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A Queda do Homem

Publicado porMarcelo Berti5 abril , 2010Publicado


emGênesisTags:Gênesis, Pecado, Queda
 
 
 
 
 
 
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Falar na Queda do Homem é tratar do mais trágico evento da


história da humanidade, pois todas as tragédias posteriores são
devidas a essa. Nenhuma forma de ação humana contrária ao
caráter de Deus pode ser encontrada fora das origens do
pecado na história do homem. Nenhuma forma de mal vista na
história do homem é mais trágica do que a que vemos aqui,
pois é aqui que nascem todas as desventuras da humanidade.

Alguns objetariam a isso por ser demais simplista com a


realidade, uma vez que grandes e terríveis males tem se
sucedido à humanidade, especialmente na história recente.
Contudo, o defeito fundamental do ser humano e do mundo é
demonstrado em sua desconexão com Seu Criador e com sua
Rejeição à Sua Palavra. Tal atitude vista em Adão e Eva, repetida
diariamente é a evidência fundamental dessa desconexão do
homem com o Seu Criador. Por isso, o evento narrado aqui é o
mais trágico evento da humanidade.

É interessante que é nesse capítulo que encontramos razões


para entender como aquela Criação Boa dos capítulos
anteriores se tornou aquela criação sujeita à vaidade que
encontramos nos capítulos seguintes. Sobre isso, Calvino nos
instrui:

Neste capítulo, Moisés explica que o homem depois de ter sido


enganado por Satanás se rebelou contra o seu Criador, tornou-se
totalmente mudado e degenerado, a ponto de a imagem de
Deus, no qual ele tinha sido formado, ter sido destruída. Ele,
então, declara que o mundo inteiro, que tinha sido criado para o
bem do homem, caiu junto com ele da sua posição primária, e
que neste estado muito de sua excelência natural foi destruída[1]

Alguns têm dito que tal capítulo não tem um compromisso com
fatos (como os anteriores), pois a intenção não é descrever um
evento, mas explicar um fato por meio de uma história fictícia.
Por outro lado, já temos demonstrado como as escrituras
tratam de Adão e sua história de modo a considerá-lo uma
pessoal real. Também já temos demonstrado que o as verdades
expostas nos primeiros capítulos, se acompanhadas de uma boa
leitura, não oferecem problemas à mente inquieta do homem
contemporâneo.

Introdução

Antes de tratarmos do conteúdo do capítulo, chamo sua


atenção para três detalhes importantes, que não foram
examinados com atenção até aqui: (1) A Serpente; (2) A árvore
do conhecimento do bem e do mal e (3) a Lei de Deus no Éden.

1.         Serpente:

A nova personagem que aparece no relato de Gênesis três é a


serpente. Muitas interpretações têm sido dadas a ela. Alguns
pensam que ela é uma apenas uma alusão a Satanás,
entretanto, a condenação feita à serpente inclui o animal
(rastejar). Outros defendem que, como esse relato é um mito, a
serpente simboliza a maldade oposta ao criador, por outro lado,
as escrituras se referem a esse evento como fato. Outros
preferem supor que a Serpente é de fato um animal que teria
sido possuído por Satanás. Gaebelein defende essa posição,
observe:

É evidente que essa criatura não era, então, um réptil, como a


serpente de hoje. A maldição da serpente a coloca no pó. Esta
criatura que Satanás possuía era talvez ainda mais bonita, de
modo a ser de grande atração para a mulher[2].

Particularmente, não tenho problemas com a idéia de que a


serpente seja de fato um animal possuído por Satanás, e
provavelmente essa é a forma  mais simples de se compreender
o texto. O termo hebraico “n¹µ¹sh” significa basicamente
“serpente”, e é utilizada cerca de 54 vezes em todo o AT. O
autor que mais usa o termo é Moisés (9x em Gen e 5x em Num).
Desses usos, cinco deles estão no terceiro capítulo de Gênesis
(3.1, 2, 4, 13, 14).

Todas as ocorrências desse termo nesse capítulo fazem


referência ao animal com quem Eva inicia uma conversa em 3.1.
O termo empregado pela LXX para serpente é “ofis”, que Paulo
usa para aludir a esse evento em 2Co.11.3:

Mas receio que, assim  como a serpente enganou a Eva com a sua
astúcia, assim também seja corrompida a vossa mente e se
aparte da simplicidade e pureza devidas a Cristo.

Esse termo no NT é usado literalmente e com sentido figurado,


como por exemplo, na ocasião em que Jesus chama os fariseus
de víboras (Mt.23.33). Do mesmo modo que seu cognato
hebraico, apenas poucas vezes o sentido do tempo é positivo
(Sl 54:4-5; Ec 10:11; Jr 8:17).

Outro detalhe que merece nossa atenção é que “n¹µ¹sh”


também é o termo que descreve, em Jó e em Isaías o que
conhecemos como leviatã ou dragão (Jo.26.13; Is.27.1),
dependendo da tradução. Mais interessante ainda é que em
Apocalipse, ambas as descrições são dadas a Satanás:

E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama


diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado
para a terra, e, com ele, os seus anjos (Ap.12:9)

Assim, podemos ter certeza que o Moisés aqui faz uma simples
referência a Satanás que posteriormente é ampliada nas
escrituras. Por outro lado, não posso deixar de compreender
que tal serpente seja de fato uma espécie de animal, tal como
descrito em Gênesis 3.1. Muito embora tal declaração pareça
mais uma vez simplista, entendo que a condenação da serpente
por Deus inclui tanto ao animal (rastejarás) como à Satanás
(este te ferirá a cabeça).

Concordam com essa opinião Jamieson, A. R. Fausset e David


Brown, observe:

“Que a serpente é um animal real é evidente pelo modo simples


e não artístico da história e pelas muitas alusões a ela feitas no
Novo Testamento. Mas, a serpente foi um instrumento, ou
ferramenta de um agente maior, Satanás ou o Diabo, a quem os
autores sagrados aplicam,  a partir desse incidente, o reprovável
nome de dragão, a antiga serpente[3]”
2.         A árvore do conhecimento do bem e do mal:

As opiniões sobre a árvore do bem e do mal são diversas e


provavelmente não há consenso entre teólogos sobre sua
natureza. Alguns comentaristas preferem entende-las como um
símbolo. E.F. Kevan, defende:

”Não se trata de árvores misteriosas, capazes de comunicar vida


ou conhecimento, mas sim de  símbolos das realidades
espirituais. A árvore do conhecimento do bem e do mal foi a
árvore que serviu de prova à lealdade e à obediência do homem
a vontade do Seu Criador, dando-lhes pelo menos a entender a
diferença entre o bem e o mal[4]”.

É bem verdade que o literalismo aqui parece tratar com extrema


simplicidade tão controvertido tema, mas há de se convir que o
autor parece considerá-lo um fato. Seja como for, temos que
reconhecer que o próprio Deus criou tal árvore e, Ele mesmo, a
plantou no Éden:

“E plantou o SENHOR Deus um jardim no Éden, na direção do


Oriente, e pôs nele o homem que havia formado. Do solo  fez o
SENHOR Deus brotar  toda sorte de árvores agradáveis à vista e
boas para alimento; e também  a árvore da vida no meio do
jardim e a árvore do conhecimento do bem e do
mal  (Gen  2:8  ARA)”

Mais controvertida que a própria árvore e sua natureza, é a


questão do por que seria necessária a existência de tal árvore?
Nesse momento, descartamos a possibilidade de que o autor
falasse em um símbolo, pois entendemos que tais árvores foram
plantadas por Deus. Isso acentua a dificuldade em se responder
a pergunta já lançada: Se não trata-se de um símbolo, mas de
uma árvores real, por que o Yahweh Elohim (Senhor Deus)
plantaria no Éden (paraíso) e a colocaria à disposição do
homem que havia criado à Sua Imagem e Semelhança? Ao
refletir sobre o assunto, Adam Clarke escreveu:

“Mas como poderia a aquisição de tal faculdade ser um pecado?


Ou podemos supor que faculdade poderia faltar-lhe quando o
homem estava em um estado de perfeição? Para isso, podemos
responder: A proibição se destina a exercer a faculdade [moral]
do homem, e isto deve constantemente ensinar-lhe esta lição de
moral, que havia algumas coisas que são adequadas e outras
inadequadas   para se realizar, e que, em referência a este ponto,
a própria árvore deve ser tanto um professor como monitor
constantemente. A ingestão de seu fruto não teria aumentado
essa faculdade moral, mas a proibição se destina a exercer a
faculdade que ele já possuía[5]”

Em outras palavras, Clarke demonstra que a questão não era


acrescer nada ao homem como está, pois entende que o
homem estava em estado de perfeição. Desse modo, nada lhe
faltava, exceto a perseverança, que é uma faculdade a ser
exercida. A santidade original do homem estava completa na
criação original, mas a possibilidade de desenvolvimento moral
e espiritual lhe foi concedida com a criação de tal árvore. Sem
ela, o desenvolvimento seria inviável.

Impressiona-me o fato de que Clarke perceba um sentido


positivo à árvore, pois ela lhe ensinaria constantemente a
necessidade de se confiar nas palavras de Deus e lhe
monitoraria suas disposições mentais. Entretanto, as escrituras
defendem que a apresentação de tal árvore pela serpente foi
tão efetiva que o desejo de ter entendimento tomou conta do
ser humano.
Bom, que podemos aprender com a árvore do conhecimento
do bem e do mal? Com isso, Clyde Francisco nos ajuda:

“Freqüentemente, o homem moderno é inclinado a pensar que o


conhecimento (cultura) resolverá os seus problemas. Contudo,
com toda a cultura que a nossa geração obteve, não somos na
maioria, tão realizados quanto os nossos antepassados. Gênesis
está dizendo que quando a buscado conhecimento substitui a
confiança na palavra de Deus, o naufrágio é inevitável. O
conhecimento, que é potencialmente bom, destruirá o homem
que não tem a fé, para entendê-lo ou direcioná-lo[6]”.

3.         A Lei de Deus no Éden:

Uma das informações mais importantes que encontramos no


início de Gênesis é o conceito legal que a Palavra de Deus tem.
Por ser Ele Criador de todas as coisas, é também Juiz de Todos
os atos e por isso, a expressão da Sua vontade constituísse
como Regra, Padrão, Canon, Lei para a Criatura.

É interessante notar que o conceito de Lei sempre exige o


reconhecimento de um Legislador que tem pode para Impor e
que com tal imposição demonstra seu caráter. Para ilustrar esse
fato, o convido a imaginar por um momento um síndico de um
condomínio que o  permite legislar com bem quiser. Após
pouco tempo, tal síndico teria prescrito algumas regras para o
condomínio, e tais regras falam sobre quem ele é. Se ele
defendesse a lei do silêncio, saberíamos que ele tem preferência
ao bom convívio, que é reservado, ou até que prefere dormir
cedo. Se ele defendesse a lei da não entrada de visitantes após
as 22h no condomínio, poderíamos inferir que ele tem excessiva
preocupação com segurança, ou que é xenofóbico. De qualquer
forma, as leis que prescrever irão falar adequadamente sobre
seu caráter e pessoa.
Esse mesmo sentido é expresso por diferentes terminologias em
diferentes idiomas. Seja em grego, hebraico ou latim, os termos
que descrevem o conceito de lei pressupõe um legislador que
tem poder/autoridade para impor e que tal imposição
demonstra seu caráter. Observe:

Conceituação Hebraica: A terminologia hebraica para descrever


Lei favorece nossa compreensão de que Lei exige um legislador.
Três palavras são principalmente usadas em Hebraico para
descrever uma lei/legislação:

1. Mitsvah: O termo é originado de “tsavah” que significa


basicamente ordenar. Observe que Deus ordenou a existência
do mundo (Sl.33.9; Is.45.12) e por essa razão todas as criaturas e
elementos lhe obedecem as ordens (1Re.17.4; Jó.37.12; Sl.78.23).
Deus dirige o curso da história, pois ordenas os eventos
(Lm.3.37) e providencia meios para que seja realizado o que Ele
determina (Ex.31.6; 36.1). Esse é o termo usado em 2.16. Assim,
o termo “Mistvah” assume clara conotação de ordem, como
estipulações específicas da Aliança (Ex.24.12) e por isso violá-los
implica em culpa (Lv.4).
2. Chuq: É normalmente traduzido como estatuto decretos,
ordenanças, dever e obrigação. É visto como uma regra ou
prescrição imposta por Deus (Ex.18.16), embora homens
também possam decretar seus estatutos (Gn..47.26;
2Cr.35.25; Jz.11.39; Ez.20.18; 1Sm.30.25). Em geral implica em
deveres e direitos (Sl.2.27).
3. Torah: O sentido básico do termo é ensinar. Em função da
relação com “yarah”, diversas vezes retrata o ensino de Deus
para com seus servos (Ex.4.15; Sl.25.8; 27.11; 86.11; 119.33). Tal
sentido aproxima ainda mais o conceito de que a Palavra, que
deve ser ensinada (Lv.10.11; Dt.33.10), e a Lei que provém de
Deus (Is.1.10).
Em todos os casos, Lei pressupõe um Legislador, e as palavras
Hebraicas utilizadas para descrever a ação de Deus em ordenar
refletem o caráter Legal da Vontade de Deus.

Conceituação Grega: Em grego, fenômeno similar acontece,


pois os termos que descrevem o conceito de Lei também
carregam em si uma designação de Vontade Pessoa e
Poder/Autoridade para impor Sua Vontade. Três termos são
considerados:

1. Prostagma: Significa basicamente ordem, mandamento. É


utilizada na LXX para traduzir Choq no Hebraico. O termo
provém de “prós” (ante de) e “tagma” (ordem, organizar –
1Co14.40) evidenciando mais uma vez a idéia de que Lei é uma
declaração de vontade imposta com poder para ordenar.
2. Nomós: Esse é o termo mais usado no NT para descrever
Lei. Provém do termo Nemo, e é usado de cinco modos
diferentes:
1. De modo genérico, pode se referir a qualquer lei
judicial (Rm 7.1);
2. Como regra que coordena ações e princípios
(Rm.7.23)
3. Refere-se ao sistema de leis do AT
(Jo.18.31; At.23.29), ou ainda mais especificamente para a Torá,
a Lei de Moisés (Lc.2.22);
4. Refere-se especificamente aos cinco primeiros livros
do AT (Mt 12.5; Gl 3.10b) ou até mesmo a todos os livros do AT
(Mt.5.18; Rm.3.19);
5. Pode também se referir figuradamente à Nova
Aliança, o Evangelho Cristão estabelecendo novos princípios
para governar a vida espiritual (Rm 8.2a; Hb 10.16)
3. Nemo:  O significado básico do termo é dispensar ou
atribuir no grego clássico, mas é usado freqüentemente na LXX
como descrição da ação do Pastor ao cuidar de suas ovelhas:
Apascentar. Seja como for, a ação pressuposta por esse verbo
sugere capacidade para cuidar, exercer poder, orientar e
dispensar, atribuir, todas características volitivas pessoais.

Conceituação Latina: Em Latim o termo básico para descrever


Lei é a palavra Lex. Tal termo provém do termo grego “lego” (eu
digo) como algo dito por alguém. Ou seja, em Latim, uma Lei
sempre pressupõe um legislador pessoal que tem autoridade
para impor. É um dito autoritário que representa de forma
escrita a vontade de um legislador.

Tendo observado em diferentes idiomas o conceito de Lei,


observa-se alguns princípios essenciais que constroem o
conceito do termo:

1. Lei implica na existência moral e volitiva do Legislador


2. Lei é a expressão da vontade do legislador;
3. Lei é a expressão do caráter do legislador;
4. Lei é a determinação moral que tem poder para impor
limites morais.

Tendo isso em mente, podemos dizer que o termo Lei não está
presente na cena da Criação, mas o conceito de Lei permeia
todas as atividades de Deus na Criação e no Seu
relacionamento com Adão e Eva. O fato de que Deus, com sua
palavra, ordena e tudo vem a existência indica que tipo de
poder para ordenar esse Deus tem. Por isso, sua legislação deve
se leva à sério.

Em outras palavras, podemos encontrar na cena da Criação


evidências da manifestação da vontade restritiva e permissiva
de Deus e que a omissão ou violação dessa vontade implica em
violação do Caráter do Criador, e, por conseguinte, em pecado.
Ordens e Responsabilidades: Todas as declarações abaixo são
descrições das bênçãos de Deus para a humanidade e por
conseguinte o estabelecimento de um padrão moral esperado
da humanidade. Portanto,digo mais uma vez, a violação desses
princípios seria considerados como violação do Caráter e da
Vontade de Deus, e portanto, pecado:

1. Sede fecundos e multiplicai: É interessante que a violação


da fertilidade ordenada por Deus foi a razão pelo qual Deus
matou Onã: “Sabia, porém, Onã que o filho não seria tido por
seu; e todas as vezes que possuía a mulher de seu irmão  deixava
o sêmen cair na terra, para não dar descendência a seu
irmão.  Isso, porém,  que fazia, era mau perante o SENHOR, pelo
que também a este fez morrer” (Gn.38.8-9)
2. Enchei a terra: Note que a violação desse mandamento foi
a razão pela qual Deus proferiu o juízo contra Babel: “Vinde,
edifiquemos para nós uma cidade e uma torre cujo tope chegue
até aos céus e tornemos célebre o nosso nome,  para que não
sejamos espalhados por toda a terra” (Gn.11.4). “Destarte, o
SENHOR  os dispersou dali pela superfície da terra; e cessaram de
edificar a cidade” (11.8).
3. Sujeitai a terra: Em função do cuidado realizado pelo
homem no jardim, conforme esperado por Deus (Gn.2.5, 15),
me sugere que tal expectativa (ou até mesmo descrição de
propósito), caso não fosse cumprida, também seria uma
violação da vontade de Deus.
4. Dominai sobre a Criação: Na descrição dessa
bênção/responsabilidade Deus evidencia que o domínio do
homem deveria ser sobre os peixes (seres aquáticos), aves
(seres que voam) e por todos os que estão em terra, cobrindo
assim todas as áreas que o homem deveria, mas a expressão
“sobre todo animal que rasteja pela terra” (v.28) me sugere uma
antecipação aos eventos narrados no início do capítulo 3.
5. Liberdade: Esse conceito de duas declarações de Deus
sobre a alimentação do homem, a primeira como permissão
(Gn.1.19-30) e outra como ordem (Gn.2.16). Essa declaração de
liberdade pronunciada pelo Criador é compatível com Seu
Caráter de oferecer às suas criaturas um ambiente de que lhe
permitisse e a escolha e a preferência para a alimentação.
Corromper tal liberdade seria um pecado, e limitá-la uma
manifestação da punição de Deus ao homem (Gn.3.19, 23).

Chama-me a atenção o fato de que todas as essas declarações


tem tom de ordem, por serem descritas no imperativo, ou por
virem acompanhadas pela palavra ordem (tsavah – Gn.2.16). Por
isso, considero que todas as essas declarações falam sobre a Lei
de Deus no Éden, como demonstração do Seu Caráter e Pessoa,
mas não como única manifestação de si mesmo, pois sabemos
que ele também se manifestava pessoalmente a Adão e Eva
(Gn.3.8)

Contudo, devemos ter atenção àquela declaração que Deus


acusa o homem de ter violado. Embora pudéssemos até
considerar que o domínio do homem sobre a criação não tenha
sido realizado na cena da queda, ou que eles não estavam
preparados para agir de acordo com a expectativa de Deus para
a situação, o que se tem por certo é que queda de fato ocorreu
na violação da ordem negativa de Deus.

Proibição e Conseqüências:

1. Não coma da árvore do bem e do mal: Essa declaração é


clara, mas seu conteúdo parece não ter sido bem absorvida por
Eva, como veremos com mais atenção à frente. Mas, a
intensidade da frase demonstra claramente uma lei, uma ordem
(hb. tsavah).
2. Certamente morrerás: É importante demonstrar o modo
como se entende essa frase. Literalmente lemos assim: “no dia
em que dele comer, morrendo morrerás” (hb. muth thmuth). O
uso seguido do mesmo termo demonstra claramente o sentido
da expressão: Morte certa. Outro já inferem no fato de que aqui
Deus preanuncia a Morte Eterna, uma vez que parece existir
uma morte após essa. Por outro lado, é mais natural esperar da
língua hebraica a repetição de idéias como ênfase da
mensagem.

Com isso podemos afirmar com certeza que a o Pecado poderia


ter-se encontrado na Violação da Proibição ou na Omissão das
Obrigações. Ou seja, caso o homem deixasse de realizar aquilo
que tinha sido chamado para realizar (multiplica, encher a terra)
também seria considerado uma violação da Vontade de Deus
para o homem, e por conseguinte, uma violação do Caráter
Moral do Criador e, é claro, pecado passível de morte.

Assim, iniciamos nossas observações a esse capítulo,


considerando as seguintes palavras de Deffinbaug:

“Ele descreve a entrada do pecado na raça humana e a


gravidade das conseqüências da desobediência do homem. Mas,
além da pecaminosidade do homem e das penalidades que ela
exige, há a revelação da graça de Deus. Ele busca o pecador e lhe
providencia uma vestimenta por causa do pecado. Ele promete
um Salvador através do qual todo este trágico evento será
tornado em triunfo e salvação[7]”

A.     Três passos para a Queda

O texto de Gênesis capítulo 3 inicia com a aproximação da


Serpente, que temos demonstrado, trata-se de um animal
usado por um agente maior, que nesse caso as Escritura
indicam Satanás. As características apresentadas aqui para
descrever tal ser merecem ser observadas:

Mais sagaz: As Escrituras entendem que tal serpente tinha uma


característica interessante, ela era sagaz.  O termo hebraico
“’arum” significa basicamente astuto. O sentido normalmente é
positivo (Pv.12.23; Jo.15.5), como sensato, prudente, mas é
consenso entre os comentaristas que nessa ocasião o sentido é
negativo (Jo.5.12; 15.20). Derek Kidner define a expressão com
“malévolo brilhantismo[8]”, em função da relação do termo com
a conotação de brilho. A LXX traduz esse termo por “fronimós” e
a Vulgata “callidus”, ambos termos de conotação positiva.

Por outro lado, é interessante que Paulo tenha usado o termo


grego “panourgia” para descrever a serpente em 1Co.11.3. Tal
termo tem apenas o sentido negativo, muito embora o termo
“astúcia”, um termo neutro nesse sentido, tenha sido usado
como tradução. Embora a Vulgata tenha optado por “astutia” o
termo latino que melhor descreve tal termo grego é “malitia”,
de onde obtemos malícia.

Dos animais do campo: A expressão usada para descrever um


animal do campo é “chit eshde”, ambos termos comuns ao
vocabulário de Moisés (77x chay  – Animal; 43x sadeh – do
campo – Apenas em Gênesis). O termo “campo” em nossa
tradução é uma preferência pela distinção entre água e céu,
como Moisés costuma fazer nos primeiros capítulos. É bem
verdade que o termo poderia ter sido entendido como da terra,
no sentido que estava se locomovendo na terra, ou que viesse
da terra, ou até mesmo com sentido mais genérico como a LXX
(Gr. gês) e a Vulgata (lt. terrae) fizeram.
Que o Senhor Deus tinha feito: É interessante a opção de
Moisés em acrescer o nome sagrado de Deus para descrever a
criação de tão vil personagem: Yahweh é o Criador de tal
animal. Aqui mais uma vez a pergunta relativa a permissividade
de Deus ao mal insurge: Por que Deus criaria tal animal que
mais tarde viria a ser usado por Satanás para tentar o homem?

Ao considerarmos a mesma questão com relação à árvore,


adotamos a opinião de Clarke que sugeriu que tal criação
permitia o homem exercitar as faculdades recebidas por Deus
na criação. O ambiente criado por Deus incluía uma dinâmica
de desenvolvimento que se opõe ao que muitos pensam sobre
a perfeição na qual o Éden foi criado.

Tal descrição da serpente fez com que Calvino defendesse que


a serpente tinha por criação a astúcia e sagacidade, e que se
aproveitando de tais características, Satanás as usou para seu
fim destrutivo. Em suas palavras, “Satanás perverteu para seus
próprios fins fraudulentos o dom que tinha sido divinamente à
serpente[9]”.

Essa serpente, brilhantemente malévola, cujas características


naturais foram deturpadas e usadas por Satanás é o pivô
daquele incidente que temos chamado Queda do Homem. Seu
modo de dirigir-se à mulher é tão incisivo e sagazmente
convincente, que o que era proibido tornou-se desejável. Assim,
nesse pequeno diálogo vemos: (1) A ação de Satanás em
deturpar as escrituras e a má compreensão da verdade de Eva;
(2) A permissividade de Eva em deixar-se seduzir pela proposta
da serpente e (3) a aproximação de Eva do fruto proibido, sua
queda e corrupção de Adão.

1.         Deturpe/Ignore as Escrituras


É-me interessante que a Queda tenha acontecido exatamente
por essa razão. A investida da serpente, sagaz é claro, foi
adulterar a Lei de Deus no Éden de tal forma que a violação de
tal ordem tornou-se menos preocupante que o seguir a Lei. Os
impulsos do homem em seu estado de perfeição foram de tal
modo aguçados que, por um momento (o momento anterior a
queda) aquele fruto tornou-se mais importante do que Deus.

É assim que Deus disse: A sentença principal da serpente é a


questão sobre o que diz a Palavra de Deus. As escrituras não
dizem que a serpente estava com Adão quando a ordem de
Deus foi dada, o que sugere que, ou a criação estava a par
desta ordem, ou Satanás estava. Seja como for, essa foi a
primeira vez que se duvidou das palavras de Deus[10]. Kidner
nos diz que tal proposta do tentador “é ao mesmo tempo
perturbador e lisonjeiro; procura impingir a idéia a falsa idéia de
que a Palavra de Deus está sujeita ao nosso julgamento[11]”.

Não comereis e qualquer árvore: A proposta da serpente aqui é


interessante, não é apenas questionar, mas averiguar que tipo
de entendimento Eva tinha da Lei de Deus. A proposta de
Satanás inclui um grande exagero, mas ele inicia a conversa por
estabelecer seu padrão de questionamento: A insinuação. Nesse
momento a serpente está a colocar em dúvida o caráter de
Deus, ao criar um jardim e privar o homem do desfrute de tal
benefício.

A resposta esperada a uma pergunta como essas era um


simples não, e Eva inicia muito bem sua resposta. Observe que
ela é consciente de sua liberdade como criatura para fazer tudo
que estivesse a seu alcance no Éden, exceto comer da árvore
que está no meio do Jardim.
Está no meio do Jardim: Alguns comentaristas têm optado por
imaginar Eva em algum lugar próxima a àrvore quando é
primeiramente abordada pela serpente. Entretanto, pela
resposta que oferece, é bem possível que pelo seu zelo
estivesse distante. Note que ela usa a expressão “está no meio
do jardim” e não “menos essa aqui”. Como o texto não nos
oferece um ponto referencial no tempo para distinguirmos
quanto tempo se sucedeu entre a proposta da serpente e a
queda, é possível que logo Eva tenha se achegado para ver o
fruto proibido.

Disse Deus… nem tocareis nele: É interessante que Eva é capaz


de descrever a ordem de Deus com suas palavras. Entretanto,
tal citação parece acrescer às Palavras de Deus aquilo que Ele
não teria dito. C.H. Mackintosh, sobre isso disse:

“Deus não tinha dito nada acerca de tocar no fruto; de modo


que, quer a sua má citação fosse efeito da ignorância, ou da
indiferença ou o desejo de representar a Deus de um o modo
arbitrário, ou devido às três coisas, é evidente que ela estava  fora
do verdadeiro terreno da confiança simples em sujeição à
Palavra de Deus[12]”.

O modo como Mackintosh trata a posição de Eva é certamente


severo, contudo, sua declaração está em conformidade com sua
visão das escrituras e certamente orientada aos seus leitores
que estavam sendo grandemente influenciados pela
desconfiança na palavra de Deus, vinda da teologia alemã, que
anos mais tarde seria conhecida na Escola da Tübingen.

Por outro lado, o acréscimo de informação debaixo da


expressão “Deus disse” nos faz pensar que Eva teria
desenvolvido um zelo pela ordem de Deus que optava por
manter-se tão afastado da possibilidade de erro que acresceu
tal informação. Essa era, ao menos, a visão dos fariseus: por seu
zelo preferiam tornar mais abrangente suas leis para não correr
em risco contra a Lei de Deus.

Na tradução de J.W. Etheridge do Targum de Onkelos[13] nesse


trecho é bem interessante, ele traz a seguinte leitura para a
frase de Eva: “O Senhor disse: Não como do dele  [o fruto da
árvore do meio do jardim], nem se aproxime dele, para que não
morrais” (PJE Gn.3.3). O mesmo acontece com o suposto
Targum de Jonatas Bem Uziel[14], que opta pela expressão
“nem se aproxime dele” em lugar de “nem toque nele” do texto
hebraico.

A diferença entre os textos é simples: Enquanto o texto


hebraico traz naga`, ambos os traguns trazem qarav. Enquanto
o sentido básico de naga` é é tocar, alcançar, ele também tem o
sentido de aproximar e nesse sentido é usado cerca de 38x no
Antigo Testamento. Deve-se a isso, talvez, a preferência dos
targuns por um sinônimo como uma forma de explicação ao
sentido entendido do texto. Por outro lado, a LXX traz “optö”
que literalmente se entende por “tocar”. A Vulgata optou por
“tangere” que, como a LXX, se entende primariamente como
tocar. Daí nossa as nossas traduções tiraram a idéia de tocar.
Seja como fora, Eva adaptou o entendimento da Lei de Deus a
uma versão que lhe fosse mais agradável. Tal acréscimo, pode
ter muitas fontes, mas o fato é certo: Não era bem isso que
Deus havia dito.

Uma vez que Eva não estava com Adão quando a ordem lhe foi
dada, supomos que ela mesma tenha ouvido dele. Por outro
lado, se a presença de Deus na viração do dia era uma rotina no
Éden, é bem provável que ela tenha ouvido do próprio Deus. O
que é certo, todavia, é que não sabemos como essa transmissão
aconteceu, exceto que ela não foi capaz de citá-la
adequadamente. Mais uma vez, Mackintosh pode nos ajudar:

“Se a Palavra de Deus estivesse escondida no coração de Eva, a


sua resposta podia ter sido direta, simples e concludente. O
verdadeiro meio de enfrentar as perguntas e insinuações de
Satanás é tratá-las como suas com suas e repeli-las com a
Palavra de Deus[15]”

É interessante a opção e Mackintosh, pois tendo por padrão o


todo das escrituras, sabemos que era expectativa de Deus que
seus filhos tivessem suas palavras na memória. Assim,
imaginamos que mesmo fosse o caso com Adão e Eva:
Deveriam ser cônscios de suas responsabilidades perante Deus,
o que Eva não parece demonstrar nesse diálogo. Deve ser por
isso que foi tão suscetível às investidas de Satanás.

Certamente não morrereis: Essa é a sentença final. A mesma


reduplicação de idéias para enfatizar a força da punição
estabelecida por Deus (morrendo morrerás) foi usada pela
serpente, entretanto, acompanhada do advérbio “não”. Nesse
passo a serpente não mais colocou a mulher em dúvida sobre o
que Deus tinha dito, ela adulterou radicalmente o sentido da
frase dita por Deus. A troca de garantia foi feita nessa sentença:
Quem é mais apto para resolver o poder dessa fruta: Eu ou
Deus? Kidner completa por dizer que “é a palavra da serpente
contra a de Deus, e a primeira doutrina a ser distorcida foi a do
juízo[16]”. Sobre isso Deffinbaug afirma:

Podemos estranhar a negação categórica de Satanás, mas, em


minha opinião, foi exatamente isto que enfraqueceu a oposição
de Eva. Como alguém poderia estar errado se tinha tanta
certeza? Hoje, meu amigo, muitos são convencidos mais pelo
tom categórico de um professor do que pela honestidade
doutrinária de seu ensinamento. Dogmatismo não é garantia de
acuidade doutrinária[17]

O Targum supostamente de Jonatas, traz uma leitura


interessante para descrever essa situação. Em sua paráfrase
comentada a serpente teria dito: “Naquela hora a serpente falou
acusação contra o seu Criador, e disse à mulher: Morrendo você
não morrerá,  porque todos os artífices odeiam o filho de sua
arte” (Gn.3.4 – PJE). Em outras palavras, tal paráfrase entende
que a serpente já inicia a incutir na mente de Eva que Seu
Criador na verdade havia proibido tal fruto, não por amor, mas
por ódio. Como se ela estivesse sujeita à essa ordem por
recriminação do prazer e do conhecimento ocultos no benefício
desse fruto. É interessante, que é isso mesmo o que a serpente
faz. Observe o que diz Albert Barnes:

“A serpente agora faz uma afirmação forte e ousada, negando a


eficácia mortífera da árvore, ou a conseqüência fatal de
participação dela afirmando que Deus estava ciente de que no
comer do fruto seus olhos seriam abertos, e que ela seria como
Deus, conhecendo o bem e o mal[18]”

Por que Deus sabe: A acusação da serpente é que Deus tem


consciência dos benefícios e por ser malévolo a priva de
desfrutá-los. Sobre isso, Francisco diz:

“Agora a serpente alega que Deus está privando a mulher de


seus direitos. Deus está conservando-a ignorante, por que não
quer compartilhar sua sabedoria com ela. Além disso, a
serpente assegura-lhe que a ameaça de Deus era vazia: Ela não
morreria[19]”

É interessante que a serpente denomina Deus de “Elohim” (lit.


deuses) mas usa o verbo no singular. Entre todas as mentiras
possíveis para a serpente ela não ousou descaracterizar a
Pessoa de Deus, ou tratá-lo de forma não apropriada. Sua ação
foi muito mais sagaz, ela retirou do Senhor a confiabilidade. Ou
seja, Ele é quem Ele diz ser, mas Ele não disse tudo o que
poderia ter dito sobre o assunto. A serpente defende que
“Elohim sabe”, tem conhecimento do benefício da fruta, que em
última análise é o Ser igual a Deus. Por outro lado, a serpente
evitou suar o nome do Senhor Deus (Yahweh), e sobre isso
Deffinbaug diz:

“O termo Deus (“Deus disse” – verso um) é interessante. Moisés


vinha usando a expressão “O Senhor Deus”, Yahweh Elohim:
“Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos
que o SENHOR Deus tinha feito” (Gênesis 3:1). Mas quando
Satanás se referiu ao Senhor Deus ele simplesmente o fez como
Deus. Esta omissão é indicativa da atitude rebelde de Satanás
diante do Deus Todo-Poderoso”[20]

Abrirão os olhos: Essa é a parte da declaração da serpente que


mais me chama a atenção, pois ela não em si mesma um
declaração falsa, note que o texto apresenta exatamente essa
visão pouco à frente (v.7). Sobre o assunto, Kevan diz:

“A mentira incluía certo elemento de verdade,o que a tornava


ainda mais enganosa (ver v.22).É verdade que o particular da
fruta proibida levaria a fixidez moral, no qual estado,
naturalmente Deus existe; porém, a semelhança com Deus, (…)
supostamente o homem avançaria para uma posição avançada
de perfeição moral e seria confirmado em seu caráter, num
caráter santo. Quanto a esse respeito, a intenção divina é que o
homem fosse como Deus. Mediante o pecado, porém, o
homem atingiu uma diferente espécie de fixidez moral: foi
confirmado o seu caráter, mas esse caráter era mau em sua
qualidade[21]”
É verdade que o abrir os olhos faria parte do resultado da
desobediência, mas essa não era a questão fundamental. A
questão era: O que isso significa? Por um momento, a idéia de
ter os olhos aberto parecia melhor do que ter os olhos fechados
a alguma realidade que até então não se conhecia. Eva não
tinha consciência que seus olhos se abririam à maldade. A
grande maldição da árvore do conhecimento do bem e do mal,
não era o conhecimento em si, mas a capacidade de
conhecimento do bem e do mal. Essa dupla capacidade do ser
humano pós-queda é sua maior desventura: Saber o que é
certo e ter prazer pelo errado. As crises de consciência e todas
as desvirtudes nascem desse potencial.

Sereis como Deus: É interessante essa proposta da serpente e


extremamente tentadora. Na verdade, tal tentação que em
primeiro lugar encheu o coração de Satanás (se achou
iniqüidade em ti – Ez.28.15). Isaías nos diz que o sentimento por
traz de Satanás era:

“Eu subirei ao céu, acima das estrelas de Deus exaltarei meu


trono, e no monte da congregação me assentarei nas
extremidades do Norte, subirei acima das mais altas nuvens
e serei semelhante ao Altíssimo” (Is.14.13-14)

O fato de a serpente ter usado o termo “Elohim” nessa


sentença, tem levado alguns comentaristas a considerar a
possibilidade de que tal oferta seria para ser como um Anjo ou
até mesmo como seres divinos. O Tragum supostamente
realizado por Jonatas faz referência a primeira possibilidade:
“e  você será como os grandes anjos, que são sábios em saber o
bem e o mal”. Kidner considera essa possibilidade em uma nota
de rodapé (pp.64, nr 25). Já a New English Translation (NET)
optou por: “e você será como os seres divinos, que sabem o bem
e o mal”. Em explicação a essa leitura os editores da NET dizem:
“Neste caso, Elohim tem que ser tomado como um plural
numérico referindo a “deuses”, “seres divinos”, pois se o único e
verdadeiro Deus era o referente pretendido, uma forma singular
do particípio quase certamente apareceria como um
modificador. Seguindo esta linha de interpretação, poderíamos
traduzir: ” e você será como os seres divinos, que sabem o bem
e o mal”. O contexto posterior favorece essa tradução, pois em
3:22 Deus diz a um grupo não-identificado “Olhe, o homem se
tornou como um de nós, conhecendo o bem e o mal.” É
provável que Deus está dirigindo sua corte celestial, os
membros dos quais podem ser chamados de “deuses” ou “seres
divinos” do antigo ponto de vista israelita[22]”

A opção do Targum parece representar um ponto de vista mais


antigo, e inclusive substitui o termo “Elohim” por “mal`ak”
utilizada 8x no texto Hebraico de Gênesis em referência a um
ser espiritual, um mensageiro da parte de Deus. De modo
interessante, o termo grego que se empregaria para descrever
esse “mal`ak” seria “angelós”, como acontece diversas vezes em
Gênesis (16.6, 9, 10, 11; 21.17; 22.15; 31.11). Entretanto, a LXX
não utiliza esse conceito aqui (3.5), mas usa “ös Theós” (como
Deus).

Por um lado, a proposta do NET Bible é interessante, pois


coloca um novo cenário diante do diálogo de Deus narrado em
3.22. Por outro, ignora que o contexto já usou diversas vezes o
termos “Elohim” como descrição do próprio Deus e que tal
proposta tem apoio pela própria experiência do tentador.

Contudo, em resposta ao NET Bible, podemos dizer que a


antiga tradição judaica aceitaria ambas as leituras, a do Targum
e da LXX, visto que ambas são obras primariamente judaicas, o
que descaracteriza parte da argumentação em prol de sua
leitura. Vale dizer que em 3.22 não é obrigatório que Deus
esteja falando com seres angélicos, mas consigo mesmo, o
Trino Deus. Sabemos, por revelação do NT, que Cristo foi ativo
na criação do universo e não existe razão para se considerar sua
ausência aqui. Sendo assim, nesse caso, fico com Clarke, Keil e
Delitzsch, Barnes e Calvino. Este, após considerar essas
possibilidades de tradução, concluiu:

“Não tenho dúvidas de que Satanás promete-lhes a divindade,


como se ele tivesse dito, não por outra razão que Deus lhe
defraudou da árvore do conhecimento, porque ele tem medo
de tê-los como companheiros[23]”

Assim podemos concordar com Krell, quando diz:

“É interessante notar que o que a serpente disse sobre Eva a ser


como Deus é uma meia-verdade. Adão e Eva não morreram
imediatamente, e seus olhos se abriram. Ironicamente, ela já era
como Deus, tendo sido feitos à Sua imagem (1:26). Ela fez-se
como Deus na obtenção de um maior conhecimento do bem e
do mal por comer da árvore. No entanto, ela tornou-se menos
como Deus, porque ela não era mais inocente do pecado. Seu
relacionamento com Deus sofreu. Embora ela permaneceu
como Deus não podia mais ficar com Ele. Conseqüente
separação de Deus é a essência da morte[24]”

2.         Permita-se Seduzir

Vemos que as investidas da serpente tem efeito quando lemos


os resultados na vida de Eva. O texto nos diz: “Vendo  a mulher
que a árvore era  boa  para se comer, agradável  aos olhos e
árvore  desejável  para dar entendimento” (v.6). Aquilo que
anteriormente tinha sido completo repúdio (nem tocar era
permitido), tornou-se clara admiração. O poder de persuasão
do tentador está completamente provado: ele é capaz de
reverter o desprezo em apreço.

Vendo a Mulher: Sobre o olhar da mulher, Calvino diz:

Este olhar impuro de Eva, contaminados com o veneno da


concupiscência, tanto era o mensageiro e o testemunho de um
coração impuro. Ela podia anteriormente olhar a árvore com tal
sinceridade, e nenhum desejo de comer afetou sua mente, pois
a fé que tinha na palavra de Deus foi o melhor guardião do seu
coração, e de todos os seus sentidos. Mas agora, depois que o
coração tinha diminuído a fé e a obediência à palavra, ela
corrompeu a si mesmo e todos os seus sentidos, e depravação
foi difundida por todas as partes de sua alma, bem como o seu
corpo[25].

O que é fato é que o modo de ver a violação da Lei de Deus


tomava novas cores. A sentença “certamente morreis” já havia
sido amenizada pela amigável serpente. Deffinbaug sobre isso
fala “Embora ela ainda não tenha comido do fruto, já começou a
cair. Ela entrou em diálogo com Satanás e agora está
acalentando pensamentos blasfemos acerca do caráter de Deus.
Ela está contemplando seriamente a desobediência[26]”.

Boa … Agradável … Desejável: As características que a árvore


recebe nesse verso me chamam a atenção. Ela era boa, mesma
palavra usada por Moisés para descrever o apreço que Deus
tem por sua criação (towb). Ela era agradável e desejável,
descrita com dois termos sinônimos (ta`avah e nekmad). Nesse
momento é que vemos as cores do coração de Eva, que passa a
interagir com a árvore, agora objeto dos seus desejos.

Essa tríade que agrada ao carne, olhos e o entendimento, é uma


das descrições que João usa para descrever o mundo, observe:
“Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo. Se
alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele,  porque
tudo que há no mundo,  a concupiscência da carne,
a  concupiscência dos olhos  e a  soberba da vida, não procede do
Pai, mas procede do mundo” (1Jo.2.15-16). Sobre isso, Krell diz
que o texto demonstra três necessidades fundamentais do
homem, observe:

Em primeiro lugar, física: “boa para se comer.” Este é paralelo


com “a concupiscência da carne”: o desejo de fazer algo
contrário à vontade de Deus (ou seja, “comer o fruto
saboroso”). “Ela vai se sentir bem.” O desejo por comida era
uma parte do que chamou Eva em pecado. O corpo exerce uma
atração sobre nós e o pecado pode usar vários apetites físicos.
Existem vários desejos do corpo, o desejo de vontade, preguiça,
falta de apetite, a ganância por prazer físico, a sexualidade.
Todos estes canais são as que podem ser utilizadas em pecado.

Em segundo lugar, emocional: “deleite para os olhos.” Este é


paralelo com “a concupiscência dos olhos”: o desejo de ter algo
além da vontade de Deus (isto é, possuir o belo fruto). “Parece
bom.” O poder da visão tem uma incrível capacidade de
estimular o desejo de pecado. É mais forte no presente do que
qualquer outro dos sentidos do corpo. Vendo que irá aumentar
o nosso apetite por algo. Há um desejo acrescentar que vem
observando tentações que vêm através da imaginação, agitada
por algo visto. Se Eva sem pecado pudesse ser puxada para
baixo, quanto mais aqueles que nascem pecadores.

Por último, o intelectual: “desejável para dar entendimento”.


