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UFF- Universidade Federal Fluminense

Departamento de Filosofia

Grupo de Estudos: Filosofia e Religião no Helenismo


Professor: Marcus Reis Pinheiro
Aluno: Henrique Castro de Almeida
Data: 16 de abril de 2012

Estoicismo e Vedanta
Introdução

Ao entrarmos em contato com qualquer tradição filosófica da antiguidade, pensando-a como


uma forma de vida, podemos sempre nos perguntar sobre o valor que há em, ainda hoje, buscá-la e
em que medida isso é possível. Buscando responder esta questão no caso específico do Estoicismo,
Pierre Hadot aponta um caráter perene e universal desta tradição. Ele afirma que é possível, ainda
hoje, para o homem contemporâneo se nutrir destes modelos de vida – propostos não só pelos
estóicos, mas pela filosofia antiga como um todo –, pois existe neles, além do seu caráter cultural e
histórico, um caráter imperecível e universal que pode sempre ser reatualizado:

Ser-me-á perguntado assim como se pode explicar que, apesar dos séculos e da evolução do mundo, os modelos
antigos podem sempre ser reatualizados. Antes de tudo, como dizia Nietzsche, porque as escolas antigas são
espécies de laboratórios de experimentação, graças aos quais podemos comparar as consequências dos diferentes
tipos de experiência espiritual que propõem. Desse ponto de vista, a pluralidade de escolas antigas é preciosa. Os
modelos que elas nos propõem só podem, contudo, ser reatualizados caso sejam reconduzidos à sua essência, à
sua significação profunda, destacando-os de seus elementos caducos, cosmológicos ou míticos, e recuperando as
posições fundamentais que as próprias escolas consideravam essenciais. Pode-se ir mais longe. Penso que esses
modelos correspondem, como já disse alhures a atitudes permanentes e fundamentais que se impõem a todo ser
humano que procura sabedoria.1

Sendo assim, para reconduzirmos estes modelos de vida propostos pela filosofia antiga à sua
essência e distinguir seus aspectos cosmológicos ou míticos ultrapassados é muito importante poder
comparar estes modelos uns com os outros. Quando os comparamos estas tradições fica nítido
aquilo que constitui o seu âmago, pois é aquilo que afinal não muda. Assim, parece que muitas
vezes, no estudo de certas tradições, elas acabam por se esclarecerem umas as outras e isso fica
ainda mais nítido quando se trata de tradições filosóficas vindas de culturas diferentes:

Como já disse, fui por muito tempo avesso à filosofia comparada, porque pensava que poderia criar confusões e
aproximações arbitrárias. Mas me parece agora, ao ler os trabalhos de meus colegas G. Bugault, R.-P. Droit, M.
Hulin, J.-L. Solère, que há realmente analogias perturbadoras entre as atitudes filosóficas da Antiguidade e as do
Oriente, analogias que não podem ser explicadas por influências históricas mas, em todo caso, permitem talvez
melhor compreender tudo o que pode estar implicado nas atitudes filosóficas que se esclarecem, assim, umas às
outras.2

Estas similaridades, entretanto, algumas vezes são tão impactantes, que o exemplo Indiano pode ajudar nossa
compreensão sobre a Grécia e o Grego nossa compreensão da Índia. 3

Pensando na filosofia antiga como forma de vida, pretendo comparar a tradição grega do
Estoicismo com a tradição hindu conhecida como Vedanta a fim de ressaltar suas semelhanças e

1
HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga?, Edições Loyola, 2004, p.390.
2
Id. Ibidem. P.390-391.
3
INGALLS, Daniel H. H. Cynics and Pāśupatas: The Seeking of Dishonor, The Harvard Theological Review, Vol. 55, No. 4 (Oct.,
1962), pp. 281-298

1
assim tentar compreender melhor esta atitude filosófica, que entre os gregos foi chamada de
“estoica”. Para a tradição dos estoicos, tomarei como referência principalmente Epiteto e Marco
Aurélio, os últimos grandes representantes do Estoicismo. Para a tradição do Vedanta tomarei como
referência as Upanishads e, sobretudo a Bhagavad Gita.
São duas tradições que falam sobre a mesma experiência e sobre uma mesma escolha de
vida em linguagens diferentes e a partir de culturas também muito diferentes. Por um lado, o
Estoicismo, como fruto da cultura grega, possui uma tendência lógica e organizadora que nos
permite raciocinar e justificar com mais clareza esta escolha de vida. Por outro lado, a linguagem da
Gita e das Upanishads, além de trazer um vigor próprio da poesia e da mística, traz muitas imagens
e formas arcaicas de expressão que enriquecem nossa compreensão sobre esta atitude “estóica”.

