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A irrupção do romance no teatro

por Jean-Pierre Sarrazac •

Dizia ristóte~ bstancialmente: ··o teatro é uma história. uma fábula que se desenrola
!!..º presen . 01ante dos espectadores e sob a forma de íl'iào". Isso quer dizer que. desde a
origem do teatro. estamos diante de alguma coisa contraditóri a. _E?ra_Qoxal. quase
antinômiea. ou seja. n teatro é uma ai1e de ação no presente. diante de nós. mas ao mesmo
tempo é uma ação que se dei xa organit.ar. submeter a uma histc'iria. uma fáb ula. A tal ponto
qw: contemporâneos tão dispares quanto Jean Vilar e Brecht concordam ao afirmar: a
principal matéria do teatro é a históri a. é a fábula . Para bem escrever uma peça. ou para
poder. em seguida. montá-la. levá-la ao públieo. é preeiso saber desenrolar a fábula. a
história da peça: no fundo. a ação, no sentido estrito. é sempre secundária. A história é uma
ação. mas já de algum modo acontecida.

E preciso uma história parafa=er teatro

Quando dizemos que podemos fazer teatro sem história, dizemos na verdade uma outra
coisa: dizemos que não queremos mais fazer teatro com uma história cronológica. Dizemos
que queremos fazer uma história com elipses, com decupagem. com tratamento
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fragmentário. Mas fábula, mesmo na época dita pós-moderna, mesma coro o fim das
grandes relatos e das grandes jntecpreraçiiíes Eie mm:idg tew 911alq11ec coisa de icredutível
Como seria uma arte na qual só houvesse ações? Não seria teatro. Seriam apenas ações
esparsas. ' reciso uma história, ou seja, uma narração ue ode em
traduzir-se em diá ogos. e o romance o século XIX é uma arte que possui a narração, a
descrição e os dialogos, o teatro, até Hegel, aproximadamente até Lessing e Diderot. ou
seja. até os anos 1750-1760, traduzia uma história em ação, em conjunto de ações
realizadas. A narração se dissolvia de alguma maneira nos diálogos. Mas, o que acontece
quando o relato primordial, esse relato que queremos fazer do mundo, que o dramaturgo
quer fazer do mundo, não se deixa mais dissolver, ou transformar completamente em
diálogo? O que acontece quando uma parte daquilo que você quer dizer do mundo. quer /
contar a um público. não pode mais passar pelo diálogo? Quando o diálogo parece uma
redução do que tenho a contar sobre o mundo? Creio que a questão das relações entre o
teatro e o romance. sem entrar num emaranhado de teorias. em boa parte tem a ver com ~
isso. ,t:so fundo, o romance é a resecya de hi<.1Q1üs Q'!f "''!BºG a ,-o~r ~"brc 9 tftttt'M ~ ·

Quando o processo é de alguma maneira bloqueado tentamos fazer adaptações teatrais.


adaptações dramáticas de romances. Temos, porém. a impressão de obter somente uma
espécie de esqueleto de romances. um condensado de romances no qual tudo o que

• Dramaturgo e Diretor do lnstitut d'Études Théâtrales de l'Université de Paris Ili -


Sorbonne Nouvelle. Conferência pronunciada em 25 de novembro de 1995 (Théâtre de La
Cité lnternationale e lnstitut d'Etudes théâtrales de L'Université Paris Ili - Sorbonne
Nouvelle) e publicada pela revista Théâtres em Bretagne, no. 9, avril, 1996, pp. li-VII.
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// ,if' tínhamos a dizer sobre o mundo foi de certo modo volatilizado nessa operação de
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~ compressão. O que chamamos de ··a crise do drama moderno·· que começa nos anos de
·.f' 1880. à época do naturalismo, em grande parte ,~~ e~ui suas rei2os. no i,n131m;e da.
adaptacãq

