Você está na página 1de 11

Desenvolvimento Físico-Territorial

Dilemas do Plano Diretor

Este texto procura caracterizar o que seja um plano diretor e Flávio Villaça
expor alguns dilemas enfrentados atualmente, numa tentativa Arquiteto pela FAU/USP, professor titular
de Planejamento Urbano nos cursos de pós-
de salvá-lo da crise de descrédito em que se encontra. Uma abor-
graduação da FAU/USP, doutor em Geogra-
dagem mais profunda dessa crise e das suas causas históricas, fia Urbana pela USP, Master of City
bem como daquela tentativa, poderá ser encontrada nas seguin- Planning pelo Georgia Institute of
tes obras do autor: Uma contribuição para a história do planeja- Technology, Atlanta, Georgia.

mento urbano no Brasil (no prelo) e Crise do planejamento urba-


no, na Revista Perspectiva, v. 9, n. 2, abr./jun. 1995.

PLANO DIRETOR E ZONEAMENTO

O planejamento urbano desenvolvido nas últimas décadas no


Brasil vem se manifestando através de várias modalidades, que
apresentam diferentes características. Uma dessas modalida-
des é a que tem se manifestado através dos planos diretores ou
das idéias sobre planos diretores. Uma outra, que com esta tem
grande afinidade, é o chamado “planejamento físico-territorial”.
Outras modalidades importantes são o planejamento de cidades
novas, o controle do uso e ocupação do solo (através dos códi-
gos de zoneamento e de loteamentos) e o planejamento setorial
(de transportes, saneamento etc.).

Neste texto, vamos chamar de “planejamento urbano stricto


sensu” ou simplesmente “planejamento urbano” aquela modali-
dade que se manifesta nos planos diretores e/ou nos planos físi-
co-territoriais. O planejamento urbano lato sensu será aqui con-
siderado como aquele que engloba todas as modalidades acima
mencionadas.

Uma das notáveis características desse planejamento urbano


stricto sensu é que ele, ao contrário do zoneamento e do contro-
le dos loteamentos, tem existido quase que somente na teoria,
no discurso, sem empirismo. As leis de zoneamento e
loteamentos têm tido uma existência real, têm sido objeto do

237
O MUNICÍPIO NO SÉCULO XXI: Cenários e Perspectivas

teste da prática, e tem havido, ao longo das to – ligada especialmente aos meios imobili-
décadas e em várias cidades, um certo em- ários – que defende a tese de que as pro-
penho em aplicá-las – dentro dos óbvios li- postas de um plano diretor devem se limitar
mites daquilo que, no Brasil, pode ser cha- a políticas, objetivos e diretrizes gerais, ou
mado de empenho em aplicar a lei. Com o seja, o plano diretor não deve ter – enquanto
plano diretor, isso não vem ocorrendo. lei – dispositivos auto-aplicáveis.

TENTANDO DEFINIR PLANO DIRETOR Note-se que, pela prática brasileira mais or-
todoxa e de várias décadas, o zoneamento
A inexistência do plano diretor, na prática, não é considerado plano diretor, embora
tem facilitado muito a enorme confusão que muitos pensem em zoneamento quando fa-
hoje reina em torno de seu conceito. É o que lam em plano diretor. Na Administração Mu-
pretendemos mostrar a seguir. Considere- nicipal brasileira, zoneamento e plano dire-
mos, inicialmente, uma tentativa de defini- tor desenvolveram-se de forma paralela e
ção de plano diretor, procurando reunir suas independente (para o caso de São Paulo,
características mais tradicionais, e que tal- ver Feldman, 1996). Grande parte dos prin-
vez predominem em seu conceito. Seria um cipais municípios brasileiros – Rio, São Pau-
plano que, a partir de um diagnóstico cientí- lo, Porto Alegre, Recife etc. – têm zonea-
fico da realidade física, social, econômica, mento, total ou parcial, há várias décadas,
política e administrati- mas não tiveram (ne-
va da cidade, do mu- las não vigorou por um
nicípio e de sua re-
A inexistência do plano dire- período razoável de
gião, apresentaria um suas vidas) um plano
conjunto de propostas
tor, na prática, tem facilitado diretor conforme a de-
para o futuro desen- finição acima enuncia-
volvimento socioeco-
muito a enorme confusão da nem qualquer con-
nômico e futura orga- ceituação parecida. O
nização espacial dos
que hoje reina em torno de conceito teórico de pla-
usos do solo urbano, no diretor inclui o zo-
das redes de infra-es-
seu conceito. neamento como um
trutura e de elemen- instrumento indispen-
tos fundamentais da sável à sua execução,
estrutura urbana, para a cidade e para o mu- mas raríssimos são os planos diretores que
nicípio, propostas estas definidas para cur- incluíram um zoneamento minimamente de-
to, médio e longo prazos, e aprovadas por senvolvido a ponto de ser auto-aplicável,
lei municipal. Essa seria uma definição que aprovável e aprovado por lei.
acreditamos ser a mais consensual. Uma ou-
tra versão reduziria o plano diretor aos as- O conceito de plano diretor ( físico-territorial
pectos físico-territoriais do município. Nes- ou não) desenvolveu-se no Brasil mais ou
se conceito, o diagnóstico abarcaria todos menos a partir dos anos 50, embora a ex-
os aspectos da realidade urbana, municipal pressão “plano diretor” já aparecesse no Pla-
e mesmo regional, mas as propostas refe- no Agache, para o Rio de Janeiro, que é de
rir-se-iam apenas aos aspectos físico-terri- 1930. No entanto, o zoneamento (embora sob
toriais, já que estes se caracterizam pelo fato formas rudimentares) já existia em São Pau-
de ser predominantemente da competência lo e Rio desde o final do século passado.
do governo municipal.
Do que foi dito acima, já podem ser tiradas
Vamos agora procurar abordar posições di- algumas conclusões importantes.
ferentes dessa. Nos últimos anos, desenvol- • Não há no Brasil, entre os grupos sociais
veu-se no Brasil uma corrente de pensamen- envolvidos em planos diretores – engenhei-

