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Ministério da Educação

Universidade Federal do Piauí – UFPI


Campus Ministro Petrônio Portela
Centro de Ciências da Educação – CCE
Departamento de Fundamentos da Educação - DEFE
Prof. Dr. Heraldo Aparecido Silva

SOLIDARIEDADE E CRUELDADE EM RORTY: O USO DAS HISTÓRIAS EM


QUADRINHOS AUTOBIOGRÁFICAS EM SALA DE AULA

MÁRCIO HENRIQUE MATOS SOUSA

TERESINA
2019
SOLIDARIEDADE E CRUELDADE EM RORTY: O USO DAS HISTÓRIAS EM
QUADRINHOS AUTOBIOGRÁFICAS EM SALA DE AULA

Trabalho de Conclusão de Curso como parte


dos requisitos necessários para obtenção da
graduação em Licenciatura em Pedagogia
pela Universidade Federal do Piauí. Sob a
orientação do Prof. Dr. Heraldo Aparecido
Silva.
AGRADECIMENTOS

A Deus por ter me dado saúde e disposição para conclusão deste trabalho,
resultado de meses de pesquisas, dividindo o tempo entre as disciplinas do curso e
o TCC.

Grato ao prof. Dr. Heraldo Aparecido Silva pela amizade, confiança e tempo para
orientação com materiais, reflexões e ideas de como produzir pesquisas no campo
da filosofia da educação, trabalho iniciado ainda nos primeiros períodos da
graduação, desde a participação em eventos acadêmicos, apresentações de
comunicação oral, publicação de artigo e agora a finalização do TCC.

A Universidade Federal do Piauí – UFPI através dos funcionários, docentes e


administração do Centro de Ciências da Educação – CCE e seus departamentos
tornando possível o pleno funcionamento da instituição.

A minha mãe Márcia que nunca deixou de acreditar no meu potencial, aos amigos
de turma e que a universidade me presenteou em especial a Ester Sousa pelo apoio
e incentivo aos meus projetos, aos conhecidos e amigos fora da universidade que
torceram pra que tudo desse certo.

Ao Tiago da Xerox pela amizade e o compartilhamento de conhecimentos sobre


quadrinhos, e que segurou as pontas na impressão de material mesmo quando o
dinheiro faltava, além de me presentear com a obra: Uma Metamorfose Iraniana -
Mana Neyestani, HQ autobiográfica utilizada neste trabalho.

E a todos que direta ou indiretamente contribuíram para minha formação.


RESUMO

As histórias em quadrinhos autobiográficas são conhecidas por representar a vida


do autor ou registrar um determinado fato histórico segundo seu ponto de vista.
Essas histórias também podem ser utilizadas em sala de aula para estimular a
aprendizagem e a imaginação dos alunos. O interesse sobre a temática surgiu como
forma de facilitar a compreensão dos conteúdos de História pelos alunos do ensino
fundamental, além de trabalhar as noções rortyanas de solidariedade e crueldade
através das histórias em quadrinhos, como uma nova alternativa para o uso do
gênero em sala de aula, visto que as HQs, em sua maioria, tem seu potencial
limitado nos livros didáticos porque aparecem apenas para servir como ilustração ou
tema para outros gêneros. Rorty, como um entusiasta dos gêneros narrativos, inclui
os quadrinhos como responsável por propiciar aquilo que a teoria não consegue
alcançar. Assim, mediante o uso de quadrinhos autobiográficos o indivíduo será
capaz de se sensibilizar pelo sofrimento do outro, ainda que o mesmo não lhe seja
alguém conhecido ou familiar; se importando com o seu semelhante que passa por
situações de dificuldades.

Palavras-Chave: História em Quadrinhos. Solidariedade. Crueldade. Filosofia da


Educação. Neopragmatismo.
ABSTRACT

Autobiographical comics are known to represent the author's life or record a certain
historical fact from his point of view. These stories can also be used in the classroom
to stimulate students' learning and imagination. Interest in the subject emerged as a
way to facilitate the understanding of the contents of History by students of
elementary school, since as HQs, in most cases, it has its limited potential in
textbooks because they appear only to serve as an illustration or theme for other
genres. Rorty as a enthusiastic of narrative genres, includes comics as propitiating
what a theory can not achieve. Thus, through the use of autobiographical comics or
the individual will be able to sensitize to the isolation of the other, even if the same is
not known or familiar; caring for its identical goes through difficult situations .

Keywords: Comics. Solidarity. Cruelty. Philosophy of Education. Neopragmatism.


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .............................................................................................. 07

2. PERCURSO METODOLÓGICO ................................................................... 10

3. SOLIDARIEDADE E CRUELDADE EM RORTY .......................................... 12

4. ANÁLISE DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS AUTOBIOGRÁFICAS ......14

4.1 HQ 1 ........................................................................................................ 14

4.2 HQ 2 ........................................................................................................ 16

4.3 HQ 3 ........................................................................................................ 19

4.4 HQ 4 ........................................................................................................ 22

5. CRUELDADE E SOLIDARIEDADE NAS HQS AUTOBIOGRÁFICAS........ 25

5.1 Conflitos no século XX: Solidariedade e Crueldade em Rorty ......... 26

5.2 Sugestão de planejamento para aulas de História a partir das HQs


autobiográficas ....... 34

6. CONCLUSÃO ............................................................................................... 36

REFERÊNCIAS ............................................................................................ 37
7

1. INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem o objetivo de abordar a importância das histórias


em quadrinhos (HQs) em sala de aula, especificamente as histórias em quadrinhos
autobiográficas, definindo a sua origem, características e função, como forma de
compreensão e sensibilidade sobre os conceitos de crueldade e solidariedade em
sociedade, segundo as perspectivas do filósofo americano neopragmatista Richard
Rorty.
As histórias em quadrinhos autobiográficas também conhecidas como
quadrinhos de não-ficção ou quadrinhos autorais, recebem essas denominações por
apresentarem um ponto de vista baseado nas experiências do autor, sobre um
determinado contexto sócio-histórico e político (PAIVA, 2011).
Os quadrinhos autobiográficos receberam influência do movimento
underground de quadrinhos norte-americano, não necessariamente em relação ao
conteúdo, já que segundo Mazur (2014) a estética underground livre de censura
ultrapassava os limites dos quadrinhos convencionais (violência extrema, nudez,
sexo, vícios e etc), mas na sua forma tendo como característica a
autorrepresentação ou relato sobre a realidade vivida pelo autor, ou seja, o autor se
torna protagonista ou observador dos fatos.
A respeito disso, Mazur (2014, p.23) relata que: “Pela primeira vez, os
criadores de quadrinhos, em número significativo, escreviam e desenhavam para se
expressar, sem censura ou interferência editorial, e continuavam donos de suas
criações.”
Os quadrinhos Underground no Brasil se destacaram nos anos 80,
inspirados também no movimento de contracultura americano, os cartunistas e
chargistas brasileiros como Angeli, criador de Rê Bordosa e Wood & Stock; Glauco,
criador de Geraldão e Geraldinho; e Laerte criador de Overman e Piratas do Tietê;
tratavam em suas obras sobre os conflitos entre tribos urbanas (rockeiros, hippies,
punks e etc.) e faziam críticas as mazelas sociais do país: pobreza, drogas, violência
urbana e etc.
O movimento de quadrinhos underground norte-americano passa por
transição:

De meados dos anos de 1970 até meados da década seguinte, viu-se a


transição dos quadrinhos underground para os independentes ou
alternativos. O que se deu sem solução de continuidade, com a condução,
8

em grande parte, por artistas do movimento underground [...] uma primeira


tentativa de redefinir e dar uma nova roupagem aos quadrinhos
independentes e fazer sua releitura na era pós-underground (MUZE R, 2014,
p. 41).