O Estoicismo e os três exercícios

O Estoicismo tem sua origem no início do século III antes da nossa era num dos períodos
mais ricos da história da filosofia. Dentre as tradições deste período helenístico o estoicismo pode
ser visto como uma reunião da ética de Sócrates, da física de Heráclito, da dialética dos Megáricos e
ainda do espírito dos Cínicos. Os estóicos, como legítimos herdeiros de Sócrates, tinham como
objetivo último a felicidade através da conquista da excelência. Consequentemente, é preciso dizer,
viam a filosofia, antes de tudo, como uma arte de viver. Assim, esta excelência consistia numa vida
de acordo com a Natureza e, ao mesmo tempo, numa espécie de autossuficiência e
imperturbabilidade. Como a Natureza, por sua vez, para os estóicos é sinônimo de Razão, viver de
acordo com a Natureza é viver em alinhamento com a Razão. O que se conclui a partir desta visão é
que para alcançar a felicidade, o homem não precisa de absolutamente nada que já não esteja em si
mesmo, isto é, sua própria capacidade racional. É preciso apenas estar em acordo consigo mesmo.
Tudo o mais é indiferente, no sentido de que não pode tornar alguém feliz ou infeliz.
Contudo, para melhor compreendermos todas estas conclusões a que chegaram os Estoicos,
não devemos toma-las como advindas simplesmente da razão especulativa. Com efeito, a filosofia
estoica é, antes de tudo, uma escolha de vida, que se baseia numa experiência. Essa experiência é a
da consciência da própria mortalidade, da limitação e transitoriedade de todas as coisas. Como dizia
Sêneca em uma de suas cartas: “Nós que sonhávamos com a imortalidade somos obrigados a
encarar a morte.”1 E eles de fato a encaram com a sua filosofia. Quero dizer com isso que é
unicamente diante desta experiência de limitação e impermanência que o estoico é movido a fazer a
sua escolha. Ele escolhe, assim, descobrir um caminho que o leve à imperturbabilidade total:

O tempo da vida humana: um ponto. Sua substância: um fluxo. Suas sensações: trevas. A composição de todo o
corpo: corrupção. Sua alma: um turbilhão. Sua Sorte: imprevisível. Seu renome: incerto. Em uma palavra, tudo
que é do corpo é como um rio; o que é da alma, sonho e fumaça; a vida é uma guerra, a etapa de uma viagem; a
fama póstuma: esquecimento. O que, então, pode servir-nos de guia? Apenas uma única coisa: a filosofia. [...]
(M.A. II. 17.)

Chamo atenção para isso, pois este ponto de partida é um dos vários fatores que aproxima o
Estoicismo do Vedanta. Ambos partem da mesma experiência de limitação e impermanência em
busca de uma satisfação duradoura, de um refúgio invulnerável. É assim que a poesia de Krishna
soa na Bhagavad Gita:

Aqueles prazeres que nascem do contato [dos sentidos] são somente geradores de infelicidade, possuem inicio e
fim, ó Kaunteya [Arjuna]. O sábio não se entretém com eles. (B.G. 5.22.)

Agora voltemos aos estoicos. Tendo como ponto de partida esta experiência, buscando uma
filosofia que os faça livres e invulneráveis, os estóicos irão aos poucos desenvolver sua doutrina.

1
SÊNECA, Lúcio Anneo. Aprendendo a viver, Editora L&PM Pocket, janeiro de 2009, p.114. (Cartas a Lucílio n°101)

2
Continuando a passagem citada anteriormente, Marco Aurélio descreve a filosofia da seguinte
maneira:

[...] E ela consiste em preservar o gênio interior invulnerável, impassível, mais forte que os prazeres e dores,
nada fazendo ao acaso ou com falsidade e hipocrisia, independente das ações que outros fazem ou deixam de
fazer. Mais ainda, consiste em receber com graciosidade tudo que acontece e que lhe é destinado, seja o que for,
considerando-o como proveniente da mesma fonte de onde o próprio homem tem sua origem. E, acima de tudo,
consiste em aguardar a morte com serenidade, não vendo nela mais que a dissolução dos elementos de que todas
as coisas são constituídas. Se para os elementos não há nada de terrível em se transformarem incessantemente,
porque um homem deveria temer a transformação e dissolução de todas as coisas? Pois isto tudo está de acordo
com a Natureza, e no que está de acordo com a Natureza não pode haver mal algum. (M.A. II. 17.)

Outra descrição que pode nos ajudar a entender a escolha de vida estoica é a que nos dá
Epiteto logo no início do Manual. Aqui ele faz a conhecida distinção entre o que depende e o que
não depende de nós:

Algumas coisas dependem de nós e outras não dependem de nós. O que depende de nós são: julgamento
(hypolēpseis), impulso à ação (hormē) e desejo (orexis) ou aversão; em uma palavra, tudo aquilo que são nossas
próprias ações. O que não depende de nós são: corpo, riqueza, reputação e altos cargos; em uma palavra, tudo
aquilo que não são nossas próprias ações. As coisas que dependem de nós são por natureza livres, ilimitadas, sem
obstáculos, mas aquelas que não dependem de nós são deficientes, condicionadas, limitadas, pertencendo a
outros. Lembre-se, portanto, que se você supor que as coisas que são condicionadas por natureza sejam também
livres, e que o que depende de outros seja seu, você estará aprisionado. Você lamentará, se perturbará e achará
falhas tanto nos deuses quanto nos homens. Porém, se você supuser seu somente aquilo que depende de ti, e o
que depende de outros como é na realidade, jamais alguém poderá te forçar a algo ou limitá-lo. Mais ainda, você
não achará falhas em ninguém nem acusará ninguém. Você não fará nada contra sua vontade. Ninguém te
machucará, você não terá inimigos, não será atingido. [...] (Ep. Manual. 1)