, Da totalidade dos ohjetos e da totalidade do movimento

~ ,j.}- Oromance, segundo He11el é o domínio da ··totalidade dos objetos'·. Isto quer dizer que no
µr
~ romance podemos dar conta do mundo em toda sua extensão. Se quero falar da sociedade
~ ,, francesa. do planeta e das relações eventuais com Deus, o romance permite isso, pois o
~ ~ romance é uma arte da totalidade de todos os objetos Que coos1in1em a rouodQ. O draroa,,,,.a
~ • foana dramática, como djz ajnda He~el, é a "tota)jdade da rnoviroeota.. Quer dizer que
?~! - t._)"- • apreendemos o mesmo mundo. mas o fazemos revelar-se unicamente por meio das relações
crf'.~ ~,)~mflituosas entre personagens. E, no fundo, ficou para trás a era de ouro na qual existia
'# .~· uma arte do romance que podia dar conta da totalidade dos objetos e uma forma dramática
· / esplêndida e radiante, mas que falava do mundo sempre através das inter-relações entre
~ algumas personagens em movimento, em ação) Ora. a partir do momento em que se toma
mais importante falar de uma fábrica, da coletividade de seus operárias 011 de seus
em re 0 ados. das relações entre Estado e Capital, Estado e trabalho etc.
importante a ar isso mais o que por em cena um operano e um patrão. ou alguns patrões.
que ··se entrechocam'· a relação ioteriodjyjdual toma-se um tanto icrisácia· a f.or~
dramática não é mais suficiente. Ou, ainda. se adoto um ponto de visrn sirobólico e oão.
wajs naturalista - a partir do momento em que Maeterlinck pensa que é mais importante
dar conta das relações de cada personagem. de cada ser humano em face da totalidade do
\ cosmo. da morte, das forças invisíveis que tramam nossas vidas - a fonna dramática é posia
~ questãQ.

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~i!'r >óutro exemplo, cuidadosamente estudado por Joseph Danan : o romance tem a necessidade
~-fi' do monólogo interior. isto é, tem necessidade de mergulhar na psique dos indivíduos, de
captar o fluxo mental dos seres humanos. Como poderia a forma dramática traduzir isso a

r
não ser tentando pôr-se à escuta do romance e domesticando na cena esse monólogo
· interior qu.e os romancistas inventaram? A forma dramática é oecessaciamente sernodátia e-
> sempre o foi. A trai:édia grc8a i •efolRieote sec11ndácia ew ce!ação ao mira· ela reramaya o
~ material QQ.JDito da-epopéia e traduzia em ação aquilo que era llW relato Hoje. não apenas
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a forma dramática é secundárja em re)as;ão ao romance roas desde pelo rneoas as anos de_
1880 tenta se alimentar do romanesco das forAla.a iH,50Aia8os pe1o romance, dii:i;i çaot,liiro.
de fonnas que é o romance, como estabelece11 .13akb,iR,

() "teatro-relato ··---i> ~ ~~ ~ ~
/."J-0~cio entre a fo_ m_1ª. dr~mática e o roman~_c. h~ episódios ~ue c~iamaríamos
n
\.~ntcns1vos; Um desses .cp1sod1os e do ~·teatro-relato . ~ tcatra-~elalQ . _se fi zermo~ .um
~ogO de palavras. e a dpdramar,:acwi do tyatrp, Isto e. desped11rn,s a lonna dramattca.
A forma dramút1~u nàn é mais apta a nos falar do mundo. Ela nos fala apenas dela mt.:sma.
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Ela é apenas sua própria arqueologia. Há momentos nos quais. de chofre, os artistas de
teatw se perguntam: "por que não fazer uma espécie de subtração do romance. da matéria
romanesca? Sei bem que o ··teatro-relato" não se restringe à relação exclusiva com o
romance. ele inclui a relação com outras formas de relato. porém consiste mais
freqüentemente em uma espécie de desvio da matéria romanesca. Nos anos 1974- 1975,
Vitez escreveu, a propósito de Catherine, seu famoso espetáculos tirado de C'loches de
Bàle, de Aragon: ··o teatro não é necessariamente O que está esc1ito na primeira pessoa ou
na segunda pessoa: utilizaremos aqui a terceira pessoa e a própria prosa romanesca. O
ponto de partida é o romance de Aragon e não acrescentaremos nada ao tex to".

Na relação do artista com o mundo. o "teatro-relato" pode si gnificar que o encenador não
uer se tomar um dramatur , 0 • mas uer · . Isso quer di zer
também e sobretudo. referindo-se àqueles anos, que queríamos no palco algo mu ito mais
polijrjnico , algo que não fal asse apenas do movimento da vida. mas que falasse dos objetos.
do homem no mundo. na fábrica, no trabalho, na rua. Há essa vontade, eu diria. quase
animista de oferecer um universo completo e não simplesmente alguns seres que se di zem
representativos de toda a humanidade. Da mesma maneira que desconfiamos dos
representantes do povo. ou dos representantes dos operários. ou dos representantes disso ou
daquilo, ah. bem. desconfiamos do ersona •em como re resenl ·