Os quadrinhos independentes se consolidam durante a década de 1970,


mas é nos anos 90 que há maior busca pela autobiografia, período em que vários
cartunistas alternativos criam interesse em produzir quadrinhos autobiográficos,
destacando em suas produções desde diálogos sobre si, até relatos das memórias
de personagens (MUZER, 2014).
Nos contextos de conflitos culturais, sociais, religiosos, diplomáticos entre
outros, os quadrinhos autobiográficos abordam os problemas nos grandes centros
urbanos, que afligem a coletividade. Na obra Persépolis, de Marjane Satrapi, há o
registro da infância da autora até a fase adulta durante o processo de revolução
islâmica no mesmo país assim como Guy Delisle em Crônicas de Jerusalém, relata
sua vivência entre várias culturas no território de Israel, e também sua visita a
trabalho na capital da coreia do norte, em Pyongyang (SATRAPI, 2007; DELISLE,
2007,2012).
Nessa perspectiva, a descrição a partir do gênero narrativo, como aquilo que
nos ajuda a perceber o valor do próximo, ocorre no instante em que criamos empatia
e nos colocamos no lugar do outro, nos tornando mais solidários e menos cruéis em
relação aos nossos semelhantes que sofrem humilhações diversas (RORTY, 2007).
As histórias em quadrinhos são um gênero narrativo independente que
estimula a imaginação dos alunos, por possuírem características próprias, fazendo
relação entre o texto, a imagem e os balões.
Os relatos históricos representados nos quadrinhos expandem a
possibilidade de trabalho em sala de aula. As imagens concretizam o aprendizado
antes limitado à imaginação, o formato dos balões definem as reações dos
personagens, os textos auxiliam no processo de ensino e aprendizagem da leitura,
ou seja, os recursos disponíveis nas histórias em quadrinhos atuam em conjunto,
por isso, temos a possibilidade de trabalhar com a interdisciplinaridade de
conteúdos.
Como os conteúdos de História requerem conhecimento acumulado,
baseados nas vivências e experiências dos alunos, lecionar a disciplina sem o
auxílio de outros materiais, dificulta a aprendizagem das temáticas trabalhadas pelo
professor (VICENTINO, 2013).
9

Os quadrinhos se tornaram uma política educacional no país, através dos


Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN – Referencial de qualidade para a
educação no ensino fundamental) e do Programa Nacional Biblioteca na Escola
(PNBE – Programa responsável por fornecer obras e materiais de apoio no ensino
público das redes federal, estadual, municipal e do distrito federal na educação
infantil, ensino fundamental, ensino médio e educação de jovens e Adultos – EJA).
A utilização das HQs no ambiente escolar tem por objetivo compreender a
linguagem (Língua Portuguesa), desenvolver a leitura (interpretação de texto),
facilitar o aprendizado de conteúdos abstratos (história e geografia) e auxiliar no
entendimento de outras disciplinas (interdisciplinaridade) através de seus recursos
e obras.
Com o PNBE de 2006, surge um movimento para a inclusão dos quadrinhos
na área de ensino, citado entre os gêneros literários listados: (poesia, conto,
crônica, romance e etc.), sendo que nesse período várias obras clássicas da
literatura universal foram adaptadas para o gênero literatura em quadrinhos.
No PNBE de 2008 nas obras direcionadas ao ensino infantil, não teve títulos
de quadrinhos entre as 60 obras listadas, e do ensino fundamental apenas 7 de
100 obras. Já no PNBE de 2009 apesar do interesse maior ainda ser na aquisição
de títulos literários, os quadrinhos na interpretação do governo federal é tido como
gênero literário, sem necessariamente ter que ser adaptado, podendo migrar
também para o ensino médio (VERGUEIRO; RAMOS, 2009).
De acordo com o diagnóstico elaborado pelo PNBE, os critérios para seleção
de histórias em quadrinhos, feito por pesquisadores na área de teoria e ensino
literário e técnico do MEC, precisam ser revistos, tanto nos livros como nas
histórias em quadrinhos, fazendo relação entre texto e a imagem, além do
tratamento estético na leitura das narrativas visuais. Uma vez que os quadrinhos
constituíram seus recursos próprios de linguagem, e por isso são uma arte
autônoma, assim como o cinema, a dança, a pintura, a literatura e etc.
(VERGUEIRO; RAMOS, 2009).
10

2. PERCURSO METODOLÓGICO

O procedimento metodológico empregado no trabalho foi de caráter teórico-


interpretativo baseado em pesquisas bibliográficas que, para a obtenção de
informações tem a necessidade de leituras sucessivas do material de estudo. Assim,
o caráter teórico acontece a partir da reflexão do pesquisador depois de analisar os
documentos escritos originais denominados de fontes primárias. Enquanto o
carácter interpretativo analisa as ideias expressas na obra quando relacionadas ao
problema que se pretende buscar resposta (SALVADOR, 1986).
Dessa maneira, foi importante a leitura de autores que constituíram o aporte
teórico central, utilizado para interpretar as histórias em quadrinhos (HQs) escolhidas
para conceituar a temática proposta, procedimento característico na modalidade de
pesquisa bibliográfica.
Segundo Gil (1994) a importância desse tipo de pesquisa está na
possibilidade da utilização de dados de inúmeras publicações, como forma de
construir o quadro conceitual da proposta do objeto de estudo.
Escolhido o tema do trabalho de conclusão de curso (TCC) foram definidas
as histórias em quadrinhos autobiográficas a serem trabalhadas, o aporte teórico
principal e os secundários que auxiliariam na interpretação das HQs.
Como aporte teórico principal foi definido Rorty (2007) e os aportes
secundários citados em sua obra Contingência, Ironia e Solidariedade. Desse modo,
os autores utilizados por Rorty, tais como: Freud, Davidson, Hegel, Foucault, foram
importantes para embasar a discussão sobre os sentimentos de crueldade e
solidariedade nas sociedades do século XIX e, também, na contemporânea,
principalmente, em situações de conflitos. Além de fontes documentais diversas:
livro didático, quadrinhos, e artigos.
As histórias em quadrinhos escolhidas abordavam em sua temática conflitos
do pós-guerra (primeira e segunda guerras mundiais) no século XX: Crônicas de
Jerusálem e PyongYang, de Delisle; Uma Metamorfose Iraniana, de Neystani; e
Persépolis, de Satrapi (DELISLE, 2007,2012; NEYESTANI, 2015; SATRAPI, 2007).
Nas obras mencionadas, são relatadas histórias de acordo com as experiências
vivenciadas por seus autores; e, por isso, são denominadas de HQs autobiográficas.
Após a leitura e descrição das HQs, foram relacionados os conteúdos das
histórias que tratavam sobre situações de crueldade e solidariedade, aos aportes
11

teóricos que tiveram como função conceituar, descrever como ocorre e por que
ocorrem essas situações na sociedade.
Rorty (2007) tinha nos autores de literatura conselheiros morais capazes de
alertar, instruir e ensinar o indivíduo sobre situações presentes e futuras do seu
cotidiano por isso acreditava nos gêneros narrativos para alcançar a verdade.
A metodologia é responsável por tornar explícito as diversas opções
teóricas, que vão fundamentar as consequências do caminho escolhido para
compreensão de uma dada realidade, e a relação do homem com ela (MINAYO,
1994, p. 22).
Por isso o intuito de associar os estudos de Rorty aos conteúdos abordados
nas HQs para criar uma ferramenta na educação que auxiliasse no processo de
ensino aprendizagem das aulas de História, estimulando nos alunos o sentimento de
solidariedade em relação às situações de Crueldade nos conflitos sociais,
associando à realidade deste aluno na sociedade atual.
12

