Você está na página 1de 28

Weiny César Freitas Pinto / Caio Padovan

Revista de Filosofia do IFCH da Universidade Estadual de Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019.

James J. Putnam e as origens do diálogo entre filosofia e psicanálise:


Apresentação, tradução e notas de Um apelo para o estudo de
métodos filosóficos na preparação para o trabalho
psicanalítico (1911)

Weiny César Freitas Pinto1


Caio Padovan2

Nesta breve apresentação, nosso objetivo será o de fazer algumas considerações


introdutórias a fim de contextualizar o artigo de James J. Putnam (1846-1918), ora
aqui traduzido, no interior do debate entre filosofia e psicanálise. Como veremos
adiante, as contribuições deste autor – por mais rudimentares que possam parecer
ao leitor contemporâneo – podem ser consideradas do ponto de vista cronológico
como uma das primeiras expressões da chamada “recepção filosófica da psicanálise”,
tradição de pensamento que irá se desenvolver a nível internacional principalmente
a partir dos anos 1920 e que, no Brasil, dará origem a partir dos anos 1980 a um
vasto e fecundo campo de pesquisa, a “filosofia da psicanálise”.
A apresentação será dividida em duas partes. Na primeira delas faremos
algumas considerações sobre o contexto de publicação do artigo de Putnam,
buscando assim compreendê-lo de maneira crítica a partir de suas condições
técnicas específicas. Na segunda abordaremos a importância histórica deste mesmo
texto, tendo em vista um contexto filosófico estrito, a saber, o de uma história da
recepção filosófica da psicanálise3.
Cabe lembrar que o presente comentário possui caráter eminentemente
introdutório ao debate aberto por Putnam no início dos anos 1910. Um trabalho
de maior alcance a esse respeito, incluindo as polêmicas repercussões geradas no
1 Professor do curso de Filosofia da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS).
Pesquisador de filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em teorias da subjetividade e
epistemologia das ciências humanas, notadamente, epistemologia da psicanálise.
2 Professor de Psicologia clínica (ATER) na Université Paul Valéry Montpellier 3, França. Pesqui-
sador associado ao Centre de Recherche Psychanalyse Médecine et Société (CRPMS).
3 Tanto o presente artigo, como a tradução e notas que o seguem, fazem parte do projeto de
pesquisa “A recepção filosófica da psicanálise: história, tradições e doutrinas” (UFJF, UFMS,
PUC-PR, Université Montpellier 3).
Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019. 305
James J. Putnam e as origens do diálogo entre filosofia...

seio do movimento psicanalítico e suas consequências para a história da recepção


filosófica da psicanálise, vem sendo preparado pelos autores e deverá ser publicado
em breve.

Considerações iniciais sobre o contexto de publicação do artigo


Segundo consta em nota ao texto original, o artigo em questão fora
inicialmente apresentado em forma de conferência no dia 10 de maio de 1911,
durante o segundo “Encontro anual” da American Psychopathological Association.
Mais tarde, ele será publicado entre os meses de outubro e novembro deste mesmo
ano no sexto volume do Journal of Abnormal Psychology com o seguinte título: A
Plea for The Study of Philosophic Methods in Preparation for Psychoanalytic Work4.
Curiosamente, nas atas do encontro anual da Associação, o título da comunicação
de Putnam será mencionado nos seguintes termos: Dr. J. J. Putnam (Boston): The
Need of Greater Emphasis on the Constructive Side of Psycho-Analytic Work5. Como
nos sugere as consideráveis alterações no título de sua contribuição, é provável que
o autor tenha realizado algumas modificações no texto da conferência para fins de
publicação. Como veremos mais adiante, uma terceira versão deste mesmo texto,
baseada em uma segunda conferência, seria publicada no ano seguinte em alemão,
com um título alternativo.
Sabemos que a American Psychopathological Association, associação ainda
em atividade, havia sido fundada nos Estados Unidos no dia 2 de maio de 1910,
pelo neurologista americano Morton Prince (1854-1929)6. Na ocasião, o Journal
of Abnormal Psychology, periódico criado também por Prince, em 1906, torna-se o
órgão oficial desta Associação. Cabe chamar a atenção aqui para o fato de que James
J. Putnam estava entre os editores associados desta revista e entre os fundadores
da American Psychopathological Association, da qual, não podemos esquecer, faziam
também parte Abraham A. Brill (1974-1948) e Ernest Jones (1979-1958), dois
médicos bastante próximos de Freud, ambos praticantes da psicanálise no continente
americano. A partir de 1910, como podemos ler na capa do quinto volume do
Journal of Abnormal Psychology, Jones passará a constar, junto ao psiquiatra norte-
americano John Edward Donley (1870-1960), como editor assistente de Morton

4 Putnam, J.J. (1911). “A Plea for The Study of Philosophic Methods in Preparation for Psycho-
analytic Work”, The Journal of Abnormal Psychology, 6, pp. 249-264. A fim de evitar confusões
ligadas à data de publicação do presente artigo, precisamos que, no contexto do sexto volume
do Journal of Abnormal Psychology, os números foram editados bimestralmente entre 1911 e
1912, somando ao todo cinco cadernos, a saber: abril-maio, junho-julho, agosto-setembro, ou-
tubro-novembro, dezembro-janeiro. A tradução aqui estabelecida baseou-se nessa edição, por
se tratar da primeira versão publicada do texto.
5 “A necessidade de uma maior ênfase na dimensão construtiva do trabalho psicanalítico”. A esse
propósito, ver: (1911). “Discussion on the Symposium”, The Journal of Abnormal Psychology, 6,
pp. 181.
6 Ver nota atribuída a Morton Prince, publicada em: (1910). “Proceedings of the American Psy-
chopathological Association”, The Journal of Abnormal Psychology, 5, pp. 91.

306 Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019.


Weiny César Freitas Pinto / Caio Padovan

Prince nesta revista7. A título de informação, lembramos ainda que no dia 9 de


maio de 1911, durante o segundo encontro anual da American Psychopathological
Association, será criada nos Estados Unidos a Associação Americana de Psicanálise,
instituição imediatamente afiliada à Associação Psicanalítica Internacional. Putnam
será eleito seu primeiro presidente, e Jones seu primeiro secretário8.
No dia 22 de setembro de 1911, em Weimar – isto é, pouco antes da publicação
de seu artigo em inglês – Putnam, então presidente da Associação Americana de
Psicanálise, apresentará o seguinte trabalho no terceiro Congresso da Associação
Psicanalítica Internacional: Ueber die Bedeutung philosophischer Anschauungen und
Ausbildung für die weitere Entwicklung der psychoanalytischen Bewegung9. O texto
que corresponde a esta comunicação será publicado pouco mais de seis meses
depois, em maio de 1912, no primeiro volume da revista Imago10, periódico dirigido
na época por Freud e editado por Otto Rank (1884-1939) e Hans Sachs (1881-
1947). Lembramos que, nos termos de seu título e de sua missão, a revista Imago
não se comprometia com as aplicações médicas da psicanálise, mas sim com a dita
“aplicação da psicanálise às ciências humanas”11.
Segundo Ernest Jones, que irá organizar em 1921 uma coletânea póstuma de
artigos publicados por Putnam, o texto alemão Ueber die Bedeutung philosophischer
Anschauungen und Ausbildung für die weitere Entwicklung der psychoanalytischen
Bewegung constitui uma “paráfrase” do texto A Plea for The Study of Philosophic
Methods in Preparation for Psychoanalytic Work12. No entanto, após realizar uma leitura
cuidadosa dos dois artigos, chegamos à conclusão que, embora ambos discutam o
mesmo problema, a saber, os limites dos métodos e das teorias psicanalíticas para
o conhecimento daquilo que é mais próprio à existência humana, cada um deles o
realiza de forma distinta, esboçando linhas argumentativas ligeiramente diferentes.
Considerando que dois importantes colaboradores de Freud, Sándor Ferenczi
(1873-1933) e Theodor Reik (1888-1969), reagirão, entre 1912 e 1913, à versão

7 Durante o mesmo encontro da American Psychopathological Association, onde Putnam apresen-


taria o seu trabalho “sobre o valor do estudo da filosofia na preparação para o trabalho psicana-
lítico”, Jones e Donley fariam duas comunicações tematizando o diagnóstico de “neurose de an-
gústia” proposto por Freud em 1895. A esse propósito, ver: Jones, E. (1911). “The pathology of
morbid anxiety”, The Journal of Abnormal Psychology, 6, pp. 81-106; Donley, J.E. (1911). “Freud’s
anxiety neurosis”, The Journal of Abnormal Psychology, 6, pp. 126-134.
8 Ver nota publicada em: (1911). “Societies”, The Journal of Abnormal Psychology, 6, pp. 328.
9 “Sobre a importância das perspectivas e da formação filosóficas para o desenvolvimento futuro
do movimento psicanalítico”.
10 Putnam, J.J. (1912). “Ueber die Bedeutung philosophischer Anschauungen und Ausbildung
für die weitere Entwicklung der psychoanalytischen Bewegung”, Imago, 1(2), pp. 101-118.
11 Consta na capa do periódico em questão a seguinte menção: Imago. Zeitschrift für Anwendung
der Psychoanalyse auf die Geisteswissenschaften. Em seu prospecto, reproduzido na contracapa da
revista, encontramos uma descrição detalhada de sua “missão”.
12 Ver nota publicada na coletânea organizada por Jones em: Putnam, J.J. (1921). Addresses on Psy-
cho-Analysis. London, Vienna, New York: The International Psycho-Analytical Press, 470 p., 79n.

Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019. 307


James J. Putnam e as origens do diálogo entre filosofia...

alemã do texto de Putnam13 – e que Putnam irá por sua vez respondê-los, dando
assim início a um primeiro grande debate entre filosofia e psicanálise no interior
do movimento psicanalítico14 – seria interessante pensar em uma futura publicação
desta segunda versão. Uma tradução das réplicas e tréplicas que se seguiram a sua
aparição seria igualmente importante, justamente para que o teor deste debate possa
se fazer objeto de uma análise filosófica mais profunda e detalhada. Um estudo
complementar a este respeito poderia ser ainda realizado a partir do estudo do
contexto político no interior do qual este mesmo debate se deu. Como dito à guisa
de introdução a este comentário, um trabalho deste porte, sobre o contexto filosófico
e político do debate em questão, já vem sendo realizado pelos autores deste artigo e
será em breve objeto de uma publicação maior.
Sabemos que mais tarde, após a morte de Putnam em 1918, Freud publicará
um obituário bastante elogioso a seu respeito, chamando a atenção para o valor
de seu artigo sobre as contribuições da filosofia à psicanálise15, tom elogioso que
será temperado por diversas críticas não oficiais a este mesmo trabalho. Um artigo
mais longo, escrito em homenagem à Putnam e dedicado às suas contribuições
à psicanálise e à sua trajetória médica, será ainda publicado por Jones16. Uma
versão inglesa do texto de Jones será incluída na coletânea póstuma de Putnam em
192117. Ao mesmo tempo, sabemos que imediatamente após a publicação alemã
da conferência de Putnam sobre a importância da filosofia para o desenvolvimento
da psicanálise, a primeira reação do movimento psicanalítico fora relativamente
hostil. A estes eventos podemos acrescentar o projeto freudiano de “conquista” da
América, sem o qual talvez não seja possível compreender tal ambivalência. Este
13 Ferenczi, S. (1912). “Philosophie und Psychoanalyse (Bemerkungen zu einem Aufsatze des H.
Professor Dr. JAMES J. PUTNAM von der Harvard-Universität, Boston U.S.A)”, Imago, 2,
pp. 519-526. Uma tradução da resposta de Ferenczi ao texto de Putnam se encontra publicada
na versão brasileira de suas obras completas. A este respeito, ver: Ferenczi, S. (1912). Filosofia e
psicanálise. In: Sándor Ferenczi. Obras completas, Vol. I. São Paulo: Martins Fontes, pp. 213-220.
Sabemos, no entanto, que essa tradução não fora feita a partir do original alemão, mas sim de
uma tradução francesa, merecendo, portanto, um consistente trabalho de revisão. Para a resposta
de Theodor Reik, ver: Reik, T. (1913). “James J. Putnam, Über die Bedeutung philosophischer
Anschauungen und Ausbildung für die weitere Entwickelung der psychoanalytischen Bewe-
gung. (Imago, Heft 2.)”, Zentralblatt für Psychoanalyse und Psychotherapie, 3, pp. 43-44.
14 Para a resposta a Ferenczi, ver: Putnam, J.J. (1912). “Antwort auf die Erwiderung des Herrn Dr.
Ferenczi”, Imago, 5, pp. 527-530. Para a resposta a Reik, ver: Putnam, J.J. (1913). “Psychoanalyse
und Philosophie. Eine Erwiderung auf die Kritik von Dr. Otto Reik”, Zentralblatt für Psycho-
analyse und Psychotherapie, 3, pp. 265-269. Seguramente o autor queria se referir a Theodor Reik
e não ao Dr. “Otto” Reik.
15 Freud, S. (1919). “James J. Putnam”, Internationale Zeitschrift für ärztliche Psychoanalyse, 5, pp.
136. Freud cometerá um pequeno lapso nesta nota ao afirmar que a comunicação de Putnam
em Weimar fora realizada em 1912, e não em 1911, ano em que o terceiro congresso psicanalí-
tico internacional fora efetivamente organizado.
16 Jones, E. (1919). “Professor Dr. James Jackson Putnam”, Internationale Zeitschrift für ärztliche
Psychoanalyse, 5, pp. 233-243.
17 Ver o capítulo “Obituary” em: Putnam, J.J. (1921). Ibid., pp. 457-470. A versão inglesa pode ser
considerada como ligeiramente diferente da alemã e mais completa em termos de conteúdo.