Com esta distinção, Epiteto declara a possibilidade da autossuficiência e o valor absoluto da


moral. Pois a ideia aqui é que o homem, em si mesmo, não é aprisionado por nada, a não ser por
seus falsos juízos. Pois, independentemente de tudo que possa lhe acontecer externamente, nada
pode impedir o filósofo de julgar, agir, e desejar de acordo com a Natureza. Em outras palavras,
nada pode impedi-lo de alcançar a excelência e a felicidade.
Nesta mesma passagem, temos outra distinção feita por Epiteto, que será importante para a
comparação que faremos com a Bhagavad Gita. Trata-se da distinção entre as três atividades da
alma. Esta distinção, de certa forma, é uma marca própria que Epiteto deixa na tradição estoica. As
três atividades são: julgamento (hypolēpseis), impulso à ação (hormē) e desejo (orexis). De fato,
além destas três atividades não existe nada a mais que dependa de nós. Por isso, não se deve
estranhar, como veremos mais adiante, que na cultura hindu também se encontre exatamente a
mesma demarcação destas três “capacidades” humanas: capacidade de conhecer (jñana śakti), de
agir (kriya śakti) e de desejar (iccha śakti).
Voltando a Epiteto, então, tendo delimitado e analisado a esfera relativa ao que depende de
nós, naturalmente, estas três atividades da alma se tornam também os três âmbitos onde o filosofo
deverá se exercitar para alcançar a excelência:

Existem três domínios (topos) nos quais aquele que deseja tornar-se perfeito deve se exercitar:
[1] O domínio dos desejos (orexis) e aversões, de forma que ele não se encontre frustrado em seus desejos e não
esbarre com aquilo que desejava evitar;
[2] O domínio dos impulsos ativos (hormē) e repulsões que é em geral, o domínio que se relaciona com o que é
apropriado à nossa natureza, de forma que ele possa agir de forma ordenada em conformidade com a razão e
sem negligência;
[3] O domínio no qual o que importa é preservar-se do erro e das razões insuficientes, que é, de maneira geral,
aquele que diz respeito ao assentimento (synkatatheseis). (Ep. Disc. III. 2.1-2)

Estes três âmbitos abrangem integralmente o modo de vida estoico. O que estes três
“exercícios”, como serão denominados por Pierre Hadot, tem de inovador com relação ao
Estoicismo mais antigo reside simplesmente no desdobramento do âmbito do agir. Pois, a distinção

3
entre a capacidade de julgar o valor das coisas e a capacidade de atuar no mundo já existia e
corresponderia, nos termos comuns à época, a distinção dos campos da Lógica e da Ética,
respectivamente. Contudo, o homem com suas ações não pode determinar inteiramente o resultado
destas ações, pois este resultado depende de muitos fatores externos que dizem respeito às próprias
leis da Natureza. Sendo assim, pertence ao homem não apenas o agir, mas também o receber os
resultados, que podem vir de acordo ou não com seus desejos. Assim, Epiteto desdobra o “fazer”,
em dois pontos: a ação propriamente dita e o receber o resultado, o exercício da ação e o exercício
do desejo. Esta última integra o conhecimento da Física, pois, para aceitar com equanimidade tudo
que o mundo nos apresenta, é necessária uma visão maior acerca da Physis, a Natureza, para que se
saiba que Nela nada ocorre que não seja adequado.
Embora esta inovação na linguagem de Epiteto não acrescente nem modifique em nada a
tradição estoica, ela tem uma vantagem didática. Temos agora, como contribuição dessa sutileza de
Epiteto um encaixe perfeito dos “três exercícios” da filosofia vivida com as “três áreas” do discurso
filosófico: os exercícios do julgamento, da ação, e do desejo, correspondem respectivamente à
Lógica, a Ética e a Física:

[...] a doutrina dos três topoi, ou exercícios-temas vividos, aparece nos ensinamentos de Epiteto como o
desenvolvimento final da teoria estoica das três partes da filosofia. Epiteto enuncia um discurso filosófico tendo
como tema estas três partes, mas ao mesmo tempo também as encontra na vida diária dos filósofos. Aqui, elas
assumem a forma dos três exercícios-temas, ligados às três atividades da alma; pois o exercício do desejo só é
possível por meio daquela consciência através da qual o filósofo considera a si mesmo como parte do Todo
cósmico [física]. Da mesma maneira, o exercício dos impulsos só é possível por meio daquela consciência
através da qual o filósofo descobre seu lugar dentro da comunidade humana [ética]; enquanto o exercício do
assentimento é possível apenas por meio daquela consciência através da qual o filósofo descobre
simultaneamente, por um lado, sua liberdade com relação às representações, e, por outro, as rigorosas leis da
Razão [lógica]. [...] A doutrina dos três exercícios-temas, disciplinas, ou regras de vida, assim, contém em si
mesma a completa essência do Estoicismo, recapitulada de maneira grandiosa. Ela convida o ser humano a uma
completa reversão em sua visão do mundo e em sua forma tradicional de viver. 1

Para finalizar, agora que já vimos brevemente no que consistem os três exercícios de
Epiteto, poderemos entendê-los melhor ao observar algumas formas nas quais eles aparecem nas
Meditações de Marco Aurélio:

“Nós devemos”, ele diz, “descobrir a verdadeira arte do assentimento (synkatathesei); e, no âmbito dos nossos
impulsos (hormē), estar atentos para que eles sejam de acordo com a apropriada reserva; que eles tenham em
vista o bem do nosso próximo; que eles sejam de acordo com o apropriado valor. E nós devemos nos abster
completamente dos desejos (orexis) desordenados, e de mostrar aversão em nenhuma das coisas que não estão
sob nosso controle.” (M.A. XI. 37.)