3. SOLIDARIEDADE E CRUELDADE EM RORTY

Segundo Marcondes (2001) em sua obra Iniciação à História da filosofia, na


linha do tempo, a filosofia estaria identificada por períodos: filosofia antiga, filosofia
medieval, filosofia moderna e filosofia contemporânea.
O filósofo americano Richard Rorty herdeiro da corrente filosófica
pragmática, movimento norte-americano baseado nas ideias de Charles Sanders
Peirce e William James, se destacou na filosofia contemporânea por reinventar uma
forma de pensar filosoficamente como a sociedade pode ser transformada a partir da
política cultural e da expansão da solidariedade humana.
Em seu livro Contingência, Ironia e Solidariedade (2007), Rorty faz críticas
sobre a filosofia tradicional, principalmente Platão e Kant, afirmando que a mesma
não deveria se pautar apenas na busca de uma verdade absoluta e conceitos
universais sobre a realidade, já que para o filósofo norte -americano a sociedade é
contingente, ou seja, sua própria produção intelectual é proveniente do contexto em
que está inserida.
Então, por acreditar numa nova reflexão que rompe a antiga maneira
tradicional de pensar a filosofia, Rorty é conhecido também por ser neopragmático,
buscando no vocabulário, na linguagem, nas redescrições e na cultura literária,
formas de entender as transformações da sociedade em vários âmbitos.
Como filósofo neopragmático, ao abordar suas reflexões, Rorty utilizou como
aporte filosófico os idealistas alemães: Hegel, Nietzsche, Heidegger, assim como
outros pensadores europeus: Wittgenstein, Foucault e Derrida.
Além da colaboração de Freud com sua psicologia moral, como nosso
teólogo e filósofo moral, pois na cultura contemporânea nos facilitou identificar a dor
da nossa consciência, ao nos dar detalhes sobre coisas que acontecem na formação
da consciência moral, através dos seus estudos sobre os desejos inconscientes e os
comportamentos e sentimentos vivenciados pelas pessoas, o motivo de em algumas
situações sentirmos uma culpa insuportável, angústias e até mesmo ódio.

Freud nos mostra por que deploramos a crueldade em alguns casos, mas
nos deleitamos com ela em outros. Mostra-nos por que nossa capacidade
de amar restringe-se a algumas formas, tamanhos e cores muito
particulares de pessoas, coisa ou ideias. Mostra -nos por que nosso
sentimento de culpa é despertado por certos eventos muito espec íficos e,
em tese, perfeitamente insignificantes, e não por outros que, segundo
qualquer teoria moral conhecida, teriam muito mais vult o. Além disso, ele dá
a cada um de nós o instrumental para c onstruir nosso vocabulário privado
de deliberações morais (RORTY, 2007, p. 71-72).
13

Rorty (2007) afirma que há aproximadamente 200 anos, surgiu na Europa a


ideia, em relação à verdade, que a mesma ao invés de ser descoberta, era
produzida. Além disso, a Revolução Francesa mostrou que todo o vocabulário
utilizado nas relações e instituições sociais, poderia passar por um processo de
substituição, à medida que a sociedade fosse mudando.
Entre os intelectuais da época, a política utópica foi adotada como regra,
tendo interesse na mudança dessa sociedade. Para o filósofo neopragmatista: “A
política utópica deixa de lado as indagações sobre a vontade de Deus e a natureza
do Homem, e sonha criar uma forma de sociedade anteriormente desconhecida”
(RORTY, 2007, p.25).
Nesse sentido, houve uma descrição do mundo por filósofos alinhados ao
utopismo político, Iluminismo, além de poetas românticos e pensadores no século
XIX, discutindo em suas teorias sobre diversos temas como, por exemplo, a
solidariedade e a crueldade.
Solidariedade e a Crueldade são ações ou sentimentos que fazem com que
venhamos a nos identificar com o próximo, pelos interesses em comum dos
membros de um mesmo grupo ou de um grupo diferente.
Para Rorty, a partir do momento que houve um aumento da sensibilidade
dentro da sociedade, é criada a solidariedade. Sendo assim olhar o próximo sem se
importar como se não fosse um de nós fica mais difícil.
Nessa perspectiva a descrição a partir do gênero narrativo, como aquilo que
nos ajuda a perceber o valor do próximo, ocorre no instante que criamos empatia e
nos colocamos no lugar do outro, nos tornando mais solidários e menos cruéis em
relação aos nossos semelhantes (RORTY, 2007).
Rorty (2017) afirma que as histórias em quadrinhos têm a função de explicar
aquilo que a teoria não consegue, quando se trata da sensibilidade e humilhação de
outros. Assim o indivíduo será capaz de se sensibilizar pelo sofrimento do outro,
ainda que o mesmo não lhe seja alguém conhecido ou familiar. Levando-se em
consideração as pesquisas feitas sobre as histórias em quadrinhos autobiográficas
(origem, caracterização e função) assim como os estudos de Rorty a respeito da
solidariedade e crueldade, é possível compreender a importância do uso dos
quadrinhos em sala como elemento formativo do indivíduo, no momento que o ser
se sensibiliza com a situação do outro, mesmo que esse não seja ente familiar.
14

4. ANÁLISE DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS AUTOBIOGRÁFICAS

4.1 Persépolis

Figura 1 – Capa de Persépolis (Companhia das Letras)

Marjane Satripi é uma romancista gráfica, cineasta, ilustradora e escritora


franco-iraniana que teve sua autobiografia produzida em quadrinhos e animação, a
obra de título Persépolis (termo relacionado à antiga região da Pérsia) que retrata
sua infância e juventude em Teerã Capital do Irã, como criança de 10 anos que
passou por dificuldades de se adaptar a cultura do seu país baseada no Islamismo,
que rejeita qualquer cultura estrangeira, principalmente as relacionadas ao ocidente
como a roupa, a língua, a música e a liberdade da mulher.
O primeiro conflito se dar durante os anos 80 em relação ao uso do Véu,
enquanto na sua escola as crianças brincavam com o véu, em várias partes do país
as mulheres no Irã se manifestavam umas contra e outras a favor do uso dele,
período que Marjane presencia a Revolução Islâmica (1979), um regime político que
impõe normas para a população, tendo como base o Islã, e cuja desobediência
geram duras punições.

Em 2019 o Irã completou 40 anos de Revolução Islâmica, e desde 1979 os


iranianos ainda sonham com conquistas de liberdades individuais, independência e
o fim de um regime rígido, depois da punição de tantas pessoas por enforcamento,
prisão, amputação e etc.
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Marjane se sentia oprimida mesmo sendo criança, pois apesar de ter pais
modernos, nasceu dentro de uma religião que lhe foi imposta, e valorizava sempre o
homem, deixando de lado as vontades e direitos da mulher.
Pensando nisso a garota brincava de criar seu próprio livro sagrado,
colocando datas comemorativas e regras que incluíam as pessoas marginalizadas
pelo governo. Algo compartilhado somente com sua avó.

Em uma determinada ocasião seus pais foram chamados à escola, porque


na aula a garota disse que seria profeta quanto crescesse. A coordenadora achou
que a menina tivesse perturbada, sendo que a situação era apenas reflexo do
contexto histórico vivido por Marjane.

Marjane mesmo criança era além de sua época, e por se preocupar com o
sofrimento das pessoas a sua volta, ela estava sempre lendo pensadores, filósofos e
revolucionários, pessoas que fizeram a diferença em seus países e agora servia
para garota como influência para mudança de seu país.
A garota possuía as características de sua mãe, não apenas em aparência,
mas também na personalidade em lutar por seus direitos, se revoltar com a injustiça
sofrida pelos outros, e bater de frente contra o regime de forma sutil ou mesmo em
manifestações. A mãe de Marjane era ocidental e por isso compreendia a revolta e
pensamentos confusos em relação a política do país.