308 Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019.


Weiny César Freitas Pinto / Caio Padovan

projeto se deixa claramente entrever através da leitura das correspondências de


Freud, sobretudo aquelas dirigidas a Jones18. Como veremos na segunda parte desta
apresentação, esta ambiguidade em relação a Putnam, pensada aqui em termos
políticos, ganhará ainda uma expressão por assim dizer filosófica.

Considerações sobre a importância histórica do artigo para a construção de uma


história da recepção filosófica da psicanálise
Sabemos que, desde muito cedo, Freud foi confrontado por diferentes tipos
de exigência filosófica, cada uma delas tendo contribuído à sua maneira para a
emergência da teoria e da prática psicanalítica. Curiosamente, porém, a despeito
dos grandes debates filosóficos que tiveram lugar no continente europeu entre os
séculos XIX e XX, foi James Jackson Putnam, um neurologista norte-americano –
quer dizer, um não filósofo, oriundo de um país até então desprovido de qualquer
tradição filosófica bem estabelecida –, que protagonizou este episódio pouco
conhecido dando origem ao controverso campo de relações entre a filosofia e a
psicanálise.
Do ponto de vista histórico, este episódio teve lugar em 1911, em meio ao
terceiro congresso internacional de psicanálise, evento no qual Putnam apresentaria
à comunidade psicanalítica sua polêmica comunicação intitulada Sobre a importância
das perspectivas e da formação filosóficas para o desenvolvimento futuro do movimento
psicanalítico19. Como já mencionado na primeira parte deste comentário, o impacto
significativo causado por esta conferência pode ser verificado por meio da sequência
de publicações posteriores envolvendo, em forma de réplicas e tréplicas, dois
psicanalistas médicos próximos de Freud, a saber, Ferenczi e Reik. Quanto à posição
de Freud, contamos com a narrativa de Ernest Jones que, em sua célebre biografia,
nos revela que durante o terceiro congresso Freud teria se portado de maneira
“bastante educada” diante de Putnam, mas que logo após a sua conferência teria
enfim dito: “a filosofia de Putnam me faz pensar em uma peça de centro decorativa;
todo mundo a admira, mas ninguém toca nela”20.
Com efeito, embora a tentativa de Putnam em persuadir a comunidade
psicanalítica a respeito da aproximação entre psicanálise e filosofia – tentando
imprimir, como insistirá Jones, o “selo do hegelianismo” [Hegelian brand] no seio
do movimento psicanalítico21 – não tenha sido propriamente bem sucedida, este
18 A esse propósito, ver: Paskauskas, R.A. (1993). The complete correspondence of Sigmund Freud and
Ernest Jones, 1908-1939. Cambridge, London: Harvard University Press, 836 p.
19 Um dos primeiros comentadores a chamar a atenção para este evento foi Paul-Laurent Assoun,
ainda nos anos 1970, em: Assoun, P-L. (1976). Freud, la philosophie et les philosophes. Paris : PUF,
230 p. Para uma edição mais recente, revisada e consideravelmente aumentada desta obra, ver:
Assoun, P-L. (2009). Freud, la philosophie et les philosophes. Paris : PUF, 3ª edição, 394 p.
20 Ver: Jones, E. (1955). Sigmund Freud. Life and Work, Vol. 2: Years of maturity 1901-1919. Lon-
don: The Hogarth Press, 507 p., p. 96. Um comentário ao episódio em questão se encontra em:
Assoun, P-L. (2009). Ibid., p. 95-6.
21 Jones, E. (1955). Ibid., p. 96.

Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019. 309


James J. Putnam e as origens do diálogo entre filosofia...

evento constituirá momento decisivo da relação histórica entre as duas disciplinas,


o que não significa, no entanto, que tenha sido um fato isolado e exclusivo.
A esse propósito, lembramos que em termos cronológicos, o texto de
Putnam se situa no interior de um período particular da história da psicanálise
compreendido entre os anos de 1908 e 1915, momento em que o movimento
psicanalítico assistiu uma forte tendência à sistematização teórica. Do ponto de
vista institucional, as primeiras sociedades de psicanálise serão fundadas em 1908,
a começar pela Sociedade Psicanalítica de Viena. Neste mesmo ano, os primeiros
psicanalistas se reunirão em Salzburg, na Áustria, para o primeiro congresso
internacional de psicanálise. Em 1909, a primeira revista de psicanálise, o Jahrbuch
für psychopathologische und psychoanalytische Forschungen22, editada por Freud e pelo
psiquiatra suíço Eugen Bleuler (1857-1939), será colocada em circulação. Nos
anos seguintes, entre 1911 e 1913, três periódicos serão ainda publicados, a saber,
o Zentralblatt für Psychoanalyse23, editado em Viena por Wilhelm Stekel, a revista
Imago, editada por Otto Rank e Hans Sachs e, enfim, a Internationale Zeitschrift für
ärztliche Psychoanalyse24, editada por Freud ele mesmo e transformada no veículo
oficial da Associação psicanalítica internacional, recentemente fundada em 1910.
Não podemos esquecer que será ainda em 1909 que a comitiva psicanalítica
europeia, composta por Freud, Ferenczi e Jung, fariam uma série de conferências
nos Estados-Unidos, cujos sucedâneos mais influentes foram sem dúvida as famosas
Cinco lições de psicanálise de Freud25. Será nesta ocasião que Putnam irá se deixar
seduzir pelas hipóteses psicanalíticas, publicando no mesmo ano um artigo bastante
elogioso intitulado Personal impressions of Sigmund Freud and his work: with special
reference to his lectures at Clark University26.
Do ponto de vista clínico, Freud dará início a partir de 1910 à escrita de
uma série de artigos técnicos27, cujo objetivo será justamente o de expandir a prática

22 “Anuário de pesquisas psicanalíticas e psicopatológicas”, periódico redigido na época por Carl


G. Jung que seria publicado semestralmente entre 1909 e 1914.
23 “Folha central de psicanálise”, publicada mensalmente entre 1911 e 1914 e interrompida em
razão da ruptura de Stekel com o movimento psicanalítico.
24 “Revista internacional de psicanálise médica”, periódico que irá substituir o Jahrbuch após a
ruptura de Jung e de Bleuler com o movimento psicanalítico.
25 Sobre o assunto, ver: Rosenzweig, S. (1994). The Historic Expedition to America. Freud, Jung,
and Hall the King-Maker. St. Louis: Rana House, 477 p., assim como o capítulo “The Clark
conference and the nineteenth-century older”, em: Hale, N. (1995). Freud and the Americans:
the beginning of psychoanalysis in the United States, 1872-1917. New York, Oxford: Oxford Uni-
versity Press, 574 p., pp. 3-68.
26 “Impressões pessoais de Sigmund Freud e de seu trabalho, com considerações especiais às suas
recentes conferências na Clark University”, publicado no mês de dezembro, quer dizer, poucos
meses após as conferências de Freud realizadas em setembro, em: Putnam, J.J. (1909). “Personal
impressions of Sigmund Freud and his work: with special reference to his lectures at Clark
University”, Journal of Abnormal Psychology, 4, pp. 293-310, 372-379.
27 Conhecidos no Brasil sob o título genérico de “Artigos sobre a técnica”, este conjunto de tra-
balhos fora inicialmente publicado em Freud, S. (1924). Zur Technik der Psychoanalyse und zur

310 Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019.


Weiny César Freitas Pinto / Caio Padovan

do método psicanalítico a um público mais amplo. Essa iniciativa será precedida


pela publicação de um caso clínico modelo em 1909, a saber: o caso do Homem
dos ratos28, e acompanhada de outros artigos introdutórios de caráter igualmente
técnico, escritos por analistas mais experientes29.
Enfim, do ponto de vista teórico, podemos fazer aqui menção à série de
artigos metapsicológicos publicados por Freud a partir de 1911 e que terão como
objetivo sistematizar a produção psicanalítica realizada até então no interior de um
movimento em plena expansão30. É neste mesmo ano que começam a aparecer os
primeiros manuais de psicanálise, a exemplo do livro texto escrito pelo psicanalista
austríaco Eduard Hitschmann, membro da Sociedade psicanalítica de Viena, que
buscava apresentar uma versão estandardizada da teoria freudiana acompanhada
de seus avanços mais recentes31. É também durante este mesmo período que Otto
Rank e Hans Sachs, então editores da revista Imago, irão se propor enquanto
psicanalistas leigos a aplicar a teoria psicanalítica às ditas “ciências humanas”
através de uma obra programática intitulada Die Bedeutung der Psychoanalyse für
die Geisteswissenschaften32. A este respeito, nós podemos chamar a atenção ainda
para os debates diretos de Freud com interlocutores da cultura, como, por exemplo,
mostra a sua correspondência, desde 1909, com Oskar Pfister (1873-1956), pastor e
filósofo suíço33 que, aliás, será autor de um segundo manual de psicanálise publicado
em 191334.
Referente ao estatuto da metapsicologia, Freud insistirá com frequência
no fato de que, enquanto teoria, a psicanálise não pode formar sistema. É neste
espírito que, já em 1911, Freud distingue a teoria psicanálise dos sistemas delirantes

Metapsychologie. Leipzig, Wien, Zürich: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 275 p.


28 Freud, S. (1909). “Bemerkungen über einen Fall von Zwangsneurose”, Jahrbuch für psychoana-
lytische und psychopathologische Forschung, 1, p. 357-421.
29 A maior parte destes artigos, publicados durante este período, vai aparecer na Folha central de
psicanálise. Contamos em língua portuguesa com a tradução de um texto de Wilhelm Stekel
sobre a transferência datado de 1911, a saber: Stekel, W. (1911). “As diferentes formas da trans-
ferência”, Trad. C. Padovan; N. Müller. Lacuna: uma revista de psicanálise, n. -4, p. 6, 2017. Dis-
ponível em: <https://revistalacuna.com/2017/11/20/n4-06/>.
30 Ao lado dos chamados artigos sobre a técnica, o conjunto de textos conhecidos sob o título de
“Artigos metapsicológicos” será igualmente publicado em Freud, S. (1924). Ibid.
31 Hitschmann, E. (1911). Freud‘s Neurosenlehre. Nach ihrem gegenwärtigen Stande zusammenfas-
send Darstellt. Leipzig und Wien: Franz Deuticke, 156 p.
32 “A importância da psicanálise para as ciências humanas”, publicada em Rank, O. Sachs, H. (1913).
Die Bedeutung der Psychoanalyse für die Geisteswissenschaften. Wiesbaden: J.F. Bergamnn, 111 p.
33 Para uma versão brasileira, ainda que parcial, desta correspondência, ver: Meng, H. Freud, E.
(2009). Cartas entre Freud e Pfister (1909-1939): um diálogo entre a psicanálise e a fé cristã. Viçosa:
Ultimato, 200 p. Uma transcrição integral das cartas trocadas entre Freud e Pfister fora recen-
temente publicada na Alemanha, em: Noth, I. (org.). (2014). Briefwechsel 1909-1939 / Sigmund
Freud, Oskar Pfister. Zurique: Theologischer Verlag, 374 p.
34 Pfister, O. (1913). Die psychanalytische Methode. Eine erfahrungswissenschaftlisch-systematische
Darstellung. Leipzig und Berlin: Julius Klinkhardt, 512 p.

Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019. 311


James J. Putnam e as origens do diálogo entre filosofia...

próprios à paranoia35 em função da sua renúncia ao pensamento sistemático que,


segundo o psicanalista, vem ainda caracterizar os sistemas filosóficos36. Em 1914,
em seu importante artigo sobre o conceito de narcisismo, Freud insiste nesta
mesma ideia, dizendo que a principal diferença entre uma “teoria especulativa” e
uma “ciência construída sobre a interpretação de dados empíricos” repousa sobre
fato de que esta última se baseia principalmente na “observação”, enquanto que a
primeira se basearia em uma “fundamentação impecável e logicamente inatacável”37.
Um ano mais tarde, em 1915, no primeiro parágrafo de seu artigo sobre as pulsões,
o mesmo raciocínio se impõe, quando Freud afirma que “o verdadeiro início da
atividade científica consiste muito mais na descrição de fenômenos” do que em
“conceitos básicos claros e precisamente definidos”38. O pensamento sistemático
será frontalmente atacado mais uma vez por Freud em 1923, no verbete “psicanálise”
escrito para a enciclopédia de sexologia dirigida Max Marcuse (1877-1963), onde
a psicanálise enquanto “ciência empírica” será definida em oposição aos sistemas
filosóficos. Por fim, em 1933, em sua famosa conferência sobre a Weltanschauung,
Freud dirá com todas as letras que, diferente da filosofia e da religião, a psicanálise
se filia a uma visão de mundo científica.
Será, portanto, a partir desta concepção paradigma de ciência natural, que
desde muito cedo, em 1911, por exemplo, posições como as de Arthur Kronfeld
(1886-1941), em sua tentativa de impor à psicanálise uma espécie de “sistematização
lógica”, não serão bem recebidas no interior do movimento psicanalítico39. Ao
mesmo tempo, já em 1912, vemos Freud apoiar iniciativas como as da Gesellschaft
35 Ver pós-escrito de Freud ao caso Schreber, em: Freud, S. (1911). “Nachtrag zu dem autobiogra-
phisch beschriebenen Falle von Paranoia (Dementia paranoides)”, Jahrbuch für psychoanalytische
und psychopathologische Forschung, 3, pp. 588-590.
36 No penúltimo parágrafo da segunda parte do ensaio Totem e Tabu, Freud compara “sistemas
filosóficos” [philosophisches System] a “delírios paranoicos” [paranoischer Wahn]. Ver: Freud, S.
(1912). “ Über einige Übereinstimmungen im Seelenleben der Wilden und der Neurotiker”,
Imago, 1, pp. 301-333, p. 332.
37 Freud, S. (1914). “Zur Einfühlung des Narzißmus”, Jahrbuch für psychoanalytische und psycho-
pathologische Forschung, 6, pp. 1-24, p. 4. Tradução para o português em: Freud, S. (2004). Escri-
tossobre a psicologia do inconsciente, vol. 1. Rio de Janeiro: Imago, 223 p., p. 100.
38 Freud, S. (1915). “Triebe und Triebschicksale”, Internationale Zeitschrift für ärztliche Psychoana-
lyse, 3, pp. 84-100, p. 84. Tradução para o português em Freud, S. (2004). Ibid., p. 145.
39 Kronfeld, A. (1912). “Über die psychologischen Theorien Freuds und verwandte Anschauun-
gen. Systematik und kritische Erörterung”, Archiv für die gesamte Psychologie, 22, pp. 130-248.
Ainda que este longo artigo, que ultrapassa as cem páginas, tenha sido publicado em 1912, o
mesmo fora, segundo nota (p. 248), enviado à revista no dia 20 de agosto de 1911. Lembramos
que Gaston Rosenstein, então membro da Sociedade psicanalítica de Viena, reagirá em 1913
à crítica de Kronfeld. A esse propósito, ver: Rosenstein, G. (1913a). “Eine Kritik”, Jahrbuch für
psychoanalytische und psychopathologische Forschung, 4, pp. 741-798. Mais tarde, Kronfeld faria
uma nova crítica que será mais uma vez comentada por Rosenstein em: Rosenstein, G. (1913).
“Dr. Med. et. phil. Arthur Kronfeld: „Freuds psychoanalytische Theorien“. In „Die Naturwis-
senschaften“ (I, 16, Julius Springer, Berlin)”, Internationale Zeitschrift für ärztliche Psychoanalyse,
1, pp. 506-507. Para um comentário sobre as cartas trocadas entre Freud e seus colegas em
relação ao caso Kronfeld, ver: Assoun, P-L. (2009). Ibid., pp. 97-100.

312 Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019.


Weiny César Freitas Pinto / Caio Padovan

für positivistische Philosophie40. Vemos ainda no final dos anos 1920, um psicanalista
como Heinz Hartmann (1894-1970) afirmar em um livro de introdução à
psicanálise, dedicado aos seus fundamentos41, que a ciência criada por Freud não
poderia senão ser enquadrada como uma ciência da natureza. Enfim, em 1929, no
manifesto do círculo de Viena pela “concepção científica de mundo”, Freud será
citado como representante de um saber promissor e bem alinhado com os princípios
do positivismo lógico42.
Nesse sentido, Um apelo para o estudo de métodos filosóficos na preparação para o
trabalho psicanalítico, de Putnam, talvez, em razão mesmo de situar-se em meio a um
período de forte exigência à sistematização teórica pelo qual passou o movimento
psicanalítico, de certo modo sintetiza a força inicial dessa exigência e os inícios
das sistematizações que a psicanálise freudiana passou então a implementar, o que
lhe confere, portanto, desde o ponto de vista estrito de uma história da recepção
filosófica da psicanálise, uma importância crucial: marca, o que se pode designar
“início formal”, do que chamamos hoje, especialmente no Brasil, de “filosofia da
psicanálise”.
Ora, uma história rigorosa da recepção filosófica da psicanálise não pode
prescindir de um marco fundador concreto. Estamos convencidos de que esse texto
de Putnam representa isto: a origem histórica de um diálogo institucionalizado
entre filosofia e psicanálise.
A discussão acerca do mérito filosófico do texto – a tentativa, talvez a primeira
delas, de aproximar Hegel da psicanálise –, nós a reservamos para outro momento43.
Gostaríamos de destacar aqui, apenas para fins de introdução ao tema da “origem
histórica” da recepção filosófica da psicanálise, a relativa, mas permanente, hostilidade
de Freud, bem como de grande parte do movimento psicanalítico nascente, em
relação à filosofia.

40 “Sociedade de filosofia positiva”. Este documento, assinado em 1912 por Freud, em apoio
à fundação de uma tal sociedade – documento também assinado por nomes importantes da
ciência de sua época, como Ernst Mach, Albert Einstein, George Helm, Jacques Loeb, David
Hilbert e Félix Klein – se encontra traduzido para o português e comentado por Fulgêncio, L.
(2000). “Convocação para a fundação de uma “Sociedade para a Filosofia Positivista”, Natureza
Humana, 2(2), pp. 429-438.
41 Hartmann, H. (1927). Die Grundlagen der Psychoanalyse. Stuttgart: E. Klett, 1972, 270 p.
42 Para uma tradução para o português do manifesto assinado em 1929 por Hans Hahn, Otto
Neurath e Rudolf Carnap, ver: Hahn, H. Neurath, O. Carnap, R. (1985). “A concepção científi-
ca do mundo - o círculo de Viena. Dedicado a Moritz Schlick”, Cadernos de História e Filosofia
da Ciência, 10, pp. 5-20.
43 O mesmo pode ser dito em relação ao debate que teve lugar no interior do movimento psica-
nalítico, a começar pelas primeiras considerações críticas dirigidas por Freud ao argumento de
Putnam, que podem ser encontradas em meio às correspondências trocadas pelos dois médicos
a partir do mês de março de 1911. A esse propósito, ver: Hale, N. (1971). James Jackson Putnam
and Psychoanalysis: letters between Putnam and Sigmund Freud, Ernest Jones, William James, San-
dor Ferenczi, and Morton Prince, 1877-1917. Cambridge: Harvard University Press, 384 p.

Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019. 313


James J. Putnam e as origens do diálogo entre filosofia...

“O pensamento filosófico é como uma peça de decoração: admirável, mas sem


utilidade alguma!”. Esta posição de Freud a respeito da comunicação de Putnam,
conforme vimos acima, ilustra significativamente a posição que defendemos acerca
do modo como o movimento psicanalítico, especialmente nas suas origens, se
relacionou com a filosofia. Estamos diante daquilo que Pierre Raikovic denominou
“a polêmica antifilosófica de Freud”44.
Admitamos, em geral, é sob o signo da recusa que vemos a filosofia adentrar
no universo psicanalítico freudiano. Desde sempre Freud se mostrou cheio de
reservas críticas quanto ao pensamento filosófico. Se em um ponto e outro de sua
vasta obra o vemos utilizar referências da filosofia e reconhecer proximidades de
algumas das suas reflexões com aquelas de Arthur Schopenhauer (1788-1860), se
o vemos discutir textos de Friedrich Nietzsche (1844-1900) durante as reuniões
da Sociedade psicológica das quartas-feiras e traduzir ensaios de John Stuart Mill
(1806-1873) para o alemão, ou ainda se descobrimos que nos anos universitários
o jovem Sigmund decidiu acompanhar, além do que lhe era exigido, os cursos de
Franz Brentano (1838-1917); ou mais ainda, mesmo se vamos às suas cartas, onde
lemos em suas próprias letras sobre a criação da psicanálise como realização do
sonho de tornar-se filósofo45; tudo isso, a nosso ver, não muda essencialmente em
nada certa radicalidade da recusa freudiana da filosofia.
Radicalidade, aliás, que ao que tudo indica, compreende um sentido muito
maior do que consegue demonstrar, quer sejam as próprias críticas literais de Freud
ao pensamento filosófico, tais quais as encontramos dispersas no decorrer de sua
obra, quer seja a sua conhecida insistência na reivindicação da psicanálise como
propriamente uma “ciência da natureza”, como já mencionado. Ademais – ainda
que isso não possa ser afirmado em relação ao movimento psicanalítico como um
todo – encontramos este mesmo espírito de recusa crítica do pensamento filosófico
no “silêncio gritante” de Freud em relação a toda filosofia que lhe é contemporânea,
como a fenomenologia, o neokantismo, o positivismo, o marxismo, os pensamentos
de Martin Heidegger (1889-1976) ou de Henri Bergson (1859-1941), etc.46.
E, no entanto, lá está Freud sempre às voltas com exigências filosóficas de
seus vários interlocutores. Esta espécie de “ambivalência” ou “ambiguidade” da
relação de Freud com a filosofia é consenso disseminado pela discussão do tema. O
que, todavia, parece a nós mais evidente é que a psicanálise é uma antifilosofia de
44 Ver o primeiro capítulo, “La polémique antiphilosophique de Freud”, de: Raikovic, P. (1994). Le
sommeil dogmatique de Freud (Kant, Schopenhauer, Freud). Paris: Synthélabo, 232 p., p. 17. Para
uma tradução brasileira da obra, ver: Raikovic, P. (1996). O sono dogmático de Freud. Kant, Scho-
penhauer, Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 160 p.
45 Ver cartas enviadas a seu colega Wilhelm Fliess (1858-1928) nos dias 1º de janeiro e 2 de abril
de 1896, em: Masson, J, Schröter, M. (1986). Briefe an Wilhelm Fliess 1887-1904. Frankfurt am
Main: S. Fischer, 613 p.
46 Tal como nos indica Renato Mezan, em: Mezan, R. (2011). Freud: a trama dos conceitos. São
Paulo: Perspectiva, 356 p., p. XII.

