguma profissão na cidade.25 De fato, em
1881, encontrou-se um Teóphilo Antônio Gonçalves, participando de um grupo de
apostas na loteria. Suas apostas foram pequenas, constavam apenas de cinco
bilhetes e um quarto de um outro, comprados por vinte e seis participantes. Mas
a situação era compatível com o fato de que todos os apostadores eram negros
e, detalhe importante, tinham patronímicos que lembravam ativos charqueadores
da região.26 Mais tarde, já com o nome acrescido de um “Barcellos”, encontrou-se
Teóphilo Gonçalves Barcellos na diretoria de duas associações negras. A primeira
foi a associação mutualista Sociedade Progresso da Raça Africana, uma das duas
únicas entidades negras da cidade que se reportavam à África em seu nome, sen-
do Teóphilo o presidente da diretoria provisória e Euzébio seu tesoureiro, durante

23 BISPADO DE PELOTAS, Livro 4 de registro de óbitos da Catedral de Pelotas, anos 1865-1887, fls. 217 verso,
dia 8 de novembro de 1876.
24 A saber, quatro livros de inventários, dois de alforrias, dois de compra e venda, um de testamentos e um
de processos-crime. Infelizmente, o livro de batismos no qual constaria seu batizado foi roubado do Bispa-
do de Pelotas há alguns anos.
25 Havia outros Teóphilos, entre eles o mais próximo seria um carneador trabalhando em estabelecimento da
parentela dos Barcellos, mas a idade é incompatível, pois este teria vinte e quatro anos em 1872, enquanto
o irmão de Euzébio seria um moleque de apenas doze anos naquele mesmo ano. Este outro aparece no
inventário de Luis Teixeira Barcellos e sua esposa, o qual também foi sócio da firma Barcellos e irmão. O
inventário traz cópia da folha de matrícula geral dos escravos em 1872, na qual está Teófilo, descrito como
preto, vinte e quatro anos, solteiro, de filiação desconhecida e carneador, que foi comprado do Rio de
Janeiro. APERS. Inventário de Dorothea da Fontoura Barcellos e Luís Teixeira Barcellos, autos n. 777, maço
46, estante 25, 1.º Cartório de Órfãos e Provedoria, ano 1873, fundo Pelotas.
26 Jornal do Comércio de Pelotas, 15 set. 1881. Frequentemente, as apostas em loterias eram feitas em grupo,
por associações informais, das quais o nome e os números do sorteio eram publicados pelos jornais, como
garantia da compra. Nesta notícia, a própria ordem de aparecimento dos nomes aparenta respeitar uma
gradação, pois os negros livres estão acima e os libertos, abaixo.

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os anos de 1892 e 1893.27 Na Sociedade Beneficente Feliz Esperança, Teóphilo foi


segundo tesoureiro em 1905.28
Quanto a Euzébio, em 1868 já teria vinte anos e, provavelmente, uma profis-
são. Se tivesse continuado como servente na charqueada, poderia ter aprendido
os ofícios de carneador, desossador, graxeiro, carpinteiro, ou ainda, marinheiro.
Quando foi alforriado em 1882, ele exercia a profissão de carpinteiro, a qual devia
ser muito rentável, visto que os carpinteiros escravizados estavam entre o gru-
po cujas alforrias custavam mais caro entre os cativos. Mas o mais importante é
que essa profissão não exigia a presença constante na charqueada, permitindo ao
trabalhador ter residência urbana, ou até trabalhar por sua conta, apenas entre-
gando uma quantia acordada entre ele e seu senhor, semanal ou quinzenalmente,
como renda devida a este.
A dedução que Euzébio não estava sujeito à rigorosa disciplina de trabalho das
charqueadas quando adulto foi feita a partir de notícias de jornais que mostravam
sua presença na cidade, mesmo na época de safra da carne, de novembro a maio.
Durante os anos de 1880 e 1881, ele participou de agrupamentos de apostadores em
loterias, alguns casuais, outros não, como este abaixo, no qual era o tesoureiro:

Associação Lotérica Feliz Lembrança:

A grande loteria de São Paulo

 196
A primeira turma, pertencem os bilhetes 19.7790 a 19.7799. A se-
gunda turma, os números 176196, 176197, 176198, 176199, 197758,
197759, 176200, 197758, 197759, 176200, 197760, 197761 1 197763.
Os bilhetes acham-se depositados em poder do tesoureiro da as-
sociação, sr. Euzébio Barcellos.
Pelotas, 3/12/1880. C. e Silva, Secretário.29

Esta notícia refere-se ao grande prêmio da Loteria do Ipiranga, que provocou


muito furor no país, com seu prêmio de mil contos de réis. Para participar do sor-
teio, todos queriam apostar o maior número possível de bilhetes e, como con-
sequência, além de surgirem várias sociedades de apostas, algumas também se
associaram entre si, como esta acima, que negociou um acordo com outras duas
sociedades, cada uma com um valor diversificado para as apostas. Essas informa-
ções fazem pensar que, se Euzébio era encarregado da tesouraria da Feliz Lem-
brança naquele momento, isso significa que deveria ser rapidamente acessado pe-
los demais participantes, o que implica em estar estabelecido ou empregado em
local fixo na cidade, de preferência no seu centro. Portanto, é indício seguro que
não trabalharia na charqueada, pois os meses de dezembro e fevereiro, datas em
que foi citado pelos jornais, constituem o auge da safra, quando a jornada laboral
pode chegar até quinze horas por dia. Por outro lado, dificilmente uma pessoa
submetida a esse ritmo de trabalho poderia ainda ser arrecadador de apostas pe-
las ruas da cidade.
Além disso, Euzébio estava presente em outras associações e instituições ur-
banas. Naquele mesmo ano de 1880, seu nome aparece na diretoria da Irmanda-
de do Santíssimo Rosário de Nossa Senhora.30 Ainda escravo, ele participava como
simples mesário, mas depois de liberto, teve importantes papéis na diretoria da
irmandade e também na devoção de São Benedito.

27 Fontes: Jornal Diário Popular. 6 e 12 maio 1893.


28 Jornal A Defesa, Bagé, n.17, ano II, 21 nov. 1905.
29 Jornais: A Discussão, 26 fev. 1881 e Correio Mercantil, 07 dez. 1880.
30 Jornal do Comércio. Pelotas, 06 out. 1880.

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DE ESCRAVO A DOUTOR: EUZÉBIO DE QUEIROZ COUTINHO BARCELLOS

De escravo a liberto
Sobre os anos de juventude de Euzébio, incluindo sua troca de senhor, não
se conseguiu outros dados. Em sua carta de alforria, consta que ele seria proprie-
dade de Cosme Rodrigues Barcellos, que exercia a profissão de carpinteiro e que
teria trinta e um anos na data de 26 de janeiro de 1883, quando foi libertado. Sua
alforria foi concedida gratuitamente, “em atenção à estima e amizade que lhe tri-
buto e por isso sem receber por esta liberdade a mínima retribuição pecuniária”.31
É muito estranha a forma como está redigida essa carta, pois demonstra que havia
relações muito diferentes entre os dois. Afinal, qual senhor diria ter um tributo
de respeito em relação ao escravo? Essa situação desafiava a fórmula comum das
manumissões e também as convenções sociais, pelas quais o escravo era liberto
pela vontade de seu possuidor e devia sua liberdade, mesmo que paga, a ele, o
que ampliava o aspecto de dádiva da libertação, e o entendimento desta como
uma graça, uma mercê do senhor, pela qual o libertando deveria ser eternamente
grato.32 Euzébio teria sido matriculado como escravo por Cosme, em 02/05/1882,
sob o n.º 2283 da matrícula geral e n.º 1 da relação de seu proprietário, o que signi-
fica que deveria ser o seu único escravo, ou o mais antigo deles, segundo o que se
observou das relações de matrícula.
Euzébio refere-se a seu pai como africano, o que Cosme efetivamente era,
o colocando dessa forma em sua qualificação eleitoral, em 1890; contudo, esse
termo pode ter outro significado, o de mestre, ascendente espiritual etc. Cosme
era carpinteiro e essa também foi a profissão de Euzébio, que deve tê-la aprendido
 197 com ele na charqueada. A questão da paternidade biológica é difícil de averiguar,
não só porque havia outros Cosmes cativos, em plantéis de outras charqueadas,
como também devido ao já mencionado fato de que, Cosme, quando do nasci-
mento de Euzébio, recém entrara na puberdade, a julgar pela sua idade na nota
de venda e na alforria. Ângela, por seu lado, tinha vinte anos na ocasião e, prova-
velmente, muitos eram seus admiradores, mais fortes e com maior prestígio que o
ainda adolescente Cosme.
Mesmo filho de um Cosme africano, resta a possibilidade de que Euzébio
fosse liberto por outro Cosme, filho ou sobrinho do ex-proprietário Cândido Bar-
cellos, mas é uma hipótese remota, pois não há registros de descendentes com
esse nome entre as parentelas de Cândido ou de Cipriano, ou ainda na família ex-
tensa dos Rodrigues Barcellos.33 A utilização do sobrenome dessa família provavel-
mente adviria do fato de Cosme já ter sido escravo dos Rodrigues Barcellos e ter
adotado esse patronímico.
Cosme, liberto desde 1868, deveria ter se dedicado a sua profissão, talvez
alugando os serviços de Euzébio para auxiliá-lo nos trabalhos de carpintaria e de-
pois investindo em comprá-lo. Estes dois homens, com apenas quatorze anos de
diferença de idade, passaram anos trabalhando em conjunto e devem ter desen-
volvido uma forte amizade, levando o mais novo a considerar o mais velho como
pai, o que fez oficialmente quando precisou declarar um nome paterno, para ter
maior respeitabilidade, em um documento oficial que o instituía como eleitor, etapa
importante de sua incorporação política na sociedade.
Nascido Euzébio, ele compôs seu nome utilizando parte do sobrenome do
político Euzébio de Queiroz Coutinho Matoso da Câmara, ministro do Império en-
tre 1848 e 1852 e, nesse cargo, autor da lei — que leva seu nome — que impediu

31 APERS. Cartas de Liberdade, v. 1, p. 555.


32 Ver: GRIMBERG, Keila. Liberata, a lei da ambiguidade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
33 A investigação foi feita por meio dos vários sites de genealogia dessa família e também por: GUTIERREZ,
Ester. Negros, charqueadas & olarias. Op. cit.

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definitivamente o tráfico de escravos para o Brasil. Tudo indica que nascido dois
anos antes da Lei Euzébio de Queiroz, aproveitou a coincidência de ter o mesmo
prenome para incorporar ao seu, aquele do responsável pela lei que impediria,
no futuro, que outros africanos fossem caçados na África e enviados para o Brasil
como escravos. Ele não poderia saber que a escravização de seus pais foi facilitada
pelo não cumprimento da lei anterior de 1831, da qual o político acima também foi
em parte responsável e, dessa forma, carregou durante toda a vida o nome daque-
le a quem considerava, equivocadamente, um benfeitor de sua raça.34
O outro sobrenome, Barcellos, veio de seu proprietário, quiçá do próprio
Cosme, talvez o primeiro, Cipriano Rodrigues Barcellos. Nos primeiros momentos
de sua aparição em jornais, ele é apresentado como Euzébio Barcellos, ou como
Euzébio de Queiroz Coutinho, mas por fim, afirma-se com todo o seu nome, pelo
qual deveria ser conhecido por todos na cidade.
Pelotas, a cidade na qual Euzébio estava começando sua vida livre, era uma
das mais importantes do estado gaúcho, muito rica e frequentada devido aos ne-
gócios do charque, pois possuía um porto fluvial bem frequentado por navios,
além de distar apenas 60 km do porto de Rio Grande, o que permitia muita intera-
ção com outras regiões. Seu comércio era muito forte e, nas duas décadas finais
do século XIX, estava em processo de industrialização acelerado. Sua população
estava dividida entre uma elite culta e educada, que cultivava as artes, a música e
o teatro, e era composta de uma grande massa de trabalhadores, muitos dos quais
estrangeiros, vindos à cidade como artesãos, ou estabelecendo-se nas colônias do
município como agricultores. Sua população escrava, que já tinha se constituído
em quase metade dos seus habitantes em meados do século, estava restrita a oito  198
mil cento e quarenta e uma pessoas em setembro de 1873, e cinco mil novecentos
e dezoito em julho de 1884.35 Logo a seguir, com a campanha da Emancipação
(transformação dos cativos escravos em cativos contratados), esse número bai-
xou significativamente, mas ainda em inícios de 1888 deveria haver por volta de
dois mil escravos na cidade.36
Sabe-se que Euzébio, mesmo escravizado, já era reconhecido por parcela sig-
nificativa da comunidade negra pelotense como pessoa de confiança (mesário de
irmandade, tesoureiro de sociedade lotérica) e como liderança, tanto que fez par-
te da primeira comissão do Centro Ethióphico em outubro de 1884.37 Esse Centro
foi criado pelos afrodescendentes para representá-los na campanha da emancipa-
ção de 1884 — no esforço de transformar todos os escravos em contratados com
liberdade sujeita à prestação de serviços —, encaminhada pelos senhores como
forma de terminar com a escravidão de forma moderada e gradual.38
Neste cargo, como em outros posteriores, vai aparecer uma característica
fundamental de Euzébio: sua ligação com a Igreja Católica, provavelmente um dos
meios pelos quais ele mais se utilizou para ser reconhecido pela comunidade negra
e obter o respeito dos brancos. Essa aliança esteve presente em toda sua vida, ini-

34 Sobre a atuação do político Euzébio de Queiroz Matoso, ver: CHALHOUB, S. A força da escravidão. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012.
35 Quadro demonstrativo da população escrava no município de Pelotas, província de São Pedro do R. S. de
30 de setembro 1873 a 30 de junho 1884. Correio Mercantil.Pelotas, 23 ago. 1884.
36 Dados sobre economia e sociedade do município de Pelotas e sua população no início da República estão
disponíveis em: LONER, Beatriz. Construção de classe. Op. cit. cap. 1.
37 A Discussão. 17 jan. 1884.
38 Sobre os contratos, ver: MOREIRA, Paulo Roberto S. Faces da liberdade. Máscaras do cativeiro. Porto Ale-
gre: EDIPUCRS, 1996. Sobre a organização negra na cidade, ver: LONER, Beatriz. Abolicionismo e imprensa
em Pelotas. In: ALVES, Francisco (org.) Imprensa, história, literatura e informação. Rio Grande: EDFURG,
2007, p.57-64.

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ciada ainda enquanto escravo, com a participação em duas irmandades negras: a


Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, já citada e a Irmandade de São Benedito,
que tinha menos recursos que a anterior. Quando livre, participou como juiz pro-
tetor e presidente em diretorias dessas irmandades, auxiliando ainda na fundação
do Asilo São Benedito para crianças de cor e tomando parte em sua direção.39 Além
de sua participação, sua esposa também pertencia à Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário, sendo eleita juíza das festividades em 1888.40
Como liberto, pôde associar-se e participar da diretoria da Sociedade Mu-
tualista Fraternidade Artística, sociedade de artesãos afrodescendentes que não
aceitava escravizados. Essa sociedade estava muito ligada a Manoel Conceição da
Silva Santos, grande liderança negra católica e abolicionista, também sócio da Ir-
mandade do Rosário, e com quem Euzébio vai compartilhar ainda outras diretorias
de sociedades recreativas no futuro. A prova de sua respeitabilidade entre os pa-
res é que, no ano de 1890, quando há uma crise na entidade, ele e um dos filhos de
Manoel da Conceição são indicados para a junta governativa daquela associação.41
Outra prova de seu prestigio, ainda como escravo, é o fato de que apadrinhou
quatro ingênuos, entre os anos de 1881 e 1884, quando cessaram os registros de
batismo de escravos na matriz de São Francisco de Paula.42
Já vimos que também esteve presente na Sociedade Progresso da Raça Afri-
cana, como tesoureiro, entre 1891 e 1893.43 Essa sociedade demonstra que havia,
entre alguns afrodescendentes, a preocupação de não esquecerem suas origens
africanas, o que é um fato singular para aqueles anos, pois consultando a lista de
 199 sociedades da comunidade negra pelotense no período republicano, torna-se evi-
dente que a identidade dos afrodescendentes trilhava outra direção, buscando a
integração na sociedade brasileira como trabalhador nacional, silenciando sobre
sua situação anterior. Filhos do Trabalho, Recreio Operário, Fraternidade Artística,
Satélites do Progresso, enfim, a própria denominação de seus clubes não lembrava
sua cor, ou suas origens, sendo esta associação uma das duas únicas exceções a
esse quadro, assinalando uma característica especial de seus membros, que talvez
fossem todos minas, ou então trabalhadores de charqueada.
Deve ter sido no período da juventude, ainda como cativo, que aprendeu
danças e bailados variados, ensino das quais, depois de livre, foi seu ganha-pão por
muitos anos e lhe trouxe prestígio e reconhecimento entre a fina flor dos moços
brancos da cidade. Esse aprendizado pode ter sido feito na própria cidade, ou ele
pode ter acompanhado seus senhores até o Uruguai e lá tomado conhecimento de
novas danças, que depois trouxe à cidade.44
Outra preocupação de Euzébio foi com a educação. Assim, temos esse car-
pinteiro de trinta e oito anos matriculando-se, em 1886, nos cursos noturnos da

39 Lembrando novamente que só se conseguiu saber algumas diretorias dessas irmandades, Euzébio teve
participação na Irmandade do Rosário como mesário (J. Comércio, 06 out. 1880) e como presidente (A
Opinião Pública, 10 fev. 1928), na devoção de São Benedito em 1909, como juiz protetor (Livro de atas da
Devoção de São Benedito). No Asilo, ele participou como diretor em 1909 e 1911 (A Opinião Pública, 31 mar.
1909 e Diário Popular, 14 abr. 1911).
40 Jornal Onze de junho, 13 nov. 1888.
41 Correio Mercantil, 24 ago. 1890. Mas logo a seguir, chama-se eleição e ele fica apenas na Comissão de
contas.
42 BISPADO DE PELOTAS, Livro 8 de Batismo de Escravos, anos 1879 a 1884, folhas 25, 31, 36 e 37. As mães de
cada uma das crianças eram escravas de diferentes senhores.
43 Diário Popular, 06 maio 1893.
44 Conforme sua declaração, inserida no Jornal O Rebate, 26 set. 1916. Durante pesquisas anteriores, anún-
cios e notícias sobre sua sociedade de dança já haviam sido encontrados nos jornais, mas não anotados,
porque nada indicava sua origem escrava e operária e o foco do interesse eram os proletários pelotenses.

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Biblioteca Pública Pelotense, muito frequentado por ex-cativos como ele. Nesse
momento, como em vários outros, não é informada sua filiação e tudo indica que
deve ter estudado por poucos meses, pois não se rematricula e não há outros
apontamentos a respeito.45 Entretanto, deve ter aprendido a ler e a escrever, pois
sabia assinar seu nome, demonstrando, mais tarde, ser leitor de obras religiosas.
Ele vai preocupar-se em dar boa educação à sua filha Marina, o que não era comum
em inícios do século XX para mulheres.
Ao se matricular na escola da biblioteca, ele constou como solteiro, mas deve
ter casado mais ou menos por esta época, pois sua única filha nasceu em agosto
de 1886 aproximadamente. Sua esposa, Margarida Dias Barcellos, já possuía três
filhos e há fortes indícios de que tinha sido escrava, bem como sua primeira prole.
Um de seus filhos, à época de seu inventário, tinha paradeiro desconhecido, e os
outros dois eram analfabetos, em contraste com a educada letra de Marina, o que
é prova evidente do investimento em sua educação.

Trabalhador livre no período republicano


Talvez a República não tenha trazido muitas modificações ao cotidiano de
Euzébio, pelo menos não maiores do que as transformações em sua vida pessoal,
devido ao casamento e ao nascimento de sua filha, o que aconteceu em data en-
tre 1885 e 1886. Mas sua esposa faleceu cedo, em 16 de outubro de 1903, e ele
teve que fazer um inventário. Assim, sabe-se que, em 1904, seus bens constavam
apenas de um terreno rural, comprado em maio de 1898 e avaliado em 250 mil
 200
réis. Embora as dívidas contraídas com o enterro da falecida e uma pesada conta
de farmácia superassem em muito esse valor, o bem não precisou ser vendido,
pois Euzébio assumiu o pagamento das dívidas e o imóvel ainda constava entre
seus bens quando de sua morte.46 Ressalte-se que seu trabalho como dono da
escola de dança e professor deveria render-lhe bons proventos, embora provavel-
mente não devesse ser o único, como ficará claro mais tarde. De todo o modo, seu
patrimônio crescerá bastante até sua morte, em parte graças à rede de amigos e
de clientela política de que participou.
Euzébio cuidou de ter participação na vida política e era eleitor, qualificando-
se nos alistamentos eleitorais de 1890 e 1900, nos quais constou como casado e ar-
tista, filho de Cosme Barcellos.47 Em todos os demais documentos, não há menção
ao nome dos genitores. Mas utilizar o nome paterno na qualificação eleitoral sig-
nificava mais um passo no sentido da conquista do respeito da sociedade, pois, or-
dinariamente, quando os pais não eram casados, constava apenas o nome da mãe.
Ele não só se qualificou como eleitor, mas também era filiado ao PRR, Parti-
do Republicano Rio Grandense, que governou o estado até 1930. Em 1916, quando
polemiza pelos jornais com detratores, ele invoca essa condição como um símbolo
de seu status social e uma advertência a seus inimigos: “Como cidadão brasileiro,
filiei-me ao pujante Partido Republicano, desde a sua fundação”.48 Nisso, seguiu

45 ���������������������������������������������������������������������������������������������������������
Arquivo Histórico da Biblioteca Pública Pelotense, livro de matriculados nos cursos noturnos desta Insti-
tuição, p. 49. Agradeço à Mariana Couto Gonçalves pela cópia da informação, a qual foi negada o acesso a
dois dos autores.
46 APERS. Processo n.1175. Inventário de Margarida Dias Barcellos, inventariante: Euzébio de Queiroz Couti-
nho Barcellos, fundo 48, Comarca de Pelotas, ano 1904.
47 Respectivamente, A Pátria, 07 jul. 1890 e Diário Popular, 03 maio 1900.
48 Jornal O Rebate, 26 set. 1916.

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a trajetória de muitos artesãos da cidade, brancos ou afrodescendentes, que se


filiaram a esse partido ainda em seus inícios, devido ao papel que a agremiação
representou na campanha abolicionista no estado e as esperanças de cidadania,
igualdade e melhoria das condições de vida associadas ao republicanismo em seus
primeiros anos no Sul. Deve-se ainda assinalar que havia pouca opção partidária
dentro do limitado sistema eleitoral da época e que pertencer ao partido do gov-
erno trazia benesses importantes, especialmente para quem tinha desvantagens
nítidas, expressas na cor da pele e na origem social.49
A partir do início do novo século, cessam-se as notícias sobre ele nos jor-
nais, o que significa que diminuíram suas participações nas diferentes entidades.
Deveria estar trabalhando bastante e dedicando-se a amealhar bens, entre eles
propriedades, que lhe permitissem uma vida tranquila na velhice e deixassem sua
filha amparada. Entretanto, continuou a prestigiar e participar ativamente das as-
sociações vinculadas à Igreja, entre elas as irmandades e o asilo, já comentados.
Ao lado disso, teve participação em instituições de comunidade negra, recreativas
ou políticas.
Dessa forma, mesmo idoso, aos setenta e seis anos de idade, participou
em posição de destaque, na fundação e no desenvolvimento da Associação Cen-
tro Cívico Alcides Bahia, que tinha por objetivo “defender os interesses da raça
etíope”. Desse modo, inicia seus trabalhos enviando telegrama ao presidente
Arthur Bernardes, protestando contra a tentativa de depuração do deputado
Alcides Bahia, eleito pelo Amazonas, a pretexto de ser negro.50 Vitoriosos, tiveram
 201 a visita de agradecimento do deputado à cidade.
Pelo seu inventário, chega-se à conclusão de que Euzébio investiu todo o
dinheiro conseguido na compra de residências na rua Marques de Caxias, especial-
mente na quadra em que morava. Nessa rua, lhe pertenciam os prédios 460, 468
e 470 e na rua 24 de fevereiro, os prédios 301 e 303. Compunha a herança, ainda,
um prédio na mesma Marques de Caxias, mas fora de alinhamento e um terreno
na estrada para Monte Bonito.51 Na polêmica enfrentada por Euzébio com os reda-
tores do jornal O Dia, em 1916, sua casa foi descrita como “muito confortável, de-
baixo de vários pontos de vista” e com um padrão de mobiliário de classes médias
altas, contando inclusive com gramofone, novidade naqueles tempos.52 Ao mor-
rer, deixou um total de sete imóveis. Defendia seus interesses comerciais como
qualquer outro proprietário, como quando entra com ação de esbulho contra a
moradora antiga de uma casa que recém comprara.53
Como pai de família, preocupou-se com que sua filha frequentasse as socie-
dades negras da cidade, zelando para que sua família se integrasse à comunidade
negra pelotense e para que sua filha encontrasse parceiros matrimoniais dentro
do grupo. Ele e a filha parecem ter sido muito próximos, pois mesmo depois de
casada, era na casa do pai que ela comemorava seus aniversários, como em 1916,
quando houve festa “com animado baile”54.

49 Sobre as relações dos trabalhadores negros e brancos com os partidos na cidade, ver: LONER, Beatriz.
Construção de classe. Op. cit., cap. 7.
50 Jornal O Libertador, 25 abr. 1924.
51 APERS. Inventário n. 137, ano 1928. Inventariado: Euzébio Coutinho Barcellos, inventariante: Marina de Bar-
cellos Araújo. Fundo 48, Pelotas. Note-se que o inventário fala realmente de prédios, ou seja, edificações,
mas não as detalha, como era o comum em outros inventários.
52 Jornal O Dia, Pelotas, 25 set. 1916.
53 APERS. Processo de esbulho n. 521, ano 1921, fundo Pelotas Ré: Rosa Farias, suplicante: Euzébio Coutinho
Barcellos.
54 Jornal A Alvorada, Pelotas, 13 ago. 1916.

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Marina, em sua juventude, esteve presente na ala feminina de algumas di-


retorias de sociedades recreativas negras, em diretorias de mulheres, dedicadas
a promover festas e quermesses, como em 1908 e 1909 na sociedade bailante e
carnavalesca Flores do Paraíso, que reunia os negros com maior vinculação à Igreja
Católica.55 Em 1909, participou da Sociedade de Socorros Mútuos Princesa do Sul,
como oradora, e do Grupo das Serpentinas, bloco ligado a Flores do Paraíso, já en-
tão utilizando o sobrenome de seu primeiro marido56, Rodolpho A. de Jesus. Mais
tarde, casou-se com Manoel Francisco da Silva Araújo, foguista, e desquitou-se
em 1929, pouco após a morte do pai, quando contava com quarenta e um anos
de idade. Observe-se que o desquite não era comum naquele tempo, trazendo o
repúdio social para as mulheres nessa condição. Talvez por esse motivo ela tenha
vendido a casa que morava em 1932 e abandonado a cidade, estabelecendo-se em
Porto Alegre.
Sem dúvida, Marina herdou do pai a coragem de enfrentar e vencer situa­
ções adversas. Mas ela estava preparada, ao menos financeiramente para isso,
pois herdara uma casa avaliada em 12$000.000, além de outros seis imóveis57, o
que deve ter sido suficiente para lhe garantir uma vida confortável e lhe permitir
tomar atitudes ousadas, como o desquite.

De curandeiro a doutor
O episódio que levou Euzébio a virar doutor, ou seja, médico licenciado e
com placa na porta, é ilustrativo pela maneira como ele se colocava frente à vida,
 202
aceitando os seus desafios e procurando vencê-los dentro do que era considerado
legal e aceitável pela sociedade. Tudo começou com uma figura bem relacionada
em Pelotas, o Dr. Antônio Gomes da Silva, branco, juiz, advogado, com pretensões
literárias, cuja vaidade era maior do que seus talentos e cujas obsessões o levaram
ao descrédito.
Gomes da Silva arrendou o jornal A Opinião Pública, de 1913 a 1915, e lhe im-
primiu seu estilo. Figura singular e narcisista, queria ser reconhecido pelos seus
talentos teatrais e literários, sendo anticlericalista ao extremo, motivo pelo qual
até hoje é posicionado por alguns cronistas e historiadores desavisados entre os
militantes anarquistas da cidade. Realmente, envolveu-se com a Liga Operária da
cidade, auxiliando a fundar um Centro de Estudos Sociais. Porém, em pouco tem-
po, suas ideias chocaram-se com aquelas dos libertários operários da Liga, os quais
cortaram suas pretensões de organizador e articulador de eventos na entidade,
ridicularizando suas propostas e denunciando a postura conservadora e subser-
viente aos poderosos que imprimia a seu jornal.58
Gomes da Silva, então, voltou-se a outra de suas obsessões e envolveu-se em
desastrada campanha com sátiras à Igreja Católica e às autoridades eclesiais da re-
gião, em artigos em verso e prosa contra o bispo. Rimada, sua poesia satírica é até
divertida de ser lida hoje em dia, não foi assim considerada na época, pois o Bispo
lhe lançou a excomunhão. Também ordenou a devolução do jornal e o rompimento
das assinaturas a todos os fiéis, sob risco de excomunhão. A viúva proprietária

55 Jornal A Alvorada, 05 dez. 1908, citado em 04 dez. 1954 (coluna Coisas do passado).
56 Jornal A Opinião Pública, 13 mar. e 26 maio 1909.
57 APERS. Inventário de Euzébio de Queiroz Coutinho Barcellos, inventariante: Marina Barcellos de Araújo,
autos n. 137, ano 1928, fundo 48, Pelotas.
58 Ver a respeito: LONER, Beatriz. Construção de classe. Op. cit.

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do jornal, católica e aflitíssima com a perda de prestígio do órgão, exigiu imedia-


tamente o fim do arrendamento. Gomes da Silva perdeu apoios e teve o desgosto
de comprovar a eficácia dos aparatos repressivos da Igreja Católica até sobre uma
população que não era muito crente, mas tinha medo de radicalismos, de ambos
os lados.59
O jornal O Dia iniciou suas atividades em janeiro de 1916, com Gomes da Silva
e seus novos sócios comprando equipamentos do antigo Correio Mercantil, que
deixara de ser publicado recentemente. A nova empresa jornalista era composta,
em termos de editoria e redação, por João C. de Freitas, como diretor gerente, e
J. F. Villarinho, como redator. Freitas era riograndino, e, como jornalista, trabalhou
em O Estado, Correio Literário, A Luta, e Echo do Sul (em sua cidade natal). Em Pelo-
tas, posteriormente, vai trabalhar no jornal O Libertador, opositor ao PRR.60 Como
dramaturgo, deixou várias obras, entre elas a peça anticlerical “Os Solteiros”. Pelo
pouco que se sabe, Villarinho, o único pelotense, era jornalista e tipógrafo na ci-
dade. Dos outros dois, há notícias de que acumulavam escândalos e/ou posições
críticas ao governo republicano e à Igreja, o que deixava o jornal em posição difícil
para se consolidar na cidade.
A apresentação gráfica do jornal pretendia inovar e apresentava uma colu-
na para a colônia alemã da cidade. Naquele momento, havia vários outros jornais
na cidade: o situacionista Diário Popular, A Opinião Pública (que continuou a ser
publicado, com novos arrendatários) e O Rebate, consolidado jornal de denúncias
e oposicionista ferrenho do governo. A cidade, sem dúvida, comportava mais um
 203 jornal, mas O Dia ainda precisava se firmar. Durante aquela década, várias outras
iniciativas jornalísticas tinham fracassado, pois era necessário conseguir assinantes
e estabelecer-se entre os anunciantes, tarefa tanto mais difícil para O Dia, quando
ainda repercutiam os ecos da campanha fracassada contra a Igreja e todos sabiam
que o jornal também pertencia a Gomes da Silva. De todo o modo, nada mais se
veiculou diretamente contra a Igreja Católica.
Como estratégia de inserção jornalística, O Dia passou a veicular reportagens
de denúncia sobre variados problemas da cidade. Em setembro de 1916, este jornal
iniciou a propaganda de um novo assunto61, com uma série de anúncios, espica-
çando a curiosidade popular com a promessa de denúncias fantásticas e escanda-
losas, nunca completamente reveladas, de forma a manter o suspense para a re-
portagem do dia seguinte, quando, então, as escabrosas revelações aconteceriam.
Ateu convicto, mas escaldado com a surpreendente conformidade dos pelotenses
aos desígnios do bispo, dessa vez Gomes da Silva pensara ter encontrado inimigos
mais frágeis, colocando sob sua mira os feiticeiros, curandeiros, as aborteiras e os
demais praticantes de medicina popular da cidade, todos englobados sob o rótu-
lo de “patifes lombrosianos” e outros epítetos discriminatórios. Provavelmente,
tentava-se, por meio desse viés, criticar e ridicularizar a religiosidade popular, as
crendices etc.
Assim, o jornal colocou um repórter na cola desses “charlatãs” (sic), o qual
se passou por um cliente aflito e foi procurar os principais curandeiros da cidade.

59 LONER, Beatriz. Jornais pelotenses diários na República Velha. Ecos Revista, v.2, n.1, Pelotas: Educat, abr.
1998, p. 5-34.
60 ���������������������������������������������������������������������������������������������������������
Freitas (1880-1950) também era advogado, filólogo, literato e teatrólogo. Dados retirados de ALVES, Fran-
cisco das Neves. O partidarismo por opção discursiva: o Echo do Sul e seu discurso político partidário. Rio
Grande: Furg, 2001, nota 31.
61 As reportagens de O Dia encontram-se neste mesmo jornal dos dias 09 de setembro de 1916 até 10 de ou-
tubro do mesmo ano.

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Dessa forma, tentava redimir-se do vexame anterior e conseguir nova credibili-


dade, como austero moralizador dos costumes e da vida pelotense. De quebra,
poderia talvez respingar na própria Igreja Católica, como a culpada por não escla-
recer seus fiéis sobre a doutrina cristã, tornando-os presas fáceis de charlatões
que envenenavam sua saúde e sua paz de espírito, enquanto os depenavam de
dinheiro e bens. Esse era, grosso modo, o apelo cotidianamente utilizado nas man-
chetes do jornal, que tentava chamar a atenção das autoridades para as ações
criminosas desses “intrujões” ou “espertalhões”, explicando em quais delitos cri-
minais estariam incursas suas práticas e interpelando os delegados e homens da
lei para que “cumprissem seu dever”. Não se pode deixar de observar, aqui, uma
tentativa também de cutucar a administração do PRR municipal, que não tomava
providências contra essa exploração da crendice alheia e não cumpria seu papel.
O repórter inicia sua expedição aos “antros» ou «templos da perdição», indo,
disfarçadamente até os pretensos feiticeiros e adivinhas, alegando precisar de
seus cuidados profissionais. Em reportagens diárias, descrevia as práticas observa-
das, tais como as consultas e as prescrições curativas, em linguagem extremamen-
te preconceituosa do ponto de vista racial, pois todos os três supostos feiticeiros
eram afrodescendentes. Como “provas cabais” contra eles, o repórter comprava
e o jornal dizia mandar para análise em laboratório químico o conteúdo das bebe-
ragens que eram entregues como receitas aos males que o jornalista dizia sofrer.
Entre os primeiros três denunciados estavam dois homens e uma mulher, to-
dos negros ou mulatos. A “bruxa” Constantina é descrita como parda, com cerca
de cinquenta anos. Especialista em poções amorosas capazes de desencaminhar
moças, mesmo aquelas “de boa família” segundo o jornal, ela receitou poções
 204
amorosas e também sugeriu o uso de uma droga abortiva, se necessário, para lidar
com as consequências do tresloucado amor a que induziria a moça que o jornalista
disse querer conquistar. Mas o jornal logo a deixou de lado, pois ela não represen-
tava o verdadeiro alvo de O Dia, apesar do escândalo que suas atividades traziam
para a moral da época.
O alvo real eram os Euzébios. E aqui não se está adjetivando esse nome pró-
prio, mas sim aludindo a uma curiosa coincidência, que fazia com que houvesse
dois Euzébios, ambos negros e curandeiros, na cidade. O primeiro deles a ser de-
nunciado tinha um sobrenome trivial, um modesto “da Silva”, mas seus traços ét-
nicos são acentuados em ambas as reportagens: “um mulatão nédio, moço forte,
que tem a sua tenda à rua 3 de maio e que atende a numerosa clientela, da qual
arranca os melhores proveitos em dinheiro e os mais fartos pitéus em holocausto
aos “santos” que ele tem que sustentar todas as sextas feiras...”. E, no dia se-
guinte: “Descende[nte] em linha direta reta de pretos da África. Os seus traços
étnicos são inconfundíveis: é gordo, nédio, retinto, espadaúdo, porejando fartura,
confiante no êxito da vida”.62 Além dessas descrições, nota-se um preconceito por
essas pessoas estarem morando em casas decentes e várias alusões a sua boa
vida, o que demonstra o grau de preconceito de que suas reportagens estavam
imbuídas, tanto em relação às práticas como, mais ainda, em relação às suas ori-
gens raciais. Isso não era prerrogativa apenas deste jornal, mas também se notava
em todos os demais da cidade, inclusive em O Rebate, que vai abrir espaço para
Euzébio Coutinho Barcellos.63

62 Jornal O Dia, 18 e 19 set. 1916.


63 Especificamente sobre O Rebate, ver: CUNHA Jr. Miguel Angelo. O periódico O Rebate e a intolerância
contra ciganos. Monografia (Graduação em História). Pelotas, UFPel,, 2011 e sobre o conjunto dos jornais
pelotenses, ver: LONER, Beatriz. Jornais pelotenses diários na República Velha. Op. cit.

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A descrição do jornal sobre o ritual praticado em sua casa, nas “sextas feiras
de holocausto”, como as chamava, e com a presença de vários negros e mulatos,
parecia ser de um culto afro-brasileiro com ingestão de alimentos rituais e banhos de
descarrego, mas identificar suas origens não é o objetivo aqui.64 Sua casa, bem como
de Constantina, são descritas como casas com certa preocupação de luxo, e seus
fregueses ― o repórter apressa-se em atestar ―, pertencem a gente de posses.
Mas, sem apoio e sem padrinhos na sociedade, logo que saíram as reporta-
gens, este Euzébio da Silva tratou de encerrar o expediente de curandeirismo, pelo
menos por um tempo, voltando à profissão de vendedor em quiosque, segundo o
jornal, que se ufanava de tê-lo derrotado.
Sendo este removido, o repórter de O Dia voltou-se confiantemente para Eu-
zébio Coutinho. Mas então, teve uma surpresa. O “outro Euzébio” como tentou
chamá-lo, disfarçando suas intenções, mostrou-se mais poderoso do que imagina-
vam os seus redatores. Nas reportagens iniciais sobre ele, o jornal insinua que já
sabia muito de sua atuação, que se tratava de um curandeiro de “alto calibre”, o
“famoso” Euzébio Coutinho, muito conhecido da sociedade e cuja casa, afirmava,
era frequentada por gente da própria elite que sequer se imaginaria indo consultar
um feiticeiro.
O repórter o descreve como muito velho, pela barba branca, e alude a que,
no passado, foi professor de danças na cidade, antes de passar a “mandingueiro
completo e refinado”. Confessa que Euzébio lhe causara impressão mais forte do
que os demais, com sua voz pausada, uma figura paternal e uma postura “sacer-
 205 dotal”, embora seu falar fosse “pernóstico, demorando-se nos SS e procurando
proferir frases arredondadas, com a preocupação de se mostrar um Hipócrates
em pessoa, pois, além da parte ritualesca da feitiçaria, ele exerce a medicina e a
farmácia”, como o provaria a beberagem que lhe fez comprar.65 Não deixa, porém,
de observar que a ação de Euzébio “é preponderante sobre as pessoas católicas,
pois começa de intencioná-las com uma grande cruz de metal amarelo que traz
pendente da cintura, lado direito”.
Ainda nessa primeira reportagem, o chama de “preto vadio e esperto” que
amealhou muitas propriedades, explorando infelizes supersticiosos, pois se cons-
titui num “madraço” de “alto calibre”. Mais tarde, em pleno conflito com ele, vai
promovê-lo a “bispo das bruxarias” da cidade. Deve-se notar que, naquele contex-
to e momento, a palavra bispo era sempre relacionada com a Igreja Católica, o alvo
escondido do jornal.
Suas reportagens dizem ter o objetivo de chamar a atenção da polícia para
as atividades desses curandeiros, se colocando à disposição para testemunhar e
enviar as provas à omissa polícia, colocando-se na nobre missão de saneamento da
sociedade, pela qual o jornal estaria recebendo muito apoio, segundo informam. A
descrição da casa de Euzébio e de seu consultório é feita da seguinte forma:

No TEMPLO do mandingueiro vê-se um altar cheio de velas e santos,


há também ali uma pequena mesa coberta com um pano estampado
com losangos vermelhos. Sobre a mesa vê-se grandes contas com si-
nais cabalísticos usados na magia. Pendentes do altar há dois rosários
espantosamente grandes.

64 �����������������������������������������������������������������������������������������������������������
As principais reportagens sobre Euzébio da Silva, com a descrição do ritual, saíram nos dias 20 e 21 de se-
tembro de 1916, do jornal O Dia.
65 Jornal O Dia, 25 set. 1916.

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Em sala contígua, a severidade religiosa do templo do Euzébio é con-


trastada por um gramofone, cadeiras e outros móveis, tudo exposto
com asseio e relativo gosto.66

A seguir, dias 26 e 27, narra como foi o atendimento de seus pretensos ma-
les, o quanto Euzébio lhe cobrou pelos serviços prestados. A crer nas reportagens,
as práticas de Euzébio centravam-se em rezas católicas, benzeduras e uso de fogo
e água para descobrir quem trazia o mal para seu cliente. Por fim, entregou-lhe
uma garrafa com um líquido e a recomendação que tomasse três goles dela pela
manhã, antes tomando colheres de azeite morno. Julgando que essa seria sua
grande prova, o jornal diz que a enviou para análise. Ainda, a reportagem insinua
que pessoas já teriam morrido ao tomar essas “beberragens sujas”, embora fale
em tom generalizante e não de Euzébio em particular.
Confiante de seu sucesso, dia 28, sob a manchete em grandes letras: “Guerra
aos embusteiros e charlatãs” (sic) proclama o resultado da análise da beberagem
de Constantina, em que foram detectados areia vermelha e um pó escuro, com
resíduos de “ácido fosfórico, cal, traços de arsênico e de sódio”, o que o jornal liga
imediatamente à terra de cemitério. Bem, depois desses feitos, suas reportagens
perdem o tom, porque embora tente manter a empáfia e o tom duro contra os
“feiticeiros”, o jornal começa a revelar as pressões que andam sofrendo de parte
dos acusados e de outros setores, que não nomina.
Assim, já incomodado e pressionado pelas repercussões e ações de Euzébio,
O Dia anuncia o pretenso depoimento de um vizinho, comerciante estabelecido  206
nas redondezas, cuja mãe foi enganada por esse curandeiro. Nesse relato anôni-
mo, afirmava-se que Euzébio fazia magia negra, com bonequinhos a serem tres-
passados com alfinete.67 Entretanto, embora diga que esse informante virá teste-
munhar “às claras” sobre o que aconteceu com sua família, isso nunca acontece,
e, com isso, o jornal foi perdendo sua credibilidade. Um dos principais reveses que
sofre é o resultado da publicação da análise química dos compostos utilizados
pelos curandeiros, que atesta que a amostra fornecida por Euzébio não contém
nada mais que cocção de ervas indígenas misturadas à canela e açúcar, sem traço
sequer de elementos nocivos à saúde.68 A pouca validade da denúncia dos chás ca-
seiros, a ausência de depoimento do informante anônimo ou a declinação de seu
nome, fez com que, sem o combustível para suas denúncias, o jornal diminuísse o
seu ímpeto, citando casos aqui e acolá, sem mais tentar escândalos com o agora
chamado de “insolente” Euzébio.
O evidente mal-estar do jornal tem razão de ser: desde que saiu a primeira
reportagem, Euzébio Coutinho tomou medidas para se proteger e desfazer o con-
teúdo das reportagens — ele as acusa de mentirosas e espalhafatosas —, com
o objetivo de vender jornais e/ou fazer chantagem contra ele, já que a empresa
estaria com suas “finanças avariadas”69. Para defender-se das denúncias, encon-
trou apoio dos vizinhos, amigos e alguns clientes que firmaram abaixo-assinado,
testemunhando em seu favor, por meio do jornal O Rebate (em 28 de setembro de
1916). Também fez reuniões de apoio em salões da cidade, buscou o licenciamento

66 ornal O Dia 25 set. 1916.


67 O Dia, 4 e 5 out. 1916. O jornal apenas diz que é um comerciante respeitado do varejo e que estaria disposto
a depor na polícia.
68 O Dia, 03 out. 1916.
69 O Rebate, 26 jan. 1916.

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médico na capital, além de outras possíveis ações, que se pode apenas intuir, para
com padrinhos e pessoas influentes, pelos resultados alcançados. E depois, passou
ao ataque,
A primeira medida foi colocar um Apedido no jornal O Rebate. Nele, Coutinho
lembrava que já uma vez teve que se diferençar de Euzébio da Silva, em esclare-
cimento datado de maio de 1915, o qual ele republica dia 26 de setembro de 1916,
acrescentando novos comentários sobre as denúncias de que foi vítima. Assim, Eu-
zébio Coutinho primeiro se distingue de Euzébio da Silva e depois passa a discorrer
sobre sua vida.
Como é o único momento em que ele sintetiza sua trajetória, vamos colocar
sua visão:

Sou filho daqui, meus pais eram africanos, educaram-me conforme suas
posses e conhecimentos, e eu tive a felicidade de viver sempre em per-
feita harmonia nesta cidade.
Fui casado e atualmente sou viúvo, contando 67 anos de idade.
Há muitos anos venho dando instruções de danças, tendo sido os meus
ensaios frequentados por muitos dignos moços, comerciantes, acadê-
micos, empregados do comércio, operários, etc., e isto sempre com a
máxima simpatia e respeito.
Sou conhecido pelas autoridades e pelas pessoas de minhas relações,
como chefe de família e respeitador da ordem, e também proprietário
nesta cidade, residindo à rua Marques de Caxias n. 470.

 207 Como cidadão brasileiro, filiei-me ao pujante Partido Republicano, des-


de a sua fundação.
Possuo o título de sócio benemérito de várias sociedades, sendo sócio
fundador da benemérita Sociedade União Pelotense.70

Este documento é importante, pois demonstra os sinais de respeitabilidade


e inserção social que conseguiu ao longo da vida e que são usados em sua defesa.
O fato de ter sido escravo e filho de escravos não é tocado por ele, nem por seus
detratores, o que provavelmente significa que os redatores de O Dia não sabiam
disso.71 Depois de colocar-se como proprietário, cidadão, eleitor, católico pratican-
te e auxiliar da Igreja (a única associação citada nominalmente por ele, a União
Pelotense, é vinculada diretamente ao Bispado e voltada para os trabalhadores),
condena as reportagens pelo seu teor sensacionalista e mentiroso. Confirma que
receita chás caseiros a doentes que o procuram e continua:

A minha casa está franca a devassa do público e das autoridades. Ali não
há bruxarias, nem mandingas, nem feitiços, nem burundangas congê-
neres. Tenho um altar com os santos que venero. Isso é um direito que
ninguém me pode extorquir, pois a Constituição do meu país garante a
liberdade de cultos, maximé portas à dentro do meu lar.72

Neste momento, afirma que o objetivo do jornal seria fazer chantagem, ex-
torquindo-lhe “o que tenho honestamente adquirido” e diz ter trazido até a reda-
ção de O Rebate várias pessoas que atestaram suas curas. No dia seguinte repete-

70 O Rebate, 26 set. 1916.


71 O Dia diz que Euzébio sempre viveu a vida folgadamente e sem canseiras, e o chama de malandro em
vários momentos, sinal de que não sabia de seu anterior estado, pois teriam certamente explorado este
elemento para mostrar o “atraso” de suas práticas, como tudo que estava relacionado ao passado escra-
vocrata. Mesmo assim, fizeram referência à África, e, uma vez, o trataram por “preto velho”.
72 O Rebate, idem.

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-se o mesmo apedido, que é modificado dia 28 de setembro, em um imenso artigo


em que Euzébio ataca seus detratores. O tom é virulento, desafiador e procura
atingir pessoalmente os redatores de O Dia, apelidados de “súcia de caluniado-
res”, sinal de que havia procurado informações sobre eles. Perdoem os leitores,
mas são necessárias ainda outras citações para que se compreenda a amplitude e
o tom do artigo, que acusa os redatores de várias condutas impróprias, entre elas:

Saiba o João Ninguém das torturas, que me não troco por si e por toda
a sua bagagem. Sou preto, mas me considero muito acima de cafajestes
como esses que me estão agredindo porque não lhes quis tapar a boca
com alguma nota do tesouro, de alto valor, ou com algum dos meus
bens de raiz, que tanto os desespera.
Nunca andei fugido, nunca fui condenado por caluniador, nunca roubei
a propriedade literária de outrem, nem andei as voltas com a polícia. Ja-
mais fui encontrado bebendo ou nos antros de perdição, às voltas com
as marafonas de ínfimo jaez, como era visto, no Rio Grande, o sevandijo
que ora me ataca, procurando cuspir-me o pus da sua alma podre e re-
pelente.73

Ao final, as acusações são ainda mais diretas e desafiadoras, em um desa-


bafo, impossíveis de acreditar que fossem feitas por alguém que temesse alguma
retaliação:

Agora, faça o mesmo o compodócio TORTURA.


Apresente, como eu, um atestado de sua conduta ou o mais leve docu-
 208
mento abonatório das suas qualidades morais.

Farçante! Pulha!
Se ele tivesse brio, quebraria a pena que tanto tem poluído e achinca-
lhado, para entrar para a empresa do lixo e meter-se entre varais, único
lugar que lhe compete.
Engana-se o biltre se supõe que eu me submeterei as suas diatribes.
Hei de vergastal-o com a minha altivez, dizendo o que ele foi, o que é,
e o que há de ser – um nulo, chato, pretensioso e charlatão, que vive
sonhando grandezas, quando não passa de um...
qualquer coisa.
Pelotas, 28 de Setembro de 1916.
Euzébio de Queiroz Coutinho Barcellos.74

Obviamente, Euzébio só pôde se dirigir assim a seus opositores, porque es-


tava bem amparado, tanto pelo Partido Republicano quanto por pessoas de suas
relações na cidade e talvez pelos seus contatos em Porto Alegre. Afinal, ele tinha
sido cativo de uma família importante e numerosa, que também contava ainda
com ramificações variadas, dentro e fora da cidade. Soube cultivar essas relações

73 O Rebate, 28 set. 1916. Ao longo do artigo, ele insinua que um dos seus detratores esteve envolvido com a
tortura, em cidade próxima, que deve ser Rio Grande. Como o estado havia passado pelo conflito oligárquico
de 1893, em que a violência ocorreu de lado a lado e a cidade de Rio Grande, durante algum tempo, concen-
trou boa parte dos opositores a Castilhos, é possível que estivesse se referindo a algum evento lá acontecido.
Mas facilmente pode também ser uma calúnia, feita apenas para desmoralizar seus antagonistas.
74 O Rebate, Idem.

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durante toda sua vida, que transcorreu dentro dos marcos da legalidade permiti-
da. O fato de ser professor de dança deve tê-lo deixado em contato constante com
as gerações de moços da elite, com quem seguramente contou num momento
desses. A redação e os termos utilizados em suas respostas indicam que provavel-
mente foram redigidas por outros75, mas firmadas por ele; portanto, qualquer tipo
de responsabilidade ou processo por difamação recairia sobre ele; não há notícias
ou processos que provem que essa querela foi parar na Justiça, nem de seu lado,
nem do jornal.
Seus inimigos, por outro lado, não tinham ligações fortes com a cidade e
com o poder municipal. Não sendo parte das famílias da elite, sendo adversários
da Igreja Católica, forasteiros com qualificação bacharelesca, e um ou dois deles
com passagem pela oposição ao PRR: realmente não estavam bem municiados
para o embate, mesmo com um negro ex-escravo. Não se conseguiu saber a quem
Euzébio pretendia atingir com as insinuações de torturas, plágio, ou conduta imo-
ral. Talvez nunca se possa saber ao certo se suas acusações tinham ou não razão
de ser; o importante é que elas surtiram efeito: as reportagens do jornal termina-
ram, o delegado de polícia não tomou nenhuma providência e tudo que restou aos
redatores foi, desconsoladamente, publicar uma última notícia, dia 10 de outubro
de 1916, denunciando a passividade dos policiais frente à festa com foguetório e
bombas reais com que foi inaugurada a placa de médico de Euzébio.76
Como resultado desse escândalo, Euzébio deve ter encontrado alguns pro-
blemas para explicar sua situação com a Igreja, mas pela própria descrição de seus
 209 inimigos fica claro que sua fama e suas práticas de culto eram todas marcadas pelo
símbolo da cruz e do catolicismo. O próprio repórter não pôde descrever nenhuma
estátua que não de santos católicos em seu altar e “dois imensos rosários”, ainda
acrescentando que Euzébio mencionava que curava em nome de São Zacarias, São
Jerônimo e São Praxedes e que parecia rezar o Pai Nosso com “sinceridade”77.
Assim, credenciado até pelos inimigos, Euzébio deve ter conseguido refazer seus
laços com a Igreja rapidamente, pois continuara a pertencer às mesmas entidades
católicas de antes.
E, para completar, já que dizia trabalhar dentro da lei, ele pede ― e consegue
em tempo espantosamente curto ― a licença para atuar como médico, o que era
permitido pelas leis do estado, conforme o artigo 71, parágrafo 5: “não são admi-
tidos também no serviço do estado os privilégios de diplomas escolásticos ou aca-
dêmicos, quaisquer que sejam, sendo livre no seu território, o exercício de todas as
profissões de ordem moral, intelectual e industrial”.78
Joaquim Osório, em Comentários à Constituição política do estado do Rio
Grande do Sul, obra considerada como documento básico da doutrina castilhista,
considera que a seleção de profissionais habilitados para o exercício de qualquer
profissão é uma escolha do cliente e que não deve o estado interferir nessas ques-
tões, o que configuraria uma “tirania revoltante”, especialmente no caso particu-
lar da medicina. O que cumpre ao estado é zelar para que não haja possibilidade de
fraude ou engano do profissional para com seu paciente e cuidar de punir a quem,

75 ����������������������������������������������������������������������������������������������������������
Do próprio punho de Euzébio tem-se sua assinatura, no inventário da esposa, que indica falta de familiari-
dade com a escrita, pelo menos.
76 O Dia, 10 out. 1916. Remoído pela raiva, o redator menciona uma festa “com bródio e vinhaça”, mas, pode-se
imaginar que isso corre pelo seu ressentimento, pois seguramente foram servidos finos doces pelotenses
e vinhos estrangeiros, além de cerveja, comprados nos melhores estabelecimentos da cidade.
77 O Dia, 25 set. 1916.
78 OSORIO, Joaquim. Constituição política do Estado do Rio Grande do Sul: um comentário. Brasília: EdUNB,
1981, transcrição da constituição do estado, artigo 71, parágrafo 5.

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com suas práticas, levar terceiros ao agravamento do estado de saúde, mostrando


imperícia ou ineficácia. Após relembrar que ocorrem centenas de erros médicos,
afirma que o médico diplomado tem apenas a presunção de seu saber, o que nem
sempre é comprovado. Por outro lado, os curandeiros são perseguidos, pois se
considera que são sempre ignorantes. Contudo, diz ele, “é certo que tem havido
e há grande número deles [curandeiros] práticos, experientes admiravelmente
dotados de poder observador e que tem descoberto na nossa flora preciosas plan-
tas medicinais”. Após lembrar que no Brasil boa parte de sua população vivia nos
campos, locais onde não existiam médicos e onde os curandeiros eram o derradei-
ro “recurso das populações, para os quais voam as esperanças dos aflitos. Podem
dar disto eloquente exemplo os sertões de minha terra natal”.79 Ora, a terra natal
do ilustre advogado e político, descendente da família do General Osório, era a
cidade de Pelotas. Portanto, conhecia bem sua zona rural, suas charqueadas, com
seus usos e costumes. Provavelmente até conhecesse Euzébio como professor de
danças, pois morou em Pelotas em sua infância e juventude.
Daria um outro artigo o deslindar da complexa rede que Euzébio acionou
para conseguir vencer os brancos redatores e os cultos bacharéis de O Dia.80 Ele
foi o único a vir a público e desafiar seus oponentes, apelando para a liberdade de
culto e para sua posição de cidadão brasileiro. Uniu, a seu favor, posições confli-
tantes, pois, se encontrou espaço no oposicionista jornal O Rebate para veicular
suas respostas, também acionou seus contatos no governo. Talvez, quem sabe,
teve um auxílio a seu favor do coronel Aurélio Veríssimo de Bittencourt (afrodes-
cendente porto-alegrense e devoto de Nossa Senhora do Rosário, que, em 1916,
ainda ocupava o cargo de secretário particular do governo Borges de Medeiros), o  210
que lhe valeu a velocidade com que sua licença foi concedida pelo governo. Isso é
algo ainda a ser comprovado, mas o importante é que está dentro do território do
possível, dada a rede de relações e amizades que montou dentro e fora da Igreja
e do PRR.
E, com isso, consolidou-se a vitória em todas as frentes de Euzébio. Vitória
não discreta, tanto que ele afronta mais uma vez seus inimigos (e, possivelmente,
o delegado...), ao fazer uma comemoração em regra, com banda, dança, comes
e bebes. Nesse momento, foi saudado efusivamente pela comunidade afrodes-
cendente, embora a notícia abaixo seja extremamente contida, não falando nos
foguetórios, brindes e comidas que compuseram a festa. O jornal A Alvorada era
o porta-voz da comunidade negra e um certo recato frente ao sucesso fazia parte
do modelo de bom tom da época, pelo menos na sociedade pelotense. Assim, o
título da notícia é um despretensioso “festa íntima”, com o objetivo de reforçar
a respeitabilidade do grupo (note-se que, em nenhum momento anterior, o jornal
comentou a polêmica e as denúncias contra Euzébio):

Foi imponente a festa íntima realizada domingo passado, na residên-


cia do senhor Euzébio de Queiroz Coutinho Barcellos, em regozijo do
recebimento de sua carta de médico. Foi cumprimentá-lo a Filarmônica
União Democrata e um avultado número de amigos. Encerrou a festa
um sarau dançante, que prolongou-se até altas horas da madrugada.
Mais uma vez felicitamo-lo.81

79 Idem, ibidem, p. 243.


80 Em uma última reportagem (10 out. 1916), O Dia faz algumas insinuações, a propósito da comemoração:
“o famoso mandingueiro Euzébio, que festejou a impunidade e a frouxidão do Sr. Cristovão dos Santos
[delegado de polícia] anteontem, com dúzias e dúzias de foguetes de lomba (sic) real, alguns deles, aliás
em homenagem ao sr. Promotor público da comarca...”
81 A Alvorada, 15 out. 1916, p.2.

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O espaço mina na cidade


Mas há um último elemento que deve ser levado em conta na história desse
personagem, o qual remete novamente à escravidão: sua origem, o local onde se
criou e o fato de que era considerado “mina”. Seus parentes, bem como a maioria
do lote de escravos da charqueada do Comendador Barcellos, por ocasião de seu
nascimento, era de africanos e seus descendentes e, entre eles, os nagôs, também
chamados minas, eram a maioria. Sua mãe era Nagô, Cosme era nagô e vários ou-
tros pretos velhos eram “mina”, que, para a cidade, tinham o mesmo sentido que
nagô. Sabe-se que o termo mina teve muitos usos no Brasil e variou no tempo e
no espaço. Segundo Scherer82, minas e nagôs, combinados, formaram a maioria
dos plantéis dos estabelecimentos empresariais da vizinha cidade de Rio Grande,
e, por extensão, pode-se dizer o mesmo de Pelotas, pois todos os trabalhadores
escravizados entravam por esse porto marítimo.
Crescendo na charqueada, Euzébio deve ter se beneficiado de conhecimen-
tos ancestrais dos africanos de varias paragens, bem como da farmacologia de
eventuais índios ainda existentes na região. Seu espírito, voltado ao misticismo
e à religião, características que o acompanharam por toda a vida, deve ter se in-
teressado pela aprendizagem dessas receitas, que depois utilizava em suas curas
(recorde-se a análise química dando conta de cocção de “ervas provavelmente
indígenas”, do laudo do laboratório sobre suas poções de cura).

 211
Não é objetivo aqui a análise de suas sessões de cura ou dos remédios que
empregava, o que serve apenas para demonstrar que, em sua vida republicana, Eu-
zébio também se utilizou de suas vivências e experiências anteriores, as quais, em
parte, haviam sido “esquecidas” pela comunidade negra urbana pelotense. Mesmo
profundamente entrosado no contexto social do século XX, Euzébio ainda cultivava
os traços das experiências dos africanos que mais o interessavam. Seguramente
não foi à toa que ele e seu irmão, juntamente com outros negros oriundos de an-
tigas charqueadas (conforme dedução possível a partir dos patronímicos que utili-
zaram), fundaram uma sociedade que ainda relembrava os africanos, como se viu
acima. Para Euzébio e outros ex-escravos, o Brasil da modernidade e da integração
ao capitalismo industrial, sonhado e louvado por todos, no início do século XX, ain-
da podia se beneficiar de práticas mais antigas, mesmo que de forma camuflada.
A este respeito, fica como curiosidade o relato de que, quando os autores deste
artigo estavam buscando por memórias sobre Euzébio na cidade, ficaram sabendo
que, durante o século XIX e XX existiu em Pelotas um espaço constituído por algu-
mas ruas perto do porto, chamada hoje Zona da Balsa, ocupadas preferencialmen-
te por africanos dessa procedência. A menção do nome de Euzébio Coutinho Bar-
cellos, para um idoso afrodescendente, ainda provocou inquietação, acompanhado
da pergunta sobre por que queríamos saber dos “minas” na cidade. Infelizmente,
nada mais se quis falar sobre esse assunto, embora várias vezes fosse procurado.
Seu receio retorna a questão de temores do passado. Segundo Juliana Farias,
no Rio de Janeiro durante o período imperial, os minas tinham o domínio da venda
de feitiços aos brancos, que os temiam. Essa autora, por meio das crônicas de João
do Rio, articula a procedência mina (variada e genérica também naquela província)
ao comércio de feitiçarias, benzeduras e outras práticas, com grande sucesso.83

82 SCHERER, Jovani. A nação da liberdade: os minas e outros grupos...


83 FARIAS, Juliana. Mercados Minas. Africanos ocidentais na praça do mercado do RJ (1830-1890). São Paulo,
USP, 2012 Tese (Doutorado em História). p. 267/268.

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BEATRIZ ANA LONER, MIGUEL A. V. C. FILHO, UBIRAJARA SOARES MONTEIRO

Em todo o Brasil Império, houve uma aura sobre o “preto mina”, normal-
mente considerado ardiloso, capaz de muitas formas de resistência e pessoa a
qual tanto os outros negros como os brancos temiam. Segundo Chalhoub, no Rio
de Janeiro se consolidou a história do liberto mina como agente que seduzia os de-
mais escravos a se deixarem vender para outros senhores, o que poderia ser uma
forma de buscar um cativeiro menos duro ou reencontrar as pessoas amadas.84
Sabe-se que os minas ou nagôs, quase que em toda parte, conseguiam libertar-se
mais frequentemente do que os escravizados de outras etnias.
Euzébio, como descendente desse grupo e do qual nunca se desligou, teve
êxito em sua função de curador também por causa de sua ascendência e, provavel-
mente, dos segredos que trazia do cativeiro. A análise do chá caseiro que passou
ao repórter (que deveria ser combinada com a ingestão de “azeite doce” aqueci-
do) deixa claro que muito havia de sabedoria negra e indígena em suas práticas, as
quais, por outro lado, se acoplavam a uma visão bastante espiritualizada da medi-
cina, considerando que não era apenas o corpo, mas também o espírito, que devia
ser curado em caso de doenças. Segundo J.J. Reis, “a farmacopeia nagô-iorubá...
é riquíssima em folhas tanto para ataque, quanto para proteção, para beneficiar e
prejudicar...”85
Cabe, ainda, uma palavra final sobre esta personagem e ela vai ser feita no
plural: a análise da trajetória de Euzébio nos custou muito tempo e foi feita com
muito cuidado por todos os integrantes da equipe. Isso não significa que fomos
motivados apenas pela curiosidade, ou pelo afã de demonstrar a trajetória de um
indivíduo com um perfil oposto ao que se espera de um ex-escravo de charqueada.
Na verdade, o personagem é fascinante por si mesmo e, embora no início tenha
 212
sido desprezado, porque não era “proletário”, quando o foco recaiu sobre ele, foi
fácil desenvolver uma grande empatia por ele, ao observar suas artimanhas, suas
formas de contornar situações extremamente desfavoráveis para impor seus inte-
resses, desenvolvendo uma trajetória impar.
Euzébio demonstra uma mistura de inventividade e audácia, combinada com
modéstia e discrição, que tornou viável sua trajetória. A maior lição de Euzébio foi
ter conseguido impor-se naquela sociedade, por suas qualidades e por ser sagaz e
astuto. Como ele, outros ex-escravos viveram durante a Primeira República e luta-
ram por melhores condições de vida para seu grupo, em alguns casos para a classe
operária, e, em última análise, para eles próprios e para suas famílias. A reconsti-
tuição dessas múltiplas histórias, tanto as que deram certo como as que falharam,
é fascinante e deve ser feita pelos historiadores de todo o Brasil, pois essa não é
uma questão local.
O objetivo desses estudos, em nosso entender, é o de, em alguns anos, se
ter uma ideia melhor de como homens e mulheres negros, libertos do fantasma
da reescravização e de suas consequências a partir de 1888 (e apesar de tudo o
que se possa falar da precariedade da liberdade nos “tempos modernos” do capi-
talismo) lutaram para viver e adaptar-se às novas condições de vida. Ao longo das
décadas da Primeira República, algumas vezes venceram, na maioria dos casos
foram empurrados para trás, pela sina do operariado no Brasil e pela frustrante e
presente discriminação racial que sempre os atingiu. Mas, ao fim e ao cabo, não
foram pobres coitados, incapazes de viver por si mesmos. Buscaram oportunida-
des e empregos, aproveitaram ocasiões e padrinhos, lutaram e militaram alguns,

84 CHALHOUB, S. A força da escravidão. Op. cit., p. 155 e seguintes.


85 REIS, J. J.. Domingos Sodré, um sacerdote africano. Op. cit., p. 152.

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DE ESCRAVO A DOUTOR: EUZÉBIO DE QUEIROZ COUTINHO BARCELLOS

nas sociedades operárias. Milhares se conformaram, alguns tiveram momentos de


glória, outros reconheceram-se derrotados. Mas, enfim, sempre tentaram melho-
rar de vida, tal como os brancos, tal como o operariado comum. Para não deixar
de citar Thompson86, mesmo que na última frase, nesse sentido, não precisam da
comiseração ou condescendência de nossa parte, precisam é de mais estudos.

Recebido em 08/02/2013
Aprovado em 7/06/2013

 213

86 THOMPSON, Edward. A formação da classe operária inglesa. v. 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

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A ação coletiva da classe patronal de
Porto Alegre nas grandes greves da
Primeira República (1917-1919)
César Augusto Bubolz Queirós*

Resumo: Este artigo tem o objetivo de analisar as estratégias utilizadas pela classe
patronal de Porto Alegre nos embates com o movimento operário organizado e
suas associações nas grandes greves da Primeira República. Pretendo demonstrar
que esse período proporcionou um processo de tomada de ações coletivas e de
um verdadeiro fazer-se da classe patronal, que passou a atuar de modo organi-
zado nas negociações com os trabalhadores grevistas.

Palavras-chave: Patronato, Greves, Movimento Operário

Abstract: This paper aims to analyze the strategies employed by the Porto Alegre’s
employer class during the Brazilian’s First Republic period strikes. I intend to show
that this period provided a process of taking collective action and make a real up
the employer class, which began operating in an organized manner in the negotia-
tions with the striking workers.

Keywords: Employers, Strikes, Labor Moviment

Ao longo da Primeira República, os confrontos entre o patronato e a clas-


se operária organizada no estado do Rio Grande do Sul foram uma constante. As
greves se sucediam com velocidade e dinâmica espantosas ― sobretudo, no pe-
ríodo entre 1917 e 1919 ― e, por mais que houvesse repressão da parte da força
pública, parecia que esses movimentos nunca se extinguiriam.1 O patronato porto-
-alegrense (e aqui me refiro, em especial, aos proprietários de estabelecimentos
industriais e manufatureiros), por sua vez, passou a adotar estratégias coletivas
diante da erupção dessas mobilizações paredistas que teimavam em estourar na
capital. Neste artigo, procurarei analisar as estratégias coletivas utilizadas pela
classe patronal porto-alegrense para enfrentar o movimento operário organizado
e suas associações durante as grandes greves da Primeira República. Darei ênfase
à greve de 1919, em virtude de que, durante esse movimento paredista, ao contrá-
rio das greves de 1917 e 1918, a maioria das reivindicações dos sindicatos classistas
foi dirigida ao patronato, transformando-o no principal interlocutor dos grevistas.

* Doutor pela UFRGS


1 Sobre as greves nesse período, ver: QUEIRÓS, César Augusto Bubolz. Estratégias e Identidades: as relações
entre governo estadual, patronato e trabalhadores nas grandes greves da Primeira República em Porto
Alegre (1917-1919). Tese (Doutorado em História). Porto Alegre: UFRGS, 2012.

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CÉSAR AUGUSTO BUBOLZ QUEIRÓS

Em 1917 e 1918, talvez por causa da influência da carestia provocada pelo cenário
internacional conturbado, as reivindicações foram dirigidas prioritariamente ao
governo do estado. Tratava-se de uma disputa entre interesses evidentemente
incompatíveis, durante a qual os patrões foram, gradativamente, organizando-se
como classe, a fim de enfrentarem o repertório de ações coletivas do operariado,
repertório este informado por uma longa tradição militante.
Antes, contudo, vou procurar entender quem eram os patrões em Porto Ale-
gre naquela conjuntura e em que ramos atuavam, considerando que “os empre-
gadores são um ator central nos conflitos do trabalho”, sendo, juntamente com o
estado, “o adversário e o interlocutor privilegiado dos grevistas”.2

1.1 O patronato em Porto Alegre: breve caracterização


Nesta seção, farei uma breve caracterização da classe patronal de Porto Ale-
gre no contexto das grandes greves da Primeira República, com o objetivo de co-
nhecer quem eram esses industriais ou empresários, destacando seus ramos de
atuação e a mão de obra que empregavam. Não pretendo, aqui, ressalva-se, fazer
uma história da industrialização em Porto Alegre, uma vez que outros trabalhos já
se debruçaram justamente sobre esse ponto.3
Inicialmente, cabe ressaltar que a industrialização em Porto Alegre, no início
do século XX, possuía um caráter muito incipiente, com indústrias de baixa tecnolo-
gia, em geral manufaturas, empregando pouca mão de obra; eram os proprietários
desses estabelecimentos, enfim, que faziam os embates com o proletariado duran-
 216
te as greves aqui estudadas, em um “panorama industrial [...] quantitativamente
dominado pelos pequenos estabelecimentos”.4 Apesar desse predomínio das uni-
dades produtivas de pequeno porte, com baixa ou nenhuma utilização de maquiná-
rio, e escasso emprego de mão de obra, o desenvolvimento industrial no estado se
deu “pela progressiva tecnificação [sic] de algumas empresas líderes, que se impu-
seram no mercado e se tornaram responsáveis pelo dinamismo do setor”.5
O patronato da capital, portanto, era composto por um considerável núme-
ro de proprietários de pequenos estabelecimentos industriais e comerciais, e de
um reduzido, mas significativo, número de empresas que apresentavam volumosa
soma de capital investido; ampla utilização de maquinários, importados, sobretu-
do, da Europa; e considerável quantidade de mão de obra empregada. Em suma,
de um lado, um grupo reduzido de empresas líderes, e, de outro, “um grande nú-
mero de pequenas empresas, com reduzido capital, caracterizadas pela presen-
ça do trabalho artesanal predominante frente a um quase inexistente número
de máquinas”.6 Nesse sentido, Reichel salienta o fato de que “ao se comparar os
números referentes às medidas do capital e mão-de-obra empregados por unida-
de, verifica-se que a indústria do Rio Grande do Sul se apresentava formada por
pequenas empresas com baixo volume de capital investido”.7 Na mesma linha, a

2 SIROT, Stéphane. La Grève em France: une histoire social. (XIX-XX siècle). Paris: Odile Jacob, 2002, p. 201.
3 Ver, por exemplo: PESAVENTO, Sandra Jatahy. A Burguesia Gaúcha: dominação e disciplina do trabalho.
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988; SINGER, Paul. Desenvolvimento Econômico e Evolução Urbana (análise
da evolução econômica de São Paulo, Blumenau, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife). 2.ed. São Paulo: Na-
cional, 1977.
4 PESAVENTO, Op. cit., 1988, p. 20.
5 Idem, p. 21.
6 Ibidem, p. 19.
7 REICHEL, Heloisa Jochims. A Industrialização do Rio Grande do Sul na República Velha. In: DACANAL, José
H.; GONZAGA, Sérgius (orgs.). RS: Economia e Política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979, p. 257.

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A AÇÃO COLETIVA DA CLASSE PATRONAL DE PORTO ALEGRE NAS GRANDES...

respeito da estrutura produtiva do estado naquele período, Aravanis destaca “a


coexistência de dois ‘tipos’ básicos de espaços de produção, bem como, conse-
quentemente, de dois ‘tipos’ de operários fabris, os artesãos ‘das oficinas’ e os
operários ‘das fábricas’”.8
A respeito da Fábrica de Pregos de João Gerdau e Filhos, Marcovitch confirma
o caráter semiartesanal e o baixo grau de especialização da produção. Nessa fábri-
ca, a “operação industrial em si era bastante simples. A matéria-prima limitava-se
ao arame que chegava da Alemanha em rolos de oitenta quilos. Depois de limpos
para a retirada da ferrugem acumulada durante o transporte, eram encaminhados
para as máquinas de fabricação de pregos, seguindo-se o controle de qualidade e
o empacotamento”.9
O caráter artesanal ou semiartesanal da maioria dos estabelecimentos da ca-
pital contrastava com a mecanização existente em algumas empresas que conta-
vam com sofisticado maquinário importado da Europa. A Fábrica Berta, por exem-
plo, de propriedade de Alberto Bins10, possuía instalações que, sob a ótica de um
visitante, estavam “repletas de máquinas dos tipos mais modernos e custosos”.11
Uma descrição da Companhia Fiação e Tecidos Porto-Alegrense12 informava que a
“fábrica tem 85 teares e 112 outras máquinas, aperfeiçoadíssimas. Seu motor é da
força de 250 cavalos. Duas grandes caldeiras fornecem vapor para o motor e para
todos os serviços da fábrica. Possui também a companhia, para consertos neces-
sários nos seus maquinismos, oficinas de ajustadores e carpinteiros”.13 Constituía-
-se para a época retratada em um verdadeiro “jardim industrial”, com “vastas col-
 217 meias, onde os obreiros atuam febrilmente”.14
Essa progressiva mecanização da produção levava as empresas a produzirem
cada vez “mais e em melhor tempo, o que permitia à indústria equiparar-se, em
termos de mercado, a concorrentes melhor aparelhados”.15 Tal desenvolvimento
tecnológico era vigorosamente amparado em bases tayloristas, as quais pressu-
punham a valorização da otimização do tempo fabril, da aceleração da produção
e da redução do número de operações.16 Nesse sentido, por exemplo, a fábrica de
Ernesto Neugebauer era dividida em dez seções: “é a fábrica servida por 2 motores
a vapor, que acionam 30 máquinas e 10 caldeiras próprias para a fabricação de con-
feitos. Além disso, há seções de cartonagem e funilaria, sendo esta última servida

8 ARAVANIS, Evangelia. A industrialização no Rio Grande do Sul nas primeiras décadas da República. Revista
Mundos do Trabalho, Porto Alegre: UFSC, v. 2, n.3, 2010, p. 152.
9 MARCOVITCH, Jacques. Pioneiros e empreendedores: a saga do desenvolvimento no Brasil. São Paulo:
EdUSP, v.2, 2005, p. 274.
10 ��������������������������������������������������������������������������������������������������������
Alberto Bins foi um dos industriais mais importantes de Porto Alegre. Era proprietário nos ramos da fun-
dição (União de Ferros, Cofres Berta) e da estalagem (Estaleiro Bins). Tornou-se Intendente Municipal
após a morte de Otávio Rocha, em 1928. FAUSEL, Erich. Alberto Bins: o merlense brasileiro. São Leopoldo:
Rotermund & Cia. Ltda., s.d.; BAKOS, Margareth. Porto Alegre e seus eternos intendentes. Porto Alegre: Edi-
PUCRS, 1996; PESAVENTO, Sandra. O Imigrante na Política Rio-Grandense. In: DACANAL, José; GONZAGA,
Sérgius (org.). RS: Imigração e Colonização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992.
11 LLOYD’S, Reginald (edit.). Impressões do Brazil no Século Vinte: sua história, seo povo, commercio, indus-
trias e recursos. Rio de Janeiro: Lloyd’s Greater Britain Publishing Company Ltda., 1913, p. 814.
12 Inaugurada em 6 de agosto de 1891, com o capital de Rs. 1.600:000$000, foram seus incorporadores os srs.
Manoel Py, Antonio Chaves Barcellos, Nogueira de Carvalho & Cia., Antonio José Gonçalves Mostardeiro e
o Banco da Província do Rio Grande do Sul. A empresa era administrada por três diretores, eleitos de dois
em dois anos.
13 LLOYD’S, Op. cit., 1913, p. 814.
14 Revista Máscara, Porto Alegre, 1922. apud PESAVENTO, Op. cit., 1988, p. 39.
15 PESAVENTO, Op. cit., 1988, p. 21.
16 ���������������������������������������������������������������������������������������������������������
Pesavento, analisando alguns textos publicados na imprensa gaúcha, mostra a nítida influência dos precei-
tos tayloristas sobre o empresariado local. PESAVENTO, Op. cit., 1988, p. 23. Sobre Taylor e sua doutrina,
ver: RAGO, Luzia Margareth; MOREIRA, Edmundo E. P. O que é Taylorismo? São Paulo: Brasiliense, 1984.