Marjane foi crescendo e cada vez mais questiona ndo o regime, e já


chamava muito atenção dos professores, alunos e direção da escola como um
exemplo a não ser seguido. Como consequência disto, os pais da garota, agora uma
adolescente, temiam pela integridade da filha. Então seus pais chegaram a
conclusão que a melhor maneira dela não ser perseguida e presa pelo governo seria
enviando-a para fora do país.
Assim fizeram e Marjane aos 14 anos vive em Viena (Áustria), hospedada
em um pensionato de freiras, cheio de regras com horário pra chegar e sair. A
menina ainda não tinha liberdade e por não se adequar as regras, vai morar com a
família de uma amiga da sua mãe.
Mesmo nesse novo lar, Marjane não é bem recepcionada, pois via
constantes brigas dos pais de sua amiga, e depois de um tempo a própria amiga da
mãe de Marjane “sugere” que a menina procure uma pensão pra morar.
Em Viena terminou o ensino médio numa Liceu Francês, e durante este
período passou por vários lugares entre casa de amigos para economizar dinheiro,
16

repúblicas, pensionatos e quando o dinheiro acabou chegou a morar na rua, sofreu


por pneumonia devido ao frio, fome e péssimas condições de vida quando esteve
desabrigada.
Depois de tanto tempo já com mais de 20 anos Marjane finalmente retorna
ao Irã, conhece um rapaz chamado Reza e mesmo contra a vontade de seus pais,
ela estava decidida a casar-se, e aos 21 anos Marjane se casa, o seu casamento
depois de tantas brigas e desentendimentos chega ao fim após 3 anos.
Marjane já morando novamente em Teerã se forma em Comunicação Visual,
e posteriormente obtém uma pós-graduação (Mestrado) pela faculdade de Belas
Artes de Teerã, atualmente mora em Paris onde trabalha como ilustradora e autora
de livros infantis.
Persépolis foi primeiramente publicado em francês, depois traduzido para
outros idiomas, além de concorrer ao Oscar em (2008) como melhor filme
estrangeiro, uma produção de mesmo nome no formato de animação, escrito e
dirigido por Marjane, uma história que sensibilizou muitas pessoas pelo mundo, e
mesmo não ganhando o Oscar foi vencedor de vários prêmios no mesmo ano
(2007).

4.2 PyongYang

Figura 2 – Capa de Uma Viagem à Coréia do Norte. (Zarabatana Books)

Guy Delisle também é o autor que publica Pyongyang (2007), baseado na


sua experiência na Coréia do Norte, enquanto prestou serviços no país. Fato que
aconteceu antes da sua experiência e posterior publicação da obra: Crônicas de
Jerusalém (2012).
17

Pyongyang é a Capital da Coreia do Norte, que possui um regime político


republicano baseado no culto de personalidade a figura pública do ditador Kim Jong
- II, atualmente assumida por Kim Jong-Un que substituiu o seu pai em 2011.
Conhecida por pertencer ao Eixo do Mal (Irã e Síria), por não assinarem o
pacto de não proliferação de armas nucleares, acordo que só permite a posse de
armamentos nucleares aos países vencedores da Segunda Guerra Mundial, a
Coréia do norte e países desse Eixo sofrem constantemente a sanção de países
como EUA e Israel, como precaução de uma possível guerra nuclear.
Guy relata suas experiências de dois meses no país, quando prestou
serviços como supervisor de um estúdio de animação francês. E passa a vivenciar
experiências numa nova cultura, bastante diferente da sua, que começa na sua
chegada ao país após o desembarque, uma vez que todo estrangeiro que vai a
Coreia é considerado suspeito.
Por possuir um regime que nega a cultura estrangeira, as autoridades do
país são orientadas a não permitir a entrada de livros, vídeos e qualquer material
que venha a comprometer a cultura do país.
Os estrangeiros que chegam à Coréia são orientados sobre o que devem ou
não utilizar dentro país e o descumprimento pode acarretar até em prisão. Guy teve
seu celular confiscado no aeroporto sendo devolvido somente quando saísse do
país, e além de permitir somente a entrada de alguns livros (dependendo do
conteúdo) e determinados tipos de alimentos, dando preferência para frutas.
Guy relata como a Coréia é fechada aos estrangeiros constantemente
fiscalizados, a liberdade de imprensa é limitada, e o uso de internet é restrito, assim
como a presença de militares em vários pontos da cidade para manutenção da
ordem, preservação e respeito à imagem do Imperador.
Para o estrangeiro não é permitido andar sozinho se não for acompanhado
por um guia, um intérprete e/ou alguém do país independente da situação, além da
rigidez contra propinas e a proibição de fazer humor e/ou ser desrespeitoso a figura
do imperador.
Durante a revista no aeroporto, Guy consegue passar pela inspeção um livro
de ficção chamado 1984 do autor George Orwell que faz crítica a um regime
ditatorial numa sociedade onde seus cidadãos eram constantemente vigiados em
qualquer lugar que estivessem ou se deslocassem. A onipresença do Grande Irmão
(Big Brother) causava ansiedade e medo, pois as pessoas se sentiam aterrorizadas
ao saberem que o menor descumprimento da lei, uma punição severa era certa.
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A crítica feita por esse livro coincide exatamente com a situação que Guy
presenciou dentro do país: os habitantes não só respeitavam o líder da nação como
um chefe de estado que representa um cargo político, mas também o reverenciavam
dando a ele o status de ser divino.
A presença de Kim é constante em qualquer lugar do país, dentro das
habitações através de quadros e programas de rádio que transmitem conteúdos do
governo, nas instituições privadas ou públicas e principalmente nas ruas, onde são
erguidos monumentos, telões, outdoors, estátuas gigantes, e na cultura desde as
escolas até o local mais simples da capital Pyongyang a presença do político não
passa despercebida.
A população obedece cegamente tudo que é instruído pelo governo,
inclusive denunciando para as autoridades tanto estrangeiros como habitantes do
país, uma forma vista, por alguns, de ter reconhecimento e prestígio diante das
instituições públicas que representavam Kim.
Aquilo que fosse de fora da Coréia do norte (ideais políticos, propagandas
de consumo, marketing ao capitalismo, música, filmes, internet, moda, objetos
eletrônicos) são visto como artefatos suspeitos e por isso censurados pelo governo.
A comida no país era racionada, então rotineiramente faltavam alimentos
nos supermercados. Assim as empresas pagavam também seus funcionários com
sacas de arroz, e o sistema de iluminação não possuía capacidade necessária para
abastecer a cidade por completo, assim como se deslocar em Pyongyang durante a
noite ficava inviável.
Guy, quando não estava trabalhando, todos os dias saia com seu intérprete
para conhecer um pouco a capital, pois como não era permitido estrangeiro andando
sozinho pela cidade fotografando e filmando, quando turistas eram vistos se
deslocando por conta própria sem a companhia de alguém do país, poderiam ser
denunciados.
O pouco tempo de estadia na Coreia do Norte foi importante para Guy ter
experiência a uma nova cultura, totalmente diferente da sua, além de fazer amizade
com outros turistas e o reconhecimento do seu trabalho por uma empresa
estrangeira.
19

4.3 Crônicas de Jerusalém

Figura 3 – Capa de Crônicas de Jerusalém (Zarabatana Books)

Guy Delisle é um quadrinista canadense casado com uma administradora da


Organização Humanitária Internacional Médicos Sem Fronteiras, que viaja com sua
esposa para morarem em Jerusalém, e descreve sua impressão em relação à
cidade durante o período que esteve no local, tratando temáticas como: cultura,
governo e política.
Antes de chegar a Jerusalém ainda no avião, Delisle conhece um sujeito que
aparentemente parecia um russo, e não falava nenhum idioma que pudesse
identificar, porém ao notar uma tatuagem no braço do passageiro, percebeu que
estava ao lado de um sobrevivente dos campos de concentração durante a Segunda
Guerra Mundial.
Após a aterrissagem, recepção e deslocamento pela ONG no aeroporto e
com a família (esposa e filhos) estabelecida no novo local de moradia, Guy passa
sua primeira noite em Jerusalém.
O Estado de Israel foi criado onde hoje se encontra a região da Palestina,
após a Segunda Guerra Mundial, e está localizado em zona de conflitos bélicos, por
possuir em suas fronteiras povos árabes que reivindicam seu território, inclusive a
retomada da Capital Jerusalém, como é o caso dos refugiados da Faixa de Gaza,
território Palestino.
20