238
Desenvolvimento Físico-Territorial

ros, arquitetos, urbanistas, ONGs ligadas nutrir, por décadas e décadas, sonhos,
ao espaço urbano e habitação, geógrafos, irrealidades e quimeras. A serviço da cria-
juristas, empresários imobiliários, proprie- ção e sustentação de tais sonhos, são colo-
tários fundiários etc.–, o menor consenso cados políticos, intelectuais, imprensa, pro-
quanto ao que seja um plano diretor. fessores, órgãos públicos e de classe etc. em
• Se considerarmos como válida a definição debates tão infindáveis quanto inócuos. Ór-
acima, pode-se afirmar que nunca houve gãos municipais, estaduais, regionais e fe-
plano diretor no Brasil fora do discurso. derais ligados ao desenvolvimento urbano,
redigem pilhas de relatórios e realizam cus-
Apesar dessas deficiências, tem havido al- tosas pesquisas visando nutrir essa quime-
gum planejamento físico-territorial. Com ra. Nas universidades, aulas são dadas, te-
efeito, o zoneamento é a modalidade de pla- ses defendidas, seminários organizados e
nejamento urbano mais antiga e mais difun- conferências pronunciadas louvando as vir-
dida no Brasil e, sem dúvida, o zoneamento tudes de um plano diretor que nunca existiu.
é um instrumento de atuação sobre a orga- Uma criação da razão pura, uma construção
nização territorial urbana. Não se entra no mental baseada na idéia pura descolada da
seu mérito, pois é sabido que ele não tem realidade social.
atuado sobre a organização territorial de
nossas cidades como um todo, mas ape- Não são poucos nem simples os dilemas que
nas em pequenas parcelas delas, ou seja, o plano diretor vem enfrentando no Brasil.
aquelas constituídas pelos bairros das clas- Desde o Plano de 1971, para São Paulo, co-
ses médias para cima. Para a maioria de nhecido por PDDI, muitos planos diretores
nossas populações urbanas, os benefícios têm se limitado (exceção feita ao zoneamento
trazidos pelo zoneamento – se há algum – que, em geral, tem sido objeto de leis espe-
têm sido desprezíveis. cíficas e padecido das limitações acima
indicadas) a princípios, objetivos e diretrizes
DILEMAS gerais.

Plano diretor é algo discutido no País, há vá- Por mais paradoxal que pareça, nenhum gru-
rias décadas, em câmaras municipais, em po social importante no Brasil tem realmen-
salas de aula de universidades, em congres- te se interessado por planos diretores ( em-
sos e conferências, em inúmeros órgãos bora se envolvam com eles) nos termos do
municipais, estaduais e federais. Por que tan- conceito acima apresentado, nem de qual-
to empenho da socie- quer conceito parecido.
dade em debater algo Os políticos – prefeitos,
que não existe? Por
Não são poucos nem sim- particularmente – não
que tanta importância se interessam. A Folha
– afinal o plano dire- de S. Paulo de 13/2/
ples os dilemas que o plano
tor foi parar até na 1989 noticiava à p. C5:
Constituição da Repú-
diretor vem enfrentando no “Plano diretor não é pri-
blica – atribuída a algo oridade para as prefei-
que não se sabe direi- turas paulistas”. Com
Brasil.
to o que é e cujos efei- efeito, plano diretor, com
tos supostamente be- a abrangência que vem
néficos ninguém ja- sendo apregoada por
mais experimentou? muitos acadêmicos, assusta a maioria de
nossos prefeitos, que nele vêem um indese-
Um mínimo de reflexão sobre essa questão jável constrangimento à sua atuação. Por ou-
traz à tona uma enorme capacidade de nos- tro lado, tem sido irrisório (se é que tenha
sas elites intelectuais e políticas de criar e havido algum) o número de prefeitos que de-