Simultaneamente a es ~~~""""fit-~--:::::-~ a vontade da época. de re-textualizar o


teatro, de re-intensificá-lo, e e modo que uma peça de teatro não seja plana,
monolítica. mas que dê conta também do volume da escrita, seja de uma escrita
transgressora. à maneira de Céline, ou seja, de uma escrita econômica. Essa espécie de
densidade da escrita no romance faltou, à época, nas peças de teatro: então Q "teatro-relato."
vem lembrar aos autores dramáticas que a esçrjta teatral poderia ser bem majs deusa e não.
se resumir ao diálogo, pois o diálogo é apenas o parente pobre, ou a pahre aparênçja da.
escrita dramatúrgiça Se bá boje de algum moda uma reabilitação da escrita dramática
isso decorre sem dúvida dessa exi ência olifônica · · ,,
Finalmente, também por meio o · teatro-relato", o romance foi educador do drama.

A presença do romance na cena, sob a forma radical do "teatro-relato", ou sob uma forma
mais homeopática, de todo modo menos massiva, remonta pelo menos ao século XVIII na
França, em especial com Diderot, e na Alemanha, com Lessing, para não falar da Idade
Média, para não falar dos teatros orientais nos quais a noção de romance dramático remonta
às origens e é totalmente natural. Diderot quando se referia a uma peça não falava ·'da
história'· da sua peça ou da fábula da sua peça. Quando ele se correspondia com Grimm,
por exemplo, ele falava do "romance" da sua peça. '·Quem irá pôr esse meu romance em
atos?". dizia ele. Isso significava então que anterior a qualquer peça de teatro há uma
espécie de romance não escrito, de romance virtual.

Uma dupla divisão: o roma ·, · 611teiilirn----..._, ,t-,


, - . . ~ - -~ -·~
No ~ecul VIII com D1derot. ~teatro Y31 ser nb.i_NP de uma duela divisão. O dramaturgo ~~WY
se poe a pro 1r um texto de dupla entrada: os d1alogos de um lado, a e~'it.a dida~ ~ - -
d.o a111ro. Diderot pensa que os diálogos são totalmente insuficientes se nós não os
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confrontatmos com a escrita didascálica. As didascálias são extremamente desenvolvidas


em Diderot e elas detalham principalmente a pantomima. a gestualidade, isto é. como se
atirar de uma certa maneira em uma poltrona, exprimindo tédio. nervosismo ... A partir do
momento no qual o romance didascálico assume essa amplitude, somos obrigados a fazer
duas leituras simultâneas . .E,_ntramos em uma espécie de fenda da estrutura dramátjça na
.9ual um narrador, o autor, nos conta sua yjsãa da paptomima, dos crnadros que as
E__ersonagens compõem. Temos aí a)go que concerne à descrição, o romanesco da narrativa.
A tal ponto que podemos decidir na montagem deixá-la evidente. Jean Pien-e Vincent
encenou Félicité, de Audureau, confiando a François Chaumette as indicações de
Andureau, para tomar presente, palpável, o autor que antes se encontrava ausente.

O romance didascálico ganha cada vez mais amplitude. Em Longa jornada noite adentro,
de O'Neill, vale a pena estudar o primeiro ato. É um romance paralelo e contraditório com
o ato do teatro. E essa contradição é interessante. Quando O'Neill escreve: .. Maria, 54 anos,
estatura mediana, silhueta jovem e graciosa, ligeiramente roliça: apesar da ausência visível
de um corpete apertado. a cintura e as cadeiras não aparentam pe11encer a uma mulher
madura. Contrastando com a silhueta robusta de Maria, o rosto de tipo irlandês, outrora
belo, ainda chama a atenção, é delicado, pálido, de ossos salientes··. Poderíamos dizer que
O'Neill não conhece o teatro! Não é nada disso, sabemos muito bem. Essa indicação cênica
não é absolutamt:nte prescritiva: ela simplesmente permite ir a fundo nessa contradição
declarada. St:. por exemplo, um encenador entrega o papel de Maria a um ator e não a uma
atriz. mantendo, no entanto, as indicações cênicas, talvez vá fundo no projeto de o ·Neill.
Em Desej o sob os olmos. encenado há alguns anos por Langhoff, Alain Cuny dizia todas as
indicações cênicas e aquilo não correspondia ao que víamos diante de nós. Langhoff abriu
seu espetáculo a essa contradição. E isso apenas deu mais força ao espetáculo. Q romance
diga cálico é. sem dúvida, uma maneira de relativi ' · ~ 1
t

Retomemos a Diderot por um instante, ao final de O filho natural, quando cada um diz ao
outro que o ama: podemos pensar que tudo aquilo é bobagem. Depois, levamos em conta o
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romance didascálico, o quadro a la Greuze, e percebemos que aquilo evoca efeitos bem
fortes . Uma emoção que não é babona, um patético que fala muito sobre a sociedade. Ainda '
uma vez, o diálogo que poderia parecer pobre toma-se bastante mais rico à luz do romance
didascálico.