Toda natureza se satisfaz consigo mesma quando segue bem o seu caminho; a natureza racional segue bem o seu
caminho quando nas suas representações (phantasiais) não dá assentimento (synkatatheseis) a nada que seja
falso ou obscuro; dirige seus impulsos (hormē) somente às ações para o bem comum e limita seus desejos
(orexis) e aversões apenas às coisas que estão sob seu poder, e recebe com gratidão tudo o que a Natureza
Universal lhe apresenta. (M.A. VIII. 7.)

Você tem três relacionamentos: primeiro, com o veículo no qual está contido; segundo, com a Causa divina de
onde provem todas as coisas; e terceiro, com aqueles que vivem contigo. (M.A. VIII. 27.)

Apague sua representação (phantasia), vigie seu impulso à ação (hormē), elimine seu desejo (orexis).
Mantenha seu princípio-guia (hēgemonikon) sob seu poder. (M.A. IX. 7.)

Constantemente e, se possível, em cada representação, aplica a física (φυσιολογεῖν), a ética (παθολογεῖν), e a


lógica (διαλεκτικεύεσθαι). (M.A. VIII. 13)

1
HADOT, Pierre. The Inner Citadel, Harvard University Press, 2001, p.98.

4
Vedanta: as Upanishads e a Bhagavad Gita

Vedanta é uma tradição hindu que tem por base, entre seus textos principais, as Upanishads e
a Bhagavad Gita. As Upanishads são textos encontrados no final de cada um dos quatro Vedas e por
isso o nome Vedanta (veda = conhecimento, anta =final). Ao contrário da outra parte dos Vedas, que
trata de vários temas relacionados a ações e rituais, a parte final dos Vedas trata do questionamento
e conhecimento acerca do “eu” (ātmā). Estes textos, antes de serem escritos, faziam parte de uma
tradição oral – e na verdade ainda fazem – que segundo alguns estudiosos pode ser bem anterior ao
primeiro milênio antes da nossa era. Na maioria das vezes, aparecem na forma de diálogos entre
mestres e discípulos numa espécie de “ambiente escolar”, onde alguma pergunta feita por um aluno
dá inicio ao ensinamento. Em linguagem muito poética e enigmática, os Upanishads afirmam em
aforismos uma realidade não dual, a identidade essencial entre o individuo e o absoluto e como
através desse conhecimento o sábio se torna livre de limitações. Os comentadores que dão
continuidade a tradição, dão-na um caráter mais rigoroso definindo os significados possíveis para
cada palavra das Upanishads e também dos demais textos. Ainda assim, os textos por si mesmos são
considerados insuficientes, sendo assim indispensável para a compreensão de Vedanta, o “escutar” e
conviver por certo tempo com um mestre capacitado.
Aparentemente mais recente, a Bhagavad Gita, também composta em sânscrito, não tem
nenhum nome ligado a sua autoria, e provavelmente foi posta por escrito antes do século V a.C. O
nome bhagavadgītā significa “a canção do Senhor”. Originalmente, ela está inserida dentro do
conhecido épico hindu Mahābhārata, mas se destacou tanto que acabou por se tornar um livro
independente. Assim, a Gita compreende o diálogo entre Krishna, um rei-sábio que é a própria
encarnação divina, e o seu primo e mais tarde discípulo, Arjuna, da casta dos guerreiros e
governantes. São setecentos versos em poesia metrificada que sintetizam a doutrina das Upanishads.
No entanto, ela possui uma característica distintiva e é por isso que ela será aqui o ponto principal
da comparação com o Estoicismo. Pois ela trata não apenas do conhecimento do “eu” não dual, mas
também de karmayoga (pronuncia-se kárma yôga), um modo de vida para aqueles que buscam a
sabedoria, muito semelhante ao modo de vida estoico.

O karmayoga e os três exercícios do Estoicismo

Arjuna sofre, pois toma consciência, assim como os Estóicos, do seu destino trágico. Esta
tomada de consciência vem à tona com a situação crítica com que ele se depara. Ele descobre que
num mundo impermanente, incessantemente oscilante entre pares de opostos, marcado pela morte,
nada poderá trazer uma satisfação duradoura. Pois todo ganho parece envolver alguma perda
simultânea. Mesmo que conquiste tudo que alguém poderia desejar, no seu caso “um reinado
próspero e sem rivais”, ainda assim, ele vê que não seria suficiente. Assim, a Gita, o canto de
Krishna, nasce como uma resposta a esse sofrimento de Arjuna. De fato, em Vedanta se diz que esse
é um ensinamento que deve ser pedido. Não é algo a ser divulgado ou imposto. Somente para
aqueles que já se questionaram de alguma maneira e então buscam esta sabedoria como solução
para o problema do sofrimento é que se ensina sobre Vedanta. Aqui podemos novamente relacionar
essa visão do Vedanta, com a visão estoica de Marco Aurélio, que vê a filosofia como uma espécie
de medicina da alma:

[...] Não busques a filosofia como um menino busca o seu professor (paidagogon) mas, sim como recorrem à
esponja e à clara de ovo os que sofrem da vista, à cataplasmas ou às duchas outros doentes. Dessa forma verás
que não te é difícil obedecer à razão. Antes, nela acharás repouso. [...] (M.A. V. 9.)

