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Apresentação

Apresentação
O principal objetivo da abordagem Teoria de Cineastas é aproximar o exercício teórico
sobre o cinema do pensamento de realizadores cuja produção (fílmica, textual etc.)
contribui para a compreensão de suas próprias obras e/ou do cinema como um todo. Desta
forma, busca-se estimular reflexões teóricas que tenham como referência fundamental as
fontes diretas de pesquisa, ou seja, filmes, entrevistas, livros, textos etc., tendo como meta
identificar indícios de atos de teoria (ou mesmo pensamentos formalmente construídos por
cineastas) com vistas à elaboração teórica por parte de pesquisadores e pesquisadoras.
Donde a expressão “teoria do cinema a partir de cineastas” que a pesquisadora Manuela
Penafria cunhou para definir a proposta durante a entrevista elaborada para este dossiê.
Estudar o cinema a partir da obra de cineastas, integrando o cabedal teórico do cinema com
as formulações que elaboram, constitui-se como uma alternativa profícua e consistente ao
suporte que as teorias do cinema comumente buscam em outras disciplinas.
O dossiê Teoria de Cineastas está diretamente vinculado ao trabalho desenvolvido
pelo Seminário Temático Teoria de Cineastas da Sociedade Brasileira de Pesquisa em
Cinema e Audiovisual (SOCINE), em atuação desde 2016. Esse dossiê é parte das atividades
do grupo, que englobam ainda a realização de jornadas de trabalho dentro e fora dos
encontros anuais da SOCINE, a publicação de artigos e capítulos de livros por parte de
pesquisadores que integram o Seminário Temático, as atividades em parceria com o Grupo
de Trabalho Teoria dos Cineastas da Associação de Investigadores da Imagem em
Movimento (AIM) de Portugal e o desenvolvimento de entrevistas baseadas na abordagem
Teoria de Cineastas como, por exemplo, com a cineasta Ana Carolina e a pesquisadora
Manuela Penafria.1
Antes de mais nada, julgamos fundamental expor algumas premissas partilhadas entre
pesquisadores e pesquisadoras que vêm se dedicando à consolidação da abordagem Teoria
de Cineastas.

1 Até a presente data, o ST teve 4 edições nos encontros da SOCINE de 2016, 2017, 2018 e 2019. Em 2019, foi realizado o I
Encontro do ST Teoria dos Cineastas da SOCINE em Curitiba, com apresentações de 15 pesquisadores e debate com a cineasta
Ana Carolina. A entrevista com a pesquisadora Manuela Penafria está incluída neste Dossiê, enquanto a entrevista com a
cineasta Ana Carolina está em processo de edição.

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Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 48, p. 1-5, jan./abr. 2020. DOI: http://dx.doi.org/10.19132/1807-8583202048.1-5
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Teoria de Cineastas
Decidimos recentemente adotar a nomenclatura Teoria de Cineastas, substituindo a
contração “dos” (de Teoria dos Cineastas) pela preposição “de”, suprimindo assim o artigo
masculino “os”. A opção corrobora as reivindicações em prol da promoção da equidade
entre gêneros na língua. Isso pôde ser feito sem que fosse necessário alterar dois
pressupostos importantes do título: o uso da palavra “teoria” no singular e de “cineastas” no
plural, que trazem sentidos específicos.
Não obstante fazer parte do seu escopo geral, a Teoria de Cineastas não se restringe
ao estudo das teorias elaboradas textualmente por cineastas. Por isso o uso do singular,
“teoria”, indicando tratar-se de uma proposição de pesquisa em várias frentes sobre o
trabalho de cineastas, e não do plural, “teorias”, que levaria a afirmação questionável de que
qualquer cineasta teria necessariamente uma teoria expressa ou latente em seus filmes. Por
sua vez, compreende-se o termo “cineasta” como aquele(a) que participa como criador(a) no
processo de realização de filmes, seja na direção, na fotografia, na escritura do roteiro, na
direção de arte etc. Busca-se naquilo que cineastas produzem os subsídios fundamentais
para a pesquisa no campo cinematográfico, em diálogo a outros subsídios advindos de
outras áreas de conhecimento.
Os filmes são o resultado do agenciamento de imagens e sons (e de movimentos e
temporalidades) por parte de cineastas, constituindo-se como a materialização visual e
sonora (em diferentes graus de fidedignidade) de seus pensamentos em um todo estético.
Mas ao escreverem ou falarem de seus filmes ou do cinema em geral, cineastas podem se
tornar teóricos, filósofos, pensadores, como ressalta Gilles Deleuze. Assim, no âmbito da
Teoria de Cineastas, o termo “pensamento” pode ser entendido como uma noção
suficientemente plástica e abrangente para abarcar ambas as dimensões mencionadas,
dimensões que se constituem como práticas pensantes que se diferem profundamente entre
si.
A influência do trabalho de Jacques Aumont para a constituição da Teoria de Cineastas
é, evidentemente, incontornável, embora a opção de Aumont pela pesquisa de textos
escritos por cineastas seja algo que não adotamos de modo compulsório. Aumont afirma
que, no máximo, os filmes poderiam ser “atos de teoria”, uma vez que a teorização
dependeria da linguagem verbal para ascender ao espaço da abstração plena situado além
das imagens e dos sons cinematográficos. Algo que, no entanto, não seria um impeditivo