Este é paralelo com “a soberba da vida”: o desejo de ser algo
além da vontade de Deus (isto é, tão sábio quanto Deus). “Isso
vai me fazer melhor.” “Eu preciso de algo que eu não tenho que
ser feliz[27]“.
3.         Aproxime-se e faça

Mais do que deixar-se seduzir pelo pecado, Eva foi tragada pela
tentação, de modo que não pecar, a partir desse ponto era
impossível. John Owen, quando fala sobre a tentação, afirma:

Tentação, então, num âmbito geral, é alguma coisa, estado,


modo ou condição que, em qualquer hipótese tem uma força e
eficácia para seduzir e draga a mente e o coração do homem a
obediência exigida por Deus, em qualquer pecado, qualquer
que seja o grau[28]

Muito embora a tentação pudesse ter sido suportada em outras


ocasiões, ou até mesmo pelo desprezo que Eva parecia
manifestar sobre a árvore era de se esperar que ela não
entrasse em tamanho encanto com o pecado. Contudo, não foi
assim. Ao expor-se ao pecado e dar ouvidos ao tentador,
chegou aquele momento, que Owen chama de hora da
tentação, na qual não se tem mais escapatória. Observe o que
ele acredita:

Haverá momento em que as suas solicitações serão mais


urgentes, os convites mais razoáveis, as aspirações mais
gloriosas, as esperanças de recuperação mais aparentes, as
oportunidades mais amplas e abertas, e , enfim, as portas do
mal se tornarão mais atraentes do que nunca. Abençoado é
aquele que estiver preparado para esse momento, pois sem
preparo, não haverá escapatória[29]

Essa era a situação de Eva: Ela foi de tal modo ludibriada que a
queda era um imperativo. Por outro lado nos perguntamos: E o
que aconteceu com Adão? Onde ele estava e por que aceitou
tão fácil a proposta de Eva?
Comeu e deu ao seu marido: Muitas pessoas já tentaram
responder a essa perguntas de modo definitivo, mas ao ler o
texto em nossa versão (ARA) podemos deixar de ver uma
possibilidade assinalada pelo Hebraico, observe:

Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável


aos olhos e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe
do fruto e comeu e deu também ao marido, e ele
comeu (Gen 3:6 ARA)

E viu a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e


agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento;
tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e
ele comeu com ela (Gen 3:6 ACF)

E, vendo a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e


agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento,
tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e
ele comeu com ela (Gen 3:6 ARC)

E viu a mulher que aquela árvore era boa para se comer, e


agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento;
tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e
ele comeu com ela (Gen 3:6 BRP)

Note que à exceção da ARA, todas sugerem que Adão e Eva


teriam comido juntos o fruto, e por que não pensar que eles
estavam juntos ante a exposição da serpente?! É interessante
que os Targuns de Onkelos e o supostamente escrito por
Jonatas trazem exatamente essa descrição, pois não dizem que
eles comeram juntos, mas que Eva deu o fruto ao seu marido
que estava com ela. O mesmo é visto na leitura da LXX.

As versões KJV (King James), NIV e NET são unânimes em


concordância com os Targuns e a LXX a afirmam que Eva deu a
fruta a Adão que estava com ela. A versão em português que
mais se aproxima dessa leitura é a da NVI, que embora não
coloque isso no texto, insere uma nota de rodapé com essa
possibilidade.

A verdade é que o texto hebraico traz a preposição “com” (‘im)


no texto e o modo com se associa tal expressão ao contexto
segue duas possibilidades: (1) Seguindo a sugestão da versões
em português ARC, ARF e BRP, traduzindo como “e ele comeu
com ela”; ou (2) com a leitura das versões inglesas KJV, NIV e
NET, traduzindo como “deu a seu marido que estava com ela”.
Se a primeira for preferida, ainda temos que responder como
Adão teria sido tão suscetível à queda. Por outro lado, se a
segunda for preferida, entendemos que Adão também ouviu a
serpente e deixou-se influenciar por ela do mesmo modo que
Eva.

Tenho a impressão que as leituras dos Targuns e da LXX


representem melhor o modo de leitura do texto e opto pelo
segundo modo de entendimento do texto, assim concordando
com as versões inglesas. Ou seja, também entendo que Adão
estava presente com Eva e com ela foi ludibriado pela serpente.

B.     Três características da Queda

A violação da Lei de Deus certamente traria suas conseqüências.


É bem verdade que a morte não foi instantânea, mas o primeiro
resultado dessa violação foi.

Abriram-se os olhos: Como a serpente havia dito, os olhos de


Adão e Eva se abriram. Kidner diz que “A promessa da serpente
de que se lhe abririam os olhos cumpriu-se a seu modo (cf. 22),
mas foi um grotesco anticlímax do sonho de iluminação[30]”. A
grande pergunta é como isso aconteceu? John Gill com isso nos
ajuda:

“Não de seus corpos, mas suas mentes, de modo a não ter um


conhecimento avançado de coisas agradáveis, rentáveis e útil,
como foi prometido e esperado, mas de coisas muito
desagradáveis e perturbadores. Seus olhos estavam abertos
para ver que eles tinham sido enganados pela serpente, que
tinham quebrado o mandamento de Deus, e assim atraíram a
antipatia de seu Criador e Benevolente Benfeitor, e trouxeram a
ruína e destruição sobre si mesmos, eles viram as bênçãos e
privilégios que haviam perdido: a comunhão com Deus, o
domínio das criaturas, a pureza e a santidade de sua natureza, e
perceberam em que situação de miséria envolveram a eles
mesmo e a sua posteridade[31]”

Perceberam que estavam nus: A primeira descrição sobre a


própria situação foi descrita com essas palavras: Eles estavam
nus. Considerando essa situação, Francisco ironiza: “A serpente
havia dito que eles teriam o conhecimento que Deus possuía. O
que haviam eles aprendido? Que estavam nus. Que profundo!
[32]”. A frustração após o pecado é uma das claras
demonstrações de que ele jamais pode cumprir as promessas
que faz. Toda felicidade prometida pelo pecado antes da queda
torna-se amarga frustração após, pelo simples fato de que o
todo da situação ilustra a falta de Deus na vida do homem e
que tal falta não pode ser resolvida com práticas pecaminosas.
Keil & Delitzsch dizem:

“Foi aqui que a consciência da nudez sugeria pela primeira vez a


necessidade de cobertura, não porque a fruta tinha envenenado
a fonte da vida humana, ou por alguma qualidade inerente
tinham imediatamente corrompido os poderes reprodutivos do
corpo (…) nem porque qualquer mudança física seguiu em
conseqüência da queda, mas por causa da destruição da relação
normal entre corpo e alma pelo pecado; o corpo deixou de ser
a morada de um espírito puro, em comunhão com Deus, e no
estado puramente natural do corpo a consciência não foi
produzido apenas da distinção dos sexos, mas ainda mais da
inutilidade da carne, de modo que o homem e mulher ficaram
envergonhados em presença um do outro, e tentaram esconder
a vergonha de sua nudez espiritual, cobrindo as partes do corpo
através do qual as impurezas são retiradas da natureza[33]”

Coseram folhas de Figueira: A atitude do casal primitivo é


vergonhosa. Na intenção de cobrir suas vergonhas desnudadas
pela consciência do pecado e pela presença da maldade em
ambos, tentaram dar um jeitinho no problema. Se a consciência
de que estavam nus era um problema, basta cobri-la que o
problema será resolvido. “As folhas de figueira são patéticas[34]”
e representam todas as iniciativas desesperadas que aqueles
que acabaram de cair tomam. É o remorso e o impulso de
resolver um problema eterno com uma solução temporária.
Essa é a postura de todo homem após perceber sua violação da
Lei de Deus. É o desespero e o remorso que evidenciam o
tamanho da falta. Sobre isso Krell diz:

“Tendo cometido eles o pecado, agora vivendo com suas


conseqüências imediatas, eles tentam resolver o problema por
eles mesmos. Ao invés de voltar-se para Deus, seu sentimento
de culpa leva os em um processo de auto-expiatório, a auto-
proteção: eles devem se cobrir. Essa é a tendência da
humanidade quando se trata de um relacionamento com Deus.
No entanto, a Bíblia deixa claro que o homem só pode ter um
relacionamento com Deus através da fé simples[35]”

É interessante que a partir desse ponto veremos a ação de Deus


diante de toda essa tragédia. Mas, é preciso perguntar: Onde
estava Deus? Por que não interveio no diálogo da serpente?
Embora só possamos supor, duas considerações podem ser
feitas: (1) Em sua Soberania Deus não apenas plantou a árvore
do bem, mas permitiu o avanço de Satanás no Éden; (2) Deus
havia delegado ao homem responsabilidades e esperava que
esse as cumprisse. Deus não era babá, nem havia criado seres
joviais ou inocentes que não pudessem manifestar-se diante
das investidas da tentação. A soberania e responsabilidade
delegadas por Deus ao casal eram suficientes para que
reagissem.

Entretanto, temos que admitir que o modo de ação de Deus


diante da desgraça é diametralmente oposto àquela usada por
Satanás. Deus também se utiliza de perguntas, mas ao invés de
buscar a queda ou condenação do homem, Ele busca
restauração. Por isso, (1) Ele Busca ao homem, (2) Questiona o
homem e o (3) Confronta.

1.         Deus Busca e o homem se Esconde

Infelizmente uma das mais belas declarações sobre o


relacionamento de Deus e o homem no Éden é descrita após a
queda. O texto nos diz que o Senhor andava no jardim na
viração do dia, ou “passeava no jardim à tardinha” com preferiu
verter a antiga versão de João Ferreira de Almeida.

Essa declaração fala sobre o costume de Deus em fazê-lo, como


algo que sempre fez, observe:

“O Ser Divino surgiu da mesma forma como antigamente –


proferindo os tons conhecidos de bondade, andando de
alguma forma visível (não correndo apressadamente, como se
impelido pela influência de sentimentos de raiva). Quão belas e
expressivas são as palavras de familiar e condescendente
maneira em que Ele relacionamento com o primeiro casal[36]”.

É muito interessante a percepção de que Deus não se volta


correndo para o homem após a queda como se estivesse
desesperado pela ação que fugira do Seu controle. Em Sua
Soberania Ele vem ao homem como comumente o fez. Por
algum momento podemos supor que a dinâmica da narrativa
sugere que Deus estava desinformado, pois parecia não saber
onde estava o casal, mas, é certo que Deus aqui toma medidas
para remediar os danos provocados pelo pecado. É importante
lembrar que é Deus que se propõe a resolver o pecado de uma
vez por todas, em Cristo, como veremos com mais detalhes à
frente.

Entretanto, é importante que se diga que o significado dessa


expressão (passeava no jardim à tardinha) é vista sob pontos
diferentes: (1) Alguns acreditam que essa é uma figura de
linguagem antropomórfica; (2) Outros defendem que trata-se
de uma manifestação pré-encarnada de Cristo, uma Cristofania
(John Gill); (3) Outros entendem como a presença pessoal de
Deus no jardim. Kevan defende que essa declaração não pode
ser tomada com um antropomorfismo, pois entende que é a
Presença de Deus que se faz manifesta[37]. Keil e Delitzsch
acreditam que isso é evidenciado pelo termo “qowl” que em
outros contextos é usado como a descrição dos sons de passos
e não da voz (2Sa.5.24; 1Re.14.6)[38]. Seja como for, Deus
interagia livremente com o homem de tal forma que ao
aproximar-se de Suas Criaturas, como de costume, sua presença
foi uma afronta.

Quando ouviram a voz do Senhor: É aceitável aqui, entender


que, diferente do que propõem Keil e Delitzsch, o que se ouve é
a voz de Deus, e não seus passos, uma vez que esse é o uso
recorrente e mais normal do termo. Isso também reforça a idéia
de que Deus não estava à espreita como quem vem de
mancinho para surpreender o homem em sua falta, mas que
adentrava ao jardim em Busca do Homem que havia feito para
desfrutar de uma vida de relacionamento Consigo. Krell
defende que isso representa a graça de Deus em uma situação
de crise[39]. Essa preocupação de Deus em achegar ao homem,
segundo Deffinbaug é a demonstração de que Deus, ao
contrário de Satanás, procura o homem para restaurá-lo e
reconciliá-lo consigo mesmo [40].

Esconderam-se da presença do SENHOR Deus: Aquele


relacionamento que outrora era normal é agora visto como uma
ameaça. O medo faz parte do relacionamento do homem com
Deus. Aquilo que era amor, agora é medo e a distância de Deus
é um requisito fundamental para a vergonha que o medo
impulsiona.

Outro detalhe interessante nessa descrição é que “paniym”, que


foi traduzido por “presença” significa primariamente “face”. Se
entendido assim, a idéia da presença pessoal de Deus é
completamente percebida na cena pós-queda. Era do próprio
Deus que se afugentaram Adão e Eva. É Krell quem diz:

“A transformação mais completa não poderia ser imaginada. A


confiança inocente é substituída pelo medo da culpa. As árvores
que Deus criou para o homem olhar e apreciar (2:9) são agora o
seu esconderijo para impedir Deus vê-lo[41]”

Se o medo é a marca do casal nesse momento, o amor é a falta,


pois no amor não há medo e o medo produz tormento
(1Jo.4.18). Essa caracterização joanina nos auxilia a
compreender que todo ato de pecado é primeiramente um ato
de amor próprio e de falta de amor para com Deus.
2.         Deus questiona e o Homem Justifica

A iniciativa de Deus em andar no jardim à tardinha não sua


única iniciativa, Ele mesmo buscou aproximação com Suas
criaturas. É interessante que o Targum de Onkelos usa a
expressão “dabar elohim” (lit.  Palavra de Deus) como descrição
de Deus no verso 9. Essa expressão é usada como tradução do
conceito de Logos no Novo Testamento Hebraico e levou
pessoas a considerarem que tratava-se da presença pessoal de
Jesus Cristo no jardim. Sobre issoJohn Gill diz que “no Targum
de Jerusalém é, a Palavra do Senhor Deus, a segunda Pessoa da
Santíssima Trindade, e esta é a voz que ele disse ter ouvido
antes[42]”.

É bem verdade que essa declaração parece muito bem


construída, mas nem o Targum nem a versão Hebraica parecem
suportar essa visão, muito embora seja plenamente
concordante com a Teologia Cristã. O que é certo é que o
próprio Deus chama pelo homem e lhe pergunta: Onde estás?

Onde estás? Alguns, na tentativa de minimizar o conhecimento


que Deus tem de todas as coisas, supõe que nesse texto Deus
pergunta por Adão por não saber onde está. Entretanto, a
busca de Deus em direção do homem não acontece por que ele
está fora do conhecimento, mas fora de sua comunhão. Keil e
Delitzsch defendem que Yahweh não pergunta por ser
ignorante dos fatos, ou como se não soubesse da localização de
ambos, “mas para trazê-los à confissão do pecado[43]”. Essa é a
percepção dos editores da NET bible, que defendem que o fato
de Adão responder a razão de sua fuga, entendem que a
pergunta parecia-se mais com: “Por que está escondido?”.

Não sei se fica claro para os leitores, mas Deus não se ocupa em
buscar Eva ou a Serpente, a pergunta é direcionada para Adão?
Por que razão Deus buscaria a Adão se até pouco antes as
figuras centrais da narrativa eram a Serpente e Eva? É bem
provável que a autoridade doada a Deus a Adão, como seu
representante[44], implicava em primeiro lugar que ele seria o
representante e responsável pela Queda, e não a mulher ou a
Serpente. Observe a opinião de Deffinbaug sobre o assunto:

“Repare que nenhuma pergunta é feita à serpente. Não há


intenção de restauração para Satanás. Sua condenação está
selada. Tome nota também da ordem ou seqüência aqui. O
homem caiu nesta ordem: serpente, Eva, Adão. Isto é o oposto
da seqüência de comando dada por Deus. Enquanto Deus
questionou por ordem de autoridade (Adão, Eva, cobra), Ele
sentenciou pela ordem da queda (cobra, Eva, Adão). A queda
foi, em parte, o resultado da reversão da ordem de Deus[45]”.

Me escondi: é interessante que Adão não assume sua violação


da ordenança divina, mas reconhece apenas os resultados de
sua ação. Keil e Delitzsch demonstram isso com clareza:

“Adão disse que tinha escondido por medo de sua nudez e,


portanto, procurou esconder o pecado para trás as suas
conseqüências, a sua desobediência por trás do sentimento de
vergonha, o que não deve ser considerada como um sinal de
teimosia peculiar, mas facilmente admite uma explicação
psicológica, viz., que, no momento que ele realmente pensava
mais sua nudez e vergonha do que de sua transgressão da
ordem divina, e sua consciência dos efeitos do seu pecado foi
mais afiada do que o senso do pecado em si[46]”

Matthew Henry nos ajuda a visualizar esse fato, observe:

“Ele não se sente culpado, mas confessa sua culpa por possuir a
sua vergonha e medo, mas a culpa é comum e a insensatez
daqueles que têm feito uma coisa má, quando são
questionados sobre o assunto, não reconhecem o que é tão
evidente que não podemos negar. Adão estava com medo,
porque estava nu, não apenas desarmado, e, portanto, com
medo de lutar com Deus, mas sem roupa, e, portanto, tanto
medo como a comparecer perante ele[47]”

Krell completa:

“Assim que Adão ouviu a presença de Deus, lembrou-se sobre a


vida espiritual e relacionamento com Deus. Ele agora percebeu
que a tentativa de encobrir sua desorientação a Eva tinha sido
em vão. Ele percebeu que era a perda da vida espiritual que foi
a causa de sua desorientação a Eva e que não havia nada que
pudesse fazer sobre qualquer um. É por isso que ele ainda se
via como nua, mesmo depois de encobrir. E é por isso que ele
estava com medo. Foi “nudez” espiritual “que foi a verdadeira
questão. A solução só podia conceber era a negação ea evasão.
Ele se escondeu, mas é claro que não funcionou. Porque a raça
humana está nu, não há um fim às suas tentativas de evitar a
verdade da graça de Deus. Negação e substituição foi a
evidência da nudez do homem em toda a história[48]”.

3.         Deus confronta e o Homem Atribua a Culpa

É possível que Adão imaginasse que sua ladainha pudesse colar


com o Criador, como senão pudesse perceber que estava
omitindo o principal: A Violação de Sua Ordem. O
reconhecimento reticente de Adão demonstra como todos os
seus descendentes fazem quando confrontados, mesmo que
não de forma direta. A evasão é mais fácil que a confissão. Por
isso, Deus não para seu processo de correção de Adão nesses
termos genéricos, ele avança.
Quem te fez saber que estavas nu? A pergunta aqui poderia ter
sido: Por que você me desobedece? Entretanto, a confissão
ainda não tinha sido feita. Embora pela evasão de Adão fica
implícito que ele havia violado a lei de Deus, mas Deus busca a
direta confissão. Sobre isso Calvino nos instrui:

“Uma repreensão indireta de reprovar o sofisma de Adão ao


não perceber sua falha em sua punição, como se tivesse sido
dito, Adão não estava com medo na voz de Deus, mas da voz
do Seu Juiz, que foi formidável para com ele, porque ele era um
pecador. Além disso, que não a nudez dele, mas a torpeza do
vício pelo qual ele havia contaminado a si mesmo, foi a causa
do medo, e certamente ele era culpado de impiedade
intolerável contra Deus em busca da origem do mal na
natureza[49]”

Foi a mulher! Mais uma vez a evasão foi a alternativa usada por


Adão, observe como Deffinbaug vê essa situação:

“Jogando pelo menos uma parte da responsabilidade sobre o


Criador, Adão desembuchou: “A mulher que me deste por
esposa, ela me deu da árvore, e eu comi.” (verso 12). A
implicação de Adão era que ambos, Eva e Deus, deviam
partilhar da responsabilidade pela queda. Sua parte foi
mencionada por último e com tão poucos detalhes quanto
possível. E sempre será assim com aqueles que são culpados.
Sempre encontramos circunstâncias atenuantes[50]”.

Que é isso que fizeste? A atitude evasiva de Adão, o


representante de Deus, foi modelo seguido e fez escola por
todo o mundo. Eva quando confrontada também não pensou
duas vezes: Foi a Serpente! Do mesmo modo que Adão, Eva
parece sugerir que a culpa provinha de Deus em primeiro lugar,
pois Ele a havia criado. Observe como Krell descreve essa
situação:

“A pergunta do Senhor tem o sentido: “Que diabos você fez?”


ou “Você percebe o que você fez?”. Em vez de assumir a
responsabilidade por suas ações, a mulher culpou a serpente.
Você pode ver a evolução? Adão culpou a mulher, e depois
culpou a Deus por ter lhe dado a ele. Eva culpou a serpente.
Isso é típico da natureza humana. O pecador, mas todos culpam
a si mesmo. Tem sido dito: “Errar é humano, culpar outros e
Deus é mais humano ainda”[51]”

Bob Deffinbaug completa:

“Era verdade, é claro. A serpente a enganou (I Tm. 2:14) e ela


comeu. A culpa de ambos, apesar do débil esforço feito para
desculpar, ou, no mínimo, diminuir a responsabilidade humana,
foi claramente estabelecida. Creio que deva ser sempre assim.
Antes do castigo poder ser aplicado, o delito deve ser
comprovado e admiti-do. De outra forma o castigo não terá seu
efeito corretivo sobre o culpado. As penalidades agora são
prescritas por Deus, dadas na seqüência dos acontecimentos da
queda[52]”

C.     Três características da Justiça

Diante do cenário da queda e da constante evasiva dos


primeiros seres humanos, Deus intervém com clara definição de
termos e culpa, a iniciar pela Serpente, a causadora primária do
mal na humanidade, Deus estabeleceu claramente seu juízo em
três caracterizações: (1) Punição; (2) Providência e por fim (3)
Promessa.

Vale a pena ser dito que a ação de Deus não trata-se de


retaliação à ofensa, mas de restauração dos ofensores, exceto
pela serpente, que já havia sido eternamente sentenciada.
Contudo, diante de sua justiça, Deus precisou explicar aos seres
humanos quais são as implicações da violação que haviam
cometido.

1.         Punição

Não era possível ao Todo-Poderoso Deus, Todo Santo, Todo


Justo, remediar genericamente o pecado. Não era possível a
Deus dar um jeitinho mais ameno ao pecado. A violação
desconfiada dos seres humanos precisava ser claramente
apresentada. Com Deus não existe medida terapêutica ou
homeopática, Ele corta o mal pela raiz.

Serpente: Com a serpente não há diálogo, apenas punição.


Observe o que Calvino afirma sobre isso:

“Ele não interroga a serpente, como tinha feito o homem e a


mulher, porque, no próprio animal não havia nenhum sentido
do pecado, e porque, ao diabo ele não iria conceder a
esperança do perdão[53]”

A serpente, apesar de ser apenas o meio pelo qual o Tentador


se fez presente no jardim, também sofre por sua participação
no cenário da queda. É difícil pensar que tal animal tivesse
qualquer parcela, em si mesma, de culpa pelo ato, afinal tinha
sido apenas sido instrumento de Satanás. Mas, Deus não ousou
deixá-la de fora da punição. A questão não era culpabilidade,
mas cumplicidade ou até mesmo, apenas representação. Note
que a punição é primeiramente ao animal e apenas
posteriormente ao agente por detrás dela: “Então, o SENHOR
Deus disse à serpente: Visto que isso fizeste, maldita és entre
todos os animais domésticos e o és entre todos os animais
selváticos;  rastejarás sobre o teu ventre e comerás pó todos os
dias da tua vida” (Gn.3.15).

Eva: A condenação de Eva foi tripla, e aflige todas suas


descendentes: (1) Aumento da Dor na gravidez e no parto; (2) O
desejo contrário ao marido; (3) O governo do marido sobre a
mulher. A questão da dor parece remediada na modernidade,
com o avanço da medicina. Mas o desespero para superá-lo, é
evidência suficiente para que se demonstre os efeitos do
pecado e a iniciativa do ser humano em contorná-lo. Já o
desejo contrário ao marido, parece uma normativa, ainda hoje,
e o desarranjo no casal também parece presente, como
resultado do pecado. O governo do marido sobre a mulher não
é uma declaração de modelo, mas de fato. O pecado sempre
procura induzir a situação sob esse prisma pecaminoso. Por
outro lado, o inverso segue o mesmo impulso pecaminoso de
domínio.

Observe o que nos fala Krell:

“Deus fala a Eva sobre seu papel como mãe (3:16 a) e como
mulher (3:16 b). Biblicamente falando, esses são os dois pontos
em que uma mulher experimenta sua maior satisfação. E nestes
dois pontos haverá dor e servidão. A “dor no parto” se refere a
todo o processo desde a concepção até o nascimento. Isso
inclui a ansiedade sobre se ela será capaz de conceber um filho,
a ansiedade que vem com todo o desconforto físico da
gravidez, a ansiedade sobre a saúde da criança no útero, e
ansiedade sobre se ela e o bebê vai sobreviver ao processo de
nascimento. Deus também fala do desejo da mulher ‘contra o
marido’. O desejo é uma fonte de conflito entre marido e
esposa, assim como o pecado deseja dominar e controlar (4:7).
Esta é a primeira batalha entre os sexos. Cada um se esforça
para controlar e não vive no melhor interesse dos outros (Fp
2:3-4). O papel da mulher e do papel do homem tornam-se
deveras pervertido. A mulher tende a querer controlar o homem
sutilmente. O homem tende a dominar e tiranizar. Parceiros
tornam-se concorrentes. Tem sido assim desde a queda[54]”

Adão: Note que a sentença de Adão não inicia com a expressão


“por que você violou meu mandamento”, mas, “por que você deu
ouvidos à sua mulher…”. Muito embora possamos dizer que a
violação foi anunciada na sentença, a preocupação primária da
queda parece ter sido a inversão de valores esperados por Deus
no casamento do primeiro casal, onde o marido como seu
representante deveria coordenar o andamento do
relacionamento.

Alguns, equivocadamente pensam que o trabalho é fruto da


queda, contudo Deus havia colocado o homem no jardim para
lavrá-lo. Ou seja, o homem foi criado como um ser trabalhador
e sua realização está nesse fato. Contudo, a punição está na
supremacia da fadiga ao prazer no trabalho. Agora o trabalho
tornou-se penoso, enfadonho e motivo do sustento pessoal. O
modo natural pós-queda de alimentar-se inclui a fadiga do
trabalho. A graça provedora de Deus continua a manifestar-se
em Seus filhos, mas certamente apenas com lampejos do Éden.

Na queda, o homem é sentenciado a uma vida de trabalho,


tirando da terra seu mantimento até que volte a terra. A morte
é o estágio final da labuta da vida do homem. A modernidade
pode ter maquiado o processo de tirar da terra o mantimento,
mas é certo que ele não vem doutra fonte se não da fadiga do
trabalho, até que a morte chegue. Nesse quesito vemos a dura
benevolência de Deus que optou por não dizimá-los
imediatamente, mas resolveu poupá-los da morte imediata para
que pudessem sofrer as conseqüências dos seus erros.

Por outro lado, era um modo de, como Criador, assumir os


resultados danosos do pecado em sua encarnação como
cordeiro expiatório para toda a humanidade. Não há maior
graça do que essa oferecida por Deus em Cristo: A redenção
completa do pecado e a completa restauração do ser humano
ao estado de onde jamais deveria ter saído. É misericórdia, pois
não exige da criatura o que não pode oferecer. É graça, por que
oferece ao homem o que não pode alcançar. É severa, pois
exige a ruptura original do relacionamento entre Pai e Filho na
perfeição da Trindade, para a recuperação do estado original da
queda. É justa, pois assume as consequências da queda em Si
mesmo, mas condena a todos que rejeitam seu Amor e Provisão
substitutiva em Cristo. É santa e única. É livre e determinada. É
manifestação mais clara do amor e justiça de Deus. Bondade e
Juízo mutuamente auxiliares e vindicativos.

Terra: De modo interessante até mesmo a terra foi condenada


pelo pecado. Agora, o que havia sido feito para o deleite do
homem, foi transformada em motivo de desgaste. A declaração
de Deus é clara: “Maldita é a terra por tua causa”. É por isso que
agora que “ela produzirá também cardos e abrolhos, e tu
comerás a erva do campo” (Gn.3.18).

Humanidade: Toda humanidade é sentenciada à morte em


função de Adão, pois agora seus descendentes já não são mais
criados a imagem de Deus, mas reproduzidos à sua imagem
(Gn.5.1). É bem verdade que a imagem de Deus ainda faz parte
da dignidade do homem (Gn.9.6), mas, é também verdade, que
tal dignidade não atesta o estado do homem, mas seu valor.
Note que a humanidade é referida como conhecedora do bem
e do mal. É bem verdade que já falamos sobre isso, mas as
considerações de Deffinbaug merecem ser ouvidas:

“De maneira estranha a promessa de Satanás tornou-se


verdadeira. Em certo sentido, Adão e Eva tinham se tor-nado
como Deus no conhecimento do bem e do mal (verso 22).
Ambos, o homem e Deus, conheciam o bem e o mal, mas de
formas completamente diferentes.  Talvez a diferença possa ser
melhor ilustrada desta maneira. Um médico pode conhecer o
câncer em virtude de sua educação e experiência como médico.
Isto é, ele tem lido e ouvido conferências a respeito de câncer, e
o tem visto em seus pacientes. Um paciente, também, pode
conhecer o câncer, mas como sua vítima. Enquanto ambos
conhecem o que é o câncer, o paciente desejaria jamais ter
ouvido falar sobre ele. Tal é o conhecimento que Adão e Eva
vieram a possuir[55]”

A humanidade também foi desprovida do privilégio de comer


da árvore da vida, garantia assegurada por Deus (v.24). Tal
separação da vida proveniente de tal árvore é provavelmente
uma ilustração da vida que há em Cristo Jesus, que é abundante
e verdadeiramente com Deus. Essa sentença coloca todos os
descendentes de Adão diretamente desprovidos da
possibilidade, de por suas forças, achegar-se a Deus ou à
Verdade que salva, Jesus Cristo. É Jesus quem testemunha que
ninguém chega ao Pai se não por intermédio Dele mesmo
(Jo.14.6) do mesmo modo que ninguém chega a Jesus Cristo se
assim não for dado a Ele por Deus (Jo.6.37). Na identificação
com Adão, por descendência, e na falta completa de acesso à
Árvore da Vida, o homem agora é totalmente desprovido de
possibilidade de achegar-se a Deus e destinado naturalmente à
morte eterna, exceto, se por uma ação graciosa de Deus Ele
mesmo os retirar dessa situação miserável e colocá-los em
firmados em Cristo por toda a eternidade.

2.         Providência

A declaração punitiva é também uma manifestação amorosa de


Deus, pois do mesmo modo que condena liberta. Lembre-se
que Deus havia prometido à morte caso Adão e Eva violassem o
mandamento de Deus. Mas, ao violar, a morte não lhes sucedeu
imediatamente, embora estivesse a caminho.

Um verso em toda a declaração punitiva de Deus me chama a


atenção:

Fez o SENHOR Deus vestimenta de peles para Adão e sua


mulher e os vestiu (Gen 3:21 ARA)

O Próprio Deus se encarregou de sanar o foco de vergonha do


ser humano, Ele mesmo os vestiu para cobrir suas vergonhas.
Esse é o objetivo primário da ação de Deus. Por outro lado,
enquanto Deus veste para cobrir a vergonha do ser humano, o
Diabo veste para mostrá-las.

Contudo, esse não era o objetivo ultimo dessa ação. Tendo a


ver aqui uma manifestação da Graça de Deus que ilustra ao
homem o que significa morte. Pois, de onde teria tirado Deus
“vestimentas de pele”? É certo que para essa vestimenta ser
feita, a morte de um animal foi necessária. Essa foi a primeira
vez que Adão e Eva viram o que significa a morte. Na verdade,
essa foi a primeira vez que viram a morte. Tendo a crer que isso
foi um ensino direto de Deus sobre as implicações do pecado e
a primeira morte substitutiva a acontecer na história da
humanidade. Ao invés de morrerem imediatamente Adão e Eva,
morreu algum animal que serviu de proteção para o homem e
sua mulher. Condenação e providência se contrapõem na cena
da Queda. Mas, a promessa e a misericórdia também foram
anuncuadas.

3.         Promessa

A promessa salvadora é vista melhor no verso 15, observe:

Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o


seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o
calcanhar (Gen 3:15 ARA)

Haverá inimizade entre o Descendente Esperado da mulher e a


serpente a tal ponto que a serpente lhe ferirá, mas tal
descendente irá finalmente destruir seu Domínio sobre a
humanidade e a Criação. Tal promessa, também chamada de
PROTOEVANGELHO é a declaração mais Graciosa de toda a
punição. Enquanto alguns esperariam completa retaliação do
Criador, Ele se oferece voluntariamente à morte por nós. Não há
graça maior do que essa. Não há maior manifestação de Amor.
Esse é o Deus Criador e Redentor de sua Criação.

[1] CALVINO, João, Commentary on Genesis.


(http://www.ccel.org/ccel/calvin/calcom01.html).

[2] GAEBELEIN, Arno Clement, Annotated


Bible. (http://bartimaeus.us/a_c_gaebelein.html).

[3] JAMIESON, Robert, FAUSSET, A. R., BROWN, David, A


Commentary on the Old and New Testaments.
[4] KEVAN, E.F., Gênesis – Novo Comentário da
Bíblia.  Vol.1, pp.84.

[5] CLARKE, Adam, Adam Clarke`s Commentary on the


Bible.  (http://www.godrules.net/library/clarke/clarke.htm)

[6] FRANCISCO, Clyde, Comentário Bíblico Broadman – Gênesis


Introdução e Comentário.  Vol.1, pp.180.

[7] DEFFINBAUG, Bob, The Fall of


Man. Bible.org (http://bible.org/seriespage/fall-man-genesis-31-
24)

[8] KIDINER, Derek, Gênesis, Introdução e Comentário. pp.63.

[9] CALVINO, João, Commentary on Genesis.


(http://www.ccel.org/ccel/calvin/calcom01.html).

[10] FRANCISCO, Clyde, Comentário Bíblico Broadman – Gênesis


Introdução e Comentário.  Vol.1, pp.181

[11] KIDINER, Derek, Gênesis, Introdução e Comentário. pp.63.

[12] MACKINTOSH, Charles Henry., Estudos sobre o livro de


Gênesis. pp.32.

[13] Ou seja, o Targum de Akelas = Aquila, um Targum


chamados a dar-lhe uma maior popularidade comparando-a
com a tradução do grego Aquila abaixo mencionados. Isto
originou Targum sobre o segundo século depois de Cristo.
Outros estudiosos dizem que remonta a 60 aC. Isto inclui o
Targum texto hebraico do Pentateuco. Os exemplares mais
antigos já existentes parecem ser de cerca de 500 dC
(http://mb-soft.com/believe/ttxm/targum.htm)

[14] Targum Pseudo-Jonathan é um Targum ocidental


(tradução) da Torá (Pentateuco) da terra de Israel. O título
correto é Targum Yerushalmi ( “Jerusalém Targum”), como era
conhecido nos tempos medievais. Mas por causa de um erro de
impressão, foi posteriormente rotulada Targum Jonathan, em
referência a Jonathan ben Uziel. Algumas edições do
Pentateuco continuar a chamar-lhe “Targum Jonathan” ainda
hoje. (http://en.wikipedia.org/wiki/Targum_Pseudo-Jonathan)

[15] MACKINTOSH, Idem, pp. 31.

[16] KIDINER, Derek, Gênesis, Introdução e Comentário. pp.64.

[17] DEFFINBAUG, Bob, The Fall of


Man. Bible.org (http://bible.org/seriespage/fall-man-genesis-31-
24)

[18] BARNES,  Albert, Notes on de Bible.

[19] FRANCISCO, Clyde, Comentário Bíblico Broadman – Gênesis


Introdução e Comentário.  Vol.1, pp.183

[20] DEFFINBAUG, Bob, The Fall of


Man. Bible.org (http://bible.org/seriespage/fall-man-genesis-31-
24)

[21] KEVAN, E.F., Gênesis – Novo Comentário da


Bíblia.  Vol.1, pp.85-6.
[22] NET Bible,  http://bible.org/netbible/index.htm – Observe a
opinião de John Gill

[23] CALVINO, João, Commentary on Genesis.


(http://www.ccel.org/ccel/calvin/calcom01.html).

[24] KRELL, Keith, Paradaise Lost (Genesis 3.1-


7)  (http://bible.org/seriespage/paradise-lost-genesis-31-7)

[25] CALVINO, João, Commentary on Genesis.


(http://www.ccel.org/ccel/calvin/calcom01.html).

[26] DEFFINBAUG, Bob, The Fall of


Man. Bible.org (http://bible.org/seriespage/fall-man-genesis-31-
24)

[27] KRELL, Keith, Paradaise Lost (Genesis 3.1-


7)  (http://bible.org/seriespage/paradise-lost-genesis-31-7)

[28] OWEN, John, Sobre a Tentação pp.30.

[29] IDEM, pp. 41.

[30] KIDINER, Derek, Gênesis, Introdução e Comentário. pp.65

[31] GILL, John, Exposition on the entire Bible.

[32] FRANCISCO, Clyde, Comentário Bíblico Broadman – Gênesis


Introdução e Comentário.  Vol.1, pp.183

[33] Keil & Delitzsch, Commentary on the Old Testament.


[34] KIDINER, Derek, Gênesis, Introdução e Comentário. pp.65

[35] KRELL, Keith, Eat MY Dust (Genesis 3.8-


24)  (http://bible.org/seriespage/eat-my-dust-38-24)

[36] JAMIESON, Robert, FAUSSET, A. R., BROWN, David, A


Commentary on the Old and New Testaments.

[37] KEVAN, E.F., Gênesis – Novo Comentário da


Bíblia.  Vol.1, pp.86

[38] Keil & Delitzsch, Commentary on the Old Testament.

[39] KRELL, Keith, Eat MY Dust (Genesis 3.8-


24)  (http://bible.org/seriespage/eat-my-dust-38-24)

[40] DEFFINBAUG, Bob, The Fall of


Man. Bible.org (http://bible.org/seriespage/fall-man-genesis-31-
24)

[41] KRELL, Keith, Eat MY Dust (Genesis 3.8-


24)  (http://bible.org/seriespage/eat-my-dust-38-24)

[42] GILL, John, John Gill’s Exposition of the Entire Bible.

[43] Keil & Delitzsch, Commentary on the Old Testament.

[44] Lembre-se que é Adão quem tomas as ações no segundo


capítulo que haviam sido tomadas por Deus, como por exemplo
o dar nome. Note também que Deus concede ao homem o
nomear todos os animais criados, o que já havia feito com todo
o resto da criação. Note também que é Adão quem nomeia Eva,
mais uma vez, como representante de Deus.
A História de Três Irmãos: Caim, Abel
e Sete
Publicado porMarcelo Berti14 abril , 2010Publicado emGênesisTags:Estudos em
Gênesis, Gênesis
 
 
 
 
 
 
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O estudo sobre Caim e Abel é certamente um ponto


controvertido no livro de Gênesis. Para falar com franqueza, os
primeiros 11 capítulos de Gêneses têm caráter controvertido. É
bem verdade que tais dificuldades hermenêuticas não são
insolúveis ou sem propostas de tratamento, entretanto, ainda
assim são cercadas de ceticismo.

Nossa proposta não é resolver problemas antigos a teologia,


mas refletir sobre a real problemática dessas dificuldades,
considerar algumas possibilidades para os mesmos casos e
então propor uma conclusão plausível para cada uma das
dificuldades observadas. Observe, nosso objetivo não é oferecer
uma conclusão definitiva para tais assuntos, mas uma que seja
plausível.

Feito isso, trataremos da narrativa com devida atenção ao


relacionamento estabelecido entre Deus e suas criaturas
conforme observado pelo capítulo 4 de Gênesis.
Introdução

Como já temos dito, estudar o livro de Gênesis associa duas


atitudes do cristão que dele se aproxima: devoção e
intelectualidade. Devoção, pois nele encontram-se as palavras
de Deus, suas orientações, ensinos e
exortações. Intelectualidade, pois nele também se encontram
obstáculos para a compreensão da verdade exposta em suas
páginas. Portanto, é com essa perspectiva que passamos a
observar os seguintes aspectos do capítulo 4 e 5 de Gênesis: (1)
O Papel das Genealogias; (2) A oferta, (3) A esposa de Caim.

1.         O Papel e Significado das Genealogias em Gênesis:

“As genealogias bíblicas são numerosas, mas ainda assim são,


provavelmente, as porções mais freqüentemente ignoradas da
Bíblia. A maioria das pessoas acha que as genealogias não são
interessantes e difíceis de aplicar às circunstâncias atuais[1]”

A princípio não podemos ignorar esse fato: As genealogias não


são interessantes a muitos leitores das escrituras, e de fato, são
difíceis de serem aplicadas a nossa vida com Deus. Por outro
lado, o Deus que se revela nessas páginas das escrituras deve
ter um propósito com tal inclusão, e por isso observamos tais
porções com zelo e sabedoria.

O primeiro grande obstáculo à mente moderna sobre a validade


das escrituras repousa sobre as genealogias de Gênesis, não por
serem extensas ou aparentemente repetidas ou repetitivas, mas
por conterem afirmações de longevidade invejáveis aos adeptos
da cosmética antiidade.
5 Os dias todos da vida de Adão foram novecentos e trinta
anos; e morreu (…) 8 Todos os dias de Sete foram novecentos e
doze anos; e morreu (…) 11 Todos os dias de Enos
foram novecentos e cinco anos; e morreu (…) 14 Todos os dias
de Cainã foram novecentos e dez anos; e morreu (…) 17 Todos
os dias de Maalalel foram oitocentos e noventa e cinco anos; e
morreu (…) 20 Todos os dias de Jarede foram novecentos e
sessenta e dois anos; e morreu (…) 23 Todos os dias de Enoque
foram trezentos e sessenta e cinco anos (…) 27 Todos os dias de
Metusalém foram novecentos e sessenta e nove anos; e morreu
(…) 31 Todos os dias de Lameque foram setecentos e setenta e
sete anos; e morreu.

A ordem seguida na genealogia é interessante: Gerar, viver e


morrer. Essa relação da existência humana é certamente bem
retratada por essas genealogias. O uso recorrente do verbo
morrer (heb. muwth) relembra com clareza a recomendação de
Yahweh sobre a certeza da morte, caso Adão desobedecesse.
Todos os descendentes de Adão, com possível exceção de
Enoque, morreram fruto da desobediência de Adão. Todos
estão fadados a esse destino.

Contudo, as descrições de tempo observadas levantam sérias


dúvidas quanto ao relato de Moisés. Note que o personagem
com menor idade narrado viveu 365 anos! Aos olhos da nossa
concepção de longevidade esses dados são plenamente
incompatíveis com a realidade da humanidade. Por isso,
algumas teorias foram anunciadas para compreender esses
dados.