239
O MUNICÍPIO NO SÉCULO XXI: Cenários e Perspectivas

mocraticamente tenham pautado suas cam- essa última idéia, o direito de construir, que
panhas eleitorais por uma plataforma de go- estaria associado à propriedade da terra ur-
verno que atenda aos interesses populares, bana, seria o direito de se construir uma área
que tenha sido democraticamente debatida igual, no máximo, à área do lote. Qualquer
com a população e que tenham desejado e área construída adicional seria objeto de
conseguido incorporá-las num plano diretor. concessão por parte do Poder Público, e
essa concessão pode-
A elite econômica brasi- ria ser onerosa. Muitos
leira – no caso represen- chamam isso (equivo-
tada pelos interesses A elite econômica brasileira cadamente) de solo
imobiliários – não quer criado.
saber de plano diretor, – no caso representada pe-
pois ele representa uma Essa tese difundiu-se
oportunidade para deba- los interesses imobiliários – muito pelo País e, evi-
ter os ditos “problemas dentemente, assustou
urbanos” que ela prefe- não quer saber de plano di- os interesses ligados à
re ignorar. A experiência produção e ao comér-
recente em diversas ca- retor, pois ele representa cio imobiliários. Em
pitais (Rio de Janeiro, inúmeras cidades bra-
Belém, São Paulo), reve- uma oportunidade para de- sileiras, tais interesses
la claramente que as for- passaram a ser pre-
ças e interesses do se- bater os ditos “problemas ur- sença marcante em to-
tor imobiliário não que- dos os debates refe-
rem saber de plano dire- banos” que ela prefere rentes a plano diretor,
tor. Nesse sentido, essas e nesses debates pas-
forças e interesses vêem ignorar. saram a concentrar
propugnando por um sua atuação política no
plano diretor apenas de combate às teses do
princípios gerais. Com Coeficiente Um. Em
isso, conseguem um plano diretor inócuo. contraposição – temendo o surgimento de
Atualmente, em São Paulo, depois de dois novos dispositivos contrários a seus interes-
planos diretores limitados a princípios gerais ses –, passaram a defender o plano diretor
(o de 1971 e o de 1988 – gestão Jânio Qua- que contivesse apenas princípios e diretrizes
dros), os interesses ligados ao setor imobili- gerais. Ganha força, assim, uma tendência
ário lutam por um plano que se limite a prin- que vinha se desenvolvendo desde 1971.
cípios gerais exceto em um aspecto: aquele
referente às limitações do Coeficiente de PLANO DIRETOR E COEFICIENTE DE
Aproveitamento. APROVEITAMENTO

Durante os anos 90, desenvolveu-se em al- Um dos pouquíssimos dispositivos do Plano


guns órgãos municipais de planejamento a Diretor de São Paulo, de 1971, que não era
idéia de renovar as leis de zoneamento, de- princípio ou norma geral, nem definição ou
las tentando eliminar seu tradicional elitismo. classificação – em suma, um dos poucos dis-
Propunham um zoneamento que correla- positivos auto-aplicáveis – era o artigo 55,
cionasse a ocupação do solo urbano com a que dizia: “A partir da publicação da presen-
capacidade da infra-estrutura, criando um te lei, o artigo 1o da Lei 6.877, de 11 de maio
Coeficiente de Aproveitamento Um1, que se- de 1966, passa a vigorar com a seguinte re-
ria válido para toda uma cidade. Segundo dação:
1
Coeficiente de Aproveitamento é a relação entre a área total construída ( soma da área de todos os pavimentos) em um terreno e a área desse mesmo
terreno. Mede o volume de construção que um terreno comporta.

240
Desenvolvimento Físico-Territorial

“Art. 1o - A área total de construção, em do o máximo de quatro vezes que constava