314 Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019.


Weiny César Freitas Pinto / Caio Padovan

base, e que é justamente este seu caráter antifilosófico que deve, acima de tudo, ser
preservado, especialmente por uma história da recepção filosófica da psicanálise.
Se o desprezo freudiano pelo pensamento filosófico não constitui um
problema em si mesmo, já que, a rigor, nem Freud é exatamente um filósofo, e nem
a psicanálise é propriamente uma filosofia, o sentido desse desprezo, no entanto,
não pode ser menosprezado.
Nesses termos, pouco importam, na verdade, as declarações explícitas de
Freud, contra ou a favor do pensamento filosófico; aliás, sabemos que, do ponto
de vista conceitual, elas são meramente informativas de determinadas concepções
de filosofia que não vão muito além do que era característico no meio intelectual
geral do final do século XIX. Também têm pouca importância as tentativas, as mais
variadas, de fazer de Freud um filósofo, bem ou malsucedido, e da psicanálise, uma
teoria, mais ou menos filosófica nos termos de estrutura.
Segundo nossa análise, o que é importante, de fato, é descobrir qual o sentido
desta antifilosofia originária que a psicanálise representa, extrair as implicações que
dela decorrem; é saber qual “movimento do pensamento” essa recusa da filosofia põe
em marcha e, principalmente, para onde este movimento nos leva, para qual direção
ele aponta47.
Se com esta posição nós acabamos por reforçar a figura já bastante conhecida
entre nós do Freud “antifilósofo”, isso não deve ser entendido, porém, como uma
determinação teórica fundamental de nossa parte, é apenas uma alternativa para
sustentar o vigor de nossa disposição em não incorrer no erro, que também não
desconhecemos, de impor à psicanálise quaisquer preceitos filosóficos prévios48. Em
suma, nossa posição é a de que é preciso respeitar ao máximo a antifilosofia de Freud
a fim de melhor compreender não apenas a psicanálise como saber, mas também a
filosofia como disciplina.
Com efeito, caberia relativizar aqui nossas informações sobre o tema da
relação de Freud com os filósofos de seu tempo. Duas exceções importantes, tomadas
aqui a título de exemplo, merecem ser mencionadas: a primeira delas é indicada por
Zeljko Loparic e aponta para a figura “esquecida” de Theodor Lipps (1851-1914),
sobre o qual Freud dirá ainda em meados dos anos 1890 ser “a mente mais lúcida
entre os escritores filosóficos da atualidade”49. Seguindo o raciocínio de Loparic, que

47 Cf. Monzani, L.R. (1989). Freud: o movimento de um pensamento. Campinas: Unicamp, 2015, 300 p.
48 Para referências gerais sobre o tema da “antifilosofia” freudiana, cf. Raikovic, P. (1994). Ibid.,
especialmente o primeiro capítulo, já citado acima. Cf. também, Japiassu, H. (1989). Psicanálise:
ciência ou contraciência. Rio de Janeiro: Imago, 176 p.; Birman, J. (2003). Freud e a filosofia. Rio
de Janeiro: Zahar, 80 p.; Simanke, R. Capoulade, F. (2014). “Reflexões sobre a área de pesquisa
filosofia da psicanálise: um depoimento sobre sua constituição em São Paulo”, Analytica, revista
de psicanálise, 3(4), pp. 201-228, notadamente, pp. 202-208.
49 Em correspondência a Fliess datada de 26 de agosto de 1898, em: Masson, J, Schröter, M.
(1986). Ibid.

Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019. 315


James J. Putnam e as origens do diálogo entre filosofia...

mostra este filósofo como interlocutor constantemente presente – 1898-1938 – na


obra freudiana, e pelo qual Freud nutria grande simpatia de ideias, talvez Lipps seja,
de fato, o único filósofo com quem Freud verdadeiramente dialogou50.
A segunda exceção de um diálogo direto de Freud com um filósofo de
seu tempo, se bem que de modo diferente em relação ao diálogo com Lipps,
nós encontramos na figura de Ludwig Binswanger (1881-1966). A fecunda
correspondência do fundador da psicanálise com o discípulo de Heidegger deixa
transparecer ao fundo discussões filosóficas bastante relevantes, que merecerem
análises mais aprofundadas por parte da literatura sobre o tema51.
Como se vê, há muito ainda a ser pesquisado filosoficamente sobre as origens
da relação entre filosofia e psicanálise. Em que pese a existência de certa literatura
informativa sobre o tema, em geral trata-se de uma literatura dispersa em meio
a outros tantos objetos de pesquisa que interrelacionam ambas as disciplinas. De
nossa parte, estamos convencidos de que é chegada a hora de darmos início a uma
história específica, aprofundada e rigorosa das relações entre filosofia e psicanálise;
e, não temos dúvidas de que Putnam, este não filósofo ilustre, é um ponto de partida
privilegiado para isso.

Tradução52
Um apelo para o estudo de métodos filosóficos na preparação para o trabalho
psicanalítico53
Por James J. Putnam, M.D. em Boston
Para que este trabalho não pareça simplesmente uma crítica do método
psicanalítico e de seus fundadores, começarei dizendo que meu sentimento em

50 Loparic, Z. (2001). “Theodor Lipps: uma fonte esquecida do paradigma freudiano”, Natureza
humana, 3(2), pp. 315-331. Para um trabalho mais aprofundado sobre o mesmo tema, ver: Du-
rand, A. (2003). L’inconscient de Lipps à Freud. Ramonville Saint Agne: Eres, 147 p.
51 A esse respeito, ver: Fichtner, G. (1992). Briefwechsel, 1908-1938 / Sigmund Freud, Ludwig
Binswanger. Frankfurt am Main : Ficher, 340 p., assim como o prefácio de Pierre Fédida à
edição francesa de Binswanger, L. (1981). Analyse existentielle, psychiatrie clinique et psychanalyse:
discours, parcours et Freud. Paris: Gallimard, 378 p.
52 O leitor lusófono tem agora em mãos, muito provavelmente, a primeira tradução portuguesa do
artigo de Putnam ora aqui proposto. Ela foi fruto de um trabalho que durou aproximadamente
três anos, envolveu sucessivas etapas de revisão, tendo sido ainda objeto de uma comunicação
científica e de certo número de discussões acadêmicas em diferentes ocasiões. Caroline Lou-
renzone e Fábio Fernandes, alunos de graduação em filosofia da Universidade Federal do Mato
Grasso do Sul (UFMS), participaram diretamente do processo que resultou na primeira versão
integral traduzida e revisada do artigo. Esta versão recebeu minuciosa revisão técnica de Erick-
son Santos e Cibele Ribeiro. Uma segunda versão da tradução foi estabelecida por Weiny César
Freitas Pinto e Caio Padovan, ambos, além de tradutores e coordenadores do projeto, autores
do comentário de apresentação e das numerosas notas que acompanham a tradução. A terceira
e então definitiva versão da tradução é resultado das sugestões críticas oriundas da avaliação da
M&C e do diálogo com Richard Simanke. Agrademos a ambos pelas contribuições.
53 Lido no Encontro anual da Associação de Psicopatologia Americana, Baltimore, 10 de maio de 1911.

316 Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019.


Weiny César Freitas Pinto / Caio Padovan

relação ao movimento – para o qual este método é a base –, bem como em relação
a Freud e a seus colegas, é da maior e mais profunda admiração. O que estou
propondo aqui não deve de forma alguma ser tomado como uma crítica à posição
deles, mas sim como uma sugestão de complemento ao método. Este novo ponto
de vista sobre a natureza humana, possibilitado graças ao trabalho destes homens,
me parece ter valor extraordinário e suscetível de verificação em grande extensão.
Mais de uma vez, durante o estudo de um caso particularmente obscuro e depois
de quase concluir que, afinal, eu havia encontrado uma clara exceção às regras que
as observações de Freud e seus colegas pareciam ter estabelecido, uma pesquisa
ainda mais aprofundada da consciência destes pacientes e de suas memórias ocultas
acabou me mostrando que eu estava errado. É realmente extraordinário o critério
[touchstone] colocado em nossas mãos, capaz de nos permitir o reconhecimento dos
reais motivos por detrás das razões aparentes e, sob as falhas e fraquezas, os modos
e hábitos próprios à vida adulta, dando assim visibilidade ao trabalho dos anseios
[cravings] instintivos da imaginação, à busca pelo prazer e à fuga da dor infantil,
que forçam no adulto uma espécie de retorno privando-o da realização de seu mais
alto destino. A enumeração dos ganhos que já foram alcançados, dos caminhos
promissores que nos foram abertos por meio destas frutíferas investigações, bem
como das aplicações do princípio biogênico54 no estudo da personalidade humana,
apresentaria caráter imponente. Não é somente para a medicina que estes avanços
foram conquistados. Mostrou-se de maneira clara que as grandes peças da literatura
universal imaginativa e criativa, especialmente os grandes poemas universais, tais
como as maravilhosas tragédias e epopeias gregas, os contos de fadas e os mitos,
que se mantiveram popular por tanto tempo, e também as manifestações dos
chistes e do humor e de muitos outros modos de expressão ingênuos – por meio
dos quais, instintivamente, o baú dos tesouros escondidos da alma humana acaba
sendo revelado – são todos atravessados pela mesma tendência que se encontra por
detrás dos signos e dos sintomas próprios às histerias, às fobias e às compulsões. Os
simbolismos aí implicados, tais como os simbolismos da linguagem, dos sonhos e
da vida em si, são em grande medida, um simbolismo sexual.
Creio ainda ser possível admitir, com Freud, que o princípio da “conservação
da energia” pode ser aplicado de modo proveitoso ao fenômeno mental, assim como

54 [N.T. Referência de Putnam à “lei biogenética fundamental” [biogenetisches Grundgesetz], es-


tabelecida enquanto princípio pelo zoologista alemão Ernst Haeckel a partir dos anos 1860.
Tal lei seria mais tarde difundida por Haeckel por meio da chamada “teoria da recapitulação”,
hipótese segundo a qual a história ontogenética do indivíduo recapitula a história filogenética
da espécie. Os fundamentos empíricos desta teoria serão inicialmente apresentados pelo autor
em duas importantes publicações: Generalle Morphologie (1866) e Natürliche Schöpfungsgeschichte
(1868). A partir dos anos 1870, ela seria aplicada de maneira sistemática à evolução humana,
tal como podemos ler em: Haeckel, E. (1874). Anthropogenie oder Entwicklungsgeschichte des
Menschen. Leipzig: Wilhelm Engelmann, 732 p., em particular no primeiro capítulo (“primeira
lição”) desta obra, intitulado “A lei fundamental do desenvolvimento orgânico”].

Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019. 317


James J. Putnam e as origens do diálogo entre filosofia...

já foi feito em relação ao fenômeno físico55. Uma experiência é um fato com o


qual se pode contar tanto quanto uma certa quantidade de calor. Uma das maiores
contribuições freudianas reside justamente em sua demonstração do fato de que cada
pensamento e ação levam a algum resultado. Se, por alguma razão, um pensamento
desaparece, certamente reaparecerá sob uma nova e inesperada aparência, tal como
Proteu sob os ataques de Hércules, na bela fábula56.
Mas, ainda que esteja completamente convencido de que as aplicações
aqui referidas, a saber, do princípio biogenético e do princípio de “conservação de
energia”, proporcionam uma explicação parcial da evolução individual e racial57,
estou igualmente convencido do perigo que corremos ao utilizar estes mesmos
princípios na tácita exclusão de outros que são ainda mais importantes. Mesmo
no campo da física, a declaração “nenhuma energia se perde”, ainda que possa ser,
em certo sentido, verdadeira – isto é, verdadeira em relação a grupos especiais
de condições selecionadas artificialmente –, é falsa se tomada como justificava
para todas as inferências e implicações que são frequentemente dela extraídas e é,
portanto, perigosa como princípio de trabalho no campo da psicologia aplicada.
Este é um discernimento muito importante, já que, como todos nós sabemos, e
como estudos psicanalíticos demonstraram recentemente por meio de ilustrações
55 [N.T. Inicialmente aplicado, ainda no século XVIII, por Pierre-Simon Laplache e Antoine La-
voisier no contexto da física e da química, o princípio da conservação da energia será transpor-
tado para o campo das ciências da vida a partir dos anos 1840, com os trabalhos do fisiologista
alemão Hermann von Helmholz, em particular: Helmholtz, H. von (1847). Über die Erhaltung
der Kraft, eine physikalische Abhandlung, vorgetragen in der Sitzung der physikalischen
Gesellschaft zu Berlin am 23sten Juli 1847. Berlin: G. Reimer, 72 p. Na introdução à presen-
te obra, Helmholtz associa tal princípio ao fato de que “os fenômenos naturais se reduzem a
movimentos da matéria causados por forças de movimento [bewegungskäfte] constantes que
dependem apenas de relações de posição no espaço” (p. 5). A aplicação desta ideia às ciências da
vida será feita na primeira parte deste mesmo texto, intitulada: “O princípio da conservação da
energia vital” (pp. 7-16)].
56 [N.T. Referência de Putnam ao combate entre Hércules e Proteu, figura mitológica capaz de se
metamorfosear a fim de se defender dos ataques de um adversário. No livro quatro da Odisseia
(versos 355-6), ao evocar a narrativa de Menelau, rei de Esparta, Homero nos conta que, ten-
tando reagir a sua captura, Proteu se transforma em leão, dragão, pantera, riacho e até em ramo
de árvore].
57 [N.T. Entende-se aqui desenvolvimento individual e racial em referência às noções de desen-
volvimento ontogenético e filogenético. A este respeito, é interessante notar que na tradução
inglesa da obra Sonho e mito de Karl Abraham, obra que será citada adiante por Putnam em seu
artigo, o termo Völkerpsychologie (normalmente vertida para o português através do sintagma
“Psicologia social”) será traduzido pela expressão Race psychology. A esse propósito, ver: Abra-
ham, K. (1913). Dreams and Myths. A study in race psychology, trad. W.A. White. New York:
The journal of nervous and mental disease publishing company, 74 p., p. 73. Sabemos que esta
tradução fora realizada por William Alanson White (1870-1937), um dos pioneiros, ao lado
de Putnam, da psicanálise nos Estados Unidos. Ora, considerando os princípios evolucionistas
sustentados na época pelo movimento psicanalítico – e em particular por Freud, em trabalhos
como Totem e Tabu, publicado entre 1912 e 1913, e Moisés e o monoteísmo, publicado vinte anos
mais tarde, em 1937 – uma complexa articulação entre ontogênese, filogênese e sociedade in-
cluiria ainda à delicada noção de raça].

318 Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019.


Weiny César Freitas Pinto / Caio Padovan

impressionantes, a mente humana é mais hábil em suas vagas intuições e em seu


poder de raciocínio por implicação e inferência do que seu fraco poder de expressão
consciente e precisa levaria alguém a supor. A educação é em grande medida um
processo de autodescoberta. Você se curva para ensinar a criança e descobre, para
sua surpresa, que ela já é um homem sábio disfarçado.
Parei para me debruçar sobre esse princípio, já que o objetivo do presente
artigo é mostrar que qualquer um que conduza sua psicanálise longe o bastante, e
que faça de si mesmo o seu primeiro objeto de investigação – como todo psicanalista
deveria fazer –, encontrará evidências de vagos raciocínios de grande importância
subjacentes aos conflitos dos instintos infantis, e modificará esses conflitos a todo
momento. Isso nos permite notar que, na medida do possível e do necessário,
esses raciocínios rudimentares, inferenciais, devem ser devidamente examinados
e utilizados para o bem e não para o mal. O principal serviço prestado pelas
investigações psicanalíticas que foram levadas a cabo até o presente momento, sob
o impulso do gênio de Freud, tem sido o de nos forçar a reconhecer os demônios
reprimidos [repressed] que se escondem dentro de nós mesmos. É obvio, no entanto,
que nós só sentimos essas tendências como “demoníacas” e as reprimimos porque
possuímos um certo padrão de “bem”. Geralmente se supõe que este padrão de
bem seja apenas algo imposto a nós pela sociedade. Mas se paramos para analisar a
questão, concluímos que, em última instância, ela repousa muito mais em razões de
natureza pessoal: que ela implica em nada menos do que um vago reconhecimento
[dim recognition] a respeito da crença “no bem” como uma das nossas intuições mais
reais; que não podemos deixar de pensar nesses, e outros semelhantes, assuntos,
e comparar nosso “mal” presente com o nosso “bem” possível, além de pensarmos
em termos de espaço e tempo, e ainda de ter o vago reconhecimento de que, na
verdade, esses termos são apenas representações simbólicas de uma existência real
mas irrepresentável [unpicturable], não limitada pelo tempo ou pelo espaço.
Para retomar, então, ao princípio da conservação de energia, eu tenderia a
dizer que não temos absolutamente nenhum direito de extrair daí, como é feito
frequentemente, embora de maneira tácita, a implicação de que já que nenhuma
energia se perde e, consequentemente, nenhuma energia é criada, e que vivemos em
um mundo de determinismo, no qual as mesmas velhas formas, vindas ninguém sabe
de onde, são espalhadas de um lado para o outro como fragmentos de vidro em um
caleidoscópio. Em um mundo como esse, pensamento e desejo não teriam qualquer
poder para criar algo novo, e o processo de adaptação não seria, como o é agora,
um processo de modificação inteligente produzido por cada indivíduo no interior
de si mesmo e em seu ambiente, mas sim um simples processo de modelagem do
homem no mundo da natureza, tal como um pedaço de cera é modelado em um
selo. Ninguém realmente aceita um mundo como este, nem mesmo aqueles que
afirmam aceitá-lo; no entanto, é o tipo de mundo que a ciência natural sustenta

Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019. 319


James J. Putnam e as origens do diálogo entre filosofia...

e o tipo de mundo que deveria ser logicamente aceito por aqueles que, seguindo
de tão perto as exigências da lei da conservação de energia, buscam um universo
estritamente monista fundado nessas supostas leis58. Ora, se fossemos reivindicar
um mundo melhor que esse, deveríamos começar reconhecendo que as fórmulas da
ciência natural não expressam mais do que uma parcela da verdade. É verdade que,
onde os objetivos específicos a que essas ciências servem estão sozinhos em jogo,
é conveniente falar da “conservação de energia” como se fosse um dos princípios
fundamentais subjacentes à vida, e não a mera descrição de uma dada sequência de
fenômenos. Isso não quer dizer, em todo caso, que um estudante de química ou de
física trabalhe apenas com as aparências externas sob as quais a energia real, auto-
realizadora [Self-active]59, se encontraria encoberta, ou que ele fale abertamente
em “átomos” ou “leis invariáveis” como se estes termos realmente representassem
os mais profundos fatos que a mente humana pode alcançar. Ele sabe bem, se for
esperto, que essas fórmulas são apenas modos de se referir às coisas e que seus
estudos nada contribuem para o nosso conhecimento sobre as suas causas reais. Mas
esse hábito complacente de negligenciar o estudo do “real”, necessário como o é na
58 Cf. Traum und Mythus, von Dr. Karl Abraham. Schriften zur Angewandten Seelenkunde;
herausgegeben von Prof. Dr. Sigm. Freud, Viertes Heft, pp. 71,72. [N.T. Referência de Put-
nam ao trabalho de Karl Abraham intitulado “Sonho e mito”, páginas 71 e 72, e publicado
no quarto número da coleção editada na época por Freud: “Escritos de psicologia aplicada”. A
passagem citada pelo autor inclui o primeiro parágrafo do décimo-terceiro capítulo da obra do
psicanalista, intitulado: O determinismo das forças na vida anímica do indivíduo e da coletividade,
onde Abraham argumenta dizendo que Freud fora bem sucedido em demonstrar que “todo
fenômeno psíquico é determinado por causas bem definidas”, concluindo que o “determinismo
das forças na vida psíquica constitui o objeto da investigação psicanalítica”. Encontramos essa
mesma referência ao capítulo treze de Abraham em uma carta enviada por Putnam a Freud no
dia 30 de maio de 1911, cerca de três semanas após leitura do presente texto diante da Associa-
ção de Psicopatologia Americana. Nesta correspondência, Putnam afirma categoricamente que a
“Weltanschauung” científica “é menos útil e menos adaptada que outras à verdade”. Ver Hale,
N.G. (1971). James Jackson Putnam and Psychoanalysis: Letters Between Putnam and Sigmund
Freud, Ernest Jones, William James, Sandor Ferenczi, and Morton Prince, 1876-1917. Cambridge:
Harvard University Press, 379 p.].
59 [N.T. Referência implícita ao trabalho de William Torrey Harris (1835-1909) sobre Hegel,
a saber: Harris, W.T. (1890). Hegel’s Logic. A book on the genesis of the categories of the mind. A
critical exposition. Chicago: S. C. Griggs and Company, 403 p. Putnam citará textualmente esta
obra na versão alemã de seu artigo, lida alguns meses mais tarde no Terceiro Congresso da Asso-
ciação psicanalítica internacional. Segundo Harris, tal como podemos ler no segundo capítulo do
livro supracitado: The Greek and German Philosophical Principles, a noção de Idea em Platão se
aproxima da noção de Begriff (Conceito) em Hegel que, ainda de acordo com Harris, corres-
ponde a chamada Self-activity evocada por Putnam, traduzida por nós pela expressão “auto-rea-
lização”. Para uma análise mais aprofundada desta articulação, ver o décimo terceiro capítulo
desta mesma obra: Analysis of Hegel’s Begriff or notion as Self-Activity – Universal, particular and
singular. Cabe lembrar que Harris era considerado na época como um importante intérprete
do pensamento de Hegel nos Estados Unidos, tendo fundado em 1867 o Journal of Speculative
Philosophy, periódico dedicado à promoção do idealismo hegeliano na América, então repre-
sentado pelos chamados St. Louis Hegelians. A este respeito, ver o primeiro volume de Good,
J.A. DeArmey, M.H. (2001). The St. Louis hegelians, 1. Origins, the dialectic, and the critique of
materialism. Bristol: Thoemmes Press, 184 p.

320 Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019.