A visão mais literal: A visão mais literal, em geral preza pela


validade numérica e conceitual das genealogias, entretanto,
muitas propostas foram feitas para Gn.5, observe:
1. Lutero sugeriu que a longevidade dos patriarcas anti-
diluvianos se dava em função de uma melhor dieta combinada
com um corpo mais saudável em função de pouco tempo da
entrada do pecado[2]. Contudo, essa visão causa severos
problemas para a compreensão da vida tal como está, sem
contar no alto grau especulativo da proposta. Outro detalhe é
que, se o tempo da raça humana deteriora com o tempo em
função da presença do pecado, hoje deveríamos viver muito
menos do que temos vivido, sem contar no caso de culturas
que, por meio do desenvolvimento higiênico e sanitário,
aumentaram sua expectativa de vida nos últimos anos, o que
contraria a proposta de Lutero.
2. Calvino entende o registro final de tempo depende do
tempo total em que os patriarcas viveram juntos[3]. Segundo
essa interpretação Adão teria vivido 130 anos (v.3) e sua
família/tribo 930 anos (v.5) Entretanto, Derek Kidner opõe-se
veementemente à essa conclusão, pois “Enoque e Noé são
exceções fatais para a teoria, pois os dois são claramente
retratados como indivíduos até o fim[4]”.
3. Clyde Francisco cita a Lista de Reis Sumérios que chegou
até nós através de Berossus, um historiador grego. Nessa lista
encontram-se 10 dignitários do período anti-diluviano e um
dentre eles, à semelhança de Enoque, não morre. De modo
interessante, esse mesmo documento demonstra que a
longevidade desses homens era ainda maior que as
apresentada por Moisés. Para Clyde, existe alguma relação entre
o relato de Moisés e tal documento, embora não possa
determinar qual, ou quão grande teria sido tal influência.
Segundo ele, “não há nenhuma forma de provar que os
patriarcas não viveram tanto tempo quanto o Velho Testamento
diz que viveram (…) Certamente os escritores bíblicos não
adicionaram ou subtraíram anos das genealogias que receberam.
As idades registradas refletem o contexto da tradição quando as
fontes foram compostas”. A proposta de Clyde embora nobre,
por preservar a literalidade do texto é fundamentada na edição
do mesmo e na dependência de um texto que não temos como
saber se Moisés teve acesso, ou até mesmo à tradição do
mesmo.
4. Derek Kidner reconhece a existência de proposições
similares a de Moisés relativas a longevidade de seres humanos
do passado, mas ao contrário de Francisco, ele não as toma
como interdependentes, mas como demonstração de que, por
meio de diferentes autores antigos, um fato pode ter sido
registrado. Observe o que diz: “Só podemos dizer que os
períodos de duração da vida devem ser entendidos literalmente.
Talvez valha a pena pensar que o nosso índice comum de
crescimento não é o único que se pode conceber; e também que
várias raças tem tradições de longevidade primitiva que
poderiam provir de reminiscências autênticas ”.
[5]

5. James Ussher entendeu que os anos apresentados em


Gênesis de 5 a 11 são literais e conseguintes, e concluiu que
Adão teria vindo a existir em 4004 anos antes de Cristo. O
pressuposto fundamental dele é que as genealogias são
completas e não tem lacunas. Esse modo de interpretação é
provavelmente o mais rejeitado dentre todas as propostas.
6. Willian Henry Green demonstra que as genealogias
bíblicas normalmente apresentam lacunas, como essa
apresentada em Gn.5. Segundo ele, essa genealogia foi
intencionalmente arranjada, em função da clara estrutura
existente. Em relação às genealogias de Gn.5-11, ele atesta que
“cada genealogia inclui dez nomes, sendo Noé o décimo depois
de Adão, e Terá o décimo de Noé. Todo fim tem um pai tendo
três filhos, como no caso da genealogia Canita (4.17-22). A
genealogia de Sete (cap.5) culmina no sétimo membro Enoque,
que andou com Deus, e ele não era, mas Deus o tomou para is. A
genealogia Canita também culmina no sétimo membro,
Lameque, que era polígamo, vingativo e cheio de arrogância[6]”.
Esse tipo de arranjo certamente favorece a idéia de que a
intenção não foi uma genealogia cronológica, mas referencial.
7. John White Comb sugeriu que a longevidade dos seres
humanos estava ligada com as diferentes condições climáticas
do período anti-diluviano, baseado na idéia de um dossel de
vapor de água que protegia a terra da física e geneticamente
nociva radiação solar. Concordam com essa proposta Fazale
Rana, Hugh Ross e Richard Deem.
8. Outros já sugeriram que as medidas de tempo não são
necessariamente as mesmas que temos hoje, e que é possível
que o termo “anos” fosse compreendido como “meses”. Assim,
os 969 anos seriam 969 meses, ou cerca de 81 anos, o que
tornaria compreensão do texto muito mais aceitável. Contudo,
se esse esquema fosse adotado para todos os casos, Enoque
teria apenas 5 anos (ou 65 meses) de idade quando gerou
Matusalém. Sobre esse tipo de tratamento, Kidner também diz:
“É igualmente infrutífera a idéia de que as unidades de tempo
podem ter mudado de sentido. Além de produzir novas
dificuldades nos versos 12, 15, 21, falha completamente na
cronologia pormenorizada que se acha entre 7.6 e 8.13[7]”. Essa
proposta tornaria a proposta de Gn.6.3 em um absurdo.
9. Fazale Rana acredita que os anos dos personagens
apresentados em Gn.5 são literais em função da assertiva divina
em 6.3, que afirma que em função da maldade recorrente na
humanidade, Deus resolveu reduzir a vida do ser humano a 120
anos. Ele também defende que o avanço da bioquímica pode
sugerir modos pelos quais Deus pode ter permitido seres
humanos viverem tanto tempo. Segundo Rana, “cientistas
descobriram diversos distintivos bioquímicos que ou causam, o
são associados com, o envelhecimento. Mesmo uma pequena
alteração na química celular pode ser responsável pelo
envelhecimento, ou em alguns casos, aumentar a expectativa de
vida cerca de 50%[8]. Essas descobertas apontam para diversas
possibilidades pelas quais Deus permitiu a longevidade e então
alterou a expectativa da vida humana – simplesmente alterando
a bioquímica humana[9]”.
10. Norman Geisler se opõe a proposta de Calvino em função
de que linhas familiares não geram ou morrem, nem podem ser
definidas por “tiveram filhos e filhas”. Rejeita a noção de que o
termo anos aqui teria outra conotação, como sugerida por
outros comentaristas. Entretanto, ele concorda com Rana e
defende que Gn.6.3 define que o termo anos, não pode ser
considerado de outro modo. Também defende que após o
dilúvio o tempo de vida do homem decresceu, como Gn.6.3
afirmou. Também concorda com Clyde e Kidner ao defender
que as escrituras não são as únicas a apresentarem seres
humanos com tamanha longevidade. Entretanto, a proposta de
Geisler é que os anos devem ser considerados como anos
lunares de 360 dias[10].

Embora possam existir outras proposições literais, podemos


compreender como se comportam aqueles que optam por uma
cronologia literal: Tentam tratar do texto como um todo e não
deixar lacunas hermenêuticas para trás, mas fundamentalmente,
tratam dos números como dados reais. Entretanto, isso não
significa necessariamente que todos sejam favoráveis à versão
numérica do texto massorético, mas que são favoráveis ao
sentido literal do valor numérico. Sobre as diferentes leituras
desse texto falaremos com mais detalhes mais à frente.

A visão mais simbólica: A proposta mais simbólica, em geral,


toma os valores numéricos com significados diferenciados. Por
exemplo, Waltke sugere que o arranjo literário dessa passagem
não pode ser um acaso[11], ao passo que Plaut atesta que essa
passagem demonstra uma predileção para o simbolismo
numérico[12]. Andrew Kvasnica atesta que “essas opiniões estão
relacionadas a prevalência dos números 7 e 10, conhecidos
respectivamentes em diversos textos do Oriente Médio Antigo por
sua perfeição e plenitude. A lista de 10 nomes em Gn.5 levou
muitos a ver uma indubitável e deliberada construção de nomes
para se enquadrar no esquema de um padrão de 10
gerações[13]”.

Existem diversas outras propostas simbólicas, mas o que se


precisa observar é que, independente do proponente, o
fundamento essencial é a consideração não literal dos números,
seja pela conexão com a “numerologia” antiga, ou com
suposições aleatórias, as idéias sempre giram em torno de
valores não numéricos aos números ou à estrutura do texto.

Uma proposta literal/simbólica: Essa proposta é uma adaptação


dos dois primeiros modos de interpretação. Kvasnica sugere
que tal modo de interpretação toma a estrutura como literal,
mas os números relativos à longevidade como organizada
mediante um padrão numérico. Ou seja, não trata-se de
número exato de anos, mas de um arranjo numérico. Por
exemplo, a semelhança de Clyde Francisco, os proponentes
dessa teoria entendem que existe uma relação entre a Lista dos
Reis Sumérios, porém, estabelecem um arranjo literário para
obra como um padrão para o entendimento de Gênesis. Como,
aparentemente, a alguns textos sumérios tem predileção pelo
número 60, muitos proponentes iniciaram com esse número,
embora, muitas outras propostas tenham sido feitas[14].

É importante dizer que tal proposta é uma alternativa frágil,


uma vez que não é possível determinar que tipo de influência,
se é que existiu alguma, dos antigos textos sumérios nos textos
de Moisés. Muito embora alguns comentaristas, como
Wenham[15], achem a matemática interessante, são muitos os
comentaristas que rejeitam suas conclusões[16].

Outro detalhe importante é que não parece prudente submeter


o entendimento das escrituras a outras literaturas antigas muito
provavelmente não relacionadas. Essa iniciativa, embora seja
realizada por pessoas altamente capazes, sugere que o sentido
do texto é devido a interpretações de textos que não se sabe se
os leitores originais tiveram acesso. Sem contar que o modo
interpretativo desses documentos não é unânime ou sem
conflito. Portanto, é seguro afirmar que tal proposta não é
aceitável, embora difundida e aceita em alguns círculos
teológicos.

A visão mítica: Essa é a visão menos honesta com o texto, pois


considera que os nomes tem alguma significância, mas os
números são mitos. Considerando que outros textos antigos
continham números ainda maiores que os encontrados em
Gênesis (cf.  18.000; 36.000), Joseph Jacobs entende que ele são
adaptações dos relatos míticos antigos[17]. Westtermann
prefere optar por uma declaração de grande antiguidade, e
portanto, descarta o valor numérico dos mesmos[18]. Seja
como for, não importam os números usados, o que se quer
dizer é que eles viviam mais que seus descendentes atuais e
que o decréscimo do tempo demonstra a falência da raça
humana.

Contudo, se esse fosse a intenção de Moisés ele poderia ter


usado essas palavras, mas ele não o fez. Os números devem ter
um significado mais específico do que o vago valor assumido
por esses que entendem que trata-se de um relato real de
detalhes míticos.

Conclusão: Antes de qualquer conclusão plausível, é importante


considerar alguns detalhes sobre as genealogias apresentada
nas escrituras:

1. Propósito: É digno de nota que as genealogias bíblicas


não foram escritas para uma análise cronológica como supôs
James Ussher. Também é importante dizer que a genealogia de
Gn.5 não é uma genealogia completa e que foi arranjada
literariamente para conter uma sequência de 10 gerações
(Gn.5.3-), com ênfase especial no sétimo descendente (Enoque,
Lameque) sendo que o último sempre gerava três filhos. Esse
arranjo por outro lado não atesta seu simbolismo ou sentido
mitológico, mas que diante das informações que dispunha, o
autor organizou-as cronologicamente sem ocupar-se em
oferecer uma genealogia completa. Isso deve-se ao objetivo do
autor, que não era remontar exaustivamente a linhagem da
humanidade, mas demonstrar a formação de diferentes povos
em função de diferentes personagens históricos. Observe a
declaração de Millan sobre o assunto: “As genealogia bíblica se
dividem em três categorias principais de acordo com sua
finalidade: familiar, jurídico-político e religioso. Genealogia
Familiar (ou doméstica) são especialmente preocupada com a
herança e os privilégios dos filhos primogênitos. Genealogias
Jurídico-político são essencialmente centradas em
reivindicações para um cargo hereditário, mas outros exemplos
incluem o estabelecimento de ascendência para a organização
da terra, os agrupamentos territoriais e serviço militar.
Genealogias Religiosas eram utilizadas principalmente para
estabelecer a associação no sacerdócio levítico e Aarônico. A
função de uma genealogia determina em grande parte de sua
estrutura e organização. Em cada um desses casos, há pouca
razão ou a necessidade de dar uma lista completa de nomes,
pois é ascendência, e não o real número de gerações que é
importante[19]”
2. Linguagem: Para compreender esse fato é importante
recorrer à distância da linguagem moderna e àquela usada em
Gênesis. Por exemplo, em nosso idioma nós temos termos
como avô, pai, tio, primo entre diversos outros para descrever
relações familiares. Contudo, o termo hebraico para “filho”
(hb. Ben) poderia ser entendido como filho, neto, bisneto ou até
mesmo descendente. Do mesmo modo, o termo hebraico para
“pai” poderia significar pai, avô e até mesmo progenitor. Tome
por exemplo Gn28.13: “Eu sou o SENHOR, Deus de  Abraão, teu
pai, e Deus de Isaque”. Note que Abraão não era pai Jacó, mas
avô. Do mesmo modo, o termo “gerou” (hb. Yalad), não implica
necessariamente na produção de um novo ser, mas na relação
familiar existente entre eles. Assim, não se deve tomar como
determinante a relação entre os substantivos ligados por tal
verbo.
3. Abrangência: Outra percepção importante é que os nomes
apresentados são geralmente os mais importantes. A existência
da declaração “teve filhos e filhas” demonstra que muitos
personagens históricos não foram apresentados na genealogia.
Portanto, deve se considerar que Moisés, diante das
informações que possuía, não apresentou todas, mas optou por
apresentar somente as que eram relevantes para sua obra.

Tendo dito isso, podemos afirmar que as propostas que tendem


ao mito não devem ser consideradas como válidas, uma vez que
reduzem as escrituras a literaturas sem valor. Já as mais
simbólicas são tão diversas em proposição e análise que seria
difícil manter por todo o Pentateuco o mesmo critério de
interpretação. A opção mais mista, entre o simbólico e o literal
parece uma alternativa covarde que não assume nem uma nem
outra opção.

Considerando as limitações de uma Genealogia, podemos


assumir com segurança que a leitura literal é preferida em
relação às outras. Isso não significa que não se tenha
dificuldades com a mesma, mas que, dentre as dificuldades
hermenêuticas, é a que apresenta mais plausibilidade
escriturística. Diante da diversidade de opiniões sobre o assunto
do ponto de vista literal, deve-se dizer que as opções de
Calvino, Lutero, Ussher, Clyde e a que defende uma nova leitura
quantitativa para o termo ano, devem ser desconsideradas por
não serem plausíveis. Já as opções que tendem a uma visão
mais científica (Comb, Rana) devem ser analisadas com mais
critério e objetividade, embora sejam particularmente
interessantes e não sejam excluam outras opções
hermenêuticas. No que se refere à comparação com textos
sumérios antigos, a similaridade revela não a dependência de
Moisés aos mesmos, mas a declaração de fatos verdadeiros (e
exagerados) concebidos por outros autores antigos.

Portanto, entendo que a Genealogia de Gn.5 tem um papel


mais descritivo que cronológico, cuja ênfase não é a definição
de gerações, mas declaração de ascendência. O contraste entre
a genealogia do cap.4 e 5 servem para demonstrar a distinção
entre o povo eleito e as outras nações, que paulatinamente
pervertiam os ideais divinos estabelecidos na criação.

2.         A rejeição da oferta de Caim

O texto de Gênesis parece não ser tão claro no que se refere a


razão da rejeição da oferta de Caim. Normalmente se entende
que a razão da rejeição é que tal oferta não teria sido uma
oferta com sacrifício e por isso sua oferta não foi aceita, ao
passo que a de Abel teria sido aceita em pelo mesmo motivo.
John Walvoord defende essa opinião: “Embora a Bíblia não
apresente a razão dessa rejeição, enfatiza que é necessário um
sacrifício com derramamento de sangue, para o perdão dos
pecados (Hb.9.22)[20]”.

Considerando as escrituras como um todo, é fato que “sem


derramamento de sangue não há redenção dos pecados”. Por
outro lado, que evidências temos de que Caim saberia disso?
Para respondermos a essa pergunta, vamos realizar algumas
considerações.
1. Condenação Universal do Pecado: Gênesis 3 nos ensina
com clareza que a sentença universal sobre o pecado já havia
sido estabelecida. As atitudes do casal no jardim demonstram
que o relacionamento com Deus havia sido rompido e que o
pecado já se fizera presente em sua constituição. Outro fato
interessante é que Adão, criado à imagem de Deus, gera filhos e
filhas à sua própria imagem, o que suporta a idéia de que os
efeitos danosos do pecado se transmitiam de modo
genealógico. Essa situação da humanidade era irremediável por
sua própria capacidade, por outro lado, a Promessa de Deus
evidenciava um descendente da mulher como Salvador do
poder da Serpente sobre os seres humanos.
2. A expectativa do Salvador: Em Gênesis 3.15 vemos a clara
promessa de Deus em resgatar o ser humano por meio de um
varão, descendente da mulher. Tal promessa veio antes da
sentença de Adão e Eva, como demonstração da Graça
Misericordiosa de Deus. Ou seja, o modo pelo qual Deus deseja
salvar a humanidade está sendo anunciado, e diante do todo,
esse varão precisaria morrer, derramar seu sangue para que a
Redenção fosse completa.
3. A santidade de Deus: Outra informação que merece
atenção é a clara demonstração da santidade de Deus no Éden.
Deus não convive com o ser humano em pecado, e não aceita a
humanidade no estado em que está. A santidade de Deus não o
permite aceitar o que não é santo. Por isso, é necessário um
modo pelo qual o homem possa se aproximar de Deus. Esse
modo normalmente parte Dele mesmo.
4. Informações conhecidas e não reveladas: Considerando os
pontos anteriores, parece óbvio que não seria qualquer atitude,
atividade que poderia colocar o homem e Deus em contato.
Assim, que tipo de sacrifício seria aceito por Deus? Tenho a
impressão que Gn.3.21 prefigura esse tipo de sacrifício.
Entretanto, não há qualquer informação explícita no texto que
apresente esse fato. Aliás, é digno de nota que nenhuma
referência ou inferência a esse fato jamais acontece nas
escrituras para apresentar esse fato. As razões para isso podem
estar relacionadas ao fato de que tal informação parecia
evidente e não precisava ser clarificada. Mas, ainda assim, a
conexão parece entre o conceito de sacrifício em Gn.4 exige
que alguma informação tenha sido oferecida por Deus a Caim e
a Abel que não teria sido registrada por Moisés. Tome o caso
de Jó, que escreve antes mesmo de Moisés nascer. Ele já
conhecia o nome de Deus (Yahweh – Jo.12.9), já esperava um
Redentor Parente (Jó.19.25) que vive e por fim se levantará
sobre a terra, contudo sem qualquer descrição de onde teria
conseguido tal informação. Isso evidência que, ainda que
Gn.3.21 não possa ser fonte suficiente, o próprio Deus pode ter
dado a conhecer que tipo de sacrifício Ele esperava. Doutra
sorte, de onde Abel tirara tal informação? Seria apenas o caso
de sorte? Entendo que não. Acredito que tal informação era
clara para ambos os irmãos, e que Caim resolveu ignorar tal
recomendação. Isso explica o modo como Deus fala sobre sua
atitude após a rejeição de sua oferta. Essa é a opinião de
Matthew Finlay, observe: “Ambos acreditavam em Deus. Ambos
desejavam para adorá-Lo. Caim trouxe uma oferta para Deus,
mas não foi um sacrifício de sangue, e Deus o rejeitou. Abel
trouxe um cordeiro como sacrifício, e Deus o aceitou. Por quê?
Deus foi injusto? Não! Deus tinha revelado que somente através
de um sacrifício de sangue poderia pecadores abordagem de um
Deus santo, e Caim se recusou a fazer isso[21]”.

Sobre o assunto, Walvoord acrescenta:

“A Caim é dito claramente que o caminho do perdão é através


da oferta de um sacrifício de sangue. A oferta de Abel dos
primogênitos do seu rebanho e da gordura deste (Gn 4:4) foi
aceito. Sem dúvida, a oferta refletiu a condição espiritual do
proponente, mas o ponto é que os recursos de iluminação de
Deus a Caim, com base em revelação dada anteriormente. Abel
e Caim sabiam que tanto o sacrifício pelo pecado deveria ser
um animal especial, um cordeiro, um cordeiro particular, o
primogênito, e uma parte específica do cordeiro, a gordura.
Esse conhecimento pode vir apenas da revelação[22]”.

É bem verdade que Walvoord acresce uma dose maior de


especulação ao não oferecer qualquer evidência sobre o
assunto, mas aquelas que já temos demonstrado parecem
suportar tal conclusão. Contudo, é importante notar que o
diálogo de Caim e Deus após a rejeição trata mais de sua
atitude que sua oferta. Observe:

“O Senhor disse que ele não olha com favor para Caim e sua
oferta. O texto não diz que Deus não olha com favor para a sua
oferta; o caso era tanto com Caim como com sua oferta. Assim,
podemos supor que algo estava errado com sua atitude. Este
aspecto é reforçado pelo fato de que o sistema levítico (que
esta passagem antecipa no Pentateuco), onde vemos uma
ligação entre a atitude correta da fé do fiel, podemos assumir
que é importante aqui. Resumindo eu acho que a oferta de
Caim não foi oferecida em fé e melhor que ele poderia oferecer.
Sua reação a Deus e seu irmão indica raiva contra Deus,
provavelmente porque ele foi exposto como pecador elas ações
justas do seu irmão e um questionamento sério da obediência
sincera sobre este assunto[23]”

Sobre o assunto, recomendamos o leitor observar essas


considerações nas observações à Genesis 4, pouco à frente.

3.         A esposa de Caim


Apesar de a pergunta ser freqüente e tida por alguns como sem
solução, a resposta parece relativamente simples. O parecer
comum entre os comentaristas é que Caim casou-se com uma
de suas irmãs. Gary Fisher, sobre isso diz:

Esta é uma das perguntas que sempre teimam em reaparecer,


algumas vezes usadas para tentar ridicularizar a Bíblia, na sua
descrição da criação. Mas, para aqueles que perguntam
honestamente, Gênesis 5:4 diz que Adão e Eva tiveram outros
filhos e filhas, além de Caim e Abel. É evidente que Caim
escolheu uma esposa entre suas irmãs, ou talvez sobrinhas.
Enquanto depois, o casamento com a própria irmã foi
condenado como fornicação (Levítico 18), isso foi permitido
naqueles primeiros tempos da terra, por causa da necessidade
prática. Atualmente, o casamento com qualquer parente
próximo é desaprovado, porque os filhos daqueles que se
casam com parentes próximos correm muito risco de serem
retardados mentais ou terem defeitos físicos. Isto é devido ao
acúmulo dos defeitos genéticos dos parentes próximos. Mas
isto não teria causado nenhum problema a Caim. Deus criou
Adão e Eva perfeitos. Naquelas primeiras gerações deve ter
havido pouca herança acumulada de defeitos a serem passados
aos filho[24].

Alguns entendem que seria um absurdo esperar que Caim se


casasse com uma de suas irmãs, em função do tempo e da
proximidade. Contudo, Hugh Ross para ilustrar o
desenvolvimento da humanidade naquele período propõe a
seguinte projeção:

Crescimento esperado da humanidade durante o tempo de vida de Adão

De acordo com Gênesis 5, o tempo médio de vida entre o período de Adão e Noé é de 912 anos. Cada um d
patriarcas mecionados tiveram “filhos e filhas”, em adição aos filhos apresentado com nomes. A tabela de
baseado em:

Tempo de Vida médio = 900 anos,O primeiro filho chega aos 50 anos,

Tempo útil de gestação =500 anos, e


Uma criança a cada 5 anos durante o tempo útil de gestação.

Ano Casais Reproduzindo Crianças Nascidas População total

0 1 0 2

50 1 0 2

100 1 10 12

150 6 30 42

200 21 100 142

250 71 352 494

300 247 1210 1704


350 852 4180 5884

400 2941 14,450 20,334

450 10,167 49,892 70,226

500 35,113 172,358 242,584

550 121,292 595,378 837,962

600 418,980 2,056,530 2,894,492

650 1,447,245 7,103,862 9,998,364

700 4,999,176 24,538,536 34,536,930

750 17,268,444 84,762,338 119,299,368

800 59,649,613 292,790,780 412,090,500

850 206,045,003 1,011,374,120 1,423,465,830


900 711,732,063 3,493,544,650 4,917,014,660

Após a apresentação desses dados, Ross conclui:

“De acordo com um simples calculo matemático, se Caim


esperou para se casar quando ele tinha 200 anos, ele
provavelmente tinha diversas mulheres para escolher,
fornecendo a migração para o leste em Nod com outros
membros de sua família[25]”

Tendo considerado que a longevidade em Gênesis é literal, a


existência de uma população que pudesse encontrar a Caim é
possível, sem contar que diante da quantidade de pessoas
existentes não era improvável que Caim encontrasse entre seus
familiares uma esposa. Infelizmente os dados de Ross são
meramente especulativos e sua proposição sobre o casamento
de Caim fere um dado apresentado na própria tabela. Segundo
a tabela o primeiro filho chega aos 50 anos do pai, mas a
conclusão sugere que ele teria casado com 200. Ainda que tais
definições não tem o objetivo de serem definitivas, mas
meramente ilustrativas, ficamos com o conceito aqui: Se a
longevidade é literal, o casamento de Caim com uma sobrinha,
irmã, não seria impossível, do mesmo modo que uma cidade
não seria irreal.

A.     Caim e os frutos da Queda

A história de Caim não está demonstrada por acaso nas


escrituras. Sua atitude para com seu irmão serve como um claro
ilustrativo dos efeitos da queda sobre os seres humanos. Aquele
ser criado para estar com Deus, criado para amar, prefere sua
distância de seu Criador e dá ao ódio liberdade e os efeitos são
completamente danosos. O que pretendemos observar nesse
estudo são as atitudes de Caim e Abel, sua relação para com
Deus e como Deus intervém de modo Misericordioso e
Benevolente com suas criaturas, mesmo após o pecado.

Coabitou: Não é novidade que as escrituras usam em muitos


lugares a expressão “Conhecer” para descrever o que a ARA
definiu como coabitou. As versões mais antigas em português
(ARC, ARF, BRP) todas optam pelo termo “conhecer” para
descrever esse ato. As novas versões e paráfrases já tornaram o
sentido ainda mais claro que a ARA, como a NTLH optou por
descrever o ato como: “teve relações sexuais”. É bem verdade
que a ARA e a NTLH são assertivas no que se refere ao sentido
do termo, contudo, o termo hebraico tem um sentido mais
aprofundado desse relacionamento, e esse sentido merece ser
relembrado em nossos dias em que a sexualidade tem sido
banalizada.

O termo empregado em hebraico é “yada’”, traduzido para


grego na LXX pelo termo “gnoskö”. Ambos expressam o sentido
de conhecer pessoalmente e profundamente e por isso é usado
com freqüência como um eufemismo para o relacionamento
sexual. Entretanto, note que o termo já havia sido usado 4x no
capítulo anterior (Gn.3.5x2, 7, 22) e, por conseguinte, não
podemos descartar sua conotação mais primária aqui. Todos os
usos denotam informação, conhecimento, ciência, e em
particular nos versos 5 e 22 demonstram o conhecimento que
Deus tem. Por isso, e possível inferir que o nível de intimidade
do primeiro casal ao ser descrito por esse eufemismo é muito
mais do que a atividade sexual em si, é uma descrição de um
relacionamento. É bem verdade que no mesmo livro vamos
encontrar o uso do mesmo eufemismo para descrever atos
perversos, como em Sodoma (Gn.19.5, 8) ou com as filhas de Ló
(19.33, 35), tendo a visualizar uma perversão no sentido do
termo, de relacionamento à atividade sexual, à medida que o
pecado se alastrava na humanidade. Seja como for, a ênfase do
texto descreve a intimidade do casal de modo eufemístico para
demonstrar a procriação da humanidade conforme esperada
por Deus na Criação.

Concebeu e deu a luz: Essa expressão é importante pelo fato


que inaugura a expectativa do cumprimento da promessa: Um
varão que termine com o estrago feito pela serpente no Éden e
que acabe com a própria serpente. Seria muito inferir que essa
era a expectativa do primeiro casal? Provavelmente sim, observe
a alegria de Eva em receber um filho homem.

Com auxílio do Senhor: É bem verdade que a expressão


hebraica literalmente deveria ser traduzida como “Alcancei do
Senhor um homem”, embora Kidner entenda que a expressão
possa ser entendida de outros modos, como a ARA verteu[26].
Essa exaltação de Eva nos faz pensar que era parte da
expectativa de que a promessa divina estaria a ponto de iniciar.
Em suas notas nas Escrituras, Jonatas Edwards diz:

“Na expressão de Eva, é possível que ela tenha lançados os


olhas nas palavras de Deus, que sua semente iria pisar na
cabeça da serpente e agora vendo que ela tinha um filho, sua fé
e esperança foram fortalecidas de que a promessa deveria ser
cumprida[27]”.

Calvino, do mesmo modo entende que o sentido genuíno do


texto é a expressão da fé de Eva que via em seu filho o
cumprimento da promessa de Deus feita no capítulo anterior,
embora afirme que Eva estava enganada quanto à pessoa que
esperava, que não seria através de Caim, mas de Cristo, que tal
promessa seria levada à efeito[28] (Concordam com esse
parece, Barnes, Gill, Keil & Delitzsch).

Essa não é a opinião exclusiva para o assunto. Clarke chega a


considerar tal possibilidade, mas entende que o sentido é mais
restrito, pois entende que tal conclusão seria deveras avançada
para aquele período. Segundo ele, Eva apenas agradece as
bênçãos de Deus[29]. John Sailhamer entende que a
exclamação de Eva não é tão positiva quando Edwards nos faz
pensar. Segundo ele, “as palavras de Eva foram proferidas com
orgulho de modo que como o Senhor criou o homem, agora a
mulher tinha criado um homem[30]”.

Entretanto, é importante notar que a expressão usada por Eva


inclui o nome de Deus, Yahweh. Observe que no discurso com a
serpente ela o teria chamado Deus de modo genérico (elohim),
mas nesse verso faz questão de chamá-lo pelo nome que tem.
Nesse contexto, usar a expressão “Deus de salvação” como
reconhecimento de auxílio, certamente nos leva a concluir que
Eva demonstrava sua expectativa e fé, de receber por meio das
mãos de Yahweh a semente que pisaria a cabeça da serpente.

É interessante, que nesse sentido as expectativas do primeiro


casal seriam firmemente frustradas. David Merck, que defende
tal opinião, afirma:

“O descendente-Libertador da mulher tão esperado nasceu não


como semente de vida, mas de morte.  Em vez de libertar da
pena da morte, ele se tornou um assassino!  E o filho justo, em
vez de esmagar a cabeça da Serpente, foi esmagado pelo
próprio irmão, que mostrou-se semente (filho) da Serpente[31]”
Caim: Um interessante trocadilho acontece nessa sentença entre
o nome de Caim e a declaração de Eva sobre seu filho. Em
hebraico, o substantivo Caim (qayim) pode significar “consegui,
alcancei, adquiri”, e Eva usa a forma verbal desse substantivo ao
dizer “Adquiri um varão” (qanah). Considerando esse paralelo,
Krell chega a dizer que Caim é o nome hebraico do primeiro
filho de Adão e Eva, mas que em português seu nome seria
“consegui”[32].

1.         A Religiosidade de Caim

Em poucas palavras, o livro de Gênesis nos apresenta Caim, com


sua profissão e religião. Talvez o interesse do autor não fosse
uma descrição detalhada sobre a vida dos irmãos, fato que
podemos perceber na exclamação de Eva que chamou um
infante de homem, varão.

Lavrador da Terra: A descrição profissional de Caim é essa. Gill


entende que isso se deve à primogenitura de Caim, que por ser
o primeiro filho assume do pai a profissão de lavrar a terra[33].
Note que expressão similar é usada em Gn.2.5 para descrever o
trabalho de Adão como lavrador da terra, ou aquele que
trabalha com a terra. Embora nenhuma explicação tenha sido
dada para esse fato, a opção de Gill não é em si mesma
errônea, apenas especulativa.

Fim de uns tempos: A expressão usada pela ARA é uma


tentativa de se definir aquilo que o hebraico parece ter deixado
sem definições. O uso do substantivo “yom” para descrever
tempo, como já demonstramos no início do nosso comentário,
não tem definição específica de tempo, e por isso as traduções
aqui não são unânimes. A ACF e ARC optaram por verter esse
texto por “ao cabo de dias”. A SBP optou por verter: “ao fim
dum certo tempo”. Seja qual for a tradução, o sentido aqui não é
a quantidade exata de tempo que se passara, mas que, em certa
ocasião, depois de algum tempo passado, Caim trouxe uma
oferta ao Senhor. Alguns, mais especifistas, entendem que a
expressão deveria ser entendida como “ao fim de dias”, como
uma alusão ao Sábado[34], entretanto, tendo a ver essa opção
como um pouco especulativa demais.

Fruto da terra: Literalmente, Caim trouxe o resultado do seu


trabalho. Por ser lavrador da terra, trouxe o que a terra havia
produzido debaixo do seu esforço. Lembre-se que a terra após
o pecado é maldita e produz cardos e abrolhos, e que sem o
trabalho braçal do ser humano não seria possível o consumo.
Era necessário a fadiga para que Caim pudesse tirar da terra “os
Frutos da Terra”. Diante disso, não se pode dizer que a oferta
em si tenha sido medíocre, nem resultado.

Uma oferta: O termo empregado aqui por Moisés não é o


termo técnico usado em Levítico para descrever uma oferta
para oferta (hb. qorban), mas um termo mais genérico, usado
inclusive para descrever uma oferta de cerais (hb. Minchah).
Note que no segundo capítulo de Levítico, Deus dá a Moisés
uma legislação para tratar das ofertas de cereais, que
chamamos ofertas de dedicação: “Quando alguma pessoa fizer
oferta de manjares ao SENHOR, a sua oferta será de flor de
farinha; nela, deitará azeite e, sobre ela, porá incenso. Levá-la-á
aos filhos de Arão, os sacerdotes, um dos quais tomará dela um
punhado da flor de farinha e do seu azeite com todo o seu
incenso e os queimará como porção memorial sobre o altar; é
oferta queimada,  de aroma agradável ao SENHOR”. Essa oferta a
Yahweh seria queimada e teria aroma agradável a Deus. Isso
tem levado comentaristas a observarem que o problema não
era a oferta em si mesma, mas a atitude do ofertante[35]. Note
que Deus não rejeitaria a oferta em si, uma vez que Ele mesmo
teria incluído tais ofertas como um modo de oferta legítima.

Yahweh: É interessante observar que a oferta de Caim foi a


Yahweh, ou seja, uma manifestação de adoração. O texto é claro
em dizer que Caim trouxe uma oferta a Yahweh. Já temos dito
que não há nenhuma menção explícita de que tipo de sacrifício
era esperado, mas temos por certo que Gn.3.21 parece
prefigurar que existe a exigência de derramamento de sangue. É
quase convenção que a oferta de Caim não foi aceita em função
da falta de derramamento de sangue da sua oferta a Yahweh,
contudo, temos que considerar que o texto não vai nessa
direção. O texto diz que Deus não se agradou de Caim e de sua
oferta. Kidner nos lembra que “tudo o que é explícito aqui é que
Abel ofereceu a fina flor do seu rebanho e que o espírito de Caim
era arrogante[36]”. Sailhamer entende que o texto, tomado
como um todo, não nos ensina sobre que tipo de sacrifício é
aceitável a Deus, mas que tipo de atitude é necessária para se
ofertar a Yahweh[37]. Note que tanto a aprovação, quanto
reprovação de Yahweh iniciam com a declaração pessoal:
“Agradou-se o SENHOR de  Abel e de sua oferta” (Gn.4.4); “ao
passo que de  Caim e de sua oferta  não se agradou” (Gn 4:5).

O que se pode concluir sobre a adoração de Caim? Vamos tecer


algumas possibilidades diante das observações que temos feito
ao texto:

1. Ele pode ter rejeitado uma informação explícita de Deus


sobre como Deus gostaria de ser adorado. Se esse é a ênfase
principal do texto, entendemos que o modo autônomo de Caim
em ofertar nos alerta para o fato de que Deus não quer ser
adorado de qualquer jeito, mas que ele espera de nós uma
adoração específica. Deus não quer ser adorado com
sinceridade, mas do modo correto.
2. Se a ênfase recai sobre a atitude de Caim, aprendemos
que Deus não se apraz da adoração desconexa com a atitude.
Jonatas Edwards, considerando essa possibilidade, afirma que
Caim prefigura os Fariseus[38], que faziam o que era certo do
modo errado, eram peritos em conhecer o que Deus esperava,
mas não eram vazios por dentro, cheios de morte.
3. É importante notar que Deus rejeita pessoas e modos de
adoração não compatíveis com a que Ele determinou como
certa. O cristianismo e suas desvirtudes na modernidade têm
insistido que Deus aceita qualquer adoração de qualquer
coração, mas a história de Caim nos lembra que um Deus Santo
e Justo como Yahweh deve ser adorado, como Ele determinar
que deve ser adorado.

Observe a opinião de Merck:

“O problema maior com a oferta do Caim não era a oferta em


si, mas o seu coração.  Não foi um ato de adoração em verdade
(por não ser autorizada por Deus) e não foi em espírito.  O
coração de Caim estava errado!  O texto enfatiza, “Mas com
CAIM, e com sua oferta, Deus não se agradou.”  Algo no
coração dele deixava a desejar . . .  talvez fosse rebeldia, talvez
ressentimento, talvez indiferença, talvez apatia espiritual.  Talvez
ficasse indignado que tinha que doar para um ser celestial
invisível o fruto do seu suor e labor.  O que sabemos com
certeza é que não foi de coração mas “de boca para fora”que
ele fez sua oferta.  E os eventos que seguem verificam esse
fato.  Quando repreendido por Deus, ele revela seu desgosto,
sua amargura, sua hostilidade diante do Criador.  Algo horrível
está acontecendo no coração dele[39]”

2.         A Rebeldia de Caim


A adoração vazia de Caim não foi suficiente para comprar o
favor e a benevolência de Deus. Embora Caim pudesse ter
oferecido a Yahweh, ele não tinha feito como era devido, e as
escrituras demonstram como Caim se rebelou contra o Senhor.

…de Caim e de sua oferta: Chamo a sua atenção a um detalhe já


apresentado: Deus não se agradou de Caim em primeiro lugar.
Tenho a impressão que a ordem de palavras aqui é significativa:
Por não ter se agradado de Caim a oferta que trouxera também
não fora aceita. Tendo a crer que a oferta segue o coração do
ofertante. Não há oferta agradável se não há um coração grato
por trás da oferenda. Sobre isso, Calvino nos instrui:

“Não se pode duvidar, que Caim comportou-se como os


hipócritas estão acostumados a fazer; ou seja, que ele queria
apaziguar Deus, como um cumprimento de uma dívida, através
de sacrifícios externos, sem a menor intenção de se dedicar a
Deus. (…) Quando Deus vê tamanha hipocrisia, combinada com
brutal escárnio manifesto contra Ele mesmo, não é
surpreendente que ele odeie, seja incapaz de suportar, de onde
segue-se também, que ele rejeita com desprezo os trabalhos
daqueles que se afastam Dele[40]”.

É também importante olhar para as escrituras para verificarmos


que impressões essa história deixou sobre os autores sagrados.
Em primeiro lugar, deve-se lembrar do Apóstolo João, que diz
que o problema com Caim eram suas atitudes (1Jo.3.12).
Entretanto, o autor de Hebreus entende a rejeição de Deus
estava ligada ao fato de que o sacrifício de Caim não tinha sido
excelente (Hb.11.4). O que podemos concluir com isso é que,
tanto o caráter de Caim estava em desacordo com a expectativa
de Deus quanto sua oferta. Com isso, aprendemos que tanto
adoração e comportamento estão intimamente ligados.
Irou-se sobremaneira: O texto não e claro em descrever como
Deus teria rejeitado sua oferta, mas é claro que, pela descrição
do texto, Caim se apercebeu da rejeição e isso lhe deixou irado.
Contra quem Caim ficou irado o texto não é plenamente claro,
mas parece evidente que a ira de Caim deu-se primeiramente
contra Deus, mas que tenha se desenvolvido contra seu irmão. É
interessante que, do mesmo modo que a rejeição de Deus pela
oferta de Caim é visível para Caim, a ira de Caim contra Deus é
plenamente perceptível para Deus.

Descaiu o Semblante: A expressão descrita quase literalmente


pela ARA, descreve de modo figurado que a ira de Caim havia
se tornado tão evidente que seu semblante já o testemunhava.
Note o contraste entre o semblante descaído de Caim, e o rosto
levantado de Deus como sinal de bênção para o povo em
Nm.6.26. O contraste entre os dois tipos de semblante nos
serve para descrever a situação de Caim como profundamente
irado.

3.         Graça Preventiva

Note que, embora Caim tenha sido rejeitado do mesmo modo


que sua oferta, Deus não havia o abandonado. O texto continua
a descrever uma interação de Deus com Caim que reflete
cuidado e graça.

Por que andas irado? A aproximação de Deus nesse verso não o


apresenta como um Deus desinformado da razão do furor de
Caim, muito pelo contrário, de forma graciosa Deus aproxima-
se de Caim para auxiliá-lo com sua Ira. Sobre isso Barnes diz
que “O Senhor ainda não desistiu de Caim. Em grande
misericórdia Deus interage com ele. Ele coloca uma questão que
demonstra que não há justa causa seus sentimentos[41]”. Kidner
vê nessa aproximação de Deus “Seu apelo para a razão e Seu
interesse pelo pecador [que] são assinalados tão vigorosamente
como Seu interesse pela verdade e pela justiça[42]”. Do mesmo
modo que Deus se apresenta como Justo nesse texto, ele
também se apresenta como Gracioso. A rejeição de Caim não
era definitiva, a tal ponto que Ele mesmo estava interessado na
restauração de Caim.

Se procederes bem: Após sua graciosa aproximação, Deus


também deixa com Caim alguns conselhos práticos para
enfrentar a situação que tinha diante de si mesmo. Mas, o que
poderia ser um bom procedimento para o momento? É bem
verdade que nenhuma instrução específica sobre o assunto
havia sido dada, mas tendo a crer que Caim teria entendido.
Deffinbuag sobre isso diz: “Ainda que não saibamos os
pormenores do que o “proceder bem” envolvia, Caim sabia. O
problema de Caim não era falta de instrução, mas insurreição e
rebelião contra Deus[43]”. De fato, essa expressão aponta, do
meu ponto de vista, que a questão fundamental da rejeição era
o comportamento e não a oferta em si.

Contudo, não podemos deixar de considerar que o Deus Todo-


Conhecedor estava a falar com Caim e que proceder bem pode
certamente implicar em não fazer o que Caim parecia
predisposto a. Barnes alude ao fato de que Caim teria um
caminho de retorno a uma postura aceitável diante de Deus que
incluiria reconsiderar seu modo de viver, de oferecer ao Senhor
com intenção correta[44].

Serás aceito: Uma breve nota deve ser feita aqui: “No hebraico,
aceito é literalmente um exaltar, expressão que pode indicar um
semblante sorridente contrariamente a um semblante
carrancudo (descaído). Pode ser que o sentido seja o de que o
simples olhar para o rosto de Caim o traia; mas provavelmente
vai além, incluindo a promessa de restauração da parte de Deus
sobre uma mudança de coração[45]”.

E se não fizeres bem: O leitor poderia esperar aqui uma


sentença de Deus: “Se não fizeres bem, você morrerá”.
Entretanto não é assim que Deus procede para com Caim. Em
primeiro lugar, devemos admitir que ele já havia feito o que não
era bom, com sua oferta arrogante. Contudo, em seu diálogo,
Deus evidência que ele poderia manter-se nesse caminho
errôneo, mas assegura que, embora não recomendável, isso não
implicaria em um caminho sem retorno Aliás, é digno de nota,
que o caminho que teria adotado até aqui ainda tinha retorno e
Deus, graciosamente tinha se aproximado de Caim para adverti-
lo. Krell, sobre isso diz:

“Isto implica claramente que Caim sabia o que era certo. Ele
sabia que a qualidade da oferta a se levar e optou por não
trazê-la. Ele sabia que seu coração não estava adequado, mas
ele optou por não abordar a questão. No entanto, este versículo
mostra também a graça de Deus, pois Caim foi ainda convidado
a apresentar a oferta correta. Deus o avisou e  queria que Caim
“fazesser o bem”, mas Caim endureceu o seu coração[46]”

O pecado jaz à porta: O alerta de Deus é claro: O pecado estará


à sua disposição para realizar todo o mal que intentar realizar.
Ainda que Caim optasse pela manutenção do seu estado de
rebeldia isso não lhe colocava em situação de homicida, ele
ainda tinha a possibilidade de controlar sua ira. O alerta de
Deus era que “um terrível ato pecaminoso estava perigosamente
próximo; estava ali como um animal feroz, esperando para saltar
sobre ele[47]”. Deuffinbaug sobre isso diz que “se Caim preferia
ignorar a suave cutucada de Deus, que fique então
completamente ciente dos perigos à sua frente. O pecado jazia
esperando por ele como um animal à espreita. Queria controlá-
lo, mas ele devia dominá-lo.  Caim tinha que tomar uma decisão
e ficaria responsável por sua escolha[48]”.

De forma prática essas instruções de Deus para Caim podem ser


entendidas como boas e más notícias, observe:

 Más notícias:
 O pecado está a nossa espera. A influência do
mundo, da carne, do Diabo sempre conspiram a favor da nossa
queda. Tudo o que lhe falta é oportunidade.
 O pecado nos deseja, ou melhor, nossa carne deseja
o pecado. Por sermos conhecedores do bem e do mal, nos
tornamos aptos a saber o certo, mas desejamos o errado.
 Boas Notícias:
 Nós podemos dominar o pecado. A partir da
salvação em Cristo, somos habilitados a suportar a provação,
uma vez que Deus conhece nossa capacidade pessoal e não
permitirá que uma tentação venha sobre nós a tal ponto que
não possamos suportar. Krell usa uma figura interessante para
descrever esse fato: “Quando a tentação bater à porta, nós
pedimos para que Jesus atenda[49]”.
 Nós podemos nos humilhar e voltar a Deus. Ainda
que um erro tenha acontecido, como aconteceu com Caim,
podemos ter a certeza que podemos nos voltar a Deus
humildemente arrependidos por nossas faltas e prontos a
aceitar Dele a devida punição graciosa que tem a oferecer para
nos purificar o caráter.

4.         O assassinato de Abel

É interessante que a despeito de todos os alertas divinos Caim


manteve-se obstinado eu seu furor contra seu irmão. Sua
completa rejeição do conselho de Deus demonstra também que
Caim dava pouco valor às palavras de Deus. A ira já tinha
tomado conta de sua vida e capacidade de reflexão. Caim havia
entrado naquele estágio de ignorância provocada pelo aguçar
do pecado em nossa vida. Trata-se daquele ponto em que,
tomado por ódio, tudo o que se pensa é em como descarregar
a raiva e o ódio.

Vamos ao Campo: Por que razão ir ao campo? Uma vez que


sabemos que o pecado de Caim é premeditado, temos por
certo que ele não está a oferecer um passeio ao campo. Alguns
comentaristas tem visto nisso uma declaração de cuidado
preventivo de Caim que não queria que o crime tivesse
testemunhas. De fato, quanto mais longe das pessoas, mais
liberdade para apregoar sua ira Caim teria.

…se levantou Caim contra Abel: Merck vê no texto uma


demonstração do tamanho da ira de Caim quando o texto
demonstra por 7x que Abel era “seu irmão” (Gn.4.2, 8x2; 9x2, 10,
11)[50]. Essa descrição de relação entre Caim e Abel, como
acontece no texto sugere que a atitude de Caim era
absurdamente desprezível.