qualquer edifício, incluindo dependências do plano diretor em vigor, desde que o inte-
ou edículas, não poderá ultrapassar de 4 ressado pagasse à prefeitura uma certa
(quatro) vezes a área do respectivo lote. quantia, sob a forma de habitações popula-
Parágrafo único - Não serão computados res para favelados.
para os fins a que refere o caput deste
artigo: Esse máximo de quatro tinha que ser res-
a) a área de um único pavimento em “pilo- peitado, pois constava de um plano dire-
tos” (sic) quando desembaraçado e sem tor, e este não podia ser alterado por uma
qualquer vedação, a não ser as caixas de lei comum, como era, por exemplo, a lei
escadas e de elevadores; que aprovou as Operações Interligadas.
b) a área de construção destinada a garagem, Desde então, os interesses imobiliários em
estacionamento, carga e descarga, exclu- São Paulo vêm lutando para generalizar a
sivamente para os veículos utilizados pe- prática de poder ultrapassar o coeficiente
los proprietários ou habitantes do próprio de aproveitamento mediante pagamento.
edifício, desde que não exceda a duas ve- Isso, entretanto, só poderá ser conseguido
zes a área do respectivo lote”. com um plano diretor, uma vez que só um
plano diretor (ou uma emenda aprovada
No plano diretor de 1988, esse artigo foi rei- com voto favorável de 3/5) pode alterar
terado no artigo 30, nos seguintes termos: outro plano diretor.
“O coeficiente de aproveitamento máximo por
lote, no Município de São Paulo, não poderá
ultrapassar quatro vezes a área do respecti-
vo lote, excetuadas as disposições previstas
em lei.
...os interesses imobiliários
Parágrafo único - ficam excluídas do cálculo
desse coeficiente de aproveitamento as áre-
não querem nada além de
as não computáveis, definidas em legislação
específica”.
princípios, diretrizes ou polí-

Por outro lado, o parágrafo 4o do artigo 40 da


ticas gerais. Nada que seja
Lei Orgânica do Município de São Paulo diz:
“Dependerão de voto favorável de 3/5 (três
auto-aplicável.
quintos) dos membros da câmara as seguin-
tes matérias:
I - Zoneamento urbano;
II- Plano diretor”. Essa é a única razão pela qual foi discuti-
do, em 1998, um plano diretor para São
Com o advento das chamadas Operações Paulo. Fora essa única alteração de um dis-
Interligadas, que se iniciaram em São Pau- positivo auto-aplicável, os interesses imo-
lo em 1988 e rapidamente passaram a ser biliários não querem nada além de princí-
conhecidas em todo o País, passou a vigo- pios, diretrizes ou políticas gerais. Nada
rar no Município de São Paulo uma legisla- que seja auto-aplicável. O mesmo ocorre
ção que permitia a outorga onerosa do di- em inúmeras cidades brasileiras, do Rio de
reito de construir, ou seja, em linguagem co- Janeiro a Belém. Nelas, os únicos disposi-
mum, passou a ser permitido, em situações tivos auto-aplicáveis que os interesses imo-
especiais, previstas em lei e mediante pro- biliários toleram são os referentes ao coe-
cedimentos administrativos também espe- ficiente de aproveitamento. Fora este, ape-
ciais, ultrapassar os coeficientes de apro- nas princípios gerais. É o plano diretor inó-
veitamento da lei de zoneamento, respeita- cuo e inútil.