Weiny César Freitas Pinto / Caio Padovan

física, é nocivo para a psicologia e se torna intolerável quando o objeto de estudo


em questão é um ser humano. Um ser humano afetado por esperanças e medos,
vagamente consciente de seu destino e vagamente ciente do fato de que – dada a sua
inteligência, o dom da sua intuição e da sua vontade e, enfim, o fato dele ser “real”
– ele participa da energia primordial do universo, devendo, portanto, ser estudado
enquanto tal.
Para um estudioso dedicado da psicanálise, orientado por um desejo sincero
de aprender tudo o que for possível sobre a natureza do fenômeno mental, satisfazer-
se negligenciando uma certa parcela do conhecimento da mente – acessível apenas
através dos métodos filosóficos – seria o equivalente a assumir que, a partir da
simples observação dos sintomas psiconeuróticos, ele poderia apreender algo a
respeito das condições reais das quais, na verdade, esses sintomas são símbolos.
A mente contém um elemento real, perene e invariável, que faz parte da natureza
do real, uma energia invariavelmente perene, da qual a vida do próprio universo é
feita. Partindo do ponto de vista da natureza de sua mente, um homem pertence às
realidades eterna e infinita do universo. A fim de entender isso, ele precisa aprender
a se convencer de que ele diz a verdade quando fala do mundo espiritual e também
quando afirma que as coisas invisíveis são eternas. A verdade suprema, tal como o
movimento, a esperança, o amor e o sentimento do belo, pertencem à ordem do
irrepresentável [unpicturable]. Mas a vida por assim dizer representável [picturable]
é temporal, enquanto que uma representação simbólica [symbolic representation]
da vida irrepresentável [unpicturable] é para nós a única vida verdadeira60. A esse
elemento real e criativo da vida mental, da qual depende todo o nosso esforço, toda
a nossa força de vontade e renovação do pensamento, eu arriscaria dar o nome de

60 [N.T. Uma distinção entre as noções de conhecimento “representável” [picturable] e “irrepresen-


tável” [unpicturable] contemporânea ao artigo de Putnam pode ser encontrada na obra do filó-
sofo norte-americano Alexander Thomas Ormond, na época professor de filosofia na Princeton
University. Em: Ormond (1906). Concepts of philosophy. New York: Macmillan Company, 722
p., podemos ler a seguinte passagem: “How does consciousness spontaneously know self ? At the very
beginning of this inquiry we had occasion to draw a distinction between two species of knowledge, the
picturable and the unpicturable, and the knowledge of self was classified with the unpicturable species.
What we mean by unpicturable knowledge is the assurance, immediate or otherwise, which we have of
real existences which nevertheless have no definable form in which they can be represented, otherwise
than symbolically, to the imagination. Thus, power, duty, love, hate, patriotism, are realities which
we know immediately, but they cannot be pictured and are capable only of symbolic representation.”
(Como a consciência pode conhecer a si mesma? Bem no início desta investigação, nós tivemos
a ocasião de estabelecer uma distinção entre duas espécies de conhecimento, representável e
irrepresentável, tendo sido o conhecimento de si mesmo classificado entre os irrepresentáveis.
O que nós designamos como conhecimento irrepresentável corresponde à certeza, imediata
ou não, que temos de existências reais que, no entanto, não possuem nenhuma forma definível
na qual possam ser representadas, a não ser simbolicamente, para a imaginação. Assim, poder,
dever, amor, ódio, patriotismo, são realidades que conhecemos imediatamente, mas que não
podem ser representadas, sendo apenas passíveis de representação simbólica.) (p. 108-9). Com
base nesta passagem, podemos considerar o trabalho de Ormond como uma das referências
filosóficas de Putnam].

Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019. 321


James J. Putnam e as origens do diálogo entre filosofia...

psyche generatrix ou mens creativa61. Quando alguém é levado a considerar o homem


como uma criatura cuja história encontra sua origem em uma porção de matéria
inanimada composta de calcário e fósforo – e, portanto, a admitir que a cada refeição
ele não faz outra coisa senão reverência àquela mesma porção de matéria presente
em sua gênese – isso não deve necessariamente implicar que a vida orgânica e a
história da evolução orgânica sejam em si ininteligíveis, e que a visão que temos da
miséria humana e do pecado seja intolerável, a menos que não reconheçamos de
maneira mais ou menos clara que, com a vida orgânica vem o poder e a necessidade
da busca contínua pelo mundo invisível da existência real – para a qual tentamos,
sem descanso, dar alguma expressão neste mundo finito e simbólico, ainda que isso
só fosse possível de maneira completa em uma vida de duração infinita.
Sendo assim, nós deveríamos considerar os fatos coletados pelas ciências
naturais como fatos de valor limitado e parcial e não os tomar como base para
uma completa explicação do fenômeno da vida. Pela mesma razão, também
somos obrigados a fazer a mesma asserção em relação à explicação genética da
personalidade humana, para a qual o método psicanalítico tem contribuído de
maneira considerável. Por meio do uso desse método, passamos a conhecer diversas
influências até então desconhecidas para nós, que desempenham um grande
papel na evolução do ser humano adulto, e que é forte a tentação de extrapolar
esse princípio para além do justificável. A forma de escapar disso é fazendo um
estudo mais aprofundado das operações da mente humana, como aqueles levados
a cabo pelos grandes estudiosos da filosofia que, embora sejam com frequência
desacreditados, talvez representem o que há de melhor em termos de conhecimento
sobre evolução humana. Não podemos negar que o princípio genético tem nos
prestado um grande serviço, porém, da forma como ele vem sendo entendido, vai
acabar nos levando, se seguido muito de perto, a um impasse. A noção de evolução
sugerida por este princípio é uma forma de evolução em linha reta, que, até onde
podemos ver, começa em lugar nenhum e termina em lugar algum. Na verdade, a
evolução deveria preferencialmente ser expressa como um processo circular62. Ela
começaria no mundo do espírito real e infinito, mas invisível, a psyche generatrix,
e consistiria em uma série de ensaios visando expressar a vida do espírito de uma

61 [N.T. Em latim, no original, “psiquismo geracional” e “mente criativa”].


62 Ofereço esse simples diagrama sem me atentar adequadamente em explicá-lo, já que seria im-
possível nessa nota:
A∞
B | : | : | : |...|:
A é o símbolo matemático do infinito e pode ser usado para sugerir o fato de que a mente, nela
mesma, é logicamente independente do espaço e do tempo e de suas tentativas de expressão
finita. É a fonte inesgotável do trabalho de renovação.
B insinua o fato de que a mente está continuamente tentando expressar a sua natureza total em
atos finitos (símbolos) – negando então que essas tentativas sejam adequadas – e retornando
(pelas linhas pontilhadas) a um reconhecimento do seu poder inesgotável de alcançar mais e
melhores coisas.

322 Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019.


Weiny César Freitas Pinto / Caio Padovan

forma finita, seguida a cada momento por um reconhecimento sempre renovado de


que esta expressão é imperfeita. Estes reconhecimentos da imperfeição implicam
em um número proporcional de retornos, em pensamento, da mente autoexpressiva
[self-expressing mind] em direção a sua fonte infinita. Este movimento circular da
mente caracterizaria, ao mesmo tempo, a evolução considerada em sua totalidade
e em cada ato da vida. Em tudo o que fazemos e sentimos, nós percebemos que
somos mais do que podemos expressar em um dado momento, e ao reconhecer assim
nossa incapacidade finita de nos expressar, assim como a natureza simbólica que
caracteriza a tentativa de o fazer, somos então forçados vagamente a perceber que
temos uma existência infinita e real, ainda que irrepresentável, como pano de fundo
para nossos esforços finitos.
Portanto, não é apenas o fenômeno da gênese terrena [earthly genesis] de um
homem que devemos estudar se quisermos entender melhor os altos e baixos que
marcam a sua vida; as próprias operações de sua psyche generatrix devem também
ser objeto de nossa investigação. Kant disse, “Humanidade nunca deve ser tratada
como uma coisa”. A existência real é uma energia auto-realizadora e causal, e não
uma “coisa”. É somente em virtude da presença em nós mesmos dessa energia causal,
essa psyche generatrix, que nós nos tornamos conscientes da existência da causalidade
real63. Não há causalidade na sucessão dos fenômenos naturais; ela surge apenas
com os esforços vitais próprios aos seres vivos dotados de consciência, encontrando
sua melhor expressão na vontade, sendo o agir a melhor dentre elas; ou seja, agir de
acordo com os mais altos princípios do progresso espiritual.
Eu me oponho à explicação baseada nos princípios psicogenéticos da evolução
dos instintos da criança à conduta do homem adulto – quer dizer, quando o princípio
genético é tratado como se fosse o único em jogo – enquanto que, na verdade, a
influência da vontade, mesmo que fraca e conduzida de maneira inadequada – tal
como a influência do reconhecimento por parte da mente, em cada um de seus atos,
com suas infinitas possibilidades que não podem se expressar – nunca poderiam ser
colocadas completamente fora de ação. Na admirável monografia64 de Abraham,
acima mencionada, afirma-se que os homens do mundo primitivo e não civilizado
[uncultured]65 não manifestaram ideias filosóficas ou religiosas que, em um segundo
63 [N.T. No original: “Kant has said, ‘Humanity must never be treated as a thing’. Real existence is
a self-active, causal energy, and not a ‘thing’. It is only by virtue of our possessing this causal energy,
this psyche generatrix, that we become aware of the existence of real causality at all”. Este mesmo
argumento pode ser encontrado em Harris, W.T. (1890). Ibid.].
64 Traum und Mythus. l, c. [N.T. Referência completa: Abraham, K. (1909). Traum und Mythus.
Eine Studie zur Völkerpsychologie. Leipzig und Wien: Franz Deuticke, 73 p.].
65 [N.T. Nesta passagem, Putnam utiliza o termo “aculturado” no sentido de “não civilizado”, em
acordo com os princípios evolucionistas defendidos pela antropologia de seu tempo. Esta mes-
ma noção de “civilização”, como sinônimo de progresso, será retomada em outros momentos
do artigo. Ainda a este respeito, é interessante notar que, mais adiante, Putnam fará uma crítica
destes princípios colocando os homens ditos primitivos e civilizados no mesmo patamar, sub-
metendo ambos à dita energia causal auto-realizadora ou psyche generatrix].

Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019. 323


James J. Putnam e as origens do diálogo entre filosofia...

momento, teriam sido simbolizadas em forma de mitos. Porém, tal afirmação


precisa ser certamente revista. Tecnicamente falando, é evidente que seres humanos
primitivos, assim como as crianças recém-nascidas, não fazem filosofia nem religião.
Deve-se, no entanto, levar em conta que em algum momento eles manifestaram
um vago reconhecimento de seu próprio poder criativo, um vago sentimento de
ser mais do que podiam expressar, um vago sentimento de que sua própria finitude
implicaria algum tipo de existência infinita como fundamento. Esses sentimentos,
por mais obscuros que possam ser, tinham necessariamente uma precedência lógica
até mesmo no caso de anseios e desejos pessoais, nos quais os instintos sexuais
e outros primitivos buscavam também a sua expressão. Contudo, se fôssemos
realmente a fundo em direção aos conflitos mentais de nossos pacientes – e de
nós mesmos –, aprenderíamos de maneira positiva, por meio de estudos filosóficos,
a tomar conhecimento deste cisma primário entre o sentido de nossa origem
infinita e a necessidade a que estamos sujeitos de nos expressar a cada momento
de forma finita, uma vez que a existência deste cisma, com tudo o que ele implica,
que, em minha opinião – e na de muitos outros mais criteriosos que eu –, fornece
o primeiro impulso para a criação de mitos, assim como para os conflitos que dão
origem aos sintomas nervosos. É claro que as lutas entre nossos instintos infantis
e as influências que tendem em direção a uma vida convencional constitui a base
pitoresca e simbólica deste conflito, fornecendo, então, sempre novas razões para
a sua continuidade. No entanto, a causa original do conflito em si mesmo repousa
sem dúvida em algo anterior.
Não estou muito certo de quão positivo pode ser o uso, por parte dos
psicanalistas, desses princípios filosóficos no efetivo tratamento ou acompanhamento
[training] de seus pacientes. Tenho a convicção de que algum uso possa ser feito
deles, tal como o foi no contexto do ensino de crianças no jardim de infância
[Kindergarten]66. O requisito mínimo, em todo caso, é que, como médicos, nós
mesmos deveríamos carregar esses princípios dentro de nossas próprias mentes, pois
sem eles, em tese, nós não poderíamos julgar de maneira adequada os mais profundos
anseios e intuições manifestos de nossos pacientes. Sem eles, não poderíamos nem
mesmo explicar os nossos próprios anseios e intuições.
É também um erro supor que o “inconsciente” contém apenas o sentido do
mau, quer dizer, o lado “sombrio” de nossas naturezas. O reconhecimento do mau

66 [N.T. O primeiro Kindergarten público dos Estados Unidos, baseado nos princípios pedagógicos
estabelecidos pelo educador alemão Friedrich Fröbel (1782-1852), fora fundado em 1873, em
St. Louis, por Susan Blow (1843-1916). Blow contaria na ocasião com a colaboração de William
Torrey Harris, na época superintendente das escolas públicas de St. Louis. Trata-se aqui do
mesmo filósofo citado por nós há pouco, autor da obra Hegel’s Logic. Harris defendia um modelo
de educação moral baseado no pensamento hegeliano. A esse respeito, ver: McCluskey, N.G.
(1958). Public Schools and Moral Education: The Influence of Horace Mann, William Torrey Harris
and John Dewey. New York: Columbia University Press, 315 p., em particular a terceira parte
dedicada a Harris e, em especial, o sexto capítulo: The defense of Hegel’s institutional morality].

324 Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019.