..e o matou: “Caim não agiu segundo o conselho divino. Ele não


mudou a sua oferta a Deus, tanto do ponto de vista dos
sentimentos internos como da forma exterior. Apesar de se falar-
lhe do céu, ele não vai ouvir (…) Quando eles estavam no campo
e, portanto, fora da vista, ele se levantou contra o seu irmão e o
matou. A ação foi realizada e não pode desfeita. Os motivos para
isso eram diversos. O egoísmo, o orgulho ferido, ciúmes, e uma
consciência culpada estavam todos em funcionamento (1Jo.3.12).
Aqui, então, é pecado após pecado, o que comprova a veracidade
do alerta dado na paciência misericordiosa de Deus[51]”.

A completa rejeição do conselho de Deus por Caim, fez com


que Merck encontrasse em Caim um pecador irado (v.5),
teimosos (v.6-7) e assassino cruel (v.8)[52]. Não é à toa que a
reputação neotestamentária de Caim é tão ruim. É importante
notar que todos os acontecimentos narrados no capítulo 4 são
conseqüências anunciadas já na queda. A dissolução da família,
a queda do amor e a entrada do ódio eram esperadas. O
conhecimento do bem e o mal levou apenas o ser humano a
frustração do conhecimento do bem e da maldição do desejo
do mal. Agora, aquele homem que havia chegado como
esperança e salvador, que pisaria na cabeça da serpente, é
agora aquele que matara seu irmão. Ao invés de terminar com o
domínio do inimigo, como parecia ser o esperado, ele agora é
um aliado do mesmo, plenamente dominado pelo pecado e
pronto a levá-lo às ultimas conseqüências.

5.         A confrontação e punição divina

É interessante que a despeito de todos os alertas divinos Caim


manteve-se obstinado eu seu furor contra seu irmão. Sua
completa rejeição do conselho de Deus demonstra também que
Caim dava pouco valor às palavras de Deus. Entretanto, Deus
não o deixa sem punição, e por ter graciosamente avisado a
Caim do perigo do pecado, Deus aproxima-se a agora como
inquisidor.

Onde está Abel, teu irmão? Do mesmo modo que Deus havia se
aproximado de seus pais no Éden, Deus aproximasse de Caim.
Tenho a impressão Deus inicia suas conversas com perguntas
na expectativa de que suas criaturas tenha a oportunidade de se
arrepender. Note que Deus tem plena ciência do que havia
acontecido, mas não inicia sua conversa com a punição mas
com uma pergunta reveladora. Sobre isso Gill diz: “Essa
pergunta é feita, não por não saber onde ele estava, mas na
intenção de trazer Caim à convicção e confissão do seu pecado,
para tocar sua consciência com ela, e enchê-lo de remorso por
isso[53]”.

Não sei: Embora a pergunta de Deus a Caim relembre o cuidado


de Deus em trazer Adão ao arrependimento no Éden, a resposta
de Caim reflete um avanço significativo do poder do pecado em
sua constituição. Barnes sobre isso fala que a “resposta de Caim
revela um recurso desesperado de falsidade, uma alienação total
do sentimento, a extinção do amor fraterno, a predominância
desse egoísmo que congela carinho e desperta o ódio[54]”. Keil &
Delitzsch afirmam que o ato de desafiar a Deus “cresce com o
pecado, e a punição acompanha a culpa. Adão e Eva temeram
diante de Deus, (…) Caim corajosamente nega [o pecado][55]”.

Sou eu tutor de meu irmão? A mentira deslavada é apresentada,


e como se não bastasse, ele acresce a ela um alto teor de
sarcasmo: “Sou eu tutor de meu irmão?”. Deffinbaug sobre isso
diz: “A insolência de Caim é incrível. Não só ele mente ao negar
qualquer conhecimento sobre o paradeiro de seu irmão, mas
parece censurar a Deus pela pergunta. Pode até mesmo haver
um jogo sarcástico nas palavras para dar a impressão de: ‘Não
sei. Deverei eu pastorear o pastor? ’[57]”.
[56]

Que fizeste? Mais uma vez Deus age misericordiosamente.


Considerando a situação do diálogo, Krell afirma que “se eu
fosse Deus, eu teria consumido Caim exatamente onde ele
estava! Mas não o Senhor! Em vez disso, Ele pergunta a Caim
uma questão de acompanhamento que é a mesma pergunta Ele
perguntou Eve (3:13): “O que você fez?”[58]”. No lugar de Deus já
teria perdido a paciência, como Krell, mas Deus mantém sua
longanimidade e seu diálogo e caminha para a realização de
sua disciplina. Deffinbaug, sobre isso nos diz:
“O solo foi amaldiçoado por causa de Adão e Eva (Gn. 3:17).
Agora a terra é manchada com o sangue de um homem, e que
foi espalhado por seu irmão. Esse sangue agora clama a Deus
por justiça (4:10). Deus, então, confronta Caim com seu pecado.
O tempo para arrependimento já passou e agora a sentença é
dada a Caim pelo Juiz da terra[59]”.

És maldito sobre a terra: A sentença iniciada por Yahweh


contém claras evidências de seu Juízo. É Calvino que diz: “Caim,
depois de ter sido condenado pelo crime, o julgamento é agora
pronunciado contra ele. E em primeiro lugar, Deus constitui a
terra do ministro de sua vingança, por ter sido contaminada pelo
parricídio ímpio e horrível[60]”.

Quando lavrares a terra: É interessante que Deus inicia a


sentença de Caim com o que ele supostamente tinha de
melhor, o seu trabalho como lavrador. A terra já havia sido
amaldiçoada, e tal maldição teria intensificado seu trabalho.
Mas, com a maldição proferida por Deus, nem no seu trabalho
Caim poderia ter prazer novamente. É Deffinbaug que diz:

“Caim tinha sido abençoado com um “polegar verde”. Ele


tentou se aproximar de Deus através do fruto de seu trabalho.
Agora Deus o amaldiçoou bem onde residia sua força e seu
pecado. Nunca mais Caim seria capaz de se sustentar pelo
cultivo do solo. Enquanto que Adão teve que obter seu sustento
pelo suor de seu rosto (3:19), Caim não poderia nem sobreviver
pela agricultura. Para ele a maldição do capítulo três foi
intensificada. Para Adão a agricultura foi difícil; para Caim foi
desastrosa[61]”

Keil & Delitzsch nos lembram que tal punição não era
demasiada, pois “a terra foi obrigada a beber o sangue inocente,
[e] ela se rebela contra o assassino, e quando ele cultivá-la, ela
irá retirar a sua força, de modo que a terra não possa
produzir[62]”. Se o homem havia sido criado para encontrar no
trabalho satisfação, Caim está fadado a nem nisto ter satisfação.
“Ele foi banido para uma parte menos produtiva da terra,
removida da presença de Deus e da sociedade de seu pai e sua
mãe, e abandonado a uma vida errante e incerteza. A sentença
de morte já tinha sido pronunciada sobre o homem[63]”.

…serás fugitivo e errante pela terra: O aspecto final da punição


de Deus para Caim seria a vida de um “vagabundo”. O termo
hebraico usado para descrever o castigo de Caim como fugitivo
é o mesmo termo que Deus emprega para destinar o povo de
Israel no futuro a vagar pelo deserto. O sentido é claramente
um desalojar de Caim, para que perca os benefícios da vida
próxima a família (com quem ele parece não conviver bem) para
que viva à mercê da benevolência de outras pessoas, pois sua
sentença de morte já estava lançada. Dois substantivos similares
são usados nessa sentença e o sentido é reforçar a idéia. Invés
de se tomar como duas características como a ARA fez, seria
adequado tomá-las como descrição de uma mesma ação, como
a BJ: “Serás fugitivo errante”.

Não posso suportá-lo: Ao ouvir sua sentença Caim admite ser


demasiadamente pesado o seu fardo. A questão de Caim era
que a punição parecia desproporcional com o crime, e como
poderíamos esperar, Caim está unicamente preocupado
consigo mesmo. Observe que em uma pequena sentença (v.13-
14) ele conseguiu empregar o pronome pessoal 7x vezes. Sobre
isso Krell diz:

“Tudo com o que Caim se preocupava era ele mesmo. Não foi
medo ou reverência a Deus, não para lamentar a perda de vidas
inocentes, não há tristeza pelo pecado, e nenhum pensamento
para os seus pais que perderam um filho tragicamente com o
assassinato e estaria perdendo uma outra por causa da rebelião.
Houve apenas uma preocupação consigo mesmo. O assassino
tem medo de ser morto[64]”.

É interessante que o assassino tenha medo de morrer, mas é


um fato que o pecador tem que encarar. O mentiroso sempre
está alerta a mentira, o infiel sempre desconfiado, o ladrão
sempre receoso. O pecado marca de tal forma o pecador que o
que ele faz para outros, espera receber de outros. É por isso que
Deffinbaug diz:

“As palavras de Caim soam familiares a qualquer pai. Às vezes


uma criança está sinceramente triste por sua desobediência. Em
outras está apenas triste por ter sido pega, e lamenta
amargamente a severidade do castigo que vai receber. Tudo o
que Caim faz é repetir amargamente sua sentença, e expressar
seu medo de que os homens o tratem da mesma maneira que
ele tratou seu irmão[65]”.

Qualquer que matar a Caim: Apesar da punição, Deus também


ofereceu uma promessa. A declaração não era uma garantia de
que Caim não seria assassinado, mas de que, aquele que o
matasse, teria sobre si a vingança punitiva de Deus multiplicada
por sete. Isso significa que a punição contra essa pessoa será
“sete vezes maior do que Caim, ou seja, ele deve ser
extremamente punido; a vingança deve ser tomada sobre ele de
uma forma muito visível, e em outro patamar, mais elevado[66]”.
O targum de Onkelos sugere que a punição será em sete
gerações, o que demonstra que o entendimento da passagem
era de uma vingança ainda maior contra Caim. O sentido dessa
punição demonstra para Caim que, embora ele mesmo não
tenha dado valor a vida humana, Deus a valoriza de tal modo
que garante que Caim não seja morto.
Pôs o Yahweh um sinal: A demonstração da Graça de Deus
avança ainda mais, pois além de assegurar que o assassinato de
Caim seria vingado pelo próprio Deus, Yahweh coloca um sinal
em Caim com o objetivo de protegê-lo de pessoas que o
encontrassem. Não temos certeza de que tipo de sinal o texto
está nos falando. Três propostas são oferecidas: (1) Um sinal
físico, como quem sabe uma marca na pele, uma espécie de
tatuagem. (2) Um evento; um sinal como um evento que
relembre os homens do valor da vida humana; (3) Antigos
rabinos chegaram a afirmar que um cachorro iria ao lado de
Caim como proteção. Embora não saibamos com exatidão que
tipo de sinal é esse, é certo que o objetivo esse sinal era a
proteção da vida de Caim, que protege a Caim da recriminação.

E saiu Caim da presença de Yahweh: O retrato final da sentença


de Caim é similar ao que vemos em Adão e Eva, que foram
colocados fora do Éden, mas de Caim é dito que ele foi expulso
da Presença de Yahweh. A impressão que temos com essa
declaração é que Deus encaminhou Caim a vaguear pela terra, e
ele foi. Agora sem alternativas, Caim parece ter cumprido a
primeira ordem de Deus. “O retirada de Caim da proximidade
do afeto dos pais, dos relacionamentos familiares, e da
manifestação divina, deve ter sido acompanhada de profundo e
ulterior sentimento de arrependimento e remorso. Mas um
profundo e recorrente transgressor e ele deve sofrer as
conseqüências[67]”.

Terra de Node: “O nome Node denota uma terra de transição e


exílio, em contraste com Éden, a terra do deleite, onde Yahweh
andava com o homem[68]”. “Alguns sugerem que este versículo
deve ser assim traduzido: ‘e Caim saiu da presença do Senhor, a
leste do Éden, e habitou como um errante na terra’; assim a
maldição pronunciada sobre ele em Gn.4.12, foi realizada[69]”.

B.     Abel Sacrifício e Martírio

O outro filho de Adão e Eva apresentados nessa narrativa


parece não ter tido especial atenção, como o seu próprio nome
parece sugerir. O termo hebraico que origina o nome Abel é
“hebel”, que no texto não é definido, mas é entendido como
sopro, vaidade e alguns pensam que isso se refere à sua vida de
poucos anos sobre a terra. Tenho a impressão que Abel é assim
denominado em função de uma expectativa já suprida por
Caim, como o descendente da mulher que findaria o domínio
da serpente.

Note que nenhuma declaração a respeito de Abel é dada no


texto. Sobre Caim, Eva apresenta uma bela afeição, ao passo
que nada mais se diz se não que Abel era pastor de ovelhas. A
completa faltar de informações, além de nome e profissão, nos
faz pensar que Caim tinha sido o filho esperado e que Abel teria
vindo como conseqüência natural da existência humana.

Alguns pensam que Caim e Abel eram gêmeos[70], opção que


não parece descrever a situação dos irmãos. O que se tem por
certo é que a história de Caim e Abel parece iniciar a visão
bíblica de que nenhum primogênito seria de fato o filho de
quem Deus se apraz, ou escolhe, até que O Primogênito da
Criação apareceu sobre a terra, Deus encarnado.

1.         A Adoração de Abel


O que podemos perceber é que, a semelhança de Caim, Abel
também se aproximou de Deus com sua oferta. Entretanto a
descrição de sua oferta é tanto diferente do que se vê com
Caim.

Pastor de Ovelhas: “Abel era um pastor de ovelhas (2), uma


profissão nobre, pois numa época em que os homens ainda não
comiam carne (veja 9.3), ovelhas serviriam para pelo menos 2
propósitos: 1) Cobrir a nudez do homem, que tem precedente no
próprio ato de Deus (3.21) e 2) Servir de oferta, um sacrifício pelo
pecado, também conforme o modelo de Deus (3.21)”[71].

Primícias de seu Rebanho: Note que a oferta de Abel foi similar


a oferta feita por seu irmão Caim. Caim era lavrador e ofereceu
o fruto do seu trabalho. Abel era pastor de ovelhas e trouxe a
Yahweh o fruto do seu trabalho. Por outro lado, note que o
silêncio agora é sobre a qualidade da oferta dada por Caim. A
oferta de Abel era uma oferta das suas primícias. O termo
hebraico “bekowrah” é usado poucas vezes no AT, e
normalmente significa primogênito (Gn.43.33), ou até mesmo
primogenitura (Gn.25.31). O sentido expresso aqui é bem
captado pelas antigas versões portuguesas que verte a
expressão como “primogênitos do seu rebanho”. A idéia que se
tem desse texto é que Abel trouxe o que tinha de melhor. Seria
isso um contraste com a oferta de Caim? Diante do caráter que
Caim apresenta nesse capítulo não seria de se estranhar que
sua oferta tivesse sido de baixa qualidade. Contudo, sobre isso,
podemos apenas inferir. O que é certo é que Abel ofereceu do
que tinha de melhor.

Yahweh se agradou de Abel e sua oferta: Como já temos


demonstrado, Deus se agrada primeiramente de Abel e
conseqüentemente de sua oferta. Isso me sugere que tal ordem
é importante: A aceitação da oferta depende do coração do
ofertante. Como Abel pode perceber que Deus aceitou sua
oferta? O texto não especifica e muitas especulações são feitas
sobre o assunto. “O olhar do Senhor em todo caso, é um sinal
visível de satisfação. É opinião comum e antiga que o fogo
consumiu o sacrifício de Abel e, assim, mostrou que foi
gentilmente aceitou[72]”. Seja como for, tanto aprovação como
reprovação foram claramente percebidos por Caim e Abel.

2.         A Reputação Bíblica de Abel

O texto de Gênesis 4 nos oferece poucas informações sobre


Abel, contudo sua reputação transcende as páginas do Antigo
Testamento. Autores neotestamentário ao lançarem os seus
olhos sobre o AT encontraram em Abel definições de um
homem digno de atenção.  Sua fé, oferta, atitude e caráter são
apresentados no NT como declaração de um homem justo.

Diante disso, comentaristas tem afirmado que Abel é, sem


dúvidas, um exemplo para os cristãos em todos os tempos.
Merckh, por exemplo, entende que Abel “representa o povo de
Deus, fiel, com coração sincero, inocente, que adora a Deus em
espírito e verdade, resplandescendo como luzeiros no mundo
pervertido e corrupto[73]”.

Caráter: Ainda sobre Abel, Jesus afirma: “Por isso, eis que eu vos
envio profetas, sábios e escribas. A uns matareis e crucificareis; a
outros açoitareis nas vossas sinagogas e perseguireis de cidade
em cidade para que sobre vós recaia todo o sangue justo
derramado sobre a terra, desde o sangue do justo Abel até ao
sangue de Zacarias, filho de Baraquias, a quem matastes entre o
santuário e o altar” (Mt.23.34-35). Com esses dois versos
aprendemos:
1. Que Jesus reputava a Abel como um profeta: “eis que eu
vos envio profetas”. Não sabemos ao certo que tipo de profeta
ele teria sido, mas o fato de Jesus iniciar por Abel e finalizar
com Zacaraias (uma impressionante demonstração da extensão
do Canon vétero-testamentário) confirma a idéia que Jesus
tinha a respeito de Abel.
2. Que Jesus reputava a Abel como um mártir: “o sangue
justo derramado sobre a terra”. Abel é listado como o primeiro
que morreu, cujo sangue será Vingado por Deus (Ap.6.9-10).
3. Que Jesus reputava Abel como Justo: “o sangue justo
derramado sobre a terra, desde o sangue do justo Abel até ao
sangue de Zacarias”. Duas vezes Jesus usa o termo “justo”
(Gr. diakiós) para descrever a Abel, uma vez em referência a seu
sangue e outro em relação a sua pessoa.

Oferta: No que se refere à sua oferta, o autor de Hebreus nos


diz: “Pela fé, Abel ofereceu a Deus mais excelente sacrifício do
que Caim; pelo qual obteve testemunho de ser justo, tendo a
aprovação de Deus quanto às suas ofertas. Por meio dela,
também mesmo depois de morto, ainda fala” (Hb.11.4). Desse
texto retiramos as seguintes observações:

1. O autor de Hebreus entendeu que o sacrifício de Abel


teria sido mais excelente, o que sugere a diferença de qualidade
entre as ofertas. Alguns tem objetado à essa conclusão, em
função de que o uso normal do adjetivo “pleíona” descreve algo
maior em quantidade (Mt.21.36; Mc.12.43; Lc.21.3). Contudo, o
sentido qualitativo do termo é claramente encontrado no NT
(Mt.6.25; 12.41, 42; Mc.12.33; Lc.11.31, 32; 12.23) e
perfeitamente concebido aqui em Hebreus.
2. O autor de Hebreus defende que Abel, em função da sua
oferta, teria o testemunho de ser justo. De onde proveio tal
testemunho? O autor de Hebreu diz que sua oferta, apesar de
ter sido ele morto, ainda fala. Ou seja, o exemplo registrado em
Gênesis serve como fundamento para se descrever Abel como
um homem justo. O termo justo (Gr. dikaiós) descreve uma
pessoa honesta, boa, reta. Essa definição do caráter de Abel é
confirmado pela opinião de Jesus a seu resepeito.
3. O autor de Hebreus confirma o fato de que a oferta de
Abel fora aprovada por Deus. Na verdade o termo que descreve
aprovação é testemunhar (Gr.martureö). O sentido aqui é que
Deus testificou sua oferta e a aceitou.
4. O autor de Hebreus também defende que a oferta de Abel
teria sido pela fé. É bem possível que Abel tenha sido fiel a Deus
no exercício de sua adoração, ao passo que seur irmão teria
inventado seu próprio modo de adorar a Yahweh.

Atitudes: Sobre Abel, o apóstolo João diz: “Porque a mensagem


que ouvistes desde o princípio é esta: que nos amemos uns aos
outros não segundo Caim, que era do Maligno e assassinou a seu
irmão; e por que o assassinou? Porque as suas obras eram más,  e
as de seu irmão, justas” (1Jo.3.11-12). A equiparação que João
oferece entre Caim e Abel demonstram ao menos que as
atitudes de Abel seguiam seu caráter, conforme já demonstrado
por Jesus e o autor de Hebreus. Era de se esperar que um
homem cujo caráter é justo, que suas ações seguissem seu
caráter.

C.     Sete: Manutenção e Graça de Deus

Um dos detalhes que não se vê em Gênesis 4 é a reação dos


pais, Adão e Eva, ao perderem em um curto período de tempo,
dois filhos. Ao matar Abel, Caim é feito vaguear pela terra como
errante e distante de seus familiares. É bem verdade que Adão e
Eva tiveram filhos e filhas, contudo Moisés lança luz sobre mais
um dos seus filhos: Sete.

1.         Deus Renova a Esperança

A impressão que temos ao ler Gn.4 é que aparentemente a


promessa de Gn.3.15 parece estar mais longe do cumprimento
do que se esperava. Enquanto as expectativas de Eva pareciam
favorecer Caim como o descendente que terminaria o domínio
da serpente, ele acabou por se tornar o assassino de seu irmão.

“Esta passagem completa o relato da família de Adão. Desse


ponto em diante, nós geralmente encontramos com duas linhas
paralelas da narrativa, como a família humana está dividida em
dois grandes ramos, com interesses opostos e tendências. A
principal linha refere-se ao resto da raça que está em termos de
reconciliação aberto com Deus, enquanto uma linha colateral
demonstra, tanto quanto necessário, o estado daqueles que
partiram do conhecimento e no amor do Deus verdadeiro[74]”

…a quem pois o nome de Sete: É interessante notar que o


trocadilho realizado por Eva ao fala sobre Caim, acontece
doutra forma aqui. O termo hebraico “Sheth”, que foi
transliterado como descrição do nome de Sete, é uma forma
similar do verbo “Shyit” que significa apontado, indicado,
concedido. Assim, mais uma vez o nome do descendente de
Adão tem alguma relação com a declaração de Eva. “Eva
esperou pela salvação através de seu primeiro filho, Caim.
Certamente não viria dele ou de seus descendentes. Nem poderia
vir de Abel. Mas um outro filho foi dado, cujo nome, Sete,
significa “apontado” (ou nomeado). Ele não foi apenas um
substituto para Abel (verso 25), ele foi o descendente através do
qual nasceria o Salvador[75]”. Sobre isso, Clarke completa:
“Eva deve ter recebido, nesta ocasião, alguma comunicação
divina, mais como ela poderia saber que o filho foi nomeado no
lugar de Abel, para continuar essa linha de santo pelo qual o
Messias estava para vir? Daí se vê que a linha do Messias foi
determinado desde o início, e que não foi corrigido pela
primeira vez nos dias de Abraão, a promessa era então apenas
renovado, e que o ramo de sua família designada por que a
linha foi sagrado deve ser prosseguido. E é digno de nota, que a
posteridade de Sete só continuou após o dilúvio, quando todas
as outras famílias da terra foram destruídos[76]”

Deus me concedeu outro descendente: Um detalhe interessante


é observado aqui: Eva não usa o nome de Deus. Alguns tem
sugerido que sua fala representa uma certa decepção, e por isso
evita o nome do Senhor. Contudo, segundo a narrativa é
perceptível que ela está aliviada com a possibilidade de ver a
promessa de Gn.3.15 cumprida pelo substituto de Abel. O uso
do termo mais genérico para descrever a Deus (hb. Elohim)
apenas demonstra como esses dois termos são intercambiáveis.
Keil & Delitzsch vêem ainda outra razão para o fato:

“O que Caim (maldade humana) tira dela [Eva], Elohim


(onipotência divina) havia restaurado restaurado. Devido a essa
antítese que chama o doador Elohim, em vez do Yahweh, e não
porque as suas esperanças tinham sido, infelizmente,
deprimidas por sua experiência dolorosa em conexão com o
primogênito[77]”

2.         Deus restaura a verdadeira Adoração

A narrativa de Abel e Caim demonstra um fato interessante:


ainda que os seres humanos em sua estrema vileza e maldade
possam agir contra os propósitos de Deus, o Soberano Senhor,
Yahweh, detém o controle de toda a história e está
comprometido em cumprir sua palavra e por isso Seus Planos
não são frutrados. Ainda que Caim intentasse contra o Senhor,
Yahweh age misericordiosamente com Caim e com seus pais,
dando-lhe um filho que seria progenitor de um povo que
passou a invocar o nome do Senhor.

…pôs o nome Enos: A descrição da curta genealogia


apresentada de Sete no capítulo 4 serve como ilustração da
distinção entre a descendência de Caim e Abel. Enquanto os
descendentes de Caim são marcados pela maldade, vingança,
sentimento de soberba e assassinato, a descendência de Sete, o
substituto de Caim, é marcado pela verdadeira adoração a
Yahweh. Tudo o que sabemos sobre Enos é que ele é conectado
com Sete e Noé, sendo considerado na maior genealogia do
povo de Yahweh em 1Crônicas (1Cr.1.1) e associado a Cristo em
sua genealogia (Lc.3.38). Essa relação entre Sete e Cristo
demonstra historicamente que a promessa de Deus foi
plenamente cumprida e demonstra definitivamente que Seus
Planos não podem ser frustrados (Jo.42.2).

É interessante que alguns comentaristas, como Keil & Delitzsch,


defendem que o nome de Enos deriva de um verbo que
significa ser fraco, frágil o que designa a sua condição frágil e
mortal. Sobre o assunto, ainda acrescenta que “neste nome,
portanto, o sentimento e o conhecimento da fraqueza humana e
sua fragilidade foram expressos”[78].

Invocar o Nome do Senhor: O que significa a expressão “invocar


o nome do Senhor” é fruto de debates. Uma opinião
interessante é que a partir de Enos, os seres humanos passaram
se chamarem pelo nome do Senhor. Ou seja, não trata-se
primeiramente de uma adoração, mas de uma identidade
adoradora. Sobre isso Clarke diz: “os homens começaram a
chamar-se pelo nome do Senhor, essas palavras demonstram que
no tempo de Enos os verdadeiros seguidores de Deus começaram
a distinguir-se, e ser distinguido por outros, pela denominação de
filhos de Deus[79]”.

Ross opta por ver nessa expressão da proclamação do nome de


Yahweh[80]. Uma vez que o termo hebraico  “shem” (nome) é
seguida do nome próprio Yahweh, e que o mesmo termo é
empregado para descrever o caráter ou atributos de uma
pessoa (Is.9.6), pode-se supor que o texto trata da proclamação
da Pessoa e Caráter de Yahweh. Walter Elwell, de modo similar,
entende que o texto fala da adoração pública a Yahweh. Para
ele o texto trata da inauguração da verdadeira adoração a
Yahweh (Gn.12.8, 13.4; 16.13; 21.33; 26.25) [81]. Wlatke entende
que pelo fato de Enos significar fraqueza, fragilidade, a
humanidade voltou-se para Deus em adoração (Sl.149.6) [82].
Finalmente, Krell entende que todas essas declarações aponta
para o fato de que o homem não irá voltar-se a Deus enquanto
não reconhecer sua fragilidade e inabilidade de agradar a Deus
em sua própria força. Assim, “o primogênito de Caim e seus
sucessores foram pioneiros na civilização, enquanto o
primogênito e seus sucessores foram pioneiros na adoração[83]”.

Seja como for, em Enos vemos o início da progressão da fé, que


suponho ter sido passada desde Adão. O fato de o texto dar a
entender que os homens passaram a se considerar filhos de
Deus, certamente será elucidativo no capítulo 6, onde muitas
dificuldades também são apresentadas.
Duas Gerações – Duas Histórias
Publicado porMarcelo Berti11 maio , 2010Publicado emGênesisTags:Estudos em
Gênesis
 
 
 
 
 
 
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Em nosso último estudo observamos a história de três irmãos, e


como Yahweh tratou da história e da manutenção da Sua
Promessa feita em Gn.3.15. Nesse estudo observaremos as
distinções entre as gerações de Caim e de Sete e o modo como
a posição de ambos diante de Deus influenciou o modo como
seus descendentes se posicionaram diante de Yahweh.

A.     A Genealogia de Caim:

A história dos descendentes de Caim inicia com uma triste


declaração: “Retirou-se Caim da presença do Sehor, e habitou na
terra de Node, ao oriente do Éden” (Gn.4.16). Já temos dito que
Node não é uma região propriamente dita, ou não uma que
tivesse nome, mas que Caim teria saído da presença de Deus ao
oriente do Éden como terra de peregrinação, como o termo
hebraico parece sugerir. Caim tornou-se errante pelo mundo, e
a expressão Node fortalece essa idéia da maldição de Deus
sobre sua vida.
O retrato final da sentença de Caim é similar ao que vemos em
Adão e Eva, que foram colocados fora do Éden, mas de Caim é
dito que ele foi expulso da Presença de Yahweh. A impressão
que temos com essa declaração é que Deus encaminhou Caim a
vaguear pela terra, e ele foi. Agora sem alternativas, Caim
parece ter cumprido a primeira ordem de Deus. “O retirada de
Caim da proximidade do afeto dos pais, dos relacionamentos
familiares, e da manifestação divina, deve ter sido acompanhada
de profundo e ulterior sentimento de arrependimento e remorso.
Mas um profundo e recorrente transgressor e ele deve sofrer as
conseqüências[1]”.

1.         Desgraça Esperada:

Era de se esperar que Caim, fora da presença de Deus, levasse


seu potencial ao extremo e que seus descendentes fizessem o
mesmo. Entretanto, alguns detalhes do texto nos chamam a
atenção no modo como Moisés conta sua história e precisamos
lê-la com atenção.

a. Caim Exilado: Início da Cidade:

Sobre a questão do casamento de Caim, recomendamos o leitor


ler o capítulo anterior, quando falamos sobre a possibilidade de
um casamento entre irmãs ou sobrinhas (cf.  A esposa de Caim).
Sobre o uso dos termos “conhecer” como eufemismo, no
capítulo anterior (Caim e os frutos da Queda) atestamos que “a
ênfase do texto descreve a intimidade do casal de modo
eufemístico para demonstrar a procriação da humanidade
conforme esperada por Deus na Criação”.

…e deu à luz a Enoque: Um detalhe interessante na genealogia


de Caim é o nome do seu primeiro filho. Ao que tudo indica o
nome Enoque em hebraico significa “dedicado”. Sobre o
significado do nome do primogênito de Caim, Clarke afirma que
Enoque “significa instruído, dedicado, ou iniciado, e
especialmente em coisas sagradas, que pode ser considerado
uma prova de arrependimento de Caim, pois parece que ele
dedicou este filho de Deus[2]”.

Por outro lado, Merkh entende a atitude de Caim como um


desprezo para com Deus, observe: “Nada no texto indica que ele
se arrependeu ou confessou seu pecado. Em vez de contrição,
encontramos auto-comiseração.  Em vez de aceitar a disciplina
do Senhor, ele reivindica seus direitos e sente-se injustiçado. 
Nunca apresenta frutos de arrependimento, mas resigna-se a
uma vida de vagabundo, longe do Senhor e da sua graça[3]”.

Considerando o texto como um todo, é bem provável que


Clarke esteja equivocado, e que, embora o nome do
primogênito de Caim tenha um excelente significado, Caim
demonstra sua rebeldia para com Deus quando, por sua própria
iniciativa, inicia uma cidade contrariando a disciplina divina de
que ele seria errante pela terra.

…edificou uma cidade: Considerando a construção da cidade,


Barnes sugere que Caim estaria se protegendo de pessoas que
poderiam intencionar vingar-se por Abel, observe: “Aqui
encontramos o motivo de medo e defesa pessoal ainda
dominante Caim. Sua mão havia sido embebida no sangue de
um irmão, e ele espera que a mão de alguém um dia será contra
ele[4]”. Essa atitude de Caim seria representa mais uma atitude
de fuga da presença do Senhor do que dedicação a Ele, como
Clarke sugere.

Outro detalhe que importa ser lembrado é que o


desenvolvimento numérico dos descendentes de Caim não seria
obstáculo para a criação de uma cidade. Como vimos na
previsão de Ross no último estudo, o crescimento demográfico
da população primeva, considerando sua longevidade, não seria
problema. Keil & Delitzsch sobre isso afirmam: “A construção de
uma cidade por Caim deixará de nos surpreender, se
considerarmos que, no início da sua edificação, séculos já
passaram desde a criação do homem, e os descendentes de Caim
poderiam, por esse tempo ter  aumentado consideravelmente em
número[5]”.

Outro detalhe é que o termo hebraico para cidade (hb.  iyr) não
implica necessariamente em uma grande cidade, observe, por
exemplo, que em Gn.10.12 Moisés acresce o adjetivo “grande”
(hb. gadowl) para descrever uma grande cidade. O termo pode
descrever tanto uma pequena cidade rural ( 1Sm.27.5) como
uma vila (Js.13.23), ou até mesmo parte de uma cidade
(1Sm.12.27).

…lhe chamou Enoque: Aqui novamente vemos a atitude


incomum de Caim que ao invés de nomear a cidade com seu
nome (Sl.49.11), como poderíamos esperar, ele o fez em nome
do filho. Talvez, por sua afeição o tenha feito.

b. Lameque: Início da Poligamia:

Moisés quando fala sobre a criação do homem e da mulher, nos


instrui por dizer que a o fato de ter sido a mulher criada a partir
da costela do homem, existe no casamento a identificação da
unidade entre os cônjuges, observe: “Por isso, deixa o homem
pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só
carne” (Gn.2.24).

Observe que além de atestar a unidade do casal, Moisés optou


pelo singular para se referir à mulher de Adão: “à sua mulher”.
Essa declaração nos auxilia a compreender que o padrão que
Deus tem para a união matrimonial é fundamentada em um
casamento monogâmico e heterossexual. Isso é claramente
observado no fato de que assim foi a preferência divina ao
estabelecer a criação do homem e sua mulher. Note também
que Jesus Cristo quando perguntado sobre o divórcio voltou os
olhos para o mesmo verso para defender a santidade do
casamento (Mt.19.4-5). Todas essas declarações nos levam a
compreender que o padrão de Deus para o casamento deve ser
realizado nos termos de Gn.2.23-25.

Lameque tomou para si duas esposas: Mais um passo na


distância do padrão de Deus é alçado aqui. Enquanto o
conselho divino determinava o padrão para o relacionamento
matrimonial, Lameque, descendente de Davi demonstra seu
completo desprezo pela palavra de Deus. Sobre isso Calvino nos
instrui:
“Temos aqui a origem da poligamia em uma raça degenerada e
perversa, e primeiro autor do mesmo é um homem cruel,
destituído de toda a humanidade. Se ele tivesse sido impelido
por um desejo imoderado de aumentar sua própria família,
como os homens orgulhosos e ambiciosos costumam ter, ou
pelo simples desejo, é de pouca importância se determinar,
porque, de qualquer maneira ele violou a lei sagrada do
casamento que tinha sido entregue por Deus. Porque Deus
tinha determinado, que “os dois deveriam ser uma só carne”, e
que é a ordem eterna da natureza. Lameque, com desprezo
brutal de Deus, corrompe as leis da natureza[6]”

Em acréscimo ao comentário de Calvino, Keil & Delitzsch falam


que Lameque “foi o primeiro a preparar o caminho para a
poligamia, pelo que os aspectos éticos do casamento, como
ordenado por Deus, foi transformada pela concupiscência dos
olhos e a concupiscência da carne[7]”. Não podemos ignorar o
padrão de Deus em estabelecer um molde para o
relacionamento matrimonial, do mesmo modo que não
podemos minimizar a atitude de Lameque.

Contudo, é importante lembrar que, embora a poligamia não


fizesse parte do padrão de Deus, ainda assim Deus o havia
permitido em sua legislação e em muitos casos do Antigo
Testamento. Personagens que marcaram a história de Israel
conviveram com esse tipo de comportamento sem serem
exortados por Deus por isso. A própria Lei incluía modos de se
regulamentar esse tipo de comportamento, como restrições e
permissões. Observe, por exemplo, o caso da morte de um
homem que não deixou descendentes, a Lei instruía a seu irmão
a assumir sua cunhada para dar descendência a seu irmão
(Dt.25.5-10). Esse é um caso de Bigamia permitida pela Lei de
Moisés dada por Deus.
No caso dos homens de Deus que conviveram com algum tipo
de relacionamento matrimonial que não estava em
conformidade com o padrão não foram exortados por Deus por
isso. Considere em Gênesis o caso de Abraão, Sara e Hagar, que
embora tenham violado o padrão divino do matrimônio não
foram advertidos por isso. O mesmo pode ser dito de Jacó, Lia e
Raquel.

Essa permissividade de Deus, contudo, não implica em


normatização. Alias, é digno de nota que a casa dos polígamos
no AT sempre sofreram de alguma forma por sua relação
distorcida. Sobre isso Hamilton diz: “Na verdade, porém, quase
toda família polígama do AT sofrem as mais desagradáveis e
facciosas experiências precisamente por causa desta relação ad
hoc. As lutas domésticas que se seguem são devastadores[8]”.

Tendo considerado isso, podemos concordar com Krell, quando


fala sobre a situação de Lameque:

“A Bigamia era comum no Oriente Médio Antigo, mas nunca foi


o desejo de Deus (cf. 2:24; Mateus 19:4-5). Deus o permitiu, no
entanto, como fez com muitos outros costumes que Ele
desaprovava (por exemplo, o divórcio, concubinas casamento,
poligamia, etc), mas ele não estava satisfeito com esta violação
da aliança de casamento[9]”

Essa insatisfação divina é claramente observada por acontecer


na família daquele que fora lançado para fora da presença de
Deus. Sua distância de Deus fez de sua família a norma e regra
para se viver e conviver diante de uma sociedade criada por eles
e para eles. A questão aqui é claramente a visão egocêntrica e
dominadora do homem sobre a vida social e matrimonial. O
homem que no passado teria optado por dar ouvidos a sua
esposa ao invés de Deus é agora um dominador violento e
brutal. A degradação do pecado passa a atingir níveis
lamentáveis.

c. Lameque: Retribuição desnecessária:

A descrição que Moises faz de Lameque é lamentável: Não


apenas trata-se de um homem dominador em sua casa, mas um
retribuidor irrefreado agindo segundo as leis do seu coração
destituído de Deus. Observe a opinião de Kidner sobre o
assunto:

“A canção de sarcástico desafio de Lameque revela rápido


progresso do pecado. Enquanto Caim havia sucumbido a ele (7),
Lameque exulta nele; enquanto Caim tinha procurado proteção
(14,15), Lameque olha à sua volta em atitude de provocação: a
selvagem desproporção entre matar um simples rapaz e uma
simples ferida, constitui o ponto determinante de sua jactância
(24)[10]”

…matei um homem: A descrição de Lameque é fria e direta. O


assassinato nas mãos de Lameque parece ainda mais pesado do
que fora com Caim. Alguns comentaristas entendem que o
texto não fala da crueldade de Lameque, mas de sua atitude de
defesa para com sua família. Sailhamer, por exemplo, afirma:

“Para demonstrar que ele não tinha derramado sangue


inocente, Lameque apela ao fato de que ele havia matado um
homem por ter sido ‘ferido’ (lepsis) e ‘machucado’ (lehabburati).
Ele não ‘aborrece a seu próximo, e lhe arma ciladas, e se levanta
contra ele, e o fere de golpe mortal’ (Dt.19.11) como Caim tinha
feito, mas ele fundamenta seu recurso no conceito da defesa
pessoal[11]”.

Em outras palavras, a atitude de Lameque aos olhos de


Sailhamer, Lameque agiu em legítima defesa, o que não parece
nada claro no texto. É digno de nota que o teor do texto sugere
que Lameque estivesse promovendo a vingança com a
intensidade que lhe era aceitável. A idéia de Sailhamer,
fundamentada na possibilidade de que se tratasse de uma briga
em defesa da família, além de não ter lugar no contexto não
condiz com a terminologia usada por Moisés.

O termo para ferir (hb. petsa) é usado por Moisés na descrição


da Lex Taliones, observe: “Mas, se houver dano grave, então,
darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por
mão, pé por pé, queimadura por queimadura,  ferimento por
ferimento, golpe por golpe” (Ex.21.23-25). O termo é uma
descrição de um machucado, ferimento, ou até mesmo chagas
(Jo.9.17). A idéia desse texto é exatamente refrear atitudes
como a de Lameque, que em sua resposta à ofensa que sofreu,
um ferimento, respondeu com o assassinato (hb. harag). Se
Lameque tivesse respondido à ofensa (ferimento) à mesma
altura, sua atitude teria sido ao menos nobre. Entretanto, sua
violência em resposta demonstra a vingança usurpada de Deus
e o exercício da retaliação.

…um jovem: A tentativa de defesa de uma ação em legítima


defesa de Lameque tem sua completa derrota na continuidade
da leitura do texto: “matei… um jovem por que me pisou”. Se o
ferimento fosse feito por um conflito, e Lameque, em resposta a
isso, acabasse por matar tal homem, que justificaria a morte
desse jovem? Outro detalhe que parece desfavorecer por
completo é a identificação da idade desse jovem. O termo
hebraico usado aqui (hb.  yeled) é usado em Gênesis para
descrever um menino recém desmamado (Gn.21.8), uma criança
(21.14; 33.5, 14) e filhos de modo mais genérico (Gn.30.26;
32.22; 33.2). Nada no uso desse termo sugere alguém hábil a
defender-se para que se sugira que tal “jovem” tivesse
envolvido em uma briga com Lameque, ou estivesse a ameaçá-
lo ou a sua família, para que se justificasse conceituar essa cena
como um ato de legítima defesa.

Outro detalhe que deve ser considerado é a ação desse “jovem”


para com Lameque: “um jovem por que me  pisou”. A ARA optou
por traduzir o termo hebraico usado aqui (hb.  chabbuwrah)
como algo tão insignificante como um pisão (cf.  Is.1.6; 53.5 –
pisaduras). A verdade é que o termo pode ter uma conotação
um pouco mais agressiva do que apenas um pisar em outrém,
pois o termo também é usado na descrição de Moisés da Lex
Taliones: “Mas, se houver dano grave, então, darás vida por vida,
olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé,
queimadura por queimadura, ferimento por ferimento,  golpe por
golpe” (Ex.21.23-25).

Em Provérbios o termo é usado com o sentido de vergão, como


o resultado de uma ferida feita cuja marca fica na pele
(Pr.20.30). Ainda assim, não encontramos na ação dessa criança
algo que tenha sido digno de assassinato. A julgar pelo avanço
dos efeitos do pecado na raça humana (Gn.6), é visível que
Moisés está a apresentar o declínio da humanidade na vida
isenta de Deus: Caim assassinou por inveja; Lameque por
orgulho e vanglória. Lameque desce a um nível ainda mais
desprezível que seu ancestral Caim: Caim lamentou por seu
pecado, teve medo e por auto-comiseração buscou em Deus
recurso para sua sobrevivência; Lameque se orgulhou de ser
assassino, não teve piedade e zombou da proteção de Deus a
Caim e se fez valente diante de sua própria sorte. Deffinbaug
concorda com isso, observe:

“Lameque nos leva ao ponto da história do homem onde o


pecado não é apenas cometido descaradamente, mas com
prepotência. Ele se vangloriou de seu assassinato para as suas
mulheres. Mais que isso, ele se gabou de que seu pecado foi
cometido contra um rapaz que simplesmente o ferira. Este
assassinato foi brutal, ousado e vão[12]”

Jonatas Edwards completa:

Com sua fala as suas esposas, Lameque demonstra sua


impenitência, presunção e grande insensibilidade. Quando Caim
assassinou seu irmão, sua consciência o atormentou
grandemente; mas Lameque com grande soberba, ignora todo
o remorso[13].

2.         Graça Inesperada:

É interessante que ainda no relato da descendência de Caim


pudéssemos encontrar algum aspecto positivo que pudesse ser
louvável. Numa família cercada por egos inflados e prontos ao
assassinato, nós não esperaríamos encontrar virtudes dignas de
atenção. Observe o que Deffinbaug diz:

“Certamente nada de bom poderia vir de tal homem. E mesmo


assim, é da sua descendência que vêm as grandes contribuições
culturais e científicas. Um filho tornou-se o pai dos pastores
nômades, outro foi o primeiro de uma linhagem de músicos, e
outro foi o primeiro dos grandes trabalhadores em metal.
Precisamos fazer uma pausa para observar que mesmo o
homem em seu pior estado não está desabilitado a produzir
aquilo que é considerado benéfico à raça humana[14]”

Esse aspecto da humanidade é interessante: Ainda no seu mais


depravado estado, na qual todas as suas faculdades estão
maculadas pela presença do pecado, ainda há um lampejo de
brilhantismo artístico e profissional que revela a presença e a
existência de um Ser Supremo e Criador. Na descendência de
Caim vemos exatamente isso.

Alguém poderia dizer que toda sua produção era orientada


para o mal, que suas músicas seguiam as notas do canto de
Lameque às suas esposas, entretanto nada no texto favoreceria
essa noção. A apresentação de Moisés sobre os ofícios dos
descendentes de Caim não são analisados, apenas
apresentados sem qualquer descrição de favoritismo ou
preterição. O que podemos notar é que todas as descrições são
apresentadas com imparcialidade de tal modo que não é
possível se considerar uma em preferência a outra. Ou seja, não
se pode afirmar no malefício da música da descendência de
Jubal sem rejeitar a pecuária de Jabal ou o uso da serralheria de
Tubalcaim.