Assim como Marco Aurélio, Arjuna, tomado por uma consciência aguda da impermanência
de todas as coisas, e da consequente ausência de um bem duradouro, pede a Krishna que o ensine
sobre esse bem maior.

5
Peço-lhe, de maneira definitiva, ensine-me aquilo que é meu bem maior (śreyaḥ). Sou seu discípulo, ensine-me,
estou entregue a você. Não vejo o que eliminará a tristeza que seca os meus sentidos, mesmo se eu obtivesse um
reinado próspero e sem rivais na terra ou o domínio das criaturas celestiais. (B.G. 2.7-8)

Krishna corresponde ao pedido de Arjuna e começa a lhe ensinar. Confirma que o universo é
impermanente e que todas as coisas oscilam em pares de opostos, “frio e calor, prazer e dor”.
Contudo, “como se estivesse sorrindo”, acrescenta que o consequente sofrimento de Arjuna é
ilegítimo; ele se entristece por algo que não tem a capacidade de causar sofrimento. A solução para
seu sofrimento, portanto, é uma questão de entendimento. O sábio não sofre com a impermanência.
Assim como para os estoicos, o sábio é indiferente e “permanece o mesmo na dor e no prazer
(samaduḥkhasukhaṃ)”. Assim, o sofrimento de Arjuna é ilegítimo porque, da mesma forma que no
Estoicismo, as coisas não são boas ou más em si mesmas, e todo sofrimento é fruto de uma não
sabedoria, um erro de julgamento.
Apesar disso, o mestre da Gita, não o aconselha a se retirar da sociedade para se dedicar
exclusivamente ao conhecimento, como era comum naquela época. Pelo contrário, ele o incentiva a
atuar na sociedade, no seu caso, a lutar. Mas Krishna o ensina que esse agir na sociedade deve ser
feito de uma maneira especial. Não é preciso deixar de lado as ações comuns para se tornar um
sábio, mas apenas mudar a atitude com que elas são feitas, tomando cada ação como uma
oportunidade de se exercitar para a excelência.
Esse modo especial de agir é o modo de vida proposto pelo Vedanta e que se aproxima em
muitos sentidos do modo de vida proposto pelos estoicos. E, assim como este modo de vida estoico
será descrito nos três exercícios de Epiteto, o modo de vida proposto pelo Vedanta será ensinado no
karmayoga da Bhagavad Gita. Após falar sobre o conhecimento do eu não dual, a Gita introduz no
seguinte verso o conceito de karmayoga como o modo de vida daquele que busca a sabedoria:

Esse conhecimento do ātmā (eu) foi transmitido a você, mas agora escute este sobre o yoga. Possuindo este
conhecimento, ó Partha [Arjuna], você deixará de lado a limitação inerente à ação (karmabandhaṃ). (B.G. 2.39)

A “limitação inerente à ação” se refere ao fato de que a maioria dos homens executa cada
ação motivado unicamente pelo resultado. Tendo como a coisa mais importante o resultado das
ações, o homem está aprisionado, pois está apegado a algo fora do seu poder. Para se livrar deste
aprisionamento deve-se deixar o apego a querer controlar os resultados, mantendo-se o mesmo
diante do que quer que aconteça:
Sua escolha é somente quanto à ação, jamais quanto ao resultado. Não queira ser a causa do resultado da ação,
tampouco esteja sujeito à inação. [Estando] firme no yoga, faça ações abandonando o apego, tendo a mesma
atitude frente ao sucesso e ao fracasso. Ó Dhanañjaya [Arjuna], a atitude de equilíbrio (samatvaṃ) é chamada
yoga. (B.G. 2.47-48)

Além da capacidade de receber com equanimidade tudo o que acontece, a atitude de


karmayoga também requer que o agir seja feito da maneira adequada. Não se deve estar “sujeito à
inação”:

Assim como os não sábios agem apegados à ação, da mesma forma, livre de apego, o sábio deve agir com o
desejo de proteger as pessoas, ó Bhārata [Arjuna]. (BG 3.25)

Nestes versos, podemos notar que este modo de vida chamado yoga pode ser dividido em
dois aspectos. Em primeiro lugar, envolve o exercício de receber com equanimidade tudo o que
acontece, sem apego aos resultados. Em segundo lugar, envolve a disposição de agir de acordo com
a justiça (dharma). Assim, estas duas atitudes se assemelham perfeitamente ao exercício do desejo e
o exercício da ação nos estóicos:

Faço alguma coisa? Faço-a tendo em vista o bem comum da humanidade. Acontece-me alguma coisa? Acolho-a
tendo em vista os Deuses e a Fonte de todos as seres, de onde provém, interligadas, todas as coisas. (M.A.
VIII.23.)

6
Imperturbabilidade (ataraxia) em tudo que ocorre provindo da Causa externa. Justiça em tudo o que a tua
própria Causa interna te impele a fazer. [...] (M.A. IX. 31.)