Weiny César Freitas Pinto / Caio Padovan

[bad] implica o reconhecimento do bem [good]. A luta entre ambos implica o sentido
de uma possível meta melhor que aquela da qual nos ocupamos neste momento,
e estes elementos melhores da vida mental estão representados em nossa mente
inconsciente e subconsciente. São inconscientes por não poderem ser expressos em
palavras.
Dizemos que a civilização depende de uma transição em direção a objetivos
elevados e mais amplamente sociais desta energia que vinha sendo até agora
despendida em favor dos instintos mais elementares, considerados como dominantes,
especialmente o instinto sexual, cuja grande missão é de perpetuar a raça humana67.
Ora, ainda que essa afirmação possa se aplicar ao caso dos animais, que veem apenas
o que está diante deles, e das plantas que nada veem, está muito longe de abranger
o caso dos homens. Todo homem, assim afirmo, tem a sensação de ser capaz de
efetuar algo por meio de sua “vontade” e também por meio de vagas ideias [visions]
subconscientes nas quais as fórmulas lógicas do raciocínio filosófico se encontram
prefiguradas e o esquema do universo é intuitivamente percebido. Tais sentimentos
são acompanhados por um profundo senso de dever [sense of obligation]68.
O homem pode aprender a negligenciar ou negar essas ideias [visions],
mas as possui da mesma forma e pode ser encorajado a ter consciência deste fato.
Se o fizer, ele aprenderá a ver a verdade do aparente paradoxo de que a mente é
consciente de seus próprios atos, para que o “reconhecimento” que ocorre a cada
momento de nossas vidas não seja meramente a redescoberta de um objeto familiar,
mas a redescoberta de nós mesmos.
A pessoa que chega conscientemente a este estágio do pensamento se torna
não apenas um “metafísico”, mas também alguém mais crítico e reflexivo, uma
pessoa mais bem preparada para tomar ciência de sua origem e destino espirituais,
assim como dos deveres que acompanham esse conhecimento.
Acreditem, não estou disposto a desperdiçar tempo lamentando o fato
de que, até agora, aqueles que carregaram o movimento psicanalítico sob sua
responsabilidade tenham seguido um método exclusivamente científico. Se não
fosse assim, provavelmente eles teriam falhado em alcançar o que alcançaram, e nós
ainda estaríamos incitando nossos pacientes a melhorarem sua condição unicamente
através da força de vontade e da consciência, e com conhecimento insuficiente a
respeito deles.
Mas chegou a hora de darmos um passo maior à frente. O objetivo com o
qual estamos praticamente, se não declaradamente, comprometidos é o de fazer um
estudo completo da vida mental de nossos pacientes, e a realização de um estudo

67 [N.T. Referência direta de Putnam ao princípio darwinista da seleção sexual].


68 A noção de “senso de dever”, associada à ideia de “vontade”, será desenvolvida no primeiro
capítulo, intitulado Ethical activities, da segunda parte da obra de A.T. Ormond citada mais
acima: Concepts of philosophy.

Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019. 325


James J. Putnam e as origens do diálogo entre filosofia...

completo deste tipo seria simplesmente impossível sem uma formação aprofundada
em métodos filosóficos de pesquisa, tanto quanto nos métodos da pesquisa científica,
assim como em algum reconhecimento a respeito das inferências morais, sociais e
intelectuais para os quais tais pesquisas têm conduzido.
Por sorte, aqueles que se interessam pouco pela filosofia, e que se satisfazem
levando a sério a zombaria de Voltaire: “Quand on parle de ce qu’on ne comprend pas
et que ceux qui entendent ne comprennent pas non plus, on fait de la metaphysique”69, até
mesmo eles aceitam e lançam mão de muitas inferências filosóficas e metafísicas,
sem saber.
A lei da conservação de energia não conhece nenhuma consciência,
nenhum dever moral e nenhuma vontade em qualquer sentido real. Nós todos,
no entanto, reconhecemos consciência, vontade e dever, mesmo sem a intenção
de fazê-lo.
Inicialmente, quando comecei, ainda com alguma hesitação, a usar as
poderosas armas que o método psicanalítico colocou em nossas mãos, eu tentei
confiar inteiramente e exclusivamente na análise em si a fim de alcançar resultados
terapêuticos. Na verdade, eu aceitei, não explicitamente, mas implicitamente, a ideia
de que a participação do médico neste processo consistia unicamente em incitar o
paciente a ir adiante, cada vez mais fundo, em direção aos seus próprios complexos,
apenas observando que ele não deveria enganar a si mesmo, que ele não deveria
acreditar muito cedo que o fim de sua jornada de descobertas estava ao alcance de
suas mãos.
Tomei como certo que a função do médico termina quando ele ajuda o
paciente a superar um certo tipo de dificuldade [handicap] capaz de impedir o seu
progresso, forçando-o a se dar conta dos reais fatos em jogo, assim como de que
até então ele não se encontrava sujeito a qualquer tipo de dever, que ele não tinha
nenhuma responsabilidade a assumir pelo caráter do progresso em si.
Além disso, eu acreditava que essas dificuldades [handicaps] a serem superadas
eram de um tipo específico. Não se tratava de dificuldades ligadas à ignorância,
mas sim atribuídas à existência de desfavoráveis complexos emocionais dos tipos
que muito se tem discutido70. Em outras palavras, eu pensava que não era nossa
responsabilidade instruir o paciente, quer dizer, proporcionar o lado positivo da
69 [N.T. Em francês, no original. “Quando alguém fala de algo que não entende e que aqueles
que [o] ouvem tão pouco entendem, faz-se metafísica”. Após análise da passagem em questão,
a autoria da citação não pôde ser confirmada].
70 [N.T. A noção de “complexo” será desenvolvida no interior do movimento psicanalítico a partir
dos estudos realizados pela equipe de pesquisadores do Hospital Burghölzli, em Zurique, na
época dirigida por Carl G. Jung e Eugen Bleuler. Os resultados destes trabalhos serão publica-
dos em uma obra coletiva, organizada por Jung entre 1906 e 1910 e editada em dois volumes
com o título Estudos de diagnóstico por Associação. A esse respeito, ver: Jung, C.G. (1906-1910).
Diagnostische Assoziationsstudien. Beiträge zur experimentellen Psychopathologie, 2 vol. Leipzig:
Johann Ambrosius Barth, 281 p., 222 p.].
326 Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019.
Weiny César Freitas Pinto / Caio Padovan

reeducação que ele precisava experimentar, mas apenas colocá-lo em uma posição
melhor para que ele pudesse obter sua educação em outro lugar.
Ainda acredito que a principal parcela de nosso trabalho deveria ser daquele
tipo que já indiquei. Mas, pouco a pouco, fui chegando à convicção de que há uma
sutil influência de simpatia e apreciação, frequentemente exprimível em palavras,
ainda que por vezes seja de difícil expressão, que faz do trabalho do médico – aquele
médico que acredita nas verdades que indiquei como tendo sido estabelecidas pelo
estudo filosófico e pela revelação religiosa – um trabalho de maior valor que aquele
realizado pelo homem que não possui esta mesma atitude.
Pode-se pensar que qualquer interesse considerável por parte do médico em
filosofia (e em religião, que em filosofia se expressa de forma simbólica e poética)
prejudicaria sua capacidade de prosseguir com o devido vigor em suas investigações
psicanalíticas. Entretanto, eu sou levado a pensar que este perigo é na verdade uma
quimera. A psicanálise é e deveria ser reconhecida como um instrumento, e não
como uma doutrina. Ela nos leva a nenhuma fé em particular, não nos impede de
ter convicção quanto às verdades universais.
Eu duvido, no entanto, que a psicanálise sozinha nos forneça tudo o que
precisamos. Quase sempre acontece de existirem algumas características no caso de
um paciente as quais podem ser mais bem definidas em termos morais. O paciente
“deveria” [ought] ou “não deveria” [ought not] fazer isso ou aquilo. As bases onde este
estatuto moral do paciente repousa podem ser abordadas por meio da investigação
psicanalítica, mas podem ser mais bem compreendidas, tal como acredito, se o
paciente estiver disposto a fazer aquele tipo de análise mental que o conduzirá a
ver suas obrigações sob a luz do reconhecimento de sua origem e destino. Não
vou afirmar que nós somos obrigados a forçar cada paciente a chegar a conclusões
deste tipo. Isso pode ser às vezes desnecessário e às vezes até mesmo impossível de
realizar. O que podemos e devemos fazer, no entanto, é nos sentirmos totalmente
solidários em relação a todas as inclinações subconscientes ou inconscientes do
paciente, mesmo as mais brutas, no tocante às verdades que sustentamos como
sendo importantes e filosoficamente seguras. Nós podemos e devemos ajudá-lo a
desvendar essa parte de seus anseios inconscientes que apontam não somente em
direção a sua gênese terrena, mas também em direção a sua gênese espiritual. Todo
homem, mesmo sendo ignorante, clama por um equilíbrio moral, um amplo senso
de dever, um senso de valores morais independentes de vicissitudes terrenas, como
um tipo de direito inato, por assim dizer. O homem “normal” é uma pessoa moral,
ou alguém que possui a capacidade de se tornar uma. Ter falhado em se desenvolver
nesse sentido é ter “sintomas” que necessitam atenção. A relevância desta proposição
não é enfraquecida pelo fato óbvio de que o contrário também é verdadeiro; que
um excesso emocional ou verbal destas ideias morais pode também se tornar um
sintoma de doença.

Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019. 327


James J. Putnam e as origens do diálogo entre filosofia...

O grande poema no qual Dante descreve sua descida ao inferno guiada por
Virgílio71, sua subida do monte do purgatório e seu voo no paraíso, tipifica a jornada
nas profundezas da memória e da própria alma de alguém, algo que a psicanálise
tornou possível de forma nova e intensificada. Não é desejável entrar em uma
jornada deste tipo, que começa na “selva escura” da introspecção72, a menos que
haja uma boa perspectiva de continuá-la até que se possa ver seu fim lógico. Neste
sentido, o médico deve ao menos ter uma visão clara do melhor resultado possível.
Posso reformular meu argumento da seguinte maneira: o método psicanalítico,
ao qual tanto devemos, não é simplesmente um meio de ensinar o paciente a tornar-
se intimamente familiarizado com sua própria história e motivações. A maioria
dos pacientes aprende por meio do tratamento a pensar racionalmente sobre os
fatos que eles observam, podendo ser conduzidos a realizar este raciocínio de um
modo mais ou menos profundo. Todo processo de raciocínio pode ser percorrido,
em termos gerais, sob uma ou alguma outra das três cabeças [three heads]73. A forma
mais simples de raciocínio é aquela na qual os objetos individuais são notados e
discriminados. Este é o raciocínio ordinário do chamado “bom senso”. Um homem
é um homem, uma vaca é uma vaca, “a maçã caindo não sugere uma lei universal
da natureza, mas um meio de gratificar um apetite individual”74. É, todavia, fato
interessante notar que as pessoas sem formação técnica em ciência ou filosofia, que
tomam os fatos da observação desta mesma forma, demonstram com frequência
uma maior clareza filosófica quando comparadas àquelas da outra classe, as

71 [N.T. Referência de Putnam à Divina comédia, obra atribuída ao poeta florentino Dante Ali-
ghieri (1265-1321)].
72 [N.T. “Selva oscura”, no original italiano, noção evocada por Dante nos primeiros versos do
canto primo da Divina comédia: “A meio caminho de nossa vida, eu me encontrava em uma
selva escura, tendo perdido a verdadeira estrada”. Putnam estabelece aqui um paralelo entre
a selva escura, definida metaforicamente pelo poeta italiano como um período crítico da vida
– marcado por uma crise de ordem moral e intelectual e por um consequente desvio do “bom
caminho” –, e o processo de introspecção que caracteriza o início do trabalho analítico. A voca-
ção moralizante do tratamento psicanalítico concebido por Putnam não poderia encontrar no
universo dantesco uma analogia mais adequada. Sobre a passagem de Dante em questão, ver
Alighieri, D. (1989). La divina commedia. Inferno. Florença: La Nouva Italia, 396 p., p. 4-5., com
os comentários de Natalino Sapegno].
73 [N.T. Provável referência ao trabalho do filósofo, diplomata e educador americano Nicholas
Murray Butler, cuja obra Philosophy, publicada em 1908, seria citada por Putnam mais adiante.
Fazendo menção a algumas noções extraídas de Platão e de Aristóteles, Butler afirma a existên-
cia no homem de “três estágios ou ordens de pensamento”. Na sequência, Putnam descreverá
cada um destes estágios ou ordens por meio de passagens que, apesar de algumas imprecisões,
podem ser consideradas como verdadeiras paráfrases do texto de Butler. A esse respeito, ver:
Butler, N.M. (1908). Phylosophy. New York: The Columbia University Press, 27 p., p. 9.].
74 Cf. Address on Philosophy, by Nicholas Murray Butler, Columbia University, 1908. [N.T. A
passagem em questão se encontra na página 10 do documento citado por Putnam: “A falling
apple suggests not a universal law of nature but a means of gratifying an individual appetite”. Butler
era na época presidente da Columbia University, nos Estados Unidos, e entre 1925 e 1945 fora
presidente da Fundação Carnegie pela Paz Internacional, tendo recebido em 1931 o Prêmio
Nobel da Paz].