241
O MUNICÍPIO NO SÉCULO XXI: Cenários e Perspectivas

Os problemas da maioria da população, de propostas de questões de competência


aquela enorme parcela que é forçada a vi- de outros níveis de governo.
ver à margem da lei urbanística (e de mui-
tas outras leis) são ignorados pelos planos Ligada a essa questão da atribuição munici-
diretores e seus princípios gerais. As tenta- pal, está uma questão freqüentemente men-
tivas em sentido contrário enfrentam a resis- cionada da seguinte forma: “O plano diretor
tência dos setores imobiliários. Nesse senti- não pode limitar-se às zonas urbanas do mu-
do, incluem-se, além do Coeficiente de Apro- nicípio. Há uma total interdependência entre
veitamento Um, as tentativas de desenvol- a cidade e a zona rural, de maneira que esta
ver um zoneamento que correlacione o uso não pode deixar de constar dos planos dire-
e a ocupação do solo com a capacidade da tores”. Essa é uma falsa maneira de colocar
infra-estrutura urbana, as Zonas Especiais de a questão. O que deve ou não deve constar
Interesse Social e outras. do plano diretor não se define em termos de
zona rural ou urbana. O plano diretor deve
Outra posição que muito tem contribuído para abordar todos os problemas que sejam da
a inoperância e descrédito dos planos dire- competência do município, estejam eles na
tores é aquela que defende a tese de que zona rural ou urbana. O município não tem,
tudo aquilo que for importante para o municí- por exemplo, competência para fazer
pio deve constar do pla- zoneamento rural; deter-
no diretor, seja da alçada minar onde são permiti-
do governo federal, esta- das ou proibidas as pas-
dual ou municipal. Com Também cabe destacar tagens, a fruticultura, a
isso, o plano diretor pas- pecuária, o extrativismo
sa a correr o risco de se aqui a questão referente etc., etc. Já as rodovias
transformar numa (ou in- municipais na zona rural
cluir uma) listagem de aos aspectos sociais e podem e devem fazer
propostas que não obri- parte do plano diretor. Inú-
gam nenhum órgão a econômicos. Devem eles til, entretanto, incluir ne-
cumpri-las, nem criam les as rodovias, trevos ou
qualquer responsabilida- constar de um plano di- viadutos, estaduais e/ou
de, já que o plano muni- federais, por mais impor-
cipal não tem qualquer retor? tantes que sejam para o
efeito sobre as ações dos município.
governos federal ou esta-
duais. Também cabe destacar
aqui a questão referente aos aspectos soci-
Neste caso é inócuo, por exemplo, o artigo ais e econômicos. Devem eles constar de
45 da Lei Orgânica do Município de São Pau- um plano diretor? O princípio fundamental
lo que diz: “Os planos vinculam os atos dos mantém-se o mesmo: a questão está mal
órgãos e entidades da Administração Direta colocada. O que interessa saber é se a so-
e Indireta”. Alguns alegam que a inclusão, lução de uma determinada questão ou pro-
nos planos diretores, de propostas cujo cum- blema é ou não é da alçada do município, e
primento caberia aos governos estaduais ou não se ela é social ou econômica. Um mu-
federal, seria uma forma de pressão ou uma nicípio pode querer (e ter condições para
reivindicação a esses níveis de governo. Isso isso) desenvolver um programa de criação
não passa de uma ilusão e de uma ideali- de empregos ou de renda mínima. Note-se,
zação dos planos diretores que apenas ser- entretanto, que o plano diretor dificilmente
ve para desmoralizá-los. Campanhas e pres- será o lugar mais adequado para encaixar
sões políticas serviriam melhor a esses pro- tal programa. Melhor seria desenvolver para
pósitos do que rechear os planos diretores isso um programa específico.

242
Desenvolvimento Físico-Territorial

Questão análoga ocorre com a infra-estrutu- pela Constituição, como, por exemplo, o
ra de saneamento. Se ela é da alçada do Coeficiente de Aproveitamento Único e
governo estadual, inútil incluí-la nos planos igual a um para toda a cidade. Associadas
diretores. Vem então a questão das reivindi- a esse dispositivo estavam as idéias da
cações a outros níveis de governo. Plano di- “concessão onerosa do potencial constru-
retor nunca foi espaço adequado para se in- tivo” e da criação do Fundo Municipal de
serir reivindicações de obras da alçada de Urbanização. Outros dispositivos inovado-
outros níveis de governo. Nem o lugar ade- res eram a regularização fundiária e urba-
quado para se incluir estudos técnicos que nização de favelas e as Zonas Especiais
subsidiem tais reivindicações. É importante de Interesse Social-Zeis. Entretanto, um po-
que o município esteja tecnicamente capaci- deroso instrumento de reforma urbana, o
tado para desenvolver (ele próprio ou sob IPTU progressivo no tempo, estava na de-
encomenda ao setor privado) estudos técni- pendência de lei federal, conforme dispos-
cos que fundamentem suas reivindicações e to no artigo 182 da Constituição Federal.
pressões políticas sobre outros níveis de go-
verno. Isso não quer dizer, entretanto, que
tais estudos devam constar do plano diretor.
Cumprindo a determinação
Considerando que aqueles aspectos sobre
os quais mais incide a competência munici-
constitucional, várias cidades
pal referem-se a questões físico-territoriais,
o plano diretor pode resultar em um plano
brasileiras voltaram a elabo-
predominantemente físico-territorial. Não por
uma questão de convicção estabelecida a
rar planos diretores no início
priori ou por uma definição livresca e acadê-
mica de plano diretor.
dos anos 90.
As questões acima esboçadas são importan-
tes para a elaboração de um plano diretor
realista e exeqüível, mas estão longe de ser
questões fundamentais para salvar o plano Um exemplo: o chamado Plano Diretor
diretor do descrédito em que se encontra. Decenal da Cidade do Rio de Janeiro foi apro-
vado pela Lei Complementar 16, de 4 de ju-
UM FUTURO POSSÍVEL lho de 1992. (Cavalieri, 1994, p. 376) Esse
plano sucumbe às antigas ilusões de abrigar
Cumprindo a determinação constitucional, os mais variados temas, porém, quase que
várias cidades brasileiras voltaram a ela- exclusivamente sob a forma de princípios e
borar planos diretores no início dos anos diretrizes gerais. Tem 234 artigos (o de São
90. Algumas, como São Paulo, Rio de Ja- Paulo tinha 82). É quase que totalmente cons-
neiro, Belo Horizonte e Porto Alegre apro- tituído de um enorme rol de enunciados de
veitaram a oportunidade não só para rejei- políticas, diretrizes programas e indicações
tar o plano tradicional (o superplano e o gerais diversas. A maioria, se, por um lado,
diagnóstico técnico como identificadores não assegura qualquer comprometimento,
dos problemas), como também para pro- nem mesmo político, por outro, remete qual-
curar politizar o plano diretor – agora cla- quer operacionalização para um futuro inde-
ramente transformado num projeto de lei. finido.
Nesse sentido, tentaram nele introduzir te-
mas da reforma urbana e dispositivos que O plano diretor acaba, assim, por se tornar
atendiam a princípios de justiça social no aquele plano que define orientações so-
âmbito urbano e que não eram impedidos bre como deverá ser o plano quando ele