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CÉSAR AUGUSTO BUBOLZ QUEIRÓS

por um motor elétrico, que aciona 10 máquinas”.17 A descrição da fábrica prosse-


guia mencionando que “no próprio estabelecimento [...] trabalham atualmente
150 operários, em sua grande maioria mulheres”, afirmando, ainda, que a fábrica
“foi premiada com grandes prêmios, medalhas de ouro e prata em exposições
do Estado do Rio Grande do Sul, dos Estados Unidos, de Milão e ultimamente na
Exposição do Rio de Janeiro, com grande prêmio e diversas medalhas de ouro”.18
Outra fábrica que se sobressaía por seu maquinário era a F. C. Kessler & Cia.19,
na qual eram manufaturadas todas as qualidades de chapéus. Essa empresa, que
tinha de 150 a 160 trabalhadores, entre homens e mulheres, possuía de “40 a 50
máquinas de diferentes fabricantes ingleses, incluindo 8 máquinas de coser, movi-
das a vapor, uma de gravura em ouro para encadernações e uma para a fabricação
de caixas de papelão. Todo o maquinismo é acionado por força elétrica, gerada
por um motor a vapor de 55 hp, fabricada pela casa Steinmüller da Alemanha”.20
Devo considerar, porém, que esta “[...] burguesia industrial corresponderia a
uma fração não-hegemônica da classe dominante”21 em um contexto marcado por
um capitalismo tardio e dependente. Ao contrário dos demais estados da Federa-
ção, nos quais as iniciativas industrializantes surgiram a partir de uma estreita rela-
ção com o capital agrário, a industrialização da capital gaúcha teve como ponto de
partida o desenvolvimento das atividades econômicas exercidas pelos imigrantes
italianos e alemães que colonizaram a depressão central do estado. A acumulação
de capital proveniente do surgimento de um excedente originário, no início, de uma
agricultura de subsistência que passaria a suprir, depois, as demandas dos grandes
centros cafeeiros proporcionou o surgimento de um mercado interno significativo,
capaz de alavancar o desenvolvimento manufatureiro e industrial. Esse excedente
 218
comercializável produzido às margens dos rios Jacuí, Pardo, Taquari, Sinos e Caí
vinha até Porto Alegre, que se transformara em um escoadouro da produção da-
quelas regiões.22 Tal posição foi reforçada por meio da fundação de ferrovias que
acabavam por reproduzir rotas comerciais já estabelecidas anteriormente.23
Todavia, as primeiras cidades do estado a se industrializarem foram Rio Gran-
de e Pelotas. Essa anterioridade se explica por uma maior participação do capital
comercial no Sul do Rio Grande do Sul, antes de 1890, e pela “presença marcante
do porto de Rio Grande na navegação de cabotagem, sendo um dos polos estra-
tégicos do comércio colonial, em especial com a região Rio-São Paulo”.24 Mas, a
despeito dessa precedência, no início do século XX, a capital já apresentava maior
quantidade de estabelecimentos industriais em funcionamento. A própria estrutu-
ra industrial verificada em Porto Alegre e naquelas duas cidades diferia bastante:

Em Rio Grande, principalmente, ela se caracterizava por apresentar


grandes estabelecimentos, com índices de capital e mão-de-obra em-

17 Idem, p. 817.
18 Ibidem.
19 A fábrica de Chapéus de Félix Christiano Kessler foi fundada em 1907 com o nome Mayer e Kessler. Em
1908, com a saída de Mayer, a fábrica passou a chamar-se F. C. Kessler & Cia. e a ter como sócio Frederico
Dexheimer. A fábrica se localizava na Rua dos Voluntários da Pátria e, em 1913, era considerada “uma das
mais importantes fábricas do Estado do Rio Grande do Sul”, produzindo “todas as qualidades de cha-
péus”. LLOYD’S, Op. cit., 1913, p. 817.
20 Idem, p. 819.
21 PESAVENTO, Op. cit., 1988, p. 13.
22 SINGER, Op. cit., 1977, p. 172.
23 Sobre o desenvolvimento das ferrovias no Estado, ver: DIAS, José Roberto Souza. Caminhos de Ferro do
Rio Grande do Sul. São Paulo: Editora Rios, 1986.
24 HARDMAN, Francisco; LEONARDI, Vitor. História da Indústria e do Trabalho no Brasil. São Paulo: Global,
1982, p. 66.

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A AÇÃO COLETIVA DA CLASSE PATRONAL DE PORTO ALEGRE NAS GRANDES...

pregada acima das médias e pouca diversificação dos ramos industriais


(tecelagem, charutos, conservas alimentícias). Já em Porto Alegre, ha-
via um núcleo muito maior de fábricas que, apesar de se constituírem,
em média, de pequenos capitais, apresentavam uma maior diversifica-
ção industrial.25

Em um censo industrial realizado no ano de 1920, observa-se que Porto Ale-


gre empregava 24,3% de todos os operários de indústrias do estado, contando com
221 estabelecimentos contabilizados.26 Entre eles, posso mencionar os segmentos
mais expressivos: as indústrias têxteis (F. G. Bier, Companhia Fiação e Tecidos Por-
to Alegrense, A. J. Renner & Cia); as empresas relacionadas à fabricação de móveis
(Walter Gerdau27, Caetano Fulginiti, José Sanguinetti, D. Collin, Arnt, Depperman &
Cia); fábricas de chapéus (Kessler & Cia, Oscar Teichmann & Cia) e de pregos (João
Gerdau); perfumaria, sabão e velas (Victor Fischel, Campani & Cia., L. P. Barcellos
& Cia); cervejas (cervejarias Becker, Bopp e Ritter & Filhos); doces (Ernesto Neuge-
bauer); serrarias (Fortunato Travi, Hüber & Müller, Santo Meneghetti, Jacob Frie-
drich28, Otto Kuhn, Irmãos Elly, Serraria Garibaldi); balanças (Guilherme N. Filho);
vidros (Cia de Vidros Sul Brasileira de propriedade de Martin Hogsdedt29); metalúr-
gicas (Mabilde30 & Cia, Alberto Bins, Edgar Booth e Francisco Clausen, Alcaraz &
Cia, Só Filhos, José Becker & Irmão, Jacques Maas, Cypriano Micheletto & Irmão,
Otto Outeiral, Bromberg & Cia, Guilherme Knack e João R. Alves), entre outros.
No recenseamento do estado do Rio Grande do Sul do ano de 192031, notei
que a capital concentrava a maior parte das indústrias metalúrgicas (fogões, cofres,

 219
pregos, fechaduras, fundições...), das fábricas de roupas e chapéus, e de mármore
do estado, totalizando duzentos e vinte e um estabelecimentos industriais dos mil
setecentos e setenta e três registrados naquele momento, quase 12,5% do total de
estabelecimentos. Esse percentual pequeno de indústrias concentradas em Porto
Alegre em relação ao interior do estado se deve ao grande número de estabele-
cimentos ligados à atividade agrária, entre os quais destaco os seguintes: arreios
e artigos de selaria (88), carros e carroças (39), calçados (96), fumos, charutos e
cigarros (47), curtumes (77), serrarias (334), enxadas, foices e outras ferramentas
(30), olarias (152), moagem de cereais (61) e moagem e torrefação de café (63).
Em outro relatório do mesmo ano, relativo ao 4.º Distrito32, percebi a impor-
tância das indústrias de móveis e de tecidos naquela região, empregando, respec-
tivamente, duzentos e cinquenta e um, e mil e quarenta e sete trabalhadores. A
fábrica de doces de Ernesto Neugebauer também se destaca no quesito mão de
obra empregada, com duzentos e vinte funcionários. No mesmo relatório, notei
que a jornada de trabalho nos estabelecimentos daquela região variava entre oito
e doze horas, sendo que quase 75% possuíam uma jornada de nove horas e quase
12% adotavam jornadas superiores a isto.

25 REICHEL, Op. cit., 1978, p. 262.


26 RECENSEAMENTO INDUSTRIAL DO BRASIL 1920 (1925). Rio de Janeiro, Tipografia de Estatística.
27 Sobre os Gerdau, ver: FLORES, Hilda. As empresas de João Gerdau, Porto Alegre: Gerdau, 1980, p. 106; e
MARCOVITCH, Jacques, Op. cit., p. 273.
28 Jacob Friederichs possuía uma serraria, fundada em 1888, que funcionava à Rua Voluntários da Pátria.
29 A fábrica da Companhia de Vidros Sul-Brasileira foi estabelecida em 1892. Martin Hogsdedt, diretor do
estabelecimento, era de nacionalidade sueca e veio para o Brasil em 1885.
30 Sobre o Estaleiro Mabilde ver: MABILDE, Adriano Ballejos. Estaleiro Mabilde: as relações com os funcioná-
rios e o estado (1896-1943). Dissertação (Mestrado em História), Porto Alegre: PUCRS, 2009.
31 ��������������������������������������������������������������������������������������������������������
Por questão de espaço, retirei esta e outras tabelas que constavam no original e mantive apenas as aná-
lises. (Consultar as tabelas em minha tese de doutorado já citada). FUNDAÇÃO INSTITUTO BRASILEIRO
DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Séries estatísticas retrospectivas. Rio de Janeiro: IBGE, v. 1, 1986, p. 4-8.
Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv17983_v1.pdf
32 Relatório da Subintendência do Quarto Distrito, apresentado ao intendente José Montaury de Aguiar
Leitão em 1920. Arquivo Histórico de Porto Alegre. Sobre o 4.º Distrito, ver: FORTES, Op. cit., 2004.

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CÉSAR AUGUSTO BUBOLZ QUEIRÓS

A influência do capital comercial, proveniente da região da Depressão Cen-


tral do estado no desenvolvimento econômico de Porto Alegre, fez com que este
patronato fosse composto por um significativo número de teutodescendentes ou
mesmo de imigrantes alemães. Em levantamento que realizei sobre a origem do
patronato porto-alegrense, verifiquei que, entre os proprietários de estabeleci-
mentos industriais e comerciais da cidade, havia muitos alemães, como Guilherme
Becker, Bernardo Sassen, Ernesto Neugebauer, J. Aloys Friederichs, Jacob Friede-
richs, Martin Bromberg, João Pabst, Victor Fischel e Oscar Teichmann; alguns filhos
de alemães, entre eles Alberto Bins, João e Hugo Gerdau, e Henrique Waldemar
Ritter; e alguns netos de alemães, como Affonso Selbach, Antônio Jacob Renner
e Walter Gerdau. Havia, ainda, proprietários de outras nacionalidades, como os
espanhóis Raphael Arbos e José Salvador e o sueco Martin Hogsdedt. Na mesma
linha, Pesavento afirma que Porto Alegre, no começo do século XX, “ostentava vá-
rias casas comerciais cujos proprietários eram alemães ou de origem: Menke, Wie-
dmannn, Félix Kessler, Folzer, Pietzker, Gertum, Steenhage, Luchsinger, Muradt,
Warncke e Doerken, Schmitt, Lüderitz eram os novos nomes que vieram somar-se
aos tradicionais luso-brasileiros”.33 Lagemann também salienta que o elemento
imigrante foi pioneiro “na produção de tecidos, banha de porco, conservas, bebi-
das, doçaria, madeiras, couros, máquinas, tabaco, vidros, papel, fósforos e produ-
tos químico-farmacêutico”34, apesar de “não pode[r] ser atribuída [ao imigrante]
a exclusividade da implantação da indústria no RS, mas apenas sua afirmação e
diversificação”.35 Em relação a Porto Alegre, Pesavento sublinha a relevância do
imigrante alemão igualmente no comércio da capital, enfatizando ainda, como já
foi dito, a influência do capital comercial no desenvolvimento industrial da cidade,
 220
diferenciando-o do restante da industrialização nacional, mais vinculada ao capital
agrário. Segundo a autora,

a importância do comércio alemão já se fez notar por ocasião da funda-


ção da Praça do Comércio de Porto Alegre, em 1858 (Heizen e Ebert).
Já em 1878, dos seus 146 membros, 37 eram de origem alemã (Heizen,
Ebert, Haag, Wolkmann, Schilling, Haenzel, Ter Brüggen, Fraeb, Holt-
zweissig, Hirch, Folzer, Becker, Bastian, Bins, Bier, Dauth, Christoffel,
Daiken, Dexheimer, Issler, Pettersen Wallau etc.).36

Em 1911, a lista de diretores da Praça do Comércio37 contava com diversos


nomes da comunidade germânica, entre eles: Arthur Bromberg (vice-presidente),
Franz Reimer, Theobaldo Francisco Xavier Friederichs (tesoureiro), F. G. Bier, The-
odor Jacobi, Leopoldo Dexheimer, Arthur Mundt e João Patzel. Completavam a
lista Hemetério Mostardeiro (presidente), João Henrique Aydos (primeiro secre-
tário), Frederico Gomes (segundo secretário), Herminio de Almeida, Augustin Fer-
nandes, José Barbará, Mario Amaro da Silveira, Honório Brito e Antonio Chaves de
Barcellos Filho.38

33 PESAVENTO, Sandra. De como os alemães tornaram-se gaúchos pelos caminhos da modernização. In:
MAUCH, Cláudia; VASCONCELOS, Naira (org.). Os alemães no sul do Brasil: cultura, etnicidade e história.
Canoas: Ulbra, 1994, p. 201.
34 LAGEMANN, Eugênio. Imigração e Industrialização. In: DACANAL, José H.; GONZAGA, Sérgius (org.). RS:
imigração e Colonização. 2. ed., Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992, p. 118.
35 LAGEMANN, Op. cit., 1992, p. 127.
36 PESAVENTO, Sandra Jatahy. In: DACANAL, José H.; GONZAGA, Sérgius (org.). Op. cit., p. 163.
37 ��������������������������������������������������������������������������������������������������������
Fundada em 1857, a Praça do Comércio de Porto Alegre era uma sociedade civil, com personalidade jurídi-
ca, sendo o órgão autorizado do comércio da capital do Rio Grande do Sul.
38 LLOYD’S, Op. cit., 1913, p. 819.

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A presença significativa de teutos na economia porto-alegrense pode ser per-


cebida nos mais variados setores. No ramo metal mecânico, nota-se a importância
de empresas como Klüve e Müller, Alberto Bins, Joseph e Nicolau Becker, Emme-
rich Berta, Guilherme Knack, Guilherme Bostelmann, Germano Ullner, Francisco
Klaus, Johan Gerdau, Pedro Wallig, Samuel Uhr, Waldomiro Schapke, Hans Lindau,
Armando Martau, Scerneling e Hertzfeldt.39 Na produção de bebidas, evidencia-se
o mesmo: “Bopp, Sassen, Ritter, Christoffel, Bohrer, Volkmer, Voight e Hack, Lue-
bb, Lippert, Lackmann e muitos outros dariam contorno absolutamente alemão
para o setor cervejeiro da indústria porto-alegrense”.40
É interessante observar igualmente as relações existentes entre os membros
do patronato porto-alegrense de origem germânica, que contribuíram para a sua
constituição como classe, tanto do ponto de vista empresarial quanto no que se
refere às ligações entre as famílias por intermédio do casamento. Referindo-se às
associações étnicas formadas por alemães, Gertz esclarece que “as lideranças des-
sas instituições muitas vezes conclamavam a população a não casar com pessoas
de outra etnia, a não abandonar sua língua, a não se ‘meter em política’, pois o
envolvimento político era considerado um dos mais perigosos elementos para a
perda da ‘germanidade’”.41 Notadamente, essas associações tinham o objetivo de
evitar que os emigrantes perdessem seus vínculos culturais e econômicos com seu
país de origem. Além disso, acrescento, o fortalecimento de tais vínculos ― espe-
cialmente na elite econômica do estado ― favorecia sua inserção econômica na re-
gião. Desse modo, destaco alguns casamentos no seio desta elite alemã: Henrique
 221 Valdemar Renner casou-se com Paulina Kessler; sua sobrinha-irmã, Elizabeth Ren-
ner, casou-se com Guilherme Becker e, após a morte dele, com Bernard Oswald
Sassen; sua irmã, Elizabeth Ritter Trein, casou-se com Christian Jacob Trein; sua
filha, Catarina Trein, casou-se com Frederico Mentz; Frederico Augusto Ritter ca-
sou-se com sua prima Olga Ritter; Hugo Gerdau, filho mais velho de João Gerdau,
casou-se com Ottília Bins, irmã de Alberto Bins; Helda Gerdau, filha de João Ger-
dau, casou-se, em 1930, com Curt Johanpeter; etc.
Tais casamentos podem ser interpretados como uma estratégia de sobrevi-
vência e ascensão no sistema de relações sociais e econômicas vigente na cidade,
como “arranjos” familiares que tinham também por finalidade acumular e preser-
var o capital social dentro de uma rede de relações mais estrita. Capital esse que
poderia ser convertido, posteriormente, em capital econômico. Bourdieu define
capital social como

o conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse


de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de
interconhecimento e de inter-reconhecimento ou, em outros termos,
à vinculação a um grupo, como conjunto de agentes que não somente
são dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas
pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos), mas também são
unidos por ligações permanentes e úteis.42

O autor enfatiza a questão da utilidade prática dos relacionamentos e a pos-


sibilidade de que haja a conversibilidade desse capital social em outros tipos de ca-

39 PESAVENTO, Op. cit., 1994, p. 201.


40 PESAVENTO, Op. cit., 1994, p. 201.
41 GERTZ, René. A construção de uma nova cidadania. In: MAUCH, Cláudia; VASCONCELOS, Naira (org.). Os
alemães no sul do Brasil: cultura, etnicidade e história. Canoas: Ulbra, 1994, p. 30.
42 BOURDIEU, Pierre (1980). O capital social – notas provisórias. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (org.).
Pierre Bourdieu: escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 67.

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pital, os quais possam significar, por exemplo, acesso direto a recursos econômi-
cos (empréstimos subsidiados, informações de negócios, mercados protegidos),
contatos com especialistas ou com pessoas cultas, e filiação a instituições políticas
e/ou sociais. Assim, os casamentos representam oportunidades de ascensão ou ma-
nutenção de posição social. Um exemplo para o caso específico aqui examinado: ao
analisar as razões da indicação de Alberto Bins para o Legislativo Federal, um docu-
mento manuscrito de 1924, citado por Gertz, afirma que ele era “um bom militante
do catolicismo” e seu nome satisfazia “tanto o elemento católico como o protestan-
te germânico, tanto o comércio quanto a indústria e a lavoura”. Bins agradaria ao
protestantismo germânico em virtude do fato de sua irmã, Ottília Bins, ser casada
com o luterano Hugo Gerdau.43 Os relacionamentos pessoais, familiares e étnicos
acabavam convertidos, enfim, para o campo econômico. Nesse sentido, Flores espe-
cula que João Gerdau, o qual havia possuído negócios de comercialização privada de
terras para fins de colonização com Manoel Py na Colônia de Santo Ângelo, obteve,
por intermédio deste último, informações privilegiadas a respeito das dificuldades
da Cia. Fábrica de Móveis, que teve Py como um de seus liquidantes.44
Além das relações familiares, as empresas de propriedade de alemães e teuto-
-brasileiros também se associavam entre si, gerando diversas inversões de capital
e uma diversificação das suas aplicações. Um bom exemplo desse fenômeno e das
ligações propriamente econômicas estabelecidas entre os membros da comunida-
de germânica é a empresa Bromberg & Cia. De propriedade de Martin Bromberg,
figurava entre as mais antigas e importantes do Rio Grande do Sul. Possuía casas
comerciais em Rio Grande, Pelotas, Santa Maria, Uruguaiana, Passo Fundo e Porto
Alegre, e filiais no Rio de Janeiro, em Buenos Aires e em Montevidéu. A empresa  222
importava ferragens, ferro bruto, maquinismos para toda a sorte de indústrias,
arame, máquinas para agricultores, cimento, tintas, cevada e lúpulo para cerveja-
rias e outros materiais para uso de fábricas diversas. Realizava, ainda, investimen-
tos em fábricas de tijolos, plantações de arroz e serrarias, instalações elétricas e
outras de força e luz. Meu interesse, contudo, consiste em suas associações com
empresários de origem germânica como, por exemplo: Oscar Teichmann, dono de
uma fábrica de chapéus; as casas “João Day, Bromberg & Cia., importadores; Luiz
Noelcher & Cia., negociantes a varejo, de ferragens, utensílios sanitários e casei-
ros; O Cilindro, importadores de máquinas de costura, utensílios para eletricidade,
instalações elétricas, máquinas de escrever, espingardas e armas diversas, muni-
ções etc.; União de Ferros (Bromberg, Daudt & Cia.), importadores de ferro bruto,
aço, cobre, bronze e outros materiais, ferramentas para ferraria e materiais para
construção”.45 Sobre a mescla entre o familiar e o empresarial, Pesavento ressalta:

Christian Jacob Trein e seu cunhado Henrique Ritter Filho eram sócios
não apenas numa casa comercial em Caí, mas também na cervejaria que
fundaram em Porto Alegre, em 1894. Trein e seu genro, o comerciante
Frederico Mentz, montaram, por sua vez, um estabelecimento para re-
finação de banha na capital do Estado. Anton Jacob Renner, filho de co-
merciante proprietário de refinaria de banha, de serraria e de empresas
construtoras de moinhos do Caí, tornou-se sócio da firma comercial de
seu sogro, Christian Jacob Trein. Em 1911, montou uma fábrica de capas
impermeáveis em Caí, com Frederico Engel [...]. Em 1916, transferiu-se

43 GERTZ, René. O Aviador e o Carroceiro: política, etnia e religião no Rio Grande do Sul dos anos 1920. Porto
Alegre: EdiPUCRS, 2002, p. 56.
44 FLORES, Hilda. As empresas de João Gerdau. Porto Alegre: Gerdau, 1980, p. 99; e MARCOVITCH, Op. cit.,
2005, p. 273.
45 LLOYD’S, Op. cit., 1913, p. 819-820. Ver também: PESAVENTO, Op. cit., 1994, p. 201.

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para Porto Alegre, estabelecendo-se com a empresa de fiação e tece-


lagem que daria surgimento ao conglomerado das Indústrias Renner.
Adolpho Carlos Oderich, depois de trabalhar como caixeiro-viajante de
uma casa comercial em Porto Alegre, abriu seu próprio negócio de im-
portação de fazendas em Caí e, em 1908, juntamente com outros co-
merciantes, montou uma fábrica de banha no município de Canoas.46

Observo, assim, as interligações entre os laços econômicos e os laços de ami-


zade e parentesco que se entrecruzavam e se complementavam. Por conseguin-
te, os mesmos nomes, os mesmos patrões são identificados em diversos espaços
sociais: nos lares, nos clubes sociais e esportivos47 e, é claro, nos investimentos
econômicos. Para o que me interessa neste artigo, eles também se encontram na
constituição de uma efetiva classe patronal que, diante das reivindicações e mobi-
lizações do operariado (o qual, é preciso lembrar, também contava com diversos
elementos de origem teuta), precisou se organizar e se unificar.
Desse modo, percebi que, apesar do predomínio de pequenos estabeleci-
mentos com baixíssima utilização de tecnologia e pouca quantidade de emprega-
dos, a cidade contava também com um significativo número de grandes empresas,
com emprego de maquinário moderno para a época e aproveitamento de signifi-
cativa mão de obra. Muitos dos sócios ou proprietários desses estabelecimentos
eram de origem teuto-brasileira. A seguir, analisarei as estratégias adotadas pelo
patronato no enfrentamento com o operariado nos momentos de greve, as quais,
dialeticamente, contribuíram para a constituição da classe patronal.
 223
1.2 Estratégias patronais
Após esta concisa apresentação do patronato da capital do estado no início do
século XX, irei abordar as estratégias por ele adotadas durante os embates com os
operários ao longo das greves aqui examinadas. Devo ressaltar que as práticas utili-
zadas pela burguesia representam estratégias de conservação/sucessão e têm como
finalidade a preservação do status quo e de suas posses materiais. Pretendo, nesse
âmbito, e ainda que de forma breve, tratar do processo de organização classista do
patronato, do “fazer-se” da classe patronal. Como mencionei no início deste capítu-
lo, darei especial ênfase à greve generalizada de 1919, visto que a pauta de reivindi-
cações dos trabalhadores era direcionada preferencialmente aos patrões.
Tanto a greve de 1917 quanto a de 1918, como demonstrei no primeiro capítu-
lo de minha tese de doutorado48, foram greves gerais deflagradas por associações
operárias que reuniam diferentes sindicatos classistas e que reivindicavam a le-
gitimidade de representar seus interesses diante de determinados interlocutores
(estado e patrões). Foram, portanto, movimentos mais unificados e homogêneos
que a greve de 1919, a qual pode ser considerada uma greve “eruptiva” ― utilizan-
do a expressão de Perrot ―, na verdade uma sucessão de greves que se desen-
cadeavam simultaneamente, sem uma coordenação conjunta. Tais movimentos
ocorriam como erupções do magma em ebulição, difundindo-se como uma epide-
mia. Perrot denominou greves desse tipo de “eruptivas”, pois ocorrem como se

46 PESAVENTO, Op. cit., 1994, p. 202.


47 SILVA, Carolina Fernandes da. O Remo e a História de Porto Alegre, Rio Grande do Sul: mosaico de identi-
dades culturais no longo século XIX. Dissertação (Mestrado em Ciências do Movimento Humano), Porto
Alegre: UFRGS, 2011.
48 QUEIRÓS, Op. cit., 2012.

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estivessem “possuídas por uma força exterior, irresistível”.49 E, de fato, as parali-


sações de 1919 se sucediam de modo quase que incontrolável: cada vitória de uma
categoria impulsionava as reivindicações de outras, e assim sucessivamente. Ou
seja, as greves gerais dos anos anteriores irromperam a partir do chamamento de
associações operárias que centralizavam e conduziam as ações coletivas de seus
sindicatos associados. Na greve geral de 1917, foi criada a Liga de Defesa Popular
(LDP), um comitê com a participação dos anarquistas e dos pedreiros sindicalistas,
que, no decorrer do movimento paredista, converteu-se em uma espécie de centro
diretor do movimento. Do mesmo modo, em 1918, a greve foi convocada por três
associações operárias ― Federação Operária do Rio Grande do Sul (FORGS), União
Geral do Trabalhadores (UGT) e União Metalúrgica ―, que representavam os inte-
resses dos trabalhadores paredistas. Em 1919, como as exigências dos operários
eram encaminhadas diretamente ao patronato, sem a intermediação do estado,
o conflito de classes tornou-se mais agudo. A escalada dos movimentos ocorridos
durante esse ano ― em sua maioria, vitoriosos ― fez com que as mobilizações de
setembro se radicalizassem. Durante o movimento paredista, o subchefe da polícia
da 1.ª região, Dr. Eurico Lustoza, mandou organizar uma estatística dos operários
paralisados50, que discriminava o número de grevistas em cada uma das empresas
pesquisadas. No quadro, observei a grande quantidade de padarias que aderiram à
greve, 14 estabelecimentos, totalizando cento e setenta e quatro trabalhadores pa-
ralisados. Percebi que algumas padarias possuíam mais de vinte operários parados:
a Padaria Feliz, com vinte e oito; a Padaria Popular, com vinte e dois; e a Padaria

 224
Varsóvia, com vinte. Outro ramo com significativa participação foi o têxtil, com um
total de oitocentos e sessenta e seis operários em greve. Se fossem somados os
empregados do setor têxtil com os da Cia Força & Luz, daria um total de 65,94% dos
operários acima relacionados. Devo observar, contudo, que o quadro omite impor-
tantes categorias em greve, como os carpinteiros, os sapateiros, os alfaiates e os
operários do ramo metalúrgico, por exemplo. Segundo o Correio do Povo, cerca de
seiscentos metalúrgicos teriam aderido ao movimento51, o que elevaria o número
de grevistas para três mil, demonstrando a força daquele movimento.

1.2.1 Vitórias operárias, demissões, participação


política e lockouts
A partir de maio de 1919, movimentos grevistas rebentaram em muitos es-
tabelecimentos da capital. Antes, em abril, eclodiu uma greve dos operários que
trabalhavam nas obras do cais.52 Esta durou até o início de julho, quando os pa-
trões propuseram um aumento de 1$000 (mil réis) para os operários da serraria e
5$000 (cinco mil réis) para os que trabalhavam no cais propriamente dito, e mais
sete dias de salário a título de gratificação.53 Em maio, trapicheiros e estivadores
também aderiram à paralisação. Segundo O Syndicalista, em poucos dias, a cate-
goria retornou vitoriosa ao trabalho.54 No mesmo mês, o Sindicato de Resistência
dos Alfaiates deflagrou uma greve geral da categoria.55 A mobilização durou oito

49 PERROT, Op. cit., 1984, p. 35-36. Tradução minha. (A referência completa não foi citada anteriormente.)
50 Correio do Povo, Porto Alegre, 06 set. 1919, p. 3.
51 Correio do Povo, Porto Alegre, 18 jul. 1919, p. 4.
52 O Syndicalista, Porto Alegre, 27 maio 1919, p. 2.
53 O Syndicalista, Porto Alegre, 01 maio 1919, p. 3.
54 Idem.
55 O Syndicalista, Porto Alegre, 01 maio 1919, p. 4.

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dias, até que os proprietários das alfaiatarias apreciassem uma nova tabela de pre-
ços elaborada pelo sindicato, que foi posteriormente atendido em suas reivindica-
ções.56
Ainda no mês de maio, o Sindicato Padeiral declarou-se em greve, postulan-
do que fossem postos em liberdade os padeiros presos na greve anterior e que
uma comissão de higiene fiscalizasse as padarias mensalmente.57 Este sindicato
também foi bem-sucedido em suas reivindicações.58 No final de julho, o Sindica-
to dos Operários em Calçados proclamou-se em greve, exigindo aumento de 25%
nos ordenados e redução da jornada de trabalho.59 De acordo O Syndicalista, vários
proprietários já teriam cedido às intenções dos grevistas, entre eles: Fábrica Castor,
Sapataria Pontual, Casa Condor, A Pontualidade, Bota de Ouro, Jacinto Pandolpho,
Botinha de Ouro, Sapataria Roma, Pedro Mansur, Theobaldo Klein, João Martineli,
J. Buanove, Maximílio Ouriques, Arthur Hultsch, E. Lima e Cia., Gustavo Hartz, Fre-
derico Strassburger, Avelino Freitas, Alcides Ignácio Moreira e Francisco Brino.60
Uma estratégia desenvolvida pelos proprietários de certos estabelecimentos
com o objetivo de desestimular os operários a aderirem aos movimentos paredistas
e de garantir a continuidade da produção era substituir os trabalhadores em greve.
Segundo Sirot, durante as greves, “a necessidade de manter a produção, reduzi-
da ou suspensa pela greve, se impõe. A maneira mais elementar e a mais direta
consiste na contratação de novos trabalhadores”.61 E em 1919, esse foi um artifício
bastante recorrente por parte do empresariado. A diretoria da Cia. Força e Luz, por
exemplo, “havia conseguido contratar vários maquinistas e foguistas licenciados

 225
da armada que aqui se achavam e que deram começo ao trabalho de aquecimento
das caldeiras da usina”, contratando também em São Paulo “pessoal para trabalhar
na sua usina, o qual [tinha] embarcado pela estrada de ferro com destino a essa
capital”.62 A mesma Companhia publicou uma série de anúncios nos quais oferecia
empregos a maquinistas e foguistas interessados em substituir os grevistas.63 A em-
presa, ainda, divulgou na imprensa e afixou o seguinte aviso nas suas portas:

Previne-se aos empregados desta companhia que, dentro do prazo su-


ficiente para o conhecimento deste aviso, serão os mesmos considera-
dos despedidos e substituídos caso não se apresentem para assumir os
seus lugares.
Os retardatários que alegarem moléstia ou força maior serão readmiti-
dos, desde que suas alegações forem plenamente justificadas.
Aqueles que se demonstrarem desafetos [sic] à companhia, perturban-
do o serviço e a disciplina serão em tempo demitidos.64

No ano anterior, quando ocorrera a interrupção do fornecimento de ener-


gia elétrica em virtude da paralisação dos operários que trabalhavam na usina da

56 O Syndicalista, Porto Alegre, 27 maio 1919, p. 2. Neste número d’O Syndicalista encontra-se a tabela apre-
sentada pelos alfaiates e um boletim da categoria. A tabela foi transcrita em minha tese de doutorado.
Ver também: Gazeta do Povo, Porto Alegre, 15 maio 1919, p. 2. Até o início de junho, apenas “os srs. João
Meneghetti e Sassen não haviam dado a definitiva resposta que, entretanto, sabia-se satisfatória”. Gazeta
do Povo, Porto Alegre, 06 jun. 1919, p. 3.
57 O Syndicalista, Porto Alegre, 01 maio 1919, p. 3. Esta greve foi abordada no capítulo III de minha tese de
doutorado.
58 Gazeta do Povo, Porto Alegre, 26 maio 1919, p. 3.
59 Correio do Povo, Porto Alegre, 29 ago, 1919, p. 4.
60 O Syndicalista, Porto Alegre, 02 ago 1919, p. 3.
61 SIROT, Op. cit., 2002, p. 207.
62 A Federação, Porto Alegre, 05 set. 1919, p. 5. Ver também: Correio do Povo, Porto Alegre, 05 set. 1919, p. 5.
63 Correio do Povo, Porto Alegre, 05 set. 1919, p. 1.
64 A Federação, Porto Alegre, 06 set. 1919, p. 5.

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Companhia Força & Luz65, o presidente do estado ordenou o restabelecimento do


serviço, promovendo a ocupação militar do estabelecimento66 e enviando alguns
homens que estavam recolhidos nas prisões do 1.º e 3.º distritos para substituírem
os grevistas.67 O socorro ao patronato por parte do estado, ao convocar indivíduos
reclusos para trabalharem no lugar de operários grevistas, foi recorrente em ou-
tros movimentos paredistas ocorridos no período.
Outras empresas também vinham demitindo sistematicamente os emprega-
dos grevistas como, por exemplo, a Padaria Varsóvia, de propriedade de Carlos
Tropowski, que já havia dispensado todos os seus funcionários ― em número de
vinte, segundo o Correio do Povo, e de quarenta, segundo manifesto da União Ma-
ximalista68 – e a sapataria de Mendelski que, “no afã de sua cólera divina despe-
diu todos os seus empregados 40 homens”.69 A Companhia Telephônica (empresa
Ganzo, Durruty & C) adotou a mesma postura e, no dia 4 de setembro, demitiu
os vinte e um operários que se achavam parados, declarando encerrada a gre-
ve naquela empresa.70 A mesma companhia já havia demitido, no final de agosto,
dois operários “por pertencerem ao sindicato daquela empresa”71, e feito circular
boletins informando que a empresa dispensaria mais quinze empregados “pelo
mesmo motivo”72. Em editorial escrito por Carlos Bonhomme e intitulado Motivos
justificados, resolução injusta, o Correio do Povo criticou a decisão da Companhia
de demitir os empregados, frisando a justeza de suas reclamações e os inconve-
nientes que tal atitude poderia provocar ao comércio e aos assinantes em geral.73
No movimento grevista de 1917, recorreu-se à idêntica estratégia. Mesmo
que, nesta greve, o estado tenha atuado no sentido de atender o que fora pleitea-
do pelos grevistas e propalado fazer a “incorporação do proletariado à sociedade
 226
moderna”, os patrões não se mostraram propensos a repetir o “exemplo” forne-
cido pelo governo. Um exemplo disso é que, na fábrica de meias da Cia. Fabril Por-
to Alegrense, mandou-se “prevenir aos grevistas em suas residências que haviam
sido dispensados de seus serviços na fábrica”74 e, logo em seguida, foram con-
tratados outros funcionários. Observei que essa estratégia patronal de troca de
empregados grevistas por outros trabalhadores podia carregar consigo o ônus de
promover uma radicalização dos embates com o operariado, uma vez que tal ati-
tude era moralmente rechaçada por não coadunar, na opinião dos militantes, com
o repertório de “armas” de uma “greve limpa”. Desse modo, vi, por exemplo, que,
em virtude do aviso veiculado pela Cia. Força e Luz, houve o atentado à bomba na
sede da companhia75, enquanto que os operários admitidos para substituírem os
grevistas na Cia. Fabril Porto Alegrense eram “constantemente ameaçados pelos
grevistas que pretendem até proibi-los de trabalhar”.76 Apesar disso, diversas ou-
tras empresas dispensaram sem nenhuma relutância os operários que quiseram
aderir à greve. Entre eles, as dos srs. J. Ayres Friedrich, F. C. Kessler, Oscar Teich-

65 A Federação, Porto Alegre, 22 jul. 1918, p. 6.


66 A Federação, Porto Alegre, 22 jul. 1918, p. 6.; Correio do Povo, Porto Alegre, 23 jul. 1918, p. 6.
67 Correio do Povo, Porto Alegre, 23 jul. 1918, p. 4.
68 Correio do Povo, Porto Alegre, 06 jul. 1919, p. 1 e Ao Povo Sedento de Liberdade. União Maximalista. Anexo
9. In: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Processo-Crime n.º 1.016, Porto Alegre, 1919, p. 20.
69 Ao Povo Sedento de Liberdade. União Maximalista. Anexo 9. In: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Proces-
so-Crime nº 1.016, Porto Alegre, 1919, p. 20.
70 Correio do Povo, Porto Alegre, 05 set. 1919, p. 5.
71 Gazeta do Povo, Porto Alegre, 29 ago. 1919, p. 3.
72 Idem.
73 Correio do Povo, Porto Alegre, 07 set. 1919, p. 1.
74 ESTADO do Rio Grande do Sul. Arquivo Público do Estado. Processo-Crime n.º 833. Porto Alegre: 1917, p. 77.
75 Correio do Povo, Porto Alegre, 07 set. 1919, p. 10.
76 ESTADO do Rio Grande do Sul. Arquivo Público do Estado. Processo-Crime n.º 833. Porto Alegre: 1917, p. 21.

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A AÇÃO COLETIVA DA CLASSE PATRONAL DE PORTO ALEGRE NAS GRANDES...

mann e Cia., Kessler e Vasconcelos e Walter Gerdau.77


A estratégia de demissão e substituição de operários em greve não se limi-
tava, é claro, apenas ao patronato porto-alegrense. Em outras cidades do estado,
lançou-se mão com frequência do mesmo recurso. Por exemplo: durante a greve
dos estivadores, ocorrida no ano de 1919, na cidade de Pelotas, as autoridades
“obrigaram uns infelizes presos a trabalharem a bordo dos navios em substitui-
ção dos estivadores que se acham em greve, reclamando as justas oito horas de
trabalho e aumento de salário”.78 Isso também teria ocorrido em Rio Grande, na
greve daquele ano, quando “os presos que se acham recolhidos no segundo posto
fizeram o serviço de descarga de carvão para a Usina Elétrica”79. Para a imprensa
operária, o governo do estado fazia “exatamente como [...] a Alemanha com os
prisioneiros de guerra”, denunciando, ainda, que a “polícia a serviço do burguês
não escolhe os meios. Transforma os presos em escravos”.80
Outra estratégia do patronato diante das ações coletivas dos operários era
recorrer ao estado, a fim de buscar apoio e garantia para a “liberdade de traba-
lho”. Por essa razão, a identificação feita pelos trabalhadores entre estado e bur-
guesia se torna compreensível. O primeiro foi, inúmeras vezes, convocado para
intermediar as divergências de interesse existentes entre as duas classes. No en-
tanto, “esta mediação dos conflitos entre patrões e operários pelo Estado jamais é
desinteressada: sua primeira preocupação é a contenção da agitação”.81 Um exem-
plo do comportamento do patronato em solicitar auxílio do governo verifica-se no
decorrer das greves de setembro de 1919, quando os proprietários e diretores de
 227 estabelecimentos cujos operários estavam paralisados dirigiram-se ao presidente
do estado, a fim de mostrar-lhe a situação aflitiva pela qual passava a indústria
local e solicitar-lhe providências. Dirigiram-lhe, ainda, um relatório com o objetivo
de “lhe provar a situação precária em que ficaria a indústria se concedesse as exi-
gências dos grevistas”.82
A despeito de a burguesia industrial ser, naquele momento, uma fração não
hegemônica da classe dominante no Rio Grande do Sul, a tomada de algumas posi-
ções no campo político passou a ser uma alternativa para fortalecer suas posições
no âmbito econômico e proteger seus interesses. Ou seja, parecia ser insuficiente
a esta elite usufruir o poder econômico; ela precisava também alcançar posições
político-institucionais, a fim de obter “os meios principais do exercício do poder, de
adquirir e conservar riqueza, e de configurar as principais vantagens do prestígio”.83
Nesse sentido, é necessário compreender os mecanismos que levaram esse privi-
legiado grupo econômico a fazer a passagem de um campo ao outro. Mills afirma
que, normalmente, as mesmas pessoas que “[...] governam as grandes empresas,
governam o aparelho do Estado e exigem as suas prerrogativas, [...] ocupam os
postos de comando na estrutura social nos quais estão centrados agora os instru-
mentos efectivos do poder e a riqueza e a celebridade de que gozam”.84

77 O Syndicalista, Porto Alegre, 03 set. 1919, p. 1.


78 Aos Trabalhadores. Anexo 23. ESTADO do Rio Grande do Sul. Arquivo Público do Estado. Processo-Crime
n.º 1016, Porto Alegre: 1919.
79 O Syndicalista, Porto Alegre, 27 maio 1919, p. 1.
80 O Syndicalista, Porto Alegre, 27 maio 1919, p. 1.
81 SIROT, Op. cit., p. 234.
82 A Postos Operários – Manifesto da FORGS. 04 set. 1919. Anexo 15. In: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.
Processo-Crime n.º 1.016, Porto Alegre, 1919.; Correio do Povo, Porto Alegre, 03 set. 1919, p. 5.
83 �������������������������������������������������������������������������������������������������������
MILLS apud CORADINI, Odaci L. Engajamento associativo-sindical e recrutamento de elites políticas: ten-
dências recentes no Brasil. Revista de Sociologia e Política, v.28, 2007, p. 195-217.
84 MILLS, C. W. La Elite del Poder. México: Fondo de Cultura Económica, 1957, p. 11-12.

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Os membros da elite econômica da capital foram sendo recrutados pelo par-


tido então hegemônico ― o PRR ― para suas fileiras, e empresários como Alberto
Bins começaram a exercer um papel efetivo em termos de participação nas políti-
cas públicas. Bins foi eleito conselheiro municipal em 1908; representante na As-
sembleia Estadual em 1913, 1917, 1921 e 1926; vice-intendente em 1924 e intendente
municipal em 1928.85 Teria sido conduzido à esfera política por intermédio do pró-
prio Júlio de Castilhos.86 Em entrevista concedida a Erich Fausel, autor de uma bio-
grafia sua, Bins afirmava que a “firme convicção de ser um representante da classe
produtora reg[ia] toda a sua atuação administrativa e política”87, o que corrobora
o fato de que representantes da burguesia industrial passaram a aproximar-se ― e
participar ― do estado como forma de fazerem valer seus interesses econômicos.
Outros exemplos dessa dinâmica: nas eleições municipais de 1920, José Sanguinet-
ti, proprietário de uma fábrica de móveis, ficou entre os suplentes para o Conselho
Municipal88 e, no pleito de 1924, Victor Adalberto Kessler89, filho de Felix Christiano
Kessler, sócio da fábrica de chapéus Kessler & Cia, elegeu-se conselheiro municipal
com sete mil, duzentos e sessenta e um votos.90
Como foi analisado em minha dissertação de mestrado91, o governo do Rio
Grande do Sul colocava-se como representante de toda a sociedade, considerando-se
o impulsionador do desenvolvimento harmônico do estado por contar com “o apoio
estimulante de todas as classes sociais”.92 O PRR era um partido qualitativamente di-
ferente dos demais existentes no país, por não ser composto pela elite tradicional do
estado, contando com uma oposição forte e organizada.93 Em virtude disso, necessi-
tou de um maior respaldo de outros setores sociais, abrangendo demandas diversas
e promovendo uma expansão de sua base social, incluindo a burguesia industrial e  228
comercial. Tais segmentos foram incorporados “na estruturação de um partido polí-
tico, para o qual era vital a composição com os capitais emergentes”.94
Com isso, grupos sociais emergentes, como o patronato comercial e indus-
trial, passaram a ser cooptados pela estrutura do partido e, “como integrantes
do aparato de hegemonia que sustentava o PRR, alguns empresários ocuparam
cargos políticos de destaque no decorrer da República Velha”.95 O próprio opera-
riado também foi inserido nos quadros do PRR, bastando ver os casos de Francisco
Xavier da Costa e Vigo Thompson Collin, que se tornaram conselheiros municipais.
Segundo Pesavento, em Porto Alegre, maior centro industrial do estado, fazia-se
notar nitidamente

a presença marcante dos empresários como conselheiros municipais:


Alberto Bins e Victor Henrique Silva (fundição e metalúrgica), Antônio
Chaves Barcellos Filho (lanifício e moinho), Simão Kappel, Edmundo

85 PACHECO, Ricardo de Aguiar. A Vaga Sombra do Poder: vida associativa e cultura política em Porto Alegre
da década de 1920. Tese (Doutorado em História), Porto Alegre: UFRGS, 2004, p. 125.
86 Idem, p. 124.
87 FAUSEL, Erich. Alberto Bins: o merlense brasileiro. São Leopoldo: Rotermund & Cia. Ltda., s/d, p. 12.
88 A Federação, Porto Alegre, 29 set. 1920, p. 4.
89 ���������������������������������������������������������������������������������������������������������
Em 1918, Victor Adalberto Kessler havia sido eleito por unanimidade suplente da diretoria do Banco Nacio-
nal do Commércio em Porto Alegre. Correio do Povo, Porto Alegre, 21 mar. 1918, p. 4.
90 A Federação, Porto Alegre, 03 out. 1924, p. 3.
91 QUEIRÓS, César A. B. O governo do Partido Republicano Rio-grandense e a questão social (1895-1919). Dis-
sertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2000.
92 MENSAGEM do Presidente do Estado à Assembleia dos Representantes. 1903, p. 8.
93 PINTO, Celi Regina. Positivismo: um Projeto Político Alternativo (RS: 1889-1930). Porto Alegre: L&PM,
1986, p. 15.
94 PESAVENTO, Op. cit., 1988, p. 238.
95 Idem, p. 239.

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Arnt e Francisco Herzog (móveis), Carlos Júlio Becker e H. de Barros


Figueiredo Jr. (calçados), Frederico Linck e Ramiro Barcellos (charque-
ada), Frederico Dexheimer e Victor Alberto Kessler (beneficiamento de
arroz), Felipe Schmitt e Frederico Trein (banha), José Bertaso (indústria
gráfica), Eurípedes Mostardeiro (arroz e fiação e tecidos), Antônio Mos-
tadeiro Filho (interesses ligados à fabricação de papel e papelão) e os já
citados Luís Englert e Domingos Martins Pereira de Souza.96

Na Assembleia dos Representantes do Estado, empresários de diferentes


ramos, atuantes na capital, também ocuparam o cargo de deputado pelo PRR.
Alguns exemplos: Possidônio Mâncio da Cunha Jr., ligado à Companhia Fiação e
Tecidos Porto-Alegrense e com participação em várias empresas do estado, como,
por exemplo, a Fiat Lux; o já referido Alberto Bins, da Metalúrgica Berta; Antônio
Soares de Barcellos, proprietário de fábrica de acolchoados e um dos diretores da
Fiat Lux; Antônio Chaves Barcellos Filho, do Lanifício São Pedro e da casa comercial
Chaves & Almeida; Manoel Py, da Companhia Fiação e Tecidos Porto-Alegrense;
Eurípedes Mostardeiro, cuja família era incorporadora da Fiateci, entre outros.97
Observo, pois, a tentativa da burguesia porto-alegrense de se fazer representar
politicamente por meio da participação nos assentos legislativos ― tanto munici-
pais quanto estaduais. Com isso, por estarem próximos ao estado, esses empre-
sários podiam dispor de forma mais “garantida” do seu apoio quando seus em-
pregados se declaravam em greve, como foi visto anteriormente. Outras medidas
empregadas pelo patronato diante das greves aqui examinadas foram a tomada
 229 conjunta de decisões e o lockout.
No começo de agosto de 1919, foi a vez dos marceneiros, carpinteiros e clas-
ses anexas entrarem em greve. Esse movimento ― o primeiro da categoria em
Porto Alegre ― durou doze dias e resultou na vitória dos trabalhadores98, que con-
seguiram não só a redução da jornada de trabalho para oito horas, mas também o
aumento de 3$000 (três mil réis) em seus salários.99 Contudo, durante a greve, já
se observa a tentativa dos patrões de negociarem coletivamente com os empre-
gados. No momento em que os operários da fábrica de móveis Arnt, Depperman &
Cia.100 solicitaram ao tenente-coronel Edmundo Arnt, sócio da empresa, a adoção
da jornada de oito horas e o aumento de salário de 25%, ele lhes declarou que “an-
tes de dar uma resposta iria convocar uma reunião com os demais colegas a fim de
que, em comum acordo, os proprietários de fábrica de móveis resolvessem sobre
o assunto”.101 Assim, em reunião da classe patronal ocorrida no salão nobre do
clube Grêmio Náutico União, os proprietários de marcenarias enviaram a seguinte
proposta aos operários:

Horário ― o horário oficial será de oito horas por dia. Toda vez que em
uma oficina houver trabalho fora do horário, “o operário por dia” perce-
berá neste caso o correspondente por hora de trabalho, sobre sua diária.

96 Ibidem, p. 241.
97 PESAVENTO, Op. cit., 1988. p. 239-240.
98 O Syndicalista, Porto Alegre. 03 set. 1919, p. 3. Sobre este movimento, Friedrich Kniestedt ― que era tesou-
reiro do referido Sindicato ― menciona que os trabalhadores em madeira tinham entrado em greve em
solidariedade aos trabalhadores da indústria metalúrgica que reclamavam por uma jornada de oito horas
de trabalho. GERTZ, Op. cit., 1989, p. 127.
99 RELATÓRIO do Chefe de Polícia Interino Eurico de Souza Lustosa, Porto Alegre, 1920, p. 355-357 (BPERS).
100 Fundada por Simon Kappel e Edmundo Arnt em 1869, passou a chamar-se Arnt, Depperman & Cia. após a
saída do sócio João Kappel Sobrinho, filho de Simon Kappel.
101 Correio do Povo, Porto Alegre, 06 ago. 1919, p. 4.

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Aumento ― O aumento de salário para o “empregado por dia” consiste


na diminuição do horário e para os operários em peça aumentar-se-á o
preço de todos os serviços na proporção de menos para os já bem pa-
gos, e mais para os atualmente mal pagos, não podendo este aumento
ser inferior nunca a 5% e mais do que 15%, a juízo dos patrões.102

As propostas foram rejeitadas pelo sindicato que, agradecendo a “esmo-


la”, decidiu pela continuidade da greve, em função de que elas “não estavam de
acordo com as resoluções tomadas pelos operários”.103 Em suas Memórias, Frie-
drich Kniestedt, um dos principais dirigentes da FORGS no período e membro do
Sindicato dos Marceneiros, relata a respeito da greve: “depois de uma semana
quase todas as marcenarias tinham concordado [com a redução da jornada de
trabalho para oito horas], depois de duas semanas quase todas as serrarias, e
mais uma semana depois também a grande fábrica de cadeiras e móveis de Ger-
dau concordou”.104 Entretanto, as exigências foram atendidas parcialmente e os
marceneiros tiveram de se contentar com as propostas dos patrões. No caso dos
carpinteiros, ocorreu uma situação semelhante: alguns proprietários reuniram-se
na Carpintaria Sommer (de propriedade de Roberto Sommer e sita à Rua Ernesto
Alves, 71) e “resolveram conceder aos operários 8 horas de trabalho, 10% sobre os
salários e a garantia das ferramentas em caso de incêndio”.105
Apesar disso, o sindicato recusou a proposta dos patrões e optou pela con-
tinuidade da greve até que todas as exigências cabalmente fossem aceitas: “Em
vista desta resposta, os proprietários uniram-se e resolveram sustentar suas de-
cisões e acordaram abrir as oficinas a fim de serem admitidos ao serviço todos
os operários que queiram retornar ao trabalho. Ficou resolvido, também, que no
 230
caso de não comparecimento dos operários, as carpintarias fechassem, por tempo
indeterminado”.106
Essa decisão dos proprietários de carpintarias de Porto Alegre caracteriza
um lockout, recurso de pressão com potencial de coagir os trabalhadores a vol-
tarem ao serviço, sinalizando uma verdadeira “queda de braço” entre patrões e
empregados: quem teria condições de resistir por mais tempo? Os patrões res-
pondem à greve operária com uma greve patronal.107 De forma semelhante aos
boicotes organizados pelos operários, o lockout também se constitui em uma téc-
nica de pressão, nesse caso exercida pelos patrões, que se baseia na abstenção do
trabalho por meio do fechamento dos estabelecimentos. Esse recurso pode ser
definido como a recusa por parte dos patrões em ceder aos trabalhadores os ins-
trumentos de trabalho necessários para a sua atividade e “é usado, na maior parte
das vezes, como reação por parte dos empresários contra indicativos de greve”.108
Sirot o considera um “método de resistência radical”109 empregado por “alguns

102 Correio do Povo, Porto Alegre, 12 ago. 1919, p. 4. Segundo Pesavento, “a remuneração por peça atuava
como um estímulo para trabalhar mais e obter um maior salário, o que redundava, na prática, em dilatação
da jornada de trabalho”. PESAVENTO, Op. cit., 1988, p. 52.
103 Correio do Povo, Porto Alegre, 12 ago. 1919, p. 4. O Sindicato dos Marceneiros, Carpinteiros e Classes Ane-
xas distribuiu um boletim intitulado Aos trabalhadores e ao Povo em geral no qual justificava a recusa da
oferta dos proprietários de fábricas e oficinas. Aos Trabalhadores e ao Povo em Geral. Anexo 21. In: ESTADO
DO RIO GRANDE DO SUL. Arquivo Público do Estado. Processo-Crime n.º 1016. Porto Alegre: 1917.
104 GERTZ, Op. cit., 1989, p. 127.
105 Correio do Povo, Porto Alegre, 12 ago. 1919, p. 4.
106 Correio do Povo, Porto Alegre, 12 ago. 1919, p. 4.
107 SIROT, Op. cit., 2002, p. 210.
108 TREU, Tiziano. Lock-Out. In: BOBBIO, Norberto (org.). Dicionário de Política. Brasília: Universidade de Bra-
sília, 1998, p. 731.
109 SIROT, Op. cit., 2002, p. 210.

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patrões combativos ou bem organizados [...] como uma resposta, quase imediata,
destinada a mostrar a sua vontade de resistir e, assim, colocar um fim rápido ao
conflito”.110 Segundo Treu, o lockout pode ser defensivo ou ofensivo, sendo que o
objetivo comum a ambas as formas é o de “pôr o empresário numa posição mais
vantajosa em relação aos trabalhadores envolvidos na disputa”.111
O emprego de tal estratégia também pode ser observado em outras ocasi-
ões: na greve dos tecelões e chapeleiros do mesmo ano, por exemplo, os proprie-
tários das fábricas Companhia Têxtil Rio-Grandense, Companhia Fiação e Tecidos
Porto-Alegrense, Companhia Fabril Porto-Alegrense, A. J. Renner & Cia, F. C. Kes-
sler, Eduardo Sommer e Oscar Teichmann deliberaram “fazer cessar o funciona-
mento” das fábricas.112 Todavia, no período aqui estudado, as ameaças de lockout
foram mais comuns do que a sua aplicação.
Enfim, as principais estratégias usadas pelos patrões durante as greves abor-
dadas, em especial na de 1919 (quando as reivindicações operárias dirigiram-se,
sobretudo, a eles), foram a substituição dos operários grevistas, a ameaça ou a
efetivação de lockouts, o apelo à intervenção do Poder Público (fortalecida pela
participação de empresários no campo político) e a negociação coletiva dos pa-
trões. Tais métodos sinalizam que, no processo de enfrentamento com os trabalha-
dores, também o patronato estava constituindo-se e organizando-se como classe.

1.2.2 A organização patronal e suas ações conjuntas


 231 Em face de tamanha pressão derivada da ação organizada dos trabalhadores
e de suas associações classistas, tornou-se necessário, da parte do patronato, a ado-
ção de um conjunto de estratégias coletivas. No início do século XX, os industriais
ainda não estavam reunidos em uma entidade classista, “como acontecia com os
comerciantes, que desde 1858 já possuíam a Associação Comercial, ou os criadores,
que haviam fundado em 1912 a União dos Criadores”.113 Apesar de desprovidos de
uma instituição própria, os industriais congregavam-se nas entidades associativas
dos comerciantes, entre as quais se destacava a Praça de Comércio de Porto Ale-
gre. Isso se justifica quando se considera que os interesses de ambas as frações não
agrárias da burguesia ― ou seja, comerciantes e industriais — apresentavam, ao
menos naquele momento, mais complementaridades do que divergências.
Durante a greve geral de 1906 ― a “Greve dos 21 dias” ―, a fim de defender
os interesses da classe patronal frente à pressão dos operários, ocorreu uma ten-
tativa de associação da classe com o intuito de formar uma entidade específica.
A iniciativa capitaneada por Alberto Bins defendia a criação de uma organização
dos empresários que os habilitasse a adotar ações conjuntas no confronto com os
trabalhadores paredistas. Para Bins, os industrialistas “precisavam ter um órgão
legítimo e autorizado, que cuide de tudo quanto lhes diz respeito e que se enten-
da diretamente com os poderes públicos”.114 É sintomático observar que essa pri-
meira iniciativa do patronato de constituir uma entidade de classe coincidiu com
a fundação da FORGS, evidenciando a dialética que preside a formação das duas

110 SIROT, Op. cit., 2002, p. 211.


111 Idem, p. 732
112 Correio do Povo, Porto Alegre, 08 set. 1919, p. 3.
113 MERTZ, Marli. A burguesia industrial gaúcha e suas tentativas de organização: de sua origem a 1930. En-
saios FEE, Porto Alegre, v. 12, n.2, 1991, p. 424.
114 Correio do Povo, Porto Alegre, 07 out. 1906, p. 5.

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classes fundamentais do modo de produção capitalista. Schmidt salienta que “as-


sim como a classe operária porto-alegrense procurava cristalizar a sua identidade
em uma associação ― a FORGS ―, a burguesia local também buscou instituciona-
lizar a comunhão de seus interesses”.115
Em uma reunião dos proprietários de diversas fábricas de Porto Alegre ocor-
rida no Clube Caxeiral, eles concordaram com a iniciativa e acordaram em propor
aos operários o estabelecimento da média de nove horas de trabalho, entre outras
deliberações, como a de solicitar que as autoridades policiais garantissem a liber-
dade daqueles que desejassem trabalhar.116 A nova entidade se denominaria União
Industrial e a comissão destinada a elaborar seus estatutos compôs-se de modo a
contemplar os diferentes ramos da indústria: Alberto Bins (ferros), Victor Barreto
(calçados), Francisco Herzog (madeiras), Otto Fenselau (tecidos) e Neugebauer
(doces). Participariam da associação grandes e pequenos industriais, contribuindo
cada um de acordo com o tamanho do seu estabelecimento. Poderiam participar,
inclusive, as oficinas menores, que, na opinião dos industriais, só teriam a lucrar
com seu ingresso na entidade.117
Em outra reunião do patronato, ainda durante a greve de 1906, desta vez no
salão da Usina Elétrica, Alberto Bins apresentou a proposta de um representante
dos operários, que havia lhe sugerido que, se os proprietários reduzissem a jorna-
da de trabalho para 8 ½ horas, os grevistas voltariam ao trabalho, advogando logo
a seguir que a jornada fosse modificada para 8 ¾ horas.118 Tal proposta, aparente-
mente pouco atrativa para o operariado, pode ser compreendida se observarmos
que a greve significa muito mais do que uma disputa meramente econômica, por
salários, pois representa a possibilidade de resgate da honra e da dignidade dos
 232
trabalhadores, fazendo com que eles se sintam importantes. Um exemplo, em-
bora bastante posterior, parece corroborar essa interpretação: em depoimento
colhido no decorrer de uma greve dos operários metalúrgicos em São Paulo, Fre-
derico, um operário, afirmou que a greve é “[...] mais pela honra do cara do que
pelo aumento”.119 Voltando ao contexto aqui em estudo, essa diferença de quinze
minutos sugerida pelo líder operário pode ser encarada, então, muito mais como
uma tentativa de resguardar o orgulho dos trabalhadores, para que eles não ti-
vessem que acatar a proposta dos patrões, ferindo a dignidade do grupo. A greve
havia se tornado uma questão de princípios, colocando em xeque a posição de
liderança, tanto de Francisco Xavier da Costa quanto de Alberto Bins.120
Bins informou-lhe, então, que teria de apresentar a proposta a seus colegas,
porém votaria contra. Encaminhada a reivindicação aos proprietários, esta foi re-
chaçada por ser vista como um aviltamento.121 Os empresários acabaram acatando
a sugestão de Bins e rejeitando “por unanimidade, a proposta, alegando que essa

115 SCHMIDT, Op. cit., 2005, p. 53.


116 Esta exposição está baseada, principalmente, nos números do periódico O Independente publicados entre
os dias 4 e 21 de outubro de 1906.
117 PESAVENTO, Op. cit., 1988, p. 245.
118 ���������������������������������������������������������������������������������������������������������
O representante operário que trouxe esta proposta aos industrialistas foi, segundo Schmidt, Francisco Xa-
vier da Costa, que “tentando garantir a sua posição de efetivo negociador ― ainda apresentou a contrapro-
posta de uma jornada de 8 horas e três quartos, a qual, segundo ele, caso fosse aprovada, seria aceita por
todos os trabalhadores, que imediatamente voltariam às fábricas e oficinas”. SCHMIDT, Op. cit., 2005, p. 67.
119 Trecho de depoimento colhido em uma das greves dos anos 1978-1980. ABRAMO, L. W. Greve metalúrgica
em S. Bernardo: sobre a dignidade do trabalho. In: CARDOSO, Ruth Correa et al. As lutas sociais e a cidade.
São Paulo: Paz e Terra, 1991, p. 214.
120 SCHMIDT, Op. cit., 2005, p. 67.
121 Esta exposição está baseada, principalmente, nos números do periódico O Independente publicados entre
os dias 4 e 21 de outubro de 1906.

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concessão seria humilhante aos industrialistas que argumentavam já terem sofrido


inúmeras ofensas por grosserias ditas pelos grevistas em comícios e panfletos”.122
Nessa reunião, ficou combinado, também, que a discussão acerca da criação da
União Industrial só seria retomada após o término da greve, quando chegasse do
Rio de Janeiro o modelo de um estatuto de uma associação similar.
A respeito da atitude dos patrões nesta “parede”, Bilhão ressalta que, apesar
das evidências estampadas nos jornais, “o grupo dos industrialistas e construtores
já não se encontra[va] tão coeso”, pois, contrariando o convênio firmado em reu-
niões anteriores, alguns construtores acataram a reivindicação de oito horas diá-
rias de trabalho.123 Da mesma forma, outros industrialistas também estabeleceram
acordos em separado com seus funcionários, o que evidencia tensões e divergên-
cias nas estratégias dos patrões. Nicolau Rocco, da Confeitaria Rocco, foi mais lon-
ge: além de conceder as oito horas a seus funcionários, abriu uma subscrição para
auxiliar os grevistas, tendo doado 100 mil réis!124 Em 1906, a possibilidade de se
fundar uma agremiação capaz de congregar os interesses do patronato porto-ale-
grense foi aventada como uma resposta à crescente organização dos operários.
Em 1919, tornou-se necessário, novamente, apelar para a união da classe patronal
com a finalidade precípua de enfrentar o ascenso mobilizatório dos trabalhadores
da capital que, como percebi, vinham deflagrando ininterruptas greves, as quais
proporcionavam ganhos aos operários.
No mês de julho, o Sindicato dos Metalúrgicos declarou-se em greve, exigin-
do oito horas de trabalho e aumento de salário. As comissões de operários encar-
 233 regadas de negociar com os patrões informaram que os srs. Mabilde & Cia., Edgar
Booth125 e Francisco Clausen haviam acedido em adotar o horário proposto. Quan-
to às demais oficinas, embora tivessem sido entregues ofícios aos seus proprietá-
rios, as respostas ainda estavam sendo aguardadas.126 Ou seja, os patrões estavam
sendo pressionados e muitos acabavam por ceder às exigências do operariado.
Nessa direção, o jornal Correio do Povo noticiou que os estabelecimentos dos “srs.
Alcaraz & Cia., Só Filhos, José Becker & Irmão, Jacques Maas, Cypriano Micheletto
& Irmão, Otto Outeiral, Bromber & Cia, Guilherme Knack e João R. Alves resolve-
ram adotar [...] a jornada de 8 horas, conforme solicitavam os operários”.127
Apesar de alguns empregadores terem atendido ao que fora pleiteado pelos
metalúrgicos, em reunião dos proprietários de estabelecimentos dessa natureza,
ficou decidido, segundo proposição do major Alberto Bins (que parece ser, ao lon-
go da Primeira República, o grande articulador da classe patronal porto-alegrense),
que eles não iriam ceder às reivindicações, argumentando que tramitava no Con-
gresso Nacional uma lei que regulamentava a jornada de trabalho em oito horas e,
se eles adotassem a redução de jornada, ficariam prejudicados pela concorrência,
o que também prejudicaria os próprios operários em função da diminuição do mo-
vimento naqueles estabelecimentos.128
Durante essa reunião, os proprietários das metalúrgicas encontravam-se di-
vididos e defendiam propostas opostas. Enquanto Joaquim Alcaraz sugeria que
os patrões “acedessem ao pedido dos operários, concedendo-lhes a jornada de

122 BILHÃO, Isabel, Op. cit., p. 53.


123 Idem, p. 54.
124 SCHMIDT, Op. cit., 2005, p. 62.
125 Uma curiosidade: Edgar Booth foi o autor do primeiro gol em Grenais. Além disso, foi “o pivô da primeira
briga em gre-nais”. BUENO, Eduardo. Grêmio: nada pode ser maior. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 86.
126 Correio do Povo, Porto Alegre, 18 jul. 1919, p. 4.
127 Correio do Povo, Porto Alegre, 17 ago. 1919, p. 3.
128 Correio do Povo, Porto Alegre, 18 jul. 1919, p. 4 e 23 jul. 1919, p. 4.

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CÉSAR AUGUSTO BUBOLZ QUEIRÓS

trabalho de 8 horas”, Alberto Bins sustentava que se deveria aguardar a aprovação


da referida lei que tramitava no Congresso. O último alegava que, caso se adotasse
a redução da jornada de trabalho nas indústrias da cidade, tal medida “colocaria
os estabelecimentos metalúrgicos desta capital em condição de inferioridade em
relação a estabelecimentos de localidades próximas onde vigoram horários de 9,
10 e até mais horas de trabalho”.129 O Syndicalista, ao comentar tal encontro, iro-
nizou Alberto Bins, por ele ter reunido a “congregação abissínica” e falado “pesa-
damente, prussianamente”, contra os “malandros que fizeram o desaforo de se
declarar em greve”.130 Mesmo os patrões que concordaram em atender a reivindi-
cação do sindicato foram criticados pelo jornal, uma vez que esses ― chamados
de “cérebros de lama” ― “resolveram estabelecer as 8 horas mas não assinam
nem reconhecem o Comitê nem a greve, como se fossem deuses ou homens de
palavra”.131 Provavelmente, essa crítica dos operários se devia ao fato de que, em
anos anteriores, alguns proprietários também concordaram com a jornada de oito
horas e, logo depois, retomaram as jornadas mais longas.132
Quando a greve se generalizou, no final de agosto, os patrões vinham atuan-
do de modo atomizado, o que lhes colocava em uma situação de vulnerabilidade
diante de seus funcionários, tornando-os “reféns” de suas exigências. Segundo
Mertz, “o fato de os industriais não se encontrarem arregimentados em um órgão
de classe [...] contribuiu para que optassem por uma atuação individual, ou seja,
a [sic] nível de empresa”.133 Como reportado, durante a greve dos metalúrgicos,
Alberto Bins tentou sem sucesso unificar a posição dos proprietários a fim de que
ninguém atendesse às demandas dos operários. Porém, no início de setembro,
quando as greves estouravam de maneira bastante rápida, os patrões realizaram  234
uma reunião no Clube do Comércio. A ela compareceram os proprietários e di-
retores dos seguintes estabelecimentos: “Força e Luz Porto-Alegrense, Fiação e
Tecidos Porto-Alegrense, Têxteis Sul-Brasileira, Fabril Porto-Alegrense, Moinho
Rio-Grandense, Eduardo Sommer, Oscar Teichmann, Moinho Rio-Grandense, Ro-
dolpho Traptow, Serraria Garibaldi, Becker & Cia., Bopp & Irmãos, B. Sassen, Ritter
& Cia., Tertuliano G. Borges e outros representantes”.134
Nesse encontro, estabeleceu-se a resolução de que os empresários não fa-
riam nenhuma concessão aos grevistas e foi deliberada, por unanimidade de vo-
tos, a atuação em comum acordo. Decidiu-se, ainda, realizar uma grande reunião
da classe, “a fim de serem tomadas as deliberações definitivas”.135 Alguns dias de-
pois, o jornal A Federação noticiou que “os industriais e comerciantes desta praça,
proprietários de estabelecimentos cujo pessoal se acha em greve, resolveram não
realizar nova reunião conforme tinham combinado, visto se acharem todos dis-
postos a não aceder às pretensões dos operários em greve”.136 Tal postura dos
patrões porto-alegrenses divergiu da adotada no mesmo ano por seus congêneres

129 Correio do Povo, Porto Alegre, 23 set. 1919, p. 3.


130 O Syndicalista, Porto Alegre, 02 ago. 1919, p. 3.
131 Grevistas invencíveis cada vez mais conscientes. Aos metalúrgicos e aos operários em geral, Porto Alegre, 16
ago. 1919. Anexo 17. In: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Processo-Crime n.º 1.016, Porto Alegre: 1919.
132 Bilhão, por exemplo, enfatiza que, durante a greve geral de 1906, alguns comerciantes que chegaram a
“efetuar um acordo com os funcionários pelo qual as portas deveriam ser fechadas às 20 horas” rompe-
ram com seu compromisso e continuaram a fechar seus estabelecimentos no horário habitual, 21 horas.
Em virtude disso, teriam recebido estrondosas vaias de trabalhadores. BILHÃO, Isabel. Rivalidades e soli-
dariedades no movimento operário: Porto Alegre, 1906-1911. Porto Alegre: EdiPUCRS, 1999, p. 54.
133 MERTZ, Marli. A burguesia industrial gaúcha e suas tentativas de organização: de sua origem a 1930. En-
saios FEE, Porto Alegre, v.12, n.2, 1991, p. 424.
134 Correio do Povo, Porto Alegre, 03 set. 1919, p. 6.
135 Idem.
136 A Federação, Porto Alegre, 05 set. 1919, p. 5.

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A AÇÃO COLETIVA DA CLASSE PATRONAL DE PORTO ALEGRE NAS GRANDES...

paulistanos durante a greve geral ocorrida no mês de maio naquela cidade, quando
os proprietários negociaram diretamente com seus operários, não adotando uma
posição conjunta como na capital gaúcha. Lá, alguns operários “saíram vencidos
totalmente, outros parcialmente e alguns vencedores”.137 Isso porque a simples
posição de classe ― propriedade dos meios de produção ― não implica necessa-
riamente determinada ação política classista. Como evidenciei, no caso de Porto
Alegre, ao contrário da capital paulista, a ideia de se organizar a classe patronal já
vinha de, pelo menos, 1906.
Percebo, também, no processo analisado, uma nítida influência da questão
étnica na organização da classe patronal porto-alegrense. Como observei na pri-
meira parte deste artigo, o patronato da capital era composto por significativo
número de teutodescendentes ou mesmo de imigrantes alemães, fazendo com
que as identidades étnicas e de classe se mesclassem entre o empresariado porto-
-alegrense. Anteriormente, durante a greve de 1906, a conformação étnica desse
patronato já havia sido determinante para os rumos do movimento. Bak, ao tratar
de tal aspecto, destaca que, em 1906, “a etnicidade compartilhada [dos proprietá-
rios] era algo em comum que inicialmente permitiu que os empresários de origem
alemã se movimentassem com respostas individuais, dadas aos trabalhadores em
um estabelecimento, para respostas coletivas de um empresariado unido, dire-
cionadas a todo o movimento grevista”.138 Conforme demonstrei antes, o mesmo
ocorreu em 1919, quando o componente étnico reforçou a identidade de classe. A
composição étnica do patronato local ― com muitos teutodescendentes ― e os
laços econômicos e pessoais estabelecidos entre eles reforçaram um sentimento

 235 de unidade, de coesão.


Ao longo deste período, observei o que poderia chamar de “fazer-se” da
classe patronal, que acabou por sair de uma situação de atomização, vulnerabilida-
de e fragilidade diante das agitações operárias para perfilhar uma postura coletiva
e organizada, o que acarretava no seu fortalecimento nesse enfrentamento, resul-
tando, muitas vezes, em um esvaziamento das greves. Segundo Pesavento, uma
“ação coletiva implica um processo de maior amadurecimento da classe”.139 Para
a autora, “o processo de amadurecimento e de autoidentificação de uma classe é
lento e complexo. No caso do empresariado industrial gaúcho, ele dependeu tanto
da consolidação de condições objetivas que lhe deram nascimento ― a emergên-
cia da fábrica no seio de uma sociedade agrária ― quanto da conjuntura política
que assistiu à sua estruturação enquanto fração de classe”.140
Para Thompson, é equivocado supor que a classe seja uma coisa, “tomada
como tendo uma existência real, capaz de ser definida quase matematicamente”.141
Ela se constitui, se forma por meio da experiência. As classes

não existem como entidades separadas que olham ao redor, acham um


inimigo de classe e partem para a batalha. Ao contrário, para mim, as pes-
soas se veem numa sociedade estruturada de certo modo (por meio de
relações de produção fundamentalmente), suportam a exploração (ou
buscam manter poder sobre os explorados), identificam os nós dos in-
teresses antagônicos, debatem-se em torno desses mesmos nós e, no
curso de tal processo de luta, descobrem a si mesmas como uma classe.142

137 RODRIGUES, Edgar. Trabalho e Conflito: pesquisa histórica (1906/1937). Rio de Janeiro: Ed. Arte Moderna,
1975, p. 213.
138 BAK, Joan. Classe, etnicidade e gênero no Brasil: a negociação de identidade dos trabalhadores na Greve
de 1906, em Porto Alegre. MÉTIS: história & cultura, v.2, n.4, p. 181-224, 2003, p. 36.
139 PESAVENTO, Op. cit., 1988, p. 15.
140 Idem, p. 238.
141 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. 1.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 10.
142 THOMPSON, E. P. Algumas observações sobre classe e ‘falsa consciência’. In: NEGRO, A. L.; SILVA, Sergio.
(org.). As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Edunicamp, 2001, p. 274.

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CÉSAR AUGUSTO BUBOLZ QUEIRÓS

Desse modo, é crível supor que o patronato porto-alegrense, no processo de


defesa de seus interesses e buscando manter sua dominação, passasse a se desco-
brir como classe, optando pela adoção de estratégias coletivas de enfrentamento.
Para o autor, classe

é uma formação social e cultural (frequentemente adquirindo expres-


são institucional) que não pode ser definida abstrata ou isoladamente,
mas apenas em termos de relação com outras classes; e, em última aná-
lise, a definição só pode ser feita através do tempo, isto é, ação e reação,
mudança e conflito. Quando falamos de uma classe, estamos pensando
em um corpo de pessoas, definido sem grande precisão, compartilhan-
do as mesmas categorias de interesses, experiências sociais, tradição e
sistema de valores, que tem disposição para se comportar como classe,
para definir, a si próprio em suas ações e em sua consciência em relação
a outros grupos de pessoas, em termos classistas. Mas classe, mesmo,
não é coisa, é um acontecimento.143

A experiência social compartilhada durante a onda de reivindicações ope-


rárias ocorrida, especialmente entre 1917 e 1919, pelo patronato porto-alegrense
levou a uma tomada de consciência de que, para a conservação de seu status quo,
seria necessária a adoção de medidas coletivistas. Assim, a despeito de Bourdieu
afirmar que as estratégias de conservação/sucessão dos grupos dominantes par-
tem do princípio de que não há a formação de um grupo constituído coletivamen-
te, mas sim, práticas concorrenciais144, nesse momento, a burguesia da capital
quebrou seu isolamento e buscou um enfrentamento coletivo, com tomadas de
posições classistas (a despeito de alguns empregadores haverem descumprido as
 236
combinações).
No caso aqui analisado, a ação intransigente adotada de modo coletivo pelo
patronato a fim de enfrentar os grevistas surtiu efeito, visto que, em 1919, a parali-
sação terminou sem que a maioria das categorias envolvidas no movimento tives-
se sido bem-sucedida em suas reivindicações. A posição dos patrões, enrobusteci-
da pela ação do governo do estado ― que repreendeu severamente o movimento
―, foi vitoriosa e conseguiu debilitar a organização operária. O ano de 1919 foi,
enfim, o crepúsculo das grandes greves da Primeira República.
No dia 15 de setembro, a Gazeta do Povo dava como “conjurada” a greve e
questionava: “qual foi o proveito advindo para as classes trabalhadoras resultante
desse movimento?”.145 Como vimos, o periódico atribuía a culpa pela greve aos
conselhos dos “espíritos obcecados com a leitura de panfletos rubros”.146 Ainda
houve uma tentativa de realizar um novo meeting na praça Conde de Porto Alegre
que, contudo, acabou sendo proibido pela polícia.147 Era o final melancólico de um
movimento que se iniciara vigoroso.
Apenas a partir da segunda metade da década de 1920, novamente com a li-
derança de Alberto Bins, os industriais, reunidos na Associação Comercial de Porto
Alegre, passaram a (re)discutir a formação de uma entidade própria. A fundação
de uma associação representativa dos industriais gaúchos efetivou-se somente
em novembro de 1930, com a criação do Centro de Indústrias Fabris do Rio Grande

143 THOMPSON, E. P. Folclore, antropologia e história social. In: NEGRO, Antonio Luigi; SILVA, Sergio (orgs.).
Idem, p. 169.
144 BOURDIEU, Op. cit., 1983, p. 201.
145Gazeta do Povo, Porto Alegre, 15 set; 1919, p. 1.
146 Gazeta do Povo, Porto Alegre, 15 set. 1919, p. 1.
147 Correio do Povo, Porto Alegre, 16 set. 1919, p. 5.

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A AÇÃO COLETIVA DA CLASSE PATRONAL DE PORTO ALEGRE NAS GRANDES...

do Sul (Cinfa), uma consequência direta dos eventos relacionados à chamada Re-
volução de 30 e ao isolamento ao qual o estado foi submetido naquele contexto, e
da necessidade da classe de organizar-se, mais uma vez, para enfrentar e controlar
a chamada “questão social”.148
A greve aqui examinada acabara. A união dos patrões, apoiados pelo gover-
no, dobrou a resistência dos sindicatos operários, e suas lideranças ― denomina-
das pela grande imprensa como “aves de arribação” ― sofreram um abalo em sua
credibilidade. Os “traços infernais”, bem como seus “ideais macabros”, haviam
sido derrotados ― ao menos naquele momento...

•••

Concluo, portanto, que, no repertório de estratégias do patronato porto-ale-


grense acionado ao longo desses movimentos paredistas, a insistência na demissão
de operários grevistas e o apelo ao estado para proteger seus interesses contra a
ação organizada dos trabalhadores eram práticas corriqueiras dos patrões duran-
te as greves. A postura do patronato foi marcada pela tentativa de responder às
ações dos operários, que protagonizavam, de forma coletiva e associativa, protes-
tos e reivindicações, os quais ameaçavam a tranquilidade da ordem burguesa. As-
sim, a reação patronal era marcada pela repressão, pela coerção e pela “sedução”
para que os grevistas retomassem o trabalho (e para que outros empregados não

 237 aderissem a tais mobilizações). Demissões e lockouts eram comuns no sentido de


procurar fazer as greves fracassarem. Todavia, apesar disso, a ação coletiva dos
trabalhadores obteve êxito em certas ocasiões, levando os patrões a buscar uma
postura associativa, coletiva. Ou seja, a mobilização dos trabalhadores da capital
engendrou um “fazer-se” da classe patronal, uma tentativa de organização des-
sa classe para defender seus interesses perante as organizações operárias. Nesse
processo, ao adotarem ações coletivas e unificadas contra as paredes, os patrões,
embora não tenham criado uma associação formal, constituíram-se e se fortalece-
ram enquanto classe. Tal união, por mais que só tenha se efetivado de forma mais
acabada em termos institucionais na década seguinte, foi decisiva para que as gre-
ves generalizadas de 1919 acabassem em fracasso para o operariado.