328 Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019.


Weiny César Freitas Pinto / Caio Padovan

pessoas “científicas”, que aprenderam a negar as próprias intuições. Como aponta


Freud, os homens que levam uma vida simples, têm uma percepção grosseira, mas
parcialmente correta no que diz respeito à importância dos sonhos. Assim também,
a percepção produzida por sua religião e por sua fé contém pressentimentos que
são profundamente científicos. O irrepresentável [unpicturable] mundo do espírito
é aceito por eles sem questionamento e, como eles não são lógicos e completos em
suas convicções, eles reconhecem, na melhor das hipóteses, que o mau e a doença
são algo a mais do que meras calamidades insignificantes.
A forma seguinte de raciocínio é esta por meio da qual os objetos são notados
em referência à relação que eles estabelecem uns com os outros. Este é o raciocínio
da ciência e daqueles que confiam no princípio genético para explicar a evolução
do indivíduo e da raça. Para essas pessoas, o universo é entendido em seu conjunto
de modo que nada poderia vir a acontecer em qualquer parte do mundo físico ou
mental sem induzir alguma mudança em todas as outras partes.
Assume-se que nenhuma energia nova pode ser perdida ou criada, embora
se admita que as forças que vemos em funcionamento são todas intercambiáveis
e, enfim, reduzidas a uma só força, que, no entanto, não exige nenhum esforço. A
evolução concebida a partir desta forma de raciocínio é absolutamente determinista.
Consciência, dever, vontade, são termos usados simplesmente para descrever eventos,
não para designar causas reais. Eles são criações, não criadores. Este é o esquema
que muitos psicanalistas parecem até agora ter adotado como definitivo. Admite-
se claro, que o mero fato de usar o método psicanalítico não obriga ninguém,
estritamente falando, a adotar a forma de raciocínio de que falo. No entanto, devo
dizer que procurei em vão evidências de que líderes do nosso movimento tenham
alimentado crenças compatíveis com o uso de qualquer outra forma de raciocínio
para além desta forma “científica”. Como eu havia dito anteriormente, a curva de
evolução para a qual este raciocínio aponta é uma linha reta, que começa em lugar
nenhum em particular e acaba particularmente em lugar algum: seguramente, a
produção de um “super-homem” [superman], como nós mesmos – exceto por sermos
melhores em algum grau – não pode ser considerada um objetivo lógico para todos
os nossos esforços e nosso sofrimento.
A terceira forma do processo de raciocínio é aquela que vê o universo não
apenas como uma coleção de indivíduos, não apenas como uma série de objetos ou
forças impessoais relacionadas, mas sim como a expressão parcial da história pessoal
de seres conscientes e, portanto, sempre pensada como uma totalidade unificada.
Esta “totalidade” pode ser vista como subjacente a cada ato, como algo capaz de dar
nova dignidade e significado a cada ato pensado, racional, mesmo no caso de seres
imperfeitos como nós.
A “relatividade” da ciência é aqui transformada em unificação expressiva
[unification expressive] da vontade consciente de seres inteligentes. Independente

Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019. 329


James J. Putnam e as origens do diálogo entre filosofia...

daquilo que um homem fizer, ele o faz acompanhado da vaga consciência de que
seus atos são indistintamente fundamentados sobre o reconhecimento dos vínculos
que o ligam, enquanto ser moral, a todos os demais homens e com a fonte de
energia que subjaz o universo. A terceira forma de raciocínio transforma essa vaga
consciência em uma consciência mais clara; a leva para fora do subconsciente e a
traz para dentro de nosso campo de conhecimento e reconhecimento. Seria inútil
tentar fornecer aqui, nesta breve comunicação, uma descrição mais detalhada dos
pressupostos e das conclusões envolvidos nesta forma de raciocínio. Aqueles que
desejam estudá-los podem encontrar aí ampla oportunidade, e sem este estudo
seria impossível realmente conhecer a mente humana. Podemos, de fato, identificar
muitas das dificuldades [handicaps] das quais sofrem nossos pacientes, mas não
podemos simpatizar com os esforços pelos quais eles buscam se elevar a um plano
melhor.
A dura batalha que os líderes do movimento psicanalítico vêm enfrentando
tem sido uma luta baseada na observação rigorosa, ela mesma ligada, assim penso,
a uma simples fase da evolução. Eles têm trabalhado como estudantes de história
natural e não como filósofos pensadores e, na verdade, tenho pensado com frequência
no parentesco entre a atitude de Freud e a de Darwin. Mas Darwin, ainda que
tenha sido um grande líder, não teve sucesso em estabelecer todas as influências
envolvidas na modificação das espécies; e houve pensadores do mais alto mérito
que chegaram a sustentar que uma fraqueza significativa de sua doutrina reside em
seu escasso reconhecimento da influência da consciência e da vontade humana, por
mais irrepresentáveis [unpicturable] que fossem. O grupo daqueles cujas crenças
e argumentos, se bem conduzidos do ponto de vista lógico, os levariam à solução
deste problema, é maior do que parece. Contém não só homens como Bergson,
que faz de seu poussé vitale75 a influência controladora de cada etapa da evolução
biológica, e Judd, o hábil psicólogo de Chicago76, que recentemente escreveu sobre
a influência da consciência e da vontade na evolução da mente e das instituições
humanas, mas também os melhores representantes atuais da economia política,
que romperam definitivamente com as doutrinas laissez-faire de Ricardo e Adam

75 [N.T. Conceito associado à noção de Élan vital, desenvolvida em 1907 pelo filósofo francês
Henri Bergson na importante obra Évolution créatrice. A este respeito, ver a parte final do
primeiro capítulo da obra em questão, “De l’évolution de la vie – mécanisme et finalité”, onde o
conceito de Élan vital será diretamente abordado e discutido, em: Bergson, H. (1907). L’évolu-
tion créatrice. Paris: Felix Alcan, 403 p. Esta obra será citada por Putnam na versão alemã de seu
artigo].
76 [N.T. Charles Hubbard Judd (1873-1946), psicólogo e educador norte-americano, realizou
parte de sua formação na Universidade de Leipzig, sob a orientação de Wilhelm Wundt. Na
época, Judd era professor na Universidade de Chicago, tendo publicado em 1903 a obra Gene-
tic psychology for teachers. Em 1909, o mesmo autor fará uma comunicação diante da American
Psychological Association com o título “Evolução e consciência”, que será publicada um ano mais
tarde em: Judd, C.H. (1910). “Evolution and consciousness”, Psychological Review, 17, pp. 77-
97. Acreditamos que Putnam esteja fazendo referência a este artigo na passagem em questão].

330 Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019.


Weiny César Freitas Pinto / Caio Padovan

Smith e que aprenderam a reconhecer que os conflitos da vontade e do sentimento


moral dos homens conscientes de um destino mais elevado, não podem ser tratados
como equivalentes aos conflitos de interesse próprio. Enfim, e o mais importante,
entre aqueles que defendem a validade da vontade estão os seguidores de Platão e
Aristóteles, de Kant e Hegel, e todos os mais profundos pensadores do mundo.
Eu já disse que o apelo que tenho feito é por um estudo mais aprofundado
de métodos e resultados filosóficos por aqueles que praticam a psicanálise, por uma
utilização sistemática dos conhecimentos assim adquiridos em nossa prática clínica
cotidiana com nossos pacientes. Mas embora esteja pronto a assumir esta posição,
não o faço senão sob a forma de protesto. Alguém poderia se sentir inclinado a
dizer que, na medida em que todo progresso terapêutico ocorre gradualmente, basta
que o paciente veja ou sinta a existência de um objetivo a uma curta distância à
sua frente. Enquanto ele tiver algo que o leve a se esforçar, presume-se que ele
não precise vislumbrar o objetivo último e distante, mesmo que este seja mais
nobre. Um dever que se encontra ao seu alcance, que ele pode entender e que teria
condições de realizar, será então estabelecido como um motivo muito mais real que
uma exigência mais obscura, que ele não seria capaz de entender completamente.
Na verdade, contudo, não acredito que este princípio terapêutico seja sólido. O
sentimento bíblico de que “as pessoas que não tiverem visão perecerão da face da
Terra”77 é uma expressão mais próxima e precisa da verdade. Se eu estiver certo em
acreditar que todo homem tem uma intuição mais ou menos clara de que há algo
nele que o torna semelhante à energia criadora do universo, que seu senso de dever
é um dos elementos deste algo, e se essa intuição pode ser aprofundada por um
processo de autoanálise, então estaremos sem dúvida prestando um grande serviço
ao ajudá-lo a avançar neste tipo de análise.
Enfim, acredito que há causas mais profundas envolvidas no trabalho de
produção de mitos do que os conflitos entre os instintos infantis e as emoções
baseadas em experiências corporais e desejos. Tais causas residem na própria
constituição da mente, que faz com que sua influência seja sentida mesmo no início
da vida e, a partir de então, em todos os atos mentais.
Nenhum ato, nenhuma tentativa de expressão ou experiência, pode ocorrer
sem dar origem a um sentimento de incompletude mediante o qual a mente
reconhece, por um lado, que ela é mais do que se pode definir enquanto ser e,
por outro, que ela deve prosseguir, sem descanso, tentando definir a si mesma. Em

77 [N.T. No original: “the people who do not see visions shall perish from the face of the earth”.
Referência de Putnam aos provérbios de Salomão, mais precisamente ao décimo-oitavo verso
do vigésimo-nono provérbio. Na passagem correspondente da versão inglesa da Bíblia do Rei
Jaime, podemos ler: “Where there is no vision, the people perish; but he that keepeth the law,
happy is he” (Onde não há visão, o povo perece; mas aquele que conserva a lei, feliz ele é). A
noção de “visão” deve ser entendida aqui no sentido de “revelação”, encontrando assim paralelo
na ideia de conhecimento irrepresentável].

Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019. 331


James J. Putnam e as origens do diálogo entre filosofia...

cada ato, a mente toma distância de si mesma, apenas para voltar a si própria e se
redescobrir. A obscura realização deste processo de tomada de distância e de retorno
encontra sua expressão simbólica no fenômeno constante de recorrência a mitos
ligados ao Sol, assim como no esforço, no fracasso e na perseverança, observados
em muitos mitos de deuses e heróis. Não só os mitos em si mesmos são simbólicos;
os próprios instintos da infância, que têm sido atualmente usados para explicar os
mitos, são símbolos desses processos mentais mais profundos que se encontram por
detrás deles.
Nós, que praticamos a psicanálise, aprendemos a reconhecer muito bem o
significado do simbolismo. Devemos, então, mais que quaisquer outros, ser capazes
de perceber que estes elementos primários fundamentais, constituintes implacáveis
de cada ato mental, devem conter símbolos que são necessariamente mais profundos
que os demais.

Revista digital: www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/modernoscontemporaneos

This is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License.

332 Modernos & Contemporâneos, Campinas, v. 3, n. 6., jul./dez., 2019.

Você também pode gostar