Jerusalém possui importância histórica e religiosa. Histórica devido à


diversidade étnica e cultural das civilizações que habitam na região, e religiosa por
ser disputada pelas três principais religiões monoteístas: Islamismo, Cristianismo e
Judaísmo. Logo cada uma dessas religiões considera sagrado um ponto diferente da
capital.
Devido a quantidade de expatriados que querem morar na parte palestina,
os aluguéis na região são muito caros, criando uma paisagem que mescla casarões
rodeados de entulho (rejeito de construção) e lixo.
Por razão de conflitos na região, pela constante troca de ataques entre Israel
e Palestina, o território de Israel é bastante militarizado com sirenes pelo país para
alertar sobre ataques aéreos.
Recentemente no dia 12 de abril de 2018, todas as sirenes do país foram
acionadas, e a população parou suas atividades como forma de lembrar a morte de
6 milhões de Judeus no Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial.
Na primeira manhã no país, Guy é acordado pelo som vindo das mesquitas,
vindo dos alto falantes no centro da cidade, responsáveis por transmitir a oração
muçulmana 5 vezes ao dia. E aproveita para inspecionar o novo apartamento, e
percebe que várias pessoas de outros países, também já estiveram hospedadas ali.
Cada apartamento possui uma pequena caixa d’água com o nome do proprietário,
conectada a uma placa solar.
Entre os objetos encontrados no apartamento havia aparelho de Dvd e de
Som, livros em espanhol, italiano, literatura juvenil, poesias, guia de viagem para
Chipre, dicionário francês, assim como pincéis e quadros pintados. No entanto, em
relação a comida, não havia nada mais que alguns caramelos, além de uma
geladeira vazia.
Ao sair para fazer compras com a filha, a primeira impressão de Guy foi que
Jerusalém em termos de estrutura apresenta muitas áreas precárias, como ausência
de calçadas, carros estacionados por todas as partes, local muito diferentes das
fotos dos guias, além de fazer um calor sufocante e sem opções de lugar para
compras.
O sistema de transporte da cidade é dividido em duas linhas, uma israelense
que funciona em toda cidade, exceto nos bairros árabes, e outra que só opera em
bairros árabes.
A parte que se encontra a cidade velha há um mercado livre e turistas
frequentam atrás de compras, caixas eletrônicos, mesquitas e restaurantes. Há
21

alguns pontos para manter a segurança do local, os Checkpoints (pontos de


verificação) onde soldados protegem o lugar e verificam os documentos de possíveis
suspeitos.
Quando sua esposa começa a trabalhar em Gaza e as crianças vão à
escola, Guy aproveita para conhecer Jerusalém Ocidental e acaba se perdendo,
mas também conhece outros bairros na região: Cristão, Armênio e Judeu.
O que mais preocupa Guy é que, Gaza e Jerusalém constantemente estão
se atacando, às vezes na fronteira com armas de fogo, outras vezes com mísseis,
fazendo vítimas nos dois territórios. A ONG Médicos Sem Fronteiras atua em áreas
de conflito, e por isso o risco de ferir inocentes é maior, dificultando até o retorno das
equipes para casa.
A ONU possui vários órgãos pelo mundo, entre eles a OCHA – Coordenação
de Ações Humanitárias, que desenvolvem ações sociais para quem necessita, e é
responsável por dar apoio ao MSF – Médicos Sem Fronteira.
Guy conhece um dos seus escritórios, ver mapas e descobre que todos os
escritórios que desenvolvem trabalhos na palestina, zonas ocupadas, ruas
bloqueadas, extensão do murro, checkpoints e outras informações relevantes, são
monitoradas pela ONG, além da realização de eventos uma vez por mês, para
funcionários e povos da região.
Dentro da cultura e religião é comemorado o mês do Ramadã, que todo ano
ocorre em períodos diferentes, com a mesma duração de 29 a 30 dias. Este é um
período de Jejum, caridade e maior reflexão aos mandamentos do Alcorão, onde os
adeptos além de realizarem boas ações, enfeitam suas casas dentro e fora.
Enquanto a sua esposa trabalhava, Guy deixava as crianças na escola e
aproveitava o tempo vago para se dedicar a seu blog, o que era difícil devido o
barulho das sirenes da cidade ou horário de limpeza da camareira no apartamento.
Nesse horário mais vago, se deslocava pela cidade em busca de conhecer a
região, fazer compras e aprender um pouco da cultura do lugar, já que muitos
imigrantes também vinham pra Israel. Guy fazia isso até chegar o horário de buscar
as crianças, já que poucas vezes conseguia se concentrar no apartamento.
Às vezes saia com os filhos e a esposa no carro da ONG, indo para outras
regiões de Israel, como Faixa de Gaza, Ramala e Cisjordânia. E notava as
divergências entre bairros árabes e assentamentos judeus. Pessoas vivendo até de
forma ilegal segundo o direito internacional, mas legalmente segundo Israel.
22

Quando viajou para participar de um festival de quadrinhos na Noruega e


Finlândia, teve que responder algumas perguntas no aeroporto antes de embarcar, e
durante a volta foi barrado, para responder mais perguntas por questão de
segurança, perdendo várias horas no aeroporto, quase perdendo o voo da volta.
Fato que também ocorreu quando viajou para um festival de quadrinhos em
Roma, pois sempre que as autoridades no aeroporto sabiam que sua esposa
prestava serviços em Gaza, região mal vista pela comunidade internacional,
aumentava a desconfiança sobre as reais intenções de Delisle durante suas
viagens. .
E durante o tempo que esteve em Jerusalém com a família Guy viajou para
países como Noruega, Finlândia e Roma, como palestrante a convite de festivais de
quadrinhos, e sempre tinha que responder questionários no aeroporto antes de
embarcar, e durante a volta era barrado novamente para responder um novo
questionário.
A convivência em Jerusalém com povos de diferentes nacionalidades e
cultura, e situações de ameaça e possíveis ataques terroristas, devido a divergência
política, religiosa e cultural fez com que Guy sentisse mais empatia pelo out ro,
principalmente porque conflitos armados e guerras civis não faziam parte da sua
cultura.

4.4 Uma Metamorfose Iraniana

Figura 4 – Capa de Uma Met amorfose Iraniana (Nemo)

Mana Neyestani é ilustrador nascido em Teerã capital do Irã, trabalhava


como ilustrador de suplemento infantil de um jornal iraniano e retrata a reviravolta
que ocorreu em sua vida a partir de 2006, após mal entendido como consequência
23

por publicação de um cartum, gerando perseguição, punição e censura pelo governo


vigente.
O Irã se localiza no oriente médio na região que foi conhecida por Pérsia, e
tem a população formada por diversas etnias descentes de tribos antigas, entre elas
os povos medos.
A dificuldade de convivência entre essa diversidade gera instabilidade e
conflitos entre os povos da região, tanto na parte interna como externa. Essas
características contribuíram para a tensão ocorrida depois da publicação de Mana.
Mana desenha um diálogo entre uma criança de 10 anos e uma barata,
nessa conversa a barata usa a palavra “Namana” e em seguida é esmagada pela
criança. Essa expressão é utilizada pelo próprio desenhista em situações de dúvida,
porém pessoas pertencentes ao grupo étnico autodenominados de Azeris
descendentes do país Azerbaijão e que moram no irã, interpretam essa expressão
da barata como referência ao sotaque do seu povo.
Depois de uma semana agitada, Mana ao chegar à redação do jornal com
um novo trabalho em Cd, é comunicado que o cartum teve repercussão como
ofensa aos povos Azeris e seus descentes e, por consequência, essas pessoas
exigiam retratação do governo iraniano além de punição do responsável pelo
cartum.
Uma ilustração para criança, cujo objetivo seria fazer humor acaba sendo
entendido como ofensa, e isso gera uma tensão política, conflitos entre povos e até
mesmo a censura do jornal que Mana trabalhava.
Por vários meses a vida de Mana mudou drasticamente, populares ligavam
constantemente para a redação do jornal cobrando explicações e a punição do
culpado.
Mana foi intimado pelo serviço de censura do país para depor sobre o fato,
apesar de declarar que não teve a intenção de publicar algo com teor ofensivo,
mesmo sendo acusado do contrário.
O desenhista passa a temer pela sua vida e a da esposa, pois aumentam as
perseguições, e como forma do jornal e o governo iraniano se livrarem da revolta
popular gerada pela publicação, colocam Mana como único responsável pela
situação.
Após semanas de depoimentos, as autoridades decidem que Mana era
culpado de todo transtorno gerado, e decidem por prendê-lo antes do julgamento
definitivo até a resolução do caso, pois as pessoas nas ruas do país faziam
24