[...] Mantendo tudo isso em sua mente, não pense em nada mais agora, senão em fazer aquilo que tua natureza te
ordena e a aceitar aquilo que lhe traz a Natureza do Todo. (M.A. XII. 32.)

Essa divisão em dois aspectos é bem clara na Gita, e mais ainda a partir do comentário de
Shankara que lhes dá o nome de “atitude receptiva” (prasāda buddhi) e “atitude de oferecimento”
(īsvarārpaṇa buddhi). É claro que tanto no Estoicismo quanto em Vedanta a atitude implicada
nestas propostas de vida constitui uma unidade e, no momento da ação, uma parte não se dá sem as
outras. Sendo assim, esta divisão em três ou dois aspectos, mais do que qualquer outra coisa, é uma
ferramenta teórica para o ensino e também uma ferramenta de organização psicológica para aquele
que se exercita. Assim, não se pode dizer que a atitude de karmayoga seja diferente da atitude
estoica pelo fato de não aludir ao exercício do julgamento, pois este está necessariamente implicado
nos exercícios da ação e do desejo. Mesmo nos estoicos, como vimos nas passagens acima, na
maioria das vezes se alude apenas ao exercício da ação e do desejo, deixando o exercício do
julgamento implícito, e, outras vezes, enfoca-se apenas um deles. Na seguinte passagem de Epiteto,
podemos ver um exemplo desta unicidade das três atividades da alma, e a presença implícita do
exercício do julgamento nos outros dois exercícios.

O que diz Zeus? “Epiteto, se tivesse sido possível eu teria feito tanto este seu insignificante corpo como esta sua
pequena propriedade livres e não sujeitos a obstáculos. Mas, como acontece – e não deixe que isto te escape –,
este corpo não é seu, mas apenas um barro engenhosamente composto. Assim, embora não pudesse lhe dar isto,
nós lhe demos uma certa porção de nós, esta faculdade de impulso a agir (ὁρμητικήν) ou não, de desejo
(ὀρεκτικήν) e aversão, ou, em uma palavra, a faculdade que usa as impressões externas. Se você cuidar dela e
fizer com que tudo que você possua consista apenas nela, você nunca será restringido, nunca impedido, não irá
reclamar, culpar, nunca terá que lisonjear alguém. E então? Estas coisas te parecem pequenas?” Longe de mim!
“Então, você está satisfeito com elas?” Oro aos deuses que eu esteja. (EP. Discourses, I.1)

Deus e a visão cósmica

Algo que este modo de vida proposto pelas duas tradições tem em comum, como talvez já
tenha sido notado, é que, tanto a atitude estoica como a atitude de karmayoga, depende diretamente
de uma visão clara acerca da Natureza, que é Deus. Trata-se de um exercitar-se em manter em todos
os momentos, uma visão maior, uma visão cósmica. Envolve trazer para a vida prática a
compreensão de Deus que, em ambos os casos, é imanente e transcendente, causa material e causa
inteligente do universo.

A pessoa alcança a “excelência” (siddhim) reverenciando, através das “próprias ações”, Aquele que é a origem
de todos os seres e pelo qual tudo isto é permeado. (B.G. 18.46.)

Seja alguém que tem a mente sempre em Mim, mentalmente entregando todas as ações a Mim, tendo a Mim
como o [objetivo] mais importante [e] refugiando-se em karmayoga. (B.G. 18.57.)

O modo de alcançar essa “excelência” é através de uma vida de karmayoga, em que se


exercita essa visão cósmica por meio das “próprias ações”. Isto é, toda e qualquer ação é tomada
como oportunidade de contemplação. Mantendo sempre a lembrança em Deus, as ações são feitas
como oferecimentos, na tentativa de harmonizar sua própria ação individual com o movimento do
Todo. Assim, por exemplo, antes da ação cotidiana de alimentar-se, costuma-se até hoje cantar
alguns versos da Gita. Eles evocam uma visão cósmica em que a comida, o estômago que digere a
comida e aquele que executa a ação de comer são vistos como fazendo parte de uma unidade que é
Deus. Assim, diante desta visão ampliada, a simples ação de se alimentar se transforma num ritual.
O deleite maior e o objetivo em cada ação passa a não ser mais o prazer corporal individual mas, a

7
comunhão com Deus e com a Natureza. Este exercício de tentar liberar-se de um ponto de vista
individual e parcial para um ponto de vista maior é karmayoga.
Igualmente na escolha de vida estoica, a excelência depende da compreensão da Natureza,
ou em outras palavras, da lembrança de Deus.
Tenha seu deleite e seu descanso nesta única coisa: passar de uma ação comum à outra ação comum, lembrando-
se de Deus. (M.A. VI. 7.)

Tendo isto em mente, como sou uma parte [do Todo], não serei desagradado por nada que tenha vindo a mim do
Todo. Pois o que é vantajoso para o todo não pode ser desvantajoso para a parte. E o Todo nada contém que não
seja vantajoso para si; e todas as naturezas tem isto em comum, porém, a Natureza Universal é dotada com a
propriedade adicional de nunca se ver forçada por qualquer causa externa a engendrar algo danoso a si mesma.
Enquanto lembrar que sou uma parte de tal Todo, estarei sempre confortável com tudo que acontece.
(M.A. X. 6.)