Recebido em 28/10/2012
Aprovado em 26/01/2013

148 PESAVENTO, Op. cit., 1988, p. 252.

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El Instituto de Capacitación y Formación
Social Sindical: una experiencia de
formación político-sindical en un
contexto de intensa conflictividad
social (Argentina, 1963-1965)
Gabriela Scodeller*

Resumen: El presente artículo indaga en la relación entre formación política y ac-


ción sindical: ¿las instancias educativas son vistas como potenciadoras u obstaculi-
zadoras de la lucha? Se analiza la experiencia del Instituto de Capacitación y Forma-
ción Social Sindical (ICFSS) creado por la CGT, y desarrollado simultáneamente al
Plan de Lucha nacional que dicha central impulsó entre 1963 y 1965. Considerando
los espacios de formación como un terreno de disputa en sí mismo, nos interesa
complejizar el abanico de actores que allí jugaron. Nos preguntamos cómo y con
qué objetivos se articuló una experiencia formativa a un contexto de intensa con-
flictividad social. Analizamos los contenidos desarrollados en el Instituto, particu-
larmente la temática de la cogestión vinculada al proceso de ocupaciones fabriles.

Palabras clave: Educación político-sindical; cogestión; conciencia

Abstract: This article explores the relationship between political education and
unions’ actions: are formative instances seen as an enhancer or an obstacle for
struggle? We analyze the experience of the Instituto de Capacitación y Formación
Social Sindical (ICFSS) created by the CGT, and developed simultaneously with the
national Plan de Lucha that this Confederation prompted between 1963 and 1965.
Considering the spaces of workers’ education as a terrain of struggle in itself, we
intent to complex the range of actors who played in it. We wonder how and with
what goals this learning experience was articulated to a context of intense social
conflict. We analyze the contents developed in the Institute, particularly the issue
of co-management linked to the factories’ occupation process.

Key words: Political education; co-management; consciousness

* Conicet / IIGG-UBA. Contato: g_scodeller@yahoo.com.ar

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GABRIELA SCODELLER

Introducción
Nuestra indagación gira en torno a la relación que se establece entre for-
mación política y acción sindical, cómo se lleva adelante o profundiza la reflexión
sobre o en relación a dicha práctica. Para nosotros la problemática de la formación
político-sindical se ubica en un campo mayor que remite al proceso de formación/
recomposición de la clase obrera, y dentro de éste a la centralidad que ocupan las
disputas políticas intragremiales. En este marco general, nos preguntamos por el
lugar de las instancias formativas como potenciadoras u obstaculizadoras, como
parte o aparte de la misma dinámica de lucha.
Desde una mirada que articula la concepción que parte de Marx por la cual
las clases sociales se constituyen como tales en el proceso de enfrentamiento so-
cial, con aquella que proviene de la epistemología genética de Piaget donde el
conocimiento se encuentra mediado por la acción1, entendemos que hablar de
conciencias obreras remite a un proceso nunca acabado y contradictorio, que
se desarrolla fundamentalmente (aunque no únicamente) como resultado de la
experiencia de lucha, pero cuya resultante no es unidireccional sino que puede
asumir un carácter de superación o mantenimiento del orden establecido. Es pre-
cisamente este devenir abierto, el que habilita la pregunta por las formas en que
la transmisión de la experiencia histórica o la reflexión sobre la práctica cotidiana
-que ocurren mediadas por la formación político-sindical-tornean dicho resultado.
De allí que nuestro interés apunte a reconocer la importancia de las instan-
cias de formación política en la profundización de la actividad práctica como pri-
mera instancia de toma de conciencia. Las entendemos como un momento dentro
del proceso de toma de conciencia (práctico-teórico-práctico)2, que nos permite
 240
pensar la dinámica de reflexión sobre la propia práctica3, remite más específica-
mente al vínculo entre acción y conceptualización del que habla Piaget.
Nos interesa pensar cómo esta tarea es desarrollada por las propias instan-
cias gremiales. Así, entendemos por experiencias de formación político-sindical
aquellas que definen como interés o preocupación la preparación de cuadros, diri-
gentes o activistas sindicales para la intervención/acción gremial, sin seleccionarlas
a priori por su orientación político-ideológica. Cómo estas tareas o rol del activista
gremial (y por lo tanto el tipo de formación y su contenido) se amplíen o acoten,
tendrá que ver con tradiciones ideológicas, contextos, etc. Aquí a su vez realiza-
mos un recorte de nuestro objeto, al abocarnos a una experiencia sistematizada de
formación, elaborada por una central obrera para los dirigentes y delegados de los
sindicatos afiliados.
Como una primera aproximación al tema, indagaremos en la relación entre
educación y lucha ubicándonos en un momento de alza de la conflictividad social.
Para ello, en este artículo tomamos una experiencia desarrollada en Argentina en-
tre los años 1963 y 1965, cuando desde la Confederación General del Trabajo (CGT)

1 Al respecto véase los trabajos de MARIN, Juan Carlos. Conversaciones sobre el poder. Una experiencia co-
lectiva. Buenos Aires: IIGG-FCS-UBA, 1996; IZAGUIRRE, Inés y ARISTIZABAL, Zulema. Las luchas obreras
1973-1976. Buenos Aires: IIGG-FCS-UB, 2000; MULERAS, Edna. Sacralización y desencantamiento. Las for-
mas primarias del conocimiento del orden social. Buenos Aires: Miño y Dávila, 2008.
2 Siguiendo a Piaget, pensamos el proceso de toma de conciencia en tres niveles/momentos que trazan un
movimiento práctico-teórico-práctico. El primero indica un plano de la acción material sin conceptualización,
pero cuyo sistema de esquemas constituye ya un saber elaborado; el segundo remite a un plano de la con-
ceptualización, que obtiene sus elementos de la acción; y el tercero es un plano donde aparecen abstraccio-
nes y operaciones nuevas sobre la base de las anteriores, ahora compuestas y enriquecidas por la realización
de combinaciones novedosas. PIAGET, Jean. La toma de conciencia. Madrid: Morata, 1976, pp. 254-274.
3 GRAMSCI, Antonio. El materialismo histórico y la filosofía de Benedetto Croce. Buenos Aires: Nueva
Visión, 1997.

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EL INSTITUTO DE CAPACITACIÓN Y FORMACIÓN SOCIAL SINDICAL...

se impulsaron dos importantes acciones. Por un lado, el Plan de Lucha que abarcó
aquellos años y en el marco del cual se dio un extendido proceso de ocupaciones
de establecimientos fabriles; por otro, la creación del Instituto de Capacitación y
Formación Social Sindical (ICFSS). Nos interesa conocer cómo es que ambos proce-
sos se articularon, complementaron y nutrieron entre sí, si es que efectivamente
dicha vinculación existió o fue pensada explícitamente por las dirigencias sindica-
les y/o por el equipo de formadores de aquél entonces.
Es necesario destacar que tanto el Plan de Lucha de 1963-1965 como espe-
cíficamente las ocupaciones de fábrica del año 1964 han sido profundamente es-
tudiados. En general, los distintos autores que han abordado la temática se han
manifestado en torno a un mismo eje de discusión: la mayor o menor planificación,
organización y direccionalidad con que contó el proceso y vinculado a lo anterior,
el mayor o menor peso y control de las cúpulas de las 62 Organizaciones Peronistas
(rama político-sindical del movimiento) y la CGT entre las bases obreras, enfati-
zando en este caso un importante nivel de autonomía gremial a lo largo de todo
el conflicto4. Sin embargo, ninguno articula dicho Plan de Lucha con la actividad
sistematizada de formación que de modo paralelo impulsó la propia CGT. Tampoco
se ha prestado atención a la importante tarea de propaganda realizada a través del
Boletín Informativo Semanal de la CGT que fue editado durante esos mismos años.
Por otro lado, los escasos trabajos que refieren a la cuestión de la educación
obrera suelen vincular experiencias como la que aquí referiremos a estrategias
“pro-imperialistas” enmarcadas en el contexto de la Alianza para el Progreso, sin
 241 analizar su contenido ni cómo los programas internacionales de educación obre-
ra fueron reapropiados, cuestionados o resignificados desde los actores locales5.
Tampoco ha sido un tema abordado específicamente por quienes se han abocado
a desentrañar el surgimiento y enfrentamientos entre las distintas líneas al interior
del peronismo en esta época, siendo que las mismas poseían vinculaciones o in-
fluencias con las distintas corrientes existentes en el seno de la CGT.
Así, en este artículo pretendemos abordar un tema poco transitado por los
historiadores del movimiento obrero como es el de la formación político-sindical,
analizándolo como un terreno de disputa en sí mismo. En cuanto se refiere a la
experiencia en particular, nos interesa ubicarla en el marco del Plan de Lucha y
complejizar el abanico de actores que ocuparon este espacio. Nos preguntamos
cómo y con qué objetivos se articuló una experiencia formativa a un contexto de
intensa conflictividad social. Analizaremos los contenidos desarrollados en el Ins-
tituto, particularmente la temática de la cogestión vinculada al proceso de ocupa-
ciones fabriles. Realizaremos dicha tarea a partir del análisis de distintas fuentes
sindicales de la época. Incluimos también entrevistas orales realizadas a docentes
y dirigentes gremiales que participaron de dicha experiencia.

4 Entre quienes destacan el rol de unificación jugado por la central obrera pueden consultarse los trabajos
de COTARELO, M. Celia y FERNANDEZ, Fabián. La toma de fábricas. Argentina, 1964. Buenos Aires: PIMSA
Documentos de Trabajo Nº2, 1994; GRAU, M. Isabel, IANNI, Valeria y MARTI, Analía. Una aproximación a las
acciones de la lucha de la clase obrera argentina. Primera etapa del Plan de Lucha de la CGT. 1963/1965. En:
PIMSA 2004. Buenos Aires: PIMSA, 2004, pp. 100-124. En una línea que plantea un proceso de autonomía
de las bases y de cuestionamiento y superación a la dirección de la CGT, véase SCHNEIDER, Alejandro. Los
compañeros. Trabajadores, izquierda y peronismo, 1955-1973. Buenos Aires: Imago Mundi, 2005.
5 Al respecto véase: PARCERO, Daniel. La CGT y el sindicalismo latinoamericano. Historia crítica de sus relaciones.
Desde el ATLAS a la CIOSL. Buenos Aires: Ed. Fraterna, 1987; POZZI, Pablo. El sindicalismo norteamericano
en América Latina y en la Argentina: el AIFLD entre 1961-1976. En: Revista Herramienta Nº 10, julio 1999;
BOZZA, Juan. Trabajo Silencioso. Agencias anticomunistas en el sindicalismo latinoamericano durante la
Guerra Fría. En: Revista Conflicto Social, Año 2, Nº 2, diciembre 2009.

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GABRIELA SCODELLER

El Plan de Lucha 1963-1965


El proceso atravesado por el movimiento obrero peronista con posterioridad
al golpe de estado de 1955 que derrocó a J.D. Perón abrió diversas perspectivas
dentro del mismo. Por un lado, proscripto el partido, las dirigencias sindicales asu-
mieron una representación que superaba lo estrictamente reivindicativo. Aunque
en un continuo tire y afloje, algunos sectores lograron acumular cierto poder en
el marco de apertura generada durante los gobiernos de Frondizi (1958-1962) e
Illia (1963-1966). Por otro, muchos sectores obreros y juveniles comenzaron un
proceso de resignificación del peronismo original, acercándose hacia posiciones
clasistas. Fue el caso del Movimiento Revolucionario Peronista (MRP) de Gustavo
Rearte – cuyo discurso logró cierta penetración entre sectores obreros en el con-
texto de las ocupaciones de 1964- o de la Acción Revolucionaria Peronista (ARP)
de J.W. Cooke -que también cobró fuerza en esta época-.
1957 y 1962 habían visto surgir dos de los programas históricos de la clase
obrera argentina, sintetizando el componente antimperialista que acompañaba
el imaginario de los trabajadores por esos años. El segundo de ellos, el ‘Progra-
ma de Huerta Grande’, había sido elaborado por la denominada línea dura den-
tro de las 62 Organizaciones, encabezada por Andrés Framini (Textiles). Mientras
esto sucedía Augusto Vandor, dirigente de los metalúrgicos y referente de la línea
hegemónica dentro del sindicalismo peronista, se entrevistaba con el embajador
norteamericano6. Su estrategia de ‘golpear para negociar’ se sostenía en las ex-
pectativas reivindicativas de los trabajadores, en quienes la propuesta más “socia-
lizante” del Programa de Huerta Grande no lograba eco7.
Por su parte, a través de distintas intentonas militares, los sectores burgue-
 242
ses pretendían dirimir sus diferencias no sólo en materia económica y del modelo
de acumulación a impulsar, sino en cuanto a qué hacer frente al peronismo y al
movimiento obrero. En julio de 1963 había ganado el candidato de la Unión Cívica
Radical del Pueblo, A. Illia, con apenas el 25% de los votos, continuando la inesta-
bilidad política del periodo. En dicho contexto, entre 1963 y 1965 se desarrolló el
Plan de Lucha de la CGT.
Luego de largas negociaciones, la central obrera había sido normalizada ha-
cia fines de enero de 1963. Nucleaba a 234 asociaciones, sindicatos y federaciones a
nivel nacional, lo que representaba 2 millones y medio de afiliados8. Políticamente
quedó integrada por igual cantidad de miembros de las 62 Organizaciones y de los
Gremios Independientes, aunque los principales cargos fueron para los primeros.
José Alonso (Vestido) de las 62 ocupó el de Secretario General, mientras que Riego
Ribas (Gráfico) del sector de los Independientes asumió como Secretario Adjunto.
En ese mismo congreso se anunció el Plan de Lucha denominado “El cambio
total de las estructuras”. Las exigencias del movimiento obrero organizado que
motivaron el mismo eran: libertad de los presos sociales y políticos; derogación
de las leyes represivas; solución al problema de los salarios y jubilaciones; parti-
cipación de los trabajadores en los órganos de conducción de la vida económica;
control de costos y fijación de precios máximos para los artículos de primera nece-
sidad; anulación de los contratos petroleros; reforma agraria; retorno a la consti-
tución; libertad de prensa, entre otros numerosos puntos9.

6 CULLEN, Rafael. Clase obrera, lucha armada y peronismos. Génesis, desarrollo y crisis del Peronismo Original,
Vol. I. Buenos Aires: De la Campana, 2008, p. 204.
7 Idem, pp. 209 y 211.
8 Datos extraídos de DE IMAZ, José L. Los que mandan. Buenos Aires: Eudeba, 1965, p. 224.
9 Puede consultarse en COTARELO, M. C. y FERNÁNDEZ, F., Op. Cit., pp. 8-9.

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Sin entrar en detalles sobre su desarrollo, nos interesa marcar brevemente


las distintas etapas del Plan de Lucha y sus características, a los efectos de analizar
su posible vinculación con el proceso de formación desarrollado desde el Instituto
de Capacitación y Formación Social Sindical:
1ª Etapa (mayo de 1963): se desarrollaron actos, volanteadas, paros sorpresi-
vos y manifestaciones durante una semana, las que culminaron en una huelga ge-
neral de 24hs. Hubo una importante tarea de difusión previa a través de mariposas
y murales.
2ª Etapa (mayo/junio de 1964): que consistió en una primera fase de agitación
y esclarecimiento, y una segunda que fue cuando se produjeron las ocupaciones
masivas de establecimientos fabriles. Aunque prevista para marzo, se postergó
por la oposición de los gremios Independientes a su realización. Fueron, a lo largo
de distintos operativos, 11.000 los establecimientos fabriles tomados, fundamen-
talmente en las zonas industriales de Capital Federal y Gran Buenos Aires, afectan-
do a más de 3.913.000 trabajadores10.
3ª Etapa (agosto/septiembre de 1964): se realizaron cabildos abiertos y movi-
lizaciones en las principales ciudades del interior del país. Consistieron en actos pú-
blicos de los que participaron distintas organizaciones políticas y sectores sociales
y en los que se realizaban análisis y propuestas en relación a la situación nacional.
Tal vez por ello, cobraron centralidad los reclamos políticos, diluyéndose los de
tinte netamente gremial.
4ª Etapa (noviembre/diciembre de 1964): consistió en una serie de marchas
 243 y movilizaciones, muchas de las que culminaron en enfrentamientos callejeros, y
que finalizaron con una huelga general de 48hs.
5ª Etapa (julio de 1965): tuvieron lugar marchas y concentraciones en Capital
y Gran Buenos Aires y la realización de un acto en el mes de octubre. Ante la re-
presión durante este último, se convocó a una huelga general en la que murieron
tres obreros producto de enfrentamientos con la policía. Cabe señalar que en el
mes de enero el Congreso Ordinario de la CGT Felipe Vallese había renovado las au-
toridades de la Confederación. Éstas declararon la vigencia y necesidad de seguir
con el Plan de Lucha, actualizándolo a partir de nuevos objetivos (“Declaración de
Reactivación del Plan de Lucha”)11.
Remarquemos la distancia de casi un año entre la primera y la segunda etapa
del Plan de Lucha. Mientras que los análisis en general han adjudicado este pa-
réntesis a los deseos de las 62 Organizaciones de intervenir en las elecciones pre-
vistas para mediados de 1963, nos interesa introducir la cuestión de la actividad
educativa, y pensarla como un elemento más de este extenso Plan de Lucha. Fue
justamente en el lapso temporal entre las dos primeras etapas, que se desarrolló
con mayor sistematicidad e intensidad la experiencia del Instituto de Capacitación
y Formación Social Sindical.

La formación política para el “cambio de estructuras”


Como mencionamos, el Plan de Lucha que el Congreso Normalizador aprobó
en 1963 se denominó “El cambio total de las estructuras”. Las referencias a esta

10 CGT. Memoria y Balance 1963-1964. Periodo de Febrero 1963 – Agosto 1964. Buenos Aires, 1964.
Cabe destacar la cobertura gráfica de las ocupaciones que se realizó en el Boletín Semanal. Dos números
están enteramente dedicados a la cuestión, eligiendo relatar el conflicto visualmente a través de 137 foto-
grafías. Véase CGT. Boletín Informativo Semanal. Buenos Aires: Mayo y Junio de 1964.
11 SCHNEIDER, A. Op. Cit., p. 234.

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cuestión suelen reducirse en la bibliografía a la elaboración de un folleto que data


de 1965 titulado ‘La CGT en marcha hacia el cambio de estructuras: juzga el pasa-
do, analiza el presente y proyecta el futuro’, existiendo cierto consenso en cuanto
a que el mismo fue relegado e ignorado por el conjunto de la dirigencia cegetista.
Sin embargo, más allá de esta formulación final como publicación de 84 páginas,
la constante referencia a la idea del “cambio de estructuras” impregnaba la retó-
rica de la época. Para abonar a la construcción de dicho proceso, fue concebida la
necesidad de la formación.
Inmediatamente se impulsaron desde la Secretaría de Prensa, Cultura, Propa-
ganda y Actas a cargo de Luis Angeleri (Luz y Fuerza), una serie de medidas en este
sentido, que no apuntaron sólo a la formación de sus cuadros sino a la elaboración
de información e investigaciones que sostuviesen sus planteos. Según J.L. De Ímaz
(vinculado a J. Alonso), era la primera vez que los dirigentes de la CGT recurrían al
asesoramiento de equipos técnicos especializados12. Se fundó así el Departamento
de Economía Social, a cargo de O. Martini (quien junto a J. Villanueva dictaron las
materias de perfil económico en el ICFSS). Se realizaron dos importantes Jornadas
de debate: Económicas y Agrarias –cuyas publicaciones se agotaron-. Se inició un
proceso de recuperación y compra de material bibliográfico13, tarea que estuvo a
cargo de Guillermo Gordonez. Se editó el Boletín Informativo Semanal, cuya tirada
por número era de 6.000 ejemplares14 y desde agosto de 1964 se realizó un progra-
ma radial sobre “problemas nacionales, analizados a nivel popular”15.
Entre esta batería de acciones tendientes a difundir información, potenciar
debates y capacitar a los trabajadores para el rol protagónico que debían asumir
en esta “etapa revolucionaria”, se creó el Instituto de Capacitación y Formación  244
Social Sindical. Aclaremos que el contenido otorgado a dicha “revolución” era la
justicia social, el reparto equitativo de la riqueza producida y la activa participación
de los trabajadores en todos los ámbitos de gobierno16. ¿Cuál era el tipo de diri-
gente que se buscaba para dicha etapa? Un sujeto preparado para “realizar una
conducción de tipo moderno, realista y revolucionaria”17; no limitado a tareas sin-
dicales (las que además debían incluir la esfera gremial, cultural y de capacitación)
sino concernientes a la vida política nacional. Cabe señalar en dichos enunciados la
impronta del “sindicalismo de acción múltiple” que propugnaba la tendencia que
luego sería identificada como “participacionista”.
Se realizó entonces una profusa difusión de la actividad del ICFSS a través de
las páginas del Boletín Semanal, donde se comentaban sus objetivos y se invitaba
a participar del mismo. Con esta tarea quienes lo impulsaban esperaban “obtener
en poco tiempo un plantel extraordinario de compañeros capaces de asumir pues-
tos de dirección y gobierno en cualquier momento”18, al punto de definir al Instituto

12 DE IMAZ, J. Op. Cit., p. 229. Contrariamente a la valoración positiva de De Imaz, R. Carri, criticó fuerte-
mente a los intelectuales vinculados a Alonso, grupo que “apenas incidió en la elaboración de una línea
política, a lo sumo le agrega cierto lenguaje ‘científico’”, que por “hermético” no solo no tuvo ningún éxito
concreto en el movimiento sindical sino que además, estas “teorías políticas complicadas” tendieron a
neutralizarlo. CARRI, Roberto. Sindicatos y poder en la Argentina. Buenos Aires: Editorial Sudestada, 1967,
pp. 133-135
13 Durante estos años se compraron 624 libros, recibieron 1335 obras y publicaciones periódicas por donación
y 131 por canje; siendo las consultas bibliográficas muy numerosas (3032 consultas). Datos extraídos de
CGT. Memoria y Balance 1963-1964. Op. Cit., p. 371.
14 CGT. Memoria y Balance 1963-1964, Op. Cit., p. 357.
15 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 74. Bs. As.: 10 al 16 de agosto de 1964, p. 26.
16 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 64. Bs. As.: 1 al 7 de junio de 1964, p. 20.
17 Circular Nº 32. Bs. As., 23 de Julio de 1963.
18 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 26. Bs. As.: 9 al 15 de agosto de 1963, p. 10.

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como una “verdadera fábrica de dirigentes19. El objetivo de largo alcance era la


preparación técnica y política de sus “cuadros, que en el día de mañana tendrán
puestos claves en el gobierno del pueblo y por el pueblo y para el pueblo”20. Estos
planteos en torno a la necesaria preparación de los trabajadores para ser gobier-
no, el conocimiento de nuevos instrumentos y métodos adaptados a los constan-
tes cambios, se repiten en numerosas ocasiones.
De igual modo, las notas referidas al ICFSS siempre se vinculaban al Plan de
Lucha en el cual se encontraba embarcada la central obrera:

En el Plan de Lucha que tiene para llevar a cabo la Central Obrera, obser-
vamos que se va al fondo la cuestión, o sea la participación del trabaja-
dor en la distribución de la riqueza nacional, y para que ello sea una rea-
lidad, los trabajadores tendrán que ir al poder. La CGT, en ese sentido y
como complemento de ese objetivo, ha creado el Instituto de Capacita-
ción y Formación Social Sindical, con la idea de preparar esa élite de go-
bierno. Esa circunstancia no se hace como un mero medio de conformar
técnicos, sino todo lo contrario; el Instituto en cuestión alberga mate-
rias que van hacia la profundidad del cambio del sistema imperante en
la vida política, económica y social de nuestro país; la CGT ha tenido la
delicada preocupación de conformar tanto el Instituto como los distin-
tos cursos que en el mismo se desarrollan, estrechamente vinculados
al Plan de Lucha que está en vigencia en los trabajadores argentinos21.

Previamente al ICFSS y como actividad preparatoria del mismo, se desarrolló


 245 entre agosto y noviembre de 1963 un curso de “Conducción Sindical”. Las clases
eran dos veces a la semana y los días viernes, dentro de un denominado ‘Ciclo
de Conferencias’, se realizaban disertaciones a cargo de los agregados laborales
y culturales de distintos países y de funcionarios de organismos internacionales.
Las materias desarrolladas fueron: Análisis e interpretación del proceso histórico y
social argentino; Estructura económica y social argentina; Estructura y Técnica de
la organización y conducción sindical; Programación y planeamiento del cambio de
estructuras; Experiencia y cooperación internacional22. Estuvo destinado a dirigen-
tes y si bien previsto inicialmente para 50 alumnos, del mismo participaron unos
90, provenientes de Capital Federal y Gran Buenos Aires23, 7 de los cuales fueron
posteriormente becados a Estados Unidos, Israel y Alemania.
Por dar un ejemplo de los contenidos desarrollados, dentro de la materia
‘Estructura y Técnica de la organización y conducción sindical’ dictada por Julio C.
Neffa, los puntos del programa eran: I. Orígenes y realidad del sindicalismo; II. El
sindicalismo en el mundo y en América Latina; III. El sindicalismo moderno en Ar-
gentina; IV. Técnica de la conducción sindical. La bibliografía con la que se trabaja-
ba era completa y variada, aunque la base eran una serie de autores jesuitas, como
el libro de A. Sily -director del Centro de Investigación y Acción Social (CIAS)- ‘La
organización sindical’. Otros materiales de esta línea cristiana eran los ‘Cuadernos
de CLAEH’ y los textos de E. Máspero o L. Lebret24.

19 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 19. Bs. As.: 22 al 28 de julio de 1963, p. 2.


20 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 26. Bs. As.: 9 al 15 de agosto de 1963, p. 11.
21 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 53. Bs. As.: 16 al 22 de marzo de 1964, p. 9.
22 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 19. Bs. As.: 22 al 28 de julio de 1963, pp. 5-7; CGT. Memoria y Balance
1963-1964, Op. Cit., pp. 373-378.
23 CGT. Circular N° 32, Op. Cit.
24 Véase PROF. JULIO NEFFA. Curso de Conducción Sindical. Bibliografía para los tres primeros capítulos del
programa de Estructura y técnica de la organización y conducción sindical. Archivo del Sindicalismo Argentino
‘Santiago Senén González’ (UTDT), y Entrevista a Julio Neffa (Buenos Aires, agosto 2011).

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El Instituto propiamente dicho comenzó a funcionar en abril de 196425. El


Director general del mismo era el propio L. Angeleri, y la dirección y programa-
ción de los cursos estuvo a cargo de Nicanor Saleño, asesor de Alonso. Su objetivo
era a la vez “capacitar a los trabajadores y a sus dirigentes para la solución de los
problemas específicos de los trabajadores dentro del marco sindical” y “preparar
a los dirigentes para una conducción tendiente a estructurar el sindicato para par-
ticipar en el proceso de cambio de estructuras y en la nueva sociedad”. Para ello,
se realizarían “estudios e investigaciones sobre la estructura social, económica y
cultural, así como de problemas específicos de los sindicatos y otros que afecten a
los trabajadores y al país”26.
A este fin se desarrollaron paralelamente cuatro cursos: ‘Conducción Sindi-
cal’, ‘Auxiliar Social Sindical’, ‘Administración Sindical’ y ‘Periodismo Sindical’. Ade-
más de los contenidos específicos, existió un cuerpo de materias comunes a los
cuatro: ‘Sindicalismo’ a cargo de Julio C. Neffa y Juan J. Taccone (Luz y Fuerza);
‘Proceso histórico y social argentino’ a cargo del abogado Gonzalo Cárdenas; y ‘So-
ciología’, dictada por José Luis De Imaz, Floreal Forni, Atilio Borón y Héctor Goglio
(los dos últimos fueron también docentes de ‘Técnicas de Investigación Social’)27.
Nos dedicaremos, por cuestiones de espacio, a los contenidos desarrollados
dentro del ‘Curso de Conducción Sindical’28. En sintonía con el objetivo específico
proyectado para este curso, que era: “analizar la estructura social y económica del
país y de los trabajadores. Determinar las pautas programáticas y el planteamien-

 246
to del cambio estructural de la sociedad”29, es destacable el peso que ocuparon
ciertos contenidos históricos y teóricos vinculados a aquella formación político-
técnica necesaria para llevar adelante el “cambio de estructuras”. Transcribimos
el programa completo ya que es elocuente al respecto:

1) SINDICALISMO - 1. Los orígenes de la organización profesional; 2. La


revolución industrial y sus consecuencias; 3. El nacimiento del movi-
miento obrero; 4. Las ideologías y el movimiento obrero en el siglo XIX;
5. La Primera Internacional. La Segunda Internacional; 6. La Revolución
Rusa y la Tercera Internacional; 7. El movimiento obrero entre las dos
guerras; 8. Las centrales sindicales internacionales; 9. El movimiento
obrero en América latina; 10. El movimiento obrero argentino; 11. El sin-
dicalismo moderno en la Argentina.
2) PROCESO HISTÓRICO Y SOCIAL ARGENTINO - 1. Política española en
América; 2. Revolución de Mayo; 3. Unitarios y federales. Interpretación
sociológica de los dos movimientos; 4. La organización institucional; 5.
De Pavón al 80. La generación liberal; 6. La revolución liberal y mercan-
til; 7. Advenimiento de las clases medias al poder; 8. 1930. La vuelta al
“régimen”; 9. 1943 y 1945; 10. Industrialización y desarrollo económico.

25 CGT. Circular Nº 82, Buenos Aires: 6 de marzo de 1964.


26 CGT. Instituto de Capacitación y Formación Social Sindical de la CGT. Programa de Cursos y Seminarios a reali-
zarse en 1965. Buenos Aires: Secretaría de Prensa, Cultura, Propaganda y Actas, p. 1.
27 Véase listado de profesores en CGT. Instituto de Capacitación y Formación Social Sindical de la CGT. Progra-
ma de Cursos y Seminarios a realizarse en 1965. Op. Cit.
28 El desarrollo del curso durante el año 1964 tuvo características similares a las del año anterior, aunque se
modificaron los invitados al Ciclo de Conferencias. Sin embargo, ya para el año 1965 se advierten una serie
de modificaciones, como por ejemplo, la incorporación de nuevas materias. Aquí exponemos el programa
correspondiente a esta última fecha.
29 CGT. Memoria y Balance 1963-1964, Op. Cit., p. 380

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3) SOCIOLOGIA - 1. Introducción: objeto de la sociología; 2. Conceptos


básicos; 3. La estructura social; enfoques para su análisis; 4. La dimensi-
ón demográfica. Las migraciones en la Argentina; 5. El proceso de urba-
nización en nuestro país; 6. La transformación de la estructura ocupa-
cional argentina; 7. La estructura de clases en la Argentina; 8. El poder.
Su estructura en nuestro país; 9. Las alternativas de cambio social en la
Argentina y el papel del movimiento obrero.
4) PSICOLOGIA SOCIAL - Psicología individual: 1. Psicología. 2. Individuo
y sociedad. 3. El proceso de socialización; Psicología social: 4. Tipos de
relación con los otros. 5. El líder. 6. Efectividad de la labor del líder.
5) ECONOMÍA - 1. Introducción: qué es la economía; 2. Factores de la
producción. Importancia del trabajo; 3. La producción. El problema del
costo; 4. La teoría del consumo. Los precios. Su determinación; 5. Los
distintos tipos de mercado; 6. La distribución. Renta de la tierra. Salario.
Interés. Beneficio; 7. Ahorro. Consumo. Inversión en la economía nacio-
nal; 8. La contabilidad nacional. Renta nacional. Su determinación.
6) GEOGRAFÍA ECONOMICA ARGENTINA - 1. Los factores naturales en
la economía argentina; 2. Región geográfica y zona económica; 3. La po-
blación; 4. Las comunicaciones y el transporte; 5. Hidrografía; 6. Pesca
y explotación forestal; 7. Energía eléctrica; su papel en el desarrollo; 8.
Agricultura; 9. Ganadería; 10. Minería; 11. Industrias; zonas y sectores;
12. Comercio exterior; 13. Integración económica regional y cohesión
interna.
7) ESTRUCTURA ECONOMICA ARGENTINA - 1. Análisis de la estructura y
funcionamiento de la economía argentina; 2. Desarrollo económico. Ob-
jeto y modelos; 3. La economía argentina y su ubicación en el panorama
 247 mundial; 4. Técnicas de programación económica; 5. Financiamiento del
desarrollo económico
8) PLANIFICACION DEL CAMBIO DE ESTRUCTURAS - 1. Objetivos socia-
les del desarrollo; 2. Ideologías y valores implícitos; 3. Programas y reali-
zación del cambio; 4. Elementos para un plan de desarrollo nacional; 5.
Evaluación de un posible plan de desarrollo; 6. Crítica a planes naciona-
les de desarrollo30.

Se mantuvo el esquema de trabajo que complementaba el cursado bisema-


nal con el ‘Ciclo de Conferencias’ (de asistencia obligatoria) donde expusieron dis-
tintos agregados laborales y culturales durante el primer año y referentes sindica-
les y académicos del ámbito nacional en el segundo31. Pero además se agregaron
una serie de ‘Seminarios Especializados’. A diferencia de las materias anteriores,
aquí se advierte cierta afinidad con los temas propugnados por los organismos
internacionales vinculados a la Alianza para el Progreso. Estos seminarios eran:

1. Objetivos sociales del desarrollo económico; 2. Economía de la em-


presa y cogestión; 3. Salario vital, mínimo y móvil y el costo de vida; 4.
Comercio exterior y ALALC; 5. Seguridad social y servicios sociales sin-
dicales; 6. Cambio de estructuras y reforma agraria; 7. Los sindicatos y
el problema de la vivienda; 8. Desarrollo económico y desocupación; 9.
Las conquistas sociales en los convenios colectivos de trabajo32.

30 CGT. Instituto de Capacitación y Formación Social Sindical de la CGT. Programa de Cursos y Seminarios a
realizarse en 1965. Op. Cit., pp. 6-9.
31 Los expositores fueron: H. Giberti, C. Cao Saravia, A. Cafiero, A. Ferrer, A. Sampay, J. Terza, J.L. de Imaz, J.
Villanueva, J. Alonso. CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 67. Bs. As.: 22 al 28 de junio de 1964, p. 5.
32 CGT. Instituto de Capacitación y Formación Social Sindical de la CGT. Programa de Cursos y Seminarios a
realizarse en 1965. Op. Cit., p. 31.

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Durante el Ciclo 1964, se realizaron además unas ‘Jornadas Intensivas’ de


dos días, cuyo tema general fue “La CGT frente al cambio de estructuras: Progra-
ma y Estrategia”33. En 1965 se incorporaron además una serie de ‘Cursos Intensi-
vos’ para graduados de años anteriores como ‘Análisis de Estructura I (Argentina)’
y ‘Análisis de Estructura II (América Latina)’. Se dictó también un ‘Curso Intensivo
para Delegados Regionales’ destinado a miembros de los Secretariados, y un ‘Cur-
so de Integración Latinoamericano’ para dirigentes nacionales y de las centrales
latinoamericanas.
La proyección inicial de la formación preveía un alcance federal, aunque no
llegó a realizarse con sindicatos del interior debido a la precariedad económica
aducida por la misma central. Estaba destinada para tres niveles: activistas, diri-
gentes de base y dirigentes del orden nacional. Podían ser alumnos los afiliados a
organizaciones confederadas (se exigía certificación y había cupos de dos repre-
sentantes por organización). Salvo el curso de Conducción Sindical destinado solo
a dirigentes, de los otros tres podían participar tanto dirigentes como activistas.
Debían poseer ciertos conocimientos básicos en las materias a cursar, se requería
además asistencia a todas las clases y la aceptación del reglamento interno del ins-
tituto. Entre quienes asistieron prevalecieron empleados, cuya edad no superaba
los 45 años (84%). El análisis del nivel educativo muestra que la mitad poseía pri-
maria completa, sólo un 8% había concluido la secundaria y un 5% habían realizado
estudios universitarios. Cabe destacar que sólo cuatro de un total de 170 alumnos
(entre los cursos de Conducción y Auxiliares) habían realizado previamente algún
tipo de formación sindical34.
Específicamente del curso de ‘Conducción Sindical’ se graduaron 31 dirigen-
 248
tes en 1963 y 28 en 1964. ¿Qué herramientas metodológicas adquirieron a lo largo
de esta formación, más allá del contenido político-técnico? ¿Cómo fue pensado el
proceso de enseñanza-aprendizaje, el vínculo docente-alumno y por añadidura, la
relación dirigentes-bases? ¿Cuál era la concepción sobre los modos de construc-
ción, transmisión y resignificación de conocimientos?
En cuanto a la metodología de trabajo adoptada en el espacio áulico35, poco
se ha podido profundizar. Según de que curso se tratase, tuvieron una duración de
cuatro a ocho meses. Las clases eran breves y se realizaban en horario de tarde.
En general las mismas mantenían una dinámica expositiva por parte del docente,
se buscaba no utilizar una jerga academicista sino recurriendo a un “buen apoyo
de técnicas pedagógicas”36. Cada clase contemplaba un espacio para preguntas
u opiniones al final, pero además existía un ámbito para la discusión y exposición
a través del trabajo en comisiones, donde entre otras cosas, se pretendía que los
participantes “apliquen los conocimientos adquiridos a la realidad que ellos mis-
mos viven”37. Todos los cursos tenían un fuerte componente de elaboración pro-
pia, por cuanto los alumnos debían preparar proyectos en relación a las temáticas
desarrolladas. Por ejemplo, en el curso de ‘Auxiliar Social Sindical’ debían realizar
un estudio socioeconómico en una “villa de emergencia” y elaborar un proyecto

33 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 72. Bs. As.: 27 de julio al 2 de agosto de 1964, p. 17. Los docentes
fueron: G. Cárdenas, J.C. Neffa, J.L. de Imaz, O. Martini, F. Forni, J.J. Taccone, J. Villanueva y L. Angeleri.
34 Datos extraídos de DE IMAZ, J. Op. Cit., pp. 226-227, en base al análisis de las fichas de inscripción de los
participantes en los cursos de 1964.
35 Realizamos aquí una síntesis tomando en consideración las distintas instancias de formación (cursos, se-
minarios intensivos y especializados).
36 Entrevista realizada a Atilio Borón (Buenos Aires, agosto 2011).
37 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 72. Bs. As.: 27 de julio al 2 de agosto de 1964, p. 17.

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de “promoción de la comunidad”38. Una jornada de trabajo intensiva al final del


cursado, preveía la evaluación y devolución por parte de los participantes de los
contenidos desarrollados.
La CGT entregaba el “material didáctico” a los participantes (antología de
textos y versiones mimeografiadas de las clases). Los docentes por su parte, adap-
tando la experiencia de las ‘Fichas’ de la carrera de sociología de la Facultad de
Filosofía y Letras de la UBA, realizaban especies de resúmenes de los textos indica-
dos en la bibliografía, en un lenguaje más sintético y didáctico39, mientras que los
libros se encontraban a disposición en la Biblioteca de la CGT. No se habían imple-
mentado aún las técnicas de educación obrera que promovía la OIT, consistentes
no sólo en herramientas didácticas escritas sino auditivas, visuales, exposiciones,
actividades lúdicas, etc.40
¿Qué concepción acerca de la historia se desprende de los programas y los
textos en general? Distintas notas del Boletín permiten advertir la valorización que
hacían quienes promovían el ICFSS respecto del aprendizaje sobre las experiencias
históricas, tanto de su propia clase como del de las otras clases. En este último
sentido por ejemplo, las escuelas de capacitación que impulsaban empresarios y
militares eran un modelo frente al cual el movimiento obrero podía y debía asumir
similar tarea41. En cuanto a lo primero, las experiencias que remitían a la historia y
presente de la propia clase, entendida en términos internacionales, eran un com-
ponente importante en los programas de estudio, lo que se explicaba de la siguien-
te manera: “Así como no podemos renunciar a nuestro pasado para comprender
 249 la realidad nacional, y no podemos desconocer la realidad actual y la misión de la
clase obrera en la Argentina, no podemos cerrarnos a lo que han hecho los trabaja-
dores en otros países”42. En cuanto a la concepción sobre qué tipo de historia tenía
sentido difundir y discutir en las aulas del ICFSS, en la fundamentación de la materia
de Historia Argentina se planteaba: “Más que amontonar fechas, que muy pronto
se olvidan, será una orientación sobre las grandes líneas e ideas que conformaron
la Nación, prestando especial atención a los aspectos sociales y económicos”43. Se
buscaba así educar en concordancia con la idea que atravesó al Instituto desde su
creación, esto es, que fuera una formación para la lucha, articulada al Plan en mar-
cha; al punto que en el recuerdo de uno de los promotores de la experiencia, L.
Angeleri, el ICFSS es ubicado como “una de las etapas del Plan de Lucha”44.
Seguidamente nos ubicaremos en el contexto de la 2ª etapa, cuando se pro-
dujeron las ocupaciones fabriles (mayo y junio 1964) para evaluar hasta dónde fue
factible pensar formación y confrontación unitariamente.

Ocupaciones y cogestión
Una de las preguntas que queda sin responder revisando la bibliografía exis-
tente sobre las ocupaciones fabriles de 1964 es: ¿para qué se tomaron las fábricas?
En este sentido, creemos que la revisión de las tareas realizadas desde el ICFSS

38 CGT. Memoria y Balance 1963-1964, Op. Cit., pp. 397-399.


39 Entrevista a Atilio Borón. Op. Cit.
40 Véase por ejemplo, OIT. La educación obrera y sus técnicas. Ginebra: 1965.
41 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 42. Bs. As.: 30 de diciembre de 1963 al 5 de enero de 1964, pp. 4-5.
42 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 19. Bs. As.: 22 al 28 de julio de 1963, p. 5.
43 Idem.
44 Conversación no grabada con L. Angeleri (Buenos Aires, agosto 2011). En 1970 se publica su libro ‘Los
sindicatos argentinos son poder’ (Editorial Pleamar), donde desarrolla extensamente la relación entre
participación y formación.

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puede mostrar una arista que supere aquellas miradas por las cuales estas accio-
nes simplemente respondían a la táctica vandorista de ‘golpear para negociar’, se
enmarcaban en la disputa de dicho dirigente con Perón, o perseguían el objetivo
de desestabilizar al gobierno de Illia. Sin negar que estos intereses estaban pre-
sentes, creemos que se puso mucho más en juego. La acción de tomar posesión
del lugar de trabajo constituye una avanzada obrera sobre un territorio ajeno, es-
pacio que a los trabajadores les es “social y jurídicamente ajeno pero que sienten
práctica y moralmente propio”45; constituye un cuestionamiento objetivo al régi-
men de dominación más allá de la conciencia acerca de dicha acción. Aunque poco
resaltado en la bibliografía, según testimonios algunas de esas fábricas ocupadas
continuaron produciendo:

Las tomas de fábrica se producen en una medida desmesurada. Nadie,


nadie imaginó que se pudiesen tomar de ese modo las fábricas. Y en
alguna de ellas, como un fenómeno también especial, no solo se las
toma y queda paralizada la actividad, sino que en algunas comenzaron
a ponerse en producción (…) Para decirlo en palabras de la etapa… era
casi insurreccional. Que se pudiesen tomar alrededor de 15.000 esta-
blecimientos, y que además los trabajadores pusiesen a trabajar esas
fábricas… era preocupante46.

Cabe aclarar que desde 1962 se implementó la ocupación de fábricas como


método de lucha de los trabajadores, más pertinente que los paros en un contexto

 250
de crisis económica y sobreproducción47. Por otro lado, recordemos que desde el
inicio del Plan de Lucha se reclamaba la participación obrera en las esferas de con-
ducción o dirección; anteriormente, el mismo Programa de Huerta Grande postu-
laba “implantar el control obrero sobre la producción”. El ámbito de la formación
no estuvo al margen de esta reivindicación. Cómo detallaremos a continuación, el
tema de la cogestión obrera fue un contenido trabajado en los cursos entre otras
instancias de discusión y debate. La pregunta es cómo esto se vinculó al proceso
en marcha y logró (o no) potenciarlo.
Durante las ‘Jornadas Económicas’ impulsadas por la CGT en agosto de
1963 se analizaron casos como los de Suecia, Alemania y Checoslovaquia, en don-
de “es normal que la representación obrera participe en todos los niveles de la
conducción”48. En el marco del Ciclo de Conferencias que acompañaba al Curso
de Conducción Sindical -y que eran reproducidas para un público más amplio a tra-
vés de las páginas del Boletín Semanal-, en septiembre expuso el agregado social
alemán sobre “Obreros y empleados, su coparticipación en la República Federal
Alemana”49. Asimismo, algunos dirigentes gremiales que ya habían realizado estos
cursos viajaron en abril de 1964 a Alemania “con el fin de interiorizarse de diversos
problemas laborales, entre ellos los de cogestión de las empresas”50.
Al mes del proceso de ocupaciones, en el marco del mismo Ciclo de Confe-
rencias se llevó a cabo la disertación “Una experiencia de cogestión en la Argen-
tina”, a cargo del abogado e integrante de la Comisión Jurídica de la CGT, José

45 IZAGUIRRE, Inés y ARISTIZÁBAL, Zulema. Las luchas obreras. 1973-1976. Buenos Aires: IIGG, FSOC-UBA,
2002, p. 52.
46 Entrevista a Armando Mattarazo (Buenos Aires, octubre 2005). Red de Archivos de Historia Oral de la
Argentina Contemporánea, Instituto de Investigaciones Gino Germani (UBA). Las ocupaciones no fueron
15.000 sino 11.000, según los propios datos de la CGT.
47 Véase SCHNEIDER, A. Op. Cit., pp. 194-197; CARRI, R. Op. Cit., pp. 100-122.
48 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 29. Bs. As.: 30 de setiembre al 6 de octubre de 1963, pp. 8-9.
49 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 25. Bs. As.: 2 al 8 de setiembre de 1963, pp. 2-3 y 5.
50 Comunicado de Prensa Nº 385, Buenos Aires, 3 de abril de 1964.

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Terza. Éste comenzó afirmando que “el tema elegido tiene una estrecha relación
con el Plan de Lucha”51. Políticamente, la cogestión fue presentada para un con-
texto de crisis social como una herramienta de pacificación. El orador desarrolló la
experiencia de la Alemania Occidental de inicios de los años ‘50, particularmente
en sus aspectos legales; argumentó que la Constitución Nacional Argentina ampa-
raba la coparticipación obrera en la gestión. Describió luego una experiencia de
cogestión desarrollada en una fábrica metalúrgica de Capital Federal hacia fines
de 1963, en la cual se puso en práctica con adaptaciones dicha legislación europea.
Sin embargo, y a pesar de la eficiencia lograda en términos de producción, desde
la UOM local y la CGT se decidió la interrupción de la experiencia en abril por el
avecinamiento de la 2ª etapa del Plan de Lucha; con lo cual contradictoriamente
con lo postulado, se desvincula en la práctica un proceso que era presentado como
unitario: la ocupación de los establecimientos fabriles y la participación en la esfera
de la producción y la gestión.
Según uno de los docentes del ICFSS, J.C. Neffa, las ocupaciones perseguían
un objetivo político, sin que fuera puesto en cuestión el poder patronal; faltos de
una herramienta política por la proscripción del peronismo, las fábricas se conver-
tían en el lugar desde el cual presionar ya sea por exigencias gremiales o políticas.
Ello no quitó que como estas acciones sucedieron “en pleno curso de capacitación”,
fuera un tema que “se trataba en los cursos”. Al respecto, este docente explica:

dábamos cursos sobre participación en la empresa, ¿no? La experiencia

 251 internacional de, no tanto los consejos obreros como sería el fondo más
marxista, pero participación de los beneficios, participación en la gesti-
ón, participación en la propiedad52.

Ya posteriormente al proceso de ocupaciones masivas, en septiembre de


1965, entre los seminarios especializados se desarrolló uno titulado ‘Economía de
la empresa y cogestión’, también a cargo de Neffa. El mismo estuvo destinado a
aquellos egresados de los cursos de Conducción Sindical y Auxiliar Social Sindical
de los años 1963 y 1964. En un mes de duración, con cuatro horas semanales de
cursado, el programa que se desarrollaba era el siguiente:

1. La empresa moderna. Descripción de la empresa moderna en el siste-


ma capitalista desde los puntos de vista económico, humano, técnico,
jurídico y de la seguridad social. Evaluación de esa realidad.
2. La empresa reformada. Descripción de la empresa reformada. Dere-
chos del trabajador en la empresa: participación en el poder, participa-
ción económica.
3. La cogestión. Terminología y concepto. Métodos para la codetermina-
ción. Contenido de la cogestión. Función de los sindicatos. Dos modelos
de cogestión: en Alemania Occidental y en Yugoslavia.
4. La cogestión en la Argentina. Experiencias de cogestión en el país. La
Constitución Nacional. Los convenios colectivos. Proyectos de Ley.
5. Formas de participación. En general: planificación del mercado, legisla-
ción, reglamentos, problemas que se plantean. En particular y respecto
de nuestro país53.

51 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 72. Bs. As.: 27 de julio al 2 de agosto de 1964, pp. 4-11 y 14-15.
52 Entrevista a Julio Neffa. Op. Cit.
53 CGT. Instituto de Capacitación y Formación Social Sindical de la CGT. Programas de Seminarios Especializados
a realizarse en setiembre de 1965. Op. Cit., p. 2.

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Como puede advertirse, eran modelos de cogestión las experiencias de Ale-


mania Occidental y Yugoslavia; los que también circulaban internacionalmente en
los seminarios de formación de la OIT y regionales de las confederaciones interna-
cionales. Si bien el docente de este seminario destaca el interés que despertaba la
experiencia Yugoslava54, las fuentes de la época muestran una mayor inclinación
por parte de la CGT local hacia el modelo alemán.

En aquel momento en Yugoslavia había un sistema de autogestión.


Entonces el tema de la autogestión en aquel momento bueno, era un
tema que, exponíamos en clases y una cosa media entusiasmante para
los sindicalistas ¿no?
¿Era una referencia?
Sí, sí, y había también muchos sindicalistas argentinos que fueron a Yu-
goslavia ¿no? De modo que, como era una forma de socialismo no sovi-
ético digamos, despertaba mucha simpatía55.

El trabajo final consistía en la elaboración por parte de los asistentes de las


bases para un proyecto de ley sobre cogestión. Si bien el dictado de este seminario
fue posterior al proceso de ocupaciones, podemos suponer que el mismo obedeció
a la necesidad de reforzar determinados elementos que no lograron desarrollarse
prácticamente en la experiencia de 1964. Consideramos que justamente en este
sentido, constituye una reflexión sobre la propia práctica, y muestra una intencio-
nalidad explícita por parte del grupo docente e impulsor del proceso de formación,
de articular este ámbito de conceptualización al proceso de lucha en marcha.
 252
La formación como territorio de disputa
La experiencia a la que aquí nos hemos abocado se ubica en el momento
de esplendor del vandorismo, caracterizado generalmente en la bibliografía como
tendencia burocrática, reformista, aliada de sectores de la burguesía industrial y de
las Fuerzas Armadas. La hegemonía de este sector de “acción sin ideas”56 ha sosla-
yado una mirada historiográfica en el plano de las disputas político-ideológicas que
entonces se jugaban al interior de la central obrera. Pero circularon contemporá-
neamente por la CGT de aquellos años distintos núcleos político-intelectuales, los
que de modos más o menos sistematizados brindaron su influencia en el campo de
la formación y disputaron el contenido de la misma.
Hemos identificado cuatro grupos, los que a su vez actuaron en una no poco
compleja relación entre ellos. El primero que mencionaremos, provenientes de
una tradición de izquierda, es quizás el que participó de un modo menos formaliza-
do en la propia experiencia del ICFSS. El segundo grupo, vinculado al vandorismo
y a ciertos sindicatos del nucleamiento de los Independientes, permite advertir la
presencia de la corriente internacional del ‘Sindicalismo Libre’. Otros dos fueron
los que más fuertemente pusieron su impronta al ICFSS, no sin matices entre ellos.
El tercer grupo conformado por quienes desde la esfera sindical impulsaron la for-
mación, provenientes del sindicato de Luz y Fuerza y relacionados con el propio

54 Véase la nota de su autoría “Autogestión obrera. La experiencia yugoslava”, aparecida en la revista


Dinamis Nº22 (órgano de prensa del Sindicato de Luz y Fuerza de Capital), de julio de 1970, pp. 40-46.
55 Entrevista a Julio Neffa, Op. Cit. Cabe señalar que al menos dentro de los dirigentes becados por la CGT, du-
rante estos años no aparecen viajes a dicho país. CGT. Memoria y Balance 1963-1964, Op. Cit., pp. 362-364.
56 Entrevista a Miguel Gazzera (Buenos Aires, septiembre 2005). Red de Archivos de Historia Oral de la
Argentina Contemporánea, Instituto de Investigaciones Gino Germani (UBA).

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secretario general de la CGT; y un cuarto grupo, integrado por el equipo de forma-


dores que llevó adelante las tareas pedagógicas, procedentes en su gran mayoría
de experiencias previas de capacitación vinculadas al sindicalismo cristiano.

El primer núcleo de intelectuales estuvo integrado por el Grupo CONDOR


(Centros Organizados Nacionales de Orientación Revolucionaria), quienes clara-
mente se definían como marxistas y peronistas. Cuatro de los miembros funda-
dores provenían de la Juventud Peronista (JP): Juan Hernández Arregui, Eduardo
Duhalde, Rodolfo Ortega Peña y Oscar Balestieri, mientras que igual número lo ha-
cían de la corriente de izquierda nacional ligada a Abelardo Ramos: Alberto Belloni,
Ricardo Carpani, Rubén Bortnik y Rubén Borello57. Si bien estos cuestionaban a la
burocracia cegetista, mantenían vínculos políticos e inclusive económicos - ya que
recibían financiamiento para algunas de sus actividades y publicaciones58-.
En un documento de junio de 1964 (2ª etapa del Plan de Lucha) explicitaban
como uno de sus objetivos el de “elevar con el aporte de su labor teórico-política,
en primer lugar, el nivel político de los dirigentes sindicales y militantes obreros”59.
Efectivamente, R. Ortega Peña y E. Duhalde se desempeñaron como asesores le-
gales durante las ocupaciones de fábricas. En estos años además pueden verse las
ilustraciones de R. Carpani acompañando las páginas del Boletín Informativo Se-
manal de la CGT. Asimismo, puede suponerse la influencia de este grupo al rastrear
los títulos editoriales adquiridos por la Biblioteca de la central en estos años, con
gran presencia de autores vinculados a la izquierda nacional. Se adquirieron obras
 253 de Ricardo Carpani, Jorge Spilimbergo, Arturo Jaureche, Manuel Ugarte, Federico
Engels, León Trotsky, Jorge Abelardo Ramos, Carlos Kautsky, Alberto Belloni, Ro-
dolfo Puiggrós, José Hernández Arregui, José María Rosa, entre otros.

El segundo grupo lo constituyó el vandorismo. Si bien el del ICFSS no fue un


espacio considerado importante por la línea hegemónica dentro del movimiento
obrero de la época, sí estuvo interesada en la construcción de una serie de vínculos
internacionales. En el contexto post Revolución Cubana en que el ‘Sindicalismo
Libre’ buscó ampliar sus redes de influencia en América Latina y se vio obligado
a reformular su mapa de aliados superando su tradicional antiperonismo, puede
comprenderse cierta confluencia del vandorismo con aquellos gremios que histó-
ricamente habían estado vinculados a la corriente promovida por el sindicalismo
norteamericano -Riego Ribas y Antonio Mucci (Gráficos), Francisco Pérez Leirós
(Municipales de Capital Federal) y Armando March (Comercio)-. Por lo tanto, ésta
también fue una manera de intervenir en la direccionalidad ideológica que se otor-
gaba a los cursos. Concretamente, la influencia de este sector se ve en el desarrollo
del ‘Ciclo de Conferencias’ ya desde 1963, y en los viajes de los egresados en cali-
dad de becados a distintos países del bloque capitalista.
En relación a lo primero, participaron como expositores agregados labo-
rales o culturales de Francia, Israel, Italia, Estados Unidos, Alemania Occidental,
Inglaterra, República Árabe Unida, España, México, Brasil, y expertos de la OIT y

57 EIDELMAN, Ariel. Militancia e historia en el peronismo revolucionario de los años 60: Ortega Peña y Duhalde.
Buenos Aires: Ediciones del CCC-Cuadernos de Trabajo N° 31, 2004, p. 29.
58 Ortega Peña y Duhalde se relacionaron tanto con Framini (más orgánicamente) como con Vandor (no sólo
porque se desempeñaban como abogados de la UOM, sino porque mantenían reuniones semanales con el
dirigente). Idem, pp. 19-24.
59 ‘Manifiesto preliminar al país’, Buenos Aires, junio de 1964. Véase en BASCHETTI, Roberto. Documentos de
la Resistencia Peronista. 1955-1970. Buenos Aires: de la Campana, 1997, pp. 392-399.

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de la CEPAL. Cabe destacar la disertación del agregado laboral de Estados Uni-


dos, Henry Hammond60, personaje fuertemente criticado por su vinculación con
los servicios de inteligencia de su país. En cuanto a los viajes, entre 1963 y 1964 el
Instituto otorgó 34 becas a “los mejores calificados”61, para realizar actividades de
“capacitación y perfeccionamiento” o “estudios laborales” que fueron costeadas
por las instituciones convocantes. Durante uno a tres meses, los becados visitaron
los siguientes destinos: Ginebra (1); Perú (4); Puerto Rico y Estados Unidos (19);
EE.UU. (5); Israel (2); Alemania e Israel (2); México (1)62. En otro ámbito, entre los
principales donantes de libros a la Biblioteca de la CGT se encontraban: Estados
Unidos, Alemania, Israel, México y los Organismos Internacionales. En esta épo-
ca TEA fue una editorial dedicada a publicar libros de sindicatos norteamericanos
traducidos al español, que estaba financiada por el gobierno de EE.UU. Según el
testimonio de J. Neffa, el bibliotecario de la CGT era quien coordinaba las tareas
de dicha editorial, siendo el nexo por el cual los sindicalistas recibían numerosas
publicaciones de esta corriente63.
Estos factores llevaron a la acusación - desmentida enfáticamente por la
Secretaría de Actas de la CGT- de que “tanto los alumnos como las materias, las
dictamina la embajada de los EE.UU., como asimismo, la financiación de dichos
cursos”64. Según Angeleri, el Instituto Americano para el Desarrollo del Sindicalismo
Libre (IADSL) daba cursos y tenían buenas relaciones con la CGT en aquella época,
aunque “eran otra cosa”65. Sin embargo, los vínculos con el denominado sindicalis-
mo libre existieron, particularmente en materia de formación. Por ejemplo, en una
carta que B. Ibáñez, director del Instituto Interamericano de Estudios Sindicales
(IIES) de la ORIT-CIOSL, escribió a J. Alonso agradeciéndole el “fraternal intercam-  254
bio de información”, se refería al programa de los cursos que en ese momento se
desarrollaban en la CGT, a la vez que prometía enviarle los programas y materiales
de los cursos dictados en México66. Cabe además recordar que si bien en esta épo-
ca la CGT no era parte de ninguna organización internacional, mantuvo relaciones
con las tres existentes (Confederación Internacional de Organizaciones Sindicales
Libres - CIOSL-, Confederación Internacional de Sindicatos Cristianos -CISC-, Federa-
ción Sindical Mundial -FSM-); aunque a través de la adhesión de los sindicatos a las
Federaciones Sindicales Internacionales, sí existió mayor vínculo con la CIOSL.

El tercer grupo estaba integrado por hombres provenientes del Sindicato de


Luz y Fuerza de Capital, en quienes la preocupación por las cuestiones referidas a

60 Su conferencia puede leerse en CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 32. Bs. As.: 21 al 27 de octubre de
1963, pp. 3-6 y 10.
61 BELLONI RAVEST, Hugo. Educación sindical en la Argentina. Experiencias sobre capacitación obrera en
España y Francia. Buenos Aires: S/E, 1973, p. 13.
62 CGT. Memoria y Balance 1963-1964, Op. Cit., pp. 362-364.
63 G. Gordonez dirigió una colección en la Editorial Pleamar que publicó títulos de Julio Neffa, Luis Angeleri y
Rubén Rotondaro (director del IADSL en los años 70).
64 CGT. Boletín Informativo Semanal Nº 43. Bs. As.: 6 al 12 de enero de 1964, p. 4.
65 Entrevista a L. Angeleri, Op. Cit. Creado en 1962, no está claro cuando el IADSL comenzó a funcionar como
tal en Argentina. Según S. Romualdi, ello sucedió hacia fines de 1963. ROMUALDI, Serafino. Presidentes
y trabajadores. Memorias de un Embajador Sindicalista en América Latina. S/L: S/Ed., 1971, p. 419. Según la
entrevista realizada por D. Parcero a Eleuterio Cardozo, recién lo hizo hacia fines de 1964. PARCERO, D.,
Op. Cit., p. 117. En esta última fecha coinciden las notas periodísticas del propio instituto y los informes del
North American Congress on Latin America. Véase respectivamente AIFLD. The AIFLD Report Vol. 7, Nº 9.
Washington: septiembre de 1969, pp. 36-37 y NACLA. Argentina in the hour of the furnaces. Nueva York:
NACLA, 1975.
66 Carta de Bernardo Ibáñez a José Alonso, México D.F., 8 de octubre de 1963, International Institute of Social
History (IISH), ICFTU Archives, Carpeta 5051.

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la formación era palpable -y tuvo su mayor fruto en la experiencia de cogestión de


la empresa estatal de electricidad SEGBA en 1973-. Fue una de las pocas institucio-
nes gremiales que desarrolló tareas sistematizadas de formación política y técnica,
funcionando desde 1962 el Instituto de Capacitación Sindical de Luz y Fuerza. En
el mismo se realizaban jornadas y cursos de capacitación para delegados, cursos
especiales para dirigentes, “todos con el apoyo pedagógico de proyecciones cine-
matográficas, apuntes didácticos, mesas redondas, conferencias, y una excelente
biblioteca especializada”67. Funcionó también un área dedicada a realizar estudios
e investigaciones.
No por casualidad el responsable de la secretaría que llevó adelante el ICFSS
provenía del Sindicato de Luz y Fuerza, aunque el conjunto de las actividades men-
cionadas contaron con un fuerte respaldo del Secretario General de la CGT, J. Alon-
so. Hombres vinculados a ambos espacios ocuparon puestos claves en el ICFSS,
como coordinadores (Nicanor Saleño) o como docentes de materias troncales
(Juan J. Taccone; José L. de Ímaz68). Aunque no constituyeron un grupo homo-
géneo políticamente69, sí compartían una misma estrategia política y concepción
sobre el lugar de los ámbitos de formación en la misma:

Los cambios de estructuras, la revolución social, la toma del poder, etc.


etc., han de venir por dos procedimientos, revolución violenta o revo-
lución evolucionista. La primera no precisa gran comentario porque es
elocuente por sí sola; en éste aspecto, no se precisa declamarla tanto

 255 sino realizarla de acuerdo a las posibilidades que existan para concretar-
la. En cuanto al segundo procedimiento para concretarla, es necesario
trabajar, vale decir, concretar todo lo teórico en la práctica70.

Embarcados en esta “revolución pacífica, que se logra mediante el campo


evolutivo”, a través de la concreción de obras sociales, quienes se alinearon detrás
del ‘Sindicalismo de acción múltiple’ promovido por el núcleo lucifuercista, lo pen-
saron como medio para lograr “compartir el poder”71. Estos no eran sino los pre-
ceptos de la corriente sindical más conocida como participacionista72, que comen-
zaba a tomar fuerza en la década de 1960 de la mano del Sindicato de Luz y Fuerza
Capital. Era un sindicalismo que asumía tareas sociales, culturales, económicas y
políticas y elaboró su propio proyecto político de alcance nacional. En este sentido
pregonaba la negociación y participación en instancias de gestión tanto estatales
como empresarias. La concepción de los sindicatos y su rol en la sociedad estaba
impregnada por los preceptos de la doctrina social de la iglesia y la peronista. Nó-
tese además los puntos de encuentro entre el deseo de impulsar un sindicalismo
‘moderno’ y la apelación a una ‘revolución pacífica’ con los planteos difundidos por
los organismos alineados con la Alianza para el Progreso.

67 BELLONI RAVEST, H., Op. Cit., p. 15.


68 De Imaz había sido propuesto por la CGT. Como ya mencionamos, al igual que Saleño estaba vinculado a
Alonso. Entrevista a Julio Neffa. Op. Cit.
69 Posteriormente, cuando Alonso es destituido de la CGT, el cargo de secretario general va a ser ocupado
por un lucifuercista, Francisco Prado. 1966, los encuentra a todos apoyando el golpe cívico-militar, aunque
desde nucleamientos político-sindicales diversos.
70 CGT. Circular N°32, Op. Cit., p. 1.
71 GT. Boletín Informativo Semanal Nº 64. Bs. As.: 1 al 7 de junio de 1964, pp. 20-21.
72 Véase al respecto los desarrollos teórico-políticos elaborados por su principal referente J.J. Taccone,
en Crisis… respuesta sindical. Buenos Aires: Editorial Delta, 1971 y 900 días de autogestión en SEGBA: una
experiencia argentina en participación. Buenos Aires: Fundación 2001, 1976.

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Finalmente, la presencia del cuarto grupo sería definitoria en la estructuración


de los cursos y seminarios y en la elaboración de contenidos, nos referimos al equi-
po de profesores que actuaron de modo permanente acompañando el proceso de
enseñanza-aprendizaje. El cuerpo central de docentes provenía de una experiencia
de formación sindical nacida en 1956 y denominada ‘Instituto de Formación Social
Sindical’ (IFSS), el cual estuvo vinculado a los sindicatos de orientación cristiana
agrupados en Acción Sindical Argentina (ASA) –alineados a su vez con la Confede-
ración Latinoamericana de Sindicalistas Cristianos (CLASC)73-. Integraban además el
Centro Argentino de Economía Humana (CAEH), corriente fundada por L. J. Lebret,
y mantenían fuertes vínculos con sus pares de Uruguay del Centro Latinoamericano
de Economía Humana. Sus principales figuras eran Floreal Forni, Gonzalo Cárdenas
–posteriormente uno de los principales referentes de las cátedras nacionales74- y
Julio Neffa75. Contemporáneamente, R. Carri definió la tarea de lo que denomina el
“grupo de ideólogos allegados a Alonso” como un intento por conjugar concepcio-
nes clásicas del peronismo y del sindicalismo, como la justicia social y el nacionalis-
mo económico, con una fundamentación desarrollista socialcristiana76.
La llegada de este grupo al ICFSS remite a su participación en las actividades
de formación del Sindicato de Luz y Fuerza. A partir de dicha relación es que fue-
ron convocados a organizar el ICFSS. Efectivamente, el grupo de CAEH compartía
cierto horizonte político con el anterior:

la perspectiva es la perspectiva cercana al peronismo, ¿no? Y lo que


buscábamos era, como le puedo decir, un sindicalismo que tuviera más
poder dentro de la sociedad, dado que el partido peronista estaba pros-
cripto; de alguna manera que los sindicatos fueran reconocidos, que
 256
tuvieran participación; que hubiera un Consejo Económico Social, que
hubiera, un instituto de planificación económica donde los sindicatos
tuvieran su representante; y que en las empresas se peleara por la par-
ticipación, que los sindicatos tuvieran algo que decir con respecto a la
gestión de la empresa. Eso es lo que buscábamos77.

Pero también existían distintas matrices político-ideológicas que coexistían


al interior del mismo equipo de formadores. Esto es claro por ejemplo en torno a
una cuestión central del proceso como fue el de la cogestión. Como vimos en el
apartado anterior, algunos se ubicaban más próximos a la noción de bien social de
la empresa y de participación recortada afín a la doctrina social de la iglesia -en la
que también abrevaban los dirigentes de Luz y Fuerza-, otros se encontraban más
cercanos a la idea marxista de control obrero:

justificábamos la necesidad de aumentar el poder de la clase obrera en


el manejo de las empresas, creíamos en la cogestión de las empresas,
creíamos de alguna manera que había que avanzar en alguna forma de

73 Poco se ha escrito sobre esta línea dentro del sindicalismo argentino, al respecto puede consultarse OBER-
LIN MOLINA, Matías. Acción sindical argentina. El sindicalismo cristiano y su relación con la formación de
la guerrilla urbana (1955-1976). En: www.scribd.com.
74 En el contexto de radicalización política y peronización de los sectores medios y universitarios, esta ex-
periencia docente se desarrolló entre 1968 y 1972 en la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad
de Buenos Aires, especialmente en la Carrera de Sociología. De orientación peronista de izquierda y ter-
cermundista, sus docentes postularon el desarrollo de una ciencia articulada a los procesos de liberación
nacional –en confrontación abierta con el cientificismo de la tradición germaniana-.
75 Fue Director del Instituto de Formación Social Sindical (IFSS) y del Instituto para la Educación y Capacitación
de los trabajadores (ITEC); Secretario de Coordinación del Centro Argentino de Economía Humana (CAEH).
76 CARRI, R. Op. Cit., p.134.
77 Entrevista a J. Neffa, Op. Cit.

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socialización de los medios de producción. Lo decíamos con mucho cui-


dado porque el peronismo no era muy receptivo a esta clase de consig-
nas, mas asociadas a la izquierda tradicional (…) no es un movimiento de
izquierda revolucionario por lo tanto había que tener mucho cuidado al
hacer esta clase de sugerencias78.

En síntesis, aunque es necesario señalar que los vínculos personales e inorgá-


nicos entre los distintos actores tornan difusas por momentos las delimitaciones
realizadas79, es claro que con distintos niveles de involucramiento y con diversos
intereses y orientaciones, en estos años desde que la CGT fue normalizada y se
inicia el Plan de Lucha, ninguna de las tendencias que hemos descripto relegaron
su intervención en este espacio de disputa ideológica. A su vez, la complejidad de
actores colectivos e individuales que allí circularon promovieron de hecho (aunque
no hubiese sido pensado en ese sentido) un modo de construcción de conocimien-
to polifónico.

Preguntas abiertas
A partir de la experiencia relatada hemos visto cómo en un contexto de fuer-
te confrontación social, la educación obrera entendida como formación político-
sindical lejos de ser soslayada fue terreno en disputa de las distintas corrientes po-
lítico-ideológicas, sus referentes nacionales e internacionales. ¿Cuál fue el sentido
del proceso de formación que encaró la CGT en aquellos años en que la tendencia
 257 revolucionaria dentro del peronismo comenzaba a cuajar organizativamente? Con-
sideramos que fue justamente ese contexto particular el que habilitó la conviven-
cia de tendencias que si bien se disputaban su influencia en América Latina –como
fueron la CLASC y la ORIT-, compartían un límite común que era el anticomunismo.
Por lo general, los historiadores han prestado casi nula atención a la temática
de la formación político-sindical, mientras que desde el campo de estudios que más
ampliamente analizan las prácticas pedagógicas de los movimientos sociales, la mi-
rada se posa sobre lo alternativo (en forma y contenido) a lo dominante. El Instituto
de Capacitación y Formación Social Sindical en cambio no fue impulsado con fines
emancipatorios ni revolucionarios, pero tampoco de reproducción de lo existente.
Esta tensión nos llevó a intentar pensar el interés de estos sectores sindica-
les (considerados burocráticos, reformistas, conciliadores, etc.) por impulsar un
tipo de actividades educativas que priorizaban el ámbito sindical como un espacio
de reelaboración y conceptualización política, advirtiendo el rol potenciador que
podían llegar a cumplir las instancias sistematizadas de reflexión sobre la propia
práctica, como parte del proceso de lucha impulsado.
Efectivamente, Plan de Lucha e Instituto de Capacitación y Formación Social Sin-
dical no solo se combinaron temporalmente sino que se nutrieron y retroalimentaron

78 Entrevista a A. Borón. Op. Cit.


79 Por dar un ejemplo, A. Sily, autor utilizado como bibliografía básica por el docente J. Neffa, era un hombre
cercano a N. Saleño y J. Alonso. Mientras que estos dos últimos terminaron vinculados al gobierno militar
de la ‘Revolución Argentina’, el sacerdote posconciliar y docente de la Universidad Católica Argentina, fue
declarado cesante por apoyar la protesta docente de la UBA en 1966. IZAGUIRRE, Inés. El mapa social del
genocidio”. En: IZAGUIRRE, Inés (Comp.). Lucha de clases, guerra civil y genocidio en la Argentina. 1973-
1983. Buenos Aires: Eudeba, 2009, p. 79.
Lo mismo podría señalarse en relación a quienes posteriormente a pasar por la experiencia del ICFSS se
vincularon a la CGT de los Argentinos, y/o fueron impulsores y docentes de las ‘Cátedras Nacionales’; mien-
tras que otros siguieron cercanos al sindicalismo participacionista.

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GABRIELA SCODELLER

en términos de los contenidos teórico-prácticos impartidos, no sin contradiccio-


nes. La convicción en cuanto a la necesidad de una formación técnico-política para
la acción político-gremial, con el fin de ocupar espacios de poder, así como el modo
en que esta experiencia fue desarrollada sistemáticamente a pesar de ubicarse en
un momento de algidez de la lucha de clases, nos llama a seguir complejizando sobre
el sentido y los resultados de estas prácticas de formación. Resultará interesante
confrontarlas con aquellas experiencias formativas desplegadas contemporánea-
mente -por las organizaciones de la ‘Nueva Izquierda’ en Argentina- con un horizon-
te político distinto -revolucionario-; las que a pesar de sus críticas a los partidos de
la izquierda tradicional (en sus experiencias nacionales e internacionales), conside-
ramos replicaron los modelos tradicionales de educación -priorizando como ámbito
para la formación política de los activistas gremiales el ‘partido’, y los momentos de
confrontación abierta como la mejor escuela de formación-.

Recebido em 01/05/2013
Aprovado em 17/05/2013

 258

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259-282
Los trabajadores ferroviarios de
Bahía Blanca durante el primer
peronismo (1945-1955)
José Marcilese*

Resumen: Para mediados de la década de 1940 Bahía Blanca era uno de los princi-
pales nodos ferroviarios del interior del país y hacia allí confluían los ramales que
transportaba la producción rural de una amplia zona de influencia, que abarcaba el
sudoeste de la provincia de Buenos Aires y los territorios patagónicos. Como con-
secuencia de ello la ciudad contaba con un importante conjunto de instalaciones
ferroviarias, compuesto tanto por estaciones como dependencias destinadas a
logística, mantenimiento y reparación. En esos espacios la Unión Ferroviaria y La
Fraternidad contaba con un importante conjunto de afiliados adheridas a las diver-
sas seccionales que operaban en Bahía Blanca.
El propósito de la presente ponencia es analizar el proceso de peronización que
estas seccionales experimentaron en la etapa 1944-1955, a partir del estudio de las
diversas instancias electorales internas. Asimismo este trabajo tiene como meta
considerar la inserción que la dirigencia gremial ferroviaria local alcanzó dentro de
la estructura partidaria peronista local y al mismo tiempo reflexionar acerca del
grado de renovación que experimentó la conducción bahiense de las organiza-
ciones sindicales a partir de 1944.
Por último, este estudio procurará comprender la dinámica interna de las secci-
onales y su relación con los niveles superiores de la organización sindical, con la
intención de establecer el grado de autonomía que estas poseían.

Palabras Claves: movimiento obrero - ferrocarriles - peronismo

The railway workers of Bahia Blanca during the first


peronism (1945-1955)
Abstract: In the mid 1940’s the city of Bahia Blanca was one of the main railway
nodes inside the country, the place where an extensive railway network con-
verged carrying the production of a wide rural hinterland. As a result, the city had
a large infrastructure composed by both passenger stations as well as premises for
logistics, maintenance and repair. It was in these areas where the railway workers’
union (the so called “Union Ferroviaria” and “La Fraternidad”) had an important
group of members attached to each of its various branches (or “Seccionales”) op-
erating in Bahia Blanca.
* Doctor en Historia por la Universidad Nacional del Sur. Investigador Asistente del CONICET. Correo electró-
nico: marciles@criba.edu.ar.

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JOSÉ MARCILESE

By studying of the multiple internal electoral bodies and instaces, the purpose of
this paper is to analyze the process of “Peronization” each of these “Seccionales”
experienced in the 1944-1955 period. Furthermore, this approach aims to consid-
er the level of insertion reached by union leaders within the local Peronist party
structure, along with the degree of renovation experienced by the local branches
of the Union Ferroviaria during the same period. Finally, and in order to establish
their respective degree of autonomy, this study will seek to understand the inter-
nal dynamics of these local branches and their relationship to higher levels of the
organization.

Keywords: labor movement - railways - peronism

Introducción
Las complejas vinculaciones del peronismo con el universo sindical han sido
el objeto de estudio de una amplia y diversa producción historiográfica que ha con-
siderado el tema desde variadas perspectivas. En un primer momento y luego por
espacio de varias décadas, el aspecto que concentró la atención de un núcleo ma-
yoritario de los aportes fue establecer la relación del peronismo con la dinámica
gremial y política precedente. En tal sentido, algunos trabajos concluyeron que el
peronismo representaba una ruptura con las tradiciones sindicales preliminares,1
mientras que otros señalaron continuidades con el gremialismo preexistente2. No
obstante ello, ambos polos interpretativos coincidieron en un punto: resaltar la
 260
existencia de una relación de subordinación prácticamente homogénea, despro-
vista de contradicciones y conflictos importantes, de los sindicatos respecto al li-
derazgo del Perón.
Al mismo tiempo estos aportes concordaron en otro aspecto significativo,
como lo es concentrar su interés en el rol de los trabajadores y sus organizacio-
nes en la instancia gestacional del peronismo. Por considerar que no tenía senti-
do avanzar en el análisis del accionar sindical ulterior, dado que desde un estadio
temprano este se encontraba completamente alineado con el régimen peronista.
A partir de mediados de la década de 1990, una serie de estudios, que no ne-
cesariamente confrontan con los aportes antes expuestos, comenzaron a indagar
sobre el tema pero resaltando el carácter autónomo de los sectores trabajadores
y sus organizaciones sindicales durante las dos primeras presidencias peronistas.

1 Es el caso de estudios PEÑA, Miliciades. Masas, caudillos y elites. La dependencia argentina de Yrigoyen a
Perón, Buenos Aires: Ediciones Fichas, 1973; ROMERO, José Luis. La experiencia argentina y otros ensayos,
Buenos Aires: Editorial de Belgrano, 1980; GERMANI, Gino. Política y sociedad en una época de transición. De
la sociedad tradicional a la sociedad de masas, Buenos Aires: Paidos, 1971; GERMANI, Gino. “El surgimiento
del peronismo: el rol de los obreros y de los migrantes internos”. En: Desarrollo Económico. Buenos Aires, v.
13, n.51, octubre-diciembre 1973, entre otros.
2 Por mencionar solo algunos casos emblemáticos se puede mencionar TORRE, Juan Carlos. La vieja guardia
sindical y Perón. Buenos Aires: Sudamericana, 1990; HOROWITZ, Julio. Los sindicatos, el Estado y el surgi-
miento de Perón 1930 / 1946. Buenos Aires: EDUNTREF, 2004; DEL CAMPO, Hugo. Sindicalismo y Peronismo.
Los comienzos de un vínculo perdurable. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005. Una excepción a esta tendencia la
constituyen los trabajos: y BAILY, Samuel. Movimiento obrero, nacionalismo y política en la Argentina. Bue-
nos Aires: Hyspamerica, 1985; MURMIS, Miguel; PORTANTIERO, Juan Carlos. Estudios sobre los orígenes
del peronismo. Buenos Aires: Siglo XXI, 1973. TORRE, Juan Carlos. “Interpretando (una vez más) los oríge-
nes del peronismo”. En: Desarrollo Económico, v.28, n.112 (enero-marzo 1989); TORRE, Juan Carlos (comp.).
La Formación del sindicalismo peronista. Buenos Aires: Legasa, 1988. Una revisión completa sobre el tema
puede encontrarse en SURIANO, Juan “¿Cuál es hoy la historia de los trabajadores en Argentina?”. En: Revista
Mundo do Trabalho, v, 1, n.1, janeiro-junho 2009.