243
O MUNICÍPIO NO SÉCULO XXI: Cenários e Perspectivas

vier a ser feito. O modelo de plano do Rio os debates travados nos Legislativos e fora
dependia assim, fortemente, de regulamen- deles, em várias cidades importantes do País.
tação subseqüente. “O novo governo muni-
cipal iniciado em 1993, uma vez empossado No tocante à metodologia, cabe destacar a
(...) retirou da câmara de vereadores os três recusa ao diagnóstico técnico como meca-
únicos projetos de lei de regulamentação do nismo “revelador” dos problemas. Os diferen-
plano diretor, para lá en- tes segmentos da po-
viados no final do gover- pulação estão cansa-
no anterior”. (Idem, ibid., dos de saber quais são
p. 398) Dois desses pro- A década de 90 pode ser seus problemas. Os
jetos versavam exata- problemas a serem ata-
mente sobre os mesmos considerada como marca do cados num plano dire-
temas vitais que haviam tor, bem como suas
levado o empresariado fim de um período na histó- prioridades, são uma
paulista a impedir que o questão política e não
Plano Diretor de São ria do planejamento urbano técnica. São questões
Paulo chegasse ao ple- que devem estar nas
nário da câmara: o solo brasileiro porque ela determi- plataformas dos movi-
criado e o Fundo Muni- mentos populares e dos
cipal de Desenvolvimen- na o início do seu processo partidos políticos. O di-
to Urbano agnóstico técnico servi-
de politização, fruto do avan- rá, isto sim, e sempre a
Alguns planos diretores posteriori (ao contrário
elaborados nos primei- ço da consciência e organi- do tradicional), para
ros anos desta década dimensionar, escalonar,
foram obrigados a se zação populares. fundamentar ou viabili-
curvar às pressões aci- zar as propostas, que
ma esboçadas, às vezes são políticas, nunca
em processos de negociação, fazendo con- para revelar os problemas. Assim, por exem-
cessões em troca de tentativas (em geral frus- plo, a Prefeitura Municipal de São Paulo pu-
tradas) de avanços progressistas. Tanto em blicou, em 1992, um relatório técnico (São
São Paulo como no Rio (Cavalieri, 1994, p. Paulo, crise e mudança) depois de pronto
395), o plano auto-aplicável foi combatido e o plano diretor. No caso de São Paulo, a de-
o plano de diretrizes gerais (aquele talhado cisão de correlacionar o zoneamento com a
para ir para as prateleiras) foi defendido pelo capacidade da infra-estrutura e de definir as
empresariado. Em São Paulo, os opositores zonas adensáveis e não-adensáveis foi uma
à proposta de plano diretor encaminhada à decisão política que não decorreu do diag-
câmara pelo governo de Luiza Erundina es- nóstico técnico. Inúmeras pesquisas foram
tabeleceram como seus limites que “...nada feitas, nesse particular, para delimitar as zo-
no Plano Diretor poderia ser implementado nas adensáveis e não-adensáveis, mas
imediatamente”. (Singer, 1995, p. 216) para aplicar a decisão política e não para
chegar a ela.
A década de 90 pode ser considerada como
marca do fim de um período na história do Quanto ao conteúdo, embora persista muito
planejamento urbano brasileiro porque ela a tendência tradicional de colocar “tudo” no
determina o início do seu processo de plano diretor (tendência que foi amplamente
politização, fruto do avanço da consciência utilizada para obstruir seu andamento e to-
e organização populares. Essa politização lher sua objetividade e eficácia), ficou claro o
ficou clara desde as metodologias de elabo- início da tendência oposta, ou seja, no senti-
ração e dos conteúdos de alguns planos até do de destacar os aspectos que são da com-