Este constante “lembrar-se” de Deus, muito além de um simples esforço de memória,


consiste num exercício em que o praticante acaba por adquirir o próprio ponto de vista de Deus. É
assim que Marco Aurélio, em um de seus exercícios, diz a si mesmo: “Tome uma visão de pássaro
sobre o mundo” (IX. 9). A sabedoria é essa visão de pássaro que se assemelha ou até mesmo se
funde com a visão de Deus. O tornar-se sábio, que é a finalidade destes exercícios, tanto no
Estoicismo como no Vedanta implica em fazer coincidir sua própria alma com a Razão universal ou
Deus:
[...] A Alma de Deus e as almas dos homens e de toda criatura racional tem estas duas características em
comum:[1] não se deixar perturbar e ser impedido por outro e [2] ter como bem unicamente a intenção e a
prática da justiça não desejando nada mais além disso. (M.A. V. 34.)

Neste verso podemos observar que os dois exercícios principais da atitude estóica, o
exercício do desejo [1] e o exercício da ação[2] tem como modelo a alma de Deus. Também na
Bhagavad Gita, podemos observar que a atitude de karmayoga também tem a atividade divina como
modelo. A ação criativa de Deus, isto é, o primeiro movimento, parece ser o modelo por excelência
de uma ação livre de apego. O homem comum age movido por um sentimento de carência, e age
para se completar. Deus é completo em si mesmo, e assim sua ação é pura criação, um
transbordamento de si mesmo.

Ó Pārtha [Arjuna], para Mim, não há nada a ser feito. Nos três mundos, nada [existe] para ser alcançado que já
não tenha sido alcançado. Mesmo assim Eu me entrego à ação. (B.G. 3.22.)

Esta capacidade de agir como um transbordar se reflete na generosidade do sábio que age
sem apego, a partir de uma completude e também no filósofo que se exercita em direcionar todas
as suas ações para o bem comum. A outra capacidade que o sábio compartilha com Deus é a de
imperturbabilidade. Assim como Deus não depende da criação, pois já é completo em si mesmo, o
sábio também devido a seu estado de plenitude é capaz de receber com equanimidade qualquer
que seja o resultado de sua ação sem se perturbar.
Porém, essas ações não aprisionam a Mim, ó Dhanañjaya [Arjuna], que permaneço como alguém indiferente
(udāsīnavat āsīnam), livre do apego a essas ações. (B.G. 9.9.)

Ações não Me afetam. Para mim, não há anseio pelo resultado da ação. Então, aquele que Me conhece muito
bem não está aprisionado pela ação. (B.G. 4.14.)

Nesta última frase, vemos que o objetivo de karmayoga que é “libertar-se das limitações da
ação” é alcançado através deste conhecimento. Com efeito, ao exercitar-se por meio da vida estoica
ou por meio da vida de karmayoga, sempre recebendo tudo que acontece com equanimidade e
sempre agindo em contribuição para o bem comum, mantendo a visão cósmica sempre em mente, o
filósofo quer assemelhar-se ao Todo e retornar à sua unidade original com Ele:

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Aqueles que abandonaram o apego, o medo e a raiva, que são idênticos a mim [em conhecimento], que buscam
refúgio em mim, que são purificados pela disciplina do conhecimento (jñānatapasā), muitos retornam a Minha
natureza. (B.G. 4.10.)

Você já viu uma mão ou um pé amputados, ou uma cabeça separada do tronco, caídas à alguma distância do resto
do corpo. A mesma coisa faz a si mesmo, tanto quanto pode, quem não aceita o que lhe acontece e se separa da
comunhão social ou age em desacordo com o bem comum. Você se afastou da unidade da Natureza (physin
henoseos), pois nasceu como parte desta e agora amputou a si mesmo. No entanto, o mais admirável é que você
pode novamente retornar a essa unidade. A nenhuma outra parte Deus concedeu esta possibilidade de voltar a
unir-se, depois de ter se separado. Perceba a bondade com que ele elevou o homem! Deu-lhe o poder de nunca se
separar do Todo, e, caso se separe, de retornar, reincorporando-se e retomando sua posição como parte. (M.A.
VIII. 34.)

Aquele cuja mente está integrada através do yoga, que tem a visão da identidade em todos os seres, vê o Atma
em todos os seres e todos os seres no atma. [...] Aquele que, permanecendo na visão do um, alcança a Mim, que
estou em todos os seres, esse yogi está em Mim, qualquer que seja sua forma de vida. (B.G. 4.29-31)

[...] Aquele que se move na mesma direção e para os mesmo fins que Deus é de fato um homem divino. (M.A.
XII.13.)