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para a formulação de enunciados teóricos a partir das imagens e dos sons contidos nos
filmes. Em adição, perguntamo-nos se a presença da palavra nos filmes, tanto falada quanto
escrita sobre a tela, não deveria ser igualmente considerada no que tange às possibilidades
teóricas intrínsecas ao cinema.
A constatação de que os filmes atuam como veículos para o pensamento de cineastas
não é recente. Pelo contrário, várias teorias e sistemas epistemológicos, como aqueles
elaborados pelos criadores da vanguarda soviética dos anos 1920, pelos teóricos franceses
do período entreguerras etc., procuraram dar conta da produção e/ou da leitura de
pensamentos expressos nos filmes. Em 1948, o crítico e cineasta francês Alexandre Astruc,
especificamente em seu artigo “Naissance d’une nouveau avant-garde: la caméra-stylo”, de
1948, retomou a questão do pensamento nos filmes. Astruc lançava as bases do que seria
conhecido mais tarde como a Política dos Autores, posteriormente desdobrada na Teoria do
Autor.
A Teoria de Cineastas é uma abordagem que não se confunde com a Teoria do Autor,
embora possa compartilhar com ela características comuns, como o interesse pela
constituição de personas autorais em uma determinada obra fílmica. Mas, para além de
artistas do filme – isto é, de autores(as) –, cabe à Teoria de Cineastas encontrar
pensadores(as) na acepção livre do termo e que lancem mão dos mais variados meios que
dispõem. É por isso que, além dos filmes, são objetos de pesquisa da abordagem os
documentos preparatórios de filmagem, os relatos de produção, as entrevistas, os
manifestos, os textos de próprio punho, enfim, uma variedade de materiais nos quais
poderiam ser encontrados tanto pensamentos esparsos quanto formalmente construídos,
ou mesmo enunciados teóricos sistematizados – como nos escritos de Sergei Eisenstein, um
raro exemplo de cineasta-teórico.
Por tudo isso, ressaltamos a importância do(a) pesquisador(a) em todo o processo de
investigação no âmbito da abordagem Teoria de Cineastas. Sua atuação estaria condicionada
ao material encontrado, (re)trabalhando discursivamente pensamentos contidos em obras
de cineastas, ou evidenciando pensamentos latentes, quando lhe couber lidar com um
material disperso, inconcluso e, não raro, contraditório. De todo modo, a escolha do(a)
cineasta a ser estudado adquire particular importância, já que nem todo indício de
pensamento em um filme ou mesmo em uma obra cinematográfica se presta ao exercício de
demonstração do princípio cognitivo que a animaria. Outro complicador é o de que, não
havendo tradução imediata dos arranjos sensíveis em conceitos e enunciados linguísticos,

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caberia ao(à) pesquisador(a) um percurso em paralelo à obra do(a) cineasta. Assim, seu
trabalho não visa substituir as imagens e os sons cinematográficos, irredutíveis a
enunciados verbais, mas criar um discurso textual que relance os arranjos sensíveis
contidos nos filmes em direção a conceitos suscitados pelas imagens e sons.
Enfim, a Teoria de Cineastas não se propõe a necessariamente identificar teóricos em
cineastas (uma conjunção rara), mas localizar conjuntos de vetores e campos de
pensamentos explícitos ou implícitos no trabalho de cineastas, formulando discursos que
corporifiquem tais conjuntos e campos, testando a cada vez as possibilidades e os limites da
própria abordagem.