É bem verdade que se sugere que a manipulação de metais


teria sido no futuro usada para produção de armas usadas para
assassinato. Do mesmo modo que a música teria sido usada
para a adoração de deuses pagãos. Em nossa sociedade esse
fato não é diferente: o desenvolvimento científico está
claramente atrelado ao desenvolvimento bélico do mesmo
modo que a música atrelada à sensualidade. Entretanto, não se
pode dizer que o meio tenha determinado o fim, mas que o uso
do meio tenha pervertido o algo essencialmente neutro, como
música, ciência e tecnologia.

Lembre-se que todos esses instrumentos (música, ciência,


tecnologia) podem e são usados para conceder Glória a Yahweh
como Deus Criador. A música tem sido o instrumento cristão de
louvor desde seus primórdios, mas mais recentemente tanto
ciência como tecnologia tem se aliado ao modo de louvor a
Deus. Com a tecnologia vemos o avanço das ferramentas de
estudo, pesquisa, produção acadêmica do mesmo modo que
com a ciência vemos os relatos antigos de Yahweh confirmados
pelo estudo contemporâneo. Segue-se que, a julgar pela nossa
experiência, entendemos que não é a profissão de Jubal
essencialmente ruim, bem como a de Jabal e Tubalcaim, ainda
que, em função dos investimentos e desenvolvimentos destes,
muitos males foram produzidos na humanidade.

B.     A Genealogia de Sete

É muito interessante o modo como Moisés nos apresenta a


história da humanidade: Ele claramente opta por apresentar
separadamente a história dos homens que se dedicaram a
Yahweh em contraste aos que resolveram viver longe dele.
Ainda que Moisés possa identificar na genealogia de Caim
algumas virtudes profissionais e artísticas, é na descendência de
Sete que encontramos claras manifestações da Graça de Deus.

Na descendência de Sete encontramos três personagens que


merecem nossa atenção: Enos, por sua descrição de que a partir
dele passou-se a invocar o nome de Yahweh; Enoque, pois dele
é dito que andou com Deus; e Noé, pois nele repousa a
expectativa da libertação da maldição da Queda.

1.         Enos: Início da Adoração de Yahweh

O nome de Enos não traz em si mesmo nada de especial: O


significado básico do seu nome é “homem”, e é aplicado no AT
em referência a alguém do sexo masculino (Is.8.1; 13.12), como
descrição da humanidade (Dt.32.26; 2Cr.14.11; Jó.4.17) e em
referência ao filho do filho de Eva que foi considerado
substituto de Abel.

Entretanto, é interessante que alguns comentaristas, como Keil


& Delitzsch, defendem que o nome de Enos deriva de um verbo
que significa ser fraco, frágil o que designa a sua condição frágil
e mortal. Sobre o assunto, ainda acrescenta que “neste nome,
portanto, o sentimento e o conhecimento da fraqueza humana e
sua fragilidade foram expressos[15]”.

…invocar o nome do Senhor: Como podemos entender essa


expressão? Já se tem dito ao menos três possibilidades para se
entender essa expressão: (1) como se os descendentes de Enos
passaram a se chamar pelo nome de Yahweh; (2) como se nessa
época iniciou-se a proclamação de Yahweh como Deus Criador
e Redentor; (3) que nessa época se iniciou a adoração a
Yahweh.

1. Ser chamado pelo nome de Yahweh: Jonatas Edwards


sugere que a tradução correta dessa expressão é “Então os
homens passaram a serem chamados pelo nome do Senhor”. Em
explicação à sua preferência Edwards complementa: “então eles
começaram a se chamarem, e a seus filhos, pelo Seu nome, o que
significa que eles se entendiam como povo de Deus”.  Há certo
valor nessa opinião, visto se demonstrar tal distinção entre os
descendentes de Caim e de Sete. Essa opinião é favorecida pelo
contexto e tem o aval critico de diversos autores cristãos.
Edwards, ainda, sobre o assunto diz: “Eu tenho dito, que o povo
de Deus é abertamente distinguido do distorcido e apóstata
mundo da posteridade de Caim e daqueles que estavam com ele,
por se apresentarem à sociedade de modo distinto, sendo
chamados filhos de Deus, enquanto os outros se chamavam
filhos dos homens[16]”. Essa visão, certamente favorece a leitura
de Gn.6 de modo natural e claro, sem depender de tradições
estranhas que falam sobre a interação de seres angélicos com
seres humanos. Adam Clarke defende a mesma opinião: “os
homens começaram a chamar-se pelo nome do Senhor, essas
palavras demonstram que no tempo de Enos os verdadeiros
seguidores de Deus começaram a distinguir-se, e serem
distinguido por outros, pela denominação de filhos de Deus[17]”.
2. Adorar a Yahweh: Albert Barnes sugere que tal expressão
esteja relacionada à adoração pública de Yahweh, como Deus
digno de adoração, observe: “A solene invocação de Deus por
Seu nome próprio com oração e louvor pública e social é o
sentido mais usual da frase diante de nós agora, e é para ser
adotada assim a menos que exista algo no contexto ou nas
circunstâncias do texto que demande outro significado[18]”. Keil
& Delitzsch concordam com Barnes: “Aqui temos uma descrição
do início da adoração a Deus, que consiste em oração, adoração,
agradecimento ou o reconhecimento e celebração da
Misericórdia e Auxílio de Yahweh[19]”. Walter Elwell, de modo
similar, entende que o texto fala da adoração pública a Yahweh.
Para ele o texto trata da inauguração da verdadeira adoração a
Yahweh (Gn.12.8, 13.4; 16.13; 21.33; 26.25) [20]. Wlatke entende
que pelo fato de Enos significar fraqueza, fragilidade, a
humanidade voltou-se para Deus em adoração (Sl.149.6) [21].
3. Proclamar a Yahweh: Ross opta por ver nessa expressão da
proclamação do nome de Yahweh[22]. Uma vez que o termo
hebraico “shem” (nome) é seguida do nome próprio Yahweh, e
que o mesmo termo é empregado para descrever o caráter ou
atributos de uma pessoa (Is.9.6), pode-se supor que o texto
trata da proclamação da Pessoa e Caráter de Yahweh.

Seja como for, o que fica evidente é importante lembrar o leito


que nenhuma dessas ações exclui as outra. É bem possível que
todas essas fizessem parte do conceito de invocar o nome do
Senhor. Contudo, temos que considerar que a adoração a
Yahweh é anterior a Enos, pois tanto Caim quanto Abel já
ofereciam sacrifícios ao Senhor, e certamente entendemos isso
como um ato de adoração. Ou seja, se adoração abrange todos
os seus aspectos temos que entender que tal não se inicia em
Enos. Se há, porém, distinção entre a ação de Abel e Enos, não
temos clareza de qual é tal diferença. Portanto, dizer que esse
“invocar” é estritamente adoração não me parece aceitável com
o contexto.

Por outro lado, ela é perfeitamente aceitável no conjunto de


pessoas que passam a se considerar “filhos de Deus”, ou aquele
grupo que se considera pertencente a Ele. É possível inferir que
a fé demonstrada por Abel, e provavelmente aprendida com
Adão, foi mantida na genealogia de Sete e que a partir daquele
ponto, os homens que mantinham a adoração verdadeira a
Yahweh, isto é, de acordo com as expectativas divinas, passaram
a se chamar pelo nome de Yahweh. Nada de conflitante há
nessa proposta.

Há de se dizer, que a idéia de Ross é certamente interessante: A


partir de Enos se passou a proclamar a Yahweh. É bem verdade
que diante do todo das escrituras a proclamação é sempre
antecedida pela adoração daqueles que são filhos de Deus.
Portanto, a idéia de Ross não oferece qualquer obstáculo às
idéias anteriores. Mas, há qualquer referência a essa idéia no
texto? Provavelmente não. Como Elwell já demonstrou o termo
é usado em expressões similares como demonstração de
verdadeira adoração (Gn.12.8, 13.4; 16.13; 21.33; 26.25), e em
nenhum desses versos sugere qualquer idéia de proclamação.

A idéia de ser chamado pelo nome de Yahweh, provém da


terminologia do termo hebraico, que também trás a idéia de
nomear, como vemos no relato da criação (Gn.1.5; 8, 10; 2.19,20
etc) e em outras situações (3.20; 4.17, 25 etc). A própria LXX
traduz o termo hebraico com o termo grego “epikaleö” no
presente do infinitivo na voz média, que seria traduzido “a
passaram a ser chamados”, como sugere a tradução de Edwards.
Entretanto, tal possibilidade não se harmoniza com as outras
ocasiões que o termo hebraico é utilizado em Gênesis para
descrever uma ação de adoração (Gn.12.8, 13.4; 16.13; 21.33;
26.25). Portanto, é seguro afirmar que o texto fala sobre a
manutenção da verdadeira adoração entre os descendentes de
Sete, muito embora as outras possibilidades pudessem
acompanhar e fazer parte dela. Com isso, entendemos que a
idéia da adoração feita por Abel associou-se o “invocar” o nome
de Yahweh, como uma forma cultual e pública de adoração.

…Todos os dias de Enos: Como todos os personagens


apresentados na genealogia de Sete, mesmo Enos um homem
que marcou o início de uma era de consagração a Deus na
história da humanidade não esteve isento de sofrer dos
malefícios da queda: ele também  veio a falecer (hb.  muwth).
Esse é o verbo mais usado nas genealogias, e seu uso não é
acidental: a repetição desse termo para descrever a situação dos
homens diante da sua própria humanidade corrompida é um
lembrete divino de sua ordem dada a Adão: “Certamente
morrerás”. Após a Queda, nem mesmo a obediência pode retirar
do homem o destino da morte, exceto se Deus agir
milagrosamente, como faz com Enoque.

2.         Enoque: Vida com Deus

Como já temos demonstrado o nome de Enoque significa


“dedicado, consagrado” e na família de Sete isso certamente
indica que tipo de consagração e dedicação esse home teve.
Sobre ele Clarke atesta: “O nome do patriarca, Enoque significa
instruir, iniciar, dedicar. De sua conduta subseqüente estamos
autorizados a acreditar que era, desde cedo, instruído nas coisas
de Deus, iniciado na adoração de seu Criador, e dedicado ao seu
serviço[23]”

A história de Enoque narrada em Gênesis não tem grandes


detalhes e especificações: à semelhança de todos os
personagens apresentados, Enoque nasce, vive muitos anos,
tem filhos e filhas. Entretanto, duas declarações sobre Enoque
merecem nossa atenção: (1) Andou Enoque com Deus (v.22, 24);
(2) E já não era, por que Deus o tomou para si. Essas duas breves
sentenças descrevem um grande homem de Deus no passado
que serve de modelo para nós.

Andou Enoque com Deus: A idéia de andar com Deus parece


por demais abstrata uma vez que a comunhão com Ele havia se
rompido no Éden, e que os passeios vespertinos já não mais
aconteciam como antes. Contudo, Enoque parece ter sido
agraciado por Deus com Sua constante companhia. Gill, sobre o
fato de Enoque andar com Deus, diz: “Ele caminhou em nome e
temor de Deus, segundo a sua vontade, em todos os
mandamentos e preceitos do Senhor fez então conhecido, ele
caminhou pela fé nas promessas de Deus, e na expectativa do
Messias, o descendente prometido; andou em retidão e
sinceridade, como na visão de Deus ”.
[24]

A idéia de uma vida santa não pode estar ausente dessa


expressão, e certamente Gill tem razão quando diz que Enoque
vivia em conformidade com a Vontade de Deus e em
obediência a Ele. A descrição de sua intimidade como Deus é
tão simples e convidativa que nos estimula a buscar viver como
ele viveu, um modelo de vida em meio à morte.

Sobre ele Barnes acrescenta:

“Andar com Deus implica em comunhão com ele em


pensamento, palavra e ação, e opõe-se nas Escrituras ao andar
contrário a Ele. Nós não temos a liberdade de se inferir que
Enoque foi o único nesta linha, que temia a Deus. Mas, temos
certeza de que ele apresentou um exemplo eminente de que a
fé que purifica o coração e agrada a Deus. Ele fez um avanço
notável sobre a realização dos tempos de seu pai Sete.
Naqueles dias, eles começaram a invocar o nome do Senhor.
Agora, a comunhão dos santos com Deus atinge sua forma mais
elevada – a de andar com ele, fazendo a sua vontade e desfrutar
de sua presença em todos os aspectos da vida ”
[25]

Há ainda nesse verso um indício interessante: Ao que tudo


indica a tradução da ARA não é apropriada para descrever a
história de Enoque nesse verso. A ARA assim verte o texto:
“Andou Enoque com Deus; e, depois que gerou a Metusalém,
viveu trezentos anos; e teve filhos e filhas” (v.22). A idéia que se
obtém dessa leitura é que o andar com Deus de Enoque era
uma descrição de sua pessoa, ao passo que a descrição de
tempo é apenas um referencial para a identificação do seu
descendente Matusalém. Entretanto, a NVI (em inglês:  NIV, NET
CJB) opta por verter o texto levemente diferente: “Depois que
gerou a Matusalém, Enoque andou com Deus 300 anos e gerou
outros filhos e filhas”. Segundo essa versão, a descrição de
tempo fala sobre o período que Enoque andou com Deus.
Matthew Henry, que é favorável à essa leitura, atesta:

“Ele andou com Deus trezentos anos, enquanto ele continuou


neste mundo. O hipócrita não ora sempre, mas o verdadeiro
santo que age a partir de um princípio, e faz da religião a sua
escolha, irá perseverar até o fim, e caminhar com Deus,
enquanto ele vive, como aquele que espera viver para sempre
com ele[26]”

A idéia da perseverança e manutenção de uma vida orientada a


devoção e vida com Deus é certamente um forte exemplo de
como devemos levar nossa vida diante de Deus. Entretanto, tal
descrição nos levanta uma pergunta: Teria Enoque algum mérito
nessa vida que levou com Deus, ou seria isso graça? Aqueles
mais inclinados a pensar na salvação e vida com Deus centrada
no esforço encontram no exemplo de Enoque um referencial de
perseverança, entretanto, o texto traz uma forte conotação
reciprocidade entre Enoque e Deus. Ou seja, enquanto Enoque
anda com Deus, Deus anda com Enoque. Embora o verbo tem
Enoque por sujeito, o andar era uma cooperação entre Deus e
Enoque. Até mesmo o arminiano Adam Clarke reconhece esse
fato:
“Aqueles que estão familiarizados com o original, irão perceber
claramente que a sentença tem essa força. Um verbo na
conjugação chamada hithpael implica num ato de
reciprocidade, o que um homem faz a si mesmo: aqui podemos
considerar Enoque recebendo uma instrução piedosa, e a
influência divina por meio dela, resultando no fato de que ele é
um trabalhador com Deus, e, portanto, toma a resolução de
andar com o seu Criador, que ele não pode receber a graça de
Deus em vão[27]”.

Por um lado existe a firme decisão de se viver para Deus, mas


essa decisão aconteceu um dia em função da ação de Deus na
sua vida. Não podemos supor que Enoque passou a uma vida
de completa devoção por sua própria força e habilidade, pois
tal referencial não é encontrado nas escrituras. Ou seja, a
atitude de andar com Deus é derivada da ação de Deus se fazer
manifesto e presente em sua vida. Os tradutores da NET Bible,
sobre isso atestam: “Em Gn 5:22 a frase sugere que Enoque e
Deus ‘se davam bem’[28]”. Portanto, há um relacionamento
entre Enoque e Deus de tal modo que há interação entre eles,
movimento e desenvolvimento. Por isso, há manutenção e
durabilidade. As escrituras não ensinam que o andar com Deus
é o cumprimento de uma rotina religiosa, mas um viver diário
com Deus. Tal idéia já era encontrada na LXX, que optou por
traduzir o “andar com Deus” por “agradar a Deus”
(Gr. euarestéö). John Sailhamer sobre isso diz:

“A frase ‘andou com Deus’ claramente significa algo importante


para o autor, pois ele usa a mesma expressão para descrever
Noé como um ‘um homem justo e reto entre os seus
contemporâneos’ (6.9), e Abraão e Isaque como servos fiéis de
Deus (17.1; 24.40; 48;15). Seu uso aqui demonstra que o autor
vê nela a razão pela qual Enoque não morreu. Enoque é
ilustrado como aquele que não sofre o destino de Adão
(certamente morrerás) por que, ao contrário dos outros, ele
‘andou com Deus’[29]”

Uma das perguntas que fazemos para essa genealogia em


Gênesis é por que razão o autor optou por afirmar a morte de
todas as pessoas que apresenta? Como é observado em outras
genealogias bíblicas, a idéia da morte está implícita, mas não
declarada. Por que Moisés faria isso aqui?

Para responder a essa pergunta podemos observar dois


detalhes: (1) A fidelidade de Deus – Quando voltamos nossos
olhos para a promessa que tinha feito a Adão de que a
desobediência os levaria à morte, e observamos a realização
concreta desses fatos nessa genealogia, entendemos que Deus
é Fiel à Sua Palavra, e a levará a cabo diante de todos; (2) A
Graça de Deus – Ler Gênesis 5 é como ouvir a marcha fúnebre:
viveu, teve filhos e filhas e morreu, morreu. A fatalidade que
assombra a humanidade é descrita de maneira simples e direta:
“A vida é como a fumaça, nem bem se fez, se desfaz, e a cada
instante que passa é um passo a menos e a mais, na direção do
fim, frio feroz, o fim de todos nós” (João Alexandre, Fim de Todos
nós). Por outro lado, vemos na história de Enoque um lampejo
gracioso de Deus em não deixá-lo à morte: Enoque não morreu.
Tentando responder a pergunta já lançada acima, Sailhamer diz:

“A resposta não é difícil de encontrar no capítulo 5, por que


nesse capítulo apenas uma dos patriarcas, Enoque, não morreu,
O número total de anos foi apresentado, como nas outras
genealogias, mas apenas aqui há uma exceção: Enoque já não
era, por que Deus o tomou. Em outras palavras, o autor
propositadamente descreve a morte de cada um dos patriarcas
no capítulo 5 para destacar e chamar a atenção do leitor para o
caso excepcional de Enoque[30]”
Esse evento certamente é um evento excepcional: Mesmo
outras pessoas que viveram com Deus, e foram descritas como
pessoas que “andaram com Deus”, como Noé, não foram
arrebatadas à presença de Deus. É bem provável que com esse
evento Deus esteja a nos ensinar que o desejo de Deus é
prefigurado em Enoque: Ele quer que todos os Seus Filhos, que
andam com Ele, vivam Eternamente com Ele.

Outro detalhe que deve ser lembrado, é que é bem possível que
Deus está nos ensinando que “andar” com Deus, ou viver com
Ele, é muito mais do que obedecer seus mandamentos.
Em Dt.30.16 lemos: “Porquanto te ordeno hoje que ames ao
SENHOR teu Deus,  que andes nos seus caminhos, e que guardes
os seus mandamentos, e os seus estatutos, e os seus juízos, para
que vivas, e te multipliques, e o SENHOR teu Deus te abençoe na
terra a qual entras a possuir”. Essa clara distinção entre andar de
acordo com Deus e obediência ao que Deus diz é fundamental
para se entender que “andar com Deus” está além da
obediência e inclui amor a Yahweh como nosso Deus e Senhor.
Certamente, aquele que ama a Deus acima de todas as coisas e
vive em relacionamento com Ele o Obedecerá. Mas, Enoque
ilustra o fato de que a obediência cega e desassociada de
outras virtudes espirituais não é garantia de vida com Deus.

Enoque, o homem que andou com Deus (Gn.5.22), Noé, que


também andou com Deus (Gn.6.9), Abraão, que creu em Deus e
isso lhe foi imputado como justiça (Gn.15.6) são exemplos
claros, anteriores a Lei, que são apresentados por Moisés como
modelos de fé e confiança em Deus.

…e já não era: Essa frase de difícil tradução tem levantado


algumas perguntas sobre o que de fato aconteceu com Enoque.
Mais três opções são vistas nas traduções em português para
essa expressão: (1) não foi encontrado (NVI); (2) não apareceu
mais (ACF); (3) e já não se viu (ARC). A versão ARA optou por
verter “e já não era” seguindo a KJV. A LXX verte de modo
similar a NVI: “e não era encontrado” (kaì ouk ëupisketo). O
Targun de Onkelos e o de Jerusalém também carregam a idéia
da ARA e KJV. Entretanto, o Targun supostamente de Jonatas,
diz: “e ele já não estava entre os peregrinos na terra”. Em todas
existe a idéia de que Enoque deixou de estar presente, pois não
foi encontrado, não apareceu em nenhum outro lugar e por
isso, já não era visto. Todas essas idéias são tentativa de se
traduzir a partícula negativa (hb.  ayin) com o sufixo pronominal.
Ou seja, ao invés de afirmar que Enoque morreu, Moisés diz que
ele não estava mais presente. Mas, uma pergunta surge aqui:
Para onde foi Enoque?

… porque Deus o tomou para si: A seqüência do texto deixa


claro: Deus o tomou para si, uma expressão rara no Antigo
Testamento que marca uma expectativa judaica de futuro. Veja
o caso, por exemplo, do Salmo 49.15: “Mas Deus remirá a
minha alma do poder da morte, pois ele me tomará para si”. A
expressão usada em referência a Enoque, é nesse Salmo
explicada como a redenção da alma do salmista, o que favorece
a idéia de que Enoque foi remido por Deus e recebido por Ele
em Sua Presença. Fato similar acontece no Salmo 73.24: “Tu me
guias com o teu conselho e depois me recebes na glória”. Nesse
verso a expressão “me recebe” é exatamente a mesma
encontrada na descrição de Enoque em Gênesis. Essa convicção
de que uma vida debaixo da orientação de Deus implica em um
vida futura com Ele parece muito neotestamentária, entretanto,
já é vislumbrada profeticamente no exemplo de Enoque e na
expectativa dos salmistas.
Diferente do que se podia esperar na descendência de Adão,
um homem entre os seus não morreu, mas foi trasladado para a
Glória com Deus eternamente. O autor de Hebreus nos explica
isso um pouco melhor: “Pela fé, Enoque foi trasladado para não
ver a morte; não foi achado, porque Deus o trasladara. Pois,
antes da sua trasladação, obteve testemunho de haver agradado
a Deus” (Hb.11.5). Para esse autor, o exemplo de Enoque
demonstra que o essencial em sua vida foi o exercício da fé
seguida de uma vida que agrada a Deus (como sugere a LXX). O
termo que o autor de Hebreus usa para descrever a ação de
Deus em Enoque é “metatíthemi”, o termo que a LXX usa para
traduzir o termo hebraico “laqach”, cujo sentido básico é
receber, tomar. Provavelmente pelas implicações que se via
nessa ação divina de se tomar a Enoque para si, a LXX utilizou
um termo que significa basicamente mudar de posição, ser
recebido. O termo é usado em outros 15 lugares na LXX,
normalmente com a idéia de mudar. Considerando que a ação
divina em Enoque foi mudá-lo de plano, do terreno para o
espiritual, o termo também tem conotação de transformação
(Jd.4) ou o ser trasladado de Hebreus.

A idéia é clara aqui: Enoque foi chamado à presença de Deus e


no relato de Gênesis ele é o único que não sofreu da morte
como malefício da punição de Adão. Nesse relato temos uma
firme expectativa: Aqueles que genuinamente vivem com Deus,
com Ele viverão. É por isso que Deuffinbaug conclui:

“A morte chegou à descendência piedosa de Sete. Isto é


repetido oito vezes no capítulo cinco. Mas Enoque é um tipo
daqueles que verdadeiramente caminham com Deus. A morte
não os tragará. Eles serão conduzidos à eterna presença de
Deus, em cuja companhia viverão para sempre. A morte pode
ser vista com naturalidade pelos verdadeiros crentes, pois seu
aguilhão foi removido pela obra de Deus na morte de Jesus
Cristo, o “descendente da mulher”. (Gn. 3:15)[31]”.

3.         Noé: Esperança em Deus

Como de costume, o nome hebraico de Noé (hb.  noäh) é usado


em um jogo de palavras com a sentença que se segue ao seu
nome. É bem provável que o nome de Noé tenha alguma
relação com o termo hebraico para descanso (hb.  nuakh), mas,
é certamente usado como paralelo do termo hebraico usado na
ARA como consolo (hb.  yenakhamenu).

Verdade seja dita, os dois termos não provêm da mesma raiz:


nöah, como já demonstrado tem relação como nuakh,
enquanto yenakhamenu provém da raiz nakham, que significa
conforto. Entretanto, “as letras nun e heth juntas soam como o
nome de Noé, formando uma paronomásia com o seu nome. Os
termos não têm a mesma raiz verbal, e a conexão é apenas em
função do som[32]”. Por outro lado, a idéia de um “descanso” do
trabalho das nossas mãos, fruto da maldição divina, também se
faz correlato com a idéia do nome de Noé. Uma vez que o
nome de uma pessoa (hb.  shem) descreve também seu caráter,
vemos na nomeação de Noé a representação da expectativa
apresentada na sentença que se segue. Portanto, em mais uma
ocasião, Moisés brinca com as palavras para expressar uma
verdade sobre a história da humanidade.

Este nos consolará dos nossos trabalhos: Noé é retratado por


seus ancestrais como aquele sobre quem se repousa a
esperança de libertação da maldição a que Yahweh havia
submetido a terra. Essa esperança posta sobre Noé, não
cumpriu-se como esperavam seus ancestrais, mas sabemos por
usa história que ele foi um homem usado por Deus para salvar
a humanidade, e ser instrumento da fidelidade de Deus para
manutenção da sua promessa em Gn.3.15. A história de Noé, é
uma história de recomeço, e será detalhada nos próximos
capítulos.

O que se pode dizer com segurança é que a expectativa do


descendente da mulher (que ainda não podemos chamar
messiânica, nem cristã) era transmitida entre os descendentes
de Sete, os que se entendiam como filhos de Deus, e viviam em
adoração a Yahweh. Sem qualquer demonstração sobre a vida
familiar desses personagens, sabemos que a família foi o cerne
de sua transmissão de fé, visto que a mesma esperança que se
tinha em Sete era vista em Noé, muito tempo depois. Essa
tradição foi transmitida entre os familiares que mantiveram a
revelação de Deus.

Conclusão

O que podemos concluir da história das duas genealogias? Que


se não for a graça do Senhor na manutenção de um
relacionamento especial com o homem, acompanhado de
pessoas comprometidas com esse relacionamento, a
humanidade está fadada ao fracasso moral e espiritual. Ainda
que grandes desenvolvimentos possam surgir da impiedade, ela
jamais é justificada. Sobre essa diferença, Deffinbaug diz:
“O que é que é enfatizado na linhagem de Sete? Nenhuma
menção é feita a qualquer grande contribuição ou realização.
Duas coisas marcaram os homens do capítulo cinco. Antes de
mais nada, foram homens de fé (cf. Enoque, 5:18, 21-24;
Lameque, 5:28-31). Estes homens olharam para trás e
compreenderam o fato de que o pecado foi a raiz de seus
problemas e pesares. E olharam à frente para a redenção que
Deus havia providenciado através de sua descendência[33]”
Questões sobre o Dilúvio
Publicado porMarcelo Berti9 junho , 2010Publicado emGênesisTags:Estudos em
Gênesis, Gênesis
 
 
 
 
 
 
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“Estudar o livro de Gênesis associa duas atitudes do cristão que


dele se aproxima: devoção e intelectualidade. Devoção, pois
nele encontram-se as palavras de Deus, suas orientações,
ensinos e exortações. Intelectualidade, pois nele também
encontram-se obstáculos para a compreensão da verdade
exposta em suas páginas. Portanto, se pudermos atentar para
essas duas disposições mentais certamente poderemos
aproveitar o que esse livro tem de melhor a oferecer.[1]”

Relembrar essa frase nessa altura do nosso estudo é


fundamental, pois não podemos perder de vista o fato de que o
Livro de Gênesis é palavra de Deus, do mesmo modo que isso
não nos impossibilita perceber questões de difícil trato e
procurar um modo aceitável de lidar com elas. Isso não significa
que teremos uma resposta final para cada uma dessas questões,
mas reconhecer dificuldades nas escrituras nada mais é do que
ser honesto como a história da Revelação de Deus. Isso, todavia,
é diferente de suspeitar das escrituras, ou rejeitá-la: Trata-se de
um humilde e honrado reconhecer que diante da Majestade do
Criador, da multi-diversidade da Criação, e da especificidade
final da revelação divina em Gênesis, algumas lacunas poderão
ficar abertas sem que qualquer demérito seja atribuído, ou a
Deus, ou às escrituras, ou até mesmo ao parecer cristão de
todas essas questões.

Por essa razão, iniciamos esse estudo com a humilde pretensão


de conhecer o ensino das escrituras, suas dificuldades, as
propostas alternativas para elas, seguidas de um parecer do
autor sobre o tema. Com isso, não pretendemos resolver os
problemas, mas conduzir cristãos à reflexão saudável sobre
assuntos que nas escrituras não encontramos luz suficiente para
resolver a questão.

A. Quem são filhos de Deus?

Em nosso comentário expositivo de Gênesis 6.1-8 deixamos


claro que o texto trata da história dos descendentes de Sete e
Caim, entretanto não tratamos das outras possibilidades
teológicas encontradas nesse texto. Por isso, pretendo nesse
breve adendo apresentar as duas mais importantes visões sobre
a narrativa mosaica, seus defensores, pontos fortes e fracos, na
intenção de oferecer ao leitor informações que o ajudem a
entender o dilema e refletir sobre que opção parece mais
aceitável diante das escrituras.

Entretanto, uma nota introdutória a esse estudo é importante, e


sobre o assunto David Merkh diz: “Não importa a interpretação
adotada, o ponto parece ser o mesmo: o pecado agora está
transpondo fronteiras espirituais (sejam celestiais, sejam
terrestres). O vírus do pecado virou pandemia![2]”. A idéia é que
independente da opinião teológica, a ênfase essencial do texto
não é perdida, e a isso Derek Kidner complementa: “Onde a
escritura é tão reticente como o é aqui, Pedro e Judas nos
aconselham a retirada. Coloquemo-nos em nosso próprio lugar!
Mais importante do que as minúcias desse episódio é sua
indicação de que o homem não pode socorrer-se a si mesmo,
seja que os setitas tenham traído a sua vocação, seja que os
poderes demoníacos tenham conseguido um tento[3]”.

Portanto, ainda que a definição teologia seja importante, ela


não é fundamental aqui para a essência da compreensão do
texto. Como veremos, todas as opções tem suas fraquezas e
falhas, mas não impedem o sentido geral do texto. A opinião do
autor ficará evidente, e seu favoritismo por determinada opção
não deve conduzir o leitor à suas conclusões, mas certamente
tornará evidente a razão de sua preferência.

1.         Filhos de Deus: Anjos Caídos

A opinião provavelmente mais tradicional é de que anjos caídos


são representados pelo termo “Filhos de Deus” e que em sua
devassidão abandonaram seu estado original e vieram a terra
para coabitar com as filhas dos homens. A razão dessa distinção
não é exclusivamente lingüística, mas aparentemente textual. Os
defensores dessa linha de raciocínio defendem que essa é a
leitura que melhor se harmoniza com o texto. Bob Deffinbaug
entende que a terminologia usada por Moisés claramente
indica o fato de que “Filhos de Deus” se referem a anjos no AT.
Sobre isso atesta: “Os estudiosos que rejeitam esta opinião
prontamente reconhecem o fato de que o termo preciso é
claramente definido na Escritura. A razão para rejeitar a
interpretação dos anjos caídos é que tal opinião é tida como uma
afronta à razão e às Escrituras[4]”.

a. Pontos Fortes:
Alguns pontos fortes podem ser levantados:

 Antiguidade do Argumento: Essa interpretação é


provavelmente a mais antiga tradição e é encontrada no Códice
Alexandrino, que verte o texto com o uso de termo “aggeloi”
(anjo) em tradução da expressão bene há’elohim (Filhos de
Deus). No livro apócrifo de Enoque[5] encontramos essa
tradição expressa: “E aconteceu que, quando os filhos dos
homens se multiplicaram, naqueles dias, bela e formosa filhas
nasceram. E os anjos, os filhos do céu, vendo-as as desejaram, e
disseram uns aos outros: “Vem! Vamos escolher por nós mesmos
esposas dentre o povo, e vamos gerar para nós filhos[6]”.
 Uso da Expressão: No Antigo Testamento a expressão
“Filhos de Deus” é usada para descrever anjos. Em Jó.1.6 lemos:
“Num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante
o SENHOR, veio também Satanás entre eles” (cf.  2.1). A tradução
da LXX aqui adota novamente o termo “aggeloi” e, segundo
Adam Clarke, a versão caldéia usa “tropa angélica”. Nesses
textos em Jó parece não haver discussão sobre usa referência,
observe: “quando as estrelas da alva, juntas, alegremente
cantavam, e rejubilavam todos os filhos de Deus?” (Jó.38.7). Ao
analisar esse texto, são raros os que não encontram aqui uma
referência angélica. Mesmo os que defendem que em Gn.6 o
termo não  se refere a anjos, aqui o reconhecem, como Barnes:
“E todos os filhos de Deus – Anjos – chamados filhos de Deus, de
sua semelhança com ele, ou a serem criados por ele[7]”.
Em Sl.89.6 não há qualquer suspeita: “Pois quem nos céus é
comparável ao SENHOR? Entre os seres celestiais, quem é
semelhante ao SENHOR?” (cf. Dn.3.25).
 Origem dos Gigantes: Os defensores dessa visão
entendem que os gigantes, e homens de renome do mundo
antigo são apenas explicados pela união entre seres angelicais e
seres humanos. Sobre isso, Deffinbaug atesta: “As mulheres
ansiavam pela esperança de ser a mãe do Salvador. Quem seria
o pai mais apropriado para tal criança? Não seria um “homem
poderoso de renome”, que também seria capaz de se gabar da
imortalidade? Alguns dos piedosos descendentes de Sete viveram
aproximadamente 1000 anos de idade, mas os Nefilins não
morreriam, se fossem anjos. E assim começou uma nova raça[8]”.
 Contexto: Segundo os defensores o uso do termo
“homem” (hb.  ‘adam) no verso 1 não tem qualquer distinção do
termo usado no verso 2. Se filhas dos homens tem um sentido
mais restrito (como sugerem os defensores da união da
descendência de Sete e Caim), o texto não introduz tal conceito
e, portanto não deve ser uma opção válida. Não é possível
diferenciar o homem do verso 1 das filhas dos homens do verso
2.
 Respaldo Bíblico: Dois aspectos são defendidos aqui:
1.
1. As escrituras ensinam que os anjos podem fazer-se
presente entre os homens (Hb.13.2) e de serem de tal forma
parecido com seres humanos que foram confundido com eles
(Gn.19.1). Em defesa desse fato, os que adotam essa opção
apresentam o caso de Sodoma e Gomorra, ocasião que os
homens de Sodoma se sentiram atraídos sexualmente pelos
seres angélicos: “Onde estão os homens que, à noitinha,
entraram em tua casa? Traze-os fora a nós para que abusemos
deles” (Gn.19.5). Aos olhos dos sodomitas, tais anjos eram
homens atraentes.
2. O Novo Testamento apresenta textos que falam
sobre esse evento: “E a anjos, os que não guardaram o seu
estado original, mas abandonaram o seu próprio domicílio, ele
tem guardado sob trevas, em algemas eternas, para o juízo do
Grande Dia” (Jd. 6; cf.  2Pe.2.4). O argumento aqui é que os
anjos abandonaram seu domicílio, a presença de Deus, e
desceram à terra.

b. Pontos Fracos:
Vamos listar alguns:

 Viola a Lei Natural Estabelecida por Deus: Uma das


verdades que se tem por clara e evidentes nas escrituras é que a
geração sempre acontece entre criaturas da mesma espécie.
Essa verdade é estampada no relato da criação, em que vemos
esse fato com uma bênção divina para plantas (1.11), animais
(1.23-25), diferente do homem (1.26). Não há nada no relato da
criação que aceite a idéia de uma geração mista entre entidades
de diferentes espécies. Se um anjo caído tem poder reprodutor,
a lei da natureza ainda impediria que o fruto desse
relacionamento misto fosse reprodutor, pois assim acontece na
natureza hoje, e não temos razões para crer que era diferente
nesse aspecto na ocasião. Outro detalhe que deve ser lembrado
é que as escrituras não falam sobre seres híbridos. Para se
defender desse ponto, alguns alegam que tais anjos possuíram
os homens, como vemos acontecer nos evangelhos e por isso a
reprodução foi possível. Entretanto, aqui há larga contradição
no argumento, pois se apenas seres angélicos são opção
suficiente para a existência de gigantes, um homem possuído
por uma entidade angélica ainda seria o progenitor biológico, e
portanto, não teria qualquer distinção entre ele e um homem
não possuído.
 Ignora o juízo divino: Os que defendem essa opção
precisam responder por que razão o julgamento divino incluiu
apenas o homem, os animais e a terra, se os causadores do
problema foram seres angélicos. Se a perversão da humanidade
alcançou os céus, por que nenhuma menção de juízo,
repreensão divina oferecida? Se tais anjos eram malévolos, por
que razão Deus não manifestou sua ira contra eles? Essa
ausência sugere que seres angelicais não estavam presentes na
ocasião.
 Ignora a terminologia mosaica em Gênesis: Essa crítica
tem três aspectos:
1. O uso do termo “anjo” em Gênesis: Em Gênesis o termo
em português “anjo(s)” é visto 15x (32x no Pentateuco) e em
todas as ocasiões é a tradução do termo hebraico “mal’ak”. O
termo hebraico é usado 17x em Gênesis (34x no Pentateuco) e
em duas ocasiões se refere a um mensageiro (32.3, 6). Ou seja,
todas as vezes que se quis retratar uma figura angélica em
Gênesis (e no Pentateuco), Moisés não usou a expressão filhos
de Deus, mas usou o termo hebraico para tal: mal’ak. Ora, se
Moisés tem um costume de se referir a seres angélicos com
esse termo, por que não o fez em Gn.6?
2. O uso da expressão “tomaram para si”: A idéia da
expressão não é violentaram, forçaram, ou coabitaram com as
mulheres, como se esperaria de espíritos malignos. O termo é
usado para descrever uniões matrimoniais. Em Gênesis 11.29,
vemos um claro exemplo para isso: “Abrão e Naor tomaram
para si mulheres; a de Abrão chamava-se Sarai, a de Naor, Milca,
filha de Harã, que foi pai de Milca e de Iscá”
(cf.  Gn.4.19;  Jz.21.18; Rt.1.4). A NIV já assumiu o uso do termo e
traduziu assim o verso: “e os filhos de Deus viram que as filhas
dos homens eram belas e então se casaram com qualquer quer
uma que escolhessem”. A questão que fica aqui é: Por que razão
os anjos caídos iriam oficializar seus relacionamentos?
3. O uso do termo Gigantes: O termo hebraico para gigantes
é “nephiyl” e é também usado no Pentateuco em Nm.13.33:
“Também vimos ali gigantes (os filhos de Anaque são
descendentes de gigantes), e éramos, aos nossos próprios olhos,
como gafanhotos e assim também o éramos aos seus olhos”. Se
tais seres são resultados de seres angélicos e humanos, temos
que considerar que: (a) ou todos não morreram no dilúvio; ou
(b) o evento se repetiu. Entretanto, o contexto deixa claro que
nem uma coisa nem outra aconteceram. Portanto, é seguro
afirmar que esses gigantes não dependem da “genética
angélica”.
 O suporte neotestamentário é questionável: O uso de
passagens neotestamentárias para validar essa opção não é
convincente e pode certamente fazer referência a outros
eventos. No caso de Jd.6, o texto podemo muito bem estar se
referindo a Ez.28, ou Is.14 ao falar da queda de Satanás e dos
seres angelicais.

Conforme vimos até aqui, tal opção, embora defendida a muito


tempo, incluindo cristãos sérios com as escrituras não parece
ser a opção mais aceitável. Vamos considerar a outra opção.

2.         Filhos de Deus: Descendentes de Sete

A opção adota pelo autor é certamente favorecida (em sua


opinião) em função do contexto maior de Gênesis. A clara
distinção entre as gerações de Sete e Caim e seus feitos
sugerem que a intenção de Moisés é demonstrar a distinção
entre ambas as genealogias. Entretanto, notamos que o capítulo
6 inicia como um acréscimo ao capítulo cinco e não como um
prelúdio ao dilúvio. A distinção parece pequena, mas faz grande
diferença.

Aos que lêem Gn.6.1-4 como o prelúdio do dilúvio, acreditam


que a severidade do juízo de Deus está ligada à perversidade
iniciada por seres angélicos. Por outro lado, se Gn.6.1-4 for a
conclusão do capítulo cinco, encontramos um cenário parecido
com o que Jesus parece ter visto nos dias de Noé: “assim como
nos dias anteriores ao dilúvio comiam e bebiam, casavam e
davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca”
(Mt.24.38). Ou seja, os filhos de Deus estavam tomando para si
as filhas dos homens (casavam e davam-se em casamento)
como demanda o ciclo da vida do homem, e pela multiplicação
da humanidade, houve a multiplicação da maldade da
humanidade, causadora do dilúvio. Esse simples distinção pode
diferenciar o modo como lemos o texto, mas vamos às suas
características.

a. Pontos Fortes:

Alguns pontos fortes podem ser levantados:

 Antiguidade do Argumento: Essa interpretação também


não é recente nem inovadora. Certamente não é tão antiga
quanto a anterior, mas já era observada desde Agostinho, e fez
história na história da interpretação cristã, sendo favorecida por
Calvino e Lutero.
 Contexto: “Até aqui no contexto, o contraste tem sido entre
a linha de Sete e Caim; cp. 4.26 e 5.22-24 mostra a linha de Sete
(Enoque) andando com Deus. A introdução de anjos/demônios
nesta altura de Gênesis, especialmente uma referência tão
obscura, parece estranho[9]”. O contraste apresentado no
capítulo 4 e 5 é agora destruído pelo desejo lascivo do coração
do homem. Deve-se notar que a ênfase primária do texto é a
descrição da história da humanidade, e claramente se percebe
que em Gn.6 há a continuidade dessa tônica: “Como se foram
multiplicando os homens na terra, e lhes nasceram filhas” (v.1).
Essa identificação é favorecida pela continuidade do texto, no
qual Deus demonstra sua punição ao homem por sua maldade,
e não os seres angélicos.
 Similaridade com Gênesis: O argumento é visto de dois
pontos de vista:
1. Queda: O texto de Gn.6.2 segue em parte os passos da
tentação de Eva antes da queda: Ver, tomar, o que é bom,
desejável, agradável. Além de termos similares serem usados
aqui, o processo sugere uma interação humana e não angélica.
A resposta divina em punição em ambos os casos (também
similares) demonstram por fato que Deus assim se manifesta
com seres humanos.
2. Lameque: A idéia de tomar para si mulheres parece seguir
o padrão de Lameque que tomou para si duas mulheres. Mais
uma vez, a idéia está diretamente ligada com o coração lascivo
da humanidade. A idéia da poligamia aqui não é estranha ao
texto, e é uma representação das atitudes da descendência de
Caim, o que na descendência de Sete é novo.

 A expressão “Filhos de Deus”: Moisés usa uma expressão


similar a encontrada em Gn.6.2 para descrever pessoas: “Filhos
sois do SENHOR, vosso Deus” (Dt.14.1; cf.  Dt.32.5). Nessa
expressão “filhos do Senhor” (hb. banim YHWH) é uma clara
descrição de seres humanos, e nenhuma razão há para se dizer
que se trata de seres angelicais. Diversas vezes no AT a
nomenclatura de “filho” de Deus faz referência ao povo de Deus
(Sl 73.15; Is 43.6; Os 1.10, 22.1). Todas essas designações
demonstram que a terminologia não exige a identificação dos
filhos dos homens com os seres angélicos, e que o modo mais
natural de ser entendido é em referência a seres humanos.
 A terminologia mosaica: Três aspectos devem ser
ressaltados:
1. Ainda que Moisés tenha feito aqui uso de uma expressão
que na pena de outros autores foi usada para descrever seres
angelicais, esse termo jamais foi usado para descrever
demônios. Parece extremamente estranho às Escrituras chamar
um anjo caído (demônio) de Filho de Deus. Por outro lado,
parece repulsivo e injusto que anjos-não-caídos tenham feito
isso sem se tornarem culpados por suas ações, ou sem alguma
repreensão de Deus.
2. Moises quando se refere a seres angélicos usa
exclusivamente o termo hebraico mal’ak, como já temos
demonstrado. Portanto, é sensato esperar que se quisesse
transmitir a idéia de seres angélicos teria usado o termo que lhe
é comum.
3. Moisés usa a expressão “tomaram para si mulheres” que é
usado normalmente por ele para descrição de casamento
(Gn.4.19; 11.29). Entretanto, se o texto tratar de anjos se
casando, essa informação está em franca contradição com a
realidade angélica, pois eles não se casam nem se dão em
casamento (Mc.12.25; cf.  Mt.22.30; Lc.20.25).