Conclusão

Comparando brevemente a tradição estoica com a tradição do Vedanta, podemos encontrar


nestes modos de vida uma unidade fundamental. Tanto a vida estoica como a vida de karmayoga
consiste numa escolha que parte da consciência da morte e da impermanência de todas as coisas.
Consequentemente, é a busca de um refúgio invulnerável, de uma satisfação duradoura que só serão
encontrados naquilo que ninguém pode tirar do homem: sua capacidade intelectual. Refugiando-se
dentro de si mesmo, através do intelecto, o estoico e o karmayogī buscam se tornar imperturbáveis,
além da morte e dos pares de opostos.
Contudo, não será apenas na maneira como o homem se relaciona consigo mesmo, através
do intelecto, que estes modos de vida irão operar suas transformações, mas igualmente na maneira
como o homem se relaciona com os outros homens e com a Natureza.
Assim como no exercício do julgamento, na relação do homem consigo mesmo, ele se
submete as leis da Razão, agora, no exercício da ação, ao relacionar-se com o resto da humanidade,
ele se submete a lei da Justiça. Nesta atitude de oferecimento todas as suas ações são feitas tendo
em vista o bem comum e seu papel dentro da sociedade, deixando de lado a parcialidade.
Por fim, na sua relação com o que lhe vem da Natureza, o buscador se exercita na atitude
receptiva ou exercício do desejo. Compreendendo os atributos da Natureza do Todo, e que enquanto
indivíduo não se está separado dela, ele se submete a suas leis, e aprende a não desejar as coisas que
não pode controlar, recebendo com equanimidade o que quer que seja.
Além disso, como vimos, esta operação de reposicionamento nas três relações – consigo
mesmo, com a humanidade e com a Natureza –, tanto dentro do Estoicismo como em Vedanta,
depende diretamente de uma visão de Deus. Nas duas tradições, este Deus não está separado da
Natureza e consequentemente não está separado de nós. Fazemos parte do seu corpo e
compartilhamos com ele a capacidade intelectual através da qual podemos nos assemelhar e unir a
ele.
Diante de tais semelhanças fundamentais, as duas tradições se esclarecem reciprocamente.
Uma coisa que fica clara, por exemplo, é que a dupla ênfase da Bhagavad Gita na atitude de
oferecimento das ações e na atitude receptiva quanto ao resultado das ações, assim como a dupla
ênfase de Marco Aurélio e Epiteto no exercício da ação e no exercício do desejo, não é arbitrária,
pois correspondem a duas relações inerentes a experiência humana:

Os meios que nos permitem chegar à paz interior e à comunhão com os outros homens ou com o universo não
são ilimitados. Talvez devamos dizer que a escolha de vida que descrevemos, as de Sócrates, de Pirro, de
Epicuro, dos estoicos, dos cínicos, dos céticos, correspondem a algumas espécies de modelos constantes e

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universais que se reencontram sob formas próprias a cada civilização nas diferentes regiões culturais da
humanidade.1

Assim, é compreensível que estes modos de vida filosóficos da antiguidade exerçam seu
fascínio sobre nós, e que possam ser ainda hoje reatualizados, pois há neles algo de universal que é
próprio a experiência humana. Mas, para que possam ser reatualizados, é útil o estudo conjunto de
diversas escolas e tradições, para que possamos discriminar os elementos formais e ultrapassáveis
dos elementos básicos que constituem as posições essenciais destas tradições. Principalmente no
caso de tradições “mortas” como o Estoicismo, se nos interessamos em praticar o modo de vida que
elas nos propõem, para o reatualizarmos precisamos nos concentrar nos seus pontos fundamentais.
Com efeito, o próprio Marco Aurélio nos dá um exemplo de que a prática da filosofia, entendida
como forma de vida, ultrapassa até mesmo as maiores oposições das filosofias em seus elementos
particulares:

Ou existe uma única fonte inteligente de onde, como em um único corpo, todas as outras coisas procedem – e a
parte não deve lamentar-se pelo que acontece devido ao interesse do Todo –, ou o que existe são átomos, e nada a
não ser confusão e dispersão. Por que então se perturbar? [...] (IX, 39)

[...] Em suma, se há um Deus, tudo está bem; se reina o Acaso, que tu também não se movas ao acaso. (IX, 28)

Índice

Introdução................................................................................................................... ......1
O Estoicismo e os três exercícios.......................................................................................2
Vedanta: as Upanishads e a Bhagavad Gita............................................................................5
O karmayoga e os três exercícios do Estoicismo...............................................................5
Deus e a visão cósmica......................................................................................................7
Conclusão...........................................................................................................................9

Bibliografia

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EPICTETUS. The Discourses as reported by Arrian(III e IV), Fragmentes, Encheiridion, Volume II, Harvard University
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LAÉRCIO, Diógenes. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, Editora Universidade de Brasília 2ª edição, reimpressão
2008.
MARCUS AURELIUS. Meditations. Harvard University Press, 1916. Edited and Translated by C. R. Haines, Loeb
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MARCO AURÉLIO. Meditações. Introdução, tradução e notas de Jaime Bruna. Editora Cultrix, São Paulo, 1989.
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INGALLS, Daniel H. H. Cynics and Pāśupatas: The Seeking of Dishonor, The Harvard Theological Review, Vol. 55,
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McEVILLEY, Thomas. The Shape of Ancient Thought, Comparative Studies in Greek and Indian Philosophies, New
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ELIADE, Mircea. Yoga: Imortalidade e Liberdade, Editora Palas Athena, 3ª edição, 2004.
ELIADE, Mircea. O Mito do Eterno Retorno, Edições 70, 1981.
Bhagavadgītā, volumes I, II e III, Tradução e comentários de Gloria Arieira, Rio de Janeiro, Vidya-Mandir, 1ª edição,
2009 (volume I) e 2010 (volume II) e 2011 (volume III).
Bhagavadgītā with commentary of śankarācārya, translated by Swami Gambhirananda, Advaita Ashrama, Eight
Impression, May 2010.

1
HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga?, Edições Loyola, 2004, p.391.

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