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Policentricidade e unidade divina

Postado 13/03/2017 por Petter Ph em Hellenismo.net

Autor: Steven Dillon


Tradutor: Petter Pablo Hübner

“Uma hénada é uma “unidade” ou um indivíduo absoluto, de modo que


tudo acerca dela é absolutamente singular e peculiar a ela mesma. As
unidades absolutas podem ser contrastadas com “unidades relativas”* –
entendidas aqui como misturas do que é único com o que é comum.
Gerar incompreensões a respeito das hénadas pode ser fácil, se
priorizada em demasia a sua indivisibilidade. Sendo assim, devemos
cogitar uma advertência preliminar, a ser em breve ampliada. Considere
o que Edward Butler diz em W & P: “Algo que é apenas indivisível em
um sentido atômico não tem o tipo de existência que associamos a um
Deus”. (37)

Compreender os Deuses como hénadas é importante, pois permite


entender que cada Deus é primário – tanto no sentido de ser a causa e
o fundamento último de tudo, que não seja Ele mesmo, quanto no
sentido de não derivar seu poder, conhecimento ou bondade de
qualquer coisa.

As Hénadas precedem, e assim transcendem, cada categoria de ser,


própria das “unidades relativas”. Logo, elas precedem a “relação” –
mesmo aquelas entre si. Tal ideia leva a objeções, especialmente
escolásticas, visto que essa relação seria entendida como uma relação
que precede relações reais. Mas se dará toda relação assim?
Abordar essas preocupações é uma boa maneira de partir de nosso
ponto inicial para chegar ao policentrismo. O objetor poderia começar
com o que talvez pareça mais óbvio: se os Deuses precedem o fato de
estarem relacionados uns com os outros, de que modo Eles sabem uns
dos outros? Certamente, eles teriam de saber que eles não são o único
Deus! A objeção poderia continuar: ao preceder todas as relações, esse
conhecimento talvez não seja essencial para Eles. Então esse
conhecimento seria supostamente acidental, adquirido mediante a
aprendizagem uns dos outros?

Pode parecer ao objetor que o politeísmo henádico acaba por


comprometer a simplicidade divina, ou que termina com uma multidão
de pensamentos isolados que se pensam a si mesmos. Mas a objeção
é fundamentalmente equivocada: em razão justo de os Deuses
precederem todas as relações, não há relação de separação que os
mantenha distantes uns dos outros. Cada Deus individual está em
todos os Deuses, e todos os Deuses estão em cada Deus individual –
porém não no sentido de estarem “contidos”, pois isso também seria
uma forma de separação. Portanto, os Deuses não são meramente
indivisíveis em um sentido atômico.

E uma vez que não há nenhuma distância entre os Deuses, não há


distância epistêmica entre Eles: um Deus conhece a si mesmo da
mesma forma que conhece todos os Deuses, embora a partir de sua
perspectiva totalmente singular e peculiar.

Como Edward Butler diz em W & P: “Os Deuses são as coisas mais
unas, e não porque são todos uma coisa, mas porque um indivíduo
absoluto inclui tudo”. (39)