 Caráter profilático de Gênesis: Em diversos aspectos o livro


de Gênesis é profilático: No que se refere a cosmogonia,
Gênesis é uma clara correção ideológica. No que se refere ao
conhecimento de Yahweh, como Deus de Israel, Gênesis é um
auto-desvendamento de Deus e de suas Obras e Caráter. No
que se refere a história do povo de Israel, Gênesis demonstras
os perigos do jugo desigual. Embora nenhuma palavra tenha
sido demonstrada em favor da preferência de Yahweh pela
manutenção da descendência de pessoas que invocavam a
Deus, sua vontade é claramente demonstrada em sua punição.
O pecado de Lameque é aumentado pelos filhos de Deus, que
optam por casar em conformidade com seus desejos lascivos, e
não segundo a recomendação de Deus. Essa designação
também seria profilática ao povo a quem Moisés escreveu o
livro, que sofria os assédios do casamento misto.

b. Pontos Fracos:

Embora seja essa a preferência ela também tem suas


dificuldades, observe:

 Definição: Essa interpretação tem dificuldades em


restringir o significado de algumas expressões usadas no texto,
observe:
1. Filhos de Deus: Um dos problemas dessa interpretação é a
definição de “Filhos de Deus” como referência aos
descendentes de Caim: Em nenhum lugar essa nomenclatura é
usada para descrever os setistas. Não há evidencias contextuais
que suportem essa visão: “Como se foram multiplicando os
homens na terra, e lhes nasceram filhas” (Gn.6.1). Não há
evidências que se encontre uma distinção entre os homens
desse verso, usado de modo genérico ou geral, com as filhas
dos homens, de modo específico, como sugere a interpretação
dos casamentos mistos.
2. Filhas dos homens: Do mesmo modo, não podemos
encontrar razões lingüísticas para definir filhas dos homens
como um grupo distinto de dentre o todo da humanidade.
Observe que Moisés disse que: “Como se foram multiplicando
os homens na terra, e lhes nasceram filhas” (Gn.6.1). Não existe
nenhuma evidência que faça distinção entre as filhas do verso 1
e as do verso 2.
3. Nephilim: “De maneira nenhuma fica claro porque a
descendência de casamentos mistos deveria ser Nephilim-
Gibborim, no entanto estes devem ser entendidos dentro do
alcance da interpretação possível… Mas sua (a do autor bíblico)
referência ao ato conjugal e à gestação encontra justificativa
apenas se ele estiver descrevendo a origem dos nephilim-
gibborim. A menos que a dificuldade que se segue a esta
conclusão possa ser superada, a interpretação do casamento
misto da passagem deve ser definitivamente abandonada[10]”.
 Contexto: Observe alguns detalhes importantes:
1. Contraste entre as Genealogias: Nada indica no contexto
que todos os descendentes de Sete teriam sido piedosos e que
os de Caim teriam sido infiéis. O que o contraste entre as
genealogias apresenta entre pessoas de ambas as genealogias
e sua relação com Deus. Na verdade, o contraste entre as
genealogias está sendo supervalorizado nessa interpretação.
2. Descrição das Genealogias: Em nenhum lugar a descrição
da genealogia de Caim apresenta sua descendência como
tendo filhos e filhas. Sabemos que existiram filhas, mas se o
contraste em Gn.6 exige que as filhas dos homens fossem
descendentes de Caim, seria interessante encontrar alguma
evidência disso no contexto. Enquanto na descendência de
Caim a expressão “filhas” não é utilizada, na de Sete é usada
nove vezes.
3. Implicações da Genealogia: a descrição de gênesis
demonstra que apenas Noé era alguém justo, embora a
descendência de Sete tivesse diversos exemplares no mesmo
período. Ou seja, não se pode presumir que toda a
descendência de Sete era formada por homens piedosos, como
a interpretação sugere.

Em função de ser essa a opção adotada pelo autor, alguns


comentários em réplica a esses pontos fracos podem ser feitos
e sua força pode ser minimizada:

 Sobre a Definição de termos:


1. Filhos e Filhas: Os que optam por criticar essa visão
estabelecem que a distinção entre filhas dos homens e Filhos de
Deus devam ter alguma distinção exegética ou lingüística para
basear o argumento. Como não encontram rejeitam a
interpretação. Entretanto, deve-se dizer que a distinção não é
exegética, mas hermenêutica. Moisés estabelece um claro
contraste entre as descendências, como o fará mais a frente
com outras genealogias, e tal contraste antecedente ao relato
de Gn.6 sugere que tal contraste está se perdendo. Ou seja,
essa interpretação exige que os descendentes de Sete não
estão tomando seu relacionamento com prioridade, de modo
que nos dias de Noé ele apenas era descrito como homem
justo. Segundo essa interpretação a decadência do homem
atingiu até mesmo aqueles que passaram a invocar a Yahweh.
2. Nephilim: Nada é mais mítico do que pensar que tal
descendência exige DNA angélico, e entra em contradição
com Nm.13.33, que descreve esses homens novamente. Essa
“necessidade” só é vista nos olhos daqueles que precisam
enxergar no texto seres angélicos e precisam somar
argumentos para se defender.
3. Yahweh e Elohim: Os que criticam essa visão não
percebem o uso intercambiável que Moisés faz dos termos
Yahweh e Elohim, Portanto, se em Enos se inicia a invocar a
Yahweh e em Gn.6 os filhos de Elohim estão se casando com as
filhas dos homens, eles não podem fazer parte do mesmo
grupo. Se invocar pode ser identificado como “ser chamado
pelo nome de Yahweh”, ser filho de Elohim pode se referir a esse
grupo. Observe, não há exigência exegética, há possibilidade
hermenêutica. Essa distinção é importante para a interpretação.
 Sobre o Contexto:
1. Supervalorização das Genealogias: Na verdade o contraste
entre as genealogias parece supervalorizado para os que
defendem outra interpretação, e por isso tendem a minimizar
tal contraste. De fato, o argumento é montado sobre o
contraste entre as genealogias, mas não de modo a
supervalorizar, mas de considerar a seqüência textual: Gn.6.1-4
é um adendo a realidade descrita nos dois capítulos anteriores:
é uma breve explicação do que acontece com o passar de muito
tempo, e até mesmo os homens fiéis se perverteram.
2. Descrição das Genealogias: Parece ingênuo inferir que
pelo fato de Moisés não usar o termo “filhas” na genealogia de
Caim, a expressão “filhas dos homens” não pode ser uma
referência textual. O valor dessa crítica é numérica: ela soma-se
a outras, e portanto, o número de críticas parece maior. Do
ponto de vista da hermenêutica desse texto, tal argumento
parece irrisório.
3. Implicações da Genealogia: O ponto levantado pelos
contrários a nossa visão do texto apresentam exatamente o que
pensamos sobre ele: No período de Noé ele era o único justo
(pela fé), por isso apenas ele e sua família foram favorecidas por
Deus. Esse é o clímax do texto: Até mesmo aqueles que
invocavam o nome de Yahweh se extraviaram.
Diante da análise de prós e contras, tendo a crer que tal opção
é favorecida por questões hermenêuticas e lingüísticas.
Entretanto, outros críticos poderiam encontrar nessa
apresentação e defesa outros motivos de crítica. Por isso, é
recomendável ao leitor municiar-se de comentários e procurar
orientar-se diante da palavra de Deus. O alerta de Merkh e
Kidner no início dessa análise merece atenção aqui novamente:

“Não importa a interpretação adotada, o ponto parece ser o


mesmo: o pecado agora está transpondo fronteiras espirituais
(sejam celestiais, sejam terrestres). O vírus do pecado virou
pandemia![11]”.
“Onde a escritura é tão reticente como o é aqui, Pedro e Judas
nos aconselham a retirada. Coloquemo-nos em nosso próprio
lugar! Mais importante do que as minúcias desse episódio é sua
indicação de que o homem não pode socorrer-se a si mesmo,
seja que os setitas tenham traído a sua vocação, seja que os
poderes demoníacos tenham conseguido um tento[12]”.

Conclusão

É bem verdade que poderíamos encontrar mais opções: Krell


sugere mais duas possibilidades: Filhos de Deus como descrição
de homens valentes do passado; Filhos dos homens como uma
designação de filhos de Adão em termos gerais. A primeira
leitura foi defendida por Flávio Josefo (Antig. Cap.3, 10,
CPAD, pp.50) e pelo Targun de Onkelos e o supostamente de
Jonatas Ben Uzziel. A segunda é bem menos familiar e o próprio
autor não apresenta muitas defesas dessa opção.
O que é fato, e deve ser lembrado com clareza, é que nenhuma
das duas principais opções apresentadas aqui interferem nas
linhas gerais do texto: Ambas apresentam o papel devastador
do pecado e sua conseqüência no dilúvio. Portanto, apesar da
franca preferência do autor aqui pela interpretação da
miscigenação, o leitor pode ter por certo que outros
comentaristas ainda mais recomendados preferirão outras
opções e que tais distinções não são fundamentais para o
entendimento geral do texto. Assim, convido o leitor à crítica da
minha posição em direção ao entendimento da passagem.

B.     O Dilúvio foi Universal ou Local?

Outra questão ligada ao Dilúvio se refere a sua abrangência: Foi


o dilúvio Local ou Universal? Quando se faz essa pergunta não
se propõe ignorar o relato das escrituras e buscar em fontes
alternativas as respostas para essa questão. A intenção é
observar o que dizem as escrituras sobre o assunto.

Uma nota introdutória deve ser levantada aqui: Quando se usa


a expressão “Local” para se definir o dilúvio não se pretende
afirmar apenas o local onde se encontrava Noé e sua família.
Diferentes propostas já foram apresentadas para o uso desse
termo que abrange desde o mundo conhecido de Noé até um
Dilúvio semi-Universal, incluindo regiões mais abrangentes do
globo, entretanto, sem cobri-lo totalmente. Em defesa desse
tipo mais abrangente alguns cristãos preferem o título de
“Universal” no sentido que inclui todos os seres humanos, em
contraste com o Global, que inclui todo o globo.

Em nossa observação, usamos o termo Universal para descrever


a idéia que defende que todo o globo foi coberto pelas águas e
todos os seres humanos exceto a família de Noé foram
aniquilados; já o termo Local, se refere a uma região do globo
grande o suficiente para aniquilar todos os seres humanos, mas
não todo ele. Vamos a análise.

1.         Universal:

Essa é, sem sombra de dúvidas, a versão mais aceita e recebida


no cristianismo. Em nossa alfabetização bíblica nas escolas
dominicais temos sido ensinados desse modo a anos. Os
cristãos em geral adotam essa posição e não sem evidências,
pois as escrituras parecem favorecer essa interpretação
largamente, em função de sua linguagem universalista nesse
texto (cf. veja a quantidade de “tudo”, “todo”, “todos” usados
nesse relato). Observe alguns pontos favoráveis:

a. A humanidade já teria ocupado toda a terra:

Se toda a humanidade já ocupasse toda a terra nesse momento


histórico, então, o dilúvio deve ser necessariamente universal. A
favor dessa idéia, Gênesis afirma que os homens já haviam
enchido a terra: Em primeiro lugar, os homens estavam se
multiplicando por todas as regiões da terra: “E aconteceu que,
como os homens começaram a  multiplicar-se sobre a face da
terra, e lhes nasceram filhas” (Gn.6.1). Calvino, falando sobre
esse verso, atestou: “Isso aconteceu como efeito da bênção
(Gn.1.28), mas a corrupção humana abusou e perverteu essa
bênção e a transformou em maldição”. Poucos são os
comentaristas que rejeitam a idéia da maldade humana como
causa do dilúvio, e Calvino demonstra isso bem. Entretanto,
note que o texto nos diz que a multiplicação do homem era
sobre a face da terra, como uma forma universal de apresentar
a expansão da humanidade. Portanto, se os homens ocupassem
todo o globo nessa ocasião, o dilúvio era universalmente
necessário.

Em segundo lugar, a linguagem de Gênesis sugere que a


maldade do homem já era vista em toda a terra: “A terra estava
corrompida à vista de Deus  e cheia de violência” (Gn.6.11). Ou
seja, a expansão da humanidade povoou a terra de tal modo
que a terra era vista como corrompida e a violência humana
havia enchido toda a terra. Essa expansão da humanidade caída
está em conformidade com o que se espera dela: “Quando os
perversos se multiplicam, multiplicam-se as transgressões”
(Pr.29.16).

b. Todas as montanhas foram cobertas:

O texto de Gênesis apresenta uma informação interessante


sobre as montanhas que precisa ser analisada: “Prevaleceram as
águas excessivamente sobre a terra e cobriram  todos os altos
montes  que havia debaixo do céu. Quinze côvados acima deles
prevaleceram as águas; e os montes foram cobertos” (Gn.7.19,
20). A descrição aqui é bem abrangente e na opinião dos
defensores dessa visão, o texto parece não oferecer margem
para outra interpretação.

Matthew Henry é um desses que parece defender esse ponto


aqui, e sobre ele atesta: “as águas subiram tão alto que não
apenas a planície fora inundada, mas para garantir que ninguém
pudesse escapar, o topo das mais altas montanhas foram
submersas – quinze côvados, ou seja, sete metros e meio, de
modo que esperar a salvação nos morros e montanhas era
vã [13]”. Provavelmente a citação sobre a possibilidade de
salvação encontrada nas montanhas seja uma forma de Henry
rejeitar a visão da mitologia grega do Dilúvio de Deucalião, que
afirmava que todos os homens morreram, exceto os que
subiram ao topo das montanhas[14].

Outra forte evidência desse fato encontra-se no capítulo 8 de


Gênesis: “No dia dezessete do sétimo mês, a arca  repousou sobre
as montanhas de Ararate. E as águas foram minguando até ao
décimo mês,  em cujo primeiro dia apareceram os cumos dos
montes” (Gn.8.4-5). Falando sobre esse texto Krell atesta: “a
profundidade da água favorece um dilúvio universal. O Monte
Ararate, no qual a arca veio descansar, é superior a 17 mil pés de
altitude, e as águas estavam mais de vinte pés mais alto do que
todas as montanhas[15]”.

c. Todos os homens foram mortos:

Um fato que não há contra-argumentos é que todos os


homens, exceto a família de Noé, foram mortos no dilúvio.
Observe que essa tinha sido a promessa de Deus ao enviar o
Dilúvio: “Disse o SENHOR:  Farei desaparecer da face da terra o
homem que criei, o homem e o animal, os répteis e as aves dos
céus; porque me arrependo de os haver feito” (Gn.6.7). Sobre esse
texto Barnes afirma: “Este testemunho solene para a condenação
universal  [a queda]  não tinha deixado qualquer impressão
salutar ou duradoura sobre os sobreviventes. Mas agora uma
destruição geral e violenta é atinge toda a humanidade, é  um
monumento perpétuo da ira divina contra o pecado, para todas
as futuras gerações da única família salva[16]”.Toda a
humanidade é alcançada com o dilúvio, e como os defensores
dessa visão defendem que os homens ocupavam toda a
superfície da terra, era necessário que o dilúvio fosse universal.

Essa promessa feita por Deus foi levada à cabo, observe:


“Pereceu toda carne que se movia sobre a terra, tanto de ave
como de animais domésticos e animais selváticos, e de todos os
enxames de criaturas que povoam a terra,  e todo homem”
(Gn.7.21; cf.23). A terra fora de tal forma devastada e a
humanidade inteira destruída que a ordenança divina dada a
Adão precisou ser reafirmada com Noé e sua família: “Abençoou
Deus a Noé e a seus filhos e lhes disse: Sede fecundos,
multiplicai-vos e enchei a terra” (Gn.9.1).

d. Todos os animais foram mortos:

Um detalhe observado acima, mas ainda não comentado é que


todos os animais, excetos os que vivem nas águas, morreram no
dilúvio. Isso levanta um importante fato: Ainda que os homens
não tivesse povoado cada uma das áreas do globo, os animais
já o poderiam ter feito. Se todos os animais morreram no
dilúvio, ele foi universal. Note a linguagem universalista dos
textos: Disse o SENHOR: Farei desaparecer da face da terra o
homem que criei, o homem e  o animal, os répteis e as aves dos
céus; porque me arrependo de os haver feito” (Gn.6.7).  Pereceu
toda carne que se movia sobre a terra,  tanto de ave como de
animais domésticos e animais selváticos, e de todos os enxames
de criaturas que povoam a terra, e todo homem” (Gn.7.21).

Linguagem ainda mais abrangente vemos nesse verso: “Porque


estou para derramar águas em dilúvio sobre a terra para
consumir toda carne em que há fôlego de vida debaixo dos
céus; tudo o que há na terra perecerá” (Gn.6.17). Ao comentar
esse verso, Gill atesta que o texto fala sobre “todos os seres
vivos, homens e mulheres, as feras e o gado da terra, e todo o
réptil sobre ela e as aves do céu, mas principalmente o homem, e
os outros por sua causa[17]”.

e. Toda a Terra foi devastada:

A promessa de Deus em punir a terra não incluía apenas os


seres vivos, mas também o planeta terra: “Então, disse Deus a
Noé: Resolvi dar cabo de toda carne, porque a terra está cheia
da violência dos homens; eis que os farei perecer juntamente
com a terra” (Gn.6.13). Sobre esse texto Keil & Delitzsch
afirmam: “Porque toda a carne havia destruído a terra, ela
deveria ser destruída com a Terra por Deus[18]”. Até mesmo
Pedro parece defender a idéia de um juízo para a terra como
um todo quando diz: “Porque, deliberadamente, esquecem que,
de longo tempo, houve céus bem como terra, a qual surgiu da
água e através da água pela palavra de Deus, pela qual  veio a
perecer o mundo  daquele tempo, afogado em água” (2Pe.3.6). A
linguagem universal, parece se repetir em Isaías, observe:
“Porque isto é para mim como as águas de Noé;  pois jurei que as
águas de Noé não mais inundariam a terra, e assim jurei que
não mais me iraria contra ti, nem te repreenderia” (Is.54.9). Essa
leitura, certamente é um reflexo do próprio relato de Gênesis:
“Estabeleço a minha aliança convosco: não será mais destruída
toda carne por águas de dilúvio, nem mais haverá dilúvio para
destruir a terra” (Gn.9.11).

2.         Local:
Os críticos da visão de um dilúvio local geralmente se
interpõem por afirmar que tal opção é na verdade uma
tentativa de se adaptar as escrituras ao conhecimento científico
dos nossos dias. Segundo eles, essa visão é uma tentativa de
“modernização” das escrituras cujo objetivo principal é remover
barreiras intelectuais para a mentalidade contemporânea aceitar
a palavra de Deus. Eles também afirmam que diante da
linguagem universalista da passagem tal conceito fica inviável e
que introjetar informações ao texto é necessário para se
defender tal posição. Em suma, os críticos a essa visão
defendem que não é possível que tal interpretação seja
possível.

Mas, será isso mesmo verdade? Nossa análise assume aqui um


caráter investigativo do texto, em primeiro lugar, para
verificarmos se as críticas são de fato verdadeiras, e verificar a
possibilidade de tais críticos estarem equivocados. Vamos à
análise:

a. O uso das palavras “kol erets”:

O primeiro debate está relacionado com a expressão hebraica


“kol erets”, que é traduzida diversas vezes no relato de Gênesis
como “toda terra”. O que percebemos quando observamos a
expressão em uso na pena de Moisés percebemos que nem
sempre a intenção do autor é que o termo seja realmente tão
abrangente como supõe os defensores do dilúvio universal. Por
isso, abaixo transcrevemos algumas observações, em
demonstração de que a expressão “kol erets” também é usada
com outras ênfases, observe
 Em referência específica:  No mesmo livro podemos
encontrar a expressão com sentido muio mais restrito e
específico para “toda a terra”: “O primeiro chama-se Pisom; é o
que rodeia  toda terra  de Havilá, onde há ouro (…)E o nome do
segundo rio é Giom; este é o que rodeia  toda a terra  de Cuxe”
(Gn.2.11, 13). Nesses versos fica evidente que a expressão “toda
terra” não significa apenas a terra no sentido universal, mas em
sentido restrito (cf.  Gn.1.29; 17.8; 41.41, 43, 55; 45.20; Ex.9.9;
10.14, 15; 34.2; Dt.34.1).
 Em referência a pessoas:  Eventualmente o termo pode ser
usado para descrever pessoas e não lugares: “Longe de ti o
fazeres tal coisa, matares o justo com o ímpio, como se o justo
fosse igual ao ímpio; longe de ti.  Não fará justiça o Juiz de toda a
terra?” (Gn.18.25). Certamente aqui a referência é ao uso da
justiça para com a humanidade e não com o Planeta Terra por
assim dizer. Fato similar acontece em Babel: “Por isso se chamou
o seu nome Babel, porquanto ali confundiu o SENHOR  a língua
de toda a terra, e dali os espalhou o SENHOR sobre a face de
toda a terra” (Gn.11.9). Nesse verso os dois sentidos são
observados: (1) Trata-se da confusão das línguas dos povos (2)
enquanto Deus os espalhava pela superfície do Planeta Terra.
Observar que essa expressão pode ter essa conotação ainda na
pena de Moisës, nos faz repensar o modo como entendemos
tais expressões no texto de do Dilúvio. Um uso interessante
desse tipo é ainda visto em Gênesis: “E  toda a terra  vinha ao
Egito, para comprar de José, porque a fome prevaleceu em todo o
mundo” (Gn.41.57). Certamente não podemos esperar outra
interpretação aqui, senão que o texto fala sobre pessoas. Esse
uso é comum na literatura mosaica e no Antigo Testamento
(Gn.19.31; Ex. 19.5; cf.  Js.23.14; 1Sm.144.25; 2Sm.15.23; 1Re.2.2;
1Cr.16.14; 16.23; Sl.33.8; 66.1; 66.4; 96.1, 96.9; 98.4; 100.1;
105.7; Is.14.7).
 Em referência a um local restrito:  Eventualmente a
expressão pode ser usada para descrever porções de toda a
terra, e não propriamente a terra toda: “Acaso, não está diante
de ti  toda a terra? Peço-te que te apartes de mim; se fores para a
esquerda, irei para a direita; se fores para a direita, irei para a
esquerda” (Gn.13.9). Nesse verso o uso é claramente restrito e
não se pode pensar diferente aqui. Em outros textos do
Pentateuco esse sentido é óbvio: “Então, disse: Eis que faço uma
aliança; diante de todo o teu povo farei maravilhas que nunca se
fizeram  em toda a terra, nem entre nação alguma, de maneira
que todo este povo, em cujo meio tu estás, veja a obra do
SENHOR; porque coisa terrível é o que faço contigo”
(Ex.34.10; cf. Lv.25.9, 24; Jz.6.37; 1Sm.13.3; 2Sm.18.8; 24, 8;
1Re.10.24; 1Cr.14.17; 1Cr.22.5; 2Cr.9.28 – veja também: Ez.9.9).
 Conclusão: Diante do uso da expressão precisamos exercer
certo cuidado quando lemos o texto do dilúvio, pois é possível
que Moisés não esteja dando uma ênfase tão abrangente
quanto pensam os defensores do dilúvio universal. Mas, temos
alguma indicação na narrativa do dilúvio que poderia sugerir
que o Dilúvio é Local e não Universal?

b. O testemunho do próprio texto:

É bem verdade que existem algumas observações importantes a


serem feitas no texto do dilúvio que podem confirmar que o
Dilúvio narrado nas escrituras não fala de um fato universal,
mas local, ainda que esse local inclua a grande parte do globo.

 O uso de erets: No relato do dilúvio alguns usos do


substantivo referente a terra se referem ao planeta, observe:
“A  terra estava corrompida à vista de Deus e cheia de violência.
Viu Deus a  terra, e eis que estava corrompida; porque todo ser
vivente havia corrompido  o seu caminho na terra” (Gn.6.11,12).
Note que a idéia de uma terra corrompida aqui certamente fala
sobre a humanidade e não sobre o planeta. No verso 12 fica
evidente a equiparação entre a idéia da terra corrompida e de
todo ser vivente como um modo de viver corrompido. Essa
idéia é importante, pois apresenta que o foco do motivo do
dilúvio é restrito à humanidade e não a todo o planeta. Assim,
não é exigido que o dilúvio atinja toda a terra. Outro detalhe
importante, é que a aliança que Deus faz como Noé inclui toda
a humanidade: “Disse Deus: Este é o sinal da minha  aliança que
faço entre mim e vós e entre todos os seres viventes  que estão
convosco, para perpétuas gerações, porei nas nuvens o meu arco;
será por sinal da aliança  entre mim e a terra” (9.12, 13). Sobre
esses versos, Rich Deem afirma: “Gênesis 6, versículos 11 e 12
nos dizem que a terra estava corrompida, apesar de entendermos
este versículo como uma referência ao povo da terra. Da mesma
forma, em Gênesis 9:13, o versículo nos diz que Deus fez uma
aliança entre Ele mesmo e a terra. No entanto, mais tarde, versos
esclarece que a Aliança é entre Deus e as criaturas da terra. O
texto de Gênesis estabelece claramente (juntamente com o Novo
Testamento) que o julgamento de Deus foi universal em
referência aos seres humanos (com exceção de Noé e sua família)
[19]”
 O uso de kol: Em algumas ocasiões o uso de “kol”
(tr.  Todo) no relato do dilúvio não significa “tudo” no sentido
mais absoluto. Em algumas ocasiões a referência é à
abrangência, mas não à totalidade, observe: “Então, disse Deus
a Noé: Resolvi dar cabo  de toda carne, porque a terra está cheia
da violência dos homens; eis que os farei perecer juntamente
com a terra” (Gn.6.13). Observe que embora o dilúvio tenha
alcançado toda a humanidade não alcançou a Noé e seus
familiares. Por isso, podemos entender que tal afirmação não é
absoluta, mas genérica (cf.  Gn.6.17, 19). O mesmo aconteceu
com o término do dilúvio, quando o texto atesta que o dilúvio
teria matado todos os seres viventes, mas isso certamente não
incluía a Noé, sua família e os animais da arca (cf. 7.21).
 O uso de har: O termo hebraico “har” é freqüentemente
traduzido por montanha no relato do dilúvio, mas o termo
hebraico é um pouco mais abrangente do que isso. Em um
texto, seu uso pode ser significativo, observe: “Prevaleceram as
águas excessivamente sobre a terra e cobriram  todos os altos
montes  que havia debaixo do céu. Quinze côvados acima deles
prevaleceram as águas;  e os montes foram cobertos” (Gn.7.19-
20). O termo foi corretamente traduzido pela ARA, usando
montes ao invés de montanhas. Embora a diferenciação léxica
não seja definitiva, certamente inclui a possibilidade de um
dilúvio que não tenha submerso o Everest, por exemplo. Alguns
autores que se propuseram a medir o Monte Ararate, onde a
Arca parou, afirmam que sua altitude é aproximadamente
16.500[20] pés de altura, enquanto as montanhas do Himalaia
ultrapassam os 26.000 pés! Por essa razão, é prudente
tomarmos os relato de Gn.7.19 como uma expressão retórica.
Para explicar esse fato Barnes acresce: “Nenhum monte estava
sobre a água dentro do horizonte do espectador humano[21]”.
 O fim do relato do dilúvio: Duas observações podem ser
feitas aqui:
1. Vento: O autor de Gênesis descreve que as águas do
dilúvio foram minimizadas por vento, observe: “Lembrou-se
Deus de Noé e de todos os animais selváticos e de todos os
animais domésticos que com ele estavam na arca;  Deus fez
soprar um vento sobre a terra, e baixaram as águas” (Gn.8.1).
Não devemos minimizar a idéia de o vento fazer as águas
baixarem, mas pensar que na idéia de um dilúvio universal, as
águas não seriam escoadas pelo vento, pois não teriam para
onde ir. Note que essa é a tônica que o autor de Gênesis dá ao
relato, observe: “As águas iam-se escoando continuamente de
sobre a terra e minguaram ao cabo de cento e cinqüenta dias”
(Gn.8.3, cf.  v.5).
2. Deserto Universal: Outro detalhe que merece
destaque, é que se tomarmos literalmente as declarações sobre
o fim do dilúvio, teremos que admitir que o globo sofreu, ainda
que temporariamente, da completa ausência de água, observe:
“Ao cabo de quarenta dias, abriu Noé a janela que fizera na arca
e soltou um corvo, o qual, tendo saído, ia e voltava, até que se
secaram as águas de sobre a terra (…)Sucedeu que, no primeiro
dia do primeiro mês, do ano seiscentos e um, as águas se
secaram de sobre a terra. Então, Noé removeu a cobertura da
arca e olhou, e eis que o solo estava enxuto (…)E, aos vinte e
sete dias do segundo mês, a terra estava seca” (Gn.8.6-7, 13,
14). A mesma ênfase aqui é dada quando o autor narra a
abrangência do dilúvio: Portanto, se o dilúvio foi local, é de se
esperar que a parte inundada, ainda que ocupe grande parte do
globo, secou, e não toda a terra como se esperaria na leitura
universal do dilúvio.

c. O Testemunho de outras passagens:

Outras passagens nas escrituras parecem favorecer a idéia de


um dilúvio local e não universal, observe:

 Sl.104.5-9: “Lançaste os fundamentos da terra, para que ela


não vacile em tempo nenhum. Tomaste o abismo por vestuário e
a cobriste; as águas ficaram acima das montanhas; à tua
repreensão, fugiram, à voz do teu trovão, bateram em retirada.
Elevaram-se os montes, desceram os vales, até ao lugar que lhes
havias preparado.  Puseste às águas divisa que não
ultrapassarão, para que não tornem a cobrir a terra”. O texto
parece apontar para o ato da criação divina, que lançou os
fundamentos da terra e a cobriu com água, então elevou os
montes e desceu os vales e determinou que as águas não
cobrissem a terra novamente. Esse paralelo com a criação
parece sugerir que no período da criação toda a terra fora
coberta por água, mas após criar as montanhas, um limite foi
determinado para que nunca mais as águas cobrissem a terra.
Portanto, temos que considerar que o dilúvio não poderia
ultrapassar os limites determinados por Deus.
 Pv.8.27-29: “Quando ele preparava os céus, aí estava eu;
quando traçava o horizonte sobre a face do abismo, quando
firmava as nuvens de cima; quando estabelecia as fontes do
abismo,  quando fixava ao mar o seu limite, para que as águas
não traspassassem os seus limites; quando compunha os
fundamentos da terra”. Nesse verso vemos a presença da
sabedoria por toda a criação divina, e nesse verso vemos que
Deus estabeleceu um limite para as águas dos mares para que
não ultrapassassem. Essa é mais uma sugestão de que o dilúvio
não teria sido universal.
 2Pe.3.5-6: “Porque, deliberadamente, esquecem que, de
longo tempo, houve céus bem como terra, a qual surgiu da água
e através da água pela palavra de Deus, pela qual veio a perecer
o  mundo daquele tempo, afogado em água”. Nesse verso Pedro
não diz que todo o mundo havia sido destruído pelo dilúvio,
mas que o mundo conhecido naquele tempo fora destruído.
 Outros: Em outros lugares do Novo Testamento, fica
evidente que o propósito do dilúvio era a atribuição da ira
divina sobre os homens, e não sobre todo o planeta, observe:
“Assim como foi nos dias de Noé, será também nos dias do Filho
do Homem: comiam, bebiam, casavam e davam-se em
casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, e veio o
dilúvio e  destruiu a todos” (Lc.17-26-27); “Pela fé, Noé,
divinamente instruído acerca de acontecimentos que ainda não
se viam e sendo temente a Deus, aparelhou uma arca para a
salvação de sua casa;  pela qual condenou o mundo  e se tornou
herdeiro da justiça que vem da fé” (Hb.11.7). Essa informação
reforça a idéia de que o mundo em foco para destruição era
uma referência ao ser humano e não ao planeta. Portanto, o
dilúvio tinha o objetivo de destruir apenas os seres humanos e
não submergir o Planeta Terra.

3.         Parecer Pessoal:

Para concluir esse aspecto das nossas considerações sobre o


dilúvio temos que admitir que nenhuma das leituras é recebida
sem dificuldades. Ainda que outras considerações sobre cada
uma das opções analisadas possam ser vistas, é fundamental
reconhecer que o aspecto fundamental do dilúvio não é
perdido em nenhuma das duas análises: A questão fundamental
é a Soberania de Deus no exercício de sua santa e justa Ira
contra o pecador e julgamento contra a maldade da
humanidade. Tendo dito isso, pretendo levantar algumas
considerações sobras as diferentes opções.

As duas análises não foram feitas à exaustão, mas servem como


demonstração das diferentes opiniões sobre o assunto.
Certamente por isso, temos algumas questões ainda não
respondidas em ambas as leituras: Se o dilúvio foi universal,
algumas perguntas permanecem sem resposta:

1. Se o dilúvio foi universal e encobriu o monte Everest,


como ficou a respiração de Adão, sua família e dos animais na
Arca, uma vez que nessa altitude o ar é extremamente rarefeito?
2. Por que nos faltam provas geológicas que indiquem esse
fato?
3. Por que razão o foi? Nenhum ser humano jamais habitou
nas mais altas montanhas do mundo. Se o propósito do dilúvio
era um julgamento contra o homem e os animais, o dilúvio não
necessitaria ser universal.
4. As espécies características de regiões específicas do globo,
como coalas, e cangurus (Austrália) foram preservados por
Noé? Se sim, como foram capturados?
5. Se o dilúvio foi universal e todas as espécies de animais
foram preservadas, a arca era suficientemente grande para
conter todas as espécies existentes?
6. Se o dilúvio foi universal, para onde escoaram as águas do
dilúvio?

Por outro lado, se o dilúvio foi local, algumas questões parecem


ficar sem respostas:
1. Como explicar os textos que sugerem que o dilúvio
também foi uma punição para a terra (6.13; 9.11)?
2. Como evitar a leitura universal em um texto repleto de
informações que parecem exigir a idéia de uma catástrofe
universal?
3. Se Deus é o autor do Dilúvio, Ele não poderia tê-lo feito
universal, como o texto parece sugerir?

Responder a essas perguntas, não significa resolver os


problemas e dilemas de interpretação desse texto, mas de
caminhar em direção a uma resposta mais plausível.
Evidentemente, o autor desse artigo tem certa preferência pela
leitura de um Dilúvio Local, que em nenhum momento se
propõe a restringir a ação de Deus, mas de conciliar
informações expostas nas escrituras com aquelas encontradas
na natureza.

C.  Deus se Arrepende?

Em Gênesis vemos uma declaração interessante sobre Deus,


observe: “então,  se arrependeu o SENHOR de ter feito o homem
na terra, e isso lhe pesou no coração. Disse o SENHOR: Farei
desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o
animal, os répteis e as aves dos céus;  porque me arrependo de os
haver feito” (Gn.6.6, 7). Essa declaração de Moisés sobre as
palavras de Deus em relação a humanidade é sem sombra de
dúvidas interessante: Deus se arrepende.

Mas, isso significa que Deus muda? As escrituras são claras


quanto ao fato de que Deus não muda, observe: “Porque eu, o
SENHOR, não mudo; por isso, vós, ó filhos de Jacó, não sois
consumidos” (Ml.3.6); “Também a Glória de Israel não
mente,  nem se arrepende, porquanto não é homem, para que se
arrependa” (1Sm.15.29); “Toda boa dádiva e todo dom perfeito
são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem  não pode
existir variação ou sombra de mudança” (Tg.1.17). Mesmo
Moisés apresenta Yahweh como um Deus que não se
arrepender: “Deus não é homem, para que minta; nem filho de
homem, para que se arrependa. Porventura, tendo ele prometido,
não o fará? Ou, tendo falado, não o cumprirá?” (Nm.23.19).
Entretanto, em Gênesis lemos que Deus se arrependeu. Como
compreender o arrependimento de Deus (Gn.6) e o fato que Ele
não se arrepende (Nm23.19?) na visão do mesmo autor?

Responder a essa pergunta tem sido tarefa de todos os


estudantes de Teologia de toda a era cristã, e muitas propostas
tem sido oferecidas. Em nosso estudo iremos responder a essa
perguntas em três estágios: (1) Definindo Imutabilidade; (2)
Entendendo a idéia de arrependimento; (3) Apresentando nossa
visão sobre o assunto no relato de Gênesis.

1.         Deus é imutável?

Sobre a imutabilidade de Deus muita discussão teológica já se


formou, seja entre cristãos defendendo um ponto de vista
diferente, seja cristãos defendendo as escrituras aos ataques de
não cristãos. É bem verdade que diversas opiniões existem
sobre esse assunto e não é objetivo aqui apresentar todas as
posições. Entretanto, trataremos das duas mais conhecidas e
provavelmente mais influentes de onde opiniões menores ou
subseqüentes são formadas: (a) A visão mais tradicional e (b)
uma nova visão. Oferecidas as duas opiniões também daremos
nossa opinião e conclusão sobre o assunto.

a. Visão Tradicional:

Já temos visto que as escrituras apresentam a Yahweh como


Deus que não muda, mas o que isso significa? Imutabilidade de
Deus é a perfeição que lhe é atribuída pelas escrituras que diz
respeito à Sua capacidade intrínseca de nunca fazer-se
apresentar sob outro aspecto. Essa perfeição é aplicada a Seu
Caráter (Tg.1.17), Vontade (Is.46.9-10) e Propósitos (Hb.6.17).
Imutabilidade por vezes é reconhecida como a perfeição
absoluta, pelo fato de que Deus é completo, pleno em Seus
atributos (Nm.32.19; Sl.33.11; Ml.3.6; Tg.1.17). Sobre ela, Louis
Berkhof afirma:

“A imutabilidade de Deus é necessariamente concomitante com


a Sua asseidade. É a perfeição pela qual não há mudança nele,
não somente em Seu Ser, mas também em Suas perfeições, em
Seus propósitos e em suas promessas. Em virtude deste
atributo, Ele é exaltado acima de tudo quanto há, e é imune de
todo acréscimo ou diminuição e de todo desenvolvimento ou
decadência em Seu Ser e em Suas perfeições. Seu
conhecimento e Seus planos, Seus princípios morais e Suas
Volições permanecem sempre os mesmos[1]”.

Augustus Hopkins Strong definiu essa característica divina do


seguinte modo:

“Por imutabilidade entendemos que a natureza, atributos, e


Vontade de Deus são isentas de qualquer mudança. A razão nos
ensina que nenhuma mudança é possível em Deus, seja por
acréscimo ou decréscimo, progresso ou degradação, redução
ou desenvolvimento[2]”.
Sobre o mesmo tema Vincent Cheung afirma:

“A imutabilidade de Deus procede de sua eternidade. Como


não existe um antes ou depois com Deus, Ele é imutável em Seu
Ser e Caráter. Esse atributo é associado com sua Perfeição. Se o
Ser Divino já possui toda a perfeição, então Nele só poderia
existir mudanças para pior[3]”.

Lewis Sperry Chafer complementa:

“Em nenhuma esfera ou relacionamento Deus está sujeito a


mudar. Ele não poderia ser menos do que é, e, visto que Ele
enche a todas as coisas, Ele não pode ser mais do que Ele é (…)
Não somento não há mudança no próprio Deus, mas os
princípios morais que Ele publicou permanece[4]”

Henre Clarence Thiessen adenda:

“A imutabilidade de Deus se deve à simplicidade de sua


essência (…) Deve-se também à sua existência necessária ou
auto-suficiente. Aquele cuja existência não é causada, por
necessidade de sua natureza, tem que existir como existe[5]”.

Vale apena lembrar da colocação de Gordon Clarke sobre isso:

“Se a auto-existência pudesse mudar isso tornaria a existência


dependente, a eternidade se transformaria em tempo; a
perfeição em imperfeição e portanto, Deus se transformaria em
não Deus. A imutabilidade garante que nenhuma das perfeições
divinas mude[6]”

De um modo muito claro está definido pela Teologia Cristã


Tradicional que Deus a Imutabilidade de Deus faz parte do seu
Ser e Caráter e que todos os Atributos Divinos são igualmente
imutáveis. Na visão de Cheung, entendemos que a idéia de um
ser Supremamente Perfeito, mudanças seriam apenas em
direção à degradação, o que é impossível a Deus, pois não é,
nem pode ser tentado pelo mal (Tg.1.13). Isso faz todo sentido
com o que lemos nas escrituras a respeito de Deus. As
implicações de um Deus que não se arrepende e não muda,
conforme vemos na visão Chafer, é um Deus confiável cuja
palavra e decreto não podem não se cumprir. Ele não desiste de
suas intenções, ou seja é fiel e confiável, digno de ser exaltado e
adorado.  A visão tradicional presa por um Deus Fiel à sua
Palavra e que por ser além do tempo, ter todo o conhecimento,
poder e perfeição está além da possibilidade de mudança.
Sobre isso Ryrie afirma:

“A imutabilidade oferece conforto e segurança de que as


promessas de Deus não falharão (Ml.3.6; 2Tm.2.13). A
imutabilidade lembra-nos de que a atitude de Deus em relação
ao pecado, por exemplo, não muda. Logo, Deus nunca pode ser
coagido ou induzido à mudança[7]”

É na imutabilidade de Deus que encontramos a segurança da


salvação, a certeza da vida eterna, a vitória sobre o mal e o
cumprimento cabal de todas as promessas feitas no passado.
Sua Palavra jamais passará, pois é Palavra Daquele que não
muda e é Fiel. Yahweh, o Deus verdadeiro não muda. Mas,
ainda é importante perguntar: Como podemos saber que Deus
não muda? Sobre a possibilidade de que Deus não pode mudar,
existem três argumentos lógicos, fundamento nas sagradas
escrituras[8]:

 Argumento da Eternidade: Para que uma mudança possa


existir, deve existir um “antes” e um “depois”. Para que um
“antes” e um “depois” existam é necessário uma cronologia.
Para que a cronologia exista, é necessário que o objeto da
mudança seja um ser temporal. Logo, não se pode aplicar
mudanças a Deus, pois é Eterno e atemporal (Jo.17.5; 1Tm.1.9).
 Argumento da Perfeição: Uma mudança pode ser para
“melhor” e para “pior”. Se não existe diferença não existe
mudança. Ou algo necessário é acrescentado ou algo
necessário é perdido. Mas Deus é perfeito. A perfeição de Deus
implica em que Ele seja “ausente de ausências”, ou seja Deus é
completo (Mt.5.48).
 Argumento da Onisciência: Quando alguém muda de
idéia, é por que recebeu uma nova informação que
anteriormente não conhecia. Contudo, Deus é onisciente,
conhecedor dos infinitos fins das infinitas possibilidades. Ele
conhecia a situação. Sendo assim, as situações mudaram e
demandaram uma atitude diferente (Sl.40.5; 139.17, 18;
147.5; Is.40.28; Rm.11.33).

b. Uma nova visão

Como vimos, diante das escrituras e da teologia cristã, o Deus


das escrituras é um Deus que não muda. Entretanto, alguns
pensadores têm entendido que isso significa que ele não
interage com a humanidade e por isso não é pessoal. O Deus
absolutamente transcendente, como a Teologia Cristã
Tradicional afirma, não é compatível com a idéia de um Deus
que se permite interagir com Sua Criação. Essa visão não é
recente e estende suas raízes desde as mais antigas idéias
panteístas do passado. Para explicar esse processo, Berkhof
afirma:

“O teísmo sempre considerou Deus como um Ser pessoal,


absoluto, de perfeições infinitas. Durante o século XIX, quando a
filosofia monística estava em ascendência, tornou-se comum
identificar o Deus da teologia com o Absoluto da filosofia. Mais
para o fim do século, porém, o termo “Absoluto”, como uma
designação para Deus, caiu em descrédito, em parte por causa
de suas implicações agnósticas e panteísticas, e em parte como
resultado da oposição à idéia do “Absoluto” na filosofia, e do
desejo de excluir toda metafísica da teologia.[9]”

A aproximação de idéias não monoteístas à teologia cristã e a


absorção do conceito pluralista da divindade acabou por
rejeitar a mentalidade da Teologia Cristã Tradicional de um
Deus Absoluto, e passou a vê-lo como um Ser sujeito à
alteração de planos, propósitos e conseqüentemente do seu
próprio ser.