Composição do Dossiê
O Dossiê Teoria de Cineastas recebeu 34 artigos e todos foram analisados pelo sistema
de avaliação cega por dois pesquisadores da área, resultando na seleção de 17 artigos
publicados.
A entrevista do Dossiê foi feita pelos editores com a professora e pesquisadora
Manuela Penafria, coordenadora do GT Teoria dos Cineastas da AIM, que vem se dedicando
a consolidar esta abordagem em Portugal. Na entrevista, Penafria discutiu uma série de
temas relevantes à pesquisa e à teorização em cinema, tais como: as fontes de pesquisa; a
diferença entre a palavra e a imagem na Teoria de Cineastas; a relação da Teoria de
Cineastas com as propostas de Jacques Aumont; o conceito de espectador que circula entre
cineastas; e a suspeição que pode surgir no meio acadêmico com relação à Teoria de
Cineastas.
O conjunto de artigos que compõem o Dossiê engloba diferentes aspectos da Teoria de
Cineastas, tais como:
# A teoria do cinema e a teoria da imagem: Remontar as mídias: o pensamento
imagético de Harun Farocki, de Luís Flores e César Geraldo Guimarães; Refrações do conceito
de filme de cinema na obra de Rogério Sganzerla, de Irene de Araújo Machado e Daniel Felipe
Espinola Lima Fonseca; Dos efeitos do real a uma política do ócio em Abbas Kiarostami, de
Demétrio Rocha Pereira, Felipe Diniz e Lennon Macedo.
# A autoria e a expressão teórica: Do dialogismo aos sentidos da dupla autoria nos
making ofs documentários, de Patrícia de Oliveira Iuva; O gesto fílmico como expressão
coletiva da arte cinematográfica, de Andréa Carla Scansani; Conceito de autoria como

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intermédio para noções sobre arte e indústria, de Gustavo Henrique Ferreira Bittencourt e
Josimey Costa da Silva; A indústria também produz teoria? Contribuições de John T. Caldwell
para os estudos do cinema e da televisão, de Ludmila Moreira Macedo de Carvalho e Elva
Fabiane Matos do Valle.
# A teoria coletiva e compartilhada: O cinema-lagarta dos Tikmũ’ũn: teoria-prática das
imagens xamânicas, de André Brasil; Stan Brakhage, Maya Deren e Jonas Mekas: por uma
poética do amateur, de Rafael Valles.
# A teorização e os processos criativos: David Neves: projetos de vida e autonomia do
crítico-cineasta, de Pedro Plaza Pinto; O processo criativo de Karim Aïnouz: o movimento da
imagem em criação, de Aline Vaz e Tarcis Prado Júnior;
# Os cineastas e suas relações com a filosofia: Antifilosofia: Jean Epstein e realismo
especulativo, de Julio Bezerra; O cinema romântico de Werner Herzog: aproximações entre o
Romantismo Alemão e o conceito de Verdade Extática, de Jéssica Pereira Frazão e Regiane
Regina Ribeiro.
# A violência e a poesia na Teoria de Cineastas: Montagem miríade e dança: a
corporificação do pensamento cinematográfico em Evaldo Mocarzel, de Cristiane do Rocio
Wosniak; O cinema autorreferencial de Chantal Akerman como ato de teoria do deslugar, de
Natália Lago Adams e Sandra Fischer; Poesia e violência no berço da linguagem silenciosa: o
caso de Chaplin, de Ciro Inácio Marcondes; Os filmes de Arthur Omar como “formas que
pensam” a violência no Brasil dos anos 1980, de Rosane Kaminski.

Boa leitura!

Bruno Leites
Doutor; Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, RS, Brasil
bruno.leites@ufrgs.br

Eduardo Baggio
Doutor; Universidade Estadual do Paraná, UNESPAR, PR, Brasil
baggioeduardo@gmail.com

Marcelo Carvalho
Doutor; Universidade Tuiuti do Paraná, UTP, PR, Brasil
marcelocarvalho.0001@yahoo.com.br

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