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LOS TRABAJADORES FERROVIARIOS DE BAHÍA BLANCA DURANTE...

Esto posibilitó una revisión de la caracterización de su accionar, poniendo de relie-


ve las contradicciones, tensiones y conflictos producidos durante dicho periodo,
como así también el papel activo de los trabajadores y sus organizaciones sindica-
les en la defensa de intereses propios, contrapuestos a las intenciones patronales
y, en ocasiones, gubernamentales3. De esta manera, el movimiento obrero adqui-
rió protagonismo, en desmedro de la centralidad que usualmente portaban otros
actores, como las agencias estatales, los equipos político-partidarios y en especial
el propio Perón.
Así, en los últimos años, ese conjunto de investigaciones permitieron re-
pensar los rasgos que presentó la dinámica del movimiento obrero, resaltando las
tensiones y disputas producidas durante primer peronismo4. Para ello los investi-
gadores apelaron a enfoques, escalas de observación y proyecciones tempora-
les diferentes a las ofrecidas por los estudios clásicos. De esta forma, los nuevos
aportes logran a una mirada complejizada de los sectores trabajadores y sus orga-
nizaciones, que no los concibe como sujetos pasivos de las agencias estatales y
el régimen peronista, sino que contrariamente los muestra como sujetos activos,
promotores de reclamos sectoriales, a través de huelgas y acciones de protesta.
En tal sentido, abordar el tema en estos términos permite reconocer tensiones
entre la dirigencia y las instancias de base de las organizaciones, no siempre de
acuerdo con la forma en que se dirimen los conflictos laborales.
Entre las organizaciones obreras que fueron consideradas recientemente por
la historiografía, se encuentra la Unión Ferroviaria, la principal organización sindical
 261 argentina durante los años del primer peronismo, con una presencia federal que a
partir de la década de 1920 se extendió conjuntamente con el tendido de los rama-
les. Los estudios que se focalizaron en su dinámica lo hicieron a partir de análisis de
lo ocurrido en determinados seccionales o bien a partir del estudio de las huelgas
que la organización impulso en diferentes momentos y las consecuencias que están
generaron en su funcionamiento5. Una orientación similar presentaron los trabajos

3 Es el caso de los trabajos SCHIAVI, Marcos. La resistencia antes de la resistencia. La huelga metalúrgica y
las luchas obreras de 1954. Buenos Aires: El Colectivo, 2008; ACHA, Omar. Las huelgas bancarias de Perón a
Frondizi (1945-1962). Buenos Aires: Ediciones del CCC, 2008; CONTRERAS, Nicolás, “En rio revuelto ganan-
cias de Pescador. El gremio marítimo y el peronismo. Un estudio de la huelga de 1950”. Revista de Estudios
Marítimos y Sociales, año 1, n.1, 2008; NIETO, Agustín. “Conflictividad obrera en el puerto de Mar del Plata:
del anarquismo al peronismo. El Sindicato Obrero de la Industria del Pescado, 1942-1948”. En: Revista de Estu-
dios Marítimos y Sociales, año 1, n.1, 2008; RUBINSTEIN, Gustavo. Los sindicatos azucareros en los orígenes
del peronismo tucumano. Tucumán: UNT, 2005; ASCOLANI, Adrián. El sindicalismo rural en la Argentina.
De la resistencia clasista a la comunidad organizada. Universidad Nacional de Quilmes, Buenos Aires, 2009;
SCHNEIDER, Alejandro. Trabajadores, Un análisis sobre el accionar de la clase obrera argentina en la segunda
mitad del siglo XX. Buenos Aires: Herramienta Ediciones, 2009; FERNANDEZ, Fabián. La huelga metalúrgica
de 1954. Buenos Aires: Instituto Movilizador de Fondos Cooperativos, 2005; IZQUIERDO, Roberto. Tiempo
de trabajadores. Los obreros del tabaco. Buenos Aires: Imago Mundi, 2008; GUTIÉRREZ, Florencia. “La diri-
gencia de FOTIA y los sindicaos de base: tensiones y conflictos en el proceso de sindicalización azucarera,
1944-1955” en Florencia Gutiérrez y Gustavo Rubinstein (comps.). El primer peronismo en Tucumán. Avan-
ces y nuevas perspectivas. Tucumán: EdUNT, 2012, entre otros.
4 Estos aportes constituyeron una continuación de trabajos como DOYON, Louise. “Conflictos obreros
durante el régimen peronista, 1946-1955”. En: Desarrollo Económico, v. 17, n.67, Buenos Aires, octubre-
diciembre 1977; DOYON, Louise. “El crecimiento sindical baho el peronismo”. En: Desarrollo Económico, v.
15, n.57, Buenos Aires, abril-junio 1975; LITTLE, Walter. La organización obrera y el Estado peronista, 1943-
1955”. Desarrollo Económico, v.19, n.75, Buenos Arires, octubre-diciembre 1979 y MAINWARING, Scott. “El
movimiento obrero argentino y el peronismo (1952-1955). En: Desarrollo Económico, v. 21, Buenos Aires,
enero-marzo 1982. Más recientemente los aportes de Louise Doyon se reunieron en el libro DOYON,
Louise. Perón y los trabajadores. Los orígenes del sindicalismo peronista, 1943-1955. Buenos Aires,:Siglo XXI,
2006.
5 DI TELLA, Torcuato. Perón y los sindicatos. Buenos Aires: Ariel, 2003; CONTRERAS, Gustavo Nicolás. “Ferro-
viarios. Un capítulo de sus luchas: Las huelgas ferroviarias de fines de 1950 y principios de 1951”, ponencia
presentada en el V Congreso de Historia Ferroviaria, Palma de Mallorca, 2009 ; MENGASCINI, Hugo. Huel-

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JOSÉ MARCILESE

sobre La Fraternidad, el influyente sindicato de los maquinistas, creado en 1887 y


caracterizado por una férrea disciplina interna.
Continuando con esta tendencia, el presente estudio tiene como objetivo re-
flexionar sobre el funcionamiento de las seccionales que los gremios ferroviarios
tenían en el área de Bahía Blanca, durante el periodo 1945-1955. Para ello se con-
sideraran la incidencia que en esa etapa asumió el proceso de peronización6sobre
la dinámica y los equipos directivos de esas filiales. Partiendo de la hipótesis que ese
fenómeno de adhesión, no estuvo exento de tensiones, presentó diversas motivacio-
nes e incluso variaciones entre las diversas entidades gremiales ferroviarias.
En el caso de la Unión Ferroviaria, para entender el proceso de adhesión al
peronismo es preciso reconocer la generalizada aprobación que la labor de Perón
en la Secretaría de Trabajo y Previsión, generó entre los trabajadores, conscientes
de los beneficios concretos de orden laboral y salarial recibido a partir de 1944.
Del mismo modo, la elección personal que los propios jefes sindicales de la UF
hicieron, a partir de la sanción de un conjunto de normativas que favorecía sus
posibilidades de negociación, conjuntamente con el reconocimiento explicito por
parte del naciente peronismo de sus aspiraciones a incursionar en la dinámica po-
lítico-partidaria, un área hasta entonces poco permeable al ingreso de dirigentes
gremiales. Estos factores conjuntamente con la intención de los líderes sindicales
ferroviarios de asegurar su continuidad al frente de las organizaciones, frente a
un estado que progresivamente se mostraba solo receptivo a los gremios afines,
permite entender como una parte significativa del secretariado nacional al igual
que de la dirigencia bahiense de la UF se plegó al peronismo sin mayores reparos.
Una posición diferente mantuvo el equipo gremial que conducía a La Frater-
 262
nidad, que optó por mantener su autonomía y se abstuvo de apoyar a cualquiera
de las fuerzas políticas que participaron de la elección de febrero de 1946, entre
ellas los partidos que integraban la coalición peronista. Posiblemente, en esa de-
cisión haya sido determinante la pertenencia socialista de un parte significativa de
los dirigentes fraternales.
Partiendo de estos planteos serán consideradas las particularidades de los
equipos de conducción gremial que se conformaron en las seccionales a partir de
1944 y se indagará acerca de los rasgos principales de su dinámica interna. Lue-
go se analizará el comportamiento de los ferroviarios bahienses, ante el periodo
de huelgas que se desarrolla en el período 1950-1951. Estas indagaciones se efec-
tuarán partiendo de la idea que las subunidades locales de los sindicatos, si bien
eran parte de una estructura superior con proyección federal, al mismo tiempo se
constituían en unidades con cierto grado de autonomía, afectadas por procesos
locales portadores de cierto grado de singularidad.
Asimismo, la posibilidad de abordar el funcionamiento de una organización
gremial desde una perspectiva local permite distinguir procesos y circunstancias
que no siempre pueden ser apreciados en la dinámica nacional de una entidad sin-
dical. En tal sentido en este estudio se intentará comprender el proceso de pero-
nización de los trabajadores ferroviarios de Bahía Blanca, procurando determinar

gas y conflictos ferroviarios. Los trabajadores de Tandil en la segunda mitad del siglo XX. Rosario: Prohis-
toria, 2011; BADALONI, Laura. “Control, memoria y olvido. “Marcha de la Paz” y huelga ferroviaria durante
el primer gobierno peronista”, ponencia presentada II Jornadas Inter-institutos de formación docente en
Historia I.E.S. “Olga Cossettini”, Rosario, agosto de 2003.
6 Entendiendo por peronización a “…la imposición del mando incuestionado de una burocracia leal al go-
bierno o, más profundamente, la difusión de una identificación con Perón en la mayoría de las bases gre-
miales”, ACHA, Omar. Op. cit., p. 40.

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LOS TRABAJADORES FERROVIARIOS DE BAHÍA BLANCA DURANTE...

las tensiones que ese proceso generó, en especial ante la persistencia de posicio-
nes ideológicas alternativas. El carácter local de esta aproximación orientada a re-
flexionar sobre una temática particular desde un espacio local, permitirá distinguir
realidades y sujetos excepcionales que, lejos de invalidar los grandes procesos y
relatos macrohistóricos, los matizan y enriquecen de manera notable7.
Por último, teniendo en cuenta el objeto de estudio seleccionado el abor-
daje metodológico elegido justificó la utilización de registros tanto cuantitativos
como cualitativos8. En relación a los primeros se destacan los censos e informes
estadísticos, efectuados por diversas agencias estatales, que permiten reconstruir
las dimensiones que el universo laboral ferroviario presentaba en Bahía Blanca al
promediar la década de 1940. Por su parte, las fuentes cuantitativas fueron de múl-
tiples orígenes, por un lado se destacan los periódicos de índole local y la prensa
sindical, por otro los relatos orales de de sujetos que fueron actores directos de
los procesos analizados y por último los registros generados por los servicios de
inteligencia pertenecientes a la policía bonaerense (Archivo DIPBA-Comisión Pro-
vincial por la Memoria)9. En su conjunto la interpretación de estos registros permi-
tió primero reconstruir los procesos desde una perspectiva de carácter narrativo,
especialmente a partir de la prensa. Para luego avanzar en la interpretación de los
procesos, desde una perspectiva dual, por un lado los relatos de los trabajadores,
por el otro la mirada policial de las acciones por intermedio de los informes gene-
rados por el trabajo de campo de las fuerzas de seguridad. En ambos casos, resultó
necesario recurrir a una metodología comparativa, que reveló tanto contradiccio-
 263 nes como coincidencias entre las fuentes empleadas, y permitió complejizar las
explicaciones sobre los procesos considerados. Fundamentalmente, al momento
de considerar la dinámica interna a nivel de seccional, una labor que implica la uti-
lización de registros específicos que reflejen la especificidad de la dimensión local,
que compensen la ausencia de documentación gremial de orden local (como actas
de comisión, actas de asamblea, etc.) irremediablemente perdida.

Bahía blanca en la década de 1940, un centro


financiero y de servicios
Bahía Blanca era a comienzos de la década de 1940 el principal centro urbano
del interior de la provincia de Buenos Aires y constituía el eje de una amplia zona
productiva, que la tenía como polo comercial, financiero y de servicios. El desarro-
llo de la ciudad se había iniciado en 1884 con las instalaciones de diversas líneas
ferroviarias, que convergían en los puertos cercanos a la ciudad, y servían para
embarcar la producción de un amplio hinterland agropecuario. Posteriormente, se
construyeron instalaciones dedicadas al mantenimiento y reparación de material
rodante, complejizándose aun más el mercado laboral dependiente del complejo
ferro-portuario (Ver Plano 1).

7 CAMPAGNE, Fabián. “La búsqueda de la historia. Reflexiones sobre las aproximaciones macro y micro en
la historiografía reciente”. En: Entrepasados, año VI, n.13, 1997, p. 93.
8 En relación a las fuentes cuantitativas resulta necesario aclarar que no fue posible consultar actas o docu-
mentación de las diversas seccionales de la Unión Ferroviaria o La Fraternidad, porque no están disponi-
bles tanto en las oficinas locales como en las sedes centrales de las entidades gremiales.
9 KAHAN, Emanuel. “¿Qué represión, qué memoria? el “archivo de la represión” de la DIPBA: problemas y
perspectivas”. En: Question, v. 1, n. 16, 2007.

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JOSÉ MARCILESE

Esta condición de nodo ferroviario se complementó con un fuerte desarrollo


mercantil y financiero, que respondía a las necesidades del medio bahiense como
así también de una extensa zona de influencia que incluía incluso a los territorios
patagónicos. Tal es así que Bahía Blanca por el caudal de ventas y el número de
empleados ocupados en el rubro comercial, se posicionaba al promediar el siglo
XX entre los principales distritos de la provincia de Buenos Aires10.
Mientras que en términos productivos el desarrollo de la ciudad no resultaba
tan significativo, puesto que si bien existía un conjunto de empresas dedicados a
la producción textil, metalúrgica y de alimentos, orientados en su producción a los
requerimientos del mercado regional, el desarrollo industrial de la ciudad resulta-
ba limitado. Siendo la competencia de los establecimientos del cinturón fabril de
Buenos Aires, con la que Bahía Blanca estaba comunicado por un rápido y fluido
tráfico ferroviario, una de la causas que explica lo moderado del crecimiento11.
Diferente era la centralidad de la ciudad y sus puertos dentro de la red ferro-
viaria argentina, donde sí representaba un polo principal, tanto por la compleji-
dad y extensión de las instalaciones como por el volumen de carga que circulaba.
Esto hacia que una parte importante del mercado laboral de la ciudad estuviera
ligada al ferrocarril. A tal punto que para mediados de la década de 1940, las diver-
sas empresas del sector empleaban en el área de Bahía Blanca entre 5000 y 6000
trabajadores. En el orden gremial, este conjunto de trabajadores estaba represen-
tado sindicalmente por tres seccionales de la Unión Ferroviaria (Bahía Blanca Sud,
Bahía Blanca Noroeste e Ingeniero White)12 y tres de La Fraternidad (Bahía Blanca
Sud, Ingeniero White y Coronel Maldonado).
 264
La presencia sindical de la union ferroviaria
Poco después de su formación en el orden nacional, ocurrida en 6 de Octubre
de 1922, se comenzaron a organizar las seccionales de la Unión Ferroviaria (UF) en
Bahía Blanca. Entre ellas las más significativa por su número de afiliados era la de
Noroeste, ubicada espacialmente en el barrio del mismo nombre13. Sus asociados
pertenecían en menor medida al personal de almacenes, vías y obras y tráfico que
se desempeñaban en el área de la Estación Noroeste, de donde partían servicios
tanto urbanos como interurbanos, y mayoritariamente provenían de los talleres
ubicados en el sector, donde se reparaban vagones y locomotoras. Allí trabajan a
mediados de la década de 1940 una cantidad cercana a los 1200 empleados, que
cumplían desde sencillas labores como peones de limpieza, carga y mantenimien-
to, hasta oficios altamente calificados, como mecánicos, torneros y herreros14.

10 Para 1954 existían en Bahía Blanca 3389 establecimientos comerciales que empelaban a 4567 empelados
y 2691 obreros. Dirección Nacional de Estadísticas y Censos, Censo de Comercio 1954, Buenos Aires, 1959.
11 Como se puede verificar en los datos estadísticos provistos por los censos industriales. El de 1935 indicó
que Bahía Blanca contaba con 731 establecimientos industriales, que empleaban a 5281 obreros y emple-
ados, ocupando el quinto lugar entre los municipios bonaerenses, mientras que el censo de 1946 reveló
una cantidad de establecimientos de 668 y un total de 6881 personas empleadas, que dejaban a la ciudad
en el doceavo lugar en la provincia de Buenos Aires, muy por detrás de los municipios del área próxima a la
ciudad de Buenos Aires. Ministerio de Hacienda, Buenos Aires, Censo Industrial de 1935, Buenos Aires, 1938;
Ministerio de Asuntos Técnicos, Censo Industrial de 1946, Buenos Aires, 1952.
12 Existía una cuarta seccional de la Unión Ferroviaria: Rosario-Puerto Belgrano. Solo contaba con un número
muy reducido de afiliados y en 1946 fue absorbida por la seccional Bahía Blanca Sud.
13 De acuerdo a los aportes sindicales que cada seccional enviaba a la administración central de la Unión
Ferroviaria, la seccional Bahía Blanca se encontraba entre la siete filiales más importantes del país.
14 Sobre las condiciones del trabajo ferroviario, consultar: HOROWITZ, Joel. “Los trabajadores ferroviarios
en Argentina”. En: Desarrollo Económico, v.25, n. 99 (octubre-diciembre 1985), p. 426-433.

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LOS TRABAJADORES FERROVIARIOS DE BAHÍA BLANCA DURANTE...

El ámbito de los talleres respondía por su ordenamiento en secciones espe-


cíficas (tornería, hojalatería, fundición, carpintería, etc.), operadas en forma com-
binada, a un complejo de carácter fabril industrial, con horarios de ingreso, turnos
laborales y una división específica de tareas. Esta actividad se complementaba con
un taller menor ubicado en Maldonado, un área próxima a los talleres Noroeste,
cuyos trabajadores participaban de la misma seccional en tareas de reparación y
mantenimiento de material rodante.
En lo que respeta a la Seccional Bahía Blanca Sud, los afiliados pertenecían
al personal de vías y obras y de tráfico que desarrollaba sus labores en la Estación
Sud, la terminal que concentraba el tráfico de pasajeros urbano e interurbano y
desde donde operaba la Superintendencia de Tráfico, encargada de la coordinación
y ordenamiento de las formaciones. Por su parte, la Seccional Ingeniero White agru-
paba a los empleados ferroviarios que trabajaban en el puerto del mismo nombre,
distante a escasos 15 kilómetros del casco urbano de Bahía Blanca. En esa área fun-
cionaba una amplia playa de maniobras, conjuntamente con un galpón de locomo-
toras y una estación, donde se desempeñaban centenares de ferroviarios en el área
de tráfico y en la atención de los servicios de carga y descarga (Ver Plano 2)
En todas las seccionales los niveles de afiliación eran bastante elevados como
puede apreciarse en el siguiente esquema, que refleja no solo el incremento de la
cantidad de afiliados sino también el progresivo aumento de personal que el fe-
rrocarril experimentó a partir de la nacionalización de los ferrocarriles ocurrida en
1948.
 265
Sindicato Cantidad de afiliados Cantidad de afiliados
en 194115 en 195416
Unión Ferroviaria 150017 2220
(Seccional B. B. Noroeste)
Unión Ferroviaria 1200 1650
(Seccional Ingeniero White)
Unión Ferroviaria 500 1002
(Seccional Bahía Blanca Sud)

La autonomía de las comisiones ejecutivas en las diversas seccionales bahien-


ses era relativa y estaba sujeta a un estrecho control por parte de la Comisión Di-
rectiva de orden nacional, que consideraba a sus filiales como sus representantes
antes los afiliados en las instancias locales. En tal sentido los lazos institucionales
de las seccionales con la organización a nivel nacional, resultaban más estrechos
que las existentes con sus pares en la orden local o regional.561718
Esta actividad gremial se complementaba con una fuerte labor formativa a
través de las escuelas técnicas y de formación profesional, que operaba la UF en

15 Julio César Martella. “El proceso obrero en Bahía Blanca”. En: La Nueva Provincia, Numero Especial 41º
Aniversario, 1939.
16 Archivo DIPBA, Mesa B, Carpeta 13, Legajo 57 (UF Noroeste), Archivo DIPBA, Mesa B, Carpeta 15, Legajo 2
(U.F. Ingeniero White), Archivo DIPBA, Mesa B, Carpeta 13, Legajo 57 (U.F. Sud).
17 Aurelio Diez empleado administrativo de la seccional Noroeste de la Unión Ferroviaria sostiene que el nú-
mero de afiliados alcanzaba a los 1500 en 1945. AMUNS, Entrevista 223 B a Aurelio Diez, realizada el 29 de
julio de 2005.
18 El Obrero Ferroviario, año XXI, n.457, 1 de marzo de 1942, p. 9.

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JOSÉ MARCILESE

sus seccionales Noroeste e Ingeniero White. Con una formación orientada a la pre-
paración del personal en labores específicas (motores diesel, telégrafo, dibujo téc-
nico, etc.), como a la instrucción de su grupo familiar en quehaceres domésticos
(bordado, corte y confección, dibujo artístico, etc.). Del mismo modo la faz recrea-
tiva y cultural también era atendida por las seccionales de la UF, especialmente en
filial Noroeste, que periódicamente organizaba en su amplia sede bailes familiares,
proyecciones de cine y espectáculos teatrales. Cumpliendo así un papel similar al
de un club o biblioteca de carácter barrial, que favorecía a la generación un senti-
miento de pertenencia colectiva a una “comunidad”, que trascendía lo meramen-
te laboral y se vinculaba con el intenso asociacionismo de la época.
Esta intensa vida asociativa de los afiliados de la UF se complementaba con
la labor de la Cooperativa Ferroviaria de Consumo Ltda., fundada en 1919 con el fin
de brindar productos diversos a bajo costo y con financiamiento a los obreros y
empleados de los diversos ramales que operaban en la ciudad y la región. En 1944
la Entidad alcanzaba los 2924 socios, que aumentaron a 4000 para 195319, un incre-
mento acorde con el número de personal empleado por el ferrocarril en el área de
Bahía Blanca y con el crecimiento de los niveles de consumo.

El proceso de peronización de las seccionales de la UF


La Unión Ferroviaria fue intervenida por el gobierno militar el 23 de agosto
de 1943, debido a la intención del nuevo gobierno de establecer un control directo
sobre un sector clave como lo era el transporte. Poco después de producida la me-
 266
dida asumió la intervención el coronel Domingo Mercante, un militar del entorno
inmediato de Perón relacionado por su familia con el medio ferroviario. Una de sus
primeras gestiones fue otorgar a la UF la representación gremial de los emplea-
dos, una vieja aspiración de la organización20. Le siguieron una serie de mejoras en
el orden laboral, salarial y asistencial, que beneficiaron a los ferroviarios tanto en
el área cercana a Buenos Aires como en las seccionales del interior del país. Como
señala Louise Doyon:

No es de sorprender que en vista de su influencia dentro del movimien-


to, los gremios ferroviarios encabezaran la lista de beneficiarios. Al mar-
gen de obtener nuevas escalas salariales y la recuperación de las contro-
vertidas retenciones que se habían deducido de sus sueldos desde 1934,
también lograron mejorar los beneficios jubilatorios y por accidente de
trabajo, así como las condiciones laborales; se ampliaron asimismo los
servicios sociales y médicos gracias a nuevos aportes oficiales21.

En función de esto la conducción del gremio una vez normalizado dio seña-
les de apoyo al proyecto político impulsado por Perón, no obstante en situacio-
nes concretas como el debate que se generó en la CGT al momento de declarar la
huelga general el 18 de octubre, los delegados ferroviarios optaron por proponer
acciones alternativas22. Dejando entrever la persistencia de un sentido apolítico en
sus acciones, que los llevaba a no inmiscuirse en cuestiones ajenas al plano estric-
tamente gremial.

19 Ver: PASTORINO, Guido “El cooperativismo en Bahía Blanca”. En: La Nueva Provincia, Número aniversario,
agosto de 1944 y “Notables cooperativistas hablan para El Atlántico” El Atlántico, 4 de julio de 1953.
20 Al respecto ver: HOROWITZ, Joel. Op. cit., p. 274-283.
21 DOYON, Louise. Op. cit., p.115.
22 TORRE, Juan Carlos. Op. cit., p. 134-135.

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LOS TRABAJADORES FERROVIARIOS DE BAHÍA BLANCA DURANTE...

Este proceso ha sido objeto de diversos análisis entre lo que se pueden men-
cionar los aportes de Joel Horowitz y Torcuato Di Tella, que coinciden en recono-
cer que las medidas dispuestas por el gobierno nacional en el período 1943-1945
mejoraron sensiblemente las condiciones laborales de los trabajadores ferrovia-
rios, e impulsaron una progresiva peronización de su conducción, como lo refleja la
conformación de las sucesivas comisiones directivas nacionales de la organización a
partir de 194523. En ellas continuaron participando una proporción importante de
dirigentes con antecedentes en puestos directivos en el período previo a 194324.
En Bahía Blanca, durante la etapa 1944-1945 las disposiciones impulsadas por
Perón desde la Secretaría de Trabajo y Previsión impactaron en la extensa comuni-
dad ferroviaria residente en Bahía Blanca, promoviendo la adhesión política de los
afiliados y de buena parte la dirigencia. En este acercamiento influyeron las mejo-
res de orden salarial y laboral que, con carácter nacional, obtuvieron los trabajado-
res ferroviarios conjuntamente con la concreción de postergadas reivindicaciones
de orden local, como la apertura de un centro médico asistencial.
Las gestiones para la apertura de un hospital ferroviario fue el origen de una
serie de acciones conjuntas entre las seccionales locales de la UF y La Fraternidad,
a partir de 194225. Sin embargo, el desinterés de las agencias estatales no permitió
disponer de los fondos necesarios para la apertura del nosocomio. Es por ello que
la apertura de una clínica propia en marzo de 1944, durante la gestión de Domingo
Mercante como interventor de los gremios ferroviarios, con el decisivo apoyo de
la Secretaria de Trabajo y Previsión, conducida por Perón, constituyó una acción
 267 trascendental para la comunidad ferroviaria local y resultó funcional al proceso
de peronización de los trabajadores. Esta adhesión se evidenció cuando en agosto
de 1945 un conjunto de 450 trabajadores de la seccional de la UF Noroeste, la más
numerosa y consolidada de todas las filiales, envió un pergamino firmado por el cual
se manifestaba su apoyo a la gestión del General Farrel y el Coronel Perón26, en fran-
ca oposición a la oposición al criterio de la comisión directiva de esa seccional que
optó por no adherir al homenaje27.
Asimismo, poco después de la apertura del policlínico en Bahía Blanca se ini-
ció un conflicto a partir de la renuncia de un conjunto de médicos, que se solidari-
zaron con colegas porteños que habían sido desplazados del Hospital Ferroviario
central a raíz de discrepancias políticas. A parir de esta situación se produjo una
verdadera ruptura en la comunidad médica, que luego se hizo extensiva a los di-
versos sindicatos que reunían a los trabajadores del riel en la ciudad. Fue así como
mientras que miembros de la delegación Ingeniero White de la Fraternidad se so-
lidarizaron con los médicos renunciantes del Hospital Ferroviario, debido a ·…que
han preferido trabajar gratis que traicionar a sus camaradas…”28, la conducción de
la seccional Bahía Blanca Noroeste de la Unión Ferroviaria optó por “Hacer público
su repudio a los médicos que renunciaron y abandonaron a los enfermos en dicho

23 DI TELLA. Op. cit.., p. 208-220 y HOROWITZ. Op. cit., p. 317.


24 Es el caso de los estudios mencionados en la sección inicial de este trabajo, en especial de HOROWITZ.
Op. cit., p. 317.
25 El Obrero Ferroviario, año XXI, n.546, 1 de julio de 1942.
26 El Atlántico, 28 de agosto de 1945.
27 “Frente a la actual campaña confucionista que se sigue contra la Unión Ferroviaria, y de acusaciones antoja-
dizas contra el cuerpo directivo merece la pena destacar que la gran mayoría de las seccionales se pronun-
cian aprobando la labor de la Comisión Directiva en todos sus aspectos (…) en aquellas seccionales donde
por maniobras efectistas no se pudo designar representantes a la reunión de presidentes, importantes
núcleos de afiliados, que sumaron 1500 en Junín F.C.P., 400 en Bahía Blanca Noroeste, más de 300 en Ola-
varría, 800 en Alianza, hicieron llegar sendas notas…” El obrero ferroviario, 1 de octubre de 1945, p.4.
28 El Atlántico, 26 de enero de 1946.

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establecimiento…”29. Así, se advierte como una disputa de orden laboral expuso


las tensiones que dentro del gremialismo ferroviario comenzaban a generarse res-
pecto del proyecto político conducido por Perón.
Otra manera de ponderar la intensidad de ese proceso y las tensiones que
genera, es evaluar el grado de la aceptación que el peronismo encontró en los
niveles de conducción de la UF en el área de Bahía Blanca. Con ese fin es necesario
recordar que en los años previos al peronismo, el socialismo tenía una fuerte pre-
sencia en la dirección de las seccionales bahienses, siendo varios de sus dirigentes
conspicuos miembros del Partido Socialista, donde ocupaban cargos de diversa
importancia dentro de la estructura partidaria.
Es por ello que el proceso formativo del peronismo y sus directas vinculacio-
nes con el movimiento obrero organizado, originó tensiones en los equipos gremia-
les que conducían a las seccionales bahienses de la UF, a partir de posiciones en-
contradas respecto a la posición que la organización debía asumir frente al nuevo
movimiento. Esta situación dio lugar a la conformación de nuevos liderazgos en la
seccionales de la UF, al mismo tiempo que promovió la conversión de dirigentes de
extracción socialista o radical y su incorporación a la filas del naciente peronismo.
Un ejemplo de esta modalidad se puede apreciar en el presidente de la sec-
cional Noroeste, Jesús Gómez, candidato a concejal en los comicios de 1942 pero
por el Partido Socialista, cuya labor resultó funcional al progresivo ingreso del pe-
ronismo en el movimiento ferroviario30. Incluso se mantuvo al frente de la seccional
hasta 1948 luego de lo cual continuó formando parte de las comisiones directivas.
En el caso de la seccional Sud la situación posterior a 1944 presentó rasgos
que se asemejan a lo ocurrido en Noroeste. En esa filial el principal referente y
 268
presidente seccional desde 1940 era Emilio Belenguer, quien se enroló temprana-
mente en las filas de la UCR – Junta Renovadora para luego asumir como primer
delegado de la Secretaría de Trabajo y Previsión el 9 de septiembre de 1945. Previa-
mente Belenguer había sido candidato a concejal por la UCR en 1942, y presidido la
Agrupación Ferroviaria Radical. Al dejar la conducción de la seccional fue sucedido
por Alfonso Sica, que lo había acompañado como tesorero en la comisión de la
seccional Sud,
Estos dirigentes con experiencia gremial fueron acompañados en la comi-
siones seccionales que se conformaron, por trabajadores novatos en funciones
sindicales, que se vieron favorecidos por la experiencia de aquellos en su prepa-
ración gremial. En otro orden de cosas, la intervención de dirigentes y militantes
ferroviarios se evidenció también en el proceso formativo de la delegación local de
la CGT, que contó en su primera comisión con varios delegados de las seccionales
ferroviarias31, quienes también participaron de los actos conmemorativos en ho-
nor de la gestión de Perón al frente de la Secretaría de Trabajo y Previsión.
Ante esta evidencia respecto de la aceptación que el peronismo encontró
en los niveles de conducción de la UF en el área de Bahía Blanca, resulta necesario
reconocer que las conclusiones a la que arriba Di Tella, no encuentran una com-
probación empírica en la dinámica de las seccionales bahienses, donde algunos
referentes tradicionales del gremialismo ferroviario si se avinieron a incorporarse
al peronismo.

29 El Atlántico, 14 de enero de 1946. La seccional Bahía Blanca Noroeste reunía a casi un millar y medio de
obreros ferroviarios que trabajaban en los talleres del mismo nombre.
30 Jesús Gómez formaba parte de la conducción de la seccional Noroeste al menos desde 1934.
31 La Nueva Provincia, 3 de junio de 1946,

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En términos organizativos las modificaciones sustanciales que provocó en el


conjunto de las organizaciones gremiales, la aprobación de la Ley de Asociaciones
Profesionales primero y luego la normativa que establecía la regulación de los con-
venios colectivos de trabajos, no produjeron cambios significativos en la dinámica
interna de la UF. Que controlaba desde hacía décadas la representación sindical
de los ferroviarios, a través de un formato organizativo nacional emplazado sobre
seccionales locales, con comisiones de reclamos que negociaban con el sector pa-
tronal, tanto en asuntos salariales como gremiales.
Este funcionamiento orgánico de la Unión Ferroviario se evidenció al mo-
mento de producirse la nacionalización de los ferrocarriles en marzo de 1948, mo-
mento en que se conformó en Bahía Blanca una comisión interseccional conforma-
da por miembros de las comisiones directivas de las delegaciones locales de la UF.
Quienes no solo adhirieron a la medida, sino también convocaron a un acto conjun-
to del que participó una importante cantidad de afiliados, dejando entrever el alto
grado de aceptación que la medida tuvo entre los trabajadores. Sin embargo, a
pesar de la positiva recepción que la medida tuvo entre los trabajadores, luego de
un período inicial el estado argentino debió iniciar un proceso de modernización
del obsoleto equipamiento de las ex empresas inglesas. Un proceso que provocó,
como señala Louise Doyon, un necesario ajuste en los gastos, entre ellos los sala-
riales, promoviendo un creciente descontento entre los trabajadores, uno de los
factores que luego impulsaron el proceso de huelgas del período 1950-195132.

 269 La dinámica política hacía el interior de las


seccionales
Como lo establecía el estatuto gremial el gobierno de las seccionales de la
Unión Ferroviaria estaba a cargo de comisiones ejecutivas elegidas por los afilia-
dos, que se renovaban por mitades cada dos años. El procedimiento contemplaba
primero la realización de una asamblea general de asociados, donde se confeccio-
naba una lista de posibles candidatos a ocupar los cargos a renovarse. Luego esa
lista era sometida a votación por parte de los afiliados, quienes determinaba que
candidatos ocuparían los cargos titulares y quienes los suplentes. De esa manera,
existían dos instancias electivas generales y participativas, la primera orientada a
establecer candidatos, y la segunda destinada a establecer la condición de titular
o suplente de los elegidos33. Luego se en una tercera instancia, pero en este caso
de índole restringido puesto que quienes votaban eran solo los miembros de la
comisión ejecutiva, se resolvía la distribución de los cargos.
El aspecto más significativo de este mecanismo electivo lo constituía su ins-
tancia inicial, donde los propios afiliados proponían candidatos, entre sus compa-
ñeros, como lo recuerda un empleado de la UF, en un proceso de selección autó-
nomo que respondía a los intereses de las instancias de base de la organización:

El sistema de asamblea era el siguiente en una asamblea de la seccional


se proponían por lo menos el doble de los candidatos a elegir, era una
sola lista, había que elegir 15 venían 30 como mínimo. En el momento
de la elección uno tachaba lo que no quería, y una cosa que es muy im-

32 DOYON, Louise. “Conflictos obreros durante el régimen peronista (1946-1955)”. En: Desarrollo Económico,
n. 67, oct-dic. 1977, p. 466.
33 Unión Ferroviaria, Estatuto Buenos Aires, Imprenta Unión Ferroviaria, 1952. pp.29-31.

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portante: yo podía ser peronista y si el de enfrente era comunista pero


sabía defender mis intereses yo lo votaba y eso era común, que la gente
votara aún a la antípoda política porque sabía que ese hombre me iba a
defender en serio…”34.

Esta particularidad advertida por el informante permite entender como un


reconocido militante comunista como Rómulo Mandolesi, resultó electo para for-
mar parte de la comisión ejecutiva de la UF Noroeste en 1954, cuya presidencia
estaba a cargo de Federico Ciccola, por entonces senador provincial por el Partido
Peronista35, o como afiliados socialistas formaban parte de la conducción de la UF
Bahía Blanca Sud para esa misma época.
No obstante estos casos excepcionales en líneas generales para 1952 la to-
talidad de la conducción de las seccionales bahienses estaba compuesta por afilia-
dos o simpatizantes peronistas36. Este rasgo, común al resto del mundo asociativo
sindical, encuentra sentido en la extendida filiación peronista de los trabajadores
ferroviarios que, en última instancia, eran los encargados de elegir a los miembros
de las comisiones seccionales.
Progresivamente, este creciente proceso de peronización de los cuerpos di-
rectivos comenzó a ser un factor que influyó en la dinámica laboral. En especial
porque a partir de la consolidación de antinomia peronismo-antiperonismo, luego
del fallecimiento de Eva Perón, resultó imprescindible la existencia de un aval po-
lítico para las personas que quisieran ingresar como trabajadores ferroviarios o en
el caso de ya formar parte del personal, ser promovidos a categorías superiores.
Esta situación fue el origen de tensiones entre los empleados que aspiraban a
un ascenso, que invariablemente recaía en aquel que disponía de una recomendación
 270
más significativa, usualmente de un legislador o funcionario público de cierta impor-
tante. Esta situación fue reconocida por un informante que concluyó afirmando:

Lamentablemente gente muy capacitada, tanto en talleres, como en


tráfico o en la oficina de control, gente muy capacitada que llevaba
años trabajando en la empresa por el solo hecho de no tener un aval
político no podía pasar a la categoría inmediata superior. Y había gente
que había nacido en el ferrocarril acostumbrado al sistema de trabajo
de los ingleses, todo eso se fue pervirtiendo…37.

La alteración de los mecanismos tradicionales que regulaban las promocio-


nes, sustentados en estrictos exámenes de ingreso y sucesivos procesos evalua-
torios para progresar en la carrera laboral, constituyó una ruptura con una de las
tradiciones esenciales del trabajo ferroviario.
En ocasiones esta circunstancia posibilito actitudes reprobables, de quienes
aprovechando las circunstancias buscaban posicionarse en procura de alcanzar
objetivos personales, como revela el siguiente testimonio:

34 AMUNS, Entrevista n.º 223 D a Aurelio Diez, realizada el 10 de junio de 2010. En la misma entrevista El en-
trevistado recordó “Mandolesi era comunista declarado, fue preso infinidad de veces, pero el peronismo
lo votaba a Mandolesi porque sabían que ponía la cabeza para defender al compañero. Otro caso de la
misma tendencia de Mandolesi, José Magnani, era comunista declarado, fue a Rusia un montón de veces
mandado por el partido, pero la gente lo votaba porque sabía que defendía “
35 Sobre este tema, consultar: CONTRERAS, Gustavo Nicolás. Op. cit., p.7.
36 A esta conclusión llegan los informes realizados por los servicios de inteligencia de la policía provincial.
Archivo DIPBA, Mesa B, Carpeta 13, Legajo 57 (UF Noroeste), Archivo DIPBA, Mesa B, Carpeta 15, Legajo 2
(U.F. Ingeniero White), Archivo DIPBA, Mesa B, Carpeta 13, Legajo 57 (UF Sud).
37 AMUNS, Entrevista n.º 223 E a Aurelio Diez, realizada el 28 de agosto de 2010.

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Ya te digo era un época malísima porque la gente, el peronista-pero-


nista, estaba el peronista bueno y el peronista malo, aquel que era el
alcahuete, el rufián, el que anotaba a ver quién estaba afiliado y quién
no estaba. Era el requisito fundamental en el trabajo estar afiliado, el
que no estaba afiliado al Partido Peronista estaba muy mal mirado, muy
mal mirado digamos para el progreso mismo en lo que vos estabas ha-
ciendo, viste, te tenían ahí medio en un rincón38.

Esta situación, que se reitera en los relatos de trabajadores, afectó los la-
zos de solidaridad interna que había caracterizado a la comunidad ferroviaria. Del
mismo modo esta tendencia trastornó en forma progresiva la disciplina laboral
dentro de las instalaciones ferroviarias, debido a que quienes alcanzaban posicio-
nes de responsabilidad con personal a cargo, no siempre eran reconocidos por sus
subordinados como los mejor instruidos para esa función, sino simplemente como
quienes habían obtenido el aval necesario.

Los fraternales y su presencia en el medio bahiense


Desde 1887 la Fraternidad era la organización que representaba gremialmente
a los maquinistas y foguistas que trabajaban en las empresas ferroviarias argentinas.
Debido a la especificidad de funciones que se requería para ingresar a la organiza-
ción, su número de afiliados para 1943 era de solo de 25000 trabajadores, bastante
menos que la Unión Ferroviaria que por entonces tenía 108.000 adherentes.
 271 En Bahía Blanca la organización gremial contaba con tres seccionales: Inge-
niero White, Maldonado y Bahía Blanca Sud. La primera de ella se ubicaba en la
localidad portuaria del mismo nombre ubicada a 15 km. del área céntrica de Bahía
Blanca, que para 1940 era el principal puerto del sur de Argentina, con la playa de
maniobras más amplia del país. Sus instalaciones podían recibir en un día más de
750 vagones, que eran movilizados por 4 máquinas de maniobras destinadas a la
recepción y formación de los trenes, que operaban en forma permanente durante
las 24 horas, permitiendo un tráfico promedio de 30 formaciones diarias.
En el caso de la seccional Maldonado la cantidad de afiliados era notablemen-
te menor y se reducía la dotación necesaria para la maniobras que se realizaban en
los talleres Maldonado y Noroeste, principales centros de reparación de material
rodante de toda la región. Mientras que la Seccional Bahía Blanca Sud, se compo-
nía de los maquinistas y foguistas que se desempeñaban en las decenas de forma-
ciones de pasajeros urbanas e interurbanas que diariamente llegaban o salían de
la Estación Sud. Asimismo, en organización contaba con una institución educativa
propia, la Escuela Técnica Carlos Gallina, destinada a la formación de maquinistas y
ubicada en la localidad de Ingeniero White.
En su conjunto estas filiales reunían un total de 700 afiliados, 600 de los
cuales correspondían a la poderosa seccional de Ingeniero White, cuyos afiliados
mayormente vivían en la localidad portuaria debido a la proximidad de lugar de
trabajo. Mientras que entre 50-60 fraternales se desempeñaban en la seccional
Maldonado y aproximadamente 40 en la Estación Sud39.
No obstante esa inferioridad numérica en relación al número de adherentes a
la Unión Ferroviaria, los “fraternales” cumplían la estratégica función de conducir

38 AMUNS, Entrevista n.º54 a Adolfo Repetti, realizada el 20 de agosto de 2000.


39 Confrontar con los informes realizados por los servicios de inteligencia de la policía provincial. Archivo
DIPBA, Mesa B Bahía Blanca, Carpeta 15, Legajo 3 (La Fraternidad Ferroviaria Ingeniero White), Archivo
DIPBA, Mesa B Bahía Blanca, Carpeta 15, Legajo 58 (La Fraternidad Bahía Blanca Sud), Archivo DIPBA, Mesa
B Bahía Blanca, Carpeta 14, Legajo 50 (La Fraternidad Coronel Maldonado).

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las formaciones ferroviarias y por lo tanto podían paralizar el servicio de trenes


con una efectividad casi total. Asimismo, dada la especificidad de sus funciones
y el extenso proceso formativo que requería la capacitación de los maquinistas,
estos no eran sustituibles en ocasión de una huelga o medida de fuerza, por otros
trabajadores ferroviarios. Esta circunstancia le otorgaba a La Fraternidad, una po-
sición inmejorable al momento de negociar son el sector patronal, y luego de la
nacionalización de los ferrocarriles argentinos en 1948, con las agencias estatales
específicas.
Luego de producirse el golpe militar de junio 1943, que inicia el proceso polí-
tico que permitió el acceso de Juan Perón a la presidencia de Argentina en febrero
de 1946, La Fraternidad fue intervenida al igual que la Unión Ferroviaria, por el
coronel Domingo Mercante. Este oficial, hijo de un obrero ferroviario, era el militar
más cercano a Perón y su gestión al frente de las entidades sindicales ferroviarias
recibió la aprobación de un sector mayoritario de los afiliados.
Cuando concluyó su gestión en junio de 1944 La Fraternidad inició un proce-
so de normalización institucional que culminó con la elección de Jesús Fernández
como presidente de la comisión directiva central. En esa elección votaron un por-
centaje de afiliados cercano al 85 %, un dato que revela el nivel de participación y
compromiso de los afiliados respecto del funcionamiento de su organización40. A
partir de entonces y al mismo tiempo que la Unión Ferroviaria comenzaba un pro-
gresivo proceso de peronización, que se aceleró luego de las elecciones de febrero de
1946, los fraternales mantuvieron una dirección autónoma que se negó en sucesivas
circunstancias a efectuar una adhesión expresa al gobierno.
Incluso en 1945 la comisión directiva central de La Fraternidad decidió desa-
 272
filarse de la Confederación General del Trabajo, por entender que la organización
supeditaba su labor gremial a los intereses del proyecto político que se estaba
conformando en torno a la candidatura presidencial de Juan Perón, una decisión
que luego sería revisada por la dirección de la organización.
En lo que respecta al perfil ideológico de la entidad gremial, había una im-
portante presencia de adherentes del Partido Socialista y en menor medida de la
Unión Cívica Radical, entre los fraternales, tanto en sus afiliados como la conduc-
ción gremial, como lo recuerda un ex trabajador:

La Fraternidad siempre se destacó por ser un gremio confrontado con


el peronismo, no así la Unión Ferroviaria que siempre fue muy obse-
cuente. Lo que pasa es que La Fraternidad estaba muy nutrida de radi-
cales y socialistas, el socialista siempre casi siempre comulgó muy bien
con los radicales. Estamos hablando de la época de la oposición a Perón
¿no?, había que unirse como para hacerle un poco digamos de fuerza41.

De manera tal, que resulta razonable suponer que la pertenencia partidaria


de una parte significativa de los dirigentes que integraban los cuerpo directivos
de La Fraternidad, haya resultado determinante en el carácter de su relación con
el peronismo. Puesto que, si bien la negativa a realizar una adhesión explicita al
gobierno no hacía más que responder al perfil apolítico, que la organización pres-
cribía en sus estatutos, también era una actitud funcional a los intereses de sus
dirigentes, que lenta pero inexorablemente advertían como el universo sindical a
su alrededor se peronizaba.

40 La Fraternidad, 20 de junio de 1944, p. 5-7.


41 AMUNS, Entrevista n.º 54 a Adolfo Repetti, realizada el 20 de agosto de 2000.

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No obstante esto la entidad gremial trato de mantener una relación armóni-


ca con el gobierno nacional y sus diversas agencias, pero la creciente polarización
política progresivamente dejo cada vez menos espacio para aquellas organizacio-
nes que sin caer en una actitud contestataria, pugnaban por mantener una postura
neutral respecto del proyecto político oficial.

Las agrupaciones ferroviarias peronistas


En forma paralela a las diversas seccionales tanto de la Unión Ferroviaria como
de los fraternales, se organizaron otras entidades que pretendían asumir la represen-
tación de los trabajadores ferroviarios, pero en este caso, de explicita sensibilidad
oficialista: las agrupaciones ferroviarias peronistas. Estas asociaciones se constitu-
yeron en los meses previos a la elección de carácter municipal que ocurrió en marzo
de 1948 y su finalidad fue reunir a los empleados del ferrocarril que se reconocían
públicamente como peronistas, posiblemente con motivaciones de orden electoral
como permite suponer el hecho que se organizaron poco antes de la elección en la
cual el peronismo por primera vez mediría sus fuerzas en el orden municipal42.
En el período 1948-1955 fueron varias las entidades de este tipo que funcio-
naron en Bahía Blanca, incluso en determinadas etapas funcionó más de una en
forma simultánea y con una presencia territorial diferenciada. Entre sus referentes

 273 figuraron autoridades de las seccionales locales de la UF, conjuntamente con otros
trabajadores ferroviarios con estrechas vinculaciones con el Partido Peronista. In-
cluso algunas de ellos ocuparían bancas como representantes en el Honorable
Concejo Deliberante de Bahía Blanca, como Roberto Maccarini, Adolfo Ferrari y
Aquiles Franco, o en la Legislatura de la provincia de Buenos Aires como el senador
Federico Ciccola. Asimismo, también participaron como activistas o dirigentes en
las diversas facciones internas del Partido Peronista que participaron de las elec-
ciones internas de 1947 y 1949.
Su conformación revela como al menos hasta comienzos de la década de
1950 seguía vigente dentro de la UF la tradición de evitar que los asuntos político-
partidarios afectasen la dinámica interna sindical, como advierte un entrevistado
“ Lo que pasa era lo siguiente que aun estando formada la agrupación peronista,
eran activistas cierto pero no incorporados al gremio en si, años después empezó
a politizarse más el sindicato pero hasta ese momento no”43.
La existencia de estas organizaciones fue duramente criticada por el congre-
so de delegados de 1950, cuyos miembros repudiaron su funcionamiento a través
de una resolución donde sostuvieron:

Teniendo en cuenta que ciertas entidades denominadas agrupaciones,


ateneos o centros ferroviarios toman intervención en problemas de ca-
rácter estrictamente gremial, que solo corresponden ser encarados por
la Unión Ferroviaria, con lo cual perturban la labor de esta y la unidad y
armonía que deben reinar en las filas de la organización44.

42 En las elecciones del 24 de febrero de 1946, en las que Juan Perón fue electo presidente, se resolvieron
cargos legislativos y ejecutivos de carácter nacional y provincial, pero no así de carácter municipal.
43 AMUNS, Entrevista n.º 223 D a Aurelio Diez, realizada el 10 de junio de 2010.
44 El Obrero Ferroviario, Septiembre de 1950, n.594, p. 12.

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Sin embargo a pesar de estas lapidarias consideraciones las entidades ferro-


viarias peronistas continuaron actuando con intensidad, realizando reuniones pe-
riódicas y eligiendo cuerpos directivos hasta al menos 1954.
Incluso en diversas ocasiones intervinieron en los procesos electorales in-
ternos de la Unión Ferroviaria, promoviendo la candidatura de determinados di-
rigentes al Consejo Directivo de la UF y realizaron gestiones antes las autoridades
nacionales del gremio, alternativa que fue duramente criticada por las seccionales
locales que entendían que esa era una función que les competía en forma exclusiva
También adhirieron a la reelección de Perón y en 1952 se agruparon en una
organización única de orden nacional, con una sede central sobre la Avenida Case-
ros próxima a la Estación Constitución, la principal terminal ferroviaria argentina,
que llegó a tener una veintena de filiales en diversos puntos del país.
En el caso de los fraternales, las organizaciones peronistas que se conforma-
ron con el fin de atraer al personal de conducción no tuvieron demasiada trascen-
dencia. Los principales intentos se localizaron en el área portuaria de Ingeniero
White, donde se concentraba la mayor parte de sus asociados. Allí comenzó a fun-
cionar la Agrupación Ferroviaria Peronista de Personal de Conducción pertene-
cientes a La Fraternidad, que en julio de 1951 adhirió a la reelección de Juan Perón
y suscribió la resolución del plenario de delegados de la CGT local, al mismo tiempo
que la seccional whitense de La Fraternidad se negaba enérgicamente a efectuar
una declaración en tal sentido.

Las seccionales de los gremios ferroviarios ante el


 274
proceso huelguístico de 1950-1951
Analizar la evolución de una medida de fuerza resulta una alternativa intere-
sante para evaluar la dinámica interna de una entidad gremial, especialmente en lo
que respecta al nivel de autonomía de sus instancias seccionales, el funcionamien-
to de los liderazgos, el nivel de movilización, etc. El caso de las huelgas ferroviarias
ha sido evaluado recientemente por diversos estudios que consideraron el tema
desde una escala tanto nacional como regional45. Dicho esto el propósito a partir
de aquí es analizar el impacto que el proceso huelguístico que se extendió entre
noviembre de 1950 y agosto de 1951, tuvo en las seccionales que tanto la Unión
Ferroviaria como La Fraternidad disponía en el área de Bahía Blanca.
En el caso de la Unión Ferroviaria las medidas de fuerza se produjeron a raíz
de un deterioro progresivo en los salarios, que unido a una paulatina deslegiti-
mación de la conducción nacional de la organización respecto de sus bases, pro-
movieron para 1950 crecientes niveles de descontento dentro de los afiliados a la
Unión Ferroviaria46.
Si bien existieron tensiones previas la primera etapa del conflicto gremial
se inició el 15 de noviembre de 1950, es decir casi en forma simultánea al período
de mayor actividad de los ferrocarriles argentinos con motivo del transporte de
la cosecha cerealera hacía los puertos. Pese a que la campaña agropecuaria de
1950-1951 había resultado pésima, a raíz de una prolongada sequía, era imperante
comenzar con la traslado de la producción desde las diversos puntos de acopio

45 CONTRERAS, Gustavo Nicolás. Op. cit.; MENGASCINI Hugo. Op. cit.


46 Al respecto ver BAILY, Samuel. Op. cit., 137-144.

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LOS TRABAJADORES FERROVIARIOS DE BAHÍA BLANCA DURANTE...

del área pampeana hacia los sitios de embarque, entre las cuales se destacaba el
puerto bahiense de Ingeniero White, por entonces el tercero del país en volumen
de carga luego de Buenos Aires y Rosario47.
Esta instancia inicial del conflicto generó una paralización de los servicios y
finalizó con un acuerdo entre los huelguistas y el Ministerio de Transporte, por
entones a cargo del coronel Juan Castro. Por el cual los ferroviarios retornaron al
trabajo el día 24 de noviembre, luego de recibir un aumento salarial y de tener la
certeza que las sanciones aplicadas a los huelguistas quedarían sin efecto. Para lle-
gar a esa conclusión se conformó con delegados de cada línea una Comisión Con-
sultiva de Emergencia, que llevó adelante las negociaciones con el propio Castro48.
En Bahía Blanca la adhesión a la medida de fuerza fue importante en la totali-
dad de las seccionales. El 22 de noviembre se paralizaron los servicios y no llegaron
ni partieron trenes desde las estaciones bahienses, a raíz del paro de cambistas y
guardabarreras iniciado en el Ferrocarril Roca49. El 27 del mismo mes la principal
seccional bahiense UF Noroeste emitió un comunicado por el cual se solicitaba a
la Comisión Directiva que, con carácter urgente, reclamase a las autoridades una
mejora en las condiciones salariales de las categorías iniciales. En el mismo docu-
mento, la seccional se declaró en estado de asamblea permanente, hasta tanto no
se resolviese el conflicto.
Al igual que en el resto del país los ferroviarios bahienses retornaron a sus
labores luego del acuerdo al que se arribó el 24 de noviembre. No obstante esto,
en la primera semana de diciembre, el gobierno nacional resolvió dejar sin efecto
 275 el compromiso, medida que fue acompañada por detenciones, despidos e inter-
venciones a diversas seccionales de la Unión Ferroviaria.
Este cambio de actitud del gobierno provoco la inmediata reacción de las sec-
cionales bahienses de la UF, que con diversa intensidad reiniciaron las medidas de
fuerza que recién culminaron entre el 18 y 20 de diciembre, según cada filial50. Cuan-
do culminó la protesta se produjo una asamblea general extraordinaria de asocia-
dos de la UF Noroeste, que se reunió con “…el objeto de considerar el conflicto
suscitado en el gremio a raíz de la situación que afecta al personal de baja remu-
neración…”. En la oportunidad los trabajadores presentes reconocieron que es la
comisión directiva de la seccional era la única autorizada a actuar en nombre de los
trabajadores, por lo que le solicitaron que reclame con “carácter urgente” ante las
autoridades pertinentes una recomposición salarial51. Asimismo el conjunto de afi-
liados decidió declararse en asamblea permanente hasta tanto no se resolviese el
conflicto laboral que los afectaba. Estas acciones si bien revelan un reconocimiento
explicito de las autoridades seccionales, también dejan en claro como el desconten-
to ascendía desde las bases de la organización hacia la conducción.
Los restantes puntos presentes en el documento se orientaban a peticiones es-
pecíficas, para lo que se resolvió “…encomendar a la C. E. (comisión ejecutiva seccio-
nal) por delegación, que en plazo breve gestione y obtenga de las autoridades” una
serie de reclamos, dejando en claro el reconocimiento de la seccional al rol mediador
de la máxima autoridad de la UF por sobre la Comisión Consultiva de Emergencia.

47 Sobre el tema consultar GERCHUNOFF, Pablo; ANTÚNEZ, Damián. “De la bonanza peronista a la crisis de
desarrollo”. En: TORRE, Juan Carlos (director). Los años peronistas (1943-1955), Nueva Historia Argentina,
Tomo 8, Buenos Aires: Sudamericana, 2002, p. 165
48 Este proceso fue analizado extensamente por CONTRERAS, Gustavo Nicolás. Op. cit., p. 10-11.
49 Democracia, 22 de noviembre de 1950.
50 Democracia, 18 de diciembre de 1950.
51 El Atlántico, 20 de diciembre de 1950.

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En esa asamblea los asociados acordaron gestionar en primer término una


recomposición salarial que elevase el salario mínimo de todas las especialidades a
550 pesos, medida que debía ser acompañada de una agilización en la escala que
determinaba la antigüedad máxima (pedían pasarla de 20 a 10 años). A estas reivin-
dicaciones laborales le continuaban otras que referidas a la evolución del conflicto
gremial en sí, inicialmente el levantamiento de las sanciones laborales y policiales
para los huelguistas que las tuvieran. Para luego advertir que la Seccional se reser-
vaba el derecho de tomar “…las medidas de fuerza que estimara conveniente” si el
Consejo Directivo de la Unión Ferroviaria no brindaba una respuesta satisfactoria, y
de no reconocer ninguno arreglo tomado por fuera de la estructura gremial52.
Asimismo, la propuesta emanada de la reunión de asociados revela la pre-
sión ejercida por los asociados, primero a la comisión ejecutiva local para luego
direccionar sus reclamos a los niveles superiores de la organización gremial. Con
lo cual se pone de manifiesto un nivel de movilización que excede la capacidad de
respuesta de la dirección local de la Unión Ferroviaria, que se erige en una mera
intermediaria de los reclamos de las bases ante las instancias de conducción de la
organización.
En el orden nacional estos y otros reclamos no fueron debidamente recono-
cidos por el gobierno y la situación se agravó aún más cuando la CGT determinó el
20 de diciembre la intervención de la Unión Ferroviaria. En respuesta a esta y otras
disposiciones, los trabajadores ferroviarios representados por la Comisión Consul-
tiva de Emergencia reiniciaron las medidas de fuerzas.
En forma paralela a las seccionales de la UF en Bahía Blanca se constituyó un
comité local de emergencia ferroviaria, que el 18 de enero emitió un comunicado,
 276
publicado por el único periódico no oficialista de la ciudad, en el cual exhortaba a la
intervención de la UF a que anule todas las restricciones sindicales y constituciona-
les, antes de iniciar el proceso electoral interno tendiente a normalizar el gobierno
de la organización gremial ferroviaria53. Esta proclama tenía su origen en Comisión
Consultiva de Emergencia de índole nacional, la cual estableció como fecha límite
el 20 de enero para que la intervención levantara las restricciones y sanciones que
pesaban sobre numerosos afiliados a la UF.
Sobre la labor de este comité se refirió quien fuera su presidente, un trabaja-
dor ferroviario que por entonces cumplía labores en la Estación Sud, Julio Cassano,
quien recordó el proceso en los siguientes términos:

Y convocamos acá a una asamblea multiseccional, vale decir Bahía Blan-


ca Sud, Noroeste, que era la más grande, y White. Que no se volvió a re-
petir jamás, inédita por la cantidad de gente que hubo, lo hicimos obvia-
mente en el Sindicato de la Construcción, que en ese momento estaba
manejado por comunistas, no podíamos hacerlo en la Unión Ferroviaria
que estaba totalmente al margen. Y ahí se resolvió por unanimidad [....]
les dije la verdad, le dije: “vea compañeros acá estamos siendo utiliza-
dos por otra gente, por otros intereses ajenos, realmente a los gremia-
les, a lo que se esta diciendo, que era por el aumento de sueldo. Empe-
zó con eso pero acá la verdad que es un golpe contra Perón, ustedes
saben que yo no soy peronista, tampoco me voy a prestar a este juego
de un grupo de nazis que son los que quieren tomar el gobierno”, el co-
ronel Castro que era el Ministro de Transporte y el Coronel Zubieta que
era gerente del Ferrocarril Roca y así “tenemos que hacer otra huelga
pero hacerla ahora, fundamentalmente ya no por el aumento se sueldo,

52 El Atlántico, 20 de diciembre de 1950.


53 Democracia, 18 de enero de 1951.

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eso va en último lugar sino primero por la libertad de los compañeros


presos, segundo por la reincorporación de los cesantes y por último por
el aumento de sueldo54.

El relato de Cassano revela algunos detalles del proceso, en primer término


la existencia de una red local paralela a las seccionales de la UF, que respondía Co-
misión Consultiva de Emergencia, con nivel de convocatoria y capacidad de movili-
zación. En segunda instancia la existencia de intereses partidarios opuestos al par-
tido gobernante inmiscuidos en el proceso, no parece casual que el único sindicato
que aún respondía al Partido Comunista alojase la reunión ni que el comité local lo
presidiera un radical confeso, que promovieron la continuidad y profundización
del conflicto gremial55.
Frente a esto la filial bahiense de la CGT denunció mediante un comunica-
do la “inconsulta actitud de grupo de obreros ferroviarios” que “en abierto alza-
miento contra las legítimas autoridades que dirigen sus respectivas seccionales”
han paralizado parte de los servicios ferroviarios de la ciudad”. En un intento por
restarle legitimidad a la huelga, la declaración afirma que la medida de fuerza fue
resulta por obreros ajenos a las conducciones seccionales y llevada adelante por
trabajadores “sin conocimiento de las causas que la originan”56.
En el orden nacional el gobierno declaró la ilegalidad de la medida, sin que
eso detuviese la continuidad de las medidas de fuerza En un discurso pronuncia-
do el 24 de enero Perón afirmó, refiriéndose a los trabajadores ferroviarios, que

 277 quienes no volvieron al trabajo serían movilizados y en esa condición sometidos


a la justicia militar, un hecho que mermó el compromiso de los huelguistas, como
rememora el propio Julio Cassano:

Claro el asunto se había puesto muy espeso y entonces Perón habla esa
misma noche, fue cuando decreta la militarización de todo el personal
ferroviario y anuncia que será juzgado por tribunal militar, pudiendo lle-
garse hasta el fusilamiento. La gente se da por vencida para entrar a
trabajar, a mi que me causo mucha indignación, en ese momento, com-
prendí después que era muy distinta la situación, yo tenía 22 años, mis
padres no dependían de mi, no tenía familia; la demás gente si, la ma-
yoría de la gente era casada, los padres dependían de ellos, tenían sus
hijos, etc. Así que frente a una amenaza de ese tipo…..57.

A la advertencia de la militarización le siguió un día después la exoneración


de todos los miembros del Comisión Consultiva de Emergencia, mientras que se
generalizaban las detenciones de activistas y trabajadores ferroviarios, algunos de
los cuales en el área de Bahía Blanca fueron obligados a firmar fichas de afiliación
del Partido Comunista. Esta acción fue realizada por agentes de la policía federal
antes que los detenidos fueran trasladados a Buenos Aires y derivados a institucio-
nes penitenciarias58. Este dato resulta revelador para comprender el interés del go-
bierno nacional por orientar la responsabilidad del conflicto gremial enteramente
a infiltrados y militantes comunistas. De esa manera perdía legitimidad el reclamo

54 AMUNS, Entrevista n.º 27 a Julio Cassano realizada el 26 de febrero de 1999.


55 Sobre este aspecto ver CONTRERAS, Gustavo Nicolás. Op. cit., p. 11-12
56 El Atlántico, 24 de enero de 1951.
57 AMUNS, Entrevista n.º 27 a Julio Cassano realizada el 26 de febrero de 1999. El entrevistado luego de este
episodio fue echado del ferrocarril, retorno en enero de 1956 para formar parte de la comisión interven-
tora de la seccional Bahía Blanca Sud de la UF, en 1958 resultó electo concejal por la UCRI en el Partido de
Bahía Blanca.
58 AMUNS, Entrevista n.º 27 a Julio Cassano realizada el 26 de febrero de 1999.

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inicial de carácter esencialmente salarial y ganaba fuerza el argumento que la serie


de huelgas se generaron exclusivamente a raíz de intereses políticos de fuerzas
opositoras al peronismo. Así también quedaban exceptuados de responsabilidad
los ferroviarios peronistas que apoyaron la medida, quienes en última instancia
fueron víctimas de un orquestado engaño, del que solo salieron cuando se hizo
público el carácter conspirativo del proceso huelguístico.
En los meses sucesivos, las medidas de fuerza protagonizadas por ferrovia-
rios en Bahía Blanca fueron duramente criticadas en actos especialmente orga-
nizados por la CGT local, en ellos algunos dirigentes como Pedro Samonta, pro-
secretario de la UF Noroeste “…censuró crudamente a los elementos jóvenes
pertenecientes a la Unión Ferroviaria, aunque no los responsabilizo de los perjui-
cios que causaron con su actitud a la Nación y al gremio mismo, manifestándolo
que sin proponérselo, habían seguido a los comunistas infiltrados en el sindicato,
quienes por un lado hablaban de unidad y paz, cuando sólo pretendían con sus
fines sembrar la discordia y el caos”59.
En el mismo sentido se expresó el presidente de la UF Noroeste y senador
provincial Federico Ciccola, quien sostuvo que “…si en el primer paro, se considero
que los obreros tenían parte de razón, fue completamente desatinado el segundo,
máxime si se hubiese tenido en cuenta que ya se estudiaban las posibilidades de
un aumento para peones, guardabarreras y otro personal”. Para luego continuar
argumentando que “El error que cometió el Ministro de Transporte (…) al admi-
tir la comisión de emergencia, integrada por comunistas y en contra de las leyes
que rigen las Asociaciones Profesionales, fue insalvable. Al darse traslado de las
actuaciones al Ministerio de Trabajo, se consiguió con su intervención solucionar
 278
el aspecto sueldos. Pero -prosiguió- las fuerzas de la antipatria habían tejido sus
redes y con solapadas intenciones hicieron circular la noticia de que los aumentos
conseguidos diez días antes, no se abonarían, provocando lo que buscaban, un
paro inconsulto y que implicaba un sabotaje a los ferrocarriles”60. Al explicar las
motivaciones de la disputa gremial en términos conspirativos, perdía entidad el
reclamo laboral y ganaba centralidad la presunción que sujetos extraños a la orga-
nización y de extracción comunista, fueron los responsables de la profundización
del conflicto. Un argumento similar al esgrimido por la conducción socialista en el
período 1940-1943 respecto de la “perniciosa y confucionista” influencia de agen-
tes extraños a la UF, en una clara alusión a los militantes comunistas61.
Sin embargo, la culminación del ciclo de huelgas promovidas desde la Unión
Ferroviaria no concluyó con la conflictividad en el sector ferroviario, debido a que
solo unas semanas después de comenzaron una serie de medidas de fuerza promo-
vidas por La Fraternidad. Pero en este caso el origen del conflicto no se relacionó
específicamente con reivindicaciones laborales ni reclamos salariales, quizás por-
que los maquinistas tenían un nivel de ingresos muy superior al resto de los ferro-
viarios, sino en un cuestionamiento de orden político62. Este se suscitó cuando la

59 El Atlántico, 3 de febrero de 1951.


60 El Atlántico, 3 de febrero de 1951.
61 El Obrero Ferroviario, año XXI, n.º 469, 1 de septiembre de 1942, p. 1. “A los asociados de la Unión Ferroviaria y
a la clase obrera en general”. El Obrero Ferroviario, año XXI, n.º 471, 1 de octubre de 1942, p. 8. “La Comisión
Directiva a los afiliados en el XX aniversario de Unión Ferroviaria”.
62 Resulta conveniente recordar que La Fraternidad no adhirió públicamente al movimiento huelguístico que
impulsó la Unión Ferroviaria, dejando entrever cómo, a pesar de sus diferencias con el gobierno, el gremio
de los maquinistas optó por mantenerse al margen de un conflicto que consideraban ajeno. Si lo hicieron,
mostrando cierta autonomía de las directrices de la autoridad nacional del gremio, algunas seccionales del
interior del país que expresaron su adhesión al movimiento huelguístico e incluso se plegaron a la medida.

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CGT adhirió públicamente a la reelección de Juan Perón en septiembre de 1951, una


determinación que fue duramente resistida por los representantes fraternales,
por entender que esa decisión afectaba la prescindencia política que sus propios
estatutos celosamente defendían y que constituía uno de los componentes más
representativos de su cultura institucional.
Esta negativa ocasionó que la sede central de La Fraternidad en Buenos Ai-
res fuese asaltada y el gremio intervenido. A raíz de esta situación el 10 de mayo
de 1951 la delegación regional Bahía Blanca de la CGT denunció el “…derrotismo
y la mala fe en que se han colocado un pequeño grupo que se dice representar la
mayoría del gremio ferroviario La Fraternidad, puesto que con un pretexto de ce-
los estatutarios manifiestan no poder suscribir la resolución de la totalidad de las
organizaciones adheridas a la CGT en el sentido de auspiciar por todos los medios
a su alcance la reelección de Juan Perón…” “…una advertencia al gremio de La
Fraternidad en particular, por cuanto el pequeño grupo que integra la comisión
directiva está jugando con la suerte del mismo…”, para luego continuar afirman-
do que “Los miembros de la Comisión Directiva que tan legalistas han pretendido
aparecer para cubrir sus verdaderas intenciones, tienen en su historial situaciones
que ningún fraternal desconoce y que revela su verdadera militancia política, incli-
nada hacia el Partido Comunista, hacia el Socialista o hacía otras banderías de neto
corte político”63. Como bien señala la denuncia de las autoridades cegetistas algu-
nos miembros de la dirección fraternal eran al mismo tiempo militantes socialistas,
pero esa condición no invalidaba el hecho que habían sido electos por una abruma-
dora mayoría de los afiliados, una situación que otorgaba no solo un carácter legal
 279 sino también legítimo a sus decisiones.
Esta representatividad se evidenció en la masiva asistencia a la asamblea ge-
neral extraordinaria ocurrida el 18 de mayo de 1951, en la filial Ingeniero White,
donde se hicieron presentes más de 300 fraternales. Como resultado del encuen-
tro, que contó con la presencia de dirigentes nacionales de la organización, se
acordó una resolución por la cual se solicitaba a la comisión nacional que gestione
la libertad de los detenidos, la reincorporación de los cesanteados y el fin de medi-
das persecutorias al interior de la organización. Al mismo tiempo, en el documento
se aclaró “Que toda su acción este inspirada en el sentido de evitar a costa de cual-
quier sacrificio la intervención a nuestra querida Fraternidad”, por lo que también
se solicita la convocatoria a elecciones y la realización de una asamblea general de
delegados con el fin de renovar la dirección de la entidad gremial64.
A pesar de la expresa voluntad de la organización por mantener su continui-
dad institucional, mediante la conformación de un nuevo cuerpo directivo en el
orden nacional, la intervención del gobierno nacional no se hizo esperar. La dis-
posición afectó inmediatamente el funcionamiento de las seccionales bahienses,
que resistieron la medida. Tal es así, que cuando los delegados enviados por la
intervención nacional se reunieron con los miembros de la comisión directiva de
la filial de Ingeniero White, los dirigentes accedieron a la entrega del local pero
defendieron la continuidad de los miembros de la comisión, en una “reunión (que)
se realizó en un clima de agitación y nerviosidad, sin que se registraran escenas de
violencia”65, como aclaró la prensa oficialista local.
Frente a esa posición irreducible al día siguiente “La Fraternidad Ferroviaria,
comunica a sus asociados que la sección Ingeniero White FCNGR, ha sido reorga-
nizada por haber caducado en su mandato sus autoridades representativas, a raíz

63 El Atlántico, 10 de mayo de 1951.


64 El Atlántico, 20 de mayo de 1951.
65 El Atlántico 18 de julio de 1951.

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de haber anulado sus relaciones con el cuerpo central”. Al mismo tiempo que “La-
menta la comisión organizadora que una minoría regimentada no haya permitido
hacer una asamblea para poder oír la información de la misma y a la vez escuchar
la opinión de los socios con toda libertad66. En tal sentido, la prensa local informó
poco después “La comisión reorganizadora de la Fraternidad, llama a los compa-
ñeros a la reflexión y cordura, en vista del cariz que han tomado los acontecimien-
tos producidos por la acción disolvente de elementos perturbadores que se dicen
auténticos fraternales y que respondiendo a directivas foráneas han lanzando al
gremio a un paro injustificado”67. A través de ese mismo comunicado la comisión
deslegitimaba el reclamo sindical, por considerar que su origen presentaba un sen-
tido político y no gremial.
Según denunciaron los medios de prensa controlados por el gobierno, la
huelga fue dirigida por el ex presidente de La Fraternidad Jesús Fernández y se
organizó sobre la base de cinco subcomisiones: Remedios de Escalada, Ingeniero
White, Tandil, Olavarría y Bolivar. En su totalidad distritos ubicados dentro del
territorio bonaerense, un aspecto significativo puesto que allí se concentraba la
mayor parte del tráfico ferroviario y por ende de afiliados fraternales.
En el caso de Ingeniero White los dirigentes vinculados a la organización de
la medida de fuerza fueron Antonio Tuminello, Horacio Bonini y Gines García, to-
dos ellos dirigentes fraternales68. Su detención fue inmediata al igual que la de un
importante grupo de maquinistas, que resultaron arrestados y fueron trasladados
a Buenos Aires para ser alojados en la cárcel de Villa Devoto69. Al mismo tiempo
en la propia localidad de Ingeniero White se improviso un centro de detención,
controlado por la Prefectura Argentina, en algunos vagones ferroviarios especial-
 280
mente acondicionados, donde fueron confinados entre 20 y 30 fraternales. En su
conjunto apresados en la localidad portuaria, en sucesivas redadas efectuadas por
fuerzas policiales.
Superado este periodo de tensión numerosos afiliados de La Fraternidad
fueron cesanteados y se conformaron “listas negras” de los dirigentes y afiliados
fraternales que había expresado públicamente su adhesión a las medidas de fuer-
za impulsadas por la organización. Estas medidas desarticularon los equipos gre-
miales que habían conducido a la organización desde comienzos de la década de
1940, ligados en su mayoría al socialismo, como así también cualquier otro polo de
oposición al peronismo. Es por ello que al producirse la normalización de las sec-
cionales, las conducciones electas se constituyeron mayoritariamente a partir de
afiliados o simpatizantes peronistas.

Consideraciones finales
La irrupción del peronismo en la esfera política y sindical argentina constitu-
yó un punto de inflexión para los trabajadores agremiados y los ferroviarios sin-
dicalizados que trabajaban en el área de Bahía Blanca, no resultaron ajenos a ese
fenómeno. Sin embargo, la manera en que ese proceso impactó en las diversas

66 El Atlántico, 19 de julio de 1951.


67 El Atlántico, 2 de agosto de 1951.
68 El Atlántico, 8 de noviembre de 1951.
69 El grupo de trasladados a Buenos Aires se completó con Luis Capella, Pedro Pachetti, Dante Paolucci,
Oscar Torresi, Hércules Arcucci, Joaquín Genovese, Máximo Fernández, Argentino Panizzi, Juan Sardia,
Enrique Repetti, Remo de Tomassi y José Bassi.

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organizaciones gremiales del sector -Unión Ferroviaria y La Fraternidad - no fue


similar, sino que por el contrario presentó matices bien diferenciados.
En el caso de la Unión Ferroviaria, las acciones promovidas por Perón en be-
neficio de los trabajadores ferroviarios, en su rol de funcionario al frente de la Se-
cretaria de Trabajo y Previsión, constituyeron un factor decisivo para entender el
grado de adhesión que su proyecto político alcanzó entre los empleados de las em-
presas del sector. Esto permite entender los gestos de adhesión que tanto antes
como después de la elección de febrero de 1946, el naciente peronismo encontró
entre el personal ferroviario y en una parte significativa de los jefes sindicales que
conducían a la UF antes de 1943, que se plegaran al peronismo, determinación que
también se observó en los directivos de las diversas filiales bahienses.
Pero esa adhesión no puede ser vista solo como la aceptación primero y lue-
go el apoyo explicito a un nuevo proyecto político, que respondió favorablemen-
te a requerimientos sectoriales largamente postergados, sino también como una
estrategia que asegurase la continuidad de sus carreras sindicales por dos razo-
nes principales; en primer término porque especialmente a partir de la elección de
1946 la fidelidad al proyecto político peronista comenzó a ser imprescindible para
operar gremialmente ante las agencias estatales, en segunda instancia porque los
afiliados masivamente se habían peronizado70.
Por otra parte, esta adhesión posibilitó el acceso de dirigentes de la UF a
puestos legislativos de carácter municipal y provincial, en especial luego de las
elecciones de 1948, un dato que remite a otro factor que no puede soslayarse al
 281 momento de evaluar la lealtad de los dirigentes ferroviarios con el peronismo,
como lo es ser reconocidos como “…miembros de pleno derecho de la comunidad
política nacional…”71, en términos de Juan Carlos Torre.
Diferente fue la situación de los fraternales, cuya dirección en el orden nacio-
nal, local y particularmente en la seccional Ingeniero White, la unidad gremial con
mayor número de afiliados, sostuvo una firme prescindencia política, paradójica-
mente impulsada por la pertenencia partidaria socialista de una parte significativa
de sus cuerpos directivos. Un factor que había traccionado para que la institución
no efectuará los gestos de adhesión hacia el modelo oficialista que, de manera
progresiva e inexorable, se requerían para operar dentro de un universo sindical
peronizado. Este posicionamiento perduró hasta la conflictiva huelga de mayo de
1951, que culminó con la intervención de la asociación en todos sus niveles de gobier-
no. A partir de entonces, la peronización de las seccionales no se hizo esperar y sus
cuerpos directivos se constituyeron en forma exclusiva por afiliados o simpatizantes
peronistas, que a diferencia de sus predecesores socialistas, no dudaron en adherir
públicamente con la gestión de gobierno peronista, incluso en el plano electoral. Este
cambio supuso una completa renovación de las conducciones, que se recompondrán
luego del derrocamiento del Juan Perón tras el golpe militar de 1955, a partir de la
participación de una parte significativa de los dirigentes expulsados en 1951.
Ahora bien, la adhesión de las conducciones de las diversas seccionales la
Unión Ferroviaria al modelo oficialista, al mismo tiempo que la conformación de
organizaciones de ferroviarios “peronistas”, no se tradujo en una desactivación de
los reclamos sindicales. El proceso gremial que transcurre entre diciembre de 1950
y enero de 1951 es un ejemplo de ello, y refleja cómo las reivindicaciones sectoriales
de orden salarial o laboral tuvieron más entidad que la identidad peronista de los

70 Un aspecto advertido en DEL CAMPO, Hugo. Op. cit., p. 353-354


71 TORRE, Juan Carlos. Op. cit., p. 258

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trabajadores. Tal es así que los ferroviarios bahienses participaron de las medidas
de fuerza en las tres etapas que presentó el conflicto, provocando la paralización
de los servicios. En ello influyó la pervivencia de una tradición participativa y mo-
vilizadora en el interior de las seccionales ferroviarias y en especial en sus bases,
que superó el encuadramiento transmitido y propiciado desde los niveles supe-
riores de la organización sindical. Un rasgo que se puede apreciar a las acciones
de resistencia de los fraternales frente al proceso interventor de 1951, que solo se
desactivan con la detención de sus principales dirigentes y el despido de centena-
res de maquinistas.