A transcendência divina foi subvertida pela defesa da imanência


absoluta, ou seja, o Deus Absoluto foi substituído pelo Deus
“relacional”, aproximado do homem, comparável ao homem, à
imagem do homem. A idéia é que a dinâmica do
relacionamento exclusivamente imanente de Deus em relação a
um mundo em evolução acontece em um processo contínuo e
intercambiável de alterações no relacionamento e no caráter,
tanto de um como de outro. Segue-se que, em conformidade
com o progresso da humanidade e de sua visão de Deus, há
uma adaptação do caráter e do relacionamento do Deus com
suas criaturas. Ou seja, Deus não é Perfeito ou Completo, está
em processo de formação e sua interação com a humanidade o
transforma, modifica. Ou seja, para esses pensadores, para Deus
ser verdadeiramente pessoal, Ele precisa ser suscetível à
mudança. Para defender essa visão, Nelson Pike afirma:

 Se Deus é Atemporal Ele não é Presciente: Alguns textos


apresentam a Deus como capaz de prever o Futuro (Rm.8.29;
1Pe.1.2). Porém, não há futuro para quem não está inserido no
Tempo. Se Deus é atemporal, o tempo é um eterno e único
agora, assim Ele não prevê ou antevê, mas apenas vê. Aqui
nota-se um dilema: Ou Aceitamos uma concepção “bíblica” de
Deus e rejeitamos a concepção grega ou o inverso.
 Se Deus é Atemporal Ele não Criou o Universo: Se Deus é
Atemporal não pode agir no tempo, portanto não teria criado.
Contudo, as escrituras apresentam uma criação sendo realizada
no Tempo. Portanto, um Deus Atemporal não poderia ter
Criado um Universo Temporal. Deus torna-se, então, criador,
temporal e mutável.
 Se Deus é Atemporal Ele não uma Pessoa Completa: Uma
pessoa completa está sujeita a corresponder intelectual,
emocional e volitivamente a pessoas. Contudo, o conceito de
Atemporalidade implica em Imutabilidade, que por sua vez
aponta para alguém que não pode mudar de opinião, de
sentimento e de vontade. Tornar-se-ia imóvel. Portanto, um ser
que não possa compadecer-se, e que por certo é impassível de
tal sentimento, é menos pessoal que aqueles que assim se
procedem.
 Se Deus é Temporal é mais digno de Adoração: Se Deus
pode compadecer-se de mim, mudar de opinião, vontade, Ele é
mais capaz de interagir com a humanidade e por isso ser mais
digno de adoração. Por que razão dedicar-se em clamor a um
Deus que não Muda e não se Compadece?
 Se Deus é Atemporal Ele não está de acordo com sua
Revelação: Se Deus é Atemporal, Ele é Imutável. Contudo as
Escrituras apresentam suas mudanças em resposta a orações
(Js.10), ou arrependimento dos homens (Jn.3) ou por causa da
maldade humana (Gn.6). Algumas construções lingüísticas
apresentam um conceito muito próximo a Temporalidade
(Sl.90.2). As expressões como “pelos séculos dos séculos”
(Ap.20.10) o evidenciam.
 Conclusão de Pike: “Concluirei que a doutrina da
atemporalidade não deve ser incluída num sistema de Teologia
Cristã”.  Platão é a origem da doutrina da atemporalidade, “Mas
Platão não era cristão – nem posso pensar em qualquer razão
porque um cristão deva aceitar o julgamento de Platão sobre
esta questão”. Deus torna-se então temporal e mutável

Nesse modo de visualizar a Deus, a idéia um arrependimento


divino, uma decepção cósmica é evidência suficiente para se
comprovar que as escrituras assim apresentam a pessoa de
Deus. Por outro lado, a Teologia Cristã Tradicional repudia a
idéia de um Deus que muda, e tem nas escrituras respaldo
suficiente para defender esse aspecto. Portanto, vemos um
dilema aqui, mas, como tratá-lo?

C. Conclusão

Em primeiro lugar devemos notar que a visão da Teologia Cristã


Tradicional soa excessivamente dura e apresenta-se sujeita à má
interpretação. Note que Pike critica a idéia de um Deus
Imutável, pois o assemelha a uma porta: Não importa o quanto
você procure se relacionar (orar) ela, ela não irá deixar de ser
uma porta.

Em segundo lugar, deve ficar evidente que a ideologia de Pike


não parece em conformidade com as escrituras. As colocações
de Pike conformam-se muito mais com a filosofia do que com a
teologia cristã de acordo com as escrituras, por outro lado
sugerem visões alternativas interessantes.

Por isso, acredito que a verdade aqui está sob tensão aqui:
Alguns tendem a defender um Deus tão imutável que
eventualmente é visto como imóvel e impassível; outros o
preferem tão relacional e próximo, tão perto e presente, que
não o podem imaginar Soberano como as escrituras parecem
dizer que Ele é. Um movimento parece responder ao outro, mas
sem chegar de forma alguma ao cerne da questão ou resolvê-
lo.

A verdade, por outro lado, compreende a transcendência de


Deus, o fato de que é exaltado acima de tudo e todos por que é o
que é e que ninguém jamais poderá sê-lo, e Sua imanência, o
fato de que Deus se faz presente no tempo, ativo,
participativo, de modo que sua Transcendência não minimiza
sua Pessoalidade nem sua Imanência sua Soberania. Deus é
completamente Soberano e Pessoal, perfeitamente
transcendente e imanente: “Acaso, sou Deus apenas de perto, diz
o SENHOR, e não também de longe?” (Jr.23.23).

Por isso, é necessário avaliarmos se as premissas de Pike em


busca de um Deus pessoal são verdadeiras:

 Se Deus é Atemporal Ele não é Presciente: Pike defendeu a


idéia de um Deus temporal por Ele prever o futuro. Teria Pike se
lembrado de como o próprio Deus vê suas promessas e
decretos: “Eu sou Deus e não há outro semelhante Amim; que
desde o princípio anuncio o que há de acontecer e desde a
antiguidade, as coisas que ainda não sucederam; que digo: o
meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade
(…) E o disse, eu também o cumprirei; tomei este propósito,
também executarei” (Is.46.9-11). A divisão entre Pré-ciência e
Onisciência nada mais é do que um equívoco lingüístico, pois
um Deus que sabe todas as coisas (Onisciente) não apenas as
sabe por previsão, mas por decreto. Aliás, se Pike assumir que o
termo presciência de 1Pe.1.2 fala sobre a capacidade de
previsão de Deus, que diremos de At.2.23 que fala sobre a
morte de Cristo, de acordo com o determinado propósito e
presciência de Deus? Teria Deus apenas antevisto a morte de
Cristo? Certamente não. Nesse sentido, presciência e
determinado propósito são características similares. Portanto,
dizer que Deus está no tempo pois é capaz de anunciar o futuro
é uma triste falácia retirada de qualquer lugar, menos das
escrituras.
 Se Deus é Atemporal Ele não Criou o Universo: Sobre a
idéia de um Deus atemporal não atuar no tempo, temos que
entender que a premissa não é nem lógica, pois, em outras
palavras Pike afirma que a Eternidade de Deus o faz Impessoal.
A premissa fundamental de Pike aqui é que a pessoalidade
depende do desenvolvimento que criaturas temporais sofrem
no passar de suas vidas, e que a Eternidade privaria Deus de
desenvolver, e portanto de se relacionar. Entretanto, não se
compara o Criador com suas criaturas: O paralelo é o contrário:
Por que Deus é pessoal suas criaturas o podem ser. Por ser
criador, deve ser eterno, pois é anterior ao universo, e segundo
as escrituras claramente posterior: “Assim diz o SENHOR, Rei de
Israel, seu Redentor, o SENHOR dos Exércitos: Eu sou o primeiro e
eu sou o último, e além de mim não há Deus” (Is.44.6). É
supremamente elevado, eterno e pessoal, pois existe desde a
eternidade do modo trino. O relacionamento amoroso da
Trindade desde antes da fundação do mundo é prova suficiente
de que a Eternidade em nada minimiza sua pessoalidade
(Jo.17.24; Gn.1.2, 26).
 Se Deus é Atemporal Ele não uma Pessoa Completa: Pike
argumenta que um Deus atemporal deverá ser em última
análise um Deus imóvel e impassível, e por isso não pode
interagir com sua criação. Essa afirmação, entretanto, provém
tão somente da imaginação em repúdio às escrituras, pois o
Deus apresentado pelas escrituras tem todas essas
características: “…do Pai das luzes,  em quem não pode existir
variação ou sombra de mudança” (Tg.1.17), comprovando Sua
Imutabilidade; “Chegai-vos a Deus, e  ele se chegará a vós
outros” (Tg.4.8) comprovando sua mobilidade; “e isso lhe pesou
no coração” (Gn.6.6) comprovando sua suscetibilidade à
emoção. Certamente, isso não o faz um ser cujo sentimento
sobrepõe sua determinação, como se pudesse ficar
descontrolado, mas isso evidência um Deus que move e se
comove com sua criação, sem ser sujeito à alteração de seu
caráter, pessoa e plano.
 Se Deus é Temporal é mais digno de Adoração: Um deus
suscetível a mudança não me parece um Deus digno da minha
confiança, pois assemelha-se ao homem, que não apenas muda
de opinião como não é confiável no cumprimento de suas
promessas. Portanto, um deus mudável não é confiável, e
portanto não mais digno de adoração, mas de pesar. Viver na
confiança e dependência de um deus que não garante o que
promete é o mesmo que correr atrás do pecado, que isso faz
com plena autoridade: nunca entrega a felicidade que promete.
 Se Deus é Atemporal Ele não está de acordo com sua
Revelação: Nesse quesito há relativo acerto, pois Pike parece
reagir não primeiramente às escrituras, mas a visão tradicional
das escrituras que defendem a impassibilidade de Deus e sua
imobilidade. Já demonstramos brevemente que ambas as
características são vistas em Deus e não podem ser apenas
descartadas por preferência teológica. Contudo, diante delas, a
premissa de Pike se demonstra equivocada, pois segundo as
escrituras Deus É Atemporal e Pessoal, e isso está de acordo
com sua Revelação.

A verdade é que a visão tradicional sempre entendeu a Deus


como um Ser imutável, em conformidade com as escrituras,
mas eventualmente ignorava a realidade de um Deus que
interage com Sua Criação. Por outro lado, a visão mais recente
(que na verdade é uma adaptação de antigas idéias) exalta a
idéia da interação divina em detrimento e rejeição de Sua
Soberania. Toda essa movimentação teológica encontra-se no
fato da má compreensão da Imanência e da Transcendência de
Deus. Por exemplo, Paulo defendeu ambas as idéias. Note que
em At.17.24-29 Paulo apresenta um Deus extremamente
Soberano e Auto-existente como Pessoal e Presente:

“O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo ele
Senhor do céu e da terra, não habita em santuários feitos por
mãos humanas. Nem é servido por mãos humanas, como se de
alguma coisa precisasse; pois ele mesmo é quem a todos dá
vida, respiração e tudo mais; de um só fez toda a raça humana
para habitar sobre toda a face da terra, havendo fixado os
tempos previamente estabelecidos e os limites da sua
habitação; para buscarem a Deus se, porventura, tateando, o
possam achar, bem que não está longe de cada um de nós; pois
nele vivemos, e nos movemos, e existimos, como alguns dos
vossos poetas têm dito: Porque dele também somos geração.
Sendo, pois, geração de Deus, não devemos pensar que a
divindade é semelhante ao ouro, à prata ou à pedra,
trabalhados pela arte e imaginação do homem”

O Deus Todo-Transcendente de Paulo é o Criador do universo e


de tudo o que existe, Ele de nada depende, além de ser o
doador da vida de toda criação. Por outro lado é extremamente
pessoal, pois se faz perto, presente até mesmo daqueles a
quem Paulo anunciava o evangelho, homens pagãos. Ele é o
Deus de quem derivamos a existência, que está perto de cada
um de nós, mas que não pode ser assemelhado à nada que
esteja na imaginação do homem.

Portanto, é seguro afirmar que o fato de ser Deus Soberano,


Auto-Existênte, Imutável em nada reduz sua Pessoalidade e
Interação com Sua Criação. Aliás, se todas essas características
divinas estiverem ajustadas em conformidade com as escrituras,
ficará evidente o exagero, seja na defesa da Imutabilidade de
Deus ou de Sua Pessoalidade. O importante é demonstrar que
ambas as idéias são apresentadas sobre Deus e nem por isso
Ele é mais ou menos Deus: A verdade é que Deus o é Pleno em
ambos os aspectos e qualquer demérito ou acréscimo criará um
novo deus, e o Deus das escrituras terá sido manipulado pela
imaginação do homem.

2.         O que significa a expressão “Deus se arrependeu”?

O que vimos até aqui certamente nos demonstra que apesar de


Deus ser Imutável isso não significa que Ele é um ser imóvel ou
impassível. Então, diante da realidade bíblica a respeito de
Deus, como podemos entender que Deus se arrependeu?

Os que defendem a completa imobilidade de Deus dirão que


esse é o caso da adaptação da linguagem adaptando os
infindos caminhos de Deus aos finitos caminhos dos homens. Já
os que defendem a completa imanência de Deus dirão que aqui
temos clara evidência de que Deus muda. Entretanto, gostaria
de propor uma idéia alternativa para a visão do arrependimento
divino, que não exclui a idéia da adaptação da linguagem, mas
que rejeita a idéia da susceptividade de Deus à mudança.

A grande maioria dos teólogos tradicionais defende que aqui


ocorre um recurso didático chamado antropopatia, que nada
mais é do que atribuir sentimentos humanos a Deus. Isso é
similar ao antropomorfismo, que atribui formas humanas ao Ser
divino, como as mãos de Deus, os olhos do Senhor, entretanto,
tal recurso fala da aplicação de sentimentos humanos a Deus.
Mesmo Calvino viu o arrependimento divino desse modo e
afirmou:
“O mesmo significado pelas outras formas de expressão pela
qual Deus é descrito humanamente a nós. Porque nossa
insuficiência não pode alcançar a excelsitude dele, qualquer
descrição que nós recebemos dele deve ser abaixada a nossa
capacidade para ser inteligível[10]”

Calvino rejeitava abertamente a idéia de que Deus tem


sentimentos e emoções e o apresentava como “incapaz de todo
sentimento de perturbação” e, “portanto, quando nós ouvimos
que aquele Deus está Irado, nós não devemos imaginar que há
alguma emoção nele, mas deve-se considerar o modo de fala
acomodado a nosso modo de sentir[11]”. É por isso que em seu
comentário de Gênesis ele afirme:

“O arrependimento que aqui é atribuído a Deus, não pertencem


a ele, mas tem é referido aqui para a nossa compreensão dele.
Como não podemos compreender como ele é, é necessário
que, para o nosso bem Ele seja em certo sentido, transformar-
se. Que o arrependimento não pode ter lugar em Deus,
facilmente surge a partir da consideração de que nada
acontece, é por Ele inesperado ou imprevisto. O mesmo
raciocínio e observação, aplica-se o que se segue, que Deus foi
afetada com pesar. Certamente Deus não depressivo ou triste,
mas permanece para sempre como ele em seu repouso celestial
e feliz: ainda, porque não poderiam ser conhecidos quão
grande é o ódio de Deus e ódio do pecado, pois o Espírito
acomoda-se à nossa capacidade[12]”

Entretanto, Deus fez questão de usar a linguagem como modo


de comunicação de seus planos e usou homens para
transcrevê-lo fielmente. Ele também usou Seu Santo Espírito
para superintender os seres humanos em pleno uso de suas
faculdades mentais para transcrever do melhor modo o que
intencionou transmitir. Por isso tendo a crer que essa palavra é
a melhor palavra hebraica para descrever o que acontece nesse
texto, pois foi assim inspirada por Deus debaixo da supervisão
do Espírito Santo.

A idéia da adaptação da linguagem só seria possível se


conhecêssemos a linguagem divina e soubéssemos o que Ele
quis dizer em Sua linguagem, do contrário, é mera especulação.
Do ponto de vista da tradução, só sabemos que um texto é uma
paráfrase ou adaptação do original quando conhecemos o
original, quando não o conhecemos, entendemos que o texto
traduzido é a melhor representação do original. A não ser que
Calvino tenha acesso a excelsitude de Deus, não pode saber se
isso é de fato uma adaptação de linguagem. Na verdade,
entendo que a idéia do antropopatismo aqui é uma fuga sutil
de um tema complicado para aqueles que não vêem em Deus a
susceptibilidade à emoção.

Contudo, devemos nos lembrar que o fato de ter Deus se


arrependido não expressa uma ocasião de alteração de Sua
Personalidade, Plano ou Vontade, e isso pode ser demonstrado
pelo próprio livro de Gênesis e pelo próprio termo à luz do
todo das escrituras. Isso, de certa forma, é uma acomodação da
linguagem, mas prefiro entendê-la não nos moldes de Calvino,
mas em reconhecimento da falibilidade, falência e insuficiência
da linguagem.

Em primeiro lugar, nas escrituras já nos temos demonstrado até


aqui que Yahweh é um Deus poderoso e que faz o que quer
quando quer. A idéia de um Deus Plenamente soberano e
controlado, que faz tudo de acordo com um claro
planejamento, pois é organizado e supremamente inteligente e
sábio para arquitetar o universo do modo como o foi. No relato
da criação, também conhecemos um Deus que é poderoso e
doador, é capaz de criar e dar-se por sua criação. Na criação do
homem vemos um Deus que faz o homem em conformidade
com sua Imagem e Semelhança. A isso entendemos que tudo o
que o ser humano é, o é em dependência da existência de Deus.
Se sabemos e pensamos, é por que nosso Criador o é e faz em
proporções Eternas. Se amamos é por que Ele nos amou
primeiro. Toda nossa constituição imaterial reflete e depende
do nosso criador. Nossa capacidade de se relacionar provém do
nosso Criador, do mesmo modo que nossa capacidade de
sentir. Todavia, nós somos criaturas, o hoje o somos de modo
carnal, por isso não podemos supor que Ele sabe ou sente
como nós, mas que nossa capacidade de saber e sentir provém
do nosso Criador. No relato de Caim e Abel, conhecemos um
Deus interativo e ativo no relacionamento com Suas criaturas, e
é apresentado como um Deus paciente e misericordioso que
determina o juízo do modo como lhe apraz. Na descrição das
genealogias não o vemos ausente, mas participativo e
relacionável com sua criação (Enos, Enoque, Noé). No relato do
dilúvio, vemos um Deus que vê e intervém do modo que lhe
apraz. Por isso, não podemos isolar a sentença referente a seu
arrependimento do contexto do todo do livro de Gênesis. Um
fato importantíssimo que se deve considerar é que Deus já
fizera a promessa de libertação da raça humana no relato da
queda e que tal promessa não ficaria sem cumprimento:
Sabemos por fato que Deus é Fiel. Portanto, não podemos nem
supor que Deus faltou com planejamento, ou que teria sido
pego de surpresa pela maldade do homem. Isso significa que
apesar de Seu Controle Soberano não ter sido perdido, isso não
o isenta de sentir pesar por Sua Criação.

Em segundo lugar, temos que admitir que o texto de Gênesis 6


apresenta a Yahweh como um Deus participativo e interativo
com sua Criação. Note que o arrependimento divino não
acontece no texto como uma surpresa: Deus já havia sido
apresentado como desagradado (v.3) e que após seu
arrependimento Ele decretou o juízo que entendeu ser
necessário para a ocasião da humanidade (v.7). Há clara idéia de
participação e interatividade divina nesse texto e tal relato não
pode ser minimizado a partir do todo das escrituras. Os
defensores da impassividade de Deus verão nesse texto o vigo
do juízo e a manutenção da promessa de Gn.3.15 em Noé,
verdades que não ousamos negar. Os defensores da visão mais
aberta, dirão que nesse texto vemos a interação de Deus e sua
mudança de opinião ante a situação da humanidade, verdade
que não aceitamos por completo, mas não ousamos descartar
por completo. O fato é que entendo que o texto de Gênesis 6
demonstra ambas as idéias concomitantemente: Ainda que sua
promessa seria cumprida, que Seu propósito Redentor não se
tenha alterado, que Deus não se mostrou mal planejador Ele
muda de atitude em relação a humanidade. A expressão “O
meu Espírito não agirá para sempre no homem, pois este é
carnal” (v.3) é uma clara demonstração desse fato, e
provavelmente a primeira medida de Deus sobre a crescente
perversidade da humanidade.

Em terceiro lugar, devemos lembrar que o termo hebraico por


trás da tradução portuguesa para “arrependimento” é bem mais
abrangente do que o que entendemos com o termo em
português. O termo hebraico usado aqui é “nacham” e tem um
dos três significados básicos dependendo do contexto:

 Experimentar pesar ou sofrimento emocional: Esse sentido


é relativamente comum e eventualmente é demonstrado no
texto hebraico no passado: “Então, o povo  teve compaixão  de
Benjamim, porquanto o SENHOR tinha feito brecha nas tribos de
Israel” (Jz.21.15; cf. Jz.21.15; 1Sm.15.11,35; Jó.42.6; Jr.31.19).
 Consolar ou ser consolado: Esse uso é relativamente
freqüente no AT e claramente encontrado na literatura Mosaica:
“E Isaque trouxe-a para a tenda de sua mãe Sara, e tomou a
Rebeca, e foi-lhe por mulher, e amou-a. Assim Isaque
foi  consolado  depois da morte de sua mãe” (Gn.24.67; cf.  27.42;
37.35; 50.21;  38:12;  2Sm.13.39; 77.3; Sl.1.24;
Is.1.24; Jr.31.15; Ez.14.22; 31.16; 32.31)
 Arrepender-se ou mudar de mente: Em alguns textos não
teologicamente discutidos a idéia de mudança de mente é
encontrado, mas com alguma dificuldade: “Tendo Faraó deixado
ir o povo, Deus não o levou pelo caminho da terra dos filisteus,
posto que mais perto, pois disse: Para que, porventura, o  povo
não se arrependa, vendo a guerra, e torne ao Egito”
(Ex.13.17; cf.Dt.32.36; )

É importante dizer que o sentido básico do termo, e certamente


mais freqüente no AT é o de “consolar”. Das 108x que é usado
no AT pelo menos em 66x a idéia está relacionada com o
consolo. Apesar de o termo ter conotações de arrependimento,
mesmo que aplicado a seres humanos, esse não é o termo
normalmente utilizado para isso. Normalmente o AT usa o
termo “shuwb”, que tem por idéia básica o voltar-se (Gn.3.19;
8.12; 18.14), para descrever a idéia do arrependimento como
mudança de comportamento e atitude (Gn.27.45; Ez.14.6).

Tendo observado isso, é verificável que o sentido de “consolo”


não é contextualmente aceitável em Gn.6 ao passo que a idéia
de arrependimento e pesar são as mais indicadas para o texto e
a primeira certamente tem sido favorecida largamente nas
versões modernas das escrituras, seja em inglês (ASV, KJV) ou
em português (ACF, ARA, ARC, NVI), entretanto, não tem sido a
opção unânime. Por exemplo, a NIV, versão inglesa da Nova
Versão Internacional, optou por assim verter o texto: “O Senhor
se  afligiu  por ter feito o homem na terra”. A NET Bible, por sua
vez, preferiu: “O Senhor se  lamentou  de ter feito o homem sobre
a terra”. Essas duas leituras além de serem lexicograficamente
possíveis, parecem contextualmente mais aceitáveis.
É bem provável que toda essa discussão tenha nascido na má
compreensão do termo hebraico e do termo latino visto na
Vulgata. De modo muito interessante, a Vulgata usou o termo
“paeniteo” que também carrega a idéia de “pesar” e
“arrependimento”[13]. Entretanto, nem o inglês nem o
português tem um termo que lhe seja equivalente e por isso,
sempre que passamos por esse texto precisamos investir na
explicação do termo. Considerando que o termo hebraico pode
ser entendido como uma expressão de caráter emocional, e que
o contexto é favorável a essa leitura, entendo que tanto a NET
Bible como a NIV são representações mais exatas para se
descrever o texto.

Aliás, é importante notar que Moisés também usa o termo


“’’atsab” traduzido por pesar em português. A idéia do termo é
claramente a demonstração de dor e sofrimento, que em Gn.6.6
descreve o coração (hb. leb) do próprio Deus. Sobre isso,
Sailhamer afirma:

“Ao tornar Deus o sujeito dessa do verbo no verso 6, o autor


nos demonstra que o pesar e o sofrimento sobre os pecados
dos seres humanos não era algo que apenas os homens
sentiam. O próprio Deus lamentou pelo pecado do homem (v.7)
[14]”

Derek Kidner sobre esse texto afirma:

“Esta é a maneira de falar do Velho Testamento, em que


emprega as expressões mais ousadas, contrabalanceadas em
outros lugares, se necessário, mas não enfraquecidas. A palavra
pesou tem afinidades com as palavras aflição e fadiga de 3.16,
17. Agora Deus sofre por causa do homem[15]”
Ernest Kevan quando fala sobre seu entendimento desse texto,
afirma:

“O Deus revelado pelas escrituras é capaz de sentir tristeza e de


ser entristecido. Ele tem reações reais para com a conduta
humana. Não obstante, é impossível conceber o Deus
onisciente a lamentar-se por algum falso movimento por ele
feito. O arrependimento de Deus não é uma alteração quanto
aos propósitos, e sim, uma mudança de atitude[16]”

Diante dessas considerações fica evidente que a Imutabilidade


do Propósito de Deus foi preservado na história do dilúvio sem
que isso excluísse a idéia de Interação de Deus com Sua Criação
por seu sofrimento emocional e pesar, e, isso é plenamente
verificável pelos termos hebraico utilizados no próprio texto.

3.         Conclusão

Portanto, diante da Plena Imutabilidade de Deus e de sua


Participação ativa na história do homem, entendemos que em
Gênesis 6, Moisés relata o sofrimento divino em relação a
maldade da humanidade. Isso, todavia, não fala sobre a
alteração divina de Seu Propósito, Vontade, Caráter ou Ser, mas
fala de sua Interação com Sua Criação: Deus lamentou pelo
desenvolvimento da maldade na Sua Criação e isso lhe pesou
no coração, ou seja, o desagradou.

D. Outras Questões
Outra questão que tem feito pessoas rejeitarem o relato bíblico
do dilúvio é sua relação com as águas. Entre os cristão também
encontramos certas dúvidas com relação ao evento descrito nas
escrituras em função da quantidade de água que vê-se nesse
relato. Nesse tópico tentaremos tratar desse assunto, sem a
pretensão de esgotar as perguntas feitas ao texto.

1.         De onde vieram as águas do dilúvio?

O texto de Gênesis oferece ao menos duas indicações de


origem da água: Fontes do Grande Abismo e as Janelas do Céu.
Certamente, vemos nessas duas expressões, analogias
compreensíveis para a mentalidade do autor e leitor original, de
modo que isso não significa literalmente que exista uma janela
do céu. Mas, diante da compreensão do Antigo Testamento,
como podemos entender essas expressões?

a. Fontes do Grande Abismo:

O texto de Gênesis diz: “No ano seiscentos da vida de Noé, aos


dezessete dias do segundo mês, nesse dia romperam-se todas
as fontes do grande abismo, e as comportas dos céus se
abriram” (Gn.7.11).  Keil & Delitzsch sustentam que as fontes do
grande abismo são reservatórios ocultos dentro da terra que se
irromperam e alagaram rios e inundaram oceanos, resultando
no dilúvio[22]. Clarke, na tentativa de explicar esse fato afirma:

“Parece que uma imensa quantidade de águas ocupava o centro


da Terra antediluviana, e como estes irromperam a superfície,
por ordem de Deus, o circumambient strata deveria afundar, a
fim de preencher o vazio ocasionado pela elevação das águas.
Este é provavelmente o que se entende por romper as fontes
do grande abismo. Estas águas, com o mar na superfície da
Terra, poderia ser considerada suficiente para submergir  todo o
globo[23]”.

Aqueles que defendem um dilúvio universal encontram nessa


expressão a possibilidade de que o dilúvio tenha afligido todo o
globo. De fato, tem-se comprovado que existe uma quantidade
abundante de água abaixo da superfície. Os cálculos hoje
variam entre 3x  a 10x a quantidade de água que existe acima
da superfície da terra hoje. Certamente, essa larga quantidade
de água seria suficiente para cobrir toda a terra e a ruptura das
fontes do grande abismo, em se tratando dessas águas, poderia
cobrir toda a terra.

A expressão “águas do grande abismo” foi usada no AT em


referência aos oceanos, observe: “Não és tu aquele que  secou o
mar, as águas do grande abismo? o que fez do fundo do mar um
caminho, para que por ele passassem os remidos?”
(Is.51.10; cf.  Am.7.4; Pv.8.28). Há clara equiparação entre as duas
idéias, ou seja, Isaías se refere às águas do mar como as águas
do grande abismo. Por outro lado, essa expressão também foi
usada para descrever as águas subterrâneas, observe: “As águas
o fizeram crescer, as fontes das profundezas da terra o exalçaram
e fizeram correr as torrentes no lugar em que estava plantado,
enviando ribeiros para todas as árvores do campo”
(Ez.31.4; cf.  Ez.31.15; Sl.36.6). É bem possível que pela dimensão
do evento descrito em Gênesis as fontes de grande abismo
sejam uma referências às duas idéias.

Aos que defendiam a idéia de que não existiria água suficiente


no planeta para submergir todo o globo agora encontram
alguma dificuldade em reagir a idéia de que no dilúvio águas
subterrâneas teriam sido fonte para o evento. Por outro lado, os
defensores do dilúvio universal ainda precisam provar que toda
a água foi usada.
b. Janelas dos Céus:

O Texto de Gênesis também afirma: “No ano seiscentos da vida


de Noé, aos dezessete dias do segundo mês, nesse dia
romperam-se todas as fontes do grande abismo, e as
comportas dos céus se abriram, e houve copiosa chuva sobre a
terra durante quarenta dias e quarenta noites” (Gn.7.11, 12).
Sobre isso, Barnes atesta: “Parece que o dilúvio foi produzido por
uma comoção gradual da natureza em grande escala. As nuvens
foram dissolvidas num incessante aguaceiro[24]”.

É bem provável que essa expressão seja um retorno a realidade


da Criação tal como apresentada por Moisés, observe: “Fez,
pois, Deus o firmamento e separação entre  as águas debaixo do
firmamento e as águas sobre o firmamento. E assim se fez”
(Gn.1.7). Segundo esse verso, havia água acima do firmamento
e certamente podemos entendê-la como uma referência a água
em forma de vapor. Sobre esse verso, já dissemos:

“Esse verso também nos diz que houve uma separação efetiva
das águas: aquelas que ficaram abaixo do firmamento fazem
referência aos mares e rios, enquanto aquelas que ficaram
acima do firmamento se referem ás nuvens que passavam a
povoar a atmosfera. É bem verdade que alguns entendem que
as águas que estavam acima do firmamento como o indício de
uma grande camada de vapor que poderia manter a terra em
melhores condições para a manutenção da vida e por isso, as
primeiras personasgens bíblicas vivessem por tanto tempo e a
quantidade de água envolvida no dilúvio[25]”

2.         Quanto tempo durou o dilúvio?

Vamos observar alguns dados oferecidos pelo texto:


1. Gn.7.4, 10: Segundo esse texto vemos que Noé e sua
família esperaram 7 dias pelo dilúvio;
2. Gn.7.12, 17: O texto descreve 40 dias e 40 noites de chuva
sobre a terra.
3. Gn.7.24: Durante 150 dias as águas prevaleceram sobre a
terra (cf.  8.3).
4. Gn.8.6: Descreve que as águas escoaram durante 40 dias.
5. Gn.8.10: Fala sobre mais sete dias de espera para as águas
baixarem.
6. Gn.8.12: Mais sete dias para as águas escorrerem
completamente.

Somado todas as informações do dilúvio, podemos perceber


que trata-se de 371 dias entre o primeiro dia de espera e
finalmente a saída da Arca. Com todo esse tempo, certamente
todos os seres humanos teriam sido exterminados.

3.         A Arca era suficientemente grande para abrigar todos os


animais?

Outra questão que tem levado pessoas a duvidar do relato


bíblico do dilúvio é seu tamanho: Era a arca de Noé
suficientemente grande para abrigar todas as espécies de
animais existentes? Era possível/necessário assim proceder? O
que o texto nos ensina sobre isso? Vamos ao texto:

a. O tamanho da Arca:

Sobre o tamanho da arca, Krell atesta : [26]

Dimensões Arca de Noé Equivalente Contemporâneo


Comprimento 138 metros 1½  Campo de Futebol Americano

Largura 23 metros 7 Vagas de Estacionamento

Altura 14 metros 3 andares de um prédio

Volume 44.436 m3 800 Vagões Ferroviários

Capacidade 14,000 toneladas MV Princesa do Oriente (1998)

Note que há espaço suficiente na Arca para abrigar muitos


animais, especialmente se considerarmos a possibilidade de que
Noé levasse consigo animais filhotes. A questão que nos resta
então é: Apesar de grande, a arca era suficientemente grande
para abrigar todos os animais? Para tentar responder a essa
pergunta, vamos considerar duas outras: Existem animais que
não seriam necessários na Arca?, e, Que animais o texto de
Gênesis diz que Noé levou?. Vamos à análise.

b. Animais não necessários na Arca:

Existem animais que não seriam necessários na Arca? Noé


deveria levar animais de todas as espécies? Para responder a
essa pergunta, John Withecomb e Henry Morris atestam que 25
mil espécies de peixes, 1700 turnicados, 600 tipos de
equinodermos, 197 mil moluscos, 10 mil celenterados, 4000
tipos de esponjas e 31 mil tipos de protozoários poderiam
sobreviver fora da Arca e por isso, não seriam necessários
dentro da arca[27]. Sobre o assunto, Arnold Mendez
complementa:

“Noé não teria que se preocupar com os mamíferos aquáticos


como os golfinhos, baleias, botos, leões-marinhos e morsas. Há
também muitos répteis aquáticos que poderiam sobreviver fora
da arca. Estes incluem muitos tipos de cobras, jacarés,
crocodilos e tartarugas marinhas. Há quase um milhão de
espécies de artrópodes que sobreviveriam ao dilúvio. Animais
como as seguintes: camarões, caranguejos, lagostas e muitos
outros crustáceos. Todos os insetos poderiam sobreviver fora
da arca. Mais de 35.000 espécies de vermes nematóides
também sobreviveriam ao dilúvio. Na realidade, apenas uma
pequena percentagem dos animais teria de ser colocado a
bordo da arca[28]”.

Ou seja, apesar de ser grande o número de animais existentes,


nem todos eram necessários na Arca, e por isso, Deus deixou
uma ordem específica para Noé pegar apenas alguns dos
animais.

c. Animais necessários na Arca:

Que animais o texto de Gênesis diz que Noé levou? O texto de


Gênesis assim nos informa: “De tudo o que vive, de  toda carne,
dois de cada espécie, macho e fêmea, farás entrar na arca, para
os conservares vivos contigo. Das  aves  segundo as suas espécies,
do  gado  segundo as suas espécies, de todo  réptil  da terra
segundo as suas espécies, dois de cada espécie virão a ti, para os
conservares em vida” (6.19-20); “De todo  animal limpo  levarás
contigo sete pares: o macho e sua fêmea; mas dos  animais
imundos, um par: o macho e sua fêmea. Também das  aves dos
céus, sete pares: macho e fêmea; para se conservar a semente
sobre a face da terra” (7.2-3); “De  toda  carne, em que
havia  fôlego de vida, entraram de dois em dois para Noé na
arca” (7.15). Todas essas expressões destacadas nos versos
acima podem nos ajudar a entender que tipos de animais Noé
levou à arca, observe:

 Toda carne: O primeiro termo que se nos chama a atenção


é basar  (carne). Esse termo é usado cerca de 273x em todo o
AT, e só Moisés o usa 153x no Pentateuco, o que sugere que tal
verbete tem grande parte na pena mosaica. Entretanto, tal
termo tem diversas conotações interessantes:
1. Pessoas: Em Gênesis 2 o termo é usado para descrever
uma pessoa por completo: “E disse o homem: Esta, afinal, é osso
dos meus ossos e  carne da minha carne; chamar-se-á varoa,
porquanto do varão foi tomada” (Gn.2.23). Essa relação entre
“ossos” (hb. ‘etsem) e “carne” é usada outra vezes para descrever
uma pessoa (Gn.29.14; 37.27; cf.  Ex.12.46; Jz.9.2; 2Sm.19.12; 13).
2. Corpo físico: Eventualmente o termo é usado em descrição
do corpo do ser humano, observe: “dentro ainda de três dias,
Faraó levantará a tua cabeça sobre ti e te pendurará num
madeiro, e as aves comerão  a tua carne  de sobre ti” (Gn.40.19).
Nesse caso a referência é mais específica que a anterior,
embora o mesmo termo seja usado (cf.  Nm.8.7’2Re.4.34; Ec.2.3).
3. Parte do corpo: É interessante notar que eventualmente o
mesmo termo é usado para descrever uma parte do corpo,
como no caso da Criação da mulher: “Então, o SENHOR Deus fez
cair pesado sono sobre o homem, e este adormeceu; tomou uma
das suas costelas e fechou o lugar  com carne” (Gn.2.21). Nesse
caso não se trata do todo, mas por metonímia, apenas parte do
todo. Esse uso acontece outras vezes em Gênesis,
especialmente quando fala da circuncisão (Gn.17.11, 13, 14, 23-
24).
4. Seres vivos em geral: O termo pode ser usado de modo
mais abrangente, incluindo homens e animais vivos. Um texto
interessante para se considerar esse fato é Gn.6.12: “Viu Deus a
terra, e eis que estava corrompida; porque  todo ser vivente  havia
corrompido o seu caminho na terra”. A expressão aqui é “kol
basar” e foi entendida como todo ser vivente na ARA. Essa
observação é interessante, pois explica de modo mais
adequado por que os animais deveriam sofrer com o dilúvio,
pois eles também havia se corrompido e também manifestavam
certa falência e culpabilidade moral. Essa idéia não é ausente no
relato do dilúvio, observe: “Porque estou para derramar águas
em dilúvio sobre a terra para consumir  toda carne  em que há
fôlego de vida debaixo dos céus; tudo o que há na terra
perecerá”  (Gn.6.17; cf.  6.13, 19; 7.15-16, 21; 8.17; 9.11, 15-17). A
idéia de culpa moral nos animais também não é ausente no AT
(cf.  Gn.9.5; Ex.21.28-29; Jn.3.7-8).
5. Corpo dos animais: Um pouco mais raramente o termo é
usado para descrever parte dos animais, ou sua carne, como no
caso das vacas gordas e magras de carne (Gn.41.2-4, 18, 19).
6. Conclusão: Ou seja, o termo apesar de extremamente
abrangente sofre de falta de especificidade. Portanto, ainda que
todos os animais possam estar incluídos, do mesmo modo que
todos os seres humanos, não é possível definir a partir da
análise desse termo que tipo de animais estão incluídos na
busca de Noé. Assim, muitos entendem a universalidade do
dilúvio a partir da abrangência desse termo no texto do dilúvio.
Entretanto, essas não são as únicas declarações sobre os
animais no relato de Gênesis.

 Animais: Outro termo interessante usado por Moisés para


falar sobre os animais é bem mais específico em seu escopo:
“De todo  animal  [behemah]  limpo levarás contigo sete pares: o
macho e sua fêmea; mas dos  animais  [behemah] imundos, um
par: o macho e sua fêmea” (Gn.7.2). Note que o termo para
animal é o termo hebraico “behemah” e é usado 91x no
Pentateuco e seu uso certamente nos ajudará a compreender
melhor o seu significado.
1. Domésticos: Na Criação o termo usado para descrever
animais no verso acima é contrastado com “répteis” (hb. remes)
e “animais selváticos” (hb.  chay) e definido pela ARA como
animais domésticos (Gn.1.24-25). A ARC, ACF optam pelo termo
gado para descrever animais em Gn.1.24. Em Gn.1.26 o termo
“behemah” é contrastado com peixes (hb  dagah), aves
(hb.  owph) e répteis (hb.  remes), mantendo o sentido mais
específico do termo, diferente do termo encontrado no relato
do dilúvio. Essa distinção acompanha todo o relato da Criação e
Queda (Gn.1.24-26; 2.20; 3.14). A próxima vez que o termo é
usado em Gênesis também percebeu essa mesma distinção,
observe: “Disse o SENHOR: Farei desaparecer da face da terra o
homem que criei, o homem e  o animal, os répteis  [remes]  e as
aves  [owph]dos céus; porque me arrependo de os haver feito”
(Gn.6.7). Ou seja, Noé deveria ser responsável por levar na Arca,
animais domésticos, ou seja, os que não são aves, répteis ou
animais selváticos (cf.  6.20).
2. Limpos e Imundos: É interessante que apesar de o termo já
ter sua especificidade, o texto nos diz que existem outras
restrições, pois a exigência divina determina certa quantidade
para os animais limpos e imundos: “De todo  animal
limpo  levarás contigo  sete pares: o macho e sua fêmea; mas
dos  animais imundos,  um par: o macho e sua fêmea” (Gn.7.2).
 Limpos: É interessante que à luz do próprio
Pentateuco podemos entender que tipo de animais devem ser
considerados limpos, observe: “São estes os animais que
comereis: o  boi, a ovelha, a cabra, o veado, a gazela, a corça, a
cabra montês, o antílope, a ovelha montês e o gamo.  Todo
animal que tem unhas fendidas, e o casco se divide em dois, e
rumina, entre os animais, isso comereis” (Dt.14.6). Nesse relato
vemos 10 espécies
 Imundos: O mesmo pode ser dito sobre os animais
imundos: “Porém estes não comereis, dos que somente ruminam
ou que têm a unha fendida:  o camelo, a lebre e o arganaz,
porque ruminam, mas não têm a unha fendida; imundos vos
serão. Nem o porco, porque tem unha fendida, mas não rumina;
imundo vos será. Destes não comereis a carne e não tocareis no
seu cadáver” (Dt.14.8). Nesse verso vemos apenas 4 espécies.
3. Aves: Como já demonstramos, Moisés faz distinção entre
os animais domésticos (behemah) e as aves (owph) e répteis
(remes), entretanto, tais animais também estavam presentes na
arca, observe: “De tudo o que vive, de toda carne, dois de cada
espécie, macho e fêmea, farás entrar na arca, para os
conservares vivos contigo. Das  aves  segundo as suas espécies, do
gado segundo as suas espécies, de  todo réptil  da terra segundo
as suas espécies, dois de cada espécie virão a ti, para os
conservares em vida” (Gn.6.19-20). No Pentateuco também
encontramos uma descrição mais detalhada do que se entende
por aves e podemos notar que Moisés especifica 25 espécies de
aves, 4 limpas (Lv.20.25; Dt.14.11; Nm.11.31-33) e 21 imundas
(Lv.11.13-19; Dt.14.12.18).
4. Selváticos: Apesar de a tradução ARA não deixar isso
explícito, é importante o fazer aqui. Como já vimos, os animais
domésticos foram contrastados no relato da criação dos
animais selváticos, mas tal contraste passa desapercebido no
relato do dilúvio, observe: “…eles, e todos
os  animais  [hb.  chay] segundo as suas espécies, todo
gado  [hb.  behemah]  segundo as suas espécies, todos os répteis
que rastejam sobre a terra segundo as suas espécies, todas as
aves segundo as suas espécies, todos os pássaros e tudo o que
tem asa” (Gn.7.14). O termo animais nesse verso é o termo
hebraico usado no relato da criação para descrever animais
selváticos (cf.  Gn.1.24, 25). Portanto essa categoria de animais
também fez parte da Arca de Noé.
5. Répteis:  Por outro lado, não há qualquer descrição de
répteis em todo o Pentateuco, exceto que sabemos pela íngua
hebraica que esse termo (remes) é usado em distinção com
grandes animais (Gn.1.21; cf.  148.7 e 10). Em Gn.1.21, vemos o
termo diferenciado de “tanniym”, que a ARA traduziu como
animais marinhos, embora também seja usado como descrição
de répteis de grande porte, observe: “Fala e dize: Assim diz o
SENHOR Deus: Eis-me contra ti, ó Faraó, rei do Egito,  crocodilo
enorme, que te deitas no meio dos seus rios e que dizes: O meu
rio é meu, e eu o fiz para mim mesmo” (Ez.29.3; cf.  Ez.32.2;
Ne.2.13; Jó.7.12; 30.29; Sl.44.19; 74.13). O termo remes  também
exclui as cobras, uma vez que é descrita pelo
termo tanniym  (Ex.7.9-10, 12; Sl.91.13), nachash (Gn.3.1,2, 4, 13;
14; 49.17; Ex.4.3; 7.15; Nm.21.7, 9; Dt.8.15)
e pethen (Dt.32.33; cf.  Jo.20.14, 16; Sl.58.4; 91.13; Is.11.8).
Portanto, é seguro dizer que Noé não colocou répteis de
grande porte e serpentes na Arca.
 Conclusão: Podemos perceber que Deus ordenou que Noé
levasse à Arca muitos animais, mas a julgar pelos termos
envolvidos nessa cena entendemos que não eram necessários
todos os animais. Note que serpentes não foram incluídas, do
mesmo modo que todos os animais aquáticos, insetos e outras
formas de vida. Mesmo espécies maiores de répteis não foram
levados para a Arca, o que sugere que a arca era
suficientemente grande para abrigar os animais que Deus se
propôs a salvaguardar do dilúvio. Considerando a apresentação
acima, entendemos que os animais levados à Arca são:
i.      Animais domésticos

1. Limpos: 10 espécies, 7 casais de cada, 140 animais


2. Imundos: 4 espécies, 1 casal de cada, 8 animais
3. ii.      Aves:
1. Limpas: 4 espécies,  7 casais, 56 pássaros
2. Imundos: 21 espécies, 1 casal, 42 pássaros
3. iii.      Animais selváticos: valor indefinido.
4. iv.      Répteis pequenos: valor indefinido

Tendo considerado isso, podemos não apenas garantir que o


espaço da Arca seria suficiente para esses animais como inferir
que o Dilúvio não necessitaria ser universal em função de que
nem todos os animais foram levados à arca. Considerando que
o propósito de se manter os animais na arca está diretamente
relacionado a preservação dessas espécies (Gn.7.3; 8.17), é
possível inferir que o dilúvio não exterminou todos os animais
de todas as regiões do mundo, pois não foram preservados
todos.