244
Desenvolvimento Físico-Territorial

petência municipal, particularmente os de interferir; mas não em questões de de-


atinentes à produção imobiliária – ou do es- senvolvimento econômico, renda, emprego,
paço urbano. Com isso, teve início a rejeição mas particularmente no tocante à distribui-
não só do plano diretor pretensamente todo- ção da riqueza nela gerada. É precisamen-
poderoso, como também sua suposta mis- te nessa direção que as forças progressis-
são de “integração” ou “coordenação”, quer tas têm procurado orientar o plano diretor,
intersetorial, quer na esfera interna da Admi- instrumentando-o no sentido de fazer com
nistração Municipal, quer entre distintos ní- que o Poder Público capte parte da valori-
veis de governo. zação imobiliária da qual ele e a sociedade
como um todo são os principais criadores.
Contra essa orientação, os interesse imobi-
Os problemas a serem ata- liários se insurgiram.

cados num plano diretor, Alertas alarmistas sobre eventuais “desesta-


bilizações” de economias urbanas causadas
bem como suas prioridades, por planos diretores foram alguns dos fan-
tasmas levantados por aqueles interesses
são uma questão política e para obstruir avanços na legislação urbanísti-
ca. Com esse objetivo, várias previsões tão
não técnica. catastróficas quanto contraditórias foram emi-
tidas, ora sobre “aspectos econômicos” do pla-
no diretor, ora sobre os males de um suposto
aumento do preço dos imóveis, e ora sobre
Tais tarefas são de um Executivo que efeti- possíveis desvalorizações dos terrenos.
vamente assuma um plano com tais funções.
Se é verdade que não se pode compreender O plano diretor inovador dos anos 90 elegeu
a cidade, desvinculada de sua região (do país como objeto fundamental o espaço urbano,
e mesmo do mundo), e se é também verda- sua produção, reprodução e consumo, ou
de que as ações governamentais sobre de- seja, um plano diretor eminentemente físi-
terminada cidade devem ser coordenadas, co-territorial. Seus instrumentos fundamen-
daí não decorre que um plano diretor deva tais de aplicação, limitados aos da compe-
ter propostas de desenvolvimento regional tência municipal, podem ser de natureza ur-
como as de infra-estrutura, emprego, desen- banística, tributária ou jurídica, mas os obje-
volvimento econômico etc. O plano diretor tivos são de natureza físico-territorial. A ter-
não é uma peça puramente científica e téc- ra urbana, a terra equipada, eis o grande ob-
nica, mas uma peça política, vinculada tão- jeto do plano diretor. Essa posição “urbanís-
somente aos poderes e atribuições de um tica” nada tem de determinismo físico. Trata-
governo municipal. Seu poder político de “in- se de adequar o plano diretor aos limites do
fluenciar” outros níveis de governo é peque- Poder municipal e não tratá-lo como compên-
no e será nulo se o próprio governo munici- dio de análise científica do urbano, da urba-
pal não der credibilidade ao plano. nização contemporânea ou do desenvolvi-
mento social e econômico regional. A
É claro que as propostas urbanísticas po- superestimação dos poderes de um plano
dem ter – e em geral têm – implicações eco- diretor ainda é um dos mecanismos mais uti-
nômicas e financeiras. Entretanto, aquelas lizados pela ideologia dominante para des-
referentes ao desenvolvimento econômico, moralizar o planejamento urbano.
dadas as limitações do governo municipal,
são de alcance muito restrito num plano di- Para os movimentos populares, especialmen-
retor. Na esfera da produção imobiliária, en- te os ligados à terra e à habitação, o plano
tretanto, o governo municipal tem condição diretor tornou-se um instrumento desgastado