 282

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O universo dos trabalhadores dos
castanhais: Cotidiano e exploração
no Vale do Tocantins (1890-1940)
Olivia Macedo Miranda Cormineiro*
Euclides Antunes de Medeiros**

Resumo: Os sertanejos pobres que viveram e trabalharam no Vale do rio Tocantins


entre as décadas de 1890 e 1940 pertencem a uma categoria de trabalhadores que,
não tendo sua experiência social construída na esfera da luta organizada, foram,
até recentemente, despojados de historicização. Neste artigo, nosso objetivo é
reconstruir algumas das dimensões da cultura de trabalho dos apanhadores de
castanha-do-pará que viveram, entre as décadas de 1890 e 1940, no vale do rio
Tocantins, e cujas práticas de trabalhar estão no centro de seus modos de viver e,
consequentemente, constituem o nexo entre cultura e exploração, resistência e
adequação cotidiana.

Palavras-chave: Trabalhadores; cultura; exploração.

Abstract: The poor backwoodsmen who lived and worked in the valley of the To-
cantins River between 1890 and 1940 belong to a category of workers who, having
built their social experience in the sphere of organized struggle were, until recently
dispossessed of historicization. In this article our objective is to reconstruct some
of the dimensions of the work culture of Brazil nut gatherers who lived between
the 1890s and 1940s, the valley of the Tocantins River, and whose work practices
are central to their way of living and thus constitute the link between culture and
exploitation, strength and fitness everyday.

Keywords: Workers; culture; exploration.

Introdução
Desde a década de 1970, a historiografia do Trabalho e das relações de tra-
balho tem ampliado suas abordagens ao voltar seu olhar, principalmente, para a
cultura dos trabalhadores, seu cotidiano e suas práticas. Essa renovação significou
um avanço, sobretudo, nos estudos que investigam as práticas de resistência e de
negociação dos sujeitos que não se adaptam aos modelos tradicionais de lutas de

* Professora assistente da Universidade Federal do Tocantins.


** Professor adjunto da Universidade Federal do Tocantins.

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OLIVIA MACEDO MIRANDA CORMINEIRO, EUCLIDES ANTUNES DE MEDEIROS

classes. Realizando uma reflexão sobre as relações entre a tradição e a inovação


nas pesquisas relativas ao trabalho, o historiador social Marcel Van der Linden ex-
plica haver um consenso de que no campo da tradição, ou seja, no campo da “Ve-
lha História do Trabalho”, situa-se

[...] uma História do Trabalho [que] era institucional, focada na descri-


ção organizacional de desenvolvimentos, debates políticos, líderes e
greves. Era representada por Sidney e Beatrice Webb, a Escola Wiscon-
sin de John Commons, dentre outros, mas também por marxistas como
Philip Foner.1

Desviando-se dessa visão tradicional, cujo exemplo nos apresentou Van der
Linden, surge um campo historiográfico que se volta para a reconstrução das prá-
ticas e das experiências dos trabalhadores. Os trabalhos de Christopher Hill, sen-
do o mais conhecido no Brasil “O Mundo de Ponta-Cabeça”2 e sua atuação como
presidente da revista “Past & Present” aglutinaram em torno de si estudiosos que
discutiam o lugar e a importância de elementos “não econômicos” na vida social.
Teóricos como Raymond Williams e historiadores como Edward Palmer Thomp-
son, Eric Hobsbawm e Rodney Hilton desenvolveram estudos sobre a produção,
a interpretação, a recepção e a ressignificação de práticas culturais concernentes
aos mundos do trabalho e dos trabalhadores. A contribuição desses marxistas,
atualmente reconhecidos como praticantes da “história social inglesa”, reverbe-
rou positivamente na historiografia brasileira que, principalmente a partir da déca-
da de 1980, deu um salto quantitativo e qualitativo nessa mesma senda.
Com efeito, a partir dessa década, a historiografia brasileira do trabalho envi-  284
da esforços para incorporar outros trabalhadores, sobretudo aqueles que vivem à
margem da luta organizada, e valorizar suas práticas de subsistência e seus valores
culturais como elementos importantes de sua constituição como trabalhadores.
Diversos foram os trabalhos que contribuíram para esse avanço, discutindo por
meio de abordagens inovadoras o trabalho e os trabalhadores: desde um trata-
mento diferenciado à própria noção de trabalhador, como é o caso de Silvia H.
Lara3, ao incluir os escravos na categoria trabalhadores, até pesquisas voltadas
para o trabalho feminino e para a mulher, que passou a ser vista também enquan-
to trabalhadora e não apenas como pertencente a um “gênero”, caso do trabalho
de Alice R. P. Abreu.4
Igualmente, historiadores (as) como José Carlos Barreiro, Luiz Felipe de
Alencastro, Antonio Luigi Negro, Frederico de Castro Neves, Deá Ribeiro Fenelon e
Maria Antonieta Antonacci contribuíram significativamente, não só com a recons-
trução de processos por esse olhar inovador, mas também para a consolidação
dessa perspectiva em termos teóricos e metodológicos. E é nessa perspectiva que
estamos tratando aqui do universo dos trabalhadores dos castanhais, pois os ser-
tanejos pobres que viveram e trabalharam no Vale do rio Tocantins entre 1890 e
1940 pertencem a uma categoria de trabalhadores que, não tendo sua experiência
social construída na esfera da luta organizada, foram, até recentemente, despoja-
dos de historicização.

1 LINDEN, Marcel Van der. História do Trabalho: o novo, o velho e o global. Revista Mundos do Trabalho, v.1,
n. 1, jan.-jun. 2009, p. 12.
2 HILL, Christopher. O Mundo de Ponta-Cabeça: ideias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. Tradu-
ção e apresentação de Renato J. Ribeiro. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda.,1987.
3 LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
4 ABREU, Alice Rangel de Paiva. O Avesso da Moda: trabalho a domicílio na indústria da confecção. São Pau-
lo: Hucitec, 1986.

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Assim, neste artigo, nosso objetivo é reconstruir algumas das dimensões da


cultura de trabalho dos apanhadores de castanha-do-pará que viviam no Burgo de
Itacaiúnas5, cujas práticas de trabalhar estão no centro de seus modos de viver e,
consequentemente, constituem o nexo entre cultura e exploração, resistência e
adequação. Um conceito central na problematização aqui proposta é o de cultura.
Contudo, a concepção que adotamos não evoca o consenso das relações sociais;
entendemo-la como uma gama de sistemas simbólicos e práticas que constituem
experiências, padrões de comportamento e de controle social. No que concerne às
práticas culturais, elas se constituem em

costumes que realizam algo ― não são formulações abstratas dos sig-
nificados nem a busca de significados, embora possam transmitir um
significado. Os costumes estão claramente associados e arraigados às
realidades materiais e sociais da vida e do trabalho, embora não deri-
vem simplesmente dessas realidades, nem as reexpressem. Os costu-
mes podem fornecer o contexto em que as pessoas talvez façam o que
seria mais difícil de fazer de modo direto [...].6

Acompanhando a compreensão de Sider, partilhada pelo historiador inglês


Edward Palmer Thompson (1988), estamos, aqui, menos preocupados com a ideia
de classe do que com as lutas de classes construídas como modos de viver pelos apa-
nhadores de castanha nos imensos pés existentes na vasta área de entorno da con-
fluência dos rios Itacaiúnas e Tocantins, no Sudeste do estado do Pará. De fato, no
 285 decorrer da década de 1890, muitos sertanejos pobres, oriundos, sobretudo do Norte
de Goiás, foram empurrados para as matas paraenses em razão das revoltas e con-
flitos armados travados entre e inter coronéis e oligarquias maranhenses e goianas.
Ignácio Baptista Moura, engenheiro a serviço do estado do Pará, em viagem
ao Burgo de Itacaiúnas, durante o ano de 1896, para inspecionar o investimento
que aquele estado havia feito no empreendimento de Coronel Carlos Leitão, um
dos principais envolvidos na primeira Revolta de Boa Vista7, descreve a formação
inicial daquela povoação da seguinte forma:

Daí a alguns minutos, saltávamos no Burgo de Itacaiúna e éramos re-


cebidos pelos colonos, tendo à frente Carlos Leitão [...] ― O primitivo
estabelecimento, onde se asilaram durante quase um ano os foragidos
das lutas sanguinolentas da Boa Vista, estava situado bem na foz do rio
Itacaiúna, único afluente importante da margem esquerda do Tocantins
[...]. A situação topográfica desse núcleo preenchia as boas condições
para um futuroso estabelecimento [...] só havendo caso de febre entre
as pessoas que vão acidentalmente colher castanhas na outra margem
do rio ou em castanhais dessa mesma margem, conhecidos como pon-
tos de infecção da moléstia.8

5 Atual cidade de Marabá, localizada na confluência do rio Itacaiúnas com o rio Tocantins, região Sudoeste
do estado do Pará.
6 GERARD, Sider apud THOMPSON, Edward P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradi-
cional. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 22.
7 �����������������������������������������������������������������������������������������������������������
A primeira Revolta de Boa Vista foi um conflito que, iniciado no ano de 1892 na cidade de Boa Vista, extre-
mo Norte de Goiás, envolveu: a Igreja, representada pelo Frei da Ordem Dominicana Gil Villanova; a admi-
nistração goiana e o governo republicano, que chegou a enviar duas forças federais para Boa Vista; e os
coronéis e oligarquias dos estados do Maranhão e de Goiás. Apesar dos períodos de trégua, essa revolta
durou até o ano de 1895. Sobre essa questão ver: PALACÍN, Luis G. Coronelismo no extremo norte de Goiás:
o padre João e as Três Revoltas de Boa Vista. Goiânia: CEGRAF, 1990.
8 MOURA, Ignácio B. de. De Belém a São João do Araguaya: Valle do Rio Tocantins. Rio de Janeiro: H. Garnier,
1910, p. 311-12.

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No excerto acima, Moura expõe que a coleta da castanha era um trabalho


incidental na região onde ficava o Burgo de Itacaiúna, ou seja, não era uma prática
costumeira. No entanto, o próprio Moura, em outro momento de seu relato, afir-
ma em contrário que

as maiores regiões produtoras dela [castanha-do-pará] no Pará são: o


Baixo Amazonas e o Alto Tocantins [região do Itacaiúnas]. Em ambas as
partes, as colheitas se fazem durante o inverno, e, quando aqueles dois
rios enchem extraordinariamente acima do solo plantado de castanhei-
ras [...]. A maior parte ou quase todos os colhedores de castanhas do
Tocantins vêm do sertão do Maranhão e de Goiás, aonde voltam depois
de finalizada a colheita, exceção de alguns que ficam definitivamente
estabelecidos nos sítios [povoados] próximos aos castanhais; por isso
se deve exclusivamente à castanheira e ao caucheiro a pouca coloniza-
ção que já vai aparecendo nas margens do Alto Tocantins paraense.9

A despeito da ambiguidade na exposição de Moura, é consenso na historio-


grafia que a região onde se formou o burgo de Itacaiúnas foi povoada em função
de uma combinação de fatores: a transferência de sertanejos pobres que fugiam
dos conflitos no extremo Norte de Goiás, a exportação da castanha-do-pará e do
caucho, uma das bases para a fabricação da borracha, e o sistema e as condições
de trabalho que obrigavam os apanhadores de castanha a “ficarem definitivamen-
te estabelecidos” nos povoados próximos aos castanhais.
Moura não esclarece as condições que determinavam a fixação definitiva
desses trabalhadores na região, sendo justamente a compreensão desses proces-
sos, assim como das formas por meio das quais eles configuraram a construção do
 286
cotidiano de resistência, negociação e adequação dos apanhadores de castanha
dentro de relações de exploração, que discutiremos aqui. Nesse sentido, esclare-
cemos que, tomadas como práxis social, a resistência, a negociação e a adequação
são dimensões inegligenciáveis do cotidiano de exploração dos apanhadores de
castanha por comporem repertórios significativos de luta.
É importante destacar como a noção de resistência, na forma pensada por
Stuart Hall, constitui-se em uma alternativa de análise, interpretação e explicação
das relações de trabalho à medida que se distancia de uma compreensão de classe
trabalhadora como um instituto organizado. Acerca da noção de resistência, Hall
defende que

por “resistência” sinalizavam-se as formas de desfiliação [...] que, de


certa forma, representavam as ameaças e negociações com a ordem
dominante, que não poderiam ser assimiladas pelas categorias tradicio-
nais da luta revolucionária de classes.10

A ideia de desfiliação, ou melhor, de deslocamento, permite empreender ou-


tras possibilidades de investigação acerca da formação da cultura de trabalho dos
apanhadores de castanha, isso ao se propor que as relações cotidianas significam
não só confrontos abertos com patrões11, mas toda uma variedade de negociações
sutis por meio das quais esses sujeitos buscavam ressignificar sua cultura com o

9 Idem, Ibidem, p. 152-53.


10 HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução de Adelaide La Guardia Resende
et al. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p. 214.
11 Os patrões recebem diversas denominações na região dos castanhais; são nomeados eventualmente de
arrendatários, barraquistas ou aviadores. Aqui, preferencialmente utilizamos o termo patrão, embora em
alguns momentos tenhamos recorrido a uma ou outra das variantes.

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fito de construir espaços de manutenção da vida em meio à luta social. Por outro
lado, uma cultura partilhada por apanhadores de castanha e patrões, os explora-
dores da indústria castanheira, deve ser problematizada, considerando-se a ques-
tão das práticas como um feixe de ações, rituais e valores que se sobrepõe ou
caminha paralelamente.
Por outras palavras, é necessário compreendermos que a cultura constitui
uma mediação entre as tentativas de negociar melhores condições de vida, por
um lado, e a inevitabilidade de uma sofrida submissão, por outro. É nesse senti-
do que o par negociação/resistência cede lugar à adequação, às vezes preferida
como estratégia de manutenção da vida. De fato, à medida que um trabalhador
se encontra na posição de «perdedor» de uma negociação, ele pesa, de um lado, o
«preço» a pagar pela resistência e, de outro, se o caminho não seria “adequar-se”
às imposições do “vencedor”, ao menos provisoriamente, até que surja uma nova
oportunidade de negociar.

Mundo de água e de exploração: O discurso


hegemônico acerca dos apanhadores de castanha.
A Bertholletia excelsa, denominação científica da castanheira, aparece na
região do rio Tocantins, já nas proximidades de sua confluência com o Araguaia,

 287 em sua forma mais densa: imensas florestas que comportam árvores com altura
média entre 25 e 40 metros. Os frutos dessas árvores têm a forma arredondada
do coco: ouriços que, recobertos de um maciço lenho, possuem no seu interior
de doze a dezesseis sementes, as castanhas, que também são revestidas por uma
casca lenhosa. A produção da castanha antecede a década de 1890, mas é a partir
desse período que sua exportação alcança importância na economia do estado
do Pará e, especialmente, na da região do Tocantins: fronteira entre Maranhão e
Goiás. A constituição de um mercado europeu, no qual a demanda pela castanha
cresceu vertiginosamente na década de 1910, foi determinante para a definição do
tipo de exploração comercial e também das (co) formações das relações de traba-
lho praticadas no interior dos castanhais.
Nesta década, a baixa comercial do látex se anunciava, mas substituindo-lhe
surgia o febril comércio da castanha, que podia, conforme Josias de Almeida, ser
divisado “nos batelões que acorriam de todos os pontos espalhados pelas flores-
tas” em direção ao entreposto de Marabá.12 Nos anos que se seguiram a 1914, Ma-
rabá, antigo Burgo de Itacaiúnas, estabelece-se como o centro econômico do Pará,
representando, nas palavras de Umberto Peregrino,

[...] um dos fenômenos mais curiosos da geografia econômica do Bra-


sil. Funciona como entreposto da castanha que sustenta o Pará desde
o desastre da borracha. Já foi engolida por uma enchente, em 1926. A
explicação é que a cidade deve dominar as duas vias de escoamento
da castanha, [pois] o fornecedor precisa estar em boas condições para
fiscalizar os carregamentos que vão surgindo dos castanhais.13

Fiscalizar os carregamentos que eram levados do interior das matas para os


pequenos portos localizados às margens do Itacaiúnas e depois transferidos para

12 ALMEIDA, Josias de. Do Araguaya às Índias Inglezas. São Paulo: Nacional, 1935, p. 66.
13 PEREGRINO, Umberto. Imagens do Tocantins e da Amazônia. Rio de Janeiro: Americana, 1942, p. 27.

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o rio Tocantins, de onde seguiam para Belém, é o argumento padrão, na maioria


dos relatos, para justificar a localização da cidade de Marabá. Articulada a esse ar-
gumento, surge comumente outra razão: o fato de que a cidade fora “armada na
confluência do Itacaiúna, por ser local de fácil embarque [da castanha] que, pelo
alto valor, era muito procurada”.14
Mas a prática da fiscalização, que expõe a importância da localização de Ma-
rabá como uma escolha estratégica daquela indústria, vinculava-se, sobremaneira,
a outra dimensão das relações construídas no interior dos castanhais: o sistema
de aviamento. Esse sistema consistia no costume do patrão ― também conhecido
como barraquista ou aviador ― de fornecer aos trabalhadores as ferramentas, a
alimentação, os remédios e os demais utensílios que seriam usados e consumidos
durante os quatro/cinco meses que, em média, durava a colheita da castanha.
Os patrões construíam barracões nas entradas das matas e neles deposita-
vam toda a espécie de mercadorias que seriam aviadas aos trabalhadores da casta-
nha por preço muito superior ao real valor dos produtos. O regime nos barracões
se dava da seguinte forma: tudo o que era adquirido pelo apanhador de castanha
era anotado em uma caderneta, com um valor majorado pelo patrão. Desse modo,
como ao apanhador era permitido obter mercadorias somente no barracão, ocor-
ria uma inversão na relação de pagamento entre patrão e camarada15, que culmina-
va com a escravidão por dívida e, por conseguinte, com a imobilização permanen-
te deste último no interior da região controlada pelo primeiro.
O aviamento, conhecido na região desde o final do século XIX como siste-
ma de barracão, consistia em uma política de exploração baseada na dominação
do trabalhador. Em termos gerais, essas práticas de dominação se estabeleciam
 288
em duas dimensões: a física, amplamente utilizada até mesmo nos dias atuais na
região dos vales do Araguaia-Tocantins; e a que se baseava na mobilização dos
valores sertanejos com o objetivo de manipular os interesses e as necessidades
dos trabalhadores nos termos dos significados que as práticas de trabalho tinham
para eles próprios.
Quanto à dimensão física da dominação aplicada aos trabalhadores sertane-
jos, os relatos dos médicos Belisário Penna e Arthur Neiva são emblemáticos. Es-
ses médicos, em viagem pelos sertões do Brasil no ano de 1912, descrevem como
funcionava o regime do barracão:

Em toda a zona [...] existe praticamente a escravidão; o barraquista16,


assim se chama o dono do pessoal [dos trabalhadores], alicia gente nas
povoações ribeirinhas e a leva sob promessas de grandes salários para
zona a explorar [...]; no lugar onde se instalam os barracões, funda-se
um armazém de propriedade do barraquista e onde o pessoal é obri-
gado a se fornecer pelos preços impostos pelo proprietário e que são
pelo menos o dobro do corrente no “comércio” mais próximo; ao cabo
de algum tempo, o empregado é devedor e está impossibilitado de sair
[...]. É inútil qualquer fuga ou rebelião, as turmas são guardadas à vista
por capatazes armados e o sistema é [...] generalizado [...].17

14 RODRIGUES, Lysias Augusto. Roteiro do Tocantins. Rio de Janeiro: Nacional, 1935, p. 193.
15 Camarada, segundo Ana Lúcia da Silva, era qualquer trabalhador que fizesse um ajuste de trabalho com
outrem para prestação de serviços na lavoura, pecuária, empreitadas de viagens, extrativismos e serviços
domésticos. Ou seja, em termos gerais, o apanhador de castanha era também um camarada, conforme o
costume e a linguagem regional. Cf.: SILVA, Ana Lúcia. A Revolução de 30 em Goiás. Goiânia: Cânone, 2001.
16 Grifo do autor.
17 NEIVA, Arthur; PENNA Belisário. Viagem Científica: pelo norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco e de
norte a sul de Goiás. Coleção Memória Brasileira. v. 17. 2. ed. Brasília: CEGRAF, 1999, p. 180.

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A dominação física era, nesse sentido, parte das estratégias de exploração da


mão de obra dos sertanejos, constituindo, nessa época, determinada continuidade
com as práticas de escravidão ainda presentes na região. Sobretudo essas práticas
de controle físico eram uma característica marcante da cultura de trabalho que
desde o final do século XIX se instalava predominantemente nas relações sociais
entre homens livres nos vales dos rios Araguaia e Tocantins. Entretanto, trabalhos
como o da cientista social Marília Ferreira Emmi18 propõem uma abordagem dife-
renciada, ao apontar que dentro dos castanhais a escravização era apenas um dos
campos de luta que configuram a dominação.
Ao estudar a estrutura de exploração dos castanhais no Pará entre a última
década do século XIX e a década de 1960, Emmi observa existirem diversas formas
de controle utilizadas por barraquistas e patrões, formas essas que eram susten-
tadas pelo “sistema de dívida e pela força organizada de jagunços e pistoleiros”,
mas também eram constituídas pelo exercício do monopólio que ia desde a apro-
priação da terra até o “monopólio do crédito, do transporte e, aos poucos, sobre
o controle dos castanhais”.19 Dentro dessa multiplicidade de formas de explora-
ção surge, na mesma medida, uma variedade de modos de luta, que variam entre
práticas de resistências e de negociações e que evidenciam a construção de uma
cultura na interface das práticas de escravização, consistindo, igualmente, em um
processo histórico particular.
Partindo da ideia de que essa região foi constituída de forma singular, com-
preendemos que a razão para que a cidade de Marabá, apesar das enchentes, se
 289 mantivesse firme no mesmo lugar pode ser problematizada a partir da indicação
de Peregrino de que sua localização geográfica era definida em razão das condi-
ções propícias que a confluência dos rios Tocantins e Itacaiúnas oferecia para que
o patrão/comerciante pudesse vigiar os passos do apanhador de castanha. As en-
chentes que assolavam a população fixa de Marabá, com efeito, não configuraram
argumento suficientemente capaz de levar a cabo a transferência daquela cidade,
pois a sua localização consistia em uma cerca natural: aquele mundo d’água no
qual ficavam imersos os vastos castanhais favorecia o controle dos apanhadores
e, muitas vezes, sua escravização a um patrão.
Empregado no Serviço da Febre Amarela, divisão do governo brasileiro em
parceira com Instituto Rockfeller, o medico Júlio Paternostro é um dos poucos
prepostos do estado que evidenciam, em sua narrativa, os rastros do cativeiro dos
apanhadores de castanha. As condições de vida dos trabalhadores do sertão, por
um lado, assombram e, por outro, seduzem esse médico que, em maio de 1935, na-
vega o rio Tocantins por várias semanas. Seu contato com os apanhadores de cas-
tanha nos parece singular, ao menos no aspecto em que ele, diferente dos demais
“narradores” com os quais dialogamos aqui, é claro, ao afirmar que a razão que
impedia os apanhadores de, “durante a safra da castanha, [irem] ao povoado para
comerciar” era o interesse dos “aviadores em ‘isolar’ na mata os apanhadores de
castanha”, impedindo-os de sair do castanhal.20
Mas a regulação exercida pelo patrão, a partir do ponto de localização de Ma-
rabá e dos castanhais, não se restringia ao controle da locomoção física dos apa-
nhadores de castanha. Havia a coerção exercida pelos grupos armados, estatais

18 ����������������������������������������������������������������������������������������������������������
EMMI, Marília F. A oligarquia do Tocantins e o domínio dos castanhais. 2.ed. Belém: Gráfica e Editora Uni-
versitária da UFPA, 1999.
19 EMMI, Marília F. Os castanhais do Tocantins e a Indústria Extrativa no Pará até a década de 1960. Paper do
NAEA 166. Belém: UFPA, out. 2002, p. 03. Ver: http://www.ufpa.br/naea/det_publicacao.php?id=78
20 PATERNOSTRO, Júlio. Viagem ao Tocantins. Col. Brasiliana. v. 248. São Paulo: Nacional, 1945, p. 80-1.

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ou particulares, que se colocavam a vigiar a movimentação dos apanhadores de


castanha em função da inculcação da ideia de que toda a população da região de
Marabá era constituída por “fugitivos dos sertões goianos e maranhenses”, que
tendo abandonado suas famílias não tinham qualquer preocupação com os “dias
vindouros”.
Seguindo essa trilha, muitas pessoas e/ou comissões que andaram pelos cas-
tanhais do vale tocantino desde o final do século XIX registraram em seus diários
que a população adventícia de Marabá ou do antigo Itacaiúnas era formada, além
dos patrões da castanha, por trabalhadores sem lei ou costumes. Um exemplo
dessa concepção pode ser encontrado na narrativa produzida pelo aviador Ro-
drigues, referindo-se, no ano de 1931, às suas impressões acerca da população de
Marabá:

Estes [os apanhadores de castanha] naturalmente não traziam as famí-


lias nessa empreitada doida de meter-se no Inferno Verde. [...] Descre-
ver a vida de um “Castanheiro” (tirador de castanhas) é descrever os
sete círculos do Inferno de Dante. Pois bem, essa gente que aqui vem,
“outlaws” de novo gênero [...] vive internado por longos meses [...]
durante os seis meses das águas, épocas das castanhas, a população
adventícia acorre [...].21

A ideia do castanhal como um espaço onde, ao menos até a década de 1930,


a legalidade estava suspensa contribuiu para que os apanhadores de castanha ti-
vessem sido representados como foras da lei. No entanto, essas representações
não eram, por si, a força dinamizadora da exploração, mas um dos elementos que,  290
articulado a outros como a violência, a escravização e a própria constituição de
valores, constituíam um conjunto de relações disputadas e confrontadas nas prá-
ticas construídas na região castanheira. Esse caráter de além-fronteira ― fora da
lei, fora da civilidade, fora dos valores religiosos ― é construído a partir e por meio
de uma visão excludente: a visão construída a partir do discurso estrangeiro de
onde emanavam algumas das concepções que demarcaram o pensamento nacio-
nal acerca do universo castanheiro.
Sobre a influência da visão estrangeira para a constituição do pensamento
nacional acerca dos trabalhadores dos castanhais, encontramos no engenheiro ci-
vil Américo Leonides Barbosa de Oliveira um claro representante. Em 1938, Olivei-
ra esteve na região tocantina, a fim de elaborar um relatório acerca da viabilidade
da navegação dos rios Araguaia e Tocantins para o Ministério da Viação e Obras
Públicas; naquela ocasião ele se interessou pelo extrativismo da castanha, prin-
cipalmente pelos aspectos relacionados à organização econômica da atividade.
Defendendo a necessidade de beneficiar esse produto na própria região, e consi-
derando a sazonalidade um problema a ser resolvido, esse engenheiro apoia essa
sua compreensão na concepção do professor da Universidade de Michigan, o geó-
grafo norte-americano Preston Everett James, que estudou os aspectos humanos
da geografia amazônica. Segundo Oliveira:

O Prof. Preston E. James, da Universidade de Michigan, estudando a


geografia do Brasil impressionou-se com a frouxidão do laço que liga o
homem a terra: na “Hylaea” tocantina, mais do que em qualquer região
do país nota-se o divórcio completo entre o homem e a terra. O explo-
rador investe desaparelhado de tudo e desajudado de todos. A mata o

21 RODRIGUES, Op. cit., p. 193.

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apavora. Mal termina o trabalho, volta apressado, para gozar o fim da


“saison” em Marabá. Ali passa o resto do ano, inativo, sacando sobre a
futura safra, ou regressa ao sertão aproveitando os últimos repiquetes.22

A ideia do explorador sazonal que retira o produto e abandona a terra é um


dos aspectos levantados por Oliveira como sendo o cerne do pensamento de Ja-
mes acerca da ocupação do território amazônico. Na compreensão do engenheiro
civil, ancorando-se em James, existe a necessidade de estabelecer uma normatiza-
ção da produção extrativa que conduza à ocupação e à fixação do homem no ter-
ritório; contudo, na concepção de James, segundo o próprio Oliveira, a responsa-
bilidade dessa situação é do trabalhador, “que não altera seus maus hábitos e sua
frivolidade, buscando antes os ganhos fáceis e rápidos promovidos pelos patrões
e pelos grandes exportadores estrangeiros”.23
Com efeito, muitas das concepções acerca dos trabalhadores sertanejos,
dentre eles os apanhadores de castanha, estão diretamente vinculadas às práticas
de exploração que articuladas à visão de mundo estrangeira terminam por esta-
belecer parâmetros interpretativos que se confrontam com as experiências vivi-
das na região. As ideias estrangeiras se movem entre práticas de exploração e de
controle social, mas encontram, dentro das próprias relações, forças sociais que
lhes resistem. Contudo, sustentada nas ideias de submissão e de indolência que se
alternavam nas narrativas, era a imagem de decadência que prevalecia acerca dos
apanhadores de castanha.

 291 Reflitamos sobre os acontecimentos do verão de 1896, ocasião em que Ig-


nácio Baptista de Moura relata a sua chegada ao Vale do Tocantins. Seu olhar foi
menos surpreendido pelas densas matas de castanhais do que pela imagem da de-
cadência impressa na face do apanhador de castanha. Nas margens do Itacaiúnas,
ele observa velhas casas de palha, habitadas pelos inúmeros grupos que se inter-
navam nas florestas alagadas em busca do precioso fruto da castanheira. Essa in-
dústria, que começava a representar a riqueza do Pará em 1896, surpreende Mou-
ra com a pobreza dos homens que ali “habitam”. Contudo, para esse paraense, a
responsabilidade pela indigência, pela forme, pela doença e pelo fato de ano após
ano o barqueiro de Hades navegar o rio Tocantins, um dos círculos do Inferno de
Dante segundo Rodrigues, em busca “daquela massa de forasteiro” era definida

pelo pouco cuidado com que [aquela] gente ia às matas ― sem calçado,
pisando em charcos, logo pela madrugada, bebendo água das fontes
infecciosas, mal se abrigando em palhoças provisórias, contra as chuvas
abundantes e alimentando-se insuficientemente.24

A despeito de como interpreta a questão da “miséria humana”, aquele fun-


cionário do estado do Pará plasma em sua retina algo que, segundo ele, é belo ver:
“as margens risonhas do grande rio, pelo tempo da colheita, semeadas de sítios
cheios de crianças e mulheres”.25 Após descrever vividamente a decadência dos
trabalhadores da castanha, torna-se difícil precisar o que Moura estaria compreen-
dendo como belo; porém, ao demarcar em sua narrativa a presença de mulheres
e crianças nas matas da castanha, mesmo não esclarecendo os moldes familiares,

22 OLIVEIRA, Américo L. B. O Vale Tocantins-Araguaia: Possibilidades Econômicas, Navegação Fluvial. Rio de


Janeiro: Imprensa Nacional, 1941, p. 35-6.
23 Idem, Ibidem, p. 37-8.
24 MOURA, Op. cit., p. 153.
25 Idem, Ibidem, p. 153.

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ele aponta para um caminho diferente daquele trilhado por Rodrigues, que afir-
mou que os apanhadores de castanha “naturalmente não traziam as famílias nes-
sa empreitada doida de meter-se no Inferno Verde”.26
Rodrigues não chegou a afirmar que inexistiam mulheres nos castanhais,
mas, para ele, a presença feminina estava restrita às prostitutas que se embre-
nhavam nas matas com o objetivo de “reter” o que o apanhador de castanha teria
recebido durante a safra. Segundo esse piloto-aviador, “as mulheres todas são de
todos, desde que haja dinheiro, [...] crian[do] uma mentalidade normal de concu-
binato, dada a maioria desses homens ser casados”.27 No que concerne à domina-
ção, as diferenciadas relações entre homens e mulheres descritas por Rodrigues
nos leva a questionar os significados da articulação construída entre trabalho e
moralidade na região dos castanhais do Vale do Tocantins-Araguaia.
A representação de Rodrigues sobre os apanhadores acerca-se de metáforas
cujos sentidos construídos por esse piloto-aviador articulavam a constituição implí-
cita de normas e valores sociais à prática ideológica de ordenamento hegemônico
com vistas a desqualificar o apanhador de castanha em sua condição de trabalha-
dor. Em sua compreensão, “não havia guias morais [fosse] de qual religião fosse”
em Marabá ou na região, pois, em 1931, “ainda se v[ia] um indivíduo publicamente
amasiado com a mulher do outro, vivendo os três em comum como se fosse a
coisa mais natural do mundo”.28 Afirmar que não houvesse famílias, organizadas
nos moldes tradicionais, na região dos castanhais e que as mulheres ali presentes
fossem todas prostitutas é um argumento que, em primeiro lugar, volta-se para a
ideia de desordem e, por conseguinte, para a necessidade de ordenamento social.
A esse respeito, Rodrigues expõe, sucinta e claramente, que essa regulação social  292
chegaria a Marabá “so[mente] com a lei”.29
Mas a ordem/desordem sobre a qual a lei e seus agentes atuavam preferen-
cialmente não era aquela que tratava das relações amorosas ou conjugais naquele
sertão particular, embora esta última tenha servido muitas vezes de justificativa
para a manutenção e a intervenção de forças policiais nos castanhais. O campo de
atuação dessas forças era, a despeito da manutenção da moralidade, quase sem-
pre “uma desculpa” para controlar os trabalhadores, o que Neiva e Penna esclare-
cem com primor ao narrar a ação da polícia como braço armado dos barraquistas
em 1912.
A “rebelião” ou a tentativa de fuga empreendida por trabalhadores cativos
de barraquistas eram punidas com violência e com força pela polícia, conforme
relatam estes médicos:

as autoridades prestam mão forte [aos patrões] que procura o devedor


fugido e, tivemos o desprazer de ver a prisão de 4 camaradas levados
à viva força para o barracão dum barraquista, já celebrizado em toda a
zona pelos crimes cometidos.30

Entretanto, mesmo na ausência das forças policiais, os patrões não hesita-


vam em manter sua própria milícia, principalmente porque os ataques indígenas
eram uma justificativa plausível para que as turmas de castanheiros fossem “guar-
dadas à vista por capatazes armados e o sistema [era] generalizado [...].31

26 RODRIGUES, Op. cit., p. 193.


27 Idem, Ibidem, p. 193
28 RODRIGUES, Op. cit., p. 193-4.
29 Idem, Ibidem, p. 194
30 NEIVA; PENA, Op. cit., p. 180.
31 Idem, Ibidem, p. 180.

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É nessa perspectiva que as palavras de Oliveira surgem preenchidas de senti-


do: “a castanha é hoje o sustentáculo da máquina administrativa do Pará. Em tor-
no dela giram as leis, os regulamentos, os negócios e as negociatas”.32 Nós acres-
centaríamos: em torno dela gira a construção sobre o apanhador de castanha que
mobiliza valores e padrões morais para legitimar ações que visam regular e norma-
tizar as práticas de trabalho no castanhal.
De certa forma, a própria presença dos prostíbulos e bares servia à prática
de escravização dos trabalhadores da castanha que, como relata Rodrigues, após
longos meses internados nas matas e, voltando a um “lugarejo ou cidade, ao en-
xergar uma mulher, branca, preta, índia, mulata, cabrocha, seja lá o que for, eles
se ‘espalham’”.33 De fato, embora a presença de famílias fosse rechaçada ou ne-
gligenciada em parte das narrativas, a presença de mulheres livres ― como eram
nomeadas as prostitutas ― nos povoados próximos aos castanhais é registrada
desde o final do século XIX. Em 1897, Ignácio Batista de Moura observa que nas
proximidades de Marabá, no lugar chamado Areião, muitos barraquistas manti-
nham mulheres ao seu serviço com o objetivo de

fixar permanentemente os trabalhadores da castanha, que ou se en-


dividavam comprando produtos secos e molhados ou comprando as
benesses das moças que trabalhavam para os mesmos barraquistas for-
necedores dos produtos requeridos pelo trabalhador.34

Muitas dessas mulheres, agenciadas pelos patrões dos próprios apanhado-


 293 res de castanha, eram o instrumento do cativeiro vivido pelos trabalhadores, pois,
não conseguindo saldar seus haveres, tornavam-se presos ao barracão, não tendo,
de fato, outra opção que não a de esperar outra safra vendo sua dívida crescer
dia após dia. Assim como Moura, Rodrigues não parece alheio a essa espécie de
cativeiro do trabalhador junto ao barracão do patrão, pois ao reproduzir a lenda
do pássaro jacamim, presente no imaginário do sertanejo do Vale do Araguaia-To-
cantins, representa alegoricamente a mesma relação entre trabalho e moralidade,
mas dessa vez em uma imagem invertida. Estando ele ainda em Marabá, recebeu
diversos presentes dos moradores da região e dentre eles se achava “um casal
de jacamins, lindas aves pretas, do tamanho de uma galinha, cujo pescoço parece
veludo negro [...]”.35
Os jacamins são aves singulares que, além da beleza ímpar, são conhecidas
por sua submissão à fêmea, cuja característica principal seria a relativa facilidade
com que os machos se fixam definitivamente ao local escolhido por seu par para
construir o ninho. Segundo as lendas amazônicas, Yacamim era uma índia que fu-
gira de sua tribo em busca de um casamento. Encontrada no interior da mata, foi
levada até um guerreiro rebelde e inquieto que por ela se encantara. Contudo,
logo após se casarem, foram tomar banho em um riacho, onde se esfregaram,
por descuido, na erva jacamim ou jacamincá: vendo-se, o casal, transformados nas
aves jacamins.
Transformados nas belas aves negras, o casal deixou para trás tanto a rebel-
dia quanto a inquietude, tornando-se, desde então, seres sedentários que, facil-
mente domesticados, prestavam-se à servidão do terreiro. Conforme Rodrigues,

32 OLIVEIRA, Op. cit., p. 36.


33 RODRIGUES, Op. cit., p. 193
34 MOURA, Op. cit., p. 174.
35 RODRIGUES, Op. cit., p. 199.

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para domesticar o jacamim era necessário ir “na época própria [...] à mata [...] tra-
zer companheira para o quintal, que também se acostuma e fica”, porém o acos-
tumar-se e ficar das aves é traduzido por Rodrigues para a experiência humana por
meio da seguinte expressão: “Quantos jacamins humanos andam por aí?! [...] Que
se domesticam como cachorros”.36
Transpondo essa metáfora para o cotidiano dos trabalhadores nas matas de
castanhais, percebemos vestígios de que Rodrigues relaciona-a com uma das es-
tratégias de exploração construídas pelos patrões: a utilização das “mulheres da
vida” para endividar e finalmente escravizar os apanhadores, uma prática usual
dentro dos castanhais e que Rodrigues, assim como Moura, deve ter tido a opor-
tunidade de observar. Atentando ao significado dessa lenda na narrativa de Ro-
drigues, compreendemos que esse piloto-aviador, ao se referir aos homens que
se deixavam domesticar, estaria aludindo ao caráter da dominação sofrida pelo
apanhador de castanha: a regulação do trabalho exercida pelos patrões por meio
da prostituição.
Contudo, somente no dia 27 de março de 1944, mais de uma década após
sua passagem por Marabá, é que surgem evidências da relação construída por
Rodrigues entre a “domesticação” do jacamim e a dos trabalhadores por inter-
médio das “fêmeas”. Advogando a causa da criação de um território federal que
englobasse o Norte de Goiás e o Sul do Maranhão, publica nessa data um artigo no
Jornal À Tarde, editado na cidade Carolina, estado do Maranhão, apontando que
a causa da pobreza e da decadência da região eram a falta de iniciativa privada, o
esquecimento por parte do estado e
 294
os frouxos laços de moralidade que, além de destruir as famílias, são
artifícios da escravização dos trabalhadores nas fazendas, nas roças e
nas matas de castanhais. A exploração é ajudada pela fraqueza da pu-
dicícia que a par do desleixo experimentado pelos trabalhadores que
frequentam parte do ano o baixo meretrício, se deixa domesticar como
na lenda das aves negras do amazonas.37

A lenda do jacamim orienta, em Rodrigues, a construção de uma metáfora


acerca das relações de trabalho nos vales dos rios Araguaia e Tocantins, mas não
se trata apenas de pensá-la como uma representação vazia de significados sociais.
Ao contrário, ela exemplifica relações concretas que vinculam uma “moralidade”
específica às intervenções dos patrões na e para a regulação do trabalho que, de
certa forma, reforçou os repertórios de exploração e de resistência cotidiana dos
apanhadores de castanha no espaço próprio onde constituíram seus modos de
viver. Nesse sentido, historicizar o cotidiano desses trabalhadores, como faremos
a seguir, pode lançar luzes sobre os significados das narrativas acerca de seus mo-
dos de viver.

Sem sol e sem luz: o cotidiano e a experiência de


exploração do apanhador de castanha
Problematizar o cotidiano dos apanhadores de castanhas nos leva por ou-
tros caminhos que não aqueles que nos querem conduzir os discursos e as práticas

36 RODRIGUES, Op. cit., p. 199.


37 RODRIGUES, Lysias A. apud ROCHA, Paulo. O sonho tocantinense nas páginas da imprensa. Brasília: Editora
Singular, 1989, p. 218.

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de estrangeiros ou de alguns agentes do estado brasileiro. De fato, produzir esse


deslocamento pressupõe pensar a experiência familiar do castanheiro em articula-
ção, tanto com suas práticas de resistência e/ou adequação quanto com as mano-
bras e estratégias de exploração e dominação mobilizadas pelos patrões.
Os relatos sobre os quais lançamos nosso olhar são, em parte, os mesmos
por meio dos quais, acima, buscamos analisar as concepções de estrangeiros e na-
cionais que, a serviço do estado ou em missões de estudo, estiveram na região dos
castanhais e registraram suas impressões e concepções sobre as práticas sociais
naqueles espaços. Médicos, aviadores e barraqueiros se dedicavam a atividades
variadas, contudo, tinham em comum o fato de compreenderem aquela realidade
como parte de um mundo diferente daquele de onde vinham, e, por conseguinte,
viam-no por um prisma diferente dos que ali construíam suas experiências de viver
e trabalhar. Entretanto, esses homens construíram visões acerca do universo dos
castanheiros que se contrapunham quanto aos significados informados pelas prá-
ticas de trabalho.
De um lado, havia os que propunham que a decadência nas relações de tra-
balho e no cotidiano, marcado pela pobreza e pela prostituição, era algo inevitá-
vel, caso do engenheiro Ignácio Baptista Moura que, observando as duras vidas
dos trabalhadores da região, compreende-as como uma instância naturalizada das
relações sociais no sertão. De outro lado, há os que assinalaram em suas narrativas
a exploração dos trabalhadores da castanha e o quanto as relações de trabalho no
sertão eram diversas das do litoral, caso do médico Júlio Paternostro, que busca
dar um tom de denúncia aos seus relatos.
 295 Perscrutaremos, enfim, o relato de memória da professora Ana Rosa Rodri-
gues, que constitui, de um lado, evidências e indícios da realidade vivida cotidiana-
mente pelo trabalhador da castanha e, de outro, um espaço narrativo que disputa
os significados acerca do universo dos apanhadores de castanha. No relato Lem-
branças de um castanheiro do Pará, publicado em 1942, encontramos vestígios de
uma história silenciada, a história dos trabalhadores sertanejos que, mesmo antes
de a historiografia lançar-lhe um olhar de esguelha, já era visitada pela pena dos
memorialistas. Com efeito, antes dos historiadores, outros sujeitos andaram e fa-
laram sobre as regiões centrais do país, banhadas por rios, produtoras de riquezas
e principalmente regiões onde pessoas viveram, e ainda vivem, e constroem suas
histórias.
Paternostro foi um desses homens que visitou o sertão. Navegando em uma
embarcação gaiola38, durante o mês de maio de 1935, Paternostro descreve o coti-
diano dos apanhadores de castanha de forma similar à que Moura relata ter visto
em sua viagem no ano de 1896, embora os sentidos atribuídos pelo médico sejam
bem mais explícitos que os do engenheiro. A esse respeito, não é improvável que
o interesse pela história clínica dos sertanejos o tenha conduzido a construir uma
narrativa preenchida dos costumes e das práticas cotidianas dos trabalhadores da
castanha. A paisagem dos castanhais, descrita por Paternostro, era o interior das
matas por onde corriam igarapés, os quais os apanhadores de castanha atravessa-
vam a pé ou em canoas, quando mais profundos:

O trabalho consist[i]a em catar os ouriços dos vários pés e juntá-los em


montes. Quebram-nos quer com um pedaço de pau, quer com um facão
a que chamam “colin”, e soltas as castanhas [...] recolhem-nas a um
cesto chamado “panero” ou “joão maxim”.39

38 Gaiola é uma embarcação a motor movida à gasolina, típica dos rios Tocantins e Amazonas, apropriada
para águas de navegação franca.
39 PATERNOSTRO, Op. cit., p. 83-4.

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Panero é o nome que Júlio Paternostro utiliza para identificar o cesto que,
inclusive, ainda hoje é muito utilizado para o transporte de produtos extrativos da
lavoura, na região dos vales do Tocantins-Araguaia. Em média, cada cesto compor-
tava sessenta quilos de castanha, que eram transportadas nas costas do apanha-
dor do centro da mata até as pontas, locais onde embarcações esperavam para
embarcar o produto em direção a Marabá. Dos centros das matas de castanhais
até essas pontas, o percurso nunca era inferior a quinhentos metros, o que tor-
nava o trabalho extenuante. Entretanto, cansaço sofrido pelo trabalhador casta-
nheiro não pode ser compreendido apenas como um trabalho penoso, pois aquela
experiência conduzia, para além da fadiga, à invalidez e à morte do trabalhador.
Moura também aponta a precariedade da vida dos apanhadores, quan-
do diz que, “perseguidos pelas febres intermitentes, muitos eram dizimados
anualmente”.40 A manifestação lacônica de Moura, ao informar sobre a “dizima-
ção” do trabalhador da castanha, talvez ocorra em razão de esse engenheiro res-
ponsabilizar o próprio trabalhador pela situação. Não obstante, do termo dizima-
do surgem rastros de uma carga sintagmática que vale a pena perseguir em outros
relatos da mesma época ou de épocas aproximadas, isso porque podem revelar
indícios da realidade do trabalhador nas regiões centrais do Brasil entre o fim do
século XIX e as primeiras décadas do século XX.
Em Paternostro, esses rastros estão particularmente marcados quando ele
destaca que as condições precárias da vida determinavam a doença, a invalidez
e a morte do apanhador de castanha. Esse médico descreve pontualmente algu-
mas das doenças que atacavam os trabalhadores dos castanhais, o que nos auxilia
a entender as experiências que preenchem o sentido da “dizimação” cotidiana  296
enunciada por Moura. Segundo Paternostro:

Além da malária endêmica, tive notícia de uma infecção que nos meses
de maio a junho vitima os extratores de castanha. Segundo informa-
ções dum Sr. Juvêncio Alves, em 1924, esta doença matou trinta indi-
víduos em Joana Peres. Os sintomas descritos coincidem com os dos
casos clínicos observados pelo Dr. Júlio Barcas de Marabá. Febre, vômi-
to, escarros sanguinolentos. Parece tratar-se duma forma epidêmica de
bronco-pneumonia, a que os nativos chamam catarro.41

Paternostro faz referência, em primeiro lugar, às mesmas “febres intermi-


tentes” que, em 1896, Moura também havia feito. Entretanto, o médico detém-se
com mais vagar a descrever as doenças do sistema respiratório, comuns entre os
apanhadores, em razão das longas temporadas que eles permaneciam nas úmidas
e sombrias florestas de castanheiras. Mas as razões de Paternostro, ao apresen-
tar a sintomatologia dessas doenças, ultrapassam o interesse clínico; na verdade,
essa exposição é o fechamento de uma argumentação, sutil é verdade, acerca das
condições de trabalho daqueles trabalhadores. Vejamos como ele narra ser a vida
do apanhador:

Durante a safra da castanha, os habitantes da mata não vão ao povo-


ado para comerciar ou tomar parte em funções religiosas e festivas.
[...] Os arrendatários e “aviadores” utilizaram-se dos meios de trans-
portes [indo às pontas buscar a castanha ao contrário de permitir que o
trabalhador vá ao povoado] para “isolar” na mata, os apanhadores de
castanha [...].42

40 MOURA, Op. cit., p. 153.


41 PATERNOSTRO, Op. cit., p. 82.
42 PATERNOSTRO, Op. cit., p. 82.

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A explanação sobre as doenças e a morte daqueles trabalhadores é, confor-


me interpretamos, o fechamento de uma relação que Paternostro procura cons-
truir entre trabalho e doença, identificando-a com o processo de dominação coti-
diana que os “párias do interior do Brasil” experimentavam sob o jugo dos patrões.
De fato, para Paternostro, as doenças sofridas pelos trabalhadores sertanejos são
resultado de seu cotidiano de trabalho, mas não a causa: a razão seria a exploração
e a dominação experienciada por aqueles sujeitos que, vivendo isolados no casta-
nhal, também estariam exilados de quaisquer direitos como trabalhadores.
Procurando entender a relação entre discurso médico e políticas saneadoras
do sertão, Nísia Trindade Lima problematiza as conclusões de Paternostro acerca
do universo sertanejo, presentes em Viagem ao Tocantins. Lima esclarece, opor-
tunamente, que, para o médico, a ideia que prevalece é a de um sertão distante,
separado geográfica e, sobretudo, culturalmente do restante do país, derivando
dessa concepção a compreensão de que o progresso chegaria à região dos casta-
nhais somente quando se voltasse para o litoral, buscando seguir a civilização.43
Concordamos com Lima no que se refere à concepção de Paternostro sobre
o sertão. Contudo, há na narrativa do médico ao menos um aspecto que o dife-
rencia da maioria das pessoas que viajaram pelo sertão e pelas regiões centrais
do Brasil: ele não responsabiliza exclusivamente os trabalhadores sertanejos pela
“decadência” na qual estão inseridos. Especificamente quanto aos apanhadores
de castanha, Paternostro defende que as condições de vida daquelas pessoas são
consequência de práticas atrasadas dos patrões, resultando disso o fato de se tor-
 297 narem sujeitos enfermiços. Nesse caso, a vinculação construída entre trabalho nos
castanhais e doenças vai além dos interesses profissionais do médico: trata-se de
sua compreensão social acerca da experiência cotidiana dos apanhadores de cas-
tanha no hinterland.
Quando nos detemos com mais atenção no próprio vocabulário médico que
Paternostro mobiliza, percebemos que em muitos momentos de sua narrativa o
foco não é a ciência, mas a sociedade e, mais propriamente, uma cultura do traba-
lho. A sociedade que ele vê nas regiões centrais do Brasil é traduzida para um voca-
bulário clínico, cujo sentido metafórico propõe expressar a compreensão daquele
médico sobre os sistemas sociais de exploração. A doença que grassava na região
de Marabá era, na visão de Paternostro, fruto das condições de trabalho que, con-
forme um relato da época sobre a vida de um castanheiro, reduzia os homens,
“ainda jovens, a trapos humanos. Meu avô e meus tios morreram todos antes de
completar cinquenta anos. Vítimas do castanhal: febres, flechas, frio, fome. Honra-
dos, se deixaram vencer pela força da mata”.44
O trecho acima, embora escrito com um tom nostálgico, relata a vida de um
apanhador de castanha que viveu em Marabá a partir de 1914 e cujo elo com o que
descreveu Paternostro se dá pela ideia de que o trabalho no castanhal aniquilava
as pessoas ou, como disse Moura, dizimava, anualmente, muitas delas. Para Pater-
nostro, contudo, a palavra doença constituía um duplo significado: de um lado era
uma consequência do sistema de exploração do capitalista; de outro, a metáfora,
adequada para designar a patologia social que assolava o sertão e cujo represen-
tante mais próximo eram os patrões que

43 LIMA, Nísia Trindade. Uma brasiliana médica: o Brasil Central na expedição científica de Arthur Neiva
e Belisário Penna e na viagem ao Tocantins de Julio Paternostro. In: História, ciência, saúde. Mangui-
nhos. v.16  supl.1. Rio de Janeiro.  jul. 2009. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-
59702009000500011&script=sci_arttext. Acessado em: 20/04/2012.
44 RODRIGUES, Ana Rosa. Lembranças de um castanheiro do Pará. Belém: Lusíada, 1942, p. 39.

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alugam os sertanejos para apanharem as castanhas. Em todo o vale


do Tocantins usa-se o verbo alugar em vez de empregar. Exprime com
nitidez a situação em que se encontram os sertanejos, da classe dos
párias de nossa civilização. Há mais de cem anos que trabalham numa
pátria onde não se lhe reconhecem os direitos, invalidam-se, morrem
no serviço, sem a menor assistência. Constituem um exército de doen-
tes sociais.45

Embora voltasse o olhar para o cotidiano de exploração do apanhador de


castanha, Paternostro, interessado em encontrar no interior do país experiências
produtivas cujos critérios de normalização do trabalho assegurassem alguns direi-
tos aos trabalhadores, ao não encontrar tais condições, parece não compreender
que os sertanejos que trabalhavam nos castanhais, mesmo não tendo acesso a
“direitos trabalhistas”, elaboravam e reelaboravam as experiências de opressão a
que estavam submetidos em seu próprio “viver o trabalho”. No limite de sua com-
preensão desses sujeitos como vítimas passivas do sistema vigente, àquele médi-
co somente foi possível assinalar as condições miseráveis dos trabalhadores, mas
há evidências de outras dimensões das experiências de trabalho dos apanhadores
de castanha, principalmente no que concerne às negociações e às resistências.

Memórias ilhadas: família e escravidão nas matas do


castanhal
Voltemo-nos para um dos poucos relatos memorialísticos acerca de um apa-
 298
nhador de castanha que resistiu ao tempo. Publicado no ano de 1942, Lembranças
de um castanheiro do Pará é um relato no qual a professora Ana Rosa Rodrigues
narra as lembranças de Braulino Rosa Rodrigues, seu pai, acerca dos “tempos que
vivia no castanhal sofrendo o rigor das chuvas e o ataque das febres”.46
Sobre Rosa Rodrigues não há muitas informações, além do fato de ter sido
“levada de Marabá, em 1919, pela família de um sírio que comercializava naque-
la praça, e criada em Belém”47, onde teve a oportunidade de estudar, formando-
-se professora. Na introdução desse relato de memórias é a própria autora quem
esclarece ter ido residir em Belém e somente ter retornado a Marabá “em 1935,
depois das primeiras viagens de avião, onde passou a lecionar em uma escola”48,
talvez a primeira do lugar.
As lembranças de Braulino Rosa são parte de uma memória familiar que ele
compartilhou socialmente com os habitantes das matas de castanhais e que a au-
tora reconstrói na interface de mundos diferentes, porém interligados. Apoiando-
-se na norma culta da língua, a autora inscreve em sua narrativa o rumor de uma
oralidade cuja compreensão não parece ser difícil para ela. Por outro lado, o mun-
do do letramento que Rosa Rodrigues “conheceu” em Belém também atravessa a
memória reconstruída por ela sob a forma de um discurso permeado pelas concep-
ções e convenções da classe dominante acerca do trabalho e dos trabalhadores.
Braulino Rosa, pai da autora, nasceu no final da década de 1880 em uma fa-
zenda na “beira do rio Itapecuru”, Sul do Maranhão. “Sua mãe, d. Alfonsina, já tinha

45 PATERNOSTRO, Op. cit., p. 83.


46 RODRIGUES, A. Rosa, Op. cit., p. 12
47 Idem, Ibidem, p. 05
48 Idem, Ibidem, p. 05

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nove filhos, e não pensava em parar, o pai dizia: ‘que muié era pra parir i home pra
criar’ e assim foi até a aurora do século”49, quando a febre da borracha levou a família
Rodrigues para a região de Conceição do Araguaia, cidade no Sul do estado do Pará.
Contudo, quando no ano de 1914 a crise da borracha se instalou, o “pai de Braulino,
com d. Alfonsina e mais os 15 meninos, se mudaram para o castanhal do Itacaiúnas”.50
No final da década de 1910, contando com aproximadamente vinte e cinco
anos de idade, Braulino Rosa já era apanhador de castanha respeitado entre os
camaradas por “conseguir coletar mais de um hectolitro do fruto por dia”. Segun-
do a autora, o pai era um homem “muito trabalhador, desde a juventude, e que se
orgulhava de nunca ter sido chamado no barracão por qualquer causa”51, e com-
plementa narrando como começava o dia do apanhador de castanha:

Nas sezões [febres] do período da safra, dormitava somente até seis


horas da manhã e seguia para o meio da mata. Não entrava mais cedo
porque seu irmão, o Afonso “descuidou e um bago [ouriço] de castanha
caiu na cabeça”. Despreocupado [Afonso], esqueceu que a castanheira
desprende o ouriço quando recebe o orvalho da madrugada, e foi acha-
do morto no dia seguinte. [Braulino] entrava com o calor do sol, pois
que sol mesmo não se via “no ponto da panha”, e começava a lida. Pés
na botina, o direito inteiro, o esquerdo rasgado, entrando água, o que
não fazia muita diferença, pois seus pés já eram carcomidos de frieira,
após 10 anos pisando no charco. Voltava para a palhoça onde se abri-
gava, mal e mal, das imensas tempestades por volta das três horas da
tarde, pois a partir desse horário não divisava mais o ouriço no chão

 299 enlameado.52

No trecho acima, as chuvas assinalam não apenas o período que naturalmen-


te era propício à coleta, mas a penúria de se viver sob uma luz difusa, ilhado nos
igarapés úmidos, quando não fazia diferença estarem calçados ou descalços, abri-
gados ou ao relento, pois, presos naquele mundo d’água, estavam sempre enchar-
cados. Mas os signos dos grilhões nos quais viviam metidos os apanhadores de
castanha surgem na escrita de Rosa Rodrigues também sob outras formas que não
somente “o aguaceiro dos meses de dezembro a maio”.53
Braulino Rosa, narra Rosa Rodrigues, saía cedo de casa e deixava a mulher
alimentando o fogo: “difícil de ser mantido, [pois] que as madeiras estavam sem-
pre úmidas”.54 Não há informações se a esposa, d. Januária, acompanhava o mari-
do até os locais onde seria feita a “panha do dia”, mas a autora consigna que

iam junto com ele três de seus irmãos mais novos e os dois filhos mais
velhos [...]. Chegavam ainda dia, mas escuro, de volta a casa com os
ossos frios [...] meu irmão mais novo foi atacado de asma, conhecida no
castanhal com “puxado”, meu pai correu no barracão e deram-lhe mui-
tos comprimidos, que ele não consegue lembrar o nome, mas que não
salvou o menino. Sobre esta tragédia, o que mais marcou a lembrança
de meus pais não foi o pormenor do acontecido com meu irmão, mas a
consequência dos comprimidos, “descontrolou a conta no barracão” e
nunca mais puderam sair.55

49 RODRIGUES, A. Rosa, Op. cit., p. 12


50 Idem, Ibidem, p. 12.
51 Idem, Ibidem, p. 12.
52 Idem, Ibidem, p. 36
53 Grifo nosso.
54 RODRIGUES, A. Rosa, Op. cit., p. 12
55 Idem, Ibidem, p. 57.

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Dois aspectos da experiência narrada acima são primordiais em nossa análi-


se. De um lado, a presença de uma família vivendo e trabalhando cotidianamente
no interior do castanhal; de outro, as relações entre vida familiar e escravidão por
dívida enunciada pela autora. Detenhamo-nos, inicialmente, sob o primeiro aspec-
to. Como vimos anteriormente na narrativa do piloto-aviador Lysias Augusto Ro-
drigues, foi consignada a ausência de famílias, no sentido tradicional do termo, nas
matas de castanhais. A presença de mulheres foi por ele reduzida às que constituí-
am a “classe das prostitutas” e sobre crianças não há quase nenhuma informação.
Além de Ana Rosa Rodrigues e de Ignácio Baptista de Moura, um dos poucos a
destacar a presença de crianças naquela região é Paternostro que, em 1935, narra:

Deixamos Joana Peres [povoado situado no Vale do Tocantins], depois


dum carregamento de 38 hectolitros de castanha. Entre os carregado-
res vimos duas crianças de 08 anos de idade, que receberam 500 réis
pelo trabalho de duas horas.56

Diferentemente do relato daquele piloto-aviador, o de Paternostro evidencia


a presença de famílias não apenas morando nas proximidades dos castanhais, mas
trabalhando também no seu interior. Mas é no relato de Rosa Rodrigues que esse
aspecto da vida no castanhal aparece com clareza: os filhos e irmãos de Braulino
Rosa habitavam o castanhal durante a safra, embora não somente nessa época.
Quanto à esposa deste apanhador, ela certamente residia com os filhos nas pon-
tas e, embora não possamos afirmar com certeza, não é improvável que eventual-
mente trabalhasse na coleta de castanhas.
Na verdade, o comerciante de borracha Almeida relata que, em 1912, algu-
 300
mas famílias, sofrendo os primeiros efeitos da crise da borracha, se mudavam para
os castanhais, onde “mães, pais e filhos trabalhavam até dez horas por dia para
completar a cota exigida pelo patrão”.57 Paternostro não relata, especificamente,
nenhuma experiência com mulheres apanhadoras de castanha, mas ao narrar al-
guns aspectos do cotidiano no castanhal diz:

O apanhador de castanhas atravessa riachos a pé, ou, de canoa, quando


mais profundos. Acompanha picadas, penetra nas matas quase despro-
tegido, descalço, busto descoberto, chapéu de carnaúba e calça curta.
Muitas vezes seguem-no a mulher e os filhos, que o auxiliam na faina.58

Das narrativas acima, é possível apreender que famílias compostas de espo-


sas e filhos não eram tão incomuns no cotidiano de trabalho no castanhal. De fato,
o outro aspecto que nos referimos acima, a escravidão por dívida, está diretamen-
te vinculado à experiência familiar no interior das matas. Rosa Rodrigues e Pater-
nostro evidenciam traços dessa realidade, cujos significados são disputados nos
relatos sobre o universo castanheiro. Principalmente Rosa Rodrigues expõe como
para o apanhador de castanha a presença de seus familiares era um fator sobre o
qual pesava uma responsabilidade: miscelânea de afetividade “pelos seus” e resig-
nação diante da necessidade de se submeter ao patrão em muitas e variadas situa-
ções. Com efeito, é por essa razão que Rosa Rodrigues conta a história de Braulino
Rosa, entremeando aspectos da sensibilidade e da responsabilidade sertaneja:

56 PATERNOSTRO Op. cit., p. 81.


57 ALMEIDA, Op. cit., p. 68.
58 PATERNOSTRO, Op. cit., p. 81.

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Naquele dia, a febre atingiu com muita força o menino. Meizinha [re-
médios caseiros] não adiantava. Meu pai dizia: “Ver o menino naquele
‘sufrimento’ não tava aguentando”. Foi ao encarregado do barracão
que lhe entregou os remédios e fez as anotações no caderno de conta.
Ele voltou aliviado para casa, pensando que a vida do filho estava salva.
Mas depois de três dias ele morreu nos braços de minha mãe [...]. Brau-
lino [o pai da autora] olhava de longe, com olhos duros e perdidos de
dor, seguro no punho da rede.59

O “sofrimento silencioso” de Braulino resulta tanto do amor por seu filho


quanto da frustração por não ter conseguido cumprir sua responsabilidade: pro-
teger sua família, um importante valor para o sertanejo do Vale do Tocantins-
-Araguaia. A responsabilidade de proteger os seus, no caso de Braulino Rosa, está
vinculada a uma dimensão da vida sertaneja que, apesar da complexidade das rela-
ções familiares, ainda é determinada por um código de honra mais ou menos rígido
e que tem entre suas regras a obrigação do pai pelo sustento e proteção dos filhos
e da mulher.
Outra dimensão importante é que a própria narrativa de Rosa Rodrigues se
constitui em uma forma de resistência que, ao se contrapor às concepções que
procuram pensar o apanhador de castanha ora como vítima, ora como “marginal”,
busca construir sentidos diferentes para as práticas desses trabalhadores. Perce-
be-se em sua narrativa uma disputa, de narrativas diferenciadas, de uma memória
ambígua, mas que não se quer vitimizada e nem marginalizada e por isso protesta

 301 contra os significados da outras narrativas, com as quais trava um combate.


Não alcançar, apesar de todo o esforço, que o filho sobrevivesse, marca
Braulino Rosa não apenas no campo afetivo, mas na dimensão da honra sertane-
ja. Contraíra uma dívida e nela estaria preso até a morte, não exclusivamente em
função do controle físico ― que a ideia da prisão em um mundo d’água represen-
ta muito bem ―, mas da subordinação a que estava vinculado culturalmente. De
fato, a metáfora do castanhal como uma ilha, cercada de água por todos os lados,
representava na narrativa de Rosa Rodrigues tanto o controle do escoamento da
produção quanto a dominação e as tentativas de ordenamento social e cultural
que os patrões infligiam aos apanhadores de castanha por meio do controle dos
recursos e dos meios disponíveis com os quais estes últimos podiam tratar e cui-
dar de seus familiares. E era assim que ela protestava em sua narrativa: que fosse
assim narrada, assim compreendida.
Esse controle não poucas vezes era exercido socialmente com o reconheci-
mento das regras da subordinação por parte do apanhador de castanha, quando,
por exemplo, negava-se a fugir à palavra empenhada ou a não reconhecer um dé-
bito, mesmo quando exorbitantemente aumentado. Sobretudo, a legitimidade da
dominação exercida e reconhecida como parte do cotidiano dos apanhadores de
castanha é um campo da hegemonia cultural construída e partilhada nesse sertão,
não apenas pelos apanhadores de castanha, mas também por muitos grupos ser-
tanejos que de uma forma ou de outra constituíram uma rede de valores sociais
que sancionava o controle hegemônico dos grupos dominantes sobre as classes
trabalhadoras.
Esse é o caso de Rosa Rodrigues, que mesmo filha de Braulino Rosa, um apa-
nhador de castanha, está presa a essa legitimidade. De suas próprias lembranças
acerca do pai, Rodrigues afirma:

59 RODRIGUES, A. Rosa, Op. cit., p. 58

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Meu pai, me lembro bem, era um homem cordato, de poucas palavras,


quase calado. Resignado, conhecia seu lugar, mas era um homem de
palavra, cumpria o que prometia. Orgulho nele, só de não faltar com-
promisso. De sua vida, ainda agora na velhice, o que tem de mais forte
é o reconhecimento de que foi seu patrão que lhe permitiu criar meus
irmãos.60

A compreensão de Rosa Rodrigues sobre o caráter de seu pai é representativo


da legitimidade que os valores da classe dominante alcançam entre os sertanejos
quando se trata das relações de trabalho. Corroborando essa visão de um sertanejo
“passivo” e “resignado”, o frei dominicano José Maria Audrin escreveu em 1947:

O sertanejo está destinado, pela sorte, a viver longe dos meios chama-
dos civilizados, privado de muitas vantagens de que gozam os habitan-
tes das zonas adiantadas. De tudo quanto lhe foi recusado pelo destino,
recebe, de vez em quando, informações detalhadas, talvez exageradas,
que não deixam de fazê-lo sonhar. E, todavia não se lamenta, nem é
atormentado pela inveja. Suporta, de bom grado, as dificuldades e pri-
vações [...] e chega a gostar da solidão e aspereza de sua existência.61

A “resignação imperturbável” que Audrin explicou ter sido forjada por “pro-
fundas convicções religiosas” e ser uma característica geral dos sertanejos que ha-
bitavam, nas primeiras décadas do século XX, os vales dos rios Araguaia-Tocantins,
foi descrita por Rosa Rodrigues como um traço particular do caráter de seu pai,
cuja origem parecem ser as tradições e os valores sociais do sertão dos vales. Não
cabe nos limites deste artigo problematizarmos as aproximações e os distancia-  302
mentos entre as dimensões religiosas e costumeiras dessa “resignação” na cons-
trução da dominação e da legitimação da escravização por dívida, porém, para
além da tradição cultural ou religiosa, parece-nos pertinente afirmar que, diante
das experiências partilhadas no interior dos castanhais, os trabalhadores faziam
suas escolhas de acordo com as condições e com as possibilidades que poderiam
ser vislumbradas em seus horizontes.
Por outras palavras, não é improvável que Braulino Rosa, antes de assumir a
dívida “resignadamente”, tenha avaliado suas reais condições de manter a famí-
lia e de “escapar” das consequências físicas, escolhendo, ao final, permanecer no
castanhal. Não se trata apenas de submissão, trata-se de ser capaz de entender os
caminhos da negociação e da resistência em meio aos espaços da dominação por
meio da adequação a determinadas situações que, como experienciavam os apa-
nhadores de castanha, poderiam ser transitórias e culminarem, ao menos poten-
cialmente, em novas negociações e/ou resistências futuras. No caso dos apanha-
dores de castanha, os caminhos da resistência e da negociação eram uma opção
pouco segura e, em função das sutilezas presentes em sua constituição, dificilmen-
te identificáveis nas evidências deixadas para a posteridade.
Em se tratando, especificamente, das práticas de resistência desses traba-
lhadores, podemos demarcar com segurança, como apresentado na primeira par-
te deste artigo, que as tentativas de fuga foram uma das estratégias que expres-
savam a potencialidades dos trabalhadores para resistir à exploração. Com efeito,
em muitos dos relatórios de funcionários públicos que passaram pela região dos
castanhais, tenham sido eles militares ou civis, há referências ao fato de que o
apanhador de castanha vivia permanentemente vigiado. Além disso, na maioria

60 RODRIGUES, A. Rosa. Idem, Ibidem, p. 18.


61 AUDRIN, José Maria. Sertanejos que eu conheci. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963, p. 118.

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dessas referências, essa prática é explicada como parte do arsenal de controle dos
patrões, cujo fito seria impedir aqueles trabalhadores de fugirem ou de descansa-
rem de suas fadigas cotidianas.
Entretanto, Paternostro apresenta, durante sua passagem pelo castanhal de
Joana Peres, alguns elementos que nos encaminham para outras possibilidades de
resistência que não apenas a fuga ao cativeiro. Esse médico, ao narrar suas impres-
sões acerca da indústria da castanha, afirma, como vimos acima, que os patrões
impediam seus apanhadores de saírem das matas, o que, inicialmente, parece ser
apenas uma estratégia de controle dos trabalhadores. Mas o que escreve algumas
linhas abaixo ilumina outra perspectiva:

Os aviadores e arrendatários (nome que se dá aos comerciantes do Bai-


xo Tocantins) utilizaram-se dos meios de transporte modernos para iso-
lar, na mata, os apanhadores de castanha, extinguiram a especulação
da época dos barcos a remo, nos quais os párias transportavam os pro-
dutos silvestres para vendê-los nas vilas. [Hoje] nos “portos” das áreas
exploradas o preço da castanha e das mercadorias é compulsório.62

É necessário aqui buscar ler nos silêncios de Paternostro as práticas dos apa-
nhadores. Quando esse médico expõe que os trabalhadores da castanha têm sua
mobilidade restrita pelos patrões, não está, exclusivamente, apontando para a
questão da escravização por dívida, mas enunciando uma estratégia para controlar
o produto do trabalho do apanhador que, dentro de suas possibilidades, procurava
 303 levar suas castanhas para a vila e negociar longe dos olhos e dos preços compulsó-
rios de seus patrões. Nesse sentido, os barcos a vapor significaram um braço forte
ao patrão que, indo buscar a produção nas pontas dos castanhais, impedia que os
trabalhadores levassem as castanhas coletadas para a cidade de Marabá em “suas
pequenas embarcações”. A questão era o controle da produção de castanhas.
Nessas situações, o apanhador de castanha era ilhado nos centros da mata
e mantido isolado até o fim da safra. O isolamento era garantido pela presença
de um vigia que era pago pelo “dono do castanhal” para combater os ataques de
índios e, principalmente, para impedir que os trabalhadores se dirigissem às vilas
e conseguissem comercializar sua safra por um preço melhor do que aquele pago
pelo “patrão”. No relato de Rosa Rodrigues, encontramos uma referência a essa
prática, quando diz:

Dentro do calado [silêncio] de Braulino Rosa, estava não apenas a tris-


teza pela morte do filho, mas o desgosto pelo que ele considerava “a
vergonha maior da família”: o irmão de d. Afonsina [esposa de Braulino
Rosa e mãe da autora] que, depois de tirar do castanhal o que não lhe
pertencia durante anos, foi “pego no pulo” pelo vigia. Levou uma surra
pra não esquecer, e apesar de tudo, depois fugiu, tinha suas reservas
e parece que ficou rico. Não se sabe, meu pai [Braulino Rosa] não diz
seu nome e nós, concordando com ele, esquecemos do tio, também
morreu.63

Não é possível saber mais acerca do cunhado de Braulino Rosa e nem mesmo
Rosa Rodrigues esclarece. Contudo, considerando-o um acontecimento e sujeito
representativo de uma prática que parece não ter sido única, podemos fazer algu-
mas inferências. Em primeiro lugar, evidencia-se um “jogo de valores” que, cons-

62 PATERNOSTRO, Op. cit., p. 81


63 RODRIGUES, A. Rosa, Op. cit., p. 64

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truindo um amálgama entre honestidade e lealdade, busca estabelecer uma rede


de submissão às regras sociais do capitalismo.
Com efeito, a forma como Rosa Rodrigues encerra o capítulo que trata da
personalidade de Braulino, afirmando que seu tio, assim como seu irmão, também
estaria morto, reapresenta o espaço em que, no cotidiano dos apanhadores de cas-
tanha, a exploração capitalista construía sua versão cultural: os valores sertanejos.
O irmão de Rosa Rodrigues morrera de uma febre, ou seja, de morte natural; seu
tio não morrera de fato, mas estava morto socialmente para Braulino Rosa, para
a autora e, possivelmente, para a cultura e para a sociedade castanheira, por ter
transgredido a ordem social estabelecida no sertão em meio às negociações e às
adequações dos trabalhadores.
Em segundo lugar, a própria autora relata que seu tio, “apesar de tudo, de-
pois fugiu, tinha suas reservas e parece que ficou rico”. As informações são apenas
essas, mas a expressão “apesar de tudo” pode significar não apenas a “vergo-
nha”, mas também uma saída, uma possibilidade de transgressão e de luta contra
a exploração. Isso não é improvável, pois Moura é um dos que registra o fato de a
castanha-do-pará ter se tornado um produto de exportação, ou seja, controlado
pelo grande capital inglês, desde a primeira década do século XX.64
O engenheiro Américo Barbosa de Oliveira é outro que afirma existir entre
o apanhador de castanha e as casas exportadoras de Belém diversos extratos de
atravessadores que vão dos donos dos castanhais aos patrões.65 De fato, não é
inviável pensar que os atravessadores que esperavam em Marabá por oportuni-
dades de conseguir um carregamento livre dos preços praticados pelos “donos
dos castanhais” viam uma possibilidade de lucro nas estratégias dos apanhadores
 304
para “subtrair” as castanhas.
Por último, é importante observar que, se de um lado, dentre as práticas de
controle dos trabalhadores, estava a ressignificação da própria cultura sertaneja,
buscando redefinir um imaginário social que legitimasse a exploração; de outro,
os apanhadores de castanha, assim como outras categorias de trabalhadores dos
vales do Araguaia-Tocantins, também buscavam manipular os mecanismos do ca-
pital que, historicamente, têm na competitividade um de seus principais aspectos.
Diante disso, conscientemente ou não, os apanhadores, ao negociarem sua pro-
dução com os concorrentes de seus patrões, estavam de certa forma mobilizando
suas estratégias de sobrevivência para desestruturar os mecanismos de explora-
ção que lhes eram impostos.

Conclusão
Esse mundo d’água e de exploração realizava-se no universo do apanhador
de castanha, estabelecendo os limites de sua movimentação física, construindo
fronteiras simbólicas que favoreciam a exploração e a dominação, ao colocarem
no centro inundado dos castanhais as famílias daqueles trabalhadores. De fato, a
organização do trabalho nos castanhais em moldes capitalistas demandava uma
articulação entre determinada “resignação à exploração” e uma moralização do
trabalhador. Nesse jogo, valores como honestidade e empenho da palavra eram

64 MOURA, Op. cit., p. 153.


65 OLIVEIRA, Américo L. B. Considerações sobre a exploração da castanha no baixo e médio Tocantins. In:
Revista Brasileira de Geografia. n.01, v. II, 1941.

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transfigurados, dentro do discurso que dividia o mundo sertanejo do mundo civili-


zado, em submissão e conformismo.
Ademais, problematizando as narrativas, percebemos que nas relações de
força entre patrões e trabalhadores as possibilidades dos últimos de resistirem
à exploração diminuíram com a chegada “dos meios de transporte modernos” e
essa parece ter sido uma tendência geral nos vales dos rios Araguaia-Tocantins:
relações de trabalho arcaicas vis a vis com modernização tecnológica. Os esforços
dos patrões dirigiam-se ao controle, não apenas do trabalhador, mas também e
principalmente contra as formas de resistência ao domínio do capital, que se infil-
trava nos nervos centrais da produção da castanha por meio e a partir do controle
do cotidiano dos castanheiros.
Por outro lado, os trabalhadores dos castanhais aprenderam, desde antes da
chegada do trabalho livre, que era necessário reelaborar constantemente o con-
junto de práticas que constituíam suas experiências conforme seus interesses e
necessidades. Mas não foi somente esse o seu aprendizado, a pedagogia dos pa-
trões, que utilizava inclusive os próprios valores sertanejos, foi algumas vezes co-
locada às avessas, quando os apanhadores utilizavam, por exemplo, a “livre con-
corrência” entre os diversos comerciantes de castanha que circulavam por Marabá
como aliada em sua luta para minimizar a exploração que sofriam.
Finalmente, compreender esses campos de atuação e de luta contra a ex-
ploração somente é possível quando ultrapassamos a leitura simples e direta das
fontes reconhecidamente oficiais. Além disso, devemos colocar em perspectiva,
 305 especialmente quando se trata da história do trabalho e dos trabalhadores, a ne-
cessidade de investigar materiais qualitativamente diferentes daqueles que, tradi-
cionalmente, estamos acostumados a analisar.
Do ponto de vista dos processos, as grandes sínteses não perderam sua im-
portância dentro do universo das reconstruções históricas. Contudo, é necessário
buscar outros horizontes, a exemplo dos estudos regionais que têm conseguido
apontar outras possibilidades interpretativas das realidades dos trabalhadores.
Possibilidades essas capazes de iluminar a compreensão, não apenas das resistên-
cias e adequações dos grupos subalternos, mas de apontar caminhos de interpre-
tação das formas pelas quais os grupos dominantes, a serviço do capitalismo, são
capazes de se refazer diante dos cenários mais complexos da contemporaneidade.

Recebido em 07/12/2012
Aprovado em 21/04/2013

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Estratégias de expropriação e
contratos de trabalho na cafeicultura
Paulista (1917-1937)
Rogério Naques Faleiros*

Resumo: Este artigo objetiva compreender as relações de trabalho estabelecidas


nas lavouras de café entre fazendeiros e trabalhadores rurais (genericamente
chamados de colonos) no período de 1917 a 1937, no qual, em função da interven-
ção governamental no mercado cafeeiro (as defesas do café) e da existência de
uma legislação altamente vulnerável no que se referia à apropriação de terras em
grande escala nas zonas novas, se verificou um rápido processo de expansão da
fronteira agrícola no estado de São Paulo, Brasil. Utilizamos como principal fonte
documental duas mil e quarenta e sete escrituras de contratos de formação e trato
de cafezais lavradas em quatorze municípios do interior paulista.