4.         A Arca era estável?

Sobre esse assunto, Jonathas Sarfati afirmou:

“A Arca foi construída para ser extremamente estável. Deus


falou a Noé para fazê-lo 300x50x30 côvados (Gênesis 6:15), o
que é de cerca de 140x23x13.5 metros ou 459x75x44 pés, ou
seja, seu volume foi de 43.500 m3 (metros cúbicos), ou 1,54
milhões de  pés  cúbicos. Este é suficiente para evitar um
naufrágio e garantir um bom passeio (…) Além disso, os
arquitetos navais coreanos confirmaram que uma barcaça com
as dimensões da Arca teria estabilidade ideal. Eles concluíram
que, se a madeira foi de  apenas 30 cm de espessura, poderia
ter navegado as condições de mar com ondas superiores a 30
m [29]. Compare isso com um tsunami (‘onda’), que
normalmente é apenas cerca de 10 m de altura. Note também
que existe um perigo ainda menor de tsunamis, porque eles são
perigosos só perto da costa, no mar, eles são quase
imperceptíveis[30] ”
Maldade do Homem: A causa do dilúvio
Publicado porMarcelo Berti15 dezembro , 2010Publicado emGênesisTags:Comentário em
Gênesis, Gênesis

 
 

 
 

 
 

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“Chegamos agora a uma parte profundamente importante e


fortemente acentuada deste livro. Enoque tinha desaparecido
de cena. A sua carreira, como estrangeiro na terra, tinha
terminado na transladação para o céu. Ele fora levado antes que
a maldade humana tivesse atingido o seu máximo, e, portanto,
antes do julgamento divino ter sido desencadeado[1]”

O desenvolvimento da humanidade diante dos nossos olhos


não tem sido sem problemas: o aumento da desgraça, seja na
natureza ou na humanidade, demonstra que a vida distante de
Deus não pode produzir Vida com Deus, ainda que possa ser
cercada de avanços tecnológicos, científicos, educacionais,
artísticos etc. A narrativa da descendência de Caim deixou isso
evidente, do mesmo modo que demonstrou que os
descendentes de Sete não foram grandes homens de negócio,
ou de referência na história da humanidade: o legado que
deixaram foi o da santidade, vida com Deus e esperança em
Deus. Esse legado não foi um grande legado para a
humanidade, do ponto de vista da humanidade, mas
certamente foi a razão pela qual esse mundo não fora destruído
antes.

Por outro lado, que terrível mal poderia acometer a


humanidade se os descendentes de Sete se misturassem com
os de Caim? O que aconteceria se os filhos de Deus se
juntassem com as filhas dos homens? O que aconteceria se
aqueles que prezavam por Deus e o adoravam passassem a se
envolver com as coisas do mundo? E se seus casamentos
passassem a demonstrar que tipo de preferência eles tinham:
apreço ao prazer pessoal em detrimento de uma vida centrada
em Deus? Bom, em Gênesis 6 vemos que em função desse tipo
de postura, o desenvolvimento da maldade da humanidade se
desenvolveu a tal ponto que Deus resolveu dar cabo da
humanidade. Essa história é um claro lembrete de quem Deus é
e o que espera de seus filhos. Vamos ao texto.

A.     Desgraça do homem:

O que temos percebido na narrativa de Gênesis é que o


desenvolvimento da humanidade é seguido do crescimento e
expansão da maldade do homem. Em Adão vimos a mentira, a
terceirização da culpa, mas em Caim vemos o desgosto (inveja),
a ira, o assassinato, a indiferença e o egoísmo. Entre seus
descendentes ainda vemos a poligamia, o assassinato por
retribuição desnecessária e a soberba e o auto-louvor por ser
assim. Por isso, não é de surpreender o relato de Moisés na
seqüência da história: a medida que o homem se multiplica a
maldade cresce com ele. Esse aprendizado logo foi inserido na
cultura e mentalidade judaica: “Quando os perversos se
multiplicam, multiplicam-se as transgressões” (Pv.29.16).
1.         Multiplicação:

O texto de Gênesis aqui é bem específico ao contar o


desenvolvimento da humanidade, e o modo como retrata esse
fato pode muito nos instruir sobre o modo como Deus permite
o avanço do homem: Embora o rumo primário da humanidade
caída foque a distância de Deus, Ele pacientemente trata com
suas criaturas. Contudo, quando a perversão se torna
insuportável, Ele graciosamente exerce Seu Justo Juízo, em
destruição e devastação.

…se foram multiplicando os homens: O primeiro destaque a ser


feito nessa sentença é o uso do termo hebraico adam, que já
fora usado por Moisés em descrição de Adão o primeiro
representante da humanidade. Nesse caso, o substantivo vem
com o artigo prefixado o que sugere o uso genérico do
termo: humanidade. As versões mais contemporâneas e em
alguns casos mais parafraseadas já adotam esse uso aqui
reforçando a extensão do crescimento numérico e imoral dos
seres humanos. Portanto, desde seu início se percebe o foco
abrangente que o texto apresenta os fatos narrados aqui: O
pecado havia tomado toda a humanidade, exceto um homem
identificado pouco a frente na narrativa – Noé (Gn.6.8).

…naquele tempo havia gigantes na terra: Embora nenhuma


referência específica de tempo tenha sido oferecida na narrativa
mosaica, temos por certo que trata-se de um tempo em que já
existiam gigantes na terra (hb. nephilim). O termo é de
significado incerto, muito embora quase todas as versões em
português sigam a Vulgata na sua preferência por Gigantes. A
LXX também traz um termo interessante aqui “gigantes”, usado
para descrever na literatura clássica, homens valentes e
poderosos que foram destruídos pelos deuses. Algumas versões
inglesas optam por apenas transliterar o termo para tentar
transmitir uma proximidade mais acurada do texto. Entretanto,
a transliteração nesse sentido em nada ajuda, pois não
conhecemos nenhum paralelo em inglês ou em nosso luso
idioma.

Toda a tradição judaica, e posteriormente a cristã, entendeu a


expressão como a descrição de homens poderosos e valentes.
Aliás, o texto denota exatamente isso: “estes foram valentes,
varões de renome, na antiguidade”. Seja o termo uma referência
ao tamanho físico ou da valentia deles, pouco importa, o fato é
que tais homens já existiam antes da mistura racial entre os
descendentes de Sete e Caim. Sobre isso Derek Kidner atesta:
“Vale a pena observar que não se diz que os gigantes provieram
exclusivamente dessa origem. Se alguns surgiram desse modo (e
também depois), outros já existiam (naquele tempo)[2]”.
Sailhamer parece concordar com esse parecer quando diz: “O
sentido da frase  wegam ahare-ken aser não define
os  hannepilim como descendentes da união dos filhos de Deus e
as filhas do homens. Além disso os estavam na terra (…) naqueles
dias e (…) também depois do tempo da união dos filhos de Deus
e as filhas dos homens[3]”. Essa observação é importante na
definição de quem são os filhos de Deus, pois aqueles que
defendem que estes são seres angélicos defendem que a única
origem para os Gigantes seria a união entre tais seres e as
mulheres. Entretanto, o texto define que eles já estavam em
existência antes da suposta união entre os filhos de Deus e as
filhas dos homens, fragilizando o argumento em defesa de
seres angélico.

É importante notar que a origem da tradução para “gigantes”


em português provém de uma tardia e má compreensão
influência da LXX, preservada na Vulgata, adotada na KJV e
absorvida em diversas das versões em português. O termo
grego nada tem a ver com pessoas de alta estatura, mas se
refere a pessoas nascidas nessa terra, ou “earth-born”, como
prefere Adam Clarke[4]. A idéia é de pessoas terrenas, com
hábitos dessa terra. O termo latino já tem certa proximidade
com o usado pelas versões inglesas e portuguesas, entretanto,
o termo hebraico não se define assim, na verdade a idéia e de
pessoas caídas em sua moralidade e não gigantes. Esses
homens depravados já existiam na terra e a marca da sua
perversão se estendia por toda a terra.

2.         Sedução:

Outro aspecto que podemos notar no desenvolvimento da


humanidade é usa preferência pessoal pelo prazer. A descrição
encontrada para descrever a humanidade é muito semelhante
àquela encontrada para descrever a queda de Eva: ver, desejar,
tomar. Deve ser por isso que João, em sua primeira carta,
estabelece que as coisas que existem no mundo, que não
devem ter nossa atenção (amor) são: desejo da carne e dos
olhos e a soberba da vida (1Jo.2.16).

…vendo os filhos de Deus: A primeira descrição dos filhos de


Deus aqui inclui a visão, mas a questão não era o que estava
diante dos seus olhos, mas em que você coloca seus olhos.
Certamente as escrituras não estão defendendo que nessa
época apenas belas mulheres existissem, mas que os olhos dos
filhos de Deus estavam focados nelas. Deve ser por isso que as
escrituras constantemente nos ensinam a cuidar dos nossos
olhos (Pv.3.21; 4.21; 16.30; 2Pe.2.12-15), pois são eles a lâmpada
do corpo, e portanto, se forem bons os olhos, todo o corpo o
será (Mt.6.22). Entretanto, se a luz do corpo se tornar em trevas,
em densas trevas estarão (Mt.6.23).

O início do relato do dilúvio nos dá a impressão de que a


humanidade não estava apenas destituída de uma visão
saudável da vida com Deus, mas seus olhos estavam fitos no
prazer pessoal. A preferência pelo eu, a marca registrada do
pecado, havia se alastrado por todos os lados e havia atingido
todos os seres humanos, até mesmo aqueles que professavam
sua fé em Yahweh.

É importante lembrar o leitor que a expressão “filhos de Deus”


aqui não é uma referência a seres angélicos, mas uma referência
aos descendentes de Sete (para mais informações
veja:  Questões sobre o Dilúvio). Alguns comentaristas vêem
nessa expressão uma referência aos seres angélicos em função
do uso da mesma expressão (hb.  bünê-hä|´élöhîm)  no livro de
Jó (Jó.1.6; 2.1; 38.7) e em outros lugares no VT (Sl.89.6; Dn.3.25)
como uma referência a eles. Entretanto, todas as vezes que o
termo é usado ele descreve “anjos” como seres espirituais a
serviço de Deus e não como seres espirituais a serviço de
paixões carnais. Parece muito improvável que Moisés usaria
uma expressão tão nobre para descrever “demônios”, fato que
não aconteceu em todo VT. Outro detalhe que merece nossa
atenção é que Moisés usa outro termo para se referir a seres
angélicos no Pentateuco, “ma’alk” usado 34x para descrever
seres angélicos. Em nenhuma ocasião ele usou a expressão de
Gn.6 para se referir a seres angélicos. Isso certamente
demonstra que é muito improvável que Moisés tenha feito um
uso diferenciado aqui.

Mais importante ainda é que Moisés usa uma expressão similar


a encontrada em Gn.6.2 para descrever pessoas: “Filhos sois do
SENHOR, vosso Deus” (Dt.14.1; cf.  Dt.32.5). Nessa expressão
“filhos do Senhor” (hb. banim YHWH) é uma clara descrição de
seres humanos, e nenhuma razão há para se dizer que se trata
de seres angelicais. Diversas vezes no AT a nomenclatura de
“filho” de Deus faz referência ao povo de Deus (Sl 73.15; Is 43.6;
Os 1.10, 22.1). Todas essas designações demonstram que a
terminologia exige que o modo mais natural de ser entendido o
texto é em referência a seres humanos.

Outro detalhe importante é que quando Moisés descreveu a


vida de Enos, ele usou a seguinte expressão: “daí se começou a
invocar o nome do SENHOR” (Gn.4.26). Adam Clarke sobre isso
afirma que “os homens começaram a chamar-se pelo nome do
Senhor, essas palavras demonstram que no tempo de Enos os
verdadeiros seguidores de Deus começaram a distinguir-se, e
serem distinguido por outros, pela denominação de filhos de
Deus[5]”. É bem verdade que tal expressão fala em primeiro
lugar sobre a adoração do povo de Deus (Gn.12.8, 13.4; 16.13;
21.33; 26.25), mas também denota uma identidade pessoal de
pertencimento a Yahweh. Segue-se que na descendência de
Sete houve a manutenção da verdadeira adoração a Yahweh
como Deus Salvador, e que tal identidade religiosa foi
transmitida de geração em geração e grandes homens de Deus
fizeram história nessa descendência (Enos, Enoque, Noé).

A tragédia desse texto, todavia, é a demonstração de que


mesmo aqueles que invocavam o nome de Yahweh, seus
verdadeiros adoradores, estavam se corrompendo e buscando
uma vida centrada em seus próprios prazeres. A idéia aqui não
é tanto de perversidade sexual, mas de jugo desigual: Os filhos
de Deus estavam se casando com mulheres que não eram
seguidoras de Yahweh. Ou seja, mesmo entre os verdadeiros
adoradores, Yahweh passou a ser ignorado e a busca pelo
prazer pessoal exaltada. Essa é a grande tragédia do pecado de
Gênesis 6: ninguém na humanidade havia restado como
representante da verdadeira adoração a Yahweh, exceto Noé,
homem justo e íntegro.

…filhas dos homens eram formosas: As filhas dos homens aqui é


uma referência a descendência de Caim, tratam-se de mulheres
que não eram marcadas por uma vida piedosa diante de
Yahweh: São mulheres que viviam segundo os padrões da
humanidade, por isso “filhas dos homens”.

…tomaram para si: É interessante Moisés usar essa expressão,


pois tal expressão é usada para descrever relacionamentos
matrimoniais e não perversões sexuais, observe: “Abrão e Naor
tomaram para si mulheres; a de Abrão chamava-se Sarai, a de
Naor, Milca, filha de Harã, que foi pai de Milca e de Iscá”
(cf.  Gn.4.19;  Jz.21.18; Rt.1.4). A NIV já assumiu o uso do termo e
traduziu assim o verso: “e os filhos de Deus viram que as filhas
dos homens eram belas e então se casaram com qualquer quer
uma que escolhessem”. Essa idéia é totalmente avessa a uma
suposta ação demoníaca: Por que razão seres angelicais
deixariam a presença de Deus para se casar? Por que
valorizariam a oficialização de seus relacionamentos? Não faz o
menor sentido encontrar nessa declaração a ação de seres
angélicos, aliás, é contraditório ao testemunho das escrituras
que afirma que anjos não sem casam nem se dão em
casamento (Mc.12.25; cf.  Mt.22.30; Lc.20.25). Além disso, se
anjos foram responsáveis por tais acusações, por que razão
ficaram impunes ante ao juízo de Deus, que destruiu todos os
seres viventes, animais e homens, além de afirmar que tal juízo
também era para a terra (Gn.6.13)?

3.         Conquista:

Outra característica que acompanhava os seres humanos


naquela ocasião era sua disposição para a conquista. É fato que
tal disposição não parece tão clara, mas o modo como Moisés
apresenta a humanidade nos dias de Noé nos faz pensar que o
seu foco não era muito distinto daquele encontrado na
humanidade do período da Torre de Babel: a idéia era ter o
nome célebre. O texto mesmo dá a entender que a reputação
de alguns desses homens era de homens valentes, pois eram
varões de renome.

…também depois: Já notamos que essa sentença é a garantia da


demonstração que tais Nephilins já existiam antes do encontro
entre os filhos de Deus e as filhas dos homens, e também
depois disso existiram. A idéia aqui é que tal união não
preservou ou restaurou a verdadeira adoração a Yahweh, antes,
manteve a depravação da humanidade. Ou seja, a linhagem que
havia se dedicado no passado a andar com Deus e a invocar
Yahweh já não mais prezava por sua identidade de filhos de
Deus, nem mesmo para o culto prestado a Ele: agora até
mesmo seus filhos eram seres humanos depravados.

…filhos de Deus possuíram: A expressão aqui é um pouco mais


enfática que aquela encontrada no versículo 2: “tomaram para
si”. Enquanto a primeira expressão fala de uma união
matrimonial essa fala sobre relacionamento sexual. Em
hebraico, Moisés usa o termo “bow’” que tem por sentido mais
simples “entrar” como é visto nas mais antigas versões em
português, inclusive nesse verso (ACF, ARC), mas é usado aqui
como um eufemismo para o relacionamento sexual.

…valentes: O termo hebraico “gibbowr” é usado aqui e em mais


3 lugares no Pentateuco (Gn.10.8, 9) e todos tem a conotação
de homens poderosos, exceto Dt.10.17: “Pois o SENHOR, vosso
Deus, é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores, o Deus
grande,  poderoso  e temível, que não faz acepção de pessoas,
nem aceita suborno”.

…varões de renome: Eles eram homens famosos, ou melhor,


infames, pois para alguns homens obter um nome no mundo,
não por sua bondade, mas por sua grandeza, e às vezes por sua
grande maldade, é o mais importante. Sua sede é a conquista, a
superioridade, não importando o modo como se conquista o
que se busca. Além de depravados esses homens eram
reconhecidos por suas conquistas, seja na caça, nos múltiplos
casamentos ou outras façanhas de baixa moral: Esses eram
homens lembrados por suas conquistas, e por elas foram
mortos pelo Senhor.

B.     A Interação de Yahweh:

Aquela criatura que havia sido a coroação de toda a criação,


feito apenas pouco menor que os seres angélicos, coroados de
glória e honra pelo próprio Yahweh, a quem o próprio Deus
havia concedido o privilégio de o representar ante toda a
criação (Sl.8.4-6), agora estava distante de seu Criador,
depravado em suas vontades e focado na maldade. A perversão
havia atingido até mesmo aqueles que haviam andado no
passado com Deus: agora eles viviam em busca de fama e
reconhecimento, casando-se com as mais belas das mulheres
apenas pela busca do prazer e demonstravam por fato que sua
vontade era totalmente má. Entretanto, o Criador de toda a
Terra não está ausente, nem dormindo para que não veja o que
acontece. Na verdade, Ele vê, sofre e intervém. Esse é o relato
de Gênesis 6 no que se diz respeito a Yahweh: Ele não é um
Deus ausente, Ele é um Deus que Interage.

1.         O Decreto de Yahweh:

O primeiro modo pelo qual vemos Yahweh interagir com a


humanidade é a imposição de seu Decreto. Nesse texto vemos
não apenas um Deus que sabe ou conhece a situação da
humanidade; Yahweh é apresentado como Senhor Soberano
sobre a terra, que exerce seu julgamento.
a. Abstenção Divina: A primeira manifestação do decreto divino
é expressa pela manifestação de seu descontentamento com a
humanidade. Suas palavras são fortes e claras: “Então, disse o
SENHOR: O meu Espírito não agirá para sempre no
homem”. Mas, que quis dizer o Senhor com tal expressão?

Não agirá meu espírito: A primeira pergunta que temos que


responder refere-se ao sentido do verbo em português “agir”:
Em que sentido o Espírito de Deus não “agirá” mais no homem?
O termo hebraico “duwn” pode significar “contender” ou até
mesmo “permanecer”, sentido usado pela LXX (Gr. katamenö),
embora normalmente seja usada com o sentido de “exercer
julgamento”. Diferentes versões apresentam diferentes
interpretações para essa expressão, por exemplo, a New
Jerusalém Bible  (NJB) opta por entender o termo com o sentido
da responsabilidade divina sobre o homem: “Meu espírito não
pode ser responsável por tempo indeterminado pela
humanidade”. Esse sentido é visto na Bíblia na Linguagem de
Hoje, cujo texto reflete a mesma idéia, embora prefira outros
termos: “Não vou proteger o homem por muito tempo”. Já
a Complete Jewish Bible prefere a idéia da permanência do
Espírito de Deus eternamente no homem, idéia apoiada por
diversas versões: “Meu espírito não viverá na humanidade para
sempre”. A preferência da ARA pelo verbo “agir” é uma
adaptação do sentido comumente encontrado nas versões
portuguesas, “contender” que dá a idéia de interação divina,
evitando a idéia de permanência do Espírito de Deus no
homem.

Todas essas versões estão na verdade buscando um modo de


verter o termo hebraico que normalmente está ligado ao juízo
ou julgamento. Provavelmente Keil & Delitzsch estejam corretos
quando traduzem o termo com o sentido de autoridade que o
termo parece impor ao texto: “Meu Espírito não mais exercerá
domínio no homem para sempre[6]”. Com isso, a idéia não é que
Deus deixaria de permanecer no homem, fato que, de acordo
com o Novo Testamento seria impossível nessa ocasião, mas
que Deus deixaria de exercer sua influência pessoal na
humanidade. Ou seja, Deus deixaria de estar, ou até mesmo
permanecer, entre os seres humanos.

Sendo assim, a humanidade fora largada à sua própria conduta,


pois Deus julgou necessário se fazer ausente dessa humanidade
que faziam de conta que Ele não existia. Em outras palavras,
vemos Deus retribuindo ao homem sua apatia e
desconsideração: Deus age, interage e responde ao homem à
altura de suas ações. Aconteceu na sociedade de Noé, o que
Paulo também atestou em outras palavras sobre a sua: “Deus
entregou os homens tais homens à imundícia (…) paixões
infames (…) e a uma disposição mental reprovável” (Rm.1.24, 26,
28).

Adam Clarke parece ter visto esse mesmo sentido no termo, e


sobre o texto afirmou:

“É somente pela influência do Espírito de Deus que a mente


carnal pode ser subjugada e destruída, mas aqueles que
voluntariamente resistem e entristecem o Espírito devem ser
finalmente deixados à dureza e a cegueira de seus corações[7]”

Lutero parece ter encontrado sentido similar nessa passagem:

“Eu interpreto as palavras simplesmente para dizer, que o


Senhor, como se tivesse cansado da teimosia obstinada do
mundo, denuncia a vingança como o presente, que até então
havia sido adiada. Quando o Senhor suspende a punição, Ele,
em certo sentido, se contende com os homens, especialmente
através de ameaças ou de exemplos de castigo suave e
convida-os ao arrependimento. Entretanto, ele já o tinha feito
há alguns séculos com o mundo, que, no entanto, estava
perenemente se agravando. E agora, como se estivesse exausto,
Ele declara que ele seu espírito não contedenderá com o
homem mais”

Em outras palavras, percebemos que a primeira manifestação


divina é oferecer ao homem o que ele parece buscar: Liberdade
para realizar o que bem intentar. Tal liberdade oferecida pela
abstenção da manifestação divina naquela sociedade fez com
que a libertinagem crescesse irremediavelmente. A maldade se
espalha, a humanidade se corrompe e tal sociedade merece
receber de Deus seu Juízo. A abstenção divina de governo
sobre o homem acresce neste o desejo da livre agência, e suas
realizações carnais parecem agora fatais.

…para sempre no homem: A partir desse ponto aprendemos


que a ação divina na humanidade não é constante, mas que
Deus pode manifestar-se em sua abstenção. Essa decisão divina
está em conformidade com seu caráter, que não tolera o erro e
o pecado, mas que se permite oferecer ao pecador tempo antes
de proferir seu juízo eliminatório, pois como Deus amoroso que
é, sempre oferece oportunidade para arrependimento e perdão,
como vemos nessa história.

b. Misericórdia: A segunda manifestação do decreto divino é


vista em sua misericórdia, como lemos: “O meu Espírito não
agirá para sempre no homem,  pois este é carnal; e os seus dias
serão cento e vinte anos”.

…pois este é carnal: A razão da abstenção divina na atuação


entre os homens é que os tais são carnais. O sentido aqui
parece supor tanto a mortalidade dos homens, como a NET e a
NIV parecem ressaltar, como seu caráter. Essa conclusão parece
clara quando entendemos o contraste entre o Espírito de Deus
e a carnalidade do homem: É um claro paralelo entre eternidade
divina e efemeridade humana, bem com da santidade de Deus e
sacanagem do homem.

…os seus dias serão cento e vinte: Essa imposição divina não


trata-se da estimativa de vida dos seres humanos, mas do
tempo de manifestação de sua ira, como Pedro nos instrui: “os
quais, noutro tempo, foram desobedientes  quando a
longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noé, enquanto se
preparava a arca” (1Pe.3.20). Ao que esse texto indica, Deus
além de se abster de convencer o homem de suas maldades,
ofereceu tempo para sua ação disciplinadora. Ele poderia tê-los
dizimado instantaneamente, mas optou por sua longanimidade
oferecer ao homem oportunidade de arrependimento. Esse
exercício da paciência de Deus testemunha sua paciência e
longanimidade para com o homem, que embora mereça
receber sua ira recebe ainda tempo para seu arrependimento.

c. Juízo: A terceira manifestação do Decreto Divino encontra-se


na sua firme decisão de  exercer juízo àquela geração pecadora.
A decisão de Deus é clara: “Farei desaparecer da face da terra o
homem que criei, o homem e o animal, os répteis e as aves dos
céus” (Gn.6.7)

Farei desaparecer: Até aqui vemos as escrituras apresentarem a


morte do homem como natural ao curso de sua vida, com
algumas exceções pelo caminho, como Abel, assassinado por
seu irmão, e alguns dos possíveis ataques de Lameque.
Contudo, a designação divina aqui se propõe a dizimar a
humanidade, como nos lembra Albert Barnes: “Agora, uma
geral e violenta destruição alfigirá toda a humanidade como um
monumento da divina ira contra o pecado para todas as
gerações futuras da única família salva[8]”. Para tentar descrever
o desprazer de Deus com o homem, John Gill oferece a
seguinte ilustração:

“Apesar de serem eles minhas criaturas, fruto do trabalho de


minhas mãos, Eu os fiz do pó da terra e os fiz senhores sobre
toda terra; mas agora Eu decidi demonstrar minha
desaprovação por sua perversidade, e pela honra da minha
justiça vou destruí-lo da face da terra. Como um oleiro que
pega um vaso que desgosta, um que ele mesmo tenha feito, e o
quebra em pedaços, eu farei desaparecer o homem da terra[9]”

Explicando o mesmo texto, Mathew Henry utiliza duas figuras


para tentar expressar o sentido auferido pelo texto: (1) Como
pó ou sujeira é varrida e jogada no monturo o ser humano será
desaparecer da terra; (2) Como uma sentença de um livro
apagado por seu autor, o ser humano terá sua existência
apagada na terra, por seu próprio autor[10].

..homem e animal: O pecado dos seres humanos tem


conseqüências. Como já vimos, o pecado de Adão foi suficiente
para amaldiçoar toda a terra, e agora, o pecado do homem
trouxe juízo para toda a criação, afinal, a criação sofre (geme) na
expectativa de sua libertação (Rm.8.22). Mas, qual a razão de
um julgamento tão abrangente? João Calvino nos instrui:

“A terra era como uma casa rica, bem favorecida com cada tipo
de disposição em abundância e variedade. Agora, assim que o
homem contaminou a própria terra, com seus crimes, e tem
vilmente corrompido toda a riqueza com que foi suprido, o
Senhor determinou que o monumento de sua punição deveria
ser colocado lá: como se um juiz, a punir um mais perverso e
abominável crime, deve, em prol da maior infâmia, define que
sua casa deve ser destruída desde a fundação. E tudo isso tende
a inspirar-nos com um temor do pecado, pois podemos
facilmente inferir quão grande é a sua atrocidade, quando a
punição é estendida até mesmo para a criação natural[11]”

2.         A visão de Yahweh:

O segundo modo que vemos Yahweh interagir com a


humanidade é sua constante atenção aos seres humanos. O
texto usa a figura de um Deus que vê. É certo que Deus não tem
olhos como nós, mas Aquele que criou os olhos estaria cego à
desgraça da humanidade? Certo que não. Sobre esse fato,
Barnes afirmou: “O curso do mundo primitivo foi uma grande
experiência a passar diante dos olhos de Deus e de todos os
observadores inteligentes, e manifestar a profunda depravação e
a contínua degeneração da raça caída[12]”.

Viu o Senhor: É interessante que esse texto comece a apresentar


a Deus do modo como se entende uma pessoa. A intenção aqui
não é defender a existência de olhos em Deus, como se este
tivesse corpo, mas que o Yahweh não é um Deus ausente de
sua Criação. Sua atenção está direcionada para sua Criação e de
modo especial para o homem. Tenho a impressão que essa
expressão usada aqui é uma forma de contrastar a ação de
Deus no relato da Criação: Enquanto na criação Deus viu que
era bom, aqui Deus viu que era mal o desígnio do coração do
homem. Calvino também entende que essa expressão sugere a
paciência de Deus, que antes de decretar qualquer ação contra
o homem, pôs-se a observar e considerar sobre a existência
humana. Em suas palavras: “Pela palavra viu, ele  [Moisés]  indica
a longa e contínua paciência, ou seja, que Deus não tinha
proclamado Seu juízo para destruir os homens, até bem depois
de ter observado e considerado por muito tempo, o seu caso, Ele
viu que eles haviam passado do ponto da recuperação[13]”.
…maldade do homem: A descrição da maldade o homem foi
dada por diversos autores, mas a visão de Adam Clarke merece
ser observada:

“Eles eram carnais (Gn.6.3), totalmente sensuais, os desejos da


mente confusa e perdida nos desejos da carne, sua alma já não
discernia o seu destino do alto, mas sempre cuidando de coisas
terrenas, de modo que eles se tornaram sensualizados,
brutalizados e tornaram-se carnais, encarnado, para não reter
Deus em seu conhecimento, eles viviam buscando a sua parte
nesta vida. Eles estavam em um estado de perversidade. Todos
estavam internamente corrompidos, e seu exterior em
impiedade, nem a ciência nem a prática da religião existia. A
Piedade se foi, e cada forma de sãs palavras havia desaparecido.
Essa maldade foi grande, foi multiplicada, foi continuamente
crescente, aumentando e multiplicando recorrentemente, de
modo que toda a terra estava corrompida diante de Deus, e se
encheu de violência, (Gn.6.11); libertinagem entre os oprimidos,
e crueldade e opressão entre as classes mais altas, sendo
apenas predominante[14]”.

…continuamente mal o seu coração: “Moisés já demonstrou a


causa do dilúvio em função dos atos externos de iniqüidade, mas
ele agora vai além e declara que os homens não eram apenas
perversos pela prática e pelo costume de viver mal, mas que a
maldade estava muito profundamente enraizadas em seus
corações, de modo que não deixou qualquer esperança de
arrependimento[15]”. Sobre essa expressão, John Gill apresenta
uma visão interessante:

O coração do homem é mau e perverso, desesperadamente


perverso, sim, a maldade em si mesmo, uma fonte de
iniqüidade, das quais a abundância do mal flui, pelo qual pode
ser conhecido, em certa medida o que está nele, demonstra
como ele é mau; mas Deus, que o vê, só conhece perfeitamente
toda a sua maldade e o mal que há nele: os pensamentos de
seu coração são maus, os maus pensamentos são formados no
coração, e se desenvolvem a partir dele, por isso é vão , tolo,
pecaminoso e abominável aos olhos de Deus, por quem eles
são vistos, conhecidos e percebidos de longe: a “imaginação”
de seus pensamentos é má, a formação deles, ele é mal
enquanto é formado, o substrato do pensamento, o início da
mesmo, o primeiro movimento a ele, sim, “cada um”  dos
pensamentos era mau, e “só” isso; não havia entre eles um
homem bom, e nem uma coisa boa em seus corações, nenhum
bom pensamento, nem uma boa imaginação do pensamento, e
por isso era “continuamente” [mal o seu coração] desde o seu
nascimento, a partir de cima sua juventude, em toda a sua vida,
e todos os dias de suas vidas, dia e noite, e dia após dia, sem
intervalo: isso representa a corrupção original da natureza
humana, e mostra que ela é universal, por isso não foi verdade
apenas dos homens do mundo antigo, mas de toda a
humanidade, o mesmo se diz dos homens depois do dilúvio,
como antes, e de todos os homens em geral, sem qualquer
exceção (Gn8.21)[16].

A idéia de que todos os aspectos do homem estavam


corrompidos encontram nessas expressões seu estado máximo.
Todos os aspectos da humanidade estavam, não apenas
fadados ao pecado, mas intrinsecamente aprofundado nele. O
problema não era apenas o que acontecia, ou o que faziam os
seres humanos, mas também os aspectos internos do homem,
seus pensamentos e desejos.

3.         O Sentimento de Yahweh

O terceiro modo como vemos Deus interagir com a


humanidade é sua expressão de resposta as ações humanas:
Deus não apenas vê e exerce juízo, mas Ele também se
entristece. Uma das características de Yahweh é que Ele sofre
com os maus caminhos de suas criaturas, e observe que o texto
fala da humanidade como um todo. Duas expressões são
usadas nesse texto para apresentar esse fato: Seu
arrependimento e seu pesar.

Em Gênesis vemos uma declaração interessante sobre Deus,


observe: “então,  se arrependeu o SENHOR de ter feito o homem
na terra, e isso lhe pesou no coração. Disse o SENHOR: Farei
desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o
animal, os répteis e as aves dos céus;  porque me arrependo de os
haver feito” (Gn.6.6, 7). Essa declaração de Moisés sobre as
palavras de Deus em relação a humanidade é sem sombra de
dúvidas interessante: Deus se arrepende.

Mas, isso significa que Deus muda? As escrituras são claras


quanto ao fato de que Deus não muda, observe: “Porque eu, o
SENHOR, não mudo; por isso, vós, ó filhos de Jacó, não sois
consumidos” (Ml.3.6); “Também a Glória de Israel não
mente,  nem se arrepende, porquanto não é homem, para que se
arrependa” (1Sm.15.29); “Toda boa dádiva e todo dom perfeito
são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem  não pode
existir variação ou sombra de mudança” (Tg.1.17). Mesmo
Moisés apresenta Yahweh como um Deus que não se
arrepender: “Deus não é homem, para que minta; nem filho de
homem, para que se arrependa. Porventura, tendo ele prometido,
não o fará? Ou, tendo falado, não o cumprirá?” (Nm.23.19).
Entretanto, em Gênesis lemos que Deus se arrependeu. Como
compreender o arrependimento de Deus (Gn.6) e o fato que Ele
não se arrepende (Nm23.19?) na visão do mesmo autor?

Em primeiro lugar, precisamos entender o que de fato significa


a Imutabilidade divina: Imutabilidade de Deus é a perfeição que
lhe é atribuída pelas escrituras que diz respeito à Sua
capacidade intrínseca de nunca fazer-se apresentar sob outro
aspecto. Essa perfeição é aplicada a Seu Caráter (Tg.1.17),
Vontade (Is.46.9-10) e Propósitos (Hb.6.17). Imutabilidade por
vezes é reconhecida como a perfeição absoluta, pelo fato de
que Deus é completo, pleno em Seus atributos
(Nm.32.19; Sl.33.11; Ml.3.6; Tg.1.17).

Em segundo lugar, devemos entender que o fato de Deus ser


exaltado acima de toda sua Criação ele também se faz presente
diante dela. Ou seja, o fato de que Deus não muda e que isso o
diferencia essencialmente de toda sua criação, não gera
impossibilidade de relacionamento entre Deus e suas criaturas,
pois é um Deus pessoal pronto a interagir com os objetos do
seu amor. Em outras palavras estamos afirmando que, a
verdade sobre Deus compreende tanto Sua transcendência, o
fato de que é exaltado acima de tudo e todos por que é o que é e
que ninguém jamais poderá sê-lo, como Sua imanência, o fato
de que Deus se faz presente no tempo, ativo, participativo, de
modo que sua Transcendência não minimiza sua Pessoalidade
nem sua Imanência sua Soberania. Deus é completamente
Soberano e Pessoal, perfeitamente transcendente e imanente:
“Acaso, sou Deus apenas de perto, diz o SENHOR, e não também
de longe?” (Jr.23.23).

Em terceiro lugar, devemos lembrar que o termo hebraico por


trás da tradução portuguesa para “arrependimento” é bem mais
abrangente do que o que entendemos com o termo em
português. O termo hebraico usado aqui é “nacham” e tem um
dos três significados básicos dependendo do contexto:

1.       Experimentar pesar ou sofrimento emocional: Esse


sentido é relativamente comum e eventualmente é
demonstrado no texto hebraico no passado: “Então, o povo  teve
compaixão  de Benjamim, porquanto o SENHOR tinha feito
brecha nas tribos de Israel” (Jz.21.15; cf. Jz.21.15; 1Sm.15.11,35;
Jó.42.6; Jr.31.19).

2.       Consolar ou ser consolado: Esse uso é relativamente


freqüente no AT e claramente encontrado na literatura Mosaica:
“E Isaque trouxe-a para a tenda de sua mãe Sara, e tomou a
Rebeca, e foi-lhe por mulher, e amou-a. Assim Isaque
foi  consolado  depois da morte de sua mãe” (Gn.24.67; cf.  27.42;
37.35; 50.21;  38:12;  2Sm.13.39; 77.3; Sl.1.24;
Is.1.24; Jr.31.15; Ez.14.22; 31.16; 32.31)

3.       Arrepender-se ou mudar de mente: Em alguns textos não


teologicamente discutidos a idéia de mudança de mente é
encontrado, mas com alguma dificuldade: “Tendo Faraó deixado
ir o povo, Deus não o levou pelo caminho da terra dos filisteus,
posto que mais perto, pois disse: Para que, porventura, o  povo
não se arrependa, vendo a guerra, e torne ao Egito”
(Ex.13.17; cf.Dt.32.36; )

É importante dizer que o sentido básico do termo, e certamente


mais freqüente no AT é o de “consolar”. Das 108x que é usado
no AT pelo menos em 66x a idéia está relacionada com o
consolo. Apesar de o termo ter conotações de arrependimento,
mesmo que aplicado a seres humanos, esse não é o termo
normalmente utilizado para isso. Normalmente o AT usa o
termo “shuwb”, que tem por idéia básica o voltar-se (Gn.3.19;
8.12; 18.14), para descrever a idéia do arrependimento como
mudança de comportamento e atitude (Gn.27.45; Ez.14.6).

Tendo observado isso, é verificável que o sentido de “consolo”


não é contextualmente aceitável em Gn.6 ao passo que a idéia
de arrependimento e pesar são as mais indicadas para o texto e
a primeira certamente tem sido favorecida largamente nas
versões modernas das escrituras, seja em inglês (ASV, KJV) ou
em português (ACF, ARA, ARC, NVI), entretanto, não tem sido a
opção unânime. Por exemplo, a NIV, versão inglesa da Nova
Versão Internacional, optou por assim verter o texto: “O Senhor
se  afligiu  por ter feito o homem na terra”. A NET Bible, por sua
vez, preferiu: “O Senhor se  lamentou  de ter feito o homem sobre
a terra”. Essas duas leituras além de serem lexicograficamente
possíveis, parecem contextualmente mais aceitáveis.

É bem provável que toda essa discussão tenha nascido na má


compreensão do termo hebraico e do termo latino visto na
Vulgata. De modo muito interessante, a Vulgata usou o termo
“paeniteo” que também carrega a idéia de “pesar” e
“arrependimento”[17]. Entretanto, nem o inglês nem o
português têm um termo que lhe seja equivalente e por isso,
sempre que passamos por esse texto precisamos investir na
explicação do termo. Considerando que o termo hebraico pode
ser entendido como uma expressão de caráter emocional, e que
o contexto é favorável a essa leitura, entendo que tanto a NET
Bible como a NIV são representações mais acertadas para se
descrever esse texto.

Aliás, é importante notar que Moisés também usa o termo


“’atsab” traduzido por pesar em português. A idéia do termo é
claramente a demonstração de dor e sofrimento, que em Gn.6.6
descreve o coração (hb. leb) do próprio Deus. Sobre isso,
Sailhamer afirma:

“Ao tornar Deus o sujeito dessa do verbo no verso 6, o autor


nos demonstra que o pesar e o sofrimento sobre os pecados
dos seres humanos não era algo que apenas os homens
sentiam. O próprio Deus lamentou pelo pecado do homem (v.7)
[18]”
Derek Kidner sobre esse texto afirma:

“Esta é a maneira de falar do Velho Testamento, em que


emprega as expressões mais ousadas, contrabalanceadas em
outros lugares, se necessário, mas não enfraquecidas. A palavra
pesou tem afinidades com as palavras aflição e fadiga de 3.16,
17. Agora Deus sofre por causa do homem[19]”

Ernest Kevan quando fala sobre seu entendimento desse texto,


afirma:

“O Deus revelado pelas escrituras é capaz de sentir tristeza e de


ser entristecido. Ele tem reações reais para com a conduta
humana. Não obstante, é impossível conceber o Deus
onisciente a lamentar-se por algum falso movimento por ele
feito. O arrependimento de Deus não é uma alteração quanto
aos propósitos, e sim, uma mudança de atitude[20]”

David Merkh acrescenta:

“Deus é uma PESSOA, e sendo assim tem emoções. Talvez


sejam diferentes do que nós entendemos, mas Deus não é uma
máquina. A palavra “arrependeu-se” tem duas conotações.
Primeiro, Deus se entristeceu.  Segundo, significa que haveria
um ajuste no plano dEle. Mas a mudança em Deus é mais uma
mudança do nosso ponto de vista[21]”

Diante dessas considerações fica evidente que a Imutabilidade


do Propósito de Deus foi preservado na história do dilúvio sem
que isso excluísse a idéia de Interação de Deus com Sua Criação
por seu sofrimento emocional e pesar, e, isso é plenamente
verificável pelos termos hebraico utilizados no próprio texto.
Com isso, afirmamos que Deus nunca está ausente de sua
criação nem a tem deixado à mercê de suas próprias criaturas:
Como Criador poderoso e benevolente, Deus se limita a estar
disponível para suas criaturas com o propósito de demonstrar
sua graça incondicional e amor pleno. Entretanto, quando Seu
limite é atingido, Ele mesmo se responsabiliza em disciplinar
suas criaturas de modo a honrar sua Santidade e Fidelidade. A
história do dilúvio é exatamente isso: Por um lado Justiça em jus
a Sua Santidade; Por outro Fidelidade para com sua promessa
de um libertador descendente da mulher e amor e graça para
com Noé, homem com quem dividia um relacionamento
especial.

C.     Provisão Futura

A descrição desse texto até aqui traça a rota do pecado do


homem de encontro com Justiça de Deus. Entretanto, o texto
não fica assim, pois ainda encontramos um pequeno porém:
“Porém, Noé achou graça diante de Deus”. Ao observar esse
termo, Merkh afirma:

“Depois desta nota sombria, mais uma vez ouvimos uma


melodia de graça.  Vs. 8 apresenta um contraste muito forte
com os outros 7 vss.  “Porém Noé achou graça diante do
Senhor.”  Nas palavras de Romanos, onde o pecado abundou, a
graça superabundou.  Sou grato a Deus pela palavra “mas” ou
“porém” nas Escrituras[22]”

A história da humanidade não havia terminado, pois Deus havia


reservado para si um remanescente fiel a quem Ele
prontamente oferece sua graça. Sobre essa graça, Barnes atesta:
“Noé e sua família são as únicas excepções a esta destruição
arrebatadora. Até agora nós nos encontramos com insinuações
distante e indireta do favor divino, e atos significativos de
respeito e aceitação. Agora a graça pela primeira vez se
encontra uma língua para expressar o seu nome. A Graça tem a
sua fonte no ser divino[23]”.

Sobre ela, ainda Merkh afirma:

“A palavra “graça” aqui não é o termo muitas vezes traduzido


como “graça” ou “misericórdia” no VT.  A palavra significa,
literalmente, “favor”.  Noé foi abençoado pelo favor de Deus. 
Entre todos os homens, Deus separou esse homem para uma
atuação divina especial[24]”

A relação entre o favor divino e a vida piedosa de Noé são


questões a serem observadas, e mesmo Merkh admite que a
vida piedosa de Noé foi resultado da graça manifesta de Deus
em sua vida. Tal visão é claramente favorecida pelas escrituras,
sobretudo no Novo Testamento onde encontramos com
facilidade a idéia de que a piedade é fruto da ação divina no
homem (2Pe.1.3). Entretanto, mesmo Calvino reconhece que a
vida íntegra de Noé favoreceu o favor divino em sua vida,
observe:

“Reconheço, aliás, que aqui Noé é declarado ter sido agradável


a Deus, porque, vivendo em retidão e humildade, ele se
manteve puro das contaminações comum do mundo[25]”

É verdade, entretanto, que Calvino também entende que


mesmo a origem e princípio fundamental da retidão de Noé
como obra do Senhor, mas não podemos com isso minimizar a
história da vida de Noé, que  é descrito como homem justo e
íntegro. O que isso significa então? Será que esforço humano e
favor divino se contrapõem? Claro que não! Com isso
reconhecemos os dois lados da história de Noé, que por um
lado foi favorecido por Deus, mas era também um homem justo
e íntegro mesmo entre uma geração perversa. O equilíbrio
dessa aparente contradição encontra-se no fato de que Noé
andava com Deus, ou seja, com Ele desfrutava de
relacionamento, e nesse ambiente de intimidade, com Deus
crescia e de Deus recebia favor. Ou seja, eles se davam bem.

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