245
O MUNICÍPIO NO SÉCULO XXI: Cenários e Perspectivas

em virtude das possibilidades que vinha apre- As facções da classe dominante brasileira,
sentando de ser manipulado e desvirtuado com interesses mais ligados à produção do
pelos setores reacionários que dominam a espaço urbano, estão na seguinte encruzi-
produção do espaço urbano. Em conse- lhada. Por um lado, têm cada vez menos
qüência, a elaboração de vários planos dire- condições de fazer planos que revelem suas
tores para importantes cidades do País, no reais propostas para nossas cidades e, por
início dos anos 90, não conseguiu mobilizar outro, não têm condições de fazer planos
os movimentos populares urbanos. que atendam às necessidades da maioria
de suas populações. Por paradoxal que pos-
É muito significativo que tenham sido exata- sa parecer, a obrigatoriedade de elaboração
mente aspectos urbanísti- de plano diretor, constan-
cos – referentes ao uso e te da Constituição de 88,
ocupação do solo – aque- O início da politização não representa outra coi-
les que mais geraram po- sa senão um discurso
lêmicas, mobilizaram as dos planos caracteriza-se com o qual aquelas fac-
forças do atraso, impedi- ções procuram ocultar
ram a aprovação de vários pelo início dos debates e esse dilema.
planos diretores ou esteri-
lizaram a ação dos que fo- processos de negociação Essas facções poderão
ram aprovados. Isso reve- continuar governando
la que, finalmente, veio à de natureza política, en- nossas cidades por algum
luz aquele aspecto que vi- tempo, construindo suas
nha sendo ocultado pela tre interesses que clara- (delas) obras, mas sua
ideologia do plano diretor: frágil hegemonia na esfe-
os interesses mais vincula- mente aparecem como ra urbana dificulta o anún-
dos ao espaço urbano cio prévio de tais obras,
conflitantes. ou seja, os planos. Tudo
O início da politização dos indica que aquela classe
planos caracteriza-se pelo deverá evitar planos dire-
início dos debates e pro- tores num futuro próximo,
cessos de negociação de natureza política pois, em que pese a pequena participação
entre interesses que claramente aparecem das organizações populares, a elaboração
como conflitantes. O setor imobiliário, que dos planos vem sendo crescentemente
tem crescido e se organizado tanto ultima- politizada e se transformando, no mínimo, em
mente, especialmente com o advento dos momentos desagradáveis para os interesses
incorporadores, surge, na arena política, dominantes. Embora até agora vitoriosos, é
como a facção do capital mais diretamente provável que eles venham a evitar a repeti-
interessada no espaço urbano e, por isso, li- ção de tais momentos.
derando vários outros grupos empresariais,
como os da construção civil e o comércio em As camadas populares também não têm de-
geral e os grandes escritórios de engenharia monstrado grande motivação em participar
e arquitetura. de debates sobre planos diretores, e é pro-
vável que se inicie um novo período de mu-
Não dispomos de um levantamento comple- tismo semelhante aos do passado. Assim,
to dos debates ocorridos no início dos anos são pequenas as possibilidades de elabora-
90 em torno dos diversos planos diretores ção de planos diretores no Brasil, num futuro
elaborados no País, mas mesmo sem esse próximo. A luta pela reforma urbana entre-
levantamento, é certo que, na maioria das tanto, deve continuar em várias frentes, cada
cidades importantes, as forças do atraso sa- uma com suas peculiaridades e com diferen-
íram vitoriosas. (Ribeiro e Santos Jr., 1994) tes oportunidades para lideranças populares,

246
Desenvolvimento Físico-Territorial

técnicos e políticos progressistas. criado, o Fundo Municipal de Urbanização,


a regularização fundiária de favelas e as
O Estatuto da Cidade – que há mais de dez Zonas Especiais de Interesse Social-Zeis.
anos está sendo aguardado para regulamen- • Do esvaziamento dos planos de retóricas
tar o artigo 182 da Constituição Federal – é inconseqüentes.
uma frente, talvez a mais importante, pois • Finalmente, dependem de um seriíssimo
dela depende muito a futura credibilidade de teste pelo qual o “solo criado” ainda não
eventuais planos diretores. Os movimentos passou; o teste de sua passagem pelo
populares setoriais – por terra urbana, habi- Poder Judiciário, sabidamente conserva-
tação ou transporte – são outra, e o plano dor. Esse é um trunfo que o setor imobiliá-
diretor será uma terceira frente. Além do Es- rio guarda na manga do paletó.
tatuto da Cidade, o futuro dos planos direto-
res depende: O destino do planejamento no Brasil atual,
• Dos desdobramentos dos conflitos entre o perfil, a credibilidade e o conteúdo dos
os interesses ligados, de um lado, à pro- planos diretores estão assim ligados aos
dução e comércio de terra e de imóveis avanços da consciência de classe, da or-
em geral, e, de outro, os ligados ao seu ganização do poder político das classes po-
consumo. Desses desdobramentos de- pulares. Esse é um processo vagaroso,
pende o futuro de questões centrais, como uma vez que no Brasil, como diz Martins,
a aplicação prática do princípio da função nossa história é lenta, pois é grande O Po-
social da propriedade imobiliária, o solo der do Atraso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAVALIERI, Paulo Fernando. Plano diretor de 1992 da cidade do Rio RIBEIRO, Luís César de Queiróz, SANTOS Jr. Orlando Alves, org.
de Janeiro: possibilidades e limites da reforma urbana. In: RIBEIRO Globalização, fragmentação e reforma urbana. Rio de Janeiro: Ci-
e SANTOS JR. Globalização, fragmentação e reforma urbana. vilização Brasileira, 1994.

FELDMAN, Sarah. São Paulo, 1947-1972: planejamento e zoneamento. ROLNIK, Raquel, et alii. São Paulo, crise e mudança. São Paulo: Pre-
Tese de doutorado apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urba- feitura de São Paulo, Brasiliense, s.d.
nismo da USP, 1996. SINGER, Paul. Um governo de esquerda para todos. São Paulo:
MARTINS, José de Souza. O poder do atraso. São Paulo: Hucitec, 1994. Brasiliense, 1996.

247

Você também pode gostar