Palavras-chave: fronteiras, complexo cafeeiro, contratos.

Abstract: we aim to understand the working relationship established in coffee


plantations between farmers and farmworkers (generically called colonos) betwe-
en 1917 and 1937, during which, as a function of government intervention in the
market coffee and the existence of a highly vulnerable legislation regarding the
ownership of lands on a large scale in new areas, there was a rapid expansion
of the agricultural frontier in São Paulo State, Brazil. We use as the main source
documentary 2,047 Scriptures training contracts and tract of coffee plantations
recorded in fourteen cities of São Paulo.

Keywords: frontier, coffee economy, contracts.

Introdução
Em função das conhecidas intervenções do governo brasileiro no mercado de
café e de uma legislação altamente vulnerável no que se referia à apropriação (legal
ou ilegal) de terras em São Paulo, a fronteira agrícola avançou nesse estado num
ritmo, até então, sem precedentes na história nacional. Nos vinte anos compreen-
didos entre 1917 e 1937, assistiu-se no chamado “oeste paulista” o vil espetáculo do
extermínio indígena mediante a ação dos bugreiros (nomenclatura dada aos ho-
mens que se especializaram na matança do gentio), das recorrentes trapaças, que

* Departamento de Economia e Programa de Pós-Graduação em Política Social/UFES. Contato: rogerio.


faleiros@ufes.br

Revista Mundos do Trabalho | vol. 5 | n. 9 | janeiro-junho de 2013| p. 307-330


ROGÉRIO NAQUES FALEIROS

do nada criavam escrituras, comprovando a antiga propriedade sobre a terra, e


que como mágica estabeleciam fazendas nas matas cerradas nunca dantes visita-
das pelo “homem branco”. Verifica-se também, no início do século XX, a expansão
das estradas de ferro para aquelas regiões, bem como o vigoroso aumento das
cargas transportadas, o que anunciava o desenvolvimento de uma nova civilização
nas distantes paragens.
À época, uma gigantesca pletora de capitais direcionou-se à fronteira em
busca de realização, ampliando os padrões de acumulação vigentes nas terras
já ocupadas pela cafeicultura, situadas a Leste. Nas áreas novas, formaram-se la-
vouras de café que demandariam uma quantidade ainda maior de mão de obra.
Seguiam-se ao capital e aos fazendeiros os colonos1 do café, com destaque para
os contingentes espanhóis, portugueses, italianos e japoneses, que doravante vi-
veriam no inferno das fronteiras, motivados pelo sonho de uma vida melhor. A que
tipo de relações de trabalho as pessoas que se dirigiram para as novas áreas de
expansão da cafeicultura, para as fronteiras do café, foram submetidas?
É justamente essa a questão que procuraremos responder neste artigo, me-
diante o trabalho com duas mil e quarenta e sete escrituras de contratação de
mão de obra registradas em cartórios de quatorze municípios situados em diver-
sas regiões do estado de São Paulo nos marcos da periodização proposta. São
eles: Campinas, Rio Claro, Ribeirão Preto, Franca, São Carlos, Araraquara, Botu-
catu, São Manuel, Jaú, Novo Horizonte, São José do Rio Preto, Catanduva, Lins e
Pirajuí. Evidentemente, é impossível traçar interpretações cerradas sobre os des-
tinos dos trabalhadores rurais do complexo cafeeiro, pois sempre há casos muito
específicos e experiências de vida que contrariam tanto as teses que preconizam
 308
maiores possibilidades de ascensão social à condição de proprietários rurais quan-
to as que indicam um universo marcado por um alto grau de exploração da mão
de obra. Na verdade, as chances dos colonos dependiam de um amplo conjunto de
variáveis que iam desde o período de chegada ao Brasil, de crise ou de expansão
da cafeicultura, até as qualidades dos solos trabalhados, o número de membros
que compunham a família, os preços praticados em determinadas ocasiões, o tipo
de contrato ao qual seriam submetidos e a região para a qual se dirigiriam. Mesmo
num universo em que qualquer resposta à questão colocada pode ser temerária,
arriscamo-nos aqui a defender a hipótese de que existiam grandes obstáculos à
ascensão social ao conjunto dos trabalhadores, obstáculos esses próprios de uma
sociedade extremamente marcada pela desigualdade social, tal como a brasileira.
Façamos antes um breve comentário sobre as fontes documentais disponíveis e
sobre as principais interpretações referentes a essa questão, para posteriormente
discutirmos as fontes documentais pesquisadas (Os Livros Cartoriais) e apontar-
mos as nossas considerações finais.

Um breve comentário sobre as fontes disponíveis ao


estudo das relações de trabalho no complexo cafeeiro
O pesquisador que se interessar pelo estudo das relações de trabalho trava-
das na cafeicultura paulista terá algumas evidências documentais à sua disposição.
Uma das primeiras fontes utilizadas no estudo dessa questão foram os jornais que

1 A nomenclatura “colono” aqui designa a totalidade dos trabalhadores rurais alocados na cafeicultura
paulista, não se referindo unicamente aos trabalhadores submetidos às relações de colonato.

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circulavam nas principais cidades do país, tais como o Fanfulha. O trabalho com
esse tipo de fonte sempre exige certo cuidado por parte do pesquisador, uma vez
que muitos desses veículos de informação eram dominados ora por membros da
elite cafeeira, ora por pessoas ligadas à “causa imigrante”, tendendo as interpreta-
ções dos fatos, respectivamente, a uma visão “benéfica” ou “cruel” em relação à
condição de vida dos trabalhadores. De qualquer forma, as fontes impressas cum-
priram importante missão na divulgação de dados atinentes ao que ocorria nas
lavouras de café, no que se refere à relação entre empregadores e empregados.
As estatísticas e os relatórios governamentais, sobretudo as estatísticas
organizadas pelo Departamento Estadual do Trabalho, criado em 1911, também
fornecem aos pesquisadores algumas informações preciosas sobre o tema em
tela, entretanto, há que se fazer uma ressalva a essas fontes, pois se tratam de
documentos oficiais produzidos com o claro intuito de mascarar as vicissitudes
impelidas às famílias de trabalhadores alocados nas fazendas de café. O fato é
que a partir de 1902, ano no qual Giulio Prinetti ― chefe do Comissariado Geral da
Emigração na Itália ― proibiu a emigração subvencionada para o Brasil, inúmeros
documentos oficiais foram produzidos pelo governo brasileiro e circularam inter-
nacionalmente, procurando ressaltar a “excelente” condição de vida proporciona-
da pela labuta nas lavouras aos italianos e aos trabalhadores em geral, de modo
que debruçar-se incautamente sobre esses registros pode levar o pesquisador a
aproximações não fidedignas, prejudicando sua análise.2
As correspondências enviadas pelos imigrantes aos seus países de origem
 309 constituem importante registro para o estudo das relações de trabalho na cafei-
cultura paulista. O estudo de Chiara Vangelista3 valeu-se de algumas cartas envia-
das à Itália por imigrantes, nas quais encontrou relatos que ora vangloriavam as
condições de vida na fazenda, convidando os compatriotas a aventurarem-se na
América, e ora denunciavam as dificuldades existentes na realidade rural. Certa-
mente, essas correspondências traziam algumas informações sobre poupanças,
salários e outras remunerações, sendo estas informações de grande relevância ao
estudo da questão do trabalho nas fazendas de café. O trabalho de Alves4 também
evidenciou a importância das cartas como fonte histórica, ao tratar das correspon-
dências enviadas por imigrantes alemães sediados no Rio de Janeiro em meados
do século XIX.
O trabalho de Alvim5, cujo objetivo era o estudo da vida privada de imigran-
tes sediados nas fazendas de café, também trouxe importante contribuição para o
entendimento do trabalho e das condições da mão de obra no campo, atentando
para as possibilidades de estudos sobre o cenário rural que considerem as condi-
ções de moradia, de higiene pessoal, de alimentação, de religiosidade e de repre-
sentações. O texto nos permite pensar nas potencialidades de utilização de novas
fontes históricas para o entendimento das relações de trabalho travadas naquele
universo, tais como os objetos e as anotações pessoais, as fotografias, os hábitos
e as celebrações.

2 Ver o trabalho de Thomas Holloway (1984), especialmente o capítulo n. 04, onde são demonstradas fontes
desta natureza.
3 VANGELISTA, Chiara. Os Braços da lavoura. Imigrantes e “caipiras” na formação do mercado de trabalho
paulista (1850-1930). São Paulo: Hucitec; Instituto Italiano di Cultura; Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1991.
4 ALVES, Débora Bendocchi. Cartas de imigrantes como fonte para o historiador: Rio de Janeiro ― Turíngia
(1852-53). São Paulo, Revista Brasileira de História, v. 23, n. 45, 2003.
5 ALVIM, Zuleika. Imigrantes: a vida privada dos pobres no campo. In: NOVAIS, Fernando. História da vida
privada no Brasil. v. 03. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.

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Os trabalhos de Benincasa6 e Ferrão7, que reconstituem a “arquitetura” das


fazendas em Araraquara e Campinas, respectivamente, reúnem potencialidades
para a discussão das relações de trabalho na cafeicultura, uma vez que, conside-
rando a estrutura física instalada e a modernização das unidades produtoras, po-
demos discutir as formas pelas quais os fazendeiros a utilizavam para ampliar o
grau de exploração dos colonos. Nas fazendas que possuíam plantas mais comple-
tas, formadas por tulhas, casa de máquina, terreiros e estradas, os trabalhadores
se viam obrigados a pagar taxas pela utilização dessa estrutura, pressionando ain-
da mais seus rendimentos monetários e não monetários.
O alargamento das fontes históricas possibilitado pelas tendências, méto-
dos e abordagens historiográficas da chamada terceira geração dos “Analles”, e
que vem amadurecendo ao longo das últimas décadas, possibilitou uma utilização
mais padronizada e ampla da história oral. Os depoimentos colhidos com os atores
da economia cafeeira podem render resultados extraordinários, tais como os ob-
tidos por Sallum Júnior8, que em sua pesquisa entrevistou alguns cafeicultores do
interior paulista. As entrevistas com esses atores, ou com seus descendentes, têm
sido amplamente utilizadas em trabalhos de cunho monográfico e memorialista,
porém, ainda estamos engatinhando na sua utilização em trabalhos cujas preocu-
pações são mais amplas. Como bem nos adverte Thompson9 e Ferreira & Amado10,
o trabalho com a história oral exige cuidado e crítica, pois muitas vezes as informa-
ções colhidas revelam percepções de um determinado agente sobre um fato ou
época que não automaticamente evidenciam representações fidedignas. No caso
do passado como colono, as entrevistas tendem a demonstrar o esforço pessoal  310
dos antepassados, dos “nonos e das nonas”, ou a “bondade” ou “maldade” de de-
terminado fazendeiro, de modo que se imputa obrigatoriamente ao pesquisador a
missão de filtrar tais depoimentos, buscando dotá-los de sentido.
Fontes documentais tradicionalmente utilizadas e que são destaque no
entendimento das relações de trabalho estabelecidas entre fazendeiros e traba-
lhadores rurais são as chamadas cadernetas de colonos. Vinha impresso nessas
brochuras um contrato-padrão, assinado pelas partes (conforme Lei do Patro-
nato Agrícola de 1911), bem como o registro do “haver” e do “dever” dos traba-
lhadores, a partir dos quais se percebia, ou não, a existência de saldos a favor do
trabalhador. Trata-se de fonte com imensa importância para o entendimento da
questão do trabalho na cafeicultura; contudo, carecemos de um maior número
de registros, uma vez que se tratava de documentação privada que foi em grande
parte extraviada ou deteriorada em função dos menores cuidados de preserva-
ção. A inexistência de um maior número de cadernetas disponíveis à consulta in-
dica que provavelmente foram destruídas quando fazendeiros e/ou herdeiros de-
cidiram jogar fora os “papéis velhos”, lembrando que a maior parte desse tipo de
registro ficava em poder do próprio trabalhador, pulverizando ainda mais a exis-
tência de tal documento histórico. Em alguns estudos dedicados à questão das
relações de trabalho no campo, essa fonte fora largamente utilizada, tais como

6 BENINCASA, Vladimir. Velhas fazendas. Arquitetura e cotidiano nos Campos de Araraquara. 1830-1930. São
Paulo: Edufscar; Imprensa Oficial, 2003.
7 FERRÃO, André Munhoz de Argollo. Arquitetura do café. Campinas; São Paulo: Editora da Unicamp;
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004.
8 SALLUM JR., Brasílio. Capitalismo e Cafeicultura. Oeste Paulista: 1888-1930. São Paulo: Duas Cidades, 1982.
9 THOMPSON, Paul R. A voz do passado:história oral. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
10 FERREIRA, Marieta M. & AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.

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em Bassanezi11, Dean12 e em um texto por nós publicado em 2006, no qual utiliza-


mos uma série composta por vinte cadernetas da Fazenda Pau d’Alho, situada em
Campinas, entre 1927 e 1931.13 Raramente se encontram documentos dessa natu-
reza que permitam a elaboração de uma série mais representativa, tratando-se
de registros muito esparsos. Esperamos que isso possa ser superado no futuro,
uma vez que as cadernetas constituem registros históricos magníficos, nos quais
se percebem claramente as rendas monetárias e, em parte, as não monetárias
auferidas pelos trabalhadores, bem como o peso com as despesas médicas, com
as ferramentas, com a “Venda” (Armazém da fazenda) e principalmente com os
onerosos adiantamentos (empréstimos) oferecidos aos trabalhadores.
Outra fonte que reúne potencialidades para o estudo da economia cafeei-
ra são os inventários. Além de nos fornecer informações valiosas sobre patrimô-
nio, dívidas ativas e passivas, posse de escravos e propriedades, os processos
também revelam indiretamente alguns mecanismos de pagamento pelo traba-
lho dos colonos na lavoura cafeeira. Em um dos inventários pesquisados em
Faleiros14, percebe-se a existência de uma grande quantidade de “vales” emiti-
dos pelo inventariado para o pagamento de seus colonos. Esses papéis foram
emitidos com a finalidade de se reduzir os custos em mil-réis do processo de tra-
balho, sendo que seriam aceitos e liquidados na própria “venda” existente na
fazenda, pertencente ao inventariado, ou, caso os colonos pudessem esperar,
seriam ressarcidos dali a algum tempo, sacando o valor dos papéis que possuí-
 311 am na fazenda. Evidentemente, o inventário em questão revela a criação de um
sucedâneo monetário que duplamente beneficiava o fazendeiro, reduzindo-lhe
as despesas em moeda corrente, ao mesmo tempo que impunha aos colonos a
obrigatoriedade de liquidação dos seus saldos na própria fazenda, por suposto
em termos de troca amplamente favoráveis ao fazendeiro.15 Esse exemplo elu-
cida as potencialidades dessa fonte para a percepção dos mecanismos de explo-
ração da mão de obra na economia cafeeira. De uma forma geral, a utilização
de inventários tem sido reduzida nos estudos que versam sobre a questão do
trabalho na cafeicultura.
Pesquisas desenvolvidas recentemente têm ampliado o universo documen-
tal disponível ao estudo da economia cafeeira, notadamente no que se refere às
relações de trabalho vigentes entre fazendeiros e trabalhadores rurais. Visando
compreender as relações estabelecidas nas lavouras de café de Franca entre 1880
e 1920, trabalhamos com duzentas e setenta e uma escrituras cartoriais que en-
volviam a formação e o trato de cafeeiros, buscando compreender os reflexos da
expansão, da crise e da retomada da cafeicultura nas relações de trabalho estabe-
lecidas.16 Em outro trabalho, que buscava entender o avanço da fronteira agrícola

11 BASSANEZI, Maria Silva C. Beozzo. Fazenda Santa Gertrudes, uma abordagem quantitativa das relações
de trabalho em uma propriedade rural paulista, 1895-1930. Rio Claro: FFCL, 1973. Tese (Doutorado em
Ciências Sociais).
12 DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura 1820-1920. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1977
13 FALEIROS, Rogério Naques. Os colonos do café e a crise de 1929: o “dever” e o “haver” nas cadernetas da
fazenda Pau d’Alho de Campinas. In: I Seminário de História do Café: História e Cultura Material. Itu: Museu
Paulista, 2006. Disponível em: www.mp.usp.br/cafe/textos.
14 FALEIROS, Rogério Naques. Homens do café: Franca 1880-1920. Campinas: IE/Unicamp, 2002. Dissertação
(Mestrado em História Econômica). FALEIROS, Rogério Naques. Homens do Café. Franca, 1880-1920.
Ribeirão Preto: Holos; Fapesp, 2008.
15 Inventário de Maria Clara de Jesus. Caixa 202, n.110. Arquivo Histórico Municipal de Franca-SP.
16 FALEIROS, Loc. cit.

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ocorrido em São Paulo entre 1917 e 1937, trabalhamos com duas mil e quarenta
e sete escrituras cartoriais registradas em quatorze municípios, sendo que todas
elas envolviam a formação e o trato de cafeeiros.17
Essas escrituras forneceram importantes informações, tais como o nome
das partes contratantes, a quantidade e o estado dos cafeeiros a serem formados
ou cuidados, as formas de remuneração, o nome das fazendas, as cláusulas que
regulavam as possibilidades de acesso dos trabalhadores ao cultivo de outras cul-
turas, as multas rescisórias, os termos de garantia, os adiantamentos previstos e a
duração dos contratos. Além disso, a consulta à documentação cartorial permitiu-
-nos perceber as regiões em expansão no intervalo de nossas preocupações, for-
necendo grandes potencialidades no que se refere à observação do movimento da
cafeicultura numa perspectiva dinâmica, ou seja, do ponto de vista da realização e
do registro cotidiano dos negócios, no caso, a formação de novas lavouras de café.
Como veremos adiante, a consulta a essa documentação revelou mecanismos de
exploração dos colonos ainda pouco discutidos pela historiografia. Por outro lado,
esse tipo de fonte apresenta uma limitação pelo fato de que as informações lá
contidas são muito específicas e fragmentárias, sendo que, vistas isoladamente,
podem não ser representativas de realidades mais amplas. Deriva dessa limitação
a necessidade de se relacionar as fontes cartoriais com registros de outra nature-
za, tais como almanaques, jornais, boletins, estatísticas e relatos memorialistas.

Algumas interpretações sobre as relações de  312


trabalho na cafeicultura paulista: o colonato e a
ascensão social
A questão das relações de trabalho vigentes na cafeicultura paulista susci-
tou em diferentes épocas e contextos um grande número de interpretações com-
plementares e/ou divergentes sobre a natureza e as especificidades do chamado
colonato.18 Alguns autores destacaram a virtuosidade de tal sistema de trabalho
apontando-o como o responsável pela ascensão social e pela melhoria de vida dos
trabalhadores, que a partir dos recursos acumulados tornar-se-iam proprietários.
Outra parte da bibliografia aponta para a precariedade das relações estabelecidas
entre fazendeiros e trabalhadores rurais, genericamente chamados de colonos,
mas que poderiam ser também empreiteiros formadores de cafezais ou mesmo
parceiros, sugerindo-nos que as possibilidades de ascensão social eram mais remo-
tas. Objetivamos, agora, apenas destacar as principais referências que constituíram
o debate acerca das relações de trabalho travadas na cafeicultura paulista.

17 FALEIROS, Rogério Naques. Fronteiras do Café: fazendeiros e colonos no interior paulista (1917-1937).
Bauru; São Paulo: Edusc; Fapesp, 2010, p. 21.
18 O contrato padrão previa um pacote salarial e outros incentivos. Três formas principais de remuneração
eram especificadas: salário em dinheiro para o trato das plantações de café, para a colheita dos frutos
e para o trabalho diário não especializado (diária). Além disso, o contrato fornecia moradia gratuita e
usufruto da terra para culturas de subsistência. Todos os salários se estabeleciam numa base por unidade
― uma quantia fixa de dinheiro por mil pés tratados, por unidade de volume colhido de café ou por dia
trabalhado. Porém, existiam outras formas de contratação de mão de obra para as fazendas, tais como
as empreitadas e parcerias, recorrentes nas escrituras pesquisadas, nas quais não necessariamente se
efetivavam pagamentos em dinheiro. Podemos entender essas modalidades de arregimentação de mão
de obra como variações do dito “contrato padrão”.

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José de Souza Martins e Brasílio Sallum Júnior analisaram as relações de tra-


balho entre fazendeiros e colonos sob uma perspectiva mais teórica, buscando
nos referenciais existentes, sobretudo no marxista, o entendimento das especifi-
cidades de tais relações. Ambos apontaram para uma complexa imbricação de ca-
racterísticas capitalistas e “não capitalistas” no colonato. Sallum Júnior19, apoian-
do-se numa exegese da análise da renda em Marx, Livro III do Capital, afirma que
os fazendeiros no oeste paulista seriam, ao mesmo tempo, proprietários territo-
riais e capitalistas. Sob a primeira face formariam os cafezais, arrendando terra
aos formadores, e, sob a segunda, agiriam como capitalistas, pagando salários: a
diferença entre o que o “colono” receberia e o valor de seu trabalho seria a renda
paga, melhor dizendo, o preço pago pela utilização da terra. Assim, os colonos e
os fazendeiros se vinculariam em dupla relação: uma capitalista (salário) e outra
pré-capitalista (renda). Os fazendeiros seriam ao mesmo tempo proprietários ru-
rais e produtores capitalistas. Os colonos, por sua vez, seriam assalariados e arren-
datários em regime de subsistência. Para os fazendeiros, a renda corresponderia
ao que eles deveriam ter pago em salários reais adicionais para manter a força de
trabalho. Isto é, a renda poderia ser vista como salário de mercado para todo o
trabalho já prestado, subtraindo-se o salário monetário já saldado. Do ponto de
vista do “colono”, essa “dupla” vinculação como arrendatário e assalariado cor-
responderia às suas expectativas, pois o acesso a terra era indispensável para a
sobrevivência da família, no mais das vezes sendo até mais importante do que os
próprios pagamentos efetivados em moeda. Adiante voltaremos a essa questão.
 313 Importante assinalar, a partir de Sallum Júnior, que o colonato constituía re-
lação de trabalho extremamente complexa, e que, a partir do acesso a terra for-
necido ao “colono”, confluir-se-iam os interesses de proprietários capitalistas e
de arrendatários assalariados. Tal confluência de interesses era mais latente nas
fazendas onde existia uma maior disponibilidade de terras para o cultivo intercafe-
eiro, melhor dizendo, naquelas fazendas situadas nas regiões de fronteira agrícola
onde as lavouras estavam em formação, com maiores possibilidades de plantio
de culturas de alimentos entre as fileiras do café. Para o “colono”, isso significaria
trabalhar em uma terra de melhor qualidade (virgem) e a possibilidade de reduzir
o tempo de trabalho necessário para a manutenção do cultivo conjugado de di-
ferentes culturas. Nas fazendas ainda robustas das zonas mais antigas, mas com
pouca disponibilidade de terras para a formação de novos cafeeiros, restaria ao
“colono” o cultivo de alimentos nas chamadas “terras baixas”, terrenos extras,
fora do cafezal, destinados a esse tipo de lavoura. Muitas vezes já esgotadas e
com baixa produtividade, essas terras apresentavam, também, a desvantagem de
demandar um maior tempo de trabalho. “Como resultado deste processo as fa-
zendas mais antigas constantemente se viam ameaçadas de despovoamento”20,
obstaculizando-se, pela não formação de novos cafeeiros, a dupla ligação que en-
volvia fazendeiros e colonos nas regiões de cafeicultura mais remota.
Em O Cativeiro da Terra, Souza Martins afirma que as relações de colonato
caracterizavam-se como “não capitalistas”, pois existiam vínculos monetários, não
monetários e gratuitos, não se esquecendo, também, do caráter familiar do traba-
lho, que não nos permite definir o colonato como uma relação capitalista de produ-
ção. Entretanto, essas relações seriam produzidas e organizadas, segundo o autor,

19 SALLUM JR., op. cit., p. 26.


20 SALLUM JR., op. cit., p. 188.

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a partir dos interesses da produção capitalista, melhor dizendo, da acumulação mer-


cantil. Tem-se, então, a “produção capitalista de relações não capitalistas de produ-
ção”. Para o autor, a hipótese é que o capitalismo, na sua expansão, não só redefine
antigas relações, subordinando-as à reprodução do capital, mas também engendra
relações não capitalistas igual e contraditoriamente necessárias a essa reprodução.21
Assim, a permanência de algumas características arcaicas da sociedade brasileira
não poderia ser entendida meramente como um anacronismo incompatível com o
desenvolvimento do capital, mas, pelo contrário, essas permanências revelavam ca-
racterísticas específicas de um desenvolvimento capitalista tardio, sem as quais a
reprodução capitalista entraria em colapso.
Souza Martins também discute as condições dos colonos em outro plano de
abstração, concluindo que as possibilidades de ascensão seriam muito reduzidas
naquela situação. Existia, segundo o autor, um endividamento inicial (oriundo das
despesas com a passagem transatlântica), e também dívidas contraídas ao longo
do contrato de trabalho em função das próprias contingências das lavouras, das
despesas alimentares e de saúde, da compra de ferramentas etc. Aliando-se a es-
sas dívidas, existiriam, ainda, os mecanismos de monopolização do potencial de
compra dos colonos, as chamadas economias de “caderneta”, nos quais, com o
estabelecimento de “Vendas” nas colônias, os fazendeiros agiriam em condições
muito favoráveis, pois forneceriam crédito, manipulariam os valores e a esdrúxu-
los preços abocanhariam o excedente da produção de alimentos dos trabalhado-
res. Tal mecanismo seria coordenado por uma relação extremamente desigual,
que, em conjunto com outras práticas, redundaria num alto grau de exploração da  314
força de trabalho.
Para este autor, o acesso a terra fornecido aos colonos construía a ilusão de
que eles trabalhariam para si, quando, na verdade, apenas garantiriam a sua mera
reprodução como trabalhador, sem contar o fato de que os fazendeiros seleciona-
vam para si os lotes de melhor qualidade. De acordo como autor, o colonato pres-
supunha a desigualdade entre as partes contratantes, o cativeiro da terra, sendo
a propriedade fundiária fundamental para o estabelecimento da desigualdade vi-
gente entre o fazendeiro e o “colono”. Os rendimentos monetários dos trabalha-
dores derivariam do trato por mil pés de café e das colheitas, constituindo-se esse
ganho, ainda com Souza Martins, uma parcela menos significativa de sua remune-
ração. Já com o trabalho nas fileiras intercafeeiras ou em terrenos extras, os co-
lonos garantiriam o grosso da alimentação e a reprodução da família. Percebe-se,
então, um mecanismo no qual o salário não seria a forma dominante da relação
estabelecida, o que impedia que fazendeiros e colonos vivessem integralmente
as ficções da igualdade engendrada pela troca aparentemente igual de tempo de
trabalho por dinheiro. Assim, “do ponto de vista do ‘colono’, o trabalho necessário
apareceria como trabalho sobrante e o trabalho sobrante, para o fazendeiro, era o
que se revestia da aparência de trabalho necessário”.22 Em outros termos, a plan-
tação de alimentos, que era essencial aos colonos, cristalizava-se como secundária
ao fazendeiro, e o que era essencial ao fazendeiro, a formação e/ou o trato do
café, seria secundário para os colonos, entendido como um trabalho de menor im-
portância. Ocorre que tal complexidade construía-se a partir da concentração fun-
diária e do monopólio da terra, e, jogando com isso, os fazendeiros estabeleceram

21 MARTINS, José de Souza. O Cativeiro da Terra. São Paulo: Livraria e Editora Ciências Humanas, 1979, p. 20.
22 MARTINS, op. cit., p. 88.

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uma forma de exploração do trabalho muito específica, na qual colonos possuíam


a ilusão de que entregavam ao fazendeiro em forma de café o pagamento para tra-
balhar para si próprio, pensando-se assim “senhores” do seu trabalho nas lavouras
de subsistência, quando estavam, na verdade, a meio caminho da transparência
da exploração pela coerção e a meio caminho da “igualdade” pressuposta pelo
trabalho livre.
Chiara Vangelista23 destaca a necessidade de se discriminar as ofertas e as
demandas por trabalho na economia paulista da República Velha. Segundo a au-
tora, as etapas do processo de produção de café exigiam diferentes perfis e impu-
nham diversas demandas à sociedade: eram necessários homens desenraizados e
aventureiros para os esporádicos trabalhos de derrubada das matas, famílias para
a formação e para o trato dos cafezais, trabalhadores avulsos e eventuais para a
colheita, assalariados para a manutenção de máquinas de beneficiamento e das
instalações, para a construção de armazéns, tulhas e terreiros para a secagem dos
grãos, entre tantas outras atividades, de modo que não podemos identificar no
cenário rural paulista mecanismos e experiências de vida homogêneas numa re-
alidade marcada por ofertas e demandas de trabalhadores tão singulares. Dada a
complexidade do trabalho nas fazendas de café, a autora relativiza as discussões
sobre as possibilidades de ascensão social, mostrando-nos a dificuldade de se dis-
cutir a questão frente aos inúmeros trabalhos, perfis e atores existentes na econo-
mia paulista do período.

 315 Verena Stolcke24, tratando mais especificamente das “Colônias”, destaca o


fato de que os proprietários de fazendas possuíam um especial interesse em em-
pregar núcleos familiares nas fazendas. Existia, para a autora, uma ideologia de
solidariedade e cooperação familiar que permitia aos cafeicultores explorar ao má-
ximo toda a família imigrante. A partir da preeminência da autoridade do marido/
pai sobre os membros da família, o trabalho seria todo organizado sobre a base
familiar, e as remunerações, em nenhum momento, eram estabelecidas individual-
mente, sendo o grupo familiar coletivamente explorado.
A questão da fronteira agrícola merece destaque central nas interpretações
que postulam condições positivas à ascensão social a partir das relações de colo-
nato. Entre essas interpretações, merecem destaque Thomas Holloway25 e Maurí-
cio Font26. Para Holloway, a fronteira agrícola em constante expansão, característi-
ca própria de economias agroexpotadoras, criava uma instabilidade muito grande
nas relações de trabalho estabelecidas entre fazendeiros e imigrantes nas zonas
mais antigas. Verificava-se um intenso deslocamento de famílias de colonos para
as regiões mais novas, virgens em produtividade tanto para o café, planta de cará-
ter perene, quanto para as lavouras de alimentos. Outro fator a se considerar, tam-
bém, era a disponibilidade de terras nas novas regiões, a partir da qual os colonos
poderiam ter acesso a maiores terrenos, o que corresponderia a uma vantagem
em relação às regiões mais antigas e de solos já desgastados e ocupados pelo café.

23 VANGELISTA, op. cit.


24 STOLCKE, Verena. Cafeicultura. Homens, mulheres e capital. (1850-1980). Trad. Denise Bottmann e João R.
Martins Filho. São Paulo: Brasiliense, 1986.
25 HOLLOWAY, Thomas H. Imigrantes para o café: café e sociedade em São Paulo 1886.1934. Rio de Janeiro:
Paz & Terra, 1984.
26 FONT, Maurício. “Padrões de ação coletiva dos plantadores paulistas de café: 1932-1933.” In: SORJ,
Bernardo; CARDOSO, Fernando Henrique; FONT, Maurício (orgs.). Economia e movimentos sociais na
América Latina. São Paulo: Brasiliense, 1985.

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Com base nesse mecanismo, as fronteiras criariam um efeito de atração quase irre-
sistível, o que redundaria, também nas zonas antigas, em melhorias nas condições
de ascensão dos colonos.
Maurício Font parece distinguir, também a partir das possibilidades criadas
pela expansão das fronteiras em São Paulo, uma forma de colonização específi-
ca, distinta. Segundo o autor, existem bases suficientes para argumentar que as
fases posteriores da expansão do café em São Paulo, notadamente nas décadas
de 1920, 1930 e 1940, presenciaram o surgimento de outras formas de produção,
principalmente de pequenos e médios proprietários. Esse argumento é sustenta-
do pelos dados fornecidos por Sérgio Milliet (1939) e José Francisco de Camargo
(1952), que apontam a existência crescente de pequenas e médias propriedades
em São Paulo neste período, sobretudo nas regiões de recente desbravamento.
A hipótese central desenvolvida pelo autor é a de que as combinações próprias
das relações de colonato permitiram que alguns trabalhadores rurais se trans-
formassem em produtores independentes de mercadorias, provendo, assim, as
bases que tornaram possível a mudança para a produção cafeeira independente.
Além de garantir sua subsistência, o direito de usufruto da terra permitiu a produ-
ção de excedentes alimentícios que, naquele contexto de expansão da urbaniza-
ção da economia paulista, se tornaria, cada vez mais, uma das fontes básicas de
receita monetária.
As conclusões de Font apontam para a existência de uma estrutura de opor-
tunidades fluidas em São Paulo, que permitiria aos trabalhadores buscar as me-
lhores oportunidades dentro ou fora do sistema da fazenda. A dramática expan-  316
são na demanda de culturas alimentares, em virtude da urbanização, possibilitou
às famílias com suficiente força de trabalho atingir economias consideráveis, ao
destinar o usufruto dos lotes à produção de culturas comercializáveis. Para o au-
tor, a economia mais ampla, nascida do setor de exportação do café, desenvolveu
uma dinâmica própria que sustentou o surgimento de acordos alternativos de uti-
lização e posse da terra, principalmente no contexto da fronteira em expansão.
“Lá, os pequenos proprietários, prosperando na produção de diversos gêneros
agrícolas, tornaram-se um elemento predominante na organização social. Esses
processos minaram o íntimo monopólio da terra e do trabalho tradicionalmente
reivindicado pelos fazendeiros.”27

O que nos dizem os contratos de trabalho?


Trazendo novas fontes para o debate, consultamos duas mil e quarenta e
sete escrituras de formação e/ou trato de café, lavradas nos Livros de Notas dos
Cartórios dos municípios de Campinas, Rio Claro, Ribeirão Preto, Franca, São Car-
los, Araraquara, Botucatu, São Manuel, Jaú, Novo Horizonte, São José do Rio Pre-
to, Catanduva, Lins e Pirajuí (ver mapas ao final do texto), entre 1917 e 1937, perío-
do no qual ― em função da intervenção governamental no mercado cafeeiro (as
defesas do café) e da existência de uma legislação altamente vulnerável no que se
referia à apropriação de terras em grande escala nas zonas novas (Araraquarense,
Noroeste e Alta Sorocabana) ―, verifica-se um rápido processo de expansão da
fronteira agrícola no estado de São Paulo, Brasil. Como esses livros constituíam a

27 FONT, op. cit., 1985, p. 242.

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ESTRATÉGIAS DE EXPROPRIAÇÃO E CONTRATOS DE TRABALHO...

única forma de registro público existente à época, lá se encontravam escrituras


dos mais variados tipos: compra e venda de imóveis urbanos e rurais; e escravos
em época mais remota; doações; cessão de crédito (destacadamente hipotecá-
rio); escrituras de compra e venda de café; empreitadas de construção de prédios
e casas na cidade; atas de eleições; testamentos; adoção de menores; liquidação
de débitos; reconhecimento de dívidas; e contratos de formação de sociedades
agrícolas ou industriais etc. As escrituras de formação e trato de café, para as quais
dedicamos maior atenção, forneceram importantes informações para nossa pes-
quisa, tais como o nome das partes contratantes, a quantidade e o estado dos
cafeeiros a serem formados ou cuidados, formas de remuneração, o nome das fa-
zendas, as cláusulas que regulavam as possibilidades de acesso dos trabalhadores
ao cultivo de outras culturas, as multas rescisórias, os termos de garantia, adianta-
mentos e duração dos contratos.
Fazendeiros e trabalhadores lavravam escrituras por uma série de fatores:
a) desconhecimento ou desconfiança entre as partes; b) tentativa de “segu-
rar” a mão de obra na propriedade, mediante registro de multas, cauções e
garantias em contrato; c) necessidade de uma melhor definição dos termos de
contrato, tais como o plantio intercafeeiro; d) definição, a priori, das cláusulas
que determinariam o estabelecimento da cobrança de taxas pelo transporte e
beneficiamento da produção dos trabalhadores; e) pré-fixação de salários num
contexto de crescente demanda por trabalho; f) garantia ao proprietário do
direito de fiscalização das tarefas. Cabe salientar que os contratos tornavam-se
 317 instrumentos de opressão dos trabalhadores, visando minimizar as possibilida-
des de abandono da lavoura e garantir ao fazendeiro uma série de direitos uni-
laterais, como veremos adiante.
Eram dois os tipos de escrituras predominantes entre fazendeiros e trabalha-
dores: as empreitadas e as parcerias. Basicamente, a diferença entre essas escri-
turas era a forma de pagamento. Nas escrituras de parceria agrícola, geralmente,
os trabalhadores receberiam como remuneração pelo trato28 a metade da pro-
dução dos cafeeiros contratados. Em grande medida, nesses casos, as escrituras
versavam sobre cafeeiros já formados ou com formação quase concluída, sendo,
portanto, predominantes nas regiões de cafeicultura mais antiga. Terminada a co-
lheita, a secagem e o beneficiamento, as sacas seriam divididas em função da pro-
porção estabelecida, sendo essa a única fonte de renda do “parceiro”.
Nas empreitadas, os trabalhadores seriam contratados para formar um de-
terminado número de cafeeiros, recebendo como pagamento a totalidade da pro-
dução das árvores contratadas, ou, em alguns casos, além disso, receberiam uma
determinada quantia por cada cova formada.29 Há que se considerar que os cafe-
eiros começariam a produzir algum fruto somente após o terceiro ou quarto ano
e, mesmo assim, essa primeira colheita renderia uma produção diminuta, sendo
que uma “produtividade adulta”, digamos assim, só seria alcançada no sexto ou
no sétimo ano de idade da planta. Justamente por isso os fazendeiros abriam mão
dessa produção inicial e, após o vencimento do contrato, depois de quatro anos,
deteriam cafeeiros com o ápice da produtividade ou algo muito próximo disso.

28 Entendia-se por trato, as atividades de carpa, combate aos brotos, adubação, cuidados com doenças,
espalhamento do cisco, colheita, secagem, e, em alguns casos, beneficiamento dos grãos.
29 Uma cova abrigava de duas a cinco mudas. Sobre as que não “vingavam” era cobrada uma multa, e sobre
as que pouco se desenvolviam, estabelecia-se uma proporção: “cova de dois anos”, “cova de três anos”,
para as quais se pagava metade ou três quartos do valor combinado, respectivamente.

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Esse tipo de contrato foi predominante nas novas zonas de expansão da cafeicul-
tura paulista entre 1917 e 1937.
A documentação consultada corrobora o que já foi escrito sobre o tema?
Sim, de uma forma geral. As escrituras cartoriais pesquisadas fortalecem a consen-
sual tese de que as melhores condições de remuneração pelo trabalho se concen-
travam nas regiões de avanço da fronteira agrícola. Porém, as escrituras cartoriais
também revelam algumas informações novas acerca dessa questão. Autores aqui
já citados, como T. Holloway, Brasílio Sallum Júnior e Chiara Vangelista, argumen-
tam que o trabalho nas lavouras novas permitia ao “colono” maior renda em fun-
ção da maior disponibilidade de terras para o plantio das chamadas culturas inter-
calares (milho, feijão e arroz) plantadas entre as “ruas” do café.30 Isso decorria da
pouca idade dos cafeeiros em formação nas zonas de fronteira, o que possibilita-
va o plantio de uma maior quantidade destas outras culturas, diferentemente do
que ocorria em regiões de cafeicultura madura, onde os espaços eram diminutos.
Justamente por isso os trabalhadores do café preferiam as fazendas situadas nas
zonas de expansão, pois, comercializando os excedentes, poderiam auferir rendas
monetárias e não monetárias. Segundo a bibliografia, as cláusulas contratuais que
versavam sobre o plantio intercalar eram até mais importantes para os trabalha-
dores do que as que regulavam a remuneração em dinheiro, uma vez que lhes
permitia o acúmulo de algum pecúlio. Nas palavras destes autores:

Para a grande lavoura, o novo regime significava o aproveitamento


da carestia de gêneros e a demanda dos mercados urbanos para re-
munerar em parte a força de trabalho empregada nos cafezais. Por aí
se compensava o baixo custo do salário agrícola. Em outros termos, a
 318
fazenda efetivava-se como empresa produtora de café exclusivamente
(os alimentos eram produção do colono), reduzia os dispêndios com a
mão-de-obra, aumentando os seus lucros, e transferia para os consu-
midores de alimentos comercializados, sobretudo os do meio urbano,
uma parte do custeio do cafezal.31
Além do ganho direto do colono, a que estamos fazendo referência, ele
aufere indiretamente vantagens de outra ordem e de maior valor. São
as que resultam da cultura de cereais, feijão etc. Entre as filas de cafeei-
ros, e cujas colheitas lhes pertencem integralmente.32
Em muitos casos, os cereais e animais excedentes que o colono vendia
proporcionavam uma importante fonte adicional de dinheiro. Tal ren-
da extra podia ser adicionada às economias ou usada para comprar os
itens não produzidos na fazenda, tal como farinha de trigo, açúcar, que-
rosene, roupas e ferramentas. Como exemplo da importância que os
próprios trabalhadores atribuíam às porções não monetárias do contra-
to de trabalho, um Vice-Cônsul italiano em Ribeirão Preto constatava,
em 1903, que os colonos preferiam uma fazenda onde os salários em di-
nheiro eram pequenos, mas onde os privilégios de lavoura de alimentos
e criação de animais eram generosos, a uma fazenda onde os salários
eram melhores, mas sendo restritos os privilégios não monetários. Um
observador francês anotava em 1909: “o que realmente permite que
os colonos acertem o deve e o haver são as plantações que eles tem o
direito de fazer por sua própria conta... Eles muitas vezes se preocupam
mais com as cláusulas do contrato relacionadas com essas plantações
do que com aquelas que determinam seus salários em dinheiro.”33

30 Os cafeeiros são geralmente plantados em fileiras, de modo que entre elas existe um espaço de
aproximadamente três metros e meio, no qual se plantavam outras culturas.
31 VANGELISTA, op. cit., p. 198-199. (grifos nossos)
32 SALLUM JR., op. cit., p. 184. (grifos nossos)
33 HOLLOWAY, op. cit., p. 122. (grifos nossos)

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Abaixo, elaboramos uma tabela, comparando as condições de plantio des-


sas culturas em contratos lavrados em três municípios: Campinas (situado numa
região de cafeicultura decadente ― Central), Franca (região intermediária ― Mo-
giana) e Catanduva (município situado na região Araraquarense, fronteira de ex-
pansão da cafeicultura paulista nas décadas de 1910 e 1920):

Tabela 1 – Plantio Intercafeeiro em Campinas, Franca e Catanduva.

Contrato Campinas (1923) Franca (1920) Catanduva (1918)

Uma carreira de milho nas Plantio picado (sem Duas carreiras de


replantas de até dois anos, alinhamento) de feijão, milho, quatro de feijão
três carreiras de feijão entre arroz, milho, batata e ou quatro carreiras de
1º Ano
as ruas do cafezal formado e fumo em cada rua do arroz em cada rua do
duas carreiras de milho em cafezal; pasto de cinco cafezal; pasto para
cada rua do cafezal novo; alqueires. animais.

Uma carreira de milho nas Duas carreiras de


Duas carreiras de milho,
replantas de até dois anos, milho, quatro de feijão
quatro de feijão e arroz e
três carreiras de feijão entre ou quatro carreiras de
2º Ano uma de fumo e batatinha
as ruas do cafezal formado e arroz em cada rua do
em cada rua do cafezal;
duas carreiras de milho em cafezal; pasto para
pasto de cinco alqueires.
cada rua do cafezal novo; animais.

Uma carreira de milho nas


Duas carreiras de milho, Uma carreira de milho,
replantas de até dois anos,
quatro de feijão e arroz e duas de feijão ou duas
três carreiras de feijão entre
3º Ano uma de fumo e batatinha carreiras de arroz em

 319
as ruas do cafezal formado e
em cada rua do cafezal; cada rua do cafezal;
duas carreiras de milho em
pasto de cinco alqueires. pasto para animais.
cada rua do cafezal novo;
Quatro carreiras de Uma carreira de milho,
Uma carreira de milho e arroz, quatro de feijão duas de feijão ou duas
4º Ano uma de feijão em cada rua ou uma de milho em carreiras de arroz em
do cafezal (novo ou velho); cada rua do cafezal; cada rua do cafezal;
pasto de cinco alqueires. pasto para animais.

Quatro carreiras de Um alqueire de terras


Uma carreira de milho e arroz, quatro de feijão para cultura por cada
5º Ano uma de feijão em cada rua ou uma de milho em 10.000 cafeeiros
do cafezal (novo ou velho); cada rua do cafezal; contratados. Pasto para
pasto de cinco alqueires. animais

Quatro carreiras de Um alqueire de terras


Uma carreira de milho e arroz, quatro de feijão para cultura por cada
6º Ano uma de feijão em cada rua ou uma de milho em 10.000 cafeeiros
do cafezal (novo ou velho). cada rua do cafezal; contratados. Pasto para
pasto de cinco alqueires. animais

Fonte: Livro de Notas n. 167, folha 32. 1.º Ofício Civil de Campinas 05/10/1923 e Livro de Notas n. 97, folha 12.
2.º Ofício Civil de Franca. 20/03/1920. Livro de Notas n. 4 (Vila Adolpho). Fls. 61. 2.º Ofício Civil de Catanduva.
01/07/1918.

Percebe-se nesta tabela que no município de Catanduva encontravam-se as


melhores condições para o plantio intercalar, sendo que, nos dois últimos anos de
contrato, os trabalhadores disporiam de um alqueire (24.200 m²) para cada dez mil
pés de café contratados, condição muito superior às oferecidas nos outros muni-
cípios considerados. Certamente o objetivo de fornecer um maior acesso a terra
ao colono do café era a redução dos custos monetários de produção, aos quais os
fazendeiros eram tão recalcitrantes, sendo a consequência disso um alto grau de
“nomadismo” dos colonos do interior paulista rumo às regiões de fronteira, aspec-
to também apontado pela bibliografia.

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O que a pesquisa com as escrituras cartoriais nos permitiu observar é que


as regiões de fronteira, na verdade, eram mais atraentes ao trabalhador do que
se supunha, pois lá também se praticava, mais comumente, remunerações em
dinheiro pela formação de uma lavoura de café. A maior proporção de contra-
tos envolvendo pagamentos em dinheiro foi encontrada nos municípios novos
da região Noroeste: Pirajuí (58,7%) e Lins (48,4%). Em Ribeirão Preto, município
da Mogiana, 62,1% dos contratos lavrados envolviam pagamentos em dinheiro;
contudo, a maioria dos contratos lá registrados versava sobre a formação de no-
vas lavouras nas fronteiras.34 Assim, a documentação revela não existir uma pro-
porção inversa entre salários e renda, sendo esses dois componentes superiores
nas regiões novas. Cabe salientar que nas regiões mais antigas predominavam as
parcerias, relação contratual na qual a produção de café seria dividida em duas
partes e não se praticavam pagamentos monetários. Em Campinas, município de
cafeicultura antiga na década de 1920, por exemplo, em apenas 10% dos contratos
estavam previstos pagamentos em dinheiro. Ao todo, considerando as duas mil
e quarenta e sete escrituras pesquisadas, 33,5% previam salários monetários. Por
conta dessas evidências, discordamos de Sallum Júnior, que traça uma relação in-
versamente proporcional entre renda e salários na cafeicultura, apontando que
quando se aumentava a renda (acesso a terra), diminuía-se o salário por unidade
de cafezal tratado e, num movimento contrário, quando a renda fosse menor, os
salários seriam maiores.35

 320
Existe por parte da bibliografia aparente subestimação da importância das
cláusulas monetárias para as contas dos colonos, como depreendemos dos ex-
certos acima destacados. Não estamos aqui negando a importância da produção
de gêneros alimentícios para esses trabalhadores, apenas considerando que os
pagamentos em dinheiro também poderiam ter um grande peso em suas contas, e
que certamente contribuíam para o “nomadismo” da mão de obra anteriormente
citado, uma vez que um maior número de contratos envolvendo pagamentos em
dinheiro foi encontrado justamente nas regiões novas. Exemplificando, compare-
mos abaixo duas situações, a de Daniel Cruz, um empreiteiro em Pirajuí, que foi
contratado por Jorge Elias para formar dez mil cafeeiros na fazenda São Sebas-
tião, situada numa região de fronteira36, e a de Virgílio Dias Fernandes, parceiro em
Franca arregimentado por Justiniano Alves Taveira para tratar de uma lavoura de
mesma dimensão na Fazenda Aliança, situada numa região intermediária na déca-
da de 1920.37 Nesses dois casos, os trabalhadores foram submetidos a contratos
com duração de quatro anos que expirariam em 1929. Nesse contrato de forma-
ção lavrado em Pirajuí, a remuneração do empreiteiro seria composta por toda a
produção do quarto ano da lavoura e por uma determinada quantia paga por cada
cova formada, no caso 1$000 (valor que pouco variava de região para região). Já a
remuneração do parceiro de Franca seria formada unicamente por metade da pro-
dução de café. Abaixo, para calcular os rendimentos desses trabalhadores, consi-
deramos a produtividade anual dos cafeeiros de cada um desses municípios38 (em
arrobas por mil pés), multiplicando-a pelo preço pago pela arroba ao produtor.
Cabe salientar que utilizamos os preços praticados em Ribeirão Preto, importante

34 FALEIROS, op. cit., 2010, p. 135.


35 SALLUM JR., op. cit., p. 198.
36 Livro de Notas n. 25. fls. 83. 2.° Ofício Civil de Pirajuí. 14/08/1926.
37 Livro de Notas n. 131, fls.71. 2.° Ofício Civil de Franca. 28/08/1926.
38 Extraímos estas informações do Boletim O Café: Estatísticas de produção e de comércio. São Paulo:
Secretaria da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, 1909-1938.

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centro comercial onde pesquisamos escrituras de compra e venda de café e elabo-


ramos uma série de preços.39 As remunerações seriam as seguintes:

Tabela 2 – Remuneração de Trabalhadores em Campinas e Pirajuí 1926-29.


Empreitada 1926-29 – 10.000 cafeeiros
Remuneração Remuneração
Preço (@/1.000) Produtividade Produtividade
Ano Parceiro Empreiteiro
Rib. Preto. Franca Pirajuí
Franca Pirajuí
1926 27$500 46,1 63,5 6:215$000 0
1927 23$800 51,0 28,4 3:962$700 0
1928 28$000 52,9 99,7 6:972$000 0
1929 29$800 26,8 29,8 3:754$800 8:880$400
0 10:000$000
Total 20:904$500 18:880$400

Fonte: Faleiros, 2010.

Evidentemente, tanto parceiros quanto empreiteiros estavam sujeitos à va-


riação nos preços e de produtividade, de modo que as possibilidades de ganho
se alteravam muito de ano para ano. Na situação considerada acima, o parceiro
de Franca receberia cerca de vinte e um contos de réis ao final dos quatro anos
de contrato, somando-se o valor pago pela metade da produção anual de dez mil
cafeeiros entre 1926 e 1929. Já o empreiteiro de Pirajuí receberia cerca de nove

 321 contos de réis pela totalidade da produção de café do quarto ano e dez contos por
cada cova formada, totalizando cerca de dezenove contos. Ou seja, nessa situação,
o que permitiria que o empreiteiro situado na fronteira tivesse uma remuneração
próxima a de um parceiro sediado numa região já “madura” seria o pagamento em
dinheiro, e parece-nos um exagero afirmar que os colonos pouca atenção davam a
essas cláusulas, privilegiando unicamente o acesso à produção intercalar, confor-
me destacou Holloway no excerto anteriormente citado. Evidentemente, como já
observamos, os colonos arranchados nas fronteiras teriam maiores possibilidades
para o plantio das culturas intercalares, tornando esses contratos mais atraentes
também sob esse aspecto. Esses exemplos contrariam a inversa relação entre ren-
da e salário constatada por Sallum Júnior, pois justamente nas regiões de frontei-
ra, onde era possível se auferir uma renda maior, plantando-se maior quantidade
de gêneros alimentícios, era mais recorrente o pagamento por cova formada. A
própria inflexibilidade do salário agrícola contraria tal tese, pois, ao observarmos
contratos lavrados em diferentes regiões, tanto novas quanto antigas, percebe-se
que o valor pago por cada cova formada não se altera substancialmente.40
Ponto comum na bibliografia sobre o tema das relações de trabalho na ca-
feicultura aqui considerado é o fato de que, para esses autores, os colonos, em-
preiteiros e parceiros possuiriam liberdade para negociar suas produções de café
e de gêneros alimentícios. Os trechos em negrito dos excertos evidenciam isso,
indicando que os colonos teriam total controle sobre os alimentos que produziam,
ou mesmo sobre a quantidade de café que lhes pertenceria. Mais do que isso, as
produções de arroz, milho, feijão e demais culturas seriam mecanismos centrais no
processo de produção de café, pois permitiam a redução dos custos monetários
de produção, ampliando a possibilidade de elevados lucros para os fazendeiros.
Tanto os autores de marcada veia marxista (Martins e Sallum Júnior) quanto os

39 FALEIROS, op. cit., 2010, p. 104.


40 FALEIROS, op. cit., 2010, p. 450.

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demais (Holloway, Font, Vangelista, Stolcke) destacaram em seus estudos essa


“funcionalidade” das culturas de alimentos, alguns dos quais apontaram que a
comercialização dos excedentes fora o que permitiu a muitas das famílias sediadas
nas fazendas a constituição de poupanças posteriormente invertidas na compra
de algum lote de terras.41
Evidentemente, é ponto pacífico o fato de que as chamadas produções inter-
calares desempenhavam importante função na subsistência dos trabalhadores e
consequentemente dos salários em dinheiro; porém, consideramos aqui que a bi-
bliografia sobre o tema desconsiderou outro aspecto dessas produções: a sua via-
bilidade como atividade geradora de lucro para o fazendeiro, notadamente num
momento de crescimento das cidades em São Paulo.
Tratemos agora da documentação consultada (Livros Cartoriais) para expli-
citar nossos argumentos, que indicam um grau de exploração da força de trabalho
maior do que se supunha.
Na ampla maioria dos contratos pesquisados nos municípios citados, inde-
pendentemente de se situarem em zonas novas ou antigas, os fazendeiros impu-
nham cláusulas que lhes garantiam a “preferência de venda” sobre as produções
dos colonos, tanto de alimentos quanto de café. Nossa hipótese é a de que essa
“negociação preferencial” era permeada por uma relação extremamente desigual
travada entre contratantes e contratados, o que poderia significar uma redução
dos preços dos produtos vendidos pelo trabalhador. Há que se questionar, nes-
se ponto, qual era a possibilidade de os colonos negociarem livremente os exce-
dentes de sua produção. Existia um mercado para esses produtos? Quem eram os
outros compradores? Os trabalhadores poderiam escolher livremente para quem
 322
vender? Tinham acesso direto aos consumidores urbanos? Acreditamos que não.
Pensamos que intermediações extremamente desfavoráveis aos trabalhado-
res eram operadas nessa relação contratual, principalmente quando os trabalha-
dores caíam nas “amarras” dos adiantamentos. Acreditamos que a concessão de
adiantamentos aos colonos figurava como importante mecanismo de expropria-
ção, diminuindo a futura capacidade de negociação do trabalhador no momento
de liquidação do contrato e tolhendo seus direitos de dispor de suas produções
como bem entendesse. Exemplificando, quando em 1929 o empreiteiro Otta Kiu-
ziro contratou Yamamoto Keinzo, Imoto Zengoro, Tanaka Guiytero e Meda Gohe
para formar trinta e seis mil cafeeiros numa fazenda localizada em Rancharia, du-
rante quatro anos, estabeleceu-se a seguinte cláusula contratual: “os outorgados
não poderão vender cereais colhidos na propriedade do outorgante, sem consen-
timento deste, estando devendo ao mesmo qualquer quantia”. Esse caso eviden-
cia a importância estratégica dos adiantamentos para se “amarrar” os trabalhado-
res em termos de negociação dos excedentes produzidos, e não apenas como um
mecanismo para “fixar” o trabalhador na fazenda, como sempre fora destacado
pela bibliografia.
Ainda tratando dos adiantamentos, em 1930, Luiz Bezerra de Castro contra-
tou os irmãos José, Antônio e Miguel Marchetti para tratar de dezoito mil e nove-
centos cafeeiros em regime de empreitada no sítio Bairro Paraíso, em Igaraçu do
Tietê. Fora aberto aos trabalhadores um crédito na mercearia de 300$000 para que
cobrissem as despesas iniciais do contrato, que correriam por sua conta. Ser-lhes-
-ia cobrada uma taxa de juros de 8% ao ano, de modo que junto com a empreitada

41 Ver a atuação de algumas Companhias de Colonização, tais como a CAIC, que facilitavam a aquisição de
lotes, parcelando o pagamento pela propriedade.

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“correria” um contrato de empréstimo, que comprometeria parte da futura renda


dos Marchetti, pois a dívida seria abatida da parcela da produção que lhes cabia.42
O mesmo expediente fora usado por Jacob Murbach, que ao fechar uma empreita-
da com Victorio Silvestrim para a formação de cinco mil e quinhentos cafeeiros no
Sítio Palmeiras, em Botucatu, adiantou-lhe um conto de réis43, e também por Lauro
Sodré Ribeiro, que ao acertar uma parceria sobre a produção de trinta e cinco mil
pés de café e dez alqueires de cereais, com José Januário, na fazenda Santa Ma-
ria, em Bofete, forneceu-lhe 300$000 a título de empréstimo.44 Os empréstimos e
adiantamentos eram amplamente recriminados pela Agência Oficial de Colocação,
órgão criado para normatizar as relações de trabalho no campo45, pois estabele-
ciam dependências dos trabalhadores em relação aos fazendeiros, tornando-os
assim mais suscetíveis a aceitarem termos de negociação não favoráveis, como,
por exemplo, vender sua parcela da produção de café e cereais a preços abaixo do
mercado, porém, nunca deixaram de ser praticados. Tais dependências se torna-
ram ainda mais explícitas quando percebemos que o fazendeiro constituía a única
e exclusiva fonte de crédito, sendo que temos que considerar, também, que em
muitos casos os empréstimos e adiantamentos não significavam que o trabalhador
teria acesso ao “dinheiro vivo”, mas disporia de um crédito aberto na mercearia
da fazenda.
As mercearias, ou “vendas”, por seu turno, também funcionavam como peça
central na exploração dos trabalhadores, pois muitas vezes, em vez de receberem
pagamentos em dinheiro, lhes era aberto um crédito na venda, obrigando-os a ali
 323 queimar seus saldos, adquirindo produtos que não reuniam condições de produzir,
mas que eram indispensáveis à vida rural naquele contexto, tais como sal, farinha
de trigo, ferramentas, arames etc. Pode-se pensar que as vendas foram essenciais
para a concentração da produção de gêneros alimentícios e de café nas mãos dos
fazendeiros, pois lá se efetivavam relações comerciais amplamente favoráveis a
estes. Há casos, como na região Mogiana, em que os fazendeiros criavam notas
e moedas que circulavam na propriedade e circunvizinhanças, criando-se uma es-
pécie de sucedâneo monetário com um raio de ação limitado, mas que cumpria
importante missão de redução dos custos monetários de produção e impunham
a obrigatoriedade de liquidação daquela “moeda” somente onde fosse aceita: na
venda da fazenda. Outra forma de exploração comum a todas as regiões pesquisa-
das fora a utilização da estrutura da fazenda para reduzir a parcela de café ou de
alimentos que caberia, segundo contrato, aos trabalhadores.46
Existiam também outras formas de coibir a livre negociação dos cereais por
parte dos trabalhadores, cobrando-lhes uma determinada quantia pelo transporte
das sacas, como se depreende do seguinte trecho: “os cereais que os empreiteiros
colherem no sítio serão vendidos pelos mesmos, por intermédio da administração,
que fará o transporte dos ditos cereais ao preço de 3$000 por saco de 60 kg”.47
Evidentemente, a taxação sobre as quantidades transportadas praticamente proi-
bia a comercialização com outros agentes, limitando o mercado para os parceiros
e empreiteiros. Numa outra situação, num contrato lavrado entre Lauro Dias, de
Bebedouro, e Venerando Casalindo e outros, para formar quarenta e três mil e qui-
nhentos cafeeiros na fazenda Santa Maria, em Lins, os contratados se obrigavam a

42 Livro de Notas n. 105, fls. 188. 1.º Ofício Civil de São Manuel. 19/11/1930.
43 Livro de Notas n. 123A, fls. 28. 1.º Ofício Civil de Botucatu. 29/11/1928.
44 Livro de Notas n. 128A, fls. 150. 1.º Ofício Civil de Botucatu. 22/12/1936.
45 FALEIROS, op. cit., 2006.
46 FALEIROS, op. cit., 2010, p. 159.
47 Livro de Notas n. 11, fls. 74. 1.º Ofício Civil de Lins. 20/01/1930.

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“dar preferência ao contratante para a venda de cereais, exceção feita aos colhi-
dos no primeiro ano, que deveriam lhe ser vendidos com a diferença, para menos,
de 2$000 por saca, de acordo com os preços vigentes na ocasião”.48 Essa cláusula
contratual identifica nitidamente a possibilidade de o fazendeiro adquirir parte da
produção dos colonos a preços menores do que os praticados no mercado.
Nesse mesmo sentido, atuou Pedro Altenfolden Cintra Silva, que em 1934
contratou Rosalino Bellini para tratar de trinta mil e oitocentos cafeeiros abando-
nados, em regime de parceria, na Fazenda Nossa Senhora da Solette, em São Car-
los. Bellini receberia como remuneração dois terços da produção dessa lavoura,
e também teria direito ao plantio intercafeeiro.49 Chama a atenção nesse caso o
fato de Cintra Silva estabelecer em contrato a compra da produção do contratado
a 80% do valor de mercado na ocasião da venda, revelando ser plausível a hipóte-
se de os trabalhadores se submeterem às táticas de estreitamentos de mercado
impostos pelos fazendeiros. Caso os trabalhadores estivessem endividados por
conta dos adiantamentos e das compras realizadas nas “Vendas”, esses estreita-
mentos poderiam ser ainda maiores, de modo que boa parte da produção que lhe
cabia nem sequer chegava às suas mãos.
Outra forma de se extrair excedentes dos trabalhadores era obrigá-los a
ceder gratuitamente parte da produção de alimentos. Na escritura lavrada entre
Francisco Guzzo e Miguel Rubi (espanhol), “obrigava-se o outorgado a dar ao ou-
torgante, por ano, das plantações que tiverem quatro sacos de milho debulhado,
quatro sacos de feijão e dois sacos de arroz limpo”.50 Pode parecer uma quanti-
dade irrisória (quatro sacos anuais), porém, imagine as quantidades de alimentos
acumulados pelo fazendeiro ao estabelecer esse tipo de expropriação com todos
 324
os trabalhadores da fazenda. Certamente o objetivo prioritário de tais cláusulas
era minorar os gastos do fazendeiro com a compra desses alimentos nos merca-
dos citadinos, tornando-se o casarão da fazenda praticamente uma unidade autos-
sustentável, bem como o palacete ou a casa construída no espaço urbano. Pode-
-se pensar também que, de alguma forma, caso angariasse grandes quantidades
de alimentos, o fazendeiro poderia organizar a colocação dessa produção no mer-
cado, abastecendo as vendas rurais e as casas de comércio localizadas na cidade,
auferindo lucros a partir de um circuito promissor, dado o avanço da urbanização.
Essa espécie de “talha” praticada na cafeicultura fora recorrente em outras escri-
turas, variando-se as quantidades repassadas gratuitamente ao fazendeiro. Láza-
ro Carlos Gonçalves, por exemplo, ao contratar Constante Pope para “tocar” em
parceria os cafeeiros da Fazenda São João da Boa Vida, em São Carlos, estendera a
divisão igualitária da produção também para o arroz, o milho, o feijão e as demais
culturas, beneficiando-se de culturas que eram reconhecidamente pertencentes
aos trabalhadores, segundo o que indica a bibliografia.51
Ainda tratando dessa questão, um indício interessante sobre a concentra-
ção da produção de alimentos nas mãos dos proprietários é a escritura lavrada
em 1923 entre Antônio Petraglia e os trabalhadores Waldemar Berdini e Marcelino
Miguel Berdini, em Franca. Nesse contrato, os Berdini se obrigavam a tratar de
oito mil cafeeiros, já plantados na chácara Vila Euphrásia, recebendo 0$400 por
cada cova formada, além de toda a produção de café num prazo de quatro anos.

48 Livro de Notas n. 16, fls. 55. 2.º Ofício de Pirajuí. 08/11/2006.


49 Livro de Notas n. 93. fls. 111. 2.º Ofício Civil de São Carlos. 21/08/1934.
50 Livro de Notas n. 69. fls. 73. 2.º Ofício Civil de São Carlos. 03/08/1919.
51 Ver os trabalhos de Emília Viotti da Costa (1979), Thomas Holloway (1984), Maurício Font (1985) e Brasílio
Sallum Jr. (1986).

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ESTRATÉGIAS DE EXPROPRIAÇÃO E CONTRATOS DE TRABALHO...

Possuíam também o direito de exercer o plantio intercafeeiro e direito a um pas-


to, mas obrigatoriamente teriam que ceder a Petraglia um carro de milho e um
saco de feijão por ano, gratuitamente.52 David Bernardes e João Lombardo, por
exemplo, teriam que ceder ao Capitão Manoel Alves Pereira metade da produção
de bananas e laranjas.53 Em Jaú, algumas escrituras cartoriais também sugerem
que se estabeleciam mecanismos de expropriação também sobre a produção de
alimentos dos colonos, como no contrato lavrado em 1936, quando Arthur Lopes
Nogueira contratou Francisco Royo e José Lobo para cuidar dos cafeeiros da fa-
zenda Recreio, em Pederneiras. Tratava-se de uma parceria, na qual os contrata-
dos teriam direitos sobre 50% da produção de café e 80% da produção das demais
lavouras, sendo o restante pertencente ao fazendeiro, indicando que a parceria se
estenderia também às demais plantações.54
Os estreitamentos de mercado e as apropriações unilaterais de parte da pro-
dução dos trabalhadores evidenciados nos parágrafos anteriores ganham sentido
quando pensamos que os fazendeiros se interpunham entre os seus colonos e o
mercado consumidor. Evidentemente existia uma “hierarquia de rentabilidades”,
na qual a atividade voltada à exportação mostrava-se a mais lucrativa, porém a
produção de alimentos voltada ao mercado interno também constituía uma ativi-
dade interessante aos fazendeiros. Contrariando a bibliografia, acreditamos que
os cafeicultores também operavam nesse mercado, concentrando a pulveriza-
da produção de seus subordinados e comercializando-as nas Casas Comerciais e
Armazéns localizados nas cidades mais próximas, que, por seu turno, realizavam
 325 uma concentração ainda maior dessas produções e as remetiam, por ferrovia, aos
principais centros consumidores de alimentos, Campinas e São Paulo. Acreditamos
que os “estreitamentos de mercados” impostos aos trabalhadores rurais capta-
dos direta ou indiretamente nas escrituras pesquisadas indicam a existência de tal
circuito, que reservava rentabilidade considerável aos agentes que nele atuavam.55
Tratando agora do café, outro mecanismo utilizado para se diminuir o núme-
ro de sacas que pertenceriam aos trabalhadores era a cobrança de taxas em espé-
cie pela utilização da máquina de beneficiamento. Em alguns casos, eram aplicadas
multas, caso o colono beneficiasse seus cafés em máquinas de outras fazendas ou
mesmo na cidade, como na escritura lavrada entre a Fazenda Reunidas Irmãos Ca-
margo, sediada na capital do estado, e os empreiteiros Antônio Piccoli, João Pires,
José Pardo, Raphael Carvalho, Felix Pardo, Antônio Domingues, Izaías Domingues,
Rogério Moura, José Antônio Domingues, João Adobbo, Gabriel Moralez e João
Mascarin, que durante seis anos teriam que formar setenta e nove mil cafeeiros na
Fazenda Salto, em São Carlos.56 Os empreiteiros receberiam como remuneração
toda a produção dessa lavoura, e também poderiam utilizar os pastos da fazenda
para suas criações e para o plantio de cereais nas fileiras do café. Por outro lado,
toda a produção dos colonos teria que ser obrigatoriamente beneficiada na Fazen-
da ao preço de 0$400 por arroba. Considerando que a produtividade nesse municí-
pio para o ano de 1918 era de quarenta e cinco arrobas por mil pés, estimamos que
por esse mecanismo o fazendeiro embolsaria cerca de quatro contos e quinhentos
mil réis entre 1922 e 1924, anos produtivos dos cafeeiros formados em 1918.57 Em
muitos casos, estipulavam-se preços proibitivos à utilização de outras máquinas

52 Livro de Notas n.109, fls.80. 2.º Ofício Civil de Franca. 16/07/1923.


53 Livro de Notas n.145, fls.70. 2.º Ofício Civil de Franca. 05/05/1928.
54 Livro de Notas n.220, fls.31. 2.º Ofício Civil de Jaú. 20/07/1936.
55 FALEIROS, op. cit., 2010, p. 468.
56 Livro de Notas n. 67. fls. 95. 2.º Ofício Civil de São Carlos. 03/08/1918.
57 Consideramos a produtividade do ano agrícola de 1921-22, de quarenta e oito arrobas de café por cada mil pés.

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ROGÉRIO NAQUES FALEIROS

de beneficiamento que não as indicadas em contrato, como no caso de Galdino


Rosa Lima que, ao contratar os espanhóis João Fernandes Fernandes e Manuel
Bernabé Crisol, estipulou o preço de 1$000 pelo beneficiamento de cada saco de
60 kg, desde que fosse realizado na máquina de Luiz Chrisógono de Castro58, em
Franca; caso o beneficiamento fosse feito em outra máquina, os trabalhadores
teriam que pagar 2$000 pela mesma operação. Inviabilizando o beneficiamento
em outros equipamentos, os fazendeiros garantiam para si uma grande deman-
da que mantinha a viabilidade da estrutura montada na fazenda. Evidentemente,
essas práticas indicam significativa redução da parcela de café que caberia aos
trabalhadores, evidenciando que a modernização da infraestrutura das fazendas
potencializava a exploração do trabalho, dando caráter permanente aos desnive-
lamentos sociais, sendo, por esse prisma, também decisivas para a acumulação de
capitais no complexo cafeeiro. A cobrança de taxas para o transporte da produção
dos trabalhadores dos seus respectivos talhões até as máquinas ou armazéns agia
no mesmo sentido, valendo-se os proprietários das estradas, carroças, carros e
animais existentes na fazenda.59
As despesas com transporte também atuavam como mecanismos que bene-
ficiavam os fazendeiros em sua relação com os trabalhadores do café. Sebastião
Botelho, em empreitada lavrada em 1935, acertou a formação de sessenta e três
mil cafeeiros com José Bordim e outros na fazenda São João, localizada em Santa
Cruz do Rio Pardo. Os empreiteiros receberiam 0$800 por cada cova formada e
toda a produção de café, além do direito de cultivar arroz, milho e feijão nas fileiras
do cafezal. Por outro lado, teriam que pagar 2$000 por carreto entre a sua roça e
o terreiro de secagem, além de uma taxa de 4$000 sobre cada carro estranho à  326
fazenda que adentrasse a porteira, inibindo a negociação da sua produção com
outros compradores.60 Essa evidência indica que os fazendeiros utilizavam a estru-
tura montada na fazenda para abocanhar uma parcela maior das produções dos
trabalhadores, impondo o monopólio do transporte das sacas.
O mais cruel disso é que muitas vezes essa estrutura utilizada para expro-
priar ainda mais os trabalhadores era construída por eles próprios, como indica a
escritura lavrada entre Paula Victória Barrancos e Euselino Soares Ribeiro. Nesse
contrato de empreitada, lavrado em Novo Horizonte, Soares Ribeiro teria como
remuneração toda a produção de café ao final de quatro anos, sendo que “o pro-
prietário nada pagaria ao segundo contratante pela formação dos quatro mil pés
de café, e demais benfeitorias que o mesmo tenha feito em sua propriedade”.61
Por se tratar da formação de uma lavoura numa região de fronteira, é bem pro-
vável que na fazenda ainda não existissem casas para moradia, estradas, pastos
cercados, chiqueiros para os porcos, pomares e hortas, de modo que para garantir
a viabilidade de sua existência, o contratado teria que construir todas essas benfei-
torias sem nada receber, como indica o excerto acima. A ideia é a de que não só os
cafeeiros eram formados a baixíssimo custo, mas também uma significativa parte
da estrutura de produção da fazenda, destacadamente aquelas obras diretamente
ligadas ao rebaixamento dos custos monetários dos fazendeiros.62
Nesse sentido, podemos destacar as escrituras em que o ônus da construção
de benfeitorias recaía sobre os trabalhadores. Em 1928, Deocleciano Rodrigues

58 Livro de Notas n.124, fls. 68. 2.º Ofício Civil de Franca. 01/10/1925.
59 FALEIROS, op. cit., 2010, p. 475.
60 Livro de Notas n. 215, fls. 21. 2.º Ofício Civil de Jaú. 27/07/1935.
61 Livro de Notas n. 13, fls. 92. 2.º Ofício Civil de Novo Horizonte. 04/03/1926.
62 FALEIROS, op. cit., p. 365.

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ESTRATÉGIAS DE EXPROPRIAÇÃO E CONTRATOS DE TRABALHO...

Seixas contratou Faustino Martins para formar vinte e cinco mil cafeeiros na Fa-
zenda Boa Vista, em Araraquara, durante quatro anos. Receberia como remunera-
ção 1$000 por cada cova formada ao final do período, além de toda a produção de
café. Contudo, caso fizesse alguma benfeitoria na propriedade, não seria ressarci-
do, mesmo que essas construções fossem fundamentais para o bom andamento
da empreitada, tais como terreiros, tulhas, curvas de nível para as enxurradas etc.
Definiu-se a seguinte cláusula entre as partes:

Quaisquer benfeitorias, pastos, estradas, ranchos, plantações, e tudo


quanto mais o segundo contratante haver necessidade de fazer ou
construir no imóvel, inclusive cercas, mangueirões, poços, etc., findo o
presente contrato passarão a pertencer ao outorgante independente
de qualquer pagamento ou indenização.63

Outro exemplo é o caso dos trabalhadores César e Vicente Paulino, que,


quando contratados pelo Coronel Joaquim Pereira Goulart, em 1923, obrigaram-se
contratualmente a construir as casas em que morariam e um pasto para quarenta
animais.64 Além da construção da casa, os trabalhadores responsabilizavam-se pela
construção de benfeitorias como o mangueirão para os porcos, pela construção de
cercas e pela formação de pastos para o número de animais estipulados em con-
trato, pela construção de paiol, tulha e pela manutenção das estradas da fazenda.
Por esses mecanismos, o fazendeiro equipava e desenvolvia a estrutura da fazenda
sem custo algum, e nos contratos futuros poderia negociar em melhores condi-
 327 ções, já que toda a estrutura de habitação dos trabalhadores já estaria montada.
Outra forma de exploração dos trabalhadores era a obrigatoriedade de exer-
cer funções de manutenção da fazenda sem o recebimento de nenhuma remune-
ração. Essa espécie de “corvéia” se referia às funções de manutenção e formação
de pastos, conserto de cercas, abertura de estradas e construção e, em alguns
casos, o trabalho na própria colheita, caso fosse necessária uma mão de obra su-
plementar. Emílio Martins, ao contratar Flauzino Marques e João Link para a for-
mação de cinco mil cafeeiros na Fazenda Santa Mariazinha, em São Carlos, definiu
a seguinte cláusula na escritura: “o empreiteiro se obriga a trabalhar na fazenda
dos proprietários no roçamento de pastos sem receber remuneração nenhuma”.65
Nesse caso, trata-se dos serviços de manutenção dos pastos, mas poderia ser qual-
quer outro; o importante é que os trabalhadores cediam dias de trabalho gratuito
aos fazendeiros, explicitando a relação desigual travada entre ambos.
Vigoravam nos contratos algumas cláusulas que tinham como objetivo se-
gurar os trabalhadores nas fazendas. Os contratos eram tão “leoninos” que os
fazendeiros reservavam-se o direito de não pagar, ou pagar quando lhes convies-
se, como se depreende do seguinte trecho: “caso não possa o proprietário pa-
gar o contratado no final desta empreitada, terá um ano de prazo para efetuar o
pagamento”66, ou

se no vencimento deste contrato o primeiro outorgante não fizer o pa-


gamento ao segundo da importância verificada de acordo com as cláu-
sulas já mencionadas, o segundo outorgante continuará a tratar do café
como colono recebendo como pagamento anual e da colheita dos fru-

63 Livro de Notas n. 32. fls. 95. 2.º Ofício Civil de Araraquara. 19/06/1928.
64 Livro de Notas n.111, fls. 18. 2.º Ofício Civil de Franca. 28/07/1923.
65 Livro de Notas n. 99. fls. 95. 2.º Ofício Civil de São Carlos. 24/01/1928.
66 Livro de Notas n. 61, fls. 21. 2.º Ofício Civil de Pirajuí. 02/02/1932.

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ROGÉRIO NAQUES FALEIROS

tos o preço corrente na ocasião, até se pagar com os frutos produzidos,


ficando então já a metade dos frutos do quinto ano destinada a esse
pagamento.67

Esses trechos evidenciam as dificuldades vivenciadas pelos trabalhadores no


momento de liquidação das escrituras. Geralmente, os valores monetários envol-
vidos eram “acertados” no final dos quatro anos de contrato, pois os fazendeiros
tinham que verificar, depois desse período, o número de cafeeiros formados, se
as lavouras tinham sido bem cuidadas etc., e, em caso de má formação, oriunda
de maus tratos, era necessário descontar os valores das falhas ou aplicar as mul-
tas que penalizavam os trabalhadores que não haviam desempenhado as tarefas
adequadamente.
Por conta da fiscalização, e também para saldar seus débitos quando as la-
vouras já fossem produtivas, as somas de dinheiro a serem despendidas, no caso
da existência de saldos, acumulavam-se no final do contrato, além do mais, o pa-
gamento pelo trabalho estaria submetido diretamente às condições de preço e
de produtividade de um determinado ano. Já prevendo situações desfavoráveis,
os fazendeiros se protegiam ao estipular cláusulas que previam a prorrogação
contratual, o que certamente era muito positivo, uma vez que os ganhos da em-
preitada, os valores pagos por cada cova formada seriam reduzidos a salários de
colonos e/ou pagos com a produção de café. De certo modo, o contrato já previa
o “calote”, resguardando os interesses dos fazendeiros.
Por outro lado, quando por algum motivo o fazendeiro quisesse se livrar de
algum trabalhador, poderia acionar as cláusulas de “dispensa”. Observemos o tre-  328
cho que se segue:

o outorgado que se recusar ao cumprimento de qualquer das cláusulas


deste contrato, a fazenda as fará por conta do mesmo, cobrando-lhe
ainda a multa que couber, e no caso de reincidência de abusos ou de in-
subordinação à disciplina da fazenda poderá ser dispensado sem remu-
neração nenhuma pelos serviços feitos até ali e obrigado a desocupar a
casa imediatamente.68

A fiscalização dos serviços cabia ao capataz da fazenda, sendo ele o respon-


sável pelo bom andamento da formação das lavouras, os julgamentos de conduta,
a recepção de visitas nas colônias etc. Entretanto, cabe salientar que, se por um
lado as escrituras possibilitavam a prorrogação do contrato em caso de atraso nos
pagamentos, por outro, estabeleciam a possibilidade de um rompimento unilate-
ral por parte do fazendeiro, bastando para isso que se entendesse que uma deter-
minada atividade não tivesse sido realizada a contento, uma vez que os critérios
de fiscalização, definidos em contrato, eram extremamente subjetivos, podendo
ser o contratado “demitido” por qualquer motivo: um número excessivo de por-
cos, a utilização de terras para pastos não definida em contrato, a julgada “inapti-
dão” para o trabalho, a preguiça, o excessivo consumo de álcool, enfim, uma am-
pla gama de justificativas que poderiam ser utilizadas indiscriminadamente pelo
fazendeiro, explicitando uma correlação de forças extremamente desigual que se
efetivava nesse tipo de escritura cartorial.