manifestações violentas e algumas foram mortas em conflito com o exército. Então


para acalmarem os ânimos da população a prisão temporária do desenhista no
momento criaria a sensação das autoridades estarem tomando providências.
Mana foi coagido a confessar um crime que não cometeu, sofrendo pressão
psicológica e ameaças durante seus interrogatórios. Assim quando foi preso, a
sentença proferida pelo Juiz determinava como um mês de detenção provisória. No
entanto, de um mês a prisão foi estendida para três meses, nesse período o
desenhista entra no regime prisional com outra identidade como forma de proteção a
sua integridade, já que o caso teve tamanha repercussão e poderia gerar revolta
entre os presos.
O desenhista conviveu com prisioneiros sentenciados por diversos crimes,
desde assalto a bancos a inimigos declarados do governo, e durante esse tempo
preso Mana sofreu muita pressão, alucinações, presenciou situações de violência,
se alimentando mal, sem ao menos ter certeza de quando seria liberto.
Após sair da prisão Mana foi informado que sua liberdade ainda não estava
garantida, então o desenhista ficaria em liberdade condicional até que fosse decidido
pelo Juiz se ele seria culpado ou inocente. Porém a possibilidade de retornar a
prisão era ainda maior.
Pensando na possibilidade de ser preso novamente e agora por anos, Mana
propõe a esposa que os dois saíssem do Irã para outro país. Apesar de ser
praticamente impossível porque Mana e sua esposa não tinha permissão legal da
justiça para saírem do país até a sentença da justiça.
Mesmo assim Mana estava decido a não voltar para a prisão, pedindo ajudar
de alguém para sair do Irã e buscar asilo político na embaixada de algum país.
Depois de passar por situações de perigo e quase ser deportado ao Irã,
Mana finalmente consegue sair do Irã com a esposa, quando fica exilado na Malásia
entre o período de 2007 a 2010, e atualmente mora em Paris ainda trabalhando
como desenhista sob a proteção do programa internacional de apoio à liberdade de
expressão.
25

5. CRUELDADE E SOLIDARIEDADE NAS HQS AUTOBIOGRÁFICAS

Com a necessidade de compreender a fusão entre as relações públicas


(indivíduo e a sociedade) para explicar “o que seria ser justo numa sociedade do
século XIX”, e privadas (indivíduo consigo) para responder “Por que é possível se
sensibilizar com a dor do próximo e não ter a mesma empatia com outro
semelhante?”. A metafísica e a teologia em suas tentativas acreditavam que para
responder essas perguntas dentre outras, seria necessário conhecer uma natureza
humana comum, crendo que as fontes de realização pessoal e da solidariedade
humana são as mesmas (RORTY, 2007).
Rorty (2007) acreditava numa cultura literária, onde através dos gêneros
narrativos seria possível estimular a imaginação, alertar sobre possíveis tragédias,
fazer críticas às mazelas sociais e tentar explicar aquilo que os livros de teorias não
conseguiam, que as relações públicas e privadas por si só não definiam.
Assim baseado no método dialético de Hegel a dialética seria chamada de
crítica literária. Hegel contribuiu na transformação da filosofia como gênero literário.
Segundo o filósofo norte-americano: “Na época de Hegel, ainda era possível pensar
em peças teatrais, poemas e romances como tornado vívido algo que já era
conhecido, pensar na literatura como auxiliar da cognição, na beleza como
subsidiária da verdade” (RORTY, 2007, p. 142).
A crítica literária foi expandida durante o século XX, mudando seu sentido
original. O que antes era utilizado para comparar e avaliar: peças, poemas e
romances agora se estendia aos livros responsáveis por oferecer aos críticos do
passado o seu vocabulário, assim como aos críticos do presente, tornando-os
conselheiros morais.
“A palavra ‘literatura’ abarca hoje praticamente qualquer tipo de livro que se
possa imaginar que tenha relevância moral – que se possa imaginar que altere o
sentido do que possível e importante” (RORTY, 2007, p. 147).
Com a ascensão da crítica literária cresce gradativamente a proporção de
ironistas em relação ao crescimento de metafísicos, ao mesmo tempo que se discute
os vocabulários em relação as sociedades liberais, assim os ironistas creem que são
os vocabulários comuns e esperanças comuns, que unem as sociedades, tendo
como função contar histórias futuras que irão justificar os sacrifícios presentes.
(RORTY, 2007).
26

As diversas formas de produção intelectual como história em quadrinhos,


filmes, documentários, o romance entre outros gêneros, são instrumentos para que o
indivíduo venha conhecer a si próprio, já que as metáforas contidas nessas
produções fazem uma analogia com a realidade vivenciada em sociedade.
“O processo de vir a conhecer a si mesmo, confrontar as próprias
contingências, rastrear as próprias causas, é idêntico ao processo de inventar uma
nova linguagem – isto é, elaborar novas metáforas” (RORTY, 2007, p. 64).
As metáforas mudam de acordo com o contexto de cada sociedade, ou seja,
uma metáfora criada hoje pode não servir para uma sociedade de outra época, por
isso a importância de criar novos jogos de linguagens por meio dos gêneros
narrativos, ao invés de herdá -los de outras sociedades. Ou seja, novos problemas
merecem novas metáforas.
Nessa perspectiva através da análise de HQs autobiográficas e estudos do
filósofo Richard Rorty, os quadrinhos autobiográficos como citado anteriormente,
aqueles quadrinhos baseado em fatos reais, mediarão no processo de sensibilizar e
explicar as relações de crueldade e solidariedade em algumas situações de
sofrimento e humilhação, vivenciadas pela experiência de outras pessoas.
Abordagem feita nos quadrinhos Crônicas de Jerusalém e Pyongyang: Uma viagem
à Coreia do Norte, de Delisle; Uma Metamorfose Iraniana, de Neyestani; e
Persépolis, de Satrapi. (DELISLE, 2007, 2012; NEYESTANI, 2015; SATRAPI, 2007).
As HQs utilizadas no estudo abordam conflitos sociais do século XX,
registrados em livros de História, jornais virtuais e físicos, documentários e
telejornais transmitidos para diversos países entre outras mídias.

5.1 Conflitos no século XX: Solidariedade e Crueldade em Rorty


Dentre os diversos conflitos vivenciados pelo ser humano no século XX, os
conflitos bélicos como disputas por territórios, questões religiosas, reconhecimento
político, entre outros, quando comparados a proporção de pessoas atingidas direta
ou indiretamente em escala global, inclusive indivíduos que em sua maioria não
possuem nenhuma relação de proximidade ou vínculos familiares, as guerras ficam
bastante em evidência devido seu alcance.
Em destaque para a Primeira e Segunda Guerras Mundiais, bastante
evidentes por despertar também na humanidade o sentimento de solidariedade, a
empatia, a sensibilidade ao próximo, pois o poderio e uso irracional de armas de
27

exterminação em massa, entre elas a Bomba Atômica, colocou em risco a vida


global.
Porém, os conflitos do Pós-Guerra, período que se inicia após 1945 quando
a Segunda Guerra Mundial chega ao fim, também causaram transtornos à
humanidade, mesmo que delimitados a algumas regiões, influenciaram na
economia, o turismo, o processo de migrações e etc, de outros países pelo mundo.
Em 14 de maio de 1948 um Comitê Especial das Nações Unidas – ONU
entra em consenso com outras nações, e optam por dividir o território Palestino em
um Estado Judeu com aproximadamente (650 mil habitantes) e um Estado árabe-
palestino como o dobro da população, dados da época.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o oriente médio sofreu influência de
países europeus, que se aproveitaram das diferenças e fragilidades entre os povos
da região para armá-los, incitando a guerra entre eles. Então desde o período do
pós-guerra, Israel e Palestina com acordos de paz instáveis, vivem constantemente
em conflito, gerando uma sensação de insegurança nos habitantes e turistas.
Deslisle (2012) em Crônicas de Jerusalém, ao registrar sua autobiografia
sobre as experiências que teve em Israel, pelas cidades que visitou na região, e o
convívio com povos de diferentes culturas e religiões, percebe a desconfiança em
relação aos estrangeiros devido ao temor de um atentado. Por isso as regiões de
fronteiras possuem pontos de apoio militar (Checkpoints), controlando a entrada e
saída do território, prevenindo o risco de confrontos e ataques.