A pulsão rapsódica

Q que é interessante à época do nascim?nto da drama _bmgu-06: à época na qual m~rrem a


comédia e a tragédia. é o desaparecimento dos ceoerns l11odados . pe)o_ç)assJCJSI?~
consagrados pelo classicismo. No limite. a noção de gênero não mais existe. Eu _d1_na
- que a noção de modo não mais existe. Estamos no transmodo . passamos do ep1co
mesmo . · ·h ·cr ~ ~
ao dramático. saltamos de um para o outro. Eslawos eru 111Pa es~n: 1e e1e 111 ri 1za~ao
.urnro;íJiçp e do ,··pico Acreditamos por· um tcmpl, que_º teatro eptco ~e B1_·echt tosse ~
superação do dramático. Sempre l~1i um po~co des~o~~tado co.m ~c~aç.~o :.\1ss_o. _e ~e~t~1
desenvolver a id0ia do que chamei de p11/.,·l"' rapsod,w. Entn.:gui;; ,1 ~1 '.nt:sma..1 ~01111a
dramática se toma inerte. esderosada. Pode resultar cm uma peça bem feita. mas e uma
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carapaça sem nada dentro, sem carne no interior. Ora. a pulsão rapsódica. que podemos
n:meter a Homero, ao homem que relata. que ora é um personagem e ora é um nan-ador,
pode perfeitamente existir no palco, ou no texto dramático. Vejo claramente essa tendência
rapsódica em Heiner Müller, Duras, Beckett, Koltes ou Novarina. Não disse Koltes:
·'sempre sonhei em escrever romances"?

Em Cais Oeste há uma estrutura romanço-dramática bastante interessante. Também a


percebemos em Na solidão nos campos de algodão, no que concerne ao tempo, em relação
ao ator, etc. Ao mesmo tempo, Heiner Müller observava. a propósito de Retorno ao
Deserto. de Koltes: --o autor é mais ou menos presente nos seus textos, nas personagens.
acho isso muito importante porque nesse momento a tendência geral é de extinção do autor.
A expulsão do autor do texto e também do teatro··. Entrevistado a propósito de sua peça
Cimento sobre qual seria a distância entre o dramaturgo e o romance, respondeu que ele
estava "o mais próximo possível que um autor dramático pode ficar de um romance... E
acrescentou: '·Não podemos construir no palco uma fábrica de cimento, o que podemos
representar são as conseqüências desse trabalho na vida dos seres humanos. E porque. no
drama. o autor só tem a palavra por intennédio dos personagens. ele às vezes se vi!
obrigado a eliminar o romance ou. como Brecht, e também de outras maneiras que não a de
Brecht, a eliminar o drama·•. Isso significa: para dar continuidade à forma dramática, vamos
nos desfazer dela. Desfazer-se do drama para poder dizer aquilo que o autor do romance
pode exprimir, com sua própria voz.

A escrita dramática deve vir em segundo lugar. após a história que todo mundo já conhece.
No fundo, não subimos no palco para ensinar algo novo às pessoas. mas sim para oferecer
uma variação que dá sentido a essa história. E há necessidade dessa relação em segundo
plano. O romance assume ym pouçq a roesrno papel q11e o mira exercia ca Aptignidade Os
mitos estão extlAtos. Qelif •ó podemas produzir caricatt1ras Mas a romance ao contrário,
permanece vivo.

Gostaria de dizer, para concluir, que o teatro é vm,Qemrum Quer dizer ··A-
lugar de onde se vê... Há uma preeminência do espaçon ~ a s , queiramos ou não, as
formas de teatro que nos entusiasmam hoje são mais as fonnas que pertencem à arte do
tempo do que as que pertencem à arte do espaço. Todos os textos de Beckett, dramáticos ou
não, não são uma maneira de inscrever vigorosamente o tempo no espaço, de inscrever
vigorosamente o passado no presente?

Este cnsaiu. com tradução de Silvana Garcia. foi publicado na Revista Folhetim. nº 28. Teatro do
Pequeno Gesto. Rio de Janeiro. 2009, pp.6-15.

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