67 Livro de Notas n. 03, fls. 79. 2.º Ofício Civil de Pirajuí. 08/04/1922.
68 Livro de Notas n. 35, fls. 56. 2.º Ofício Civil de Pirajuí. 28/11/1927.

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ESTRATÉGIAS DE EXPROPRIAÇÃO E CONTRATOS DE TRABALHO...

Considerações Finais
Os exemplos e situações aqui considerados revelam mecanismos de explora-
ção dos trabalhadores rurais sediados na cafeicultura paulista até então não con-
siderados pela bibliografia sobre o tema, indicando para o fato de que as relações
de trabalho travadas eram mais deletérias aos trabalhadores do que se supunha.
Tal revelação decorre da utilização de uma fonte documental até então pouco uti-
lizada ― os Livros Cartoriais. Nossos apontamentos corroboram a tese de uma
melhor remuneração pelo trabalho existente nas zonas novas (fronteira) em fun-
ção não somente das rendas não monetárias advindas de um maior espaço para as
culturas intercalares, como também dos pagamentos em dinheiro pela formação
de lavoura, mais recorrentes nessas regiões. Por outro lado, vimos que no conjun-
to das regiões paulistas de cafeicultura foram colocadas em prática estratégias de
rebaixamento dos ganhos dos trabalhadores no que se refere às suas produções
de café e de gêneros alimentícios. Há que se considerar que tais estratégias foram
aplicadas num cenário marcado por hierarquias sociais e políticas extremamente
rígidas que esvaziavam qualquer sentido de igualdade pressuposto entre as partes
contratantes. As formas de exploração aqui desveladas assinalam para a perpetu-
ação dos desnivelamentos da sociedade brasileira, reiterando a desigualdade no
tempo e no espaço.

 329

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ROGÉRIO NAQUES FALEIROS

ANEXOS

Mapas – regiões e municípios pesquisados em Faleiros (2010). São Paulo/Brasil.

 330

Fonte: Faleiros (2010).

Recebido em 20/09/2012
Aprovado em 10/01/2013

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La orientación profesional en la
Argentina (1920-1955): un ejercicio de
historia del presente
Victoria Haidar*

Resumen: Este artículo examina las procedencias, múltiples y heterogéneas, de la


orientación profesional en la Argentina, con la finalidad de mostrar que su confi-
guración en el presente es, en parte, singular y, en parte constituye una reformu-
lación de temas de más larga data. A partir del análisis de un corpus integrado por
discursos históricos (1920-1955) y otros de actualidad (1999-2012), provenientes del
campo de los saberes expertos y la política pública se observan las continuidades
y discontinuidades que caracterizan su problematización: la limitación de sus pro-
pósitos, la persistencia del “tema” de la empleabilidad, el desplazamiento entre un
énfasis inicial en la satisfacción de fines sociales y la actual importancia atribuida a
la realización personal y su continuo funcionamiento como una estrategia “tran-
saccional”, que procura el ajuste entre los deseos individuales y los requerimientos
del mercado.

Palabras claves: orientación profesional, empleabilidad, productividad.

Abstract: This article examines the multiple and heterogeneous sources of profes-
sional guidance in Argentina, in order to show that its configuration in the present
is partly unique and partly constitutes a reformulation of longer-standing issues.
Through the analysis of a corpus comprising historical (1920-1955) and current dis-
courses (1999-2012), belonging to the field of expertise and policy, we observe the
continuities and discontinuities that characterizes its problematization: the limita-
tion of its purposes, the persistence of the “theme” of employability, the displace-
ment between an initial emphasis on meeting social goals to the current emphasis
on personal fulfillment and its continued operation as an “compromise” strategy
which seeks the fit between individual desires and market requirements.

Keywords: professional guidance, employability, productivity.

I. Introducción
En la actualidad argentina, la orientación profesional designa un campo espe-
cífico de estudios e intervenciones con su correspondiente repertorio de institucio-
nes, revistas especializadas y textos fundadores. Inscripta en el ámbito más general

* Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas. Universidad Nacional del Litoral (Ar-
gentina). vhaidar@fcjs.unl.edu.ar

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VICTORIA HAIDAR

de la(s) psicología(s), pero en diálogo constante con las ciencias de la educación,


la misma reconoce, en ese país, una historia cuyos orígenes se remontan a la dé-
cada del ’20 del siglo XX. Su desarrollo en el campo laboral y educativo es, incluso,
muy anterior a la profesionalización de la psicología, ocurrida recién hacia media-
dos de los años ’501. En esa dirección, las iniciativas de los psicólogos, médicos,
filósofos, educadores etc. en el terreno de la psicotécnica2 son recuperadas por
los historiadores como uno de los antecedentes más firmes del enraizamiento de
dicha disciplina en el país. La misma comenzó a ser practicada por los socialistas,
que promovieron la utilización de la fisiología y la psicología experimental para la
resolución de los diversos problemas que planteaba el trabajo industrial.3
Un segundo núcleo de experiencias, inscriptas en el campo de la psicología
experimental y afines a las ideas krausistas4, fue impulsado por el filósofo y psicó-
logo alemán Carlos Jesinghaus, discípulo de W. Wundt, quién en el seno del “Con-
greso del Trabajo” realizado en el año 1923 en la Provincia de Santa Fe, propuso la
creación de un “Instituto Central de Orientación Profesional”. Dicho proyecto, que
contaba con el respaldo de Antonio Sagarna, el Ministro de Justicia e Instrucción
de la Nación, se concretó durante el gobierno del presidente radical Marcelo T. de
Alvear. Instalado en 1925 en la ciudad de Buenos Aires, el Instituto de Psicotécnica
y Orientación Profesional atendía consultas, realizaba exámenes médicos y psico-
técnicos, publicaba como material ad hoc una “Guía de Estudios Superiores” y una
“Cartilla de Orientación Profesional”. Además, funcionaba como un centro de for-
mación de orientadores. Entre sus responsables, además de su creador, estaba el
psicólogo Gregorio Fingermann, quién se ocupó de continuar con la tradición del
estudio integral de la personalidad iniciada por Jesinghaus en la Argentina, cuando  332
este último regresó a Alemania.
Con el golpe de Estado que, en 1930, encabezó el general José F. Uriburu y que
puso fin al gobierno del presidente radical Hipólito Irigoyen, el Instituto fue desfi-
nanciado. En 1931, el Museo Social Argentino (una institución creada en 1911 sobre
el modelo francés) solicitó al Ministerio de Justicia e Instrucción Pública la donación
del material del laboratorio para crear y sostener el Instituto como uno de sus orga-
nismos. Bajo la dirección de Fingermann, el mismo prestó servicios de orientación
y selección tanto a instituciones de las fuerzas armadas como a establecimientos
privados e inspiró la creación de gabinetes psicotécnicos en otras ciudades.
Durante la década del ’30 la orientación profesional concitó el interés del mo-
vimiento biotipológico5 desarrollado en la Argentina al calor de las ideas de Nicola

1 KLAPPENBACH, Hugo y PAVESI, Pablo. “Una historia de la psicología en Latinoamérica”. Revista Latinoa-
mericana de Psicología, Bogotá, v. 26, n. 3, p. 445-481, 1994.
2 La psicotécnica es el término que se utiliza desde los primeros años del siglo XX para designar el estudio
analítico de las diversas aptitudes que el hombre emplea en cualquier forma de actividad. Definida por pri-
mera vez por William Stern en 1903, el concepto recién fue puesto en circulación por el psicólogo alemán
Hugo Münsterberg hacia 1911.
3 ROSSI, Lucía. “Los socialistas y la psicología: tres momentos en el marco de la cátedra de psicología fisiológica
y experimental en la Universidad de Buenos Aires”. En ROSSI, L. y colaboradores. Psicología: su inscripción
como profesión. Buenos Aires: Eudeba, 2001, p. 101-112. Si bien relevantes, a lo largo del artículo no volvere-
mos sobre estos antecedentes porque los mismos no incluyen referencias a la orientación profesional.
4 El krausismo es una filosofía espiritualista que emergió a comienzos del siglo XIX en oposición al positi-
vismo materialista, y cuyo creador fue el filósofo alemán Karl C.F. Krause (1781-1832). En Argentina, dicha
corriente tuvo incidencia sobre el pensamiento y las prácticas del partido radical, particularmente sobre
el ex presidente Hipólito Irigoyen. Sobre la incidencia de esta filosofía en dicho país vid. BIAGINI, Hugo
(comp.). Orígenes de la democracia argentina. El trasfondo krausista. Buenos Aires: Legasa, 1989.
5 La biotipología es una corriente fundada en Italia en la primera posguerra por Nicola Pende que se pensó
como la instrumentación práctica de la eugenesia en el mundo latino. En la Argentina, el clima propicio
para su difusión llegó con el golpe de Estado de 1930, por la simpatía que despertaba en su líder castrense
las ideas del fascismo italiano

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LA ORIENTACIÓN PROFESIONAL EN LA ARGENTINA (1920-1955)...

Pende y Agostino Gemelli. Ya la Asociación de Biotipología, Eugenesia y Medicina


Social, creada en 1932, contaba con una Oficina de Psicotécnica y Orientación Pro-
fesional. Para los adeptos a esa corriente (como los médicos Arturo Rossi y Donato
Boccia), no era posible hacer psicotécnica sin la base de la biotipología porque
mientras ésta estudiaba la totalidad del individuo, aquella era sólo una parte espe-
cializada de la misma.
En el período de la “restauración conservadora” (1930-1943)6, las iniciativas
en el campo de la orientación profesional provinieron de la sociedad civil. Pero ha-
cia mediados de los años’ 40, de la mano del proceso de industrialización sustituti-
va de las importaciones, la psicotecnia volvió a ser impulsada, como en los ’20, por
el Estado. En 1944, la conducción militar que se impuso luego del derrocamiento
del presidente conservador Ramón Castillo (y que gobernó entre 1943 y 1946) esta-
bleció la Dirección Nacional de Aprendizaje y Orientación Profesional, cuya labor se
concentró, sobre todo, en orientar a los jóvenes aprendices de oficios industriales.
Durante los dos gobiernos del general Juan D. Perón (1946-1952, 1953-1955)
la cuestión de la orientación profesional recibió un gran impulso en el contexto,
más general, de su política de fortalecimiento y expansión de la enseñanza técnica,
institucionalizándosela a través de dos vías privilegiadas: la inclusión en el texto de
la Constitución reformada de 1949 y su consideración como uno de los “instrumen-
tos” del Segundo Plan Quinquenal, el programa económico-social del peronismo.7
Todas estas iniciativas y reflexiones que tuvieron lugar en Argentina se inscri-
bían en el marco de un contexto internacional y latinoamericano que impulsaba el
 333 desarrollo de la psicotécnica. Así, la primera Conferencia Internacional de Psicotéc-
nica se realizó en Ginebra en el año 1920, repitiéndose a lo largo de los años. Ya en
1928 la OIT había señalado la importancia que la misma tenía para la industria. Tam-
bién en otros países de Latinoamérica el período de entreguerras estuvo caracteri-
zado por la organización de diferentes dispositivos de orientación profesional, así
como por su reconocimiento en el campo jurídico. Merece destacarse el caso de
Brasil, cuya Constitución Federal de 1937 y, posteriormente, las Leyes Orgánicas
de 1942, 1943 y 1946 contemplaron esta institución. El despliegue de la psicotéc-
nica estuvo muy influenciado, en dicho país, por la acción de Emilio Mira y López,
un psicólogo cubano, radicado en España y exiliado de la dictadura franquista en
Argentina, que residió varios años en Brasil. En 1947, se organizó, bajo la dirección
de dicho especialista, el Instituto Nacional de Selección y Orientación Profesional
de Brasil, aunque ya en 1931 se había instaurado un servicio estatal de Orientación
Profesional en el estado de Sao Paulo.8
En lo que refiere al caso argentino, del que nos ocupamos aquí, entre 1920 y
1955 la orientación profesional fue problematizada en direcciones múltiples e inclu-
so contradictorias. Algunos de los temas que emergieron en el marco de esas re-
flexiones han despertado la atención de los historiadores de la psicología, quienes

6 ROMERO, Luis. Breve historia contemporánea de la Argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica,
2001.
7 El artículo 37 de la Constitución de 1949 prescribía que “la orientación profesional de los jóvenes (…) es
una función social que el Estado ampara y fomenta mediante instituciones que guíen a los jóvenes hacia
las actividades para las que posean naturales aptitudes y capacidad, con el fin de que la adecuada elección
profesional redunde en beneficio suyo y de la sociedad”. Por su parte, el Segundo Plan Quinquenal esta-
blecía que una de las bases sobre las que debía organizarse la política social y laboral era el “establecimien-
to de correlaciones racionales entre la aptitud del trabajador y su ocupación, a fin de obtener los más altos
índices de productividad y de retribución.” KLAPPEBACH, Hugo. “Historia de la orientación profesional en
Argentina”. Orientación y Sociedad, La Plata, n. 5, p. 1-14.
8 GONZÁLEZ BELLO, Julio. “La orientación profesional en América Latina. Fortaleza, Debilidades, Amenazas
y Oportunidades”. REMO, México, v. 5, n. 13, p. 44-49, nov. 2007-feb. 2008.

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se han ocupado, particularmente, de trazar periodizaciones.9 Teniendo en cuenta


esos antecedentes, pero sin ser fieles a las compartimentaciones que proponen, el
propósito que perseguimos en este artículo consiste en exhibir las procedencias, a
la vez múltiples y heterogéneos, de la orientación profesional en dicho país, con la
finalidad de explicitar tanto el carácter singular (novedoso, inédito) de su presente
como las “memorias discursivas” que resuenan en él, participando en la construc-
ción de su sentido.
Ciertamente, la pregunta por las formas, cambiantes, en que dicha cuestión
se ha problematizado tiene muchas aristas. En el marco de esta contribución nos
centraremos sobre dos de ellas: la pluralidad de objetivos a los que respondió y el
peculiar esfuerzo de articulación entre una dimensión o plano “macro” de acción
y otra dimensión o plano “micro” sobre la que se funda.10
Así, en la sección II mostraremos que, contra la actual tendencia a reducir
la orientación profesional a una estrategia dedicada a mejorar la empleabilidad
de diversas poblaciones (sub-sección II.1), la misma ha sido utilizada, a lo largo de
la historia, para múltiples propósitos, que incluían la cuestión de las condiciones
para el empleo y la productividad de la fuerza de trabajo (sub-sección II.2), la lucha
contra el desempleo (sub-sección II.3), la prevención de los accidentes de trabajo
(sub-sección II.4) y la pacificación social, objetivo este último que, por razones ex-
positivas será objeto de consideración en la sub-sección III.2. Una vez explicitada
la naturaleza polivalente de la orientación profesional, nos ocuparemos del análisis
de los diversos planos o niveles sobre los que la misma opera – un plano macro o
“social”, y otro micro o “ético” –; así como de las relaciones que se establecen
entre esos diversos niveles de operatividad, los saberes expertos sobre los que
 334
esa práctica se funda y las racionalidades que, en distintos períodos de la historia
argentina, han inspirado el “gobierno”11 de las poblaciones. Así en la sub-sección
III.1. sostendremos que, en la actualidad, la orientación profesional responde a

9 Desde la historia de la psicología se vinculan las transformaciones tanto de las prácticas de orientación y
selección profesionales como de los dispositivos de inscripción utilizados en el curso de las mismas con
dos grandes procesos de carácter socio-político: la democratización y la individualización de la sociedad.
Lucía ROSSI (Abordaje genealógico de protocolos según géneros y áreas profesionales. Sujeto implícito. Po-
nencia presentada en el II Congreso Internacional de Investigación y Práctica Profesional en Psicología,
Buenos Aires, 2010) encuentra una correspondencia entre el uso de dispositivos que permitían represen-
tar a los sujetos en tanto individualidades biográficas y los períodos de “democracia con participación am-
pliada” (década del ’20 y 1946-1955) y entre el empleo de fichas que tornan irrepresentable la singularidad
y el régimen de “democracia con participación restringida” (1930-1946). H KLAPPENBACH (“Historia de
la orientación…”, op. cit.) distingue dos etapas: una etapa de la orientación profesional colectiva, coinci-
dente con la implementación de políticas “planificadoras” (hasta fines de los’ 50) y una segunda etapa de
orientación individual que coincide con el ocaso de las ideologías planificadoras y el giro “clínico” que se
le imprimió desde los’ 70.
10 Así, a lo largo del artículo nos concentraremos en analizar de qué manera esas dos cuestiones (en el sen-
tido de “temas” y de “formas de interrogación”) se hicieron pensables en toda una serie de discursos.
Eso involucra, de por sí, la desconsideración de otras preguntas relevantes, tales como aquellas referidas
a la realización de acciones de orientación profesional, su impacto sobre las poblaciones, el logro de los
objetivos que se perseguían con ellas etc. Más allá de ello, en diferentes momentos del texto haremos
algunas referencias (en función de los datos disponibles) a esas dimensiones atinentes a la “efectuación”,
en las prácticas, de la orientación profesional, con la finalidad de incorporar a la reflexión elementos que
permitan ponderar la relevancia que los expertos, entre otras autoridades, le atribuían.
11 Por “gobierno” nos referimos a lo largo de este artículo a una forma específica de ejercer el poder, en-
tendido en términos de conducción de conductas. En este sentido, el gobierno no se refiere solamente a
la dirección política del Estado, sino que designa una actividad práctica más o menos calculada y racional,
llevada a cabo empleando una variedad de técnicas y formas de conocimiento, que procura modelar la
conducta (de uno mismo, de un individuo, grupo o población) operando sobre los deseos, aspiraciones,
intereses y creencias de los sujetos (cf. FOUCAULT, Michel. “Porqué estudiar el poder. La cuestión del
sujeto”. En: DREYFUS, Hubert y RABINOW, Paul. Michel Foucault: más allá del estructuralismo y la herme-
néutica. Buenos Aires: Nueva Visión, 2001, p. 241-259 y DEAN, Mitchell. Governmentality. Power and Rule in
Modern Society. London: Sage, 1999).

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las demandas de los “individuos” y activa procesos de formación de identidades


centrados sobre las ideas de “elección”, “auto-construcción” y “responsabilidad
personal”. Asimismo, argumentaremos que ello se debe a la convergencia entre el
giro “clínico” psicoanalítico que se le imprimió en la década del ’70 y la incidencia
que el neoliberalismo ejerce sobre la política laboral y social argentina desde la
década del ’90. Por el contrario, en la sub-sección III.2. explicaremos que, entre
1920 y 1955, la orientación fue problematizada desde un punto de vista colectivo,
articulándose con una serie de racionalidades y discursos políticos y éticos de ca-
rácter “social” y “nacionalista” o que, al menos, insistían en torno a la integración
entre los intereses “individuales” y aquellos “colectivos”. Matizando esas afirma-
ciones, no obstante, en la sub-sección III.3. defenderemos la idea de que, en todos
los casos, el funcionamiento de la orientación profesional como una “tecnología
de gobierno”12, se asienta sobre un delicado juego de “ajustes” entre el plano “mi-
cro” del individuo y “macro” de la sociedad. Finalmente, plantearemos una serie
de conclusiones (sección IV).
Desde un punto de vista teórico-metodológico, este artículo se inscribe en
una línea de indagación que combina herramientas provenientes de la historia del
presente13, la sociología de los saberes expertos y la teoría materialista del discur-
so. Su propósito es mostrar cómo lo que en el presente se dice (y por lo tanto,
se piensa) acerca de la orientación profesional, está condicionado, en parte, por
discursos de más largo alcance y cómo, en parte, es novedoso. Para ello, se analiza
un corpus que pone en diálogo dos series discursivas, que permiten que el análisis
 335 se efectúe en un doble registro sincrónico y diacrónico. Por un lado, un “dominio
discursivo de referencia”14 integrado por enunciados provenientes del campo cien-
tífico y del campo de la política social. Concretamente, las formulaciones analizadas
se tomaron de artículos publicados por expertos argentinos en revistas especiali-
zadas entre 1999-2012, período que coincide con la creación de la revista argentina
Orientación y Sociedad y que llega hasta la actualidad. Asimismo, como expresión
del discurso de la política social se incluyó un “Manual de Formación” en orienta-
ción profesional elaborado en el año 2006 en el marco del Programa de Calidad del
Empleo y la Formación Profesional del Ministerio de Trabajo, Empleo y Seguridad
Social de la Nación (en adelante MTEySS).15 Por otro lado, un “dominio discursi-
vo de memoria”16 constituido por enunciados procedentes, asimismo, tanto del

12 Por “tecnología de gobierno” entendemos aquí una regularidad que organiza las acciones de los individu-
os según cierto conocimiento, orientándolas hacia un fin. De lo que se trata, en el caso de la orientación
profesional como de muchas otras tecnologías de gobierno, es de modelar la conducta con la finalidad de
aumentar y optimizar las capacidades, las aptitudes o el estado de los individuos.
13 La “historia del presente” es un enfoque emplazado entre la historia de las ideas políticas y la sociología de
las tecnologías de gobierno que ha sido desarrollado por un conjunto de investigadores de habla inglesa, a
partir de la recuperación de los conceptos foucaultianos de “gobierno” y “gubernamentalidad”. En tal clase
de análisis, el presente se aborda como un “conjunto de cuestiones”. Su finalidad es revelar la pluralidad de
piezas de procedencias diversas que lo componen, la nuda contingencia y la historicidad de lo que parece
coherente, natural y contemporáneo (cf. BARRY, Andrew; OSBORNE, Thomas & ROSE, Nikolas. “Introduc-
tion”. En: BARRY, A.; OSBORNE, T. y ROSE, N. Foucault and Political Reason. England: UCL Press, 1996).
14 El dominio de referencia (COURTINE, Jean-Jacques. “Análisis del discurso político”. Langages, n. 62, p.
1-100, 1981.) incluye los textos que delimitan el corpus y funcionan como centro orientador del análisis. En
este caso está conformado por enunciados que, entre 1999 y 2012, tematizan la orientación profesional,
tanto en el campo de la política social como académico.
15 El Programa de Calidad del Empleo y de Formación Profesional fue creado en el año 2004 por la Secretaría
de Empleo del MTEySS en el ámbito de la Dirección Nacional de Orientación y Formación Profesional. Su
finalidad consiste en implementar mecanismos de asistencia técnica a una serie poblaciones formadas por
individuos ocupados y desocupados, con la finalidad de incrementar su empleabilidad.
16 El dominio de memoria (COURTINE, Jean-Jacques “El discurso…” op. cit.) se delimita a partir de series
discursivas que conforman las capas de la memoria (citadas, retomadas, contestadas, eludidas, olvidadas
o denegadas) de los documentos del campo de referencia.

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campo científico (artículos publicados en revistas especializadas, libros) como del


campo político (planes de gobierno, leyes), aparecidos entre 1920 y 1955.17 Dicho
período se inicia con las primeras reflexiones sobre la orientación profesional que
se registran en el país y culmina con el golpe de Estado que puso fin al segundo
gobierno peronista.

II. La orientación profesional: una tecnología


polivalente
La problematización actual de la orientación profesional se desarrolla en
condiciones institucionales muy diversas. Aun así, son frecuentes los intercambios
entre las voces provenientes del campo académico y aquellas que conforman los
documentos de los planes sociales que buscan combatir el desempleo y mejorar
la “calidad” de la fuerza de trabajo. Así, el “Manual de Formación” en Orientación
Profesional que publicó en el año 2006 el Ministerio de Trabajo y Empleo de la Na-
ción es un texto práctico, destinado a capacitar al personal de las Instituciones de
Formación Profesional que son agentes co-ejecutoras del Programa de Calidad del
Empleo. A pesar de ello, está habitado por voces – contemporáneas e históricas
– que se inscriben en el campo científico. Por su parte, los artículos académicos,
si bien no suelen hacer alusión directa al rol que la orientación desempeña en el

 336
marco de las políticas públicas, incluyen múltiples referencias relativas al mundo
del trabajo y de la producción. Sin dejar de reconocer la distancia que los separa,
el discurso de la política social y el discurso de la expertise “psi” convergen – como
mostraremos en la subsección siguiente – en pensar la orientación como una tec-
nología que, en sus múltiples áreas de actuación, busca optimizar el ingreso y la
actuación de los individuos en el mundo del trabajo, así como asistirlos en la ges-
tión de las múltiples situaciones de “transición” y “cambio” que, a lo largo de sus
vidas, deberán experimentar.
Por el contrario, el análisis de los discursos correspondientes a nuestro “domi-
nio de memoria”18, muestra que, entre 1920 y 1955, la preocupación por el empleo,
si bien preponderante, no alcanzaba a explicar el sentido que entonces se atribuía a
la orientación, y, en todo caso, se planteaba en el marco de otra red conceptual, en
donde los temas de la “empleabilidad” y su reverso, la “inempleabilidad” no eran
desconocidos, aunque se articularan con significantes diversos a los actuales.19

17 Esta sección del corpus, correspondiente al dominio de memoria, se constituyó a partir de las siguientes
fuentes, correspondientes al período 1920-1955: las memorias del Congreso del Trabajo (1923), los Anales
de la I Convención de Médicos de la Industria (1944), las Memorias de la II Conferencia para el Bienestar
del Lisiado (1946), el Segundo Plan Quinquenal (1952), las publicaciones del Instituto de Psicotécnica y de
Orientación Profesional dependiente del Ministerio de Justicia e Instrucción de la Nación y del Instituto
de Psicología Experimental de la Universidad de Cuyo, manuales y tratados de psicotécnica, orientación
profesional y medicina del trabajo y una serie diversa de artículos publicados en las revistas La Semana
Médica, Jornada Médica, Humanidades, Clínica del Trabajo, Seguridad e Higiene Industrial, Anales de Bio-
tipología, Eugenesia y Medicina Social y Medicina del Deporte y del Trabajo.
18 Nos referimos al corpus constituido a partir de las fuentes detalladas en la nota anterior.
19 A pesar de que la empleabilidad es un término de moda, una suerte de buzzword que se utiliza con fre-
cuencia, no se trata de una invención del presente. Para la historia del concepto vid. GAUTIÉ, Jêrome. “De
l’invention du chomage a sadeconstruction”, Genese, n. 46, p. 60-76. En el ámbito argentino: GRONDONA,
Ana. Tradición y traducción: un estudio de las formas contemporáneas del gobierno de las poblaciones
desempleadas en la Argentina. Tesis de Doctorado en Ciencias Sociales. En: http://www.centrocultural.
coop/uploads/tesisanaluciagrondona.pdf

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II.1. La orientación y la cuestión de la empleabilidad


En la actualidad, la reflexión y la práctica de la orientación están sobredeter-
minadas por el componente relativo al mercado de trabajo y a la configuración de
las subjetividades adecuadas a su funcionamiento. Forma parte de la más extensa
familia de las tecnologías “psi” que procuran asistir, acompañar, guiar, aconsejar a
los individuos en las decisiones y acciones que configuran la vida laboral/profesio-
nal. En el caso de las actividades de orientación que se desarrollan en el marco del
Programa de Calidad del Empleo y Formación Profesional del MTEySS, la actividad
sobre la que recae la asistencia es la búsqueda de empleo y el desarrollo de estra-
tegias personales de inserción en el mercado laboral.
Lo que se hace es asistir al individuo en toma de decisiones que refieren a
su desempeño en cuanto fuerza de trabajo; se procura optimizar ese proceso
mediante la reunión, organización y puesta a disposición de información relativa
tanto al mercado de trabajo (en el sector específico de actividad de que se trate)
como al trabajador mismo.
Desde la perspectiva de las autoridades (estatales), la orientación forma par-
te de la batería de instrumentos que junto a otros (la formación permanente, la
certificación de competencias etc.) apuntan a mejorar la empleabilidad de los indi-
viduos, es decir, en términos del propio programa, a aumentar las oportunidades
o chances de conseguir y mantener un empleo. La asistencia técnica que se ofrece
 337 reviste modalidades divergentes según los destinatarios sean “egresados” de al-
gún curso de formación o bien personas que procuran insertarse por primera vez
en el mercado laboral, presenten dificultades particulares para hacerlo o necesiten
“reconvertir” su perfil profesional. En el primer caso (orientación para la búsqueda
del empleo) la asistencia consiste en brindar herramientas que faciliten la confec-
ción y actualización de un CV, realizar entrevistas laborales exitosas, completar
solicitudes de trabajo etc. En el segundo caso, la ayuda no concierne a la forma en
que se busca empleo, sino a las estrategias (personales) de inserción en el mer-
cado. Para que esas estrategias sean eficaces, el servicio de orientación (talleres,
entrevistas etc.) procura evaluar las competencias y capacidades de los individuos
a la luz de las posibilidades y restricciones del contexto productivo.20
En cambio, en la reflexión que tiene lugar en el campo académico, el propósi-
to de la orientación aparece desagregado de acuerdo a la demanda del consultante,
que, a diferencia de lo que ocurre con los programas sociales, no está presupuesta
de antemano. Puede consistir en la elección de una profesión, una carrera, o bien en
la gestión de un cambio. Es que la desaparición de la idea del empleo de por vida, la
corrosión de la noción de carrera, la precarización laboral y el aumento del desem-
pleo (entre otros fenómenos que la sociología del trabajo se ha ocupado exhausti-
vamente de describir) han impactado sobre esta clase de práctica, determinando la
expansión de su campo de aplicación. Así, en la actualidad, junto a la clásica orien-
tación para el trabajo aparecen otros “tipos específicos” de intervención, como
la “orientación educativa” – dedicada a la inserción en los estudios y a mejorar el
rendimiento académico – y la “orientación para la carrera”, entendida esta última
como una suerte de asistencia para la realización de diferentes proyectos a lo largo

20 MTEySS. Orientación Profesional. Manual de Formación. Programa Calidad del Empleo y Formación Profe-
sional. Disponible en: http://www.trabajo.gob.ar/downloads/capacitacion/calidad_programa.pdf, p. 84 y
85, 2006.

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de la vida.21 En todo caso, a diferencia de los discursos provenientes del campo de la


política social, en la reflexión “psi” el acento está colocado más sobre la cuestión de
la “elección” que de la “búsqueda”. Como explica Rascovan22 la “orientación” es una
intervención tendiente a facilitar el proceso de elección de objetivos vocacionales.
El énfasis está puesto en la idea de elección, pero los posibles “objetos” que dicha
práctica considera provienen o del mundo del trabajo o del mundo de los estudios.
En los textos académicos, por otra parte, no hay alusión explícita a la em-
pleabilidad. Esto no quiere decir, no obstante, que el “tema” de las condiciones
para el empleo esté ausente. Esto es así, porque, aun articulada bajo la semántica
de la “elección” y la “autonomía”, la orientación continúa teniendo como hori-
zonte de referencia la inserción en el mercado de trabajo y la obtención de un
empleo. Aún en el marco de la “estrategia clínica”, que es encuadre dominante en
las reflexiones del campo, aquello que motoriza la acción de los psicólogos son los
problemas que suscita en los individuos “su futuro como estudiantes y producto-
res en el sistema económico de la sociedad a la que pertenecen”.23
Por otra parte, la orientación se efectiviza, también en ambos casos, en un
conjunto de acciones cuya eficacia depende de la “calidad” tanto de la información
de la que se dispone, como de aquella que se procura producir en el marco de la
relación “orientador-orientado”, así como del “uso” que el segundo haga ella. Esa
información refiere, por una parte, a una serie de dimensiones de carácter “social”
o, por lo menos, supra-individual: la oferta y la demanda del mercado de trabajo
(circunscripto localmente), la oferta de servicios educativos, las competencias re-
queridas para el desempeño de las distintas profesiones y ocupaciones. Y, por otra
parte, concierne a toda una serie de aspectos de carácter estrictamente subjetivo:
 338
las “competencias”, la biografía laboral y, en las intervenciones clínicas, a las po-
tencialidades y deseos de los individuos.
En el ámbito del Programa de Calidad del Empleo y Formación Profesional
del MTEySS, resulta explícito que la eficiencia del servicio de orientación se hace
depender de la disponibilidad real de información acerca del mercado laboral y de
las oportunidades de formación. Pero también en los encuadres clínicos el “sumi-
nistro de información”, relacionado tanto con lo “externo” – datos relativos a las
carreras profesionales y a los roles ocupacionales del mundo adulto – como con lo
“interno” – motivaciones personales, prejuicios etc. – se percibe como una instan-
cia necesaria del proceso de orientación.
Una inquietud semejante inspiraba, como veremos en la sub-sección siguien-
te, asimismo, la reflexión de los expertos en la década del ’20.

II.2. La orientación frente a los desafíos de formar la


fuerza de trabajo y aumentar su productividad
También entre 1920 y 1955 la reflexión y las prácticas de la orientación estu-
vieron motivadas por toda una serie de preocupaciones concernientes al trabajo.
Básicamente, los procesos de industrialización sustitutiva generados por las Guerras

21 MÜLLER, Marina. “Subjetividad y orientación vocacional profesional”. Orientación y Sociedad, La Plata, n.


4, p. 1-11, 2003.
22 RASCOVAN, Sergio. “Lo vocacional: una revisión crítica”. Revista Brasileira de Orientacao Proffisional, v. 5,
n. 2, p. 1-10, 2004.
23 BOHOSLAVSKY, Rodolfo. Orientación Vocacional. La Estrategia clínica. Buenos Aires: Nueva Visión, 1984, p. 14.

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Mundiales y la crisis económica de 1930, así como la progresiva conformación de


un mercado interno, hicieron que esas inquietudes coagularan en torno a tres
grandes ejes: la formación de una mano de obra idónea para atender los requeri-
mientos de la industria, el aumento del rendimiento en el trabajo y la lucha contra
el desempleo.
Si bien el significante empleabilidad no aparece en el corpus de documentos
que integran nuestro “dominio de memoria”24, durante la primera mitad del siglo
XX tuvo lugar una intensa reflexión en torno a uno de los nudos que articula la
semántica de la empleabilidad, esto es, la cuestión de las “capacidades para el em-
pleo”. Contra las lecturas que piensan la responsabilización de los individuos res-
pecto de su condición de empleo como un rasgo característico del liberalismo o el
neoliberalismo25, se trata de un tema recurrente en la historia de la política social,
con al menos un siglo de historia.26
En la actualidad, gracias a la incidencia del neoliberalismo, estamos acostum-
brados a pensar en la formación profesional como una responsabilidad individual.
Sin que la apelación a la actuación individual y familiar, estuviera excluida, entre
1920 y 1955, se entendía, en cambio, que la configuración de cuerpos aptos para el
trabajo era, en gran medida, una responsabilidad del Estado.
Esa forma de pensar explica el rápido eco que el proyecto de Jesinghaus en-
contró entre las autoridades estatales. Aunque en la década del ’30 (en el contexto
de la crisis económica y política) las acciones en materia de orientación profesio-
nal provinieron del campo privado, el protagonismo estatal se recuperaría en la
 339 década del ’40, alentado por el proceso de industrialización sustitutiva, la difusión
de ideas intervencionistas y dirigistas y, finalmente, los objetivos de la política eco-
nómica peronista: profundizar el proceso de acumulación de capital industrial por
sustitución de importaciones y ampliar el mercado interno mediante el estímulo de
la producción industrial local.
Es preciso destacar, en esta dirección, que la constitución de servicios “pú-
blicos” de orientación profesional había sido alentada en 1948 por la OIT, bajo
dos modalidades: la asistencia prestada a adolescentes para elegir una profesión
(orientación profesional en sentido estricto) y los “consejos sobre el trabajo”, en-
tendiéndose por estos la asistencia prestada a los adultos.27
Durante los gobiernos peronistas el Estado asumió un rol guía, organizador
y regulador del ciclo de la producción, la distribución y el consumo. De conformi-
dad con el objetivo, formulado en el Segundo Plan Quinquenal (1952) de lograr la
independencia económica, se trató de satisfacer los requerimientos de mano de
obra calificada provenientes de la industria, desarrollándose una activa política de
enseñanza técnica.
Desde 1944 existía la Dirección de Enseñanza, Aprendizaje y Orientación Pro-
fesional. La acción de ese organismo, que, a partir de 1948 pasó a llamarse “Comi-
sión Nacional de Aprendizaje y Orientación Profesional”, iba dirigida una pobla-
ción de jóvenes de entre 14 y 18 años. La Comisión controlaba el desempeño de
una serie de servicios de aprendizaje industrial, que se prestaban en los propios
establecimientos industriales o en escuelas creadas ad hoc. En el marco de dicho

24 Nos referimos al corpus constituido por los documentos enumerados en la nota n. 17.
25 FRADE, Carlos. “Gobernar a los otros y gobernarse a sí mismo según la razón política liberal”. Revista Es-
pañola de Investigaciones sociológicas, n. 119, p. 35-64, 2007.
26 Cf. GRONDONA, Ana. Tradición y… op. cit.
27 ORGANIZACIÓN INTERNACIONAL DEL TRABAJO. Orientación Profesional. Trigésima Segunda Reunión.
Informe IX. Ginebra: OIT, 1948, p. 34.

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sistema, en 1948 se creó un Instituto de Psicotécnica y Orientación Profesional,


cuya función consistía en practicar exámenes psicotécnicos para los alumnos de
las escuelas técnicas, de manera de aconsejarles la profesión más adecuada a sus
aptitudes. Para ello, la Comisión contaba con un laboratorio central en la ciudad
de Buenos Aires y laboratorios subsidiarios en el resto del país. Los métodos que
se utilizaban eran aquellos experimentados por el Instituto de Orientación Profe-
sional del Museo Social, que participó en su organización. En sí, la acción de la Co-
misión Nacional de Aprendizaje y Orientación Profesional contribuyó a solucionar,
aún con carácter parcial y transitorio, el problema de la demanda de mano de obra
calificada28, aunque los resultados de esa política recién se advertirían con nitidez
durante las décadas del ’60 y del ’70, en la disponibilidad de una mano de obra
altamente capacitada, formada durante el gobierno peronista.29
Para los cultores de la psicotécnica, la orientación y selección profesionales
podía dar una respuesta a la “urgencia” que las estrategias de formación – cuyos
resultados estaban diferidos en el tiempo – no conseguían satisfacer. Como ar-
gumentara Kaplan30 el ritmo de crecimiento de la industria había generado la ne-
cesidad de utilizar mano de obra proveniente de las regiones agrícolo-ganaderas
o de sectores sin especialización previa. Si bien este problema intentaba ser re-
vertido mediante la educación, los frutos del sistema tardarían años en aparecer.
Pero entretanto, la única solución era acortar el tiempo del aprendizaje mediante
la orientación y la selección profesional, asignando la mano de obra a los puestos
para los que presentase aptitudes más destacadas. En este sentido, algunas ex-
periencias de “selección”, realizadas por Kaplan desde el ámbito privado (el Ins-
tituto de Orientación Profesional del Museo Social Argentino, en el Instituto de  340
Psicotécnica y Racionalización dependiente del Instituto Argentino de Seguridad
y algunas grandes empresas, que contaban con gabinetes propios) parecen haber
arrojado resultados positivos. Así, por ejemplo, los departamentos de supervisión
de la Compañía Argentina de Electricidad, la Fábrica Argentina de Alpargatas y los
Talleres Metalúrgicos San Martín llegaron a la conclusión que la correlación entre
el “pronóstico” emergente de los test y el “rendimiento” de los obreros seleccio-
nados arribaba al 90%31 pero se trata, claro está, de datos relativos a prácticas de
“selección” y no de “orientación” profesional.
Mientras en el presente la problematización relativa a la formación de la fuer-
za de trabajo está regida por la semántica de las competencias (las cuales se en-
tienden, en general, tanto en términos de destrezas como de atributos personales
referidos a lo cognitivo y lo moral) en aquellos años, en cambio, la idoneidad para
el trabajo venía definida por la posesión de las aptitudes, es decir, de disposiciones
naturales de carácter innato32, requeridas para el desempeño de una labor espe-
cífica. Más allá de la omnipresencia de dicha noción en el campo de la medicina y
la psicología, la misma era objeto de interpretaciones diversas y contradictorias.
La corriente biotipológica entendía a las aptitudes desde un punto de vista
esencialista. Cortada sobre el modelo de la medicina constitucionalista, considera-
ba que las disposiciones y debilidades hereditarias configuraban perfiles definidos

28 WIÑAR, David. Poder Político y Educación. El peronismo y la Comisión Nacional de Aprendizaje y Orientación
Profesional. Buenos Aires: Instituto Torcuato di Tella, 1970.
29 WEINBERG, Daniel. La enseñanza técnica industrial en la Argentina1936-1966. Buenos Aires: Instituto Torcu-
ato di Tella, 1967.
30 KAPLAN, Juan. “Selección y orientación profesionales”. Medicina del Deporte y del Trabajo, Buenos Aires,
n. 67, p. 1.766, 1948.
31 FINGERMANN, Gregorio. Fundamentos de Psicotécnica. Buenos Aires: El Ateneo, 1954, p. 40.
32 FINGERMANN, Gregorio. Fundamentos… op. cit., p. 172.

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de individuos o “biotipos”. Así, en una obra de D. Boccia encontramos reproducida


una de las ideas que organizan el pensamiento de N. Pende esto es, que existen
“individuos nada o poco aptitudinales, que serán aptos solamente para peones”
mientras que otros que son “poliaptitudinales”.33
También la psicología diferencial – en la que se fundaba la psicotécnica – ten-
día a establecer las desigualdades existentes entre los hombres en función de las
aptitudes que cada uno poseía. Pero, a diferencia de la biotipología, no las esencia-
lizaba ni adscribía a esa clase de constataciones (científicas), juicios de valor. Los
expertos que se desempeñaban en el Instituto de Orientación Profesional, consi-
deraban – con E. Clapàrede – que el concepto de aptitud era “amoral”, esto es,
que estaba desprovisto de toda valorización ética. Para esta mirada, la aptitud era
la “capacidad de realización”34 de un cierto trabajo, es decir, designaba algo del
orden del “hacer” y no del “ser”.
Tal como fuera problematizada entre 1920 y 1955, la orientación no sólo esta-
ba dirigida a la formación de la mano de obra requerida por la industria. Significaba
en sí misma un factor de racionalización del trabajo. La conexión entre la orienta-
ción y el paradigma productivista35, que impregnó a las sociedades capitalistas con
posterioridad a la Primera Guerra Mundial, estaba inscripta en su propia definición.
En la significación que se le atribuía hasta bien entrado el siglo XX la orientación
procuraba que los sujetos se dedicasen al tipo de trabajo en el que, con el menor
esfuerzo pudieran obtener el mayor rendimiento, provecho y satisfacción.36

 341 El descubrimiento “psi” de la “variabilidad” de los individuos había tenido


un impacto decisivo en el campo de la producción y la economía. Como explicaba
Kaplan37, la “compleja subdivisión del trabajo” que imponía la industrialización de-
mandaba la investigación de las aptitudes específicas de cada individuo, porque
se entendía que el rendimiento estaba en relación directa con los “valores cualita-
tivos”, con las “propias cualidades” de cada obrero.38 Si bien el movimiento psico-
técnico y, asimismo, la escuela biotipológica, fueron muy críticas con el taylorismo
en virtud del desprecio que el mismo importaba respecto del “factor humano”,
ambas corrientes admitían ampliamente la consigna “the right man on the right
place”. Todas las miradas concluían en que la asignación de cada hombre a la profe-
sión que le correspondía de acuerdo a sus aptitudes físicas y mentales, contribuiría
a aumentar la cantidad y calidad del trabajo39, a conseguir el mayor rendimiento
con el mínimo gasto de energía40 y a acrecentar el rendimiento del capital humano.
Pero, además de esta virtud “potenciadora”, la orientación también podía funcio-
nar cautelarmente, como medio para prevenir el desempleo.

33 BOCCIA, Donato. Tratado de Medicina del Trabajo. T.I. Buenos Aires: El Ateneo, 1947, p. 264.
34 FINGERMANN, Gregorio. Fundamentos… op. cit., p. 56.
35 Al finalizar la Primera Guerra Mundial el “productivismo” se convirtió en un común tanto para el manage-
ment industrial europeo como para los movimientos tecnocráticos y pro-tayloristas de los Estados Unidos.
Dicho paradigma estaba alimentado por una triple utopía: la eliminación de la crisis económica y social, la
expansión de la productividad a través de la ciencia y el re-encantamiento de la tecnología (RABINBACH,
Aaron. The human motor. Berkeley: UCP, 1992, p. 272).
36 MIRA y LÓPEZ, Emilio. Manual de Orientación Profesional. Buenos Aires: Kapeluz, 1947, p. 1.
37 KAPLAN, Juan. “Selección y…”, op. cit., p. 1752.
38 YANKILEVICH, León. “La reeducación profesional de los accidentados del trabajo”. Anales de Biotipología,
eugenesia y medicina social, n. 90, p. 41, 1940.
39 SAGARNA, Antonio y JESINGHAUS, Carlos. “Proyecto de creación de un ‘Instituto Central de Orientación
Profesional’. Congreso del Trabajo. Santa Fe: Imprenta de la Provincia de Santa Fe, p. 334.
40 BOCCIA, Donato. “Constitución y Orientación Profesional”. Anales de Biotipología, eugenesia y medicina
social, n. 35, p. 10, 1935.

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II.3. La orientación profesional como estrategia de


lucha contra el desempleo
Señalamos que, en el presente, la orientación se entiende como una estra-
tegia destinada a optimizar las chances de que los individuos desempleados o con
dificultades para conseguir un empleo, se inserten en el mercado de trabajo. Tal
propósito aparece explícitamente articulado en el programa de formación profe-
sional impulsado por el MTEySS pero resulta también considerado en los casos en
los que el proceso de orientación acompaña – como leemos en los discursos ex-
pertos – la transición del empleo al desempleo. Así, la orientación desempeña un
papel en el marco de las estrategias contemporáneas de gobierno del desempleo
que buscan atacar el problema (individual) de la inempleabilidad.
En las reflexiones que acompañaron la instalación de los primeros gabine-
tes psicotécnicos en Argentina, convivían, en cambio, tanto la asunción de que el
desempleo era un problema social, ligado a los desequilibrios y vaivenes que ca-
racterizaban al mercado de trabajo, como una responsabilidad de los “individuos”.
En consonancia con esa explicación, la orientación se presentaba como una tec-
nología que permitía combatir ambos órdenes de causas (sociales e individuales),
desempeñando, a la vez, una función “negativa” o “profiláctica” y otra “positiva”.
Por una parte, funcionaba como un factor profiláctico frente al peligro del
desempleo porque se consideraba que la “ineptitud” era una causa legítima de
despido.41 Por otra parte, uno de los objetivos que inspiró la instalación del Institu-  342
to de Psicotécnica y Orientación Profesional consistía en contribuir al “equilibrio”
del mercado de trabajo. La particularidad del enfoque psicotécnico venía dada
porque las estrategias a las que apelaba para abordar las fluctuaciones del merca-
do de trabajo, aunque se nutrían de datos socio-económicos, no eran económicas.
De lo que se trataba era de modelar las decisiones individuales de los jóvenes a
partir del conocimiento de un triple orden de factores: la vocación y las aptitudes,
el presupuesto familiar, y el estado de las profesiones.
En este sentido, el proyecto de creación de dicho Instituto traducía la con-
fianza en que, por medio de la centralización de los datos estadísticos relativos al
grado de ocupación en cada gremio iba a ser posible una “repartición adecuada so-
bre las distintas profesiones, de acuerdo con las necesidades probables, resultan-
do de este modo un mayor equilibrio entre la demanda y oferta en cada gremio”.42
Sin embargo, ese optimismo fue rápidamente defraudado. En las Guías de Estudios
Superiores publicadas por el Instituto de Psicotécnica y Orientación Profesional,
las autoridades se lamentaban de la ausencia de cifras y narraban los denodados
esfuerzos realizados para aproximarse con los datos disponibles a algo así como
un “diagnóstico” del estado de cada gremio que permitiera conocer el porvenir
de los universitarios. El “mal” a evitar era la superproducción de profesionales de
una determinada especialidad. Frente a ese peligro, la utopía que motorizaba la
acción de los orientadores consistía en una gran maniobra de ingeniería social: Je-
singhaus, Fingermann y otros soñaban con disponer de estadísticas que permitie-

41 JESINGHAUS, Carlos. “Sobre la creación del Instituto Central de Orientación Profesional”. Humanidades,
VIII, p. 397, 1923.
42 SAGARNA y JESINGHAUS, “Proyecto de creación…” op. cit., p. 335. INSTITUTO DE PSICOTÉCNICA Y
ORIENTACIÓN PROFESIONAL. Guía de Estudios Superiores en la República Argentina. II Edición. Ministerio
de Justicia e Instrucción Pública. Buenos Aires: Talleres Gráficos de la Penitenciería Nacional, 1928, p. 15.

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ran pronosticar “el número aproximadamente exacto de los profesionales nuevos,


que realmente se han de necesitar cada año”.43
Además de dirigirse a la población de “jóvenes”, la orientación profesional
desempeñó un papel importante en los programas que – entre las décadas del
’30 y del ’40 – se idearon para gobernar a poblaciones que, si bien no se juzgaban
como “inempleables” presentaba dificultades para la inserción en el mercado de
trabajo. Así, se distinguía entre una “orientación del enfermo”, dirigida a los car-
díacos, incapacitados, etc. y otra destinada a aquellos que, habiendo fracasado en
una profesión, debían buscar una nueva ocupación para ganarse la vida.
En el primer caso, la orientación permitía “restituir” a la sociedad un cuerpo
que, aún en condiciones de inferioridad por la reducción de sus capacidades para
el trabajo44, era todavía un elemento productivo, evitándose de esta manera que
se convirtiera en una carga para la familia y el erario público. En los dos supuestos,
se juzgaba que mediante la identificación de habilidades y aptitudes residuales u
desconocidas, la psicotécnica podía reencauzar a los incapacitados y los “fracasa-
dos”, poniéndolos en “buena vía mediante un reajuste profesional”.45
Muchas eran, así, las expectativas que médicos, psicólogos y autoridades
estatales depositaban sobre la orientación. Además de los motivos vinculados al
empleo, otro de los propósitos que le atribuían consistía, como veremos en la sub-
sección siguiente, en contribuir a la prevención de los accidentes de trabajo.

 343 II.4. La orientación como estrategia para la prevención


de los accidentes y enfermedades de trabajo
Durante la primera mitad del siglo XX se pensaba que la orientación profesio-
nal coadyuvaba al cuidado de la salud de los trabajadores porque de esa manera se
podía evitar que los jóvenes eligiesen una carrera para la cual sus cuerpos no esta-
ban preparados. Asimismo, se entendía que la orientación contribuía a reducir indi-
rectamente la “accidentabilidad individual”46 al disminuir el tiempo del aprendizaje
y la adaptabilidad profesional. Ya en junio de 1929, en su 12va. Sesión la OIT había
incluido a la psicotécnica como medio para prevenir los accidentes de trabajo.47
La conexión entre la orientación y la salud laboral fue particularmente explora-
da por los médicos que comulgaban con las ideas de la biotipología. D. Boccia48sos-
tenía, por ejemplo, que el conocimiento de las predisposiciones y debilidades cons-
titucionales a través de los test, permitiría evitar o disminuir las intoxicaciones, los
accidentes y las degeneraciones. De manera más general, el Primer Congreso Ar-
gentino de Medicina del Trabajo, realizado en 1948, declaró que contribuían a la
profilaxis de los accidentes y enfermedades del trabajo, facilitaban la rehabilitación
de los inválidos, mejoraban el rendimiento y acortaban los períodos de aprendizaje.

43 INSTITUTO DE PSICOTÉCNICA Y ORIENTACIÓN PROFESIONAL. Guía de Estudios Superiores en la República


Argentina. II Edición. Ministerio de Justicia e Instrucción Pública. Buenos Aires: Talleres Gráficos de la Peni-
tenciería Nacional, 1928, p. 15.
44 FINGERMANN, Gregorio. “La orientación profesional del inválido”. En AAVV: Segunda Conferencia para el
Bienestar del Lisiado. Buenos Aires: Asociación de Ayuda y Orientación al inválido, 1946, p. 291.
45 WEBER, Luis y ESCUDERO, César. “El problema médico social de los inválidos y mutilados”. En: Anales de
Biotipología, eugenesia y medicina social, n. 86, p. 14, 1940.
46 KAPLAN, Juan. “Experiencias y resultados en psicotécnica industrial”. Jornada Médica, v. V, n. 52, p. 390, 1951.
47 KAPLAN, Juan. “Ponencia”. En AAVV: Anales de la I Convención de Médicos de la Industria. Buenos Aires:
Talleres Gráficos Index, 1944, p. 165.
48 BOCCIA, Donato. Medicina del Trabajo. Buenos Aires: Establecimiento Tipográfico de Guidi Buffarini, 1938, p. 71.

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La asociación entre la orientación y la prevención de los accidentes se vin-


culaba, asimismo, con uno de los primeros “rendimientos” (a la vez económico y
sanitario) que la psicotécnica reportó tanto a la industria como al Estado. Corres-
ponde recordar que el psiquiatra alemán H. Münsterberg adquirió celebridad en
los Estados Unidos por descubrir que las causas de los accidentes que provocaban,
en la vía pública, los tranvías eléctricos, residía en la contratación de individuos
que carecían de las aptitudes requeridas para desempeñar la profesión de “con-
ductores”. Mediante ese descubrimiento, Münsterberg no sólo efectuó un aporte
a la salud pública sino que permitió que las compañías aseguradoras ahorrasen
miles de dólares en el pago de indemnizaciones.
De la mano de la resonancia que había adquirido, durante el período de en-
treguerras, la teoría del “factor humano”, médicos, ingenieros y psicólogos co-
menzaron a prestar más atención a las causas “subjetivas” de los accidentes y, con
ellos, al problema de las “aptitudes” para el desempeño de diversas ocupaciones.
Una asunción común en la literatura que los saberes del trabajo produjeron en las
décadas del ’30 y del ’40 en la Argentina, era que el porcentaje más alto de infortu-
nios se debía a las deficiencias e ineptitudes de los trabajadores. El éxito del que,
por aquellos años, gozaban explicaciones que atribuían la causa de los accidentes
a las características individuales de los trabajadores, hizo que la instancia de la “se-
lección profesional” cobrase una inusitada relevancia tanto para la industria como
para las autoridades de gobierno. En este sentido, Fingermann destaca que la eva-
luación con métodos psicotécnicos de más de 12.000 conductores de vehículos
colectivos de la Corporación de Transportes de la Ciudad de Buenos Aires, había
traído aparejada una disminución de los accidentes de tránsito.49 Asimismo, algu-  344
nas empresas en las que se habían realizado, durante la década del ’40, exámenes
a sus conductores de vehículos (ESSO, Duperial, Alpargatas etc.) informaron sobre
la coincidencia entre los resultados de esas pruebas y la accidentabilidad.50
Señalábamos antes que del tratamiento que la psicología diferencial y aplica-
da hacía de las aptitudes no se derivaba la idea de que existían hombres mejores
o peores, sino sólo “más o menos aptos” para el desempeño de una determinada
profesión. Sin embargo, esta clase de consideración “amoral” de las aptitudes –
que defendía Claparède y sus lectores en la Argentina – no impidió que el uso de
los test fuera “contaminado” con la pretensión de identificar a “individuos acci-
dentables”. Reproduciendo las conclusiones a las que había arribado, en 1926, el
psicólogo alemán Karl Marbe, Kaplan aceptaba la idea de que existían individuos
que tenían una propensión a sufrir un accidente. Se trataba de sujetos “con una
estructura psíquica tal que les impide adoptar con rapidez, medidas de defensa
ante los peligros, y por lo tanto son víctimas de accidentes”.51
Ciertamente, el descubrimiento de individuos “accidentables” se procesa-
ba mediante la práctica de la selección profesional, fundamentalmente, porque el
objetivo perseguido era el ahorro de los costos que los accidentes reportaban a la
industria. Sin embargo, la orientación no carecía de toda importancia, puesto que,
además de la utilidad económica que la prevención significaba para el presupuesto
de las empresas, otro de los fines ligados a ella era la conservación del capital hu-
mano de la nación, entendida esta última noción en un sentido “holístico”.52

49 FINGERMANN, Gregorio. Fundamentos…op. cit., p. 40.


50 KAPLAN, Juan. “Experiencias y…” op. cit., p. 388.
51 KAPLAN, Juan. “Ponencia”. En AAVV: Anales de la I Convención de Médicos de la Industria. Buenos Aires:
Talleres Gráficos Index, 1944, p. 169.
52 HAIDAR, Victoria. “Todo hombre en su justo lugar: la ‘solución’ biotipológica al conflicto entre productivi-
dad y salud (Argentina, 1930-1955). Salud Colectiva, Lanús, v. 7, n. 3, p. 317-332, 2011.

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Además de ello, la orientación aparecía como la tecnología adecuada para


cauterizar toda una serie de anomalías laborales cuyas raíces eran psíquicas. Es
que, como señalaba Horacio Rimoldi53, un psicólogo que se desempeñaba en la
Universidad de Cuyo, en la atención de los diversos problemas que presentaba el
medio industrial, se advertía un desplazamiento respecto de los temas vinculados
directamente con la producción hacia aquellos que se referían a las características
psíquicas de los obreros. Desde los años ’40 la psicología comenzó a ingresar pro-
gresivamente en las fábricas. Una de las características de la política de salud labo-
ral del peronismo consistió en la insistencia en torno a la importancia que revestía
el factor “psi”, tanto para la prevención de la fatiga y de patologías causadas por
el trabajo industrial, como para el aumento de la productividad y la disminución
de los conflictos en las fábricas. Se entendía que la adecuación de las aptitudes de
los individuos a su trabajo contribuía a la profilaxis de las psicopatías industriales,
suprimiendo el peligro de los numerosos efectos de contagio ligadas a ellas.
En esta sección hemos analizado los múltiples propósitos que, a lo largo de
los años, se atribuyó a la orientación. En la sección siguiente nos ocuparemos de
discernir los planos o dimensiones en los que la misma opera, así como su articula-
ción con diversas racionalidades y discursos políticos y éticos.

III. Entre el individuo y la sociedad


 345 En el año 1947 la editorial Kapeluz publica el Manual de Orientación Profesio-
nal de E. Mira y López, aquel psicólogo que escapó de la dictadura franquista exi-
liándose en Argentina y que tanta influencia tuvo en Brasil. En aquel texto, Mira y
López introduce la clasificación que cifró gran parte de las interpretaciones y que-
rellas que atraviesan las reflexiones sobre la orientación profesional, distinguien-
do entre una práctica de orientación “individual” y otra “colectiva”. Señalaba el
autor que la primera “aspira a conseguir que cada sujeto se dedique al trabajo que
mejor le cuadre” mientras que la segunda trata de conseguir que “la población
trabajadora de un país se distribuya convenientemente en los diversos casilleros
de oficios y carreras, de acuerdo con las conveniencias o requerimientos del plan
económico-social vigente, para obtener el progreso nacional”.54
Tan potente es la interpelación que suscita dicha taxonomía, que no sólo se
convirtió en uno de los organizadores privilegiados para los historiadores de la
profesión sino que, además, ha dejado sus marcas sobre una pluralidad de textos
especializados que, al referirse a las prácticas actuales, no pueden dejar de hacer
alusión a esas dos modalidades que tienden a “dicotomizar” la intervención orien-
tadora.55 Con el correr de los años, esa oposición, que Mira y López jamás conside-
ró irreconciliable, fue objeto de múltiples re-significaciones. En la década del ’60,
Luis Ojer56 la expresó en términos directamente ideológicos, diferenciando una
tendencia “humanista”, que prioriza los valores humanos y otra “utilitaria”, que
atiende más al bien de la sociedad y al rendimiento material que a la realización de
aquellos valores.

53 RIMOLDI, Horacio. “Adecuación al trabajo”. Publicaciones del Instituto de Psicología Experimental, v. 1, n. 1,


p. 8, 1943.
54 MIRA y LÓPEZ, Emilio. Manual de… op. cit., p. 8.
55 MÜLLER, Marina. “Subjetividad y…” op. cit., p. 9.
56 OJER, Luis. Orientación Profesional. Buenos Aires: Kapeluz, 1965, p. 215.

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Unos años después, Boholavsky emplazaría la mentada oposición en un te-


rreno a la vez metodológico, teórico y político, distinguiendo entre una modalidad
de orientación “actuarial” y otra “clínica”. Más allá de las diversas interpretacio-
nes, creemos que la diferenciación entre una orientación colectiva y otra individual
constituye un excelente punto de partida para problematizarlas modalidades bajo
las cuales dicha tecnología de gobierno se articuló, a lo largo del tiempo, con diver-
sos saberes expertos, racionalidades políticas y discursos éticos.

III.1. La “orientación” y la construcción de un


proyecto profesional
La estrategia “clínica” es la forma de encuadre que caracteriza a la orienta-
ción profesional en el presente. Si bien las primeras experiencias de ese estilo co-
menzaron a desarrollarse hacia los años ’60 en el seno del Departamento de Orien-
tación Vocacional de la Universidad de Buenos Aires, la misma sería formalizada
por A. Boholavsky en la década del ’70. En una obra que es un clásico de la discipli-
na, el autor estableció la diferencia entre una modalidad de orientación “actuarial”
y otra “clínica”, introduciendo un corte a la vez epistemológico y político entre el
tipo de intervenciones de carácter “predictivo”, fundadas en los desarrollos de la
psicología diferencial, la psicometría y posteriormente, el análisis factorial, y las
intervenciones inspiradas en la perspectiva psicoanalítica.
Ambas formas de encuadre parten de concepciones distintas acerca del suje-
to, la relación que éste establece con el orientador y el objetivo de la propia práctica
 346
de orientación. Asimismo, piensan las aptitudes de manera divergente y recurren a
diversas técnicas para conocerlas. La orientación actuarial supone que cada carrera
y profesión requiere de aptitudes específicas, las cuales se consideran mensura-
bles, definibles a priori y más o menos estables a lo largo de la vida. Para conocerlas
se utilizan los test. Una vez conocidas las aptitudes del consultante, el psicólogo
está en condiciones de proferir un “consejo” acerca de la profesión que más se
ajusta a las posibilidades y gustos del individuo, el cual resume “lo que le conviene
hacer”. En esta modalidad, el psicólogo se considera capaz de pronosticar, sobre la
base del conocimiento de las aptitudes, la performance esperada del sujeto.
La clínica supone, en cambio, un enfoque individualizador y particularizan-
te de la conducta humana. En ella, el rol del psicólogo es mucho más modesto
porque la elección de una profesión se considera como una decisión personal y
responsable del consultante. De allí que, en lugar de aconsejar, esclarece e infor-
ma. Asimismo, lejos de pensar que existen “aptitudes” para ciertas “profesiones”,
se considera que las carreras y profesiones requieren potencialidades que no son
específicas, no pueden ser definidas a priori ni medidas. El instrumento adecuado
para el conocimiento del “yo” no es el test sino la entrevista.57
Desarrollando algunos de los motivos característicos de dicha perspectiva,
en la actualidad se subraya que la orientación no sólo parte de la demanda de un
individuo, sino que promueve el “activo protagonismo de los consultantes”.58 La
misma se concibe como un proceso psico-social de “acompañamiento” o “guía”
para la elección de una profesión y la posterior inserción en el mercado laboral,
que privilegia la escucha y promueve la autonomía y cuyo horizonte está dado por
el desarrollo de una identidad ocupacional y profesional.

57 BOHOSLAVSKY, Rodolfo. Orientación… op. cit., p. 15-16.


58 MÜLLER, Marina. “Subjetividad y…” op. cit., p. 7.

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Al igual que la “clínica”, también las acciones que, en el marco del Programa
de Formación para el Empleo procuran asistir a los individuos en la búsqueda de
empleo y la definición de estrategias de inserción en el mercado de trabajo, se
inscriben en la gran familia de orientación individual. Ninguna de esas dos prácti-
cas “orientadoras” asume, strictu sensu, una modalidad clínica, aunque en algunos
casos se prevé la utilización de la entrevista personal. Ahora, si bien el enfoque de
tal clase de iniciativas no es en sí mismo particularizador, la orientación aparece
como un instrumento dedicado a combatir un problema cuya explicación y solu-
ción se definen en términos individuales, es decir, como una cuestión de grados de
empleabilidad/inempleabilidad. Asimismo, la reflexión acerca de la orientación que
emerge del Manual de Formación de orientadores, está articulada, al igual que la
modalidad clínica, en términos de una semántica de “autonomía”, la “elección”, y
la “decisión responsable”.
Más allá de las distancias que separan el pensamiento sobre la orientación
profesional al interior del campo académico y de la política social, a los fines de
este trabajo nos interesa resaltar cuatro aspectos.
Primero, que la acción de orientación se despliega desde un punto de vista
“individual”, en el sentido de que tiende a optimizar, a volver más eficaz, el mo-
mento – todavía revestido de un aurea casi sacra – de la elección. Aun en aquellos
planteos que tienden a deconstruir la noción de identidad vocacional/ocupacional,
la orientación se define como el “acompañamiento en un determinado período de
transición a construir una decisión”.59
 347 Segundo, que independientemente del “contexto” en que se desarrolle la
orientación – una institución de formación profesional co-ejecutora de un progra-
ma social del MTEySS, la consulta privada, una escuela etc. – en todos los casos, el
consultante está lejos de pensarse como una ficha suelta: se lo representa empla-
zado en una comunidad (la familia, la escuela, los beneficiarios de planes sociales).
Esta última operación resulta estratégica para obtener la información que consti-
tuye, de alguna manera, el “combustible” del proceso en su conjunto. Pero ni la
familia, ni el barrio, ni la escuela ni el colectivo de beneficiarios se piensan como
interlocutores, co-partícipes o socios en el proceso de decisión.
Tercero, quién demanda la orientación aparece articulado en los discursos
como un ser activo o que resulta “activado” en el proceso mismo de orientación.
De lo que se trata – aún en el marco de los planes sociales – es de promover el
desarrollo de la “capacidad de optar”60, la “realización de un hacer”61, de tomar
decisiones atinentes a la formación o a la inserción en el mercado de trabajo.
Cuarto, el consultante – ora un joven estudiante de clase media o el benefi-
ciario de un plan social – se concibe como una suerte de “proyectista” de sí mismo,
como un arquitecto de su propia vida profesional. Lo que se espera de los “orien-
tados” es que, a partir del conocimiento de sí mismos y de la realidad laboral que
los circunda, elaboren un “proyecto personal de inserción social”62, identifiquen y
construyan un “proyecto profesional” o un “proyecto ocupacional”63; valorándo-
se, ambos, en términos de “proyectos de empleabilidad”.
Para interpretar adecuadamente esta última característica, pero, en térmi-
nos más generales, la afinidad entre estas formas de “orientación individual” y la

59 RASCOVAN, Sergio, “Lo vocacional…” op. cit., p. 8.


60 MTEySS, Orientación… op. cit., p. 54.
61 RASCOVAN, Sergio, “Lo vocacional…” op. cit,. p. 9.
62 MÜLLER, Marina, “Subjetividad y…” op. cit., p. 3.
63 MTEySS, Orientación… op. cit., p. 10.

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racionalidad política neoliberal, conviene recurrir a la analogía entre este “proyec-


tista” de sí mismo y otras figuras a las que diversos autores han echado mano para
hablar de las formas de subjetividad que activa el neoliberalismo: “empresario de
sí mismo”64, homo prudens.65 Al igual que el individuo que maximiza su performan-
ce a partir del cálculo de las inversiones y gastos en su capital humano, o de aquel
que ha conseguido transformar el cálculo de riesgo en un hábito, el consultante-
proyectista es, fundamentalmente, un sujeto reflexivo que está aplicado a la em-
presa de construir su propio profesional/ocupacional. La reflexividad involucra, en
este contexto, tanto la identificación, esclarecimiento y “asunción” de las propias
potencialidades y debilidades como su compulsa con los requerimientos del mer-
cado de trabajo. El “proyecto” profesional/ocupacional es un proceso “dinámico y
abierto” que se extiende – al igual que la formación – a lo largo de toda la vida. Es
un opus que el individuo proyecta (imagina, concibe), ejecuta, timonea y a la vez
evalúa. Sensible a requerimientos cambiantes y simultáneos, se espera que tenga
la capacidad de ajustarlo y re-planificarlo cuántas veces sea necesario.
Como el empresario de sí mismo y el homo prudens, el consultante-proyec-
tista está constreñido a efectuar toda una serie de elecciones, pero su decisión, en
este caso, está revestida de un particular dramatismo, porque involucra una cierta
cuota de incertidumbre que no está depositada en el exterior (la suerte del mer-
cado bursátil, los efectos no queridos de un producto genéticamente modificado)
sino en lo más profundo de sí. Ahora, mientras los cálculos de quién administra
su propio capital humano y gestiona diligentemente los riesgos que atraviesan,
en todo momento, la biografía personal y familiar, se despliegan por los carriles
de la racionalidad (lo cual no excluye el repertorio de afecciones y sentimientos –  348
ansiedad, codicia, temor – ligados a la valorización del capital y a la conciencia del
riesgo) la actividad de proyección que se espera que el consultante (debidamente
asistido) realice, incluye una dosis de fantasía.
Así, en la actualidad, los rasgos que asume la orientación profesional están
modelados, tanto por la clínica psicoanalítica como por la racionalidad política
neoliberal. Ambas perspectivas – el saber “psi” y el arte de gobierno neoliberal
– convergen en priorizar la “elección” y la “responsabilidad individual”, así como
en invertir el papel que, tradicionalmente, la psicotécnica atribuyó al orientador
y al orientado. Mientras en el pasado los psicólogos funcionaban de manera casi
oracular, profiriendo el “consejo” que debía dirigir la elección, en la contempora-
neidad se limitan a guiar la elección, lo que cuaja a la perfección con el papel es-
clarecedor e informador que, como vimos, Boholavsky les atribuía en los años ’70.
Como veremos en la sub-sección siguiente, entre 1920 y 1955 la orientación
profesional fue racionalizada desde perspectivas muy distintas a la clínica, conju-
gándose, asimismo, con discursos políticos y éticos que asumían un punto de vista
social o nacional.

III.2. La “orientación” y el bienestar de la nación


Entre 1920 y 1955 la orientación “psicotécnica” funcionó como una estra-
tegia dirigida a acoplar la formación y la ocupación de una serie de poblaciones
(jóvenes, incapacitados etc.) a varios objetivos colectivos: limitar el conflicto de

64 Cf. FOUCAULT, Michel. Nacimiento de la Biopolítica. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007.
65 Cf. O’MALLEY, Pat. Riesgo, neoliberalismo y justicia penal. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2006.

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clases, gobernar el desempleo (administrando adecuadamente los vaivenes del


mercado de trabajo), promover el desarrollo de la industria nacional o aumentar
la productividad del trabajo. Se tratara de formar una mano de obra idónea, evitar
las crisis por superproducción de profesionales, fomentar la re-colocación de los
incapacitados o evitar la proliferación de “resentidos”, la orientación involucraba,
en todos los casos el punto de vista – si bien no exclusivo – de la “sociedad” y/o
de la “nación”. Formulados tanto desde el campo experto y de las instituciones
públicas, esos propósitos se combinaron, según las épocas, con el desarrollo de
políticas laborales, educativas y económicas en las que el Estado desempeñó algún
rol “activo” vis à vis el mercado y la sociedad civil.
En lo que atañe a la cuestión social y la cuestión nacional, durante los gobier-
nos radicales (1916-1930), el Estado asumió un rol “conciliador” y “armonizador”
entre capital y trabajo manifestando, asimismo, posiciones (tibiamente) favora-
bles a la intervención en la economía y el desarrollo de una política nacionalista
enfocada a lograr una mayor independencia económica.66 Así, entre la instalación
del Instituto de Orientación Profesional (1925) y su desmantelamiento en 1931, las
acciones de orientación se alinearon con las intenciones de los gobiernos radicales
de acompañar el desarrollo de la industrialización sustitutiva y el incremento de
la profesionalización, así como de arbitrar en los conflictos sociales, contribuyen-
do a la pacificación social. El sesgo conciliador y, más generalmente, el programa
“ético” del radicalismo – con todo su repertorio de valores: respeto a la Constitu-
ción Nacional, democracia, honradez administrativa, austeridad, armonía social,
 349 tolerancia etc. – se nutrían de las ideas krausistas.67 Pues bien, en el contexto de
este programa de “armonización” entre los diversos grupos sociales y de “mo-
ralización” de la sociedad que el radicalismo procuró llevar a cabo, la orientación
profesional (tal como la concebía Jesinghaus) desempeñaba un rol estratégico.
Esto es así, porque las propuestas psicotécnicas de este psicólogo alemán estaban
influidas, ellas mismas, por el pensamiento krausista.68 Jesinghaus y sus discípu-
los rechazaban las concepciones materialistas del trabajo y proponían reemplazar
esta noción por la de “profesión” que adquiría una significación espiritual. En con-
sonancia con estas ideas, atribuían a la orientación toda una serie de funciones
“ético-sociales” referentes al mantenimiento de la paz entre las clases, la disminu-
ción de la criminalidad y, en fin, la generación de orden social mediante la “espiri-
tualización” de la vida profesional. En palabras del propio autor:

El restablecimiento de un lazo personal entre cada individuo y el traba-


jo profesional adecuado a sus dones, conducirá a la formación de una
nueva ‘conciencia profesional’ y quitará al trabajo el carácter de una
ocupación meramente económica con el fin exclusivo de la ganancia,
agregando un motivo esencialmente humano, de sumo valor ético. La
orientación profesional contribuirá de este modo a sustituir el materia-
lismo económico por una concepción más elevada de nuestra vida y de
nuestro trabajo que reconoce la supremacía de los valores personales
y espirituales.69

66 MARCAIDA, Elena; RODRÍGUEZ, Alejandra & SCALTRITTI, Mabel. “Los cambios en el Estado y la sociedad.
Argentina (1880-1930)”. En: AAVV: Historia Argentina contemporánea. Buenos Aires: Dialektik, 2008, p. 90.
67 MARCAIDA, Elena (et. al.) “Los cambios…” op. cit.
68 ROSSI, Lucía. “Los socialistas…” op. cit. y ROSSI, Lucía. “Instituciones de psicología aplicada según pe-
ríodos políticos y cambios demográficos en Argentina. Vestigios de profesionalización”. En: L. ROSSI y
colaboradores. Psicología: su inscripción como profesión. Buenos Aires: Eudeba, 2001, p. 141-161.
69 JESINGHAUS, Carlos. “La función social de la orientación profesional”. Revista de Criminología, Psiquiatría
y Medicina Legal, n. 121, p. 75, 1934.

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Con la progresiva intensificación, durante la década del ’20, de las ideas nacio-
nalistas y fascistas, el sesgo “patriótico” que se imprimía a la orientación profesio-
nal de los jóvenes se fue acentuando. Así, en un texto escrito por un ex juez de me-
nores, que expresaba la preocupación por el destino profesional de los estudiantes,
se insistía sobre la “inutilidad” de los “doctores” y la necesidad apremiante de for-
mar “técnicos” y hombres prácticos.70 Y ante la amenaza de su cierre, Jesinghaus
defendía la utilidad del Instituto de Orientación Profesión en términos nacionalis-
tas: “En estos tiempos difíciles la orientación profesional se pone al servicio de toda
la nación unida solidaria e inexorablemente en una sola comunidad de trabajo”.71
Frente a la ausencia de indicadores macroeconómicos relativos a los mer-
cados de trabajo de las distintas profesiones y, más aun, de datos que permitan
conocer el impacto que tuvieron los servicios prestados por el Instituto de Psico-
técnica y Orientación Profesional sobre los mismos, no estamos en condiciones de
ponderar el grado en que todos aquellos objetivos “sociales” se realizaron, si es
que lo hicieron en alguna medida. Ello se dificulta, asimismo, por la ausencia de in-
formación relativa a la porción de la población universitaria y trabajadora que fue-
ra efectivamente “orientada”. Ciertamente, en las memorias anuales que elabo-
raba dicha institución están consignados la cantidad de “pedidos individuales” de
orientación atendidos, el número de consultas detalladas realizadas (provenientes
de todas las provincias) y la cantidad de interesados que pasaron por el Instituto
para solicitar la “Guía de Estudios Superiores”.
Teniendo en cuenta esos datos, particularmente el “aumento constante del
movimiento de consultas” Jesinghaus llegaba a la conclusión, en 1931, que la ins-
titución satisfacía “una necesidad realmente sentida en la población”, tanto de
 350
las familias como de los educadores. Así, para las autoridades, el hecho de que en
algunas instituciones educativas hubieran comenzado a ensayar las propuestas di-
vulgadas por el Instituto, era una prueba por demás de elocuente de que el proble-
ma de la orientación había despertado el interés espontáneo de los educadores.72
Pero resultaría inadecuado evaluar la “recepción” que las prácticas desarrolladas
desde ese ámbito tuvieron entre las poblaciones de estudiantes, educadores y tra-
bajadores, considerando solamente las “voces” de los especialistas; más aún cuan-
do sus opiniones tendían a justificar (frente al Estado) la necesidad de financiar sus
propias actividades profesionales. Por otra parte, tampoco es posible afirmar que,
por ejemplo, los “2.089” interesados que en 1930 pasaron por el Instituto a retirar
la “Guía de Estudios Superiores”73 fuera efectivamente “orientados”.74
En la década del ’30, como ya mencionamos, los esfuerzos relativos a la
orientación provinieron del campo privado. Pero eso no impidió que su proble-
matización quedara asociada a motivos anti-liberales. Esto último es claro en la
reflexión que se desarrolló en el ámbito de la biotipología, dada la afinidad entre
esta última y las ideas corporativistas que inspiraron el golpe de Estado con el cual
el general José F. Uriburu derrocó, en 1930, el gobierno constitucional de Hipólito
Irigoyen. La biotipología soñaba con colocar “cada hombre en su justo lugar, con

70 PUCIARELLI, Carlos. Orientación profesional de la juventud argentina. Marcos Paz: Colonia Hogar Ricardo
Gutierrez, 1928, p. 27.
71 JESINGHAUS, Carlos. “Instituto de Psicotécnica y Orientación Profesional. Memoria del año 1930”, Sema-
na Médica, n. 26, p. 1800, 1931.
72 JESINGHAUS, Carlos. La cooperación de la escuela primaria en la orientación profesional. Buenos Aires: Ins-
tituto de Psicotécnica y Orientación Profesional, 1927, p. 12.
73 JESINGHAUS, Carlos. “Instituto…” op. cit., p. 1797.
74 Ello requeriría adentrarnos en las peripecias de los efectos que tal clase de prácticas tuvieron sobre los
individuos y grupos, lo cual excede el propósito de este artículo.