Figura 5 – Delisle e o muro que divide Israel e Palestina (Crônicas de Jerusalém).


28

A MSF – Médicos Sem Fronteiras, Ong que a esposa de Delisle trabalha,


envia semanalmente uma equipe para fronteira entre Israel e Palestina, para
acompanharem o trabalho dos militares, e registrarem os possíveis excessos contra
os direitos humanos em caso de confronto.
Ao se deslocar até a fronteira com a equipe da MSF, Delisle presencia um
tumulto em frente ao portão de acesso a Israel, enquanto várias pessoas estavam
no local: turistas, jornalistas, vendedores ambulantes, habitantes da região e fiéis
que se dirigiam para fazer suas orações nas mesquitas.
Enquanto os militares lançavam bombas de gás lacrimogênio para dispersar
a multidão, algumas pessoas atiravam pedras contras os soldados e outras se
protegiam das pedras e do gás.
Este é alguns dos momentos que Delisle percebe o sofrimento das pessoas
que estavam ali, e membros da equipe lamentam que mesmo após o encerrame nto
do confronto, essas pessoas foram impedidas de terem acesso ao portão e não
conseguiram se deslocar até as mesquitas de Jerusalém para orarem. Ao ficaram
fora dos murros, alguns recebendo atendimento médico, enquanto outros faziam
suas orações ali mesmo, do lado palestino entre lixos e entulhos.

Figura 6 – Fronteira entre Israel e Palestina, local de conflito na região (Crônicas em Jerusalém).
29

Durante uma guerra ou catástrofe é comum que uma quantidade maior de


pessoas fique mais sensível a dor do outro, passem a ter mais preocupação com os
problemas do próximo, ajudando os menos favorecidos, tomando atitudes que talvez
em tempos de paz, essa sensibilidade não fosse tão aflorada. Isso explica a
percepção de Deslile ao episódio na fronteira, e para esse sentimento Rorty define
como solidariedade humana (RORTY, 2007).
Solidariedade humana “[...] é afirmar que há algo em cada um de nós –
nossa humanidade essencial (essência humana) – que repercute a presença dessa
mesma coisa em outros seres humanos” (RORTY, 2007, p. 311). Quando indivíduos
vivenciam ou presenciam um determinado fato, onde há presença de pessoas em
situação de sofrimento, e não lhes causam sensibilidade ao próximo, estas pessoas
que presenciam se tornam cruéis, ou seja, desumanas. Assim, a “ideia é que faltaria
a todos eles um componente essencial (solidariedade) para um ser humano pleno”
(RORTY, 2007, p. 311).
Delisle (2007) também em sua outra obra PyongYang retrata a história real
de um governo ditatorial na Coréia do Norte, semelhante a obra de 1984 de George
Orwell, citada também por Deslile na HQ.
Nessa situação uma obra autobiográfica e outra de ficção tratando sobre o
mesmo tema, o que justifica mais uma vez a afirmação de Rorty a respeito dos livros
nos tornarem menos cruéis, sendo de dois tipos, onde o primeiro vai tratar os efeitos
das práticas e instituições sobre a sociedade, e o segundo sobre os efeitos de
nossas relações privadas em relação à sociedade, livros esses dotados de uma
mensagem moral que contrastam com os que têm objetivos estéticos (RORTY,
2007).

Figura 7 – Revista de segurança no aeroporto da capital da Coréia do Norte (PyongYang).


30

A imagem acima (figura 7) mostra a chegada de Delisle no aeroporto da


Coréia do Norte, onde é questionado sobre o conteúdo do livro da sua mala de
viagem, pois o governo vigente no país prega a censura a livros de ideologias que
coloquem em risco a segurança do país.
E o desenhista passou por situação de perigo, da possibilidade de prisão por
portar um livro cujo conteúdo da obra faz uma crítica sobre as consequências que
essa forma de governo pode causar na sociedade, entre elas, criar uma sociedade
insegura e aterrorizada por constante perseguição.

Figura 8 – Trabalhadores recebendo sacos de arroz como pagamento (PyongYang).

Durante dois meses na Coreia Delisle observou o racionamento de energia


elétrica e comida, mas por coincidência encontrou várias sacos de arroz empilhados
num quarto no hotel onde se hospedava e trabalhava, porém não entendia como o
arroz era raro no país e tamanha quantidade no mesmo local.
Posteriormente Delisle descobre que muitos dos funcionários contratados
pelo estúdio o qual presta serviços, foram pagos com sacos de arroz, e apesar de
não trabalharem em condições penosas e insalubres, os trabalhadores estavam
trocando seus serviços por arroz, deixando o desenhista triste por trabalhar numa
multinacional onde desrespeita os direitos do trabalhador.
A empatia sentida por Delisle, porém despercebida por outras pessoas é
descrita por Rorty sobre o que Kant pensava em relação à racionalidade como
princípio comum para o progresso moral e identificação, mas que deixou distante a
maneira como percebemos a dor e sofrimento do outro.
31

Ele via o respeito à “razão”, núcleo comum da humanidade, como o único


motivo que não era “merament e empírico” – não dependente dos acidentes
da atenção ou da história. Ao contrastar o “respeito à raz ão” com os
sentimentos de piedade e benevolência fez com que estes últimos
parecessem moti vos duvidosos e de segunda c ategoria para não s ermos
cruéis. Fez da “moral” uma coisa distant e da capacidade de notarmos e nos
identificarmos com a dor e a humilhação. (RORTY, 2007, p. 317).

Marjane (2007), ainda criança, teve uma infância muito confusa por conviver
entre os costumes da cultura islâmica e a ocidental dos seus pais, já que eles eram
tão modernos e flexíveis, enquanto no Irã havia tanta injustiça social, sendo que o
governo tinha Leis inspiradas nas regras (alcorão) de um deus, e ao invés de
bênçãos a maioria da população no país padecia, em contraste com uma minoria
política constituída por homens privilegiados. Por essa razão a garota dizia querer
ser a primeira mulher na linhagem dos profetas, para acabar com essa injustiça.

Figura 9 – Marjane e o sonho de se tornar uma profet a para acabar com as injustiças no Irã
(Persépolis).

Essa ressignificação é apresentada por Rorty como redescrição de mundo,


quando o indivíduo transforma sua linguagem criando palavras novas para entender
algo como bom ou mau, certo ou errado, necessário ou desnecessário e etc.
(RORTY, 2007).
A partir do momento que Marjane redescreve a realidade a sua volta, e nota
algo diferente daquilo que o resto da sociedade via apenas como fatos rotineiros, ela
começa a percebe as diversas formas humilhação e injustiça social.
32

Portanto, as injustiças não podem ser percebidas como injustiças, nem


mesmo por quem as sofre, enquanto alguém não invent a um papel não
desempenhado antes. Somente quando alguém tem um sonho, e uma voz
para descrevê-lo, o que pareceria natureza passa a parec er cultura, o que
pareceria destino passa a parecer abominação moral. Enquanto isso não
acontece, apenas a linguagem do opressor encontra -se disponível, e a
maioria dos opressores tem a habilidade de ensinar ao oprimido uma
linguagem na qual este último parece louco – até mesmo a si próprio – caso
descreva-se como oprimido (RORTY, 2005, p. 247).

O Ironista liberal nunca está satisfeito com seu vocabulário final (palavras
que usamos para justificar nossos atos) como definido e acabado, acredita sempre
na possibilidade de mudança para melhor. Então quando um indivíduo ou grupo
social rompem com a estrutura linguística de sua comunidade e a redescreve, mais
pessoas passam a perceber situações que retrocedem o desenvolvimento social e
moral da sociedade, situações que marcam o indivíduo são as injustiças sociais.
Mana (2015) que nasceu no Irã, sofreu perseguição e censura após a má
interpretação de uma publicação, como consequência durante o tempo que esteve
na prisão e temeu pela sua vida, logo soube que pessoas nas ruas morreram em
confronto com o exército, e na cadeia presenciou situações de estupro, tráfico de
drogas e violência física dos outros presos.

Figura 10 – Mana tem alucinaç ões na prisão (Nemo)


33

Mana nunca tinha sido preso, e em sua primeira prisão injustamente por
xenofobia, presencia na cadeia por três meses situações que os direitos humanos
classificam como depreciação à dignidade da pessoa humana, onde presos e
agente penitenciários comandavam o presídio internamente segundo seus
interesses, liberando o tráfico de droga, espancamentos e violência sexual.
A ausência de justiça ocorre porque nossas instituições e práticas ainda
confundem o público com o privado.
Dessa forma, Rorty (2007, p.17) define: “O vocabulário da autocriação é
necessariamente privado, não compartilhado e impróprio para argumentação. O
vocabulário da justiça é necessariamente público e compartilhado – um meio para
intercâmbio argumentativo.”
Ou seja, uma sociedade que tem como objetivo alcançar o máximo de
justiça e pretende cessar e/ou diminuir a crueldade, não deve valorizar o espaço
privado em detrimento do espaço público e vice-versa.
Tornando as pessoas Liberais segundo a definição de Judith Shklar,
interpretada por Rorty: “pessoas que consideram a crueldade a pior coisas que
fazemos” (RORTY, 2007).
34

5.2 Sugestão de planejamento para aulas de História a partir das HQs autobiográficas

A BNCC foi utilizada como base para o planejamento das aulas ministradas no ensino fundamental, de acordo com temáticas
abordadas em sala de aula na disciplina de História.

PLANEJAMENTO DE AULA – HISTÓRIA (4º e 5º ANO FUNDAMENTAL - BNCC)

Conteúdo Objetivos Desenvolvimento Avaliação / Duração


 Analisar dentro da  Apresentar a obra em
Obra: Crônicas de obra, situações sala, para discutir as  Duração: 1 hora
Jerusalém onde há transformações  Registrar o conhecimento do aluno
convivência e troca ocorridas nos sobre o tema estudado em sala,
Tema: Circulação de de experiências, diferentes meios de relacionando a HQ com a
pessoas, produtos e integração de comunicação. realidade do aluno.
cultura. pessoas e  Organizar as turmas  Comparar a evolução dos meios
exclusões sociais e em grupos, e debater de comunicação no Brasil e no
culturais no mundo como a HQ aborda mundo, utilizando a obra como
tecnológico em essa temática. suporte.
Jerusalém.
 Identificar o  Duração: 1 hora
Obra: Persépolis contraste entre as  Estabelecer marcos  Avaliar o conhecimento dos alunos
diferentes culturas da história da sobre as transformações nas
Tema: Transformações e no Irã do passado humanidade cidades das civilizações antigas e
permanências nas e do presente. (nomadismo, contemporâneas, relatadas na
trajetórias e grupos agricultura e HQ.
humanos.  Descrever o indústria), de acordo  Verificar a compreensão dos
resultado da ação com a HQ. alunos sobre a importância da
humana, no tempo história, resultado da ação
e no espaço.  Demonstrar as humana, abordados na HQ.
35

transformações
ocorridas nas cidades
e a interferência nas
vidas da população.

Obra: Uma Metamorfose  Exemplificar os  Demostrar a  Duração: 1 hora


Iraniana diferentes tipos de importância e a  Avaliar o conhecimento dos alunos
patrimônios valorização da sobre as diferentes fontes de
Tema: Registros da culturais do Irã e do memória histórica, pesquisa históricas, relatadas na
história: Linguagens e Brasil. abordada na HQ. HQ.
culturas.  Analisar as  Verificar o entendimento sobre
transformações  Identificar as formas patrimônios materiais e imateriais
ocorridas nos de marcação do da humanidade, abordados na HQ.
patrimônios ao tempo em diferentes
longo do tempo. tipos de sociedades,
relatadas na HQ.
36

6. CONCLUSÃO

O propósito deste trabalho foi enfatizar a importância do uso das histórias


em quadrinhos autobiográficas na educação, como recurso pedagógico no processo
de ensino-aprendizagem, estimulando a imaginação do aluno, facilitando o
entendimento de conteúdos de História, e aumentando a sensibilidade na
compreensão sobre os conceitos de crueldade e solidariedade segundo os estudos
de Rorty.
Assim devido a necessidade de ferramentas para o entendimento dos
conteúdos, a pesquisa que tem o caráter téorico-interpretativo, utilizou os estudos do
Filósofo americano Richard Rorty como aporte teórico, analisando as HQs que
abordavam a temática sobre conflitos do pós-guerra no século XX.
Esses temas bastante recorrentes nas aulas de História foram comparados
aos fatos reais vivenciados pelos autores das HQs no mesmo recorte histórico,
demonstrado que através do gênero narrativo, é possível identificar sinais de
injustiça e humilhação, quando se expande o sentimento de solidariedade ao
próximo, algo característico ao contexto das guerras.
Rorty como defensor da cultura literária utiliza metáforas, vocabulários, jogos
de linguagem e redescrição de mundo para criar novas palavras (metáforas) que
iriam substituir e/ou explicar pela primeira vez, aquilo que antes não era definido por
teoria, no caso da presente pesquisa as situações de crueldade e solidariedade.
Nessa perspectiva ao identificar a situação de dano moral, injustiça, e
humilhação, o gênero narrativo, no caso específico os quadrinhos autobiográficos,
trazem o fato abstrato e concretiza na realidade vi venciada pelos alunos.
Rorty faz a reflexão sobre as consequências da negação ao próximo,
quando o indivíduo ver seu semelhante em situação de dor, e mesmo assim não se
compadece com o sofrimento do outro. Essa falta de sensibilidade definiria essa
pessoa como sendo cruel.
Portanto a pesquisa conclui que com a evolução das sociedades liberais, ao
transformar o vocabulário final do aluno, ele conseguirá resdescrever essa nova
sociedade como lugar comum onde percebe seu semelhante e traz para si sua dor,
como se fosse pertencente a ele, isso é ser solidário.
37

REFERÊNCIAS
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2007.
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Daniel Garcia e Daniel Paiva. Roteiro: Daniel Garcia e Daniel Paiva. Brasil: Rio de
Janeiro, 2011. Mini DV, (93 min.), color.
LUYTEN, Sonia. M. O que é História em Quadrinhos. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1985.
MAZUR, Dan. DANNER, Alexandre. Quadrinhos: História Moderna de Uma Arte
Global. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento. São Paulo/Rio de
Janeiro: HUCITEC-ABRASCO, 1994.
NEYESTANI, Mana. Uma Metamorfose Iraniana. São Paulo: Nemo, 2015.

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Manole, 2005.
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Martins Fontes, 2007.
SALVADOR, Angelo Domingos. Métodos e técnicas de pesquisa bibliográfica.
Porto Alegre: Sulina, 1986.
SATRAPI, Marjane. Persépolis. São Paulo: Companhia das letras, 2007.

VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo. Os quadrinhos oficialmente na escola:


dos PCN ao PNBE. In: VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo (Orgs.).
Quadrinhos na Educação: da rejeição à prática. São Paulo: Contexto, 2009. p.9-
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VICENTINO, Cláudio. DORIDO, Gianpaolo. História Geral e do Brasil. São Paulo:
Scipione,2013.

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