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sus capacidades constitucionales fisicopsíquicas en la estructura de la colectividad


y de la Nación”.75 Mientras la práctica de la orientación inspirada por la psicología
experimental, diferencial y aplicada respetaba la libertad individual y atribuía un
lugar destacado a la vocación, la solución biotipológica asumía una forma autorita-
ria. El acoplamiento entre los puestos de trabajo y los cuerpos no podía depender
ni de la “espontaneidad” de los deseos ni de las leyes sociales de la imitación, sino
que debía regirse por la palabra de la ciencia, si quería evitarse una acumulación
en la colectividad de una «masa amorfa» de ineptos, desilusionados y desconten-
tos, que produce poco y representa una carga para el presupuesto económico y
energético de la Nación.76 Así, para el director de la oficina de orientación y selec-
ción profesional del Instituto de Psicotécnica, correspondía al Estado velar por que
cada niño de hoy fuera un “hombre de provecho” que contribuyera con su acción
material, intelectual o espiritual al engrandecimiento de la patria común”.77
Promediando la década del ’40, en un campo político e intelectual en el que,
frente a todo un repertorio de problemas (qué hacer con los enfermos cardíacos,
con los incapacitados, con las mujeres etc.), se imaginaban y experimentaban di-
versas formas de gobierno social, la cuestión de la “formación profesional” no fue
la excepción. En esos años, asistimos a la configuración de una trama discursiva
caracterizada por la exaltación del punto de vista (holista) de la sociedad y de la
nación y el rebajamiento de la problemática vocacional. Alimentada y permanente-
mente reformulada durante los gobiernos peronistas, la misma estaba constituida
por enunciados como los siguientes:

 351 Desde el punto de vista social, la salud […] la capacidad intelectual y el


rendimiento profesional no sólo condicionan la existencia de los indivi-
duos sino que actuaban sobre todos aquellos que estaban ligados a él
en el marco del contrato social, sea que se vinculen en la profesión o en
la colectividad social o política.78
La organización nacional del aprendizaje profesional requiere el esfuer-
zo material, intelectual y espiritual de todo el país. No es el triunfo de
una idea o concepción política lo que se persigue […] sino el afianza-
miento de la prosperidad económica de la nación y la defensa de su
acervo cultural, moral y espiritual.79
Todo trabajo profesional debe ser concebido por quien lo ejerce, en ser-
vicio de la totalidad y ‘el no involucrar el factor conveniencia social en
el concepto global de aptitud profesional es colocar la pieza humana
frente a una producción sin rendimiento o a la espera de la necesidad de
su actividad como simple consumidor.80

Para los médicos formados en la biotipología, como D. Boccia, cuyo curso


de medicina del trabajo recibió el premio Juan D. Perón, era claro que los dere-
chos individuales debían ceder frente a los fines públicos, y que la vocación podía
ser sacrificada en miras de las “aptitudes”. Pero una idea semejante puede leerse,
también en el Manual de Orientación Profesional, publicado en el país ese mismo
año, por un exiliado de la dictadura franquista:

75 BOCCIA, Donato. Tratado de… op.cit., p.257.


76 BOCCIA, Donato. Medicina del… op.cit., p.149.
77 OLIVES, Ángel. “La orientación profesional en nuestro país ¿cómo encararla? Anales de Biotipología, Euge-
nesia y Medicina Social, n. 90, p. 18, 1940.
78 POCHAT, Roberto. “La psicotécnica y la orientación profesional en la industria”, Seguridad e Higiene Indus-
trial, n. 1, p. 6, 1944.
79 UCHA, Alberto. Orientación profesional y aprendizaje. Santa Fe: Imprenta de la Universidad Nacional del
Litoral, 1945.
80 MONDRÍA, Julio. “La orientación profesional del obrero en las industrias, un factor importante en su ren-
dimiento”, Clínica del Trabajo, n. 22, 23, 24, p. 17, 1946.

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Hay quienes confunden la democracia con la anarquía, y creen que en


materia de orientación profesional […] los derechos individuales han
de ser respetados ilimitadamente. […] Cuando alguien, escudándose
en su posición política, económica o cultural, intenta acometer una la-
bor técnica profesional para la que […] no se halla suficientemente ca-
pacitado, el orientador […] debe oponerse a tal intento.81

Asimismo, en el Prólogo que Alfredo Calcagno escribió para la publicación en


la Argentina del libro de Mira y López, reclamaba a los poderes públicos la consti-
tución de un “servicio nacional de orientación profesional científicamente organi-
zado”; anticipándose a la Convención de la OIT, que un año después sugeriría lo
mismo. “Hay que preparar especialmente a los jóvenes para que cada uno vaya a
ocupar el lugar de su mayor eficiencia en tal fábrica, en tal oficina […] participando
dignamente en la obra del progreso social y de mejoramiento colectivo”.82
Justamente, eso fue lo que trató de hacer el peronismo, al interpelar a cada
ciudadano como un “trabajador” que – protegido por una serie de derechos socia-
les – estaba obligado a contribuir patrióticamente al proyecto de lograr la sobera-
nía económica nacional y, con ello, la grandeza del país. En el marco del régimen de
gobierno “ecléctico”83, que fue el peronismo, caracterizado por una combinación
de elementos populistas, nacionalistas, católico-sociales, neo-corporativistas etc.
el objetivo de formar una mano de obra calificada y, con él, la orientación profesio-
nal, asumió un papel relevante. Sus autoridades sanitarias insistieron en sacarla de
los laboratorios y llevarla a las fábricas, integrándola con las actividades de apren-
dizaje y formación profesional.
Así, promediando la década del ’40, tanto desde posiciones autoritarias
 352
como desde aquellas democráticas y respetuosas del Estado de derecho, se en-
tendía que, tratándose de la cuestión de la vida profesional y de la economía na-
cional, las libertades individuales debían ceder frente al interés de la sociedad y
de la nación. Sin embargo, dicho consenso tenía sus fisuras. B. Bosio, un médico
heterodoxo, alzó su voz para criticar el carácter anti-liberal de las propuestas que
los biotipólogos habían efectuado en el Primer Congreso de Medicina y Sociología
del Trabajo, realizado en ese año.84
Si bien las propuestas de los biotipólogos resultaban alarmantes, correspon-
de señalar que, en la Argentina, la modalidad “prescriptiva” de la orientación nun-
ca se practicó en forma generalizada. Sólo tenemos constancia de que, a lo largo
de la década del ’40, algunas poblaciones circunscriptas de trabajadores, apren-
dices y aspirantes, vinculadas con instituciones y servicios públicos – así, los em-
pleados de la Caja Nacional de Ahorro Postal, los aspirantes de la Escuela de Reclu-
tamiento del Ministerio de Marina – fueron sujetas, efectivamente a prácticas de
orientación, desarrolladas por el Instituto de Orientación Profesional del Museo
Social Argentino. En el ámbito privado, las prácticas de orientación se realizaron
en aquellas empresas que contaban con “escuelas de aprendices”, tales como la
Compañía Argentina de Electricidad.85
Una década después, en una tesis dedicada a discutir las causas psíquicas del
ausentismo se criticaba la propuesta que la OIT había hecho en la Convención del

81 MIRA y LOPEZ, Emilio. Manual… op. cit., p. 54.


82 CALCAGNO, Alfredo. “Prólogo”. En: MIRA y LOPEZ, Emilio. Manual… op. cit., p. LV.
83 BUCHRUCKER, Cristian. Nacionalismo y peronismo. Buenos Aires: Sudamericana, 1987, p. 301.
84 BOSIO, Bartolomé. “Breves consideraciones sobre los propósitos del Primer Congreso de Sociología y
Medicina del Trabajo”, La Semana Médica, n. 49, p. 1337-1339, 1939.
85 KAPLAN, Juan. “Experiencias y…” op. cit., p. 389.

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año 1948, en relación a la organización de servicios públicos de orientación profe-


sional. “Creemos que este criterio es peligroso. Se abandona mucho al individuo,
se aleja demasiado de la personalidad del obrero para adentrarse con exceso en
los requerimientos de la sociedad”.86
Con independencia de estas “grietas”, como veremos en la sub-sección si-
guiente, la impronta colectiva que la orientación asumió entre 1920 y 1955 no al-
canzaba a bloquear toda expresión de la subjetividad y la libertad individual, cómo,
a la inversa, tampoco la modalidad “clínica” se encuentra al margen, en el presen-
te, de toda estrategia política.

III.3. Circuitos: entre la ética y la política


En la actualidad, la orientación profesional presupone y tiende a fortalecer y
encauzar la capacidad de elección de un sujeto, contribuyendo, de esta manera, a
incrementar su empleabilidad. Su reflexión resulta circunscripta a una semántica
en la que predominan significantes afines a las estrategias neoliberales de gobier-
no: autonomía, elección, competitividad etc. Ahora bien, tanto en el discurso ex-
perto como en aquel de la política social, los “orientados” aparecen connotados
como formando parte de unas comunidades delimitadas por vínculos de paren-
tesco, de vecindad o de “riesgo”. Particularmente, en la literatura “psi”, lo social
resulta significado en ocasiones en términos de “relaciones de interdependencia”,
 353 entendidas como un factor constitutivo del sujeto y, en otras, como las “condi-
ciones materiales de existencia” que “condicionan” [sic] la elección.87 Asimismo,
toda una serie de datos “macro” o “supra-individuales” ingresan en el cálculo que
inspira la búsqueda de un empleo o la elección de una profesión; básicamente,
información relativa al mercado de trabajo.
Lo que está ausente en esas reflexiones es, no obstante, tanto el punto de
vista de la “sociedad” como de la “nación”. Así, la orientación se desarrolla al mar-
gen de la “sociedad” entendida como una totalidad formada por relaciones de
solidaridad y de conflicto, atravesada por jerarquías y modalidades de exclusión,
o de la “nación” definida en términos de un grupo humano asentado sobre un te-
rritorio que comparte una lengua, una cultura, unos mitos fundadores, un destino
común etc. Se despliega, en cambio, en otras espacialidades: unas “comunidades”
parciales (la escuela, la familia, el colectivo de beneficiarios de planes sociales), el
“mercado de trabajo” y, asimismo, en el territorio moral de la “subjetividad”.
Sin embargo, aún en ausencia de los registros “holistas” de la sociedad y la
nación, esta clase de acciones están hilvanadas en una estrategia “macro” de go-
bierno. La orientación profesional apunta, como otras tecnologías, a configurar/
modelar/inducir una forma específica de la subjetividad. En esa dirección, forma
parte de un cálculo o de una estrategia política más general: en tanto contribuye a
la formación de sujetos “autónomos”, “activos”, “reflexivos”, refuerza y raciona-
liza la “elección” (ocupacional/profesional), constituye uno de los resortes éticos
de la forma específica de gubernamentalidad que es el neoliberalismo.
En este sentido, el incremento de la empleabilidad y el fortalecimiento de la
autonomía, dos de los propósitos a los que tiende la orientación profesional, están
alineados con el objetivo “macro” de aumentar la competitividad de la economía

86 KNOBEL, Mauricio. Etiología del ausentismo. Tesis de Doctorado. Facultad de Ciencias Médicas, 1952, p. 97.
87 RASCOVAN, Sergio, “Lo vocacional…” op. cit., p. 2.

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nacional.88 Como ha sido largamente argumentado, entre las características que


distinguen al neoliberalismo, se encuentra la extensión del principio de la compe-
tencia y el modelo de la empresa a todos los ámbitos de la vida social89 y la asun-
ción, por parte del Estado, de una forma “reflexiva” de gobierno.90 En lugar de
intervenir directamente sobre los procesos sociales del mercado, la educación, la
cultura etc. gobierna promoviendo la adopción por parte de los individuos y gru-
pos de comportamientos competitivos.
A la inversa, entre 1920 y 1955, la orientación aparecía como una acción di-
rectamente encaminada a la realización de una serie de objetivos colectivos (la in-
dependencia económica, la paz social etc.). Pero también involucraba – bajo diver-
sas modalidades – alguna elaboración de lo “subjetivo” y se asentaba sobre una
semántica (entre psicológica y ético-política) que incluía la noción de vocación,
el concepto de personalidad, una concepción espiritual de la profesión, y toda
una serie de motivos humanistas. Así, la reflexión sobre la orientación profesional
constituyó, en esos años, uno de los tópicos que – más allá de todos los cálculos
de utilidad – atrajo y condensó los esfuerzos, inquietudes, proyectos y utopías de
“moralización” del mundo del trabajo y de la producción, que compartieron – con
todas las distancias existentes entre ellos – los gobiernos radicales y los psicólo-
gos, los biotipólogos y las autoridades políticas e intelectuales del peronismo.
Las expectativas “éticas” que C. Jesinghaus y G. Fingermann depositaron so-
bre la orientación profesional estaban alimentadas por el discurso de la filosofía
krausista el cual, como vimos, constituía, también uno de los insumos ideológicos
del radicalismo. En consonancia con la impronta anti-positivista y materialista del
krausismo, así como con su énfasis sobre la armonización entre la realización indi-  354
vidual y las necesidades de la sociedad91, para dichos psicólogos estaba claro que
la elección de la carrera era una cuestión eminentemente ética, en la que contaba
tanto la satisfacción personal como la utilidad social. En esta dirección, Jesinghaus
atribuía a la escuela la misión de mostrar a los estudiantes la diferencia entre el mero
trabajo (cuyo único propósito era obtener dinero) y el “trabajo profesional”, que
proporciona no sólo sostén sino el “contenido de la vida”.92 Desde las Guías de Estu-
dios Superiores se insistía en denostar el “materialismo burdo” que, en algunos ca-
sos, regía la elección profesional, resaltándose la importancia de los motivos éticos.
La orientación se fundaba, así, en un “triple esclarecimiento” de carácter éti-
co, técnico-económico y psicofísico. Si bien el individuo no se concebía, como en
la actualidad, como un ser “activo”, la primera operación de esclarecimiento con-
vocaba un trabajo ético, del “yo” en relación a sí mismo. “Es necesario estudiarse
a sí mismo para descubrir su verdadera vocación y no caer en errores respecto a sí
mismo”, explicaba Jesinghaus93 y desde el Instituto de Psicotécnica y Orientación
se señalaba que el problema de la idoneidad para el desarrollo de una profesión
dependía del “conocimiento de sí mismo” y de un “severo auto-examen”.
Asimismo, esta reflexión atribuía a la vocación un peso, si bien no exclusivo, sí
decisivo en la determinación de la carrera. Tal como surge de los textos que dicho
Instituto producía, en la ponderación de los factores que incidían en la elección de
una carrera, el estudiante debía dar prevalencia a la vocación.

88 MTEySS, Orientación Profesional… op. cit., p. 3.


89 Cf. FOUCAULT, Michel. Nacimiento de la Biopolítica. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007.
90 Cf. DEAN, Mitchell. Governmentality… op. cit.
91 BIAGINI, Hugo. “Precursores del Estado de Bienestar”. En: H. BIAGINI (comp.). Orígenes de la democracia
argentina. El trasfondo krausista. Buenos Aires: Legasa, 1989, p. 206-225.
92 JESINGHAUS, Carlos. La cooperación de la escuela primaria en la orientación profesional. Buenos Aires: Ins-
tituto de Psicotécnica y Orientación Profesional, 1927, p. 5.
93 JESINGHAUS, Carlos. La cooperación… op. cit., p. 5.

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En la tradición psicotécnica inaugurada por Jesinghaus, la subjetividad resul-


taba articulada bajo el concepto de personalidad. La inclinación de Fingermann, Ka-
plan y otros especialistas, hacia el uso de test ergológicos permite comprender que,
para esta perspectiva, la orientación debía dar cuenta de la individualidad, mediante
un meticuloso trabajo de “articulación” y “composición” de las diversas aptitudes.

Lo que importa, pues, es determinar la personalidad global del sujeto


[…]. El test debe ser, por lo tanto, analítico y sintético a la vez. Una vez
descompuesta la personalidad con los mismos fragmentos se debe re-
construir la personalidad, no a la manera de mosaico sino con el objeto
de descubrir cuál es el resorte fundamental, cuál es el rasgo típico que
lo determina dándole una fisonomía propia.94

Esta clase de mirada marca una distancia importante respecto del estudio analítico
de las aptitudes. Asimismo, da cuenta de la afinidad entre esta forma de concepción
integral de la personalidad, el uso de test ergológicos y el enraizamiento, en algunos
círculos políticos e intelectuales de los años ’20, de ideas krausistas.95
También para la biotipología la psicotécnica estaba conectada con la preocu-
pación por moralizar el mundo del trabajo mediante la asignación de cada indi-
viduo al puesto que le correspondía de acuerdo a su biotipo. Asimismo, al igual
que la orientación de inspiración “psi”, pero sobre los fundamentos de la medicina
constitucionalística, los biotipólogos pensaban a los sujetos en términos de “in-
dividualidad” y “personalidad” y defendían la idea de la unidad fundamental del
 355 hombre. Esta visión integral de lo humano se explica porque la biotipología junto
a otros saberes constituía una de las ramificaciones del holismo médico de entre-
guerras, que se caracterizaba por pensar el cuerpo de manera sistémica, enfatizar
las conexiones entre las diversas dimensiones, propender a una mirada “sintética”
e interdisciplinaria etc. Sin embargo, a diferencia de los psicólogos que compartían
las ideas krausistas, los biotipólogos argentinos no fueron totalmente consecuen-
tes con el “holismo” que defendían. Así, en los escritos de D. Boccia convivía la
idea del ser humano como “personalidad” con la metáfora fisicalista del “motor
humano”.96 Asimismo, mientras los métodos que preconizaban Jesinghaus y Fin-
germann eran ergológicos, para estudiar la «individualidad» los biotipólogos pro-
cedían a descuartizar al ser humano en varias facetas para luego reconstituirlo,
integrando y correlacionando los datos acumulados en la investigación de cada de
ellas. Idéntico reduccionismo transpiraba la obsesión por la elaboración de «bioti-
pos» que, por su carácter ideal, generaban tensiones con la idea de individualidad.
Durante los gobiernos peronistas las experiencias en materia de orientación
siguieron el modelo de los test que venían aplicándose desde 1931 por el Instituto
de Orientación Profesional del Museo Social, con lo que existe continuidad entre
los exámenes practicados en el marco del gabinete psicotécnico de la Comisión de
Enseñanza y Orientación Profesional y la evaluación de las aptitudes realizada por
los psicólogos krausistas. También en el caso del peronismo, y más allá del objetivo
de formar la mano de obra calificada que requería la industria, se advierte el pro-
yecto de moralizar el mundo de la producción, contribuyendo a la “dignificación”
del trabajo y a la armonía entre las clases sociales. Pero los fundamentos de este
programa “ético” no deben buscarse en este caso en el krausismo, sino en la doc-
trina social de la Iglesia.

94 FINGERMANN, Gregorio. Fundamentos… op. cit., p.59.


95 Cf. ROSSI, Lucía. “Instituciones de…” op. cit.
96 Cf. HAIDAR, Victoria “Cada uno…” op. cit.

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VICTORIA HAIDAR

IV. Conclusiones
Emergente en la década del ’20 del siglo pasado, la problematización sobre
la orientación profesional asumió a lo largo del tiempo diversas significaciones,
explicables en función de la acción de múltiples y heterogéneas condiciones, en-
tre las que se cuentan. a) Condiciones de carácter epistémico, relativas a la forma
cómo diversos saberes expertos hicieron pensable la orientación en el transcurso
de los años. Así, la misma asumió una modalidad “psicotécnica”, que fue racio-
nalizada y se nutrió del conocimiento producido por la psicología experimental,
la psicología diferencial, la psicología aplicada, la biotipología, y una modalidad
“clínica”, de inspiración psicoanalítica. b) Factores de orden técnico, vinculados
con los cambios que sufrieron los instrumentos utilizados para conocer las “apti-
tudes”, “competencias” y “potencialidades” (así: test analíticos, test ergológicos,
entrevistas) y con las expectativas que los expertos depositaban sobre ellos (me-
dición o esclarecimiento de las aptitudes, etc.). c) Cuestiones ligadas a problemas
del “gobierno” de diversas poblaciones (jóvenes, incapacitados, desempleados).
Tal como mostramos a lo largo del artículo, la orientación profesional es una tec-
nología lo suficientemente dúctil como para ser integrada en diversas estrategias
políticas. Así, a lo largo de las décadas, se incluyó en los programas de armoniza-
ción social y moralización de la vida profesional que encarnaron tanto los gobier-
nos radicales como los psicólogos krausistas; en las utopías corporativistas de los
médicos de inspiración biotipológica; en el programa nacionalista, católico-social y
neo-keynesiano del peronismo y, finalmente en el esquema de gobierno neoliberal
que expresa el programa de formación profesional del MTEySS. d) Factores eco-
 356
nómico-sociales: tanto los expertos como las autoridades políticas atribuyeron a
la orientación la función de atender a diversas “urgencias”, derivadas de la rápida
e improvisada industrialización, la carencia de mano de obra idónea, el aumento
de la conflictividad social, el incremento del desempleo y la necesidad de atender
a las demandas de competitividad provenientes del mercado global.
Lejos de estar sobredeterminada, como en la actualidad, por los problemas
del mercado de trabajo, entre 1920 y 1955 la orientación se alineó hacia la realiza-
ción de diversos fines, que venían definidos tanto desde el campo experto como
desde el ámbito de la política: pacificación social, moralización de la vida profesio-
nal, prevención de los accidentes de trabajo, racionalización del trabajo, gobierno
de las poblaciones incapacitadas. Pero el carácter polivalente que dicha tecnología
asumió en sus orígenes no debe opacar la existencia de continuidades a lo largo del
tiempo. También la cuestión de la “empleabilidad” (aunque la “palabra” no fuera
utilizada) se articulaba, por entonces, en términos semejantes a los contemporá-
neos, es decir, como un problema de las capacidades para el empleo. Sin embargo,
mientras en el presente (más allá de la acción “facilitadora” y “promotora” del
Estado) la empleabilidad se concibe como una responsabilidad de los individuos,
hasta la primera mitad del siglo XX era, a la vez, un asunto tanto de los individuos
(cuya ineptitud era causa legítima de despido) como del Estado.
Así, bajo diversas formas, entre 1920 y 1955, la orientación se pensó como
una tecnología que permitía organizar, mediante una intervención ad hoc, los de-
sarrollos espontáneos que venían realizándose en el ámbito de la educación y del
trabajo, de manera de acoplar la producción de profesionales, técnicos, obreros
calificados etc. a los requerimientos de la “economía nacional” y/o del “mercado”.
Esta pretensión de “acoplamiento” y “armonización” entre los proyectos fami-
liares/individuales y aquellos capitalistas/estatales, asumió una forma autoritaria

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LA ORIENTACIÓN PROFESIONAL EN LA ARGENTINA (1920-1955)...

en el pensamiento de los biotipólogos, y liberal en el resto de los casos. La orien-


tación no era, solamente, una medida destinada a prestar un servicio al capital.
Por el contrario, en el afán por “asignar” a los individuos a las ocupaciones que
les correspondían según sus aptitudes, o bien “aconsejarlos” acerca de lo que les
convenía hacer, anidaba, también, un proyecto político. Se trataba de contribuir a
la producción del orden social “por-medio-de” la satisfacción en el trabajo, la dis-
minución del desempleo y la moralización de la vida profesional.
En la actualidad, en cambio, las acciones de orientación profesional no están
integradas en ningún master plan. De lo que se trata es de acompañar el proceso
de elección de una carrera/ocupación y/o de guiar y facilitar la búsqueda laboral,
poniendo a disposición del sujeto herramientas que faciliten, refuercen y optimi-
cen el conocimiento de las propias competencias, capacidades, inclinaciones; las
recapitulaciones y reflexiones relativas a la propia historia profesional y, asimismo,
el conocimiento de las características del mercado de trabajo. El sesgo “pronosti-
cador” que caracterizaba a la psicotécnica, y que se conecta con la voluntad (po-
lítica) y la utopía tecnocrática de anticiparse a los desarrollos del mercado, está
completamente ausente en las reflexiones del presente.
Esto no significa, no obstante, que la orientación esté desprovista de toda
significación política. Como vimos, la última ratio del programa de formación pro-
fesional del MTEySS consiste en incrementar la competitividad de la economía na-
cional, un objetivo que es compartido (y reclamado) tanto desde el ámbito estatal
como desde el ámbito del capital. De manera más sutil, en la medida en que la
 357 orientación contribuye a la configuración de los sujetos autónomos, responsables,
activos, competentes etc. sobre los que se funda el arte de gobierno neoliberal, la
misma asume una significación política.
Asimismo, a lo largo del artículo mostramos que, al contraponer “orientación
colectiva” a la “orientación individual”, o la modalidad psicotécnica a la modalidad
clínica, se suele opacar el hecho de que, también entre 1920 y 1955, existió una cierta
elaboración de lo “subjetivo”. En la reflexión psicotécnica estamos lejos del indivi-
duo “activo” y responsable que construye su propio proyecto profesional/ocupacio-
nal pero, no obstante, el concepto de personalidad confería un sustento psicológico
a la libertad, entendida como “ejercicio yoico de una voluntad autónoma”.97
Más allá de la importancia de reconocer que la reflexión sobre la orientación
está modulada por diversos énfasis, es preciso señalar que, en todos los casos, lo
“individual” y lo “colectivo” aparecen, en alguna medida, entremezclados. Ello es
así en virtud de la afinidad, característica del presente, entre la semántica “psi”
y el neoliberalismo. Pero, asimismo, porque entre 1920 y 1955 la satisfacción de
objetivos colectivos se alineaba con toda una serie de esfuerzos por moralizar la
vida profesional, que atendían a la personalidad y a los componentes vocacionales.
Es preciso observar, por otra parte, que esa imbricación entre lo individual
y lo social aparece replicada en la forma en que – de manera persistente – en el
discurso psicológico, médico y, asimismo, de la política pública, la orientación se
concibe como un proceso de encastre, de ajuste o adecuación entre distintas di-
mensiones o planos, algunos de los cuales quedan ubicados en el lugar de la in-
terioridad (y, por lo tanto, de lo subjetivo, lo íntimo etc.) y otros en un lugar de
exterioridad y exteriorización (y por lo tanto, de lo público, de que se pone en co-
mún etc.). En el lado de la interioridad aparece la vocación y toda su semántica. En
el lado de la exterioridad, el mercado de trabajo y sus demandas pero, asimismo,

97 ROSSI, Lucía. “Instituciones…” op. cit., p. 146.

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VICTORIA HAIDAR

otras dimensiones que siendo “del sujeto”, constituyen manifestaciones, exterio-


rizaciones, objetualizaciones de sí mismo, como las aptitudes y, en el vocabulario
contemporáneo las competencias.
Entre estas dos tendencias, la orientación se concibe con una tecnología
“transaccional”, que busca acercar y compatibilizar lo interno con lo externo, la
vocación con la aptitud, la vocación con la demanda de empleo, los intereses (mu-
chas veces antinómicos) del individuo y la sociedad. En la década del ’40, J. Kaplan
sostenía que poseer vocación para una actividad más la aptitud necesaria para rea-
lizarla equivalía al éxito, a la satisfacción propia y el beneficio de la sociedad, pero
si se daba la vocación y no la aptitud, el resultado era el fracaso, el resentimiento
y la liberación de un elemento antisocial. También en el presente el proyecto pro-
fesional se concibe como aquello que aúna “vocación”, con la “demanda de em-
pleo”, “vocación” con las “competencias personales”.

Recebido em 10/2012
Aprovado em 02/2013

 358

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FONTES E ARQUIVOS
A catalogação de acórdãos e
processos individuais do Tribunal
Regional do Trabalho do Rio
de Janeiro
Larissa Rosa Côrrea*
Alexander Englander**
João Roberto Oliveira Nunes,
Marcelo Barros e Edna Mendes***

Recentemente, os tribunais trabalhistas brasileiros passaram a se


preocupar com a política de gestão documental dos seus acervos. Diante da
prática de eliminação dos processos trabalhistas, muitos tribunais passaram a
realizar ações de preservação documental e de difusão da memória e da história
da Justiça do Trabalho.1 O tratamento dessa documentação judicial, ao mesmo
tempo em que abriu enorme leque de possibilidades de pesquisa sobre o mundo
do trabalho e da história política e social, significou também um novo desafio para
os arquivistas e historiadores. Afinal, como organizar as informações presentes nos
processos individuais e coletivos, de forma que ela se torne acessível a qualquer
pesquisador? Como lembrou Antonio Montenegro, “é de conhecimento público a
importância da preservação da memória de uma sociedade, pois apenas por meio
dela é possível não só aprender com o passado, mas construir outras formas de
entendimento do presente”.2
Nesse sentido, as fontes judiciais do TRT da 1.ª Região, assim como as dos
demais tribunais trabalhistas, revelam-se fundamentais para a compreensão de
importantes processos históricos, políticos, econômicos e sociais do estado do Rio
de Janeiro e do país. Desde a sua instalação em 1941, a Justiça do Trabalho tornou-
se palco de numerosos conflitos e negociações trabalhistas, resultado das ações e
experiências da classe trabalhadora e dos empregadores. Esses conflitos, uma vez
encaminhados à Justiça do Trabalho, passaram a adquirir diferentes significados

* Doutora em História Social pela Unicamp, correspondente do Instituto Internacional de História Social de
Amsterdam. Email: larissarosacorrea@hotmail.com
** Doutorando em Sociologia pelo IESP. Email: alexcoueng@gmail.com
*** Funcionários da Seção de Gestão de Memorial do TRT 1ª Região, pós- graduados em História e Sociologia.
Contato: secmei@trt1.jus.br
1 Exemplos nesse sentido podem ser observados no TRT 4.ª Região, no Rio Grande do Sul, no TRT da 6.ª
Região, em Pernambuco, no TRT 3.ª Região, em Minas Gerais. Ver: CAIXETA, Maria Cristina D.; DINIZ, Ana
Maria M.M.; CUNHA, Maria Aparecida C.; CAMPANTE, Rubens G. (orgs.). IV Encontro Nacional da Memória
da Justiça do Trabalho. Cidadania: o trabalho da memória. São Paulo: LTr, 2010.
2 MONTENEGRO, Antonio. “História e trabalho – o TRT 6.ª região e a UFPE: memória e pesquisa historiográ-
fica”. In: CAIXETA; DINIZ. Idem, p. 48.

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LARISSA ROSA CÔRREA

ao longo das variadas conjunturas políticas, sociais e econômicas. Cabe agora


aos pesquisadores interessados em compreender as relações entre o capital e o
trabalho analisar a presença, a experiência, as iniciativas, bem como os valores
e as estratégias dos trabalhadores livres e industriais ao longo do século XX nas
fontes disponíveis da Justiça do Trabalho.3
Ciente da importância da preservação das fontes judiciais para o conhecimento
histórico, a Seção de Gestão de Memorial do TRT da 1.ª Região elaborou o projeto de
catalogação dos acórdãos e processos trabalhistas, oriundos do estado do Rio de
Janeiro e demais regiões antes pertencentes a esse tribunal.4 O projeto Mentoring,
iniciado em janeiro de 2012, dedicou-se à organização das informações presentes
em parte da documentação de caráter permanente do TRT/RJ. Trata-se, mais
precisamente, de cento e cinquenta processos autuados, contendo reclamatórias
individuais, até o ano de 1990, arquivados durante o período 2000/2001 e dois
mil e quinhentos acórdãos lavrados desde o período de instalação da Justiça do
Trabalho, que tratam de dissídios coletivos e individuais.
Por meio das fontes judiciais é possível analisar, de modo quantitativo e qual-
itativo, diversas temáticas referentes ao mundo do trabalho, como os conflitos
e negociações entre empregadores e trabalhadores, as relações de trabalho no
chão de fábrica, os aspectos do processo de industrialização, as relações entre os
trabalhadores, bem como a construção e a conquista das leis e direitos. Os autos
permitem, ainda, conhecer o pensamento e a atuação dos magistrados, realizar
análises comparativas entre os tribunais, verificando o perfil dos juízes em deter-
minadas regiões, entre outros desdobramentos temáticos.5 Ademais, por meio
dos acórdãos oriundos dos processos individuais e coletivos, podemos observar a  362
criação dos direitos e da jurisprudência trabalhista.6 O acompanhamento das de-
cisões judiciais neles presente revela o processo de formação do sistema jurídico
trabalhista, construído a partir da decisão dos conflitos encaminhados pelos tra-
balhadores e empregadores.
Como observou Clarice Speranza, o número de estudos que utilizam os pro-
cessos trabalhistas como fontes de pesquisa histórica é crescente, da mesma forma
que aumentam as investigações sobre as diferentes maneiras em que a legislação
brasileira afetou e foi afetada pela experiência dos trabalhadores. Não obstante, al-
guns pesquisadores têm buscado compreender as normas trabalhistas, desvelando
aspectos que haviam sido negligenciados nas interpretações anteriores.7

O trabalho de catalogação dos acórdãos


Ao selecionar os acórdãos produzidos durante as décadas de 1940 e 1960,
foi dada prioridade ao conjunto documental mais antigo. Tal opção foi justificada

3 Embora o uso das fontes da Justiça do Trabalho seja ainda recente, podemos dizer que há disponível uma
bibliografia considerável sobre o uso e sobre a análise das fontes judiciais trabalhistas. Ver exemplos em:
NEGRO, Antonio Luigi. “O que a Justiça do Trabalho não queimou”. POLITEIA: Hist. e Soc. Vitória da Con-
quista, v. 6, n. 1, 2006, p. 193-209.
4 A jurisdição da 1.ª Região abrangia os estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo. Em 1991, o estado do
Espírito Santo se desmembrou e se tornou a 17.ª Região.
5 CORRÊA, Larissa Rosa. A tessitura dos direitos. Patrões e empregados na Justiça do Trabalho, 1953-1964. São
Paulo: LTr, 2011.
6 No caso do TRT do Rio de Janeiro, os acórdãos adquirem extrema importância para os estudos do mundo
do trabalho e da justiça trabalhista na região, uma vez que os dissídios coletivos e individuais referentes
aos anos de 1940 e 1970 foram descartados.
7 SPERANZA, Clarice G. “Cavando direitos. As leis trabalhistas e os conflitos entre trabalhadores e patrões nas
minas do Rio Grande do Sul nos anos 40 e 50”. Tese de doutorado. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação
em História – UFRGS, 2012, p. 29.

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A CATALOGAÇÃO DE ACÓRDÃOS E PROCESSOS INDIVIDUAIS DO TRIBUNAL...

não apenas ������������������������������������������������������������������


pela fragilidade do suporte, mas também por serem escassas as fon-
tes judiciais que retratam os conflitos trabalhistas, sobretudo os individuais, nesse
período. O recorte temporal escolhido para a seleção da amostra pautou-se nos
eventos considerados mais significativos da história do movimento operário no
Rio de Janeiro, da Justiça do Trabalho e dos acontecimentos históricos nacionais e
internacionais. Assim, foram selecionados os seguintes anos:
- 1941: ano de instalação e funcionamento da Justiça do Trabalho, período em
que Alexandre Marcondes Filho assumiu o Ministério do Trabalho. Sua gestão
foi marcada pela elaboração da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), por
campanhas de sindicalização, programas de construção de vilas operárias e pela
construção da imagem de Getúlio como defensor dos interesses dos trabalhadores.8
É o período de consolidação do sistema corporativista das relações de trabalho, de
organização dos tribunais trabalhistas e de composição dos direitos. Ano também
de criação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), situada no município de Volta
Redonda, no Rio de Janeiro, conhecida como a maior siderúrgica do país.
Ao se estabelecer como órgão próprio para conciliar e julgar os conflitos
entre empregados e patrões nas relações de trabalho, a Justiça do Trabalho
revestiu-se de três características principais: 1) tinha natureza especializada,
uma vez que se limitava às relações de emprego/trabalho; 2) caráter paritário
e representativo, incorporando em seus quadros os chamados vogais ou juízes
classistas, representantes sindicais dos empregados e empregadores; 3) caráter
administrativo, pois era vinculada ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio
 363 e atrelada ao Poder Executivo.9
- 1947: os acórdãos produzidos neste ano permitem observar as decisões judiciais
apresentadas após a realização de uma série de mudanças legais aprovadas no
governo Dutra, como o decreto-lei n.9.070, de 15 de março de 1946, que restringiu
e regulamentou o direito de greve. Em setembro desse mesmo ano, foi lançado
o decreto n.9.797, que transferiu a Justiça do Trabalho para o Poder Judiciário,
como justiça autônoma e especial. Os Conselhos Regionais tornaram-se Tribunais
Regionais e o Conselho Nacional foi substituído pelo Tribunal Superior do Trabalho.
Na sequência, foi promulgada a Constituição de 1946. O governo Dutra foi marcado
por uma série de conflitos trabalhistas e de forte mobilização operária, tendo sido
registradas setenta e sete paralisações somente nos três primeiros meses de 1946.
Desse modo, seria interessante analisar se essas manifestações tiveram reflexo no
TRT do Rio de Janeiro e como o tribunal tratou das demandas encaminhadas pelos
trabalhadores.
Segundo Fernando Teixeira da Silva, antes de 1946, a CLT não conferia aos
sindicatos competência para celebrar contrato coletivo como representante
legal de toda a categoria, sendo a abrangência dos acordos limitada apenas aos
trabalhadores sindicalizados. A sentença judicial deveria ter caráter normativo, ou
seja, tinha o poder de criar normas e estipular condições de trabalho conforme a
solução dos dissídios coletivos. Essa característica permitia aos juízes trabalhistas
no Brasil a criação de novos direitos. Com a Constituição de 1946, os direitos

8 A contextualização dos anos selecionados para a catalogação teve como base a linha do tempo publicada
no livro: GOMES, Angela de Castro. Ministério do Trabalho: uma história vivida e contada. Rio de Janeiro:
Cpdoc, 2007.
9 Em 1946, a jurisdição do TRT da 1.ª Região abrangia, além do Distrito Federal, o antigo estado do Rio de
Janeiro e do Espírito Santo. O primeiro grau de jurisdição era composto por Juntas de Conciliação e Jul-
gamento, distribuídas da seguinte forma: nove na capital e uma nos municípios de Niterói, Campos, Pe-
trópolis, Cachoeiro do Itapemirim e Vitória. Ver: “Memória institucional – história e cronologia” do TRT 1.ª
Região. Disponível em: http://www.trt1.jus.br/breve-historico-e-cronologia. Acesso em 8 de julho de 2013.

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LARISSA ROSA CÔRREA

conquistados na Justiça do Trabalho passaram a ser estendidos para todos os


trabalhadores de uma categoria ou ramo produtivo, independentemente de sua
sindicalização.10
- 1959: Após a Greve Nacional dos Marítimos, o novo ministro do Trabalho,
Fernando Nóbrega, procurou impedir a ocorrência de paralisações duradouras e
realizou acordos com os presidentes das confederações das diferentes categorias
de trabalhadores. Esse período foi caracterizado pela intensa atividade sindical
proporcionada pela conjuntura política de razoável estabilidade democrática, bem
como pela construção de direitos e de melhor remuneração do trabalho, que só
vai ser estancado com o golpe civil-militar de 1964.11
- 1963: ano fundamental para a compreensão do período que antecedeu a
instauração do regime ditatorial, conjuntura marcada pela ocorrência de grandes
greves gerais em todo o país. Nesse período seria interessante questionar de que
forma as tensões e os conflitos políticos de âmbito nacional e regional, marcados
pela pressão do movimento operário e dos setores conservadores civil e militar,
influenciaram as decisões judiciais no TRT do Rio de Janeiro.
Vale lembrar que, um ano antes, o presidente João Goulart havia anunciado
durante um discurso realizado na cidade de Volta Redonda a intenção de promover
as tão reivindicadas reformas de base. Não menos importante foi a aprovação
do 13.º salário, pela lei 4.090, assinada em julho de 1962. Antes, o benefício era
considerado uma gratificação fornecida como mera liberalidade dos patrões. Os
empregados ficavam dependentes da boa vontade dos empregadores no tocante à
concessão do abono natalino. Nesse sentido, caberia analisar como o TRT recebeu
os pedidos de pagamento do 13.º salário. Além do abono natalino, a conjuntura é  364
marcada pela criação do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). Considerado
ilegal e não reconhecido pelo Ministério do Trabalho, o CGT reunia diversos órgãos
intersindicais regionais.
É possível que os acórdãos produzidos em 1963 possam refletir os eventos
ocorridos no ano anterior, incluindo as diversas greves eclodidas, entre elas a dos
ferroviários, portuários, aeroviários, marítimos e operários navais. No Ministério
do Trabalho e Previdência Social, Amauri Silva tornou-se o novo ministro. Durante
sua gestão, o número de sindicatos de trabalhadores rurais passou de cento e
cinquenta para mil cento e cinquenta, e novas federações sindicais regionais de
trabalhadores foram organizadas.
- 1968: a lei n.º 5.541, assinada em junho de 1968, introduziu a mudança no cálculo
dos reajustes salariais fixados pela política econômica. O governo, embora tivesse
reconhecido que os reajustes salariais anteriores haviam sido menores do que a
inflação, recrudesceu a política de arrocho salarial. Com o recrudescimento da
repressão política pelo regime militar, o que muda no funcionamento da Justiça
do Trabalho?

Os acórdãos como fontes de pesquisa


Buscando sistematizar as informações constantes nos acórdãos, procuramos
fazer uma leitura a contrapelo, a fim de resgatar a origem do conflito. Acontece
que, com exceção dos dissídios coletivos, os acórdãos elaborados nos tribunais
regionais do trabalho são consequência de recursos, instaurados por parte dos

10 SILVA, Fernando Teixeira. “�����������������������������������������������������������������������������


Justiça do Trabalho Brasileira e Magistratura del Lavoro Italiana: apontamen-
tos comparativos”. In: CAIXETA; DINIZ, op.cit., p. 74.
11 MATTOS, Marcelo Badaró. “Greves, sindicatos e repressão policial no Rio de Janeiro (1954-1964)”. Revista
Brasileira de História, v.24, n.47, 2004, p. 241-270.

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A CATALOGAÇÃO DE ACÓRDÃOS E PROCESSOS INDIVIDUAIS DO TRIBUNAL...

patrões ou dos empregados.12 Ao identificar o processo, observamos que o relator


indicava apenas quem era o recorrente da ação. Se tivéssemos considerado apenas
esse dado, teríamos perdido uma das informações principais do processo: o autor
da ação. Nesse sentido, mesmo sabendo que os acórdãos representam partes
resumidas do processo, buscamos analisá-lo de forma mais ampla, de modo a
compreendê-lo em sua totalidade, com o objetivo de recuperar informações sobre
a origem do conflito e extrair o maior número de informações possível.
Vale lembrar que os acórdãos apresentam uma versão resumida do processo.
Sua narrativa varia conforme o seu autor, no caso, o relator, não abrangendo toda
a extensão e discussão em que se pautou o julgado, mas apenas os principais
pontos da discussão. Em relação ao período analisado, é importante atentar
para as diferenças cronológicas entre a ocorrência do conflito e a publicação do
acórdão. Uma ação judicial de caráter individual ou coletivo poderia tramitar na
Justiça do Trabalho durante seis meses, um ano ou mais, dependendo do conflito
julgado e do número de processos impetrados nos tribunais.13 Ademais, percebe-
se que na primeira década de funcionamento da Justiça do Trabalho o processo
era julgado no mesmo ano em que as ações eram instauradas. Já nas décadas de
1950 e 1960, a distância entre a apresentação da ação e a sentença foi maior a cada
ano. Esse período entre a entrada do processo e sua conclusão é fundamental
para contextualizar os motivos que levaram o autor da ação a apresentar sua
reclamação e o contexto em que o conflito fora julgado.
Em geral, muitas informações aparecem nos acórdãos de modo inconstante,

 365 uma vez que o seu conteúdo variava conforme o relator. No entanto, alguns dados
apresentam-se de maneira regular e nos permitem traçar um retrato da instituição
a partir das seguintes questões:
• Quais grupos instauravam mais processos nas Juntas de Conciliação e Jul-
gamento: empregados ou empregadores?;
• Homens ou mulheres? (aqui também é ������������������������������������
possível comparar
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gênero por cate-
gorias profissionais e por data);
• Processos instaurados por cidade;
• Análise do número de dissídios individuais, coletivos e homologações por
ano no TRT da 1.ª região;
• Ideia geral dos tipos de demandas, pois não é possível saber se o relator
reproduzia a lista completa de reclamações apresentadas no processo;
• Análise das decisões dos tribunais de 1.ª e 2.ª instâncias. É possível saber se
os juízes eram mais favoráveis ou não às reclamações impetradas por tra-
balhadores e empregadores;
• Quem entrava mais com recursos: patrões ou empregados?
• Pesquisa pelo nome do relator;
• Pesquisa por ano, empresa, cidade e por categoria profissional.

A base de dados permite ainda cruzar as demandas com as categorias


profissionais e analisá-las por ano e/ou cidade. Além disso, o conjunto de palavras-
chave, elaboradas para cada acórdão e normatizadas pelo uso do vocabulário
controlado, sugere entradas de pesquisa para o consulente, além de uma síntese

12 Trata-se de recursos instaurados após os resultados das reclamatórias julgadas nas Juntas de Conciliação
e Julgamento.
13 Essa afirmação não tem comprovação empírica. Ainda é preciso realizar um estudo quantitativo minucioso
sobre a média de tempo de duração de um processo trabalhista individual.

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LARISSA ROSA CÔRREA

do conflito trabalhista. Exemplo de palavras-chave: categoria do trabalhador


+ demanda + prática de comportamento do empregado ou do empregador +
contextualização (custo de vida, política salarial, por exemplo).

A catalogação dos processos individuais


Para a seleção da amostra de processos individuais foram selecionados
cinquenta e cinco autos da Vara de Nova Iguaçu (de 1984 a 1990) e noventa e
cinco de diferentes Varas Trabalhistas da cidade do Rio de Janeiro, entre os
anos de 1978 e 1990, totalizando um conjunto de cento e cinquenta processos.14
A análise dos documentos apontou para um conjunto de questões possíveis de
serem compreendidas a partir da catalogação dos processos. Uma delas é quanto
tempo o reclamante esperava em média na justiça trabalhista para ter o seu direito
atendido. Para isso, foi realizada uma descrição minuciosa do trâmite processual e
da fase de execução dos processos. Nesse sentido, procuramos saber quais eram
os passos burocráticos que o trabalhador tinha que percorrer até receber o valor de
sua indenização ou dos seus direitos após a data do julgamento. Também buscamos
fazer um cálculo de quanto tempo durou cada processo, considerando a data do
último documento anexado nos autos ou a data de arquivamento, quando havia.
O levantamento dessas informações permite compreender os caminhos
percorridos pelos trabalhadores na Justiça do Trabalho quando buscavam reivindicar
seus direitos individuais. A descrição do rito judicial contribui para a análise dos
diferentes significados atribuídos pelos trabalhadores ao papel desempenhado
pela justiça trabalhista. Possibilita, também, observar o posicionamento dos
magistrados em relação aos interesses dos trabalhadores e como empregados e  366
empregadores utilizavam o trâmite judicial para orientar o rumo das negociações.15
Entre os mais de trinta campos preenchidos no banco de dados para cada
processo, é possível encontrar uma série de informações sobre os conflitos
trabalhistas. Destacam-se os dados sobre o local de trabalho e de moradia do
trabalhador reclamante (cidade e bairro); nome dos advogados dos reclamantes
e dos reclamados; a função do trabalhador; a duração do vínculo empregatício; os
diferentes tipos de demandas; a descrição da sentença (se procedente, procedente
em parte, improcedente ou arquivado); o tempo de duração do processo; o autor
do recurso (empregado ou empregador); além de um resumo do conflito; do
trâmite processual; e, por fim, o trâmite da execução. Nesse último item buscamos
informar se o trabalhador reclamante recebeu o valor da condenação, de que
forma e quando.
A sistematização desse conjunto de informações pode revelar características
importantes sobre o perfil do empregado reclamante na Justiça do Trabalho. É
o caso das fichas de funcionário anexadas nos processos. Nelas, podemos ter
conhecimento do tipo do trabalho e da função exercida pelo trabalhador. Nos
processos individuais também é possível analisar os termos do contrato de trabalho,
bem como as condições da jornada de trabalho, os argumentos dos advogados, as
decisões do tribunal ou o acordo estabelecido, ter acesso ao parecer do Ministério
Público do Trabalho, entre outras questões.

Apontamentos da amostra
Numa primeira análise dos dados sistematizados no projeto, percebemos que
os acórdãos julgados pelo Conselho Regional do Trabalho (CRT) da 1.ª Região, de

14 A partir de 1999, as Juntas de Conciliação e Julgamento passaram a ser denominadas Varas do Trabalho,
conforme determinação da emenda constitucional n. 24, de 9 de dezembro desse mesmo ano.
15 CORRÊA, Larissa R. A tessitura dos direitos, op. cit., p. 102.

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A CATALOGAÇÃO DE ACÓRDÃOS E PROCESSOS INDIVIDUAIS DO TRIBUNAL...

1941, mostram que mais de dois terços das reclamações que chegaram ao grau de
recurso foram impetradas por categorias de empregados, de forma individual, nas
Juntas de Conciliação e Julgamento.16 Igualmente, informamo-nos de que naquele
período, mais de 80% dos trabalhadores que entraram com ações e chegaram ao
grau de recurso na Justiça do Trabalho eram homens, em sua maioria pertencentes
às categorias de trabalhadores marítimos, ferroviários e os empregados da Cia
Carris, Luz e Força do Rio de Janeiro.
Outra questão observada na amostra analisada sobre este momento
inaugural do funcionamento da Justiça do Trabalho foi o elevado número de
inquéritos impetrados pelas categorias de empregadores. Essas ações tinham o
intuito de demitir por justa causa os trabalhadores detentores de estabilidade.
Entre as justificativas mais comuns alegadas pelos empregadores para a demissão
dos trabalhadores estáveis, encontra-se o abandono de emprego, o cometimento
de falta grave por indisciplina e desídia.
Já a amostra de oitocentos e vinte e três acórdãos, referente ao primeiro
semestre de 1947, é marcada por um significativo crescimento da proporção de
empregados que entraram em 1.ª instância na Justiça do Trabalho em relação
à quantidade de ações iniciadas pelos empregadores. Se, em 1941, 73,06%
dos processos foram iniciados pelos trabalhadores, em 1947, esses números
aumentaram para 92,22%. De modo semelhante, o número de dissídios coletivos
aumentou: de apenas dois em 1941 para mais de cinquenta em 1947. Esses dados
apontam para a construção do processo de institucionalização da ação coletiva

 367 dos sindicatos na Justiça do Trabalho. Tais evidências fortalecem a hipótese de


que os trabalhadores se apropriaram da lei trabalhista para buscar seus direitos —
sejam eles rescisórios ou por melhores condições de trabalho.
Ainda sobre o uso da justiça trabalhista pelos trabalhadores, percebemos
que a categoria profissional que mais se destacou nos documentos analisados de
1947 foi a de transportes e energia elétrica, com participação em cinquenta e nove
acórdãos, quase todos provenientes da empresa Cia. Carris, Luz e Força do Rio de
Janeiro. Além desta, outras categorias se destacaram, entre elas a de Construção
Civil, com vinte e seis acórdãos, a de Alimentos, com vinte e um e de Bancários,
com dezenove. Outra categoria observada nos acórdãos foi a dos trabalhadores de
cassinos, que aparecem em onze casos. Os empregadores se viram pressionados a
pagar verbas rescisórias por demissão sem justa causa. Tais contendas ocorreram
em função da lei que, instaurada no governo Dutra, proibiu os jogos de azar no país.
Sobre os trezentos acórdãos sistematizados referentes ao ano de 1959,
apesar de apresentar um maior número de dissídios individuais, percebeu-se uma
quantidade considerável de dissídios coletivos. Neles, a demanda pela recuperação
das “diferenças salariais” aparece como a mais comum, como mostra o conjunto de
palavras-chave daquele período. Findos os contratos de trabalho, os empregados
vinham buscar na Justiça do Trabalho as compensações por situações de contrato
irregular que estavam em vigência durante a relação de emprego.
A Justiça do Trabalho não era apenas procurada para resolução das demandas
referentes à remuneração. Não é demais lembrar que nos anos de 1950, passados
mais de uma década de sua implantação, a Justiça do Trabalho encontrava-se
em fase de criação de um discurso específico, diverso do enfoque contratualista
e individualista da justiça comum. Relacionado a esse aspecto, notamos na
documentação abordada do ano de 1959 a consolidação de alguns direitos, em

16 A amostra para o ano de 1941 abrangeu trezentos e setenta e cinco acórdãos.

Revista Mundos do Trabalho | vol. 5 | n. 9 | janeiro-junho de 2013| p. 361-368


LARISSA ROSA CÔRREA

especial aos adicionais na remuneração do trabalho em condições gravosas, como


o trabalho noturno, perigoso e insalubre.
No ano de 1963, observou-se maior variedade de conflitos trabalhistas
encaminhados por diversas categorias de trabalhadores à Justiça do Trabalho. A
maior parte das ações analisadas na amostra, composta por quinhentos e setenta e
oito acórdãos, foi instaurada por trabalhadores oriundos de categorias com menor
grau de organização e representação coletiva. Nesse segmento, destacaram-se os
trabalhadores de bares e restaurantes, as trabalhadoras em hotéis e pensões, as
arrumadeiras e lavadeiras, os empregados em estabelecimentos hípicos, rádio e
até mesmo os jogadores de futebol — todos em busca de comprovação do vínculo
empregatício.
Nesse período, acumularam-se os pedidos de pagamento do 13.º salário,
também conhecido como gratificação de Natal, de indenização por demissão sem
justa causa, de cumprimento do reajuste salarial concedido em acordo ou dissídio
coletivo, além de outras reivindicações chamadas de “pequenos direitos”, como o
aviso-prévio e férias. Já os empregadores, de modo geral, procuraram se defender
das ações trabalhistas, alegando demissões por casos de embriaguez, roubo,
violência física, falta de produtividade e problemas de saúde mental.
Por fim, o conjunto de acórdãos do ano de 1968 refere-se, em sua maioria,
aos dissídios individuais autuados nos primeiros anos da década de 1960, período
marcado pela crise política e econômica, iniciada com a renúncia de Jânio Quadros,
e também por um cenário econômico desfavorável, caracterizado pela perda do
dinamismo alcançado na década anterior, pelo desemprego e pelo alto índice
inflacionário. A análise dos trezentos e noventa e três acórdãos possibilitou perceber  368
o reflexo desse cenário na vida dos trabalhadores. Chama atenção a recorrência
de demandas, tais como: adicional de insalubridade, gratificação de natal (ou 13.º
salário) e pagamento de horas extras. Essas demandas não apenas ratificavam os
direitos conquistados, como também efetivavam um acréscimo salarial, em um
período de difícil negociação entre trabalhadores e patrões. A resposta dos juízes
a esses pedidos, de maneira geral, foi favorável aos trabalhadores.
Outro aspecto relevante observado nos acórdãos de 1968 foram as estratégias
formuladas pelos empregadores visando romper o vínculo contratual com seus
empregados, em especial os ferroviários, prestes a obter o direito à estabilidade
decenal — fosse na forma de demissão por justa causa ou por encaminhamento de
inquérito na Justiça do Trabalho. Nesse particular, o julgamento dos juízes, no que
tange à amostra analisada, nem sempre se mostrou sensível aos trabalhadores.

Recebido em 11/2012
Aprovado em 07/2013

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RESENHAS
Construindo direitos: os
trabalhadores e a Justiça do Trabalho
Rinaldo José Varussa*

SOUZA, Edinaldo Antonio Oliveira. Lei e costume. Experiências de trabalhadores na


Justiça do Trabalho. Salvador: Edufba, 2012. 195 p.

Palavras-chave: Legislação e Justiça do Trabalho; Experiências de trabalhadores;


Recôncavo baiano (Brasil).

Keywords: Legislation and Labor Justice; Experiences of workers; Recôncavo baia-


no (Brazil).

Septuagenária. Quem diria? De nascimento difícil, com crescimento contur-


bado, jurada de morte inúmeras vezes, juntamente com a suposta era que a regis-
trou, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) avançou não só em longevidade,
mas em
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sua abrangência, haja vista a extensão de um conjunto de direitos aos em-
pregados domésticos, promulgada em 2013. Assim, ao contrário do que se atribui
aos humanos, com os passar dos anos, parece melhorar sua memória, lembrando-se
de trabalhadores outrora esquecidos.
Nesse processo “revitalizador”, as lutas empreendidas pelos trabalhadores
têm representado um papel decisivo, antes mesmo do nascimento da CLT, sendo
que as atuações destes empreenderam-se em diferentes lugares e formas.
Os pesquisadores não têm ignorado tal processo e, notadamente nas últi-
mas décadas, parecem ter engrossado este movimento de luta dos trabalhadores,
estabelecendo outros sentidos e significados para os embates vividos por estes a
partir da legislação trabalhista, tomando a Justiça do Trabalho como um espaço
privilegiado por muitos para constituição e consolidação de direitos.
Assim, também os historiadores têm buscado pesquisar os caminhos percor-
ridos pelos trabalhadores, nas dinâmicas vividas nas disputas judiciais, contrapon-
do suas interpretações a outras que ou viam a legislação trabalhista como mero
exercício unilateral dos ocupantes do poder ao qual se submetiam os trabalhado-
res, ou firmando uma laudatória, seduzidos por possíveis encantos daquela septu-
agenária senhora ou de seus supostos idealizadores. Neste exercício, o processo
de constituição da legislação trabalhista e a Justiça correlata vêm expressando o
conjunto das relações sociais, produzindo-se em contingências específicas e diver-
sas, as quais cumpre investigar.

* Professor associado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), atuando nos


cursos de graduação e mestrado em História; vinculado ao Laboratório de Pesquisa “Trabalho e
Movimentos Sociais”. Email:angri46@gmail.com.

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RINALDO JOSÉ VARUSSA

É nessa perspectiva que “Lei e costume” de Edinaldo Antonio Oliveira Souza


vêm contribuir, ao propor a discussão sobre “as experiências de trabalhadores na
Justiça do Trabalho” (subtítulo do livro) no Recôncavo Baiano. Ou, nas palavras
do autor, trata-se de entender “os trabalhadores, ao recepcionarem os discursos
e propostas do projeto trabalhista”, realizando “desvios, apropriações, re-signifi-
cações dos seus [dos legisladores] propósitos”, já que aqueles eram sujeitos tam-
bém e “não papéis em branco esperando para ser grafados” (pp. 43-44).
A partir de uma pesquisa de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-Gra-
duação em História da Universidade Federal da Bahia, o sentido de contribuição
deste trabalho ressalta-se de imediato na delimitação firmada pelo autor a sua pes-
quisa: trata-se de pensar a Justiça do Trabalho a partir de uma região e num espaço
institucional – a Justiça Comum (especificamente, as das Comarcas de Cachoeira,
Nazaré e Santo Antonio de Jesus) e não as Juntas de Conciliação e Julgamento –,
lugares e situações ainda pouco investigados no que se refere à temática.
Neste universo de relações, o trabalho amplia o leque de contribuições, à
medida que categorias profissionais pouco estudadas e mesmo inexistentes em
outras regiões do Brasil - tais como a dos que labutam na produção fumageira -,
outras que supostamente não seriam abarcadas pela legislação trabalhista - como
os trabalhadores rurais e domésticos -, em situações específicas - analfabetos
(aproximadamente um terço dos proponentes dos processos analisados), negros,
mulheres e predominantemente não sindicalizados -, muitos abarcando todas es-
tas características, evidenciando suas lutas a partir da Justiça do Trabalho. Aliás,
nesta caracterização dos trabalhadores, trabalhada principalmente no primeiro
capítulo, o autor lança mão de uma tentativa de síntese baseada na construção de
 372
estatísticas a partir dos processos trabalhistas investigados, que, curiosamente,
ao invés de uma homogeneização da realidade o que emerge é uma diversidade
de situações vividas pelos trabalhadores.
Na empreitada de entender as formas como os trabalhadores pautaram suas
lutas, um dos temas destacados por Oliveira Souza e que perpassa a totalidade
do livro, embora destacado no terceiro capítulo, é o da conciliação. Esta forma de
resolução das disputas n����������������������������������������������������������
a Justiça do Trabalho é
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sublinhada
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por parte da bibliogra-
fia como principal objetivo da instituição, baseando-se nas intenções, definições
produzidas pelos idealizadores da legislação trabalhista e repetida pelos integran-
tes da instituição, como o faz o juiz Germano Monteiro dos Santos, citado no livro:
“a finalidade da legislação trabalhista é conciliar empregadores e empregados e
não incentivar discórdias” (p.115). Pode até ser que esta seja a intenção. Mas, esta
assume um significado em “Lei e costume” que engrossa o coro de uma contra-
posição constituída, nas últimas décadas, entre os historiadores principalmente:
ainda que majoritariamente ponha termo às disputas – nesta pesquisa, próxima à
metade dos processos em que houve conclusão -, a conciliação não é sinônimo de
uma harmonização das relações de trabalho. Como fica evidenciado no trabalho
de Oliveira Souza, encerrar uma ação trabalhista nestes termos consubstanciava
um conjunto de práticas e avaliações dos trabalhadores indicativas e explicitado-
ras de conflitos, disputas, tensões, perdas e ganhos. Afinal, como lembra Edinaldo
Souza, para os trabalhadores, acionar a Justiça, é classicamente definido como
“colocar no pau”.
Um segundo tema importante presente em “Lei e costume” e que parece
referendar o seu título é a permeabilidade da lei às tradições tidas e construídas
no dia-a-dia da produção, na interação entre patrões e empregados. Neste ponto,
novamente dialogando com a produção historiográfica, notadamente com E.P.

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CONSTRUINDO DIREITOS: OS TRABALHADORES E A JUSTIÇA DO TRABALHO

Thompson, Oliveira Souza destaca que as “brechas” suscitadas pela legislação,


eram explicitadas e alargadas por trabalhadores e seus advogados, os quais tra-
duziam em formulações jurídicas suas experiências, firmando-lhes o caráter de ro-
tinas, situações regulares e constantes, premissas do que seria visto como direito.
Um caso emblemático nesta relação entre os costumes e a legislação, Edinal-
do Souza discute a partir do processo instaurado na Comarca de Nazaré por um
conjunto de 86 trabalhadores contra a Companhia Hidro-Elétrica Fabril, em 1946.
Estes trabalhadores reivindicavam o pagamento de uma gratificação, correspon-
dente a um mês de salário - uma espécie de “preliminar” do 13º. salário, o qual
só seria instituído em 1962 -, que não havia ocorrido no ano anterior (1945). Este
bônus, alegavam os trabalhadores, “era hábito da empresa” faze-lo “em ocasiões
dos festejos juninos e das festividades de fim de ano” (p.160).
A empresa, por sua vez, rebatia a demanda com o argumento de que se tra-
tava de um gesto de generosidade, “meras liberalidades” e “presentes”, conde-
nando a ingratidão dos trabalhadores, já que estes se voltavam “contra o ânimo
liberal que os deu para querer obrigá-lo, a fina força, a reconhecer essa liberalidade
como dever” (p.161).
A ação ganha pelos trabalhadores, sentenciada definitivamente em 1950 pelo
TRT-5, após os recursos da empresa, e paga em 1952, baseou-se no reconhecimen-
to por parte da Justiça de que gratificações habitual e continuamente efetuadas,
ainda que não formalizadas, perfazem o salário, “enquadrando-se como um ajuste
tácito do contrato de trabalho” (p.171).
 373 Como argutamente aponta Oliveira Souza, no processo em questão, expres-
sava-se um flagrante “de conflito entre a visão dos ‘de baixo’ e a visão dos ‘de
cima’ em torno dos significados cultivados no interior de uma relação paternalista”
(p.170), desta feita colocando em cheque a sua eficácia e uma leitura de exercício
unilateral do poder. Os trabalhadores aqui tomavam a intenção e o gesto patronal
e os invertiam em favor deles e na contraposição a este último, a partir de uma re-
leitura das suas experiências e de seus referenciais, os quais incluíam a legislação.
No que se refere ao trabalho com as fontes, chama a atenção que a fragmen-
tação das evidências, resultado de anos de descaso com as documentações pro-
duzidas em diferentes instituições, avalio, impediu o autor de avançar em alguns
pontos, como, por exemplo, o das divergências de julgamentos entre as diferentes
instâncias da Justiça, para o que, talvez, contribuiria o estabelecimento das traje-
tórias dos advogados e juízes, um campo em relação ao qual, me parece, o conjun-
to da produção sobre as disputas na Justiça carece de aprofundamento.
Uma possibilidade em relação a isso vem sendo constituída pelos pesquisa-
dores através da História Oral1. No entanto, este seria um dos limites do trabalho
de Oliveira Souza. Embora tenha realizado algumas entrevistas com trabalhadores
que viveram o período pesquisado, o autor aborda-as de forma um tanto quanto
sintética e enquanto, na expressão do autor, “informação verbal”, sem outras re-
ferências aos entrevistados e ao processo de construção das entrevistas que esta-
beleça uma historicidade dessas narrativas.
É importante que se frise que este suposto limite não desmerece o conjunto
do trabalho, que em relação às fontes ainda lança mão de outras possibilidades,

1 Um importante esforço neste sentido vem sendo constituído pelo Memorial da Justiça do Trabalho no
Rio Grande do Sul (TRT da 4ª.Região) que, em 2010, lançou o primeiro volume de Trajetórias de Juízes, or-
ganizado por Ângela de Castro Gomes e Elina Gonçalves Pessanha, reunindo a transcrição de entrevistas
realizadas com juízes que atuaram naquele tribunal.

Revista Mundos do Trabalho | vol. 5 | n. 9 | janeiro-junho de 2013| p. 371-374


RINALDO JOSÉ VARUSSA

como, por exemplo, o uso da impressa produzida no período por diversos atores,
tais como a militância comunista, contemplando o leitor com a interpretação dos
sentidos atribuídos à legislação por estes e de que maneira isto se expressava nas
disputas judiciais, fazendo com que o livro, para além do que se apontou sucinta-
mente aqui, agregue positivamente aos esforços das últimas décadas na interpre-
tação da Justiça do Trabalho no Brasil.

Recebido em 16/05/2013
Aprovado em 17/05/2013

 374

Revista Mundos do Trabalho | vol. 5 | n. 9 | janeiro-junho de 2013| p. 371-374


Política, trabajadores y artesanos
en la ciudad de México. Una historia
social del mundo del trabajo durante
el Porfiriato
GUTIÉRREZ, FLORENCIA, El mundo del trabajo y el poder político. Integración, con-
senso y resistencia en la Ciudad de México a fines del siglo XIX, México, D.F., El Colegio
de México, Centro de Estudios Históricos, 2011, 274 pp. ISBN 978-607-462-273-7.

Florencia D´Uva, FFyL, UBA*

Palavras-chave: Associações mutualistas – Artesãos urbanos – Política

Keywords: Mutualistic associations – Urban craftsmen – Policy

El mundo del trabajo y el poder político. Integración, consenso y resistencia en la


Ciudad de México a fines del siglo XIX de Florencia Gutiérrez explora las relaciones entre
las clases trabajadoras mexicanas y el poder político central en los años que van desde
fines de 1870 hasta mediados de la década de 1890. Centrado específicamente en la
ciudad de México y en las experiencias del asociacionismo mutualista, este libro, fruto
de una tesis doctoral llevada a cabo en el Colegio de México, condensa algunos de los
aportes más sobresalientes de una tradición de historia social de cuño mexicano que
se ha ocupado de desentrañar los mundos del trabajo en el siglo XIX y en el siglo XX.
En esta obra, Gutiérrez, quien actualmente se desempeña como investiga-
dora del Conicet y docente en la Universidad Nacional de Tucumán, propone re-
cuperar algunas de las principales formas en que ciertos trabajadores gestaron
resistencias, buscaron consensos y a la par procuraron integrarse en el campo de
la política porfirista. Pretende, de este modo, comprender el juego de negociacio-
nes que dichas relaciones implicaron, a la vez que interpretar históricamente cómo
tras estas articulaciones los trabajadores fueron forjando una identidad común de
clase. Su investigación arroja luz sobre las formas históricas en que aquellos que
trabajaban con sus manos, que contaban con ciertas técnicas y calificación y que
también controlaban el proceso de producción y circulación de sus mercancías,
como lo explica Gutiérrez, establecieron una particular interlocución con el poder
político durante esos casi veinte años de vida política porfirista. En esta dirección,
este libro explora algunos aspectos del artesanado escasamente trabajados por
la historiografía mexicana, posibilitando llenar un vacío, en especial sobre sus es-
trategias asociacionistas y políticas. Pero a la par, el trabajo de Gutiérrez retoma el
tema del asociacionismo, presente en distintas agendas historiográficas en América

* Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires

Revista Mundos do Trabalho | vol. 5 | n. 9 | janeiro-junho de 2013| p. 375-378


FLORENCIA D´UVA

Latina, y lo atrae e inserta en el interior del mundo del trabajo. Para ello la autora
dialoga con algunos trabajos referentes que brindan importantes elementos de
análisis, como el de Sonia Pérez Toledo sobre el artesanado y primeras experien-
cias del asociacionismo en la ciudad de México, o el de Carlos Illades sobre las
sociedades mutualistas y su debilidad jurídica, cuestión clave para comprender el
éxito de Porfirio Díaz en la subordinación de las organizaciones laborales1. Al volver
sobre algunas cuestiones planteadas a partir de la renovación metodológica y con-
ceptual de los últimos años en torno a estos temas, Gutiérrez intenta responder
una serie de preguntas a la vez que deja planteada una línea de análisis que puede
ser retomada en futuras investigaciones.
El mundo del trabajo y el poder político. …, al indagar desde el interior de
los distintos espacios del mundo del trabajo sobre los intereses, relaciones con
el poder político e identidades de las clases trabajadoras, ofrece una perspectiva
de análisis que puede resultar útil para pensar en otras experiencias latinoameri-
canas. Una de las claves analíticas que brinda el libro es el estudio de la agencia
histórica de ciertos sectores sociales que en otros estudios aparecen como sujetos
pasivos, sometidos a los vaivenes de las políticas de las clases dominantes. Actu-
almente, y gracias a estudios como los de Gutiérrez, podemos comenzar a vislum-
brar y desgranar todo un mundo al interior de las clases trabajadoras que permite
acercarnos a sus motivaciones, iniciativas, estrategias, ideologías y acciones.
Es destacable la operación historiográfica de la autora quien, además de
indagar en el interior de ese mundo del trabajo, examina los intereses y estrategias
que el gobierno de Porfirio Díaz desplegó para asimilar y subordinar al contingente
trabajador, particularmente al mutualismo, a su proyecto político. El desafiante  376
objetivo de la obra, inspirado en el clásico de E.P. Thompson, La formación de la
clase obrera en Inglaterra, es contribuir al entendimiento del proceso de formación
de la clase trabajadora en el México finisecular, teniendo en cuenta su singularidad,
sin pretender acomodar el análisis a un modelo ideal. Lo novedoso es que Gutiérrez
apuesta “por una historia que entreteje la perspectiva `desde abajo´ con la mirada
`desde arriba´” (p. 26), o sea por integrar la historia política a la historia social,
configurando “una historia social de la política”. En este sentido, retoma los
estudios de los historiadores marxistas británicos sobre las experiencias y acciones
de “los de abajo” en el marco de la lucha de clases, para comprender el proceso
de construcción y definición de la identidad de la clase trabajadora de la ciudad de
México durante el Porfiriato. Y a su vez, cruza este análisis con un estudio de las
acciones que desde el poder se desplegaron en relación a estos trabajadores y que
también contribuyeron a forjar su identidad como clase. Así, uno de los principales
méritos de la obra se encuentra en el cruce entre la perspectiva política y la social,
que resulta decisivo para recuperar la agencia de los “de abajo” y analizar el diálogo
tejido entre estos sectores y “los de arriba”.
La obra se nutre de un vasto corpus documental de fuentes varias, provenientes
del mundo laboral así como también de instancias gubernamentales, que la autora
entrecruza ofreciendo un sustento sólido a sus interpretaciones. Incluye gran
cantidad de bibliografía específica y general sobre el tema, análisis de decenas
de periódicos, de legislaciones, debates y discursos parlamentarios, petitorios,
correspondencia, datos censales, informes y documentos oficiales, crónicas

1 Ambos autores son doctores en Historia por el Colegio de México. Sonia Pérez Toledo, Los hijos del trabajo.
Los artesanos de la ciudad de México, 1780-1853, México, Universidad Autónoma Metropolitana Iztapalapa/el
colegio de México, 1996 , y Carlos Illades, Hacia la República del Trabajo. La organización artesanal en la ciudad
de México, 1853-1876, México, Universidad Autónoma Metropolitana Iztapalapa/El Colegio de México, 1996.

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EL MUNDO DEL TRABAJO Y EL PODER POLÍTICO

contemporáneas, informes y expedientes policiales, manifiestos, proclamas,


circulares, hojas sueltas, expedientes judiciales, caricaturas e ilustraciones.
El mundo del trabajo y el poder político. … se estructura en tres partes,
además de la Introducción y las Consideraciones Finales, que reúnen un total de
siete capítulos.
En la primera parte se analizan los dispositivos impulsados por el gobierno
de Porfirio Díaz para subordinar a las sociedades mutualistas al poder público.
El capítulo primero estudia la asimilación de la dirigencia artesanal al gobierno
federal, observando los beneficios que esta implicó para ambas partes: la dirigencia
mutualista se beneficiaba de sus relaciones con el poder, y éste concebía a las
mutuales como un “dispositivo pedagógico” desde el cual garantizar el control
político sobre los trabajadores, frenar las tendencias ideológicas más radicalizadas
y la movilización pública, consolidar sus bases de consenso y legitimidad, e incidir
en la conformación de la identidad y cultura obrera. El segundo capítulo continúa
con el análisis de la relación entre poder político y mutualismo haciendo hincapié
en los aspectos más simbólicos de este vínculo. Para ello, Gutiérrez examina
los mecanismos de “apropiación y transformación” de las festividades del
asociacionismo laboral y la “institucionalización” de las manifestaciones electorales
como parte de la estrategia porfiriana de subordinación de los trabajadores. A
través del análisis de las procesiones y manifestaciones, la autora llega a conocer
algunos aspectos centrales de la relación entre trabajadores y poder político y la
monopolización de éste sobre los festejos. La conclusión del capítulo es que estas
movilizaciones, articuladas, resignificadas y dirigidas por las instancias de poder,
 377 actuaron como un mecanismo legitimador y constructor del orden político.
Al finalizar este análisis comienza la segunda parte del libro, dedicada a
analizar las estrategias de negociación y resistencia que utilizaron los trabajadores
frente al poder porfiriano, sus irrupciones en la arena pública y sus manifestaciones
propias para lograr ciertas reivindicaciones. En cada uno de los tres capítulos que
componen esta parte, la autora analiza un conflicto en particular, siguiendo un orden
cronológico. En el capítulo tercero estudia el conflicto originado a principios de los
´80, por la emisión de moneda con níquel que generó resistencias en su admisión,
provocando su depreciación y afectando principalmente a los sectores populares.
El conflicto estalló en un motín que la autora analiza buscando restituir lo político
a lo social. Teniendo en cuenta los blancos de la movilización callejera, Gutiérrez
rastrea las concepciones políticas subyacentes al descontento económico, como la
convicción acerca de la “soberanía popular” que daba legitimidad al gobierno de
turno, y los rencores étnicos y de clase que motivaban los actos de violencia contra
los establecimientos españoles. La autora explicita su recuperación de la tradición
historiográfica de los marxistas británicos para comprender el motín, evitando pensar
estas acciones colectivas como actos irracionales e instintivos, indagando en los
modelos de comportamientos y en las estrategias subyacentes en las protestas. Así,
analizando el recorrido que siguió la manifestación, la autora evidencia la racionalidad
y los claros objetivos de esta acción y la “economía moral” de los trabajadores, es
decir sus valoraciones sobre lo justo, sobre las normas y obligaciones sociales. El
capítulo siguiente analiza el conflicto originado por la conversión de la deuda inglesa
a fines del ´84, que culminó en un proceso de movilizaciones populares espontáneas,
con participación de periodistas independientes, trabajadores y estudiantes,
aglutinados en torno a ideas nacionalistas. Por último, el quinto capítulo estudia las
manifestaciones antirreleccionistas que tuvieron lugar en 1892, en las que participaron
sectores populares promovidos, al igual que en el conflicto anterior, por estudiantes
y periodistas independientes. Gutiérrez advierte cómo los obreros de la ciudad de
México se organizaron en contra de la reelección, apropiándose de argumentos

Revista Mundos do Trabalho | vol. 5 | n. 9 | janeiro-junho de 2013| p. 375-378


FLORENCIA D´UVA

liberales para fundamentar sus posiciones, como el de la “soberanía popular” y la


libertad de sufragio. Detecta que las manifestaciones realizadas superaron la cuestión
de la reelección, revelando reivindicaciones sociales que iban más allá de ésta.
En la tercera y última parte, la autora explora cómo los proyectos
moralizadores y disciplinadores del Porfiriato, encuadrados dentro del afán
modernizador de la época, y en parte divulgados por las mutuales y la prensa
obrera adicta al régimen, modificaron, o no, la cotidianeidad de los trabajadores,
sus hábitos y conductas privadas y públicas. En el primer capítulo de este apartado
analiza el tema de las costumbres y apariencias que las elites porfirianas intentaron
controlar y modernizar. Uno de los blancos fueron los hábitos implantados en el
mundo laboral que atentaban, según las elites gobernantes, contra el binomio
modernizante de “civilización-progreso”, y que debían ser reemplazados por una
ética laboral moderna basada en la disciplina, la obediencia y la moral. Este afán
modernizador generó consensos y resistencias entre los trabajadores y artesanos
capitalinos, y esto es lo que la autora examina. El último capítulo estudia los
cuestionamientos que formularon las elites políticas sobre el uso de los espacios
públicos por el artesanado, como parte de las prácticas laborales tradicionales de
este sector. La autora observa los reiterados conflictos con las autoridades políticas
que generaron la venta y el trabajo callejero, y analiza las diversas reacciones y
estrategias llevadas a cabo por los artesanos frente a la política gubernamental,
para evaluar así la confrontación de intereses entre los trabajadores y las elites
modernizantes. Gutiérrez ve un fenómeno ya analizado en capítulos anteriores
del libro: los artesanos se amparaban en principios liberales, logrando resistir con
relativo éxito expulsiones y traslados.
El libro finaliza con unas consideraciones finales en las que la autora repasa
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las principales ideas y expone las conclusiones de su obra, remarcando los cambios
vividos por las clases trabajadoras de la ciudad de México a partir del gobierno de
Díaz, y su influencia decisiva en la conformación de las identidades trabajadoras.
Resalta el rol determinante que jugaron las necesidades del mutualismo así como
del Porfiriato en el “juego de imposiciones, resistencias y consensos” que marcaron
la relación entre ambos.
El mundo del trabajo y el poder político. Integración, consenso y resistencia en la
Ciudad de México a fines del siglo XIX logra su cometido al recorrer de manera ordenada
y clara, en una lectura que resulta fluida y con ideas y argumentos cuidadosamente
elaborados, los mecanismos por medio de los cuales el Porfiriato logró subordinar
al mutualismo. La autora muestra cómo éste quedó atrapado en las ideas liberales
que impedirían el desarrollo de una conciencia de clase, forjándose en cambio una
identidad mutualista liberal y subordinada al poder político. Aún en los momentos
en que los trabajadores tomaron las calles y confrontaron con el poder político,
Gutiérrez demuestra como los principios del liberalismo republicano fueron los que
sustentaron en gran parte estas acciones. De todos modos, existieron expresiones
de una incipiente lucha de clases en algunas de las conductas y estrategias de
los artesanos y obreros, como la hispanofobia que expresaron estos actores en
múltiples contextos y que la autora examina como parte del proceso de alternancia
entre resistencia e integración del contingente laboral. Los años subsiguientes
verían el desarrollo de nuevas identidades trabajadoras que sólo pueden ser
comprendidas a partir del entendimiento de los vínculos con el poder forjados en
este período crucial de la historia mexicana. El libro aquí reseñado realiza un valioso
aporte en este sentido.

Recebido em 21/06/2013
Aprovado em 05/07/2013

Revista Mundos do Trabalho | vol. 5 | n. 9 | janeiro-junho de 2013| p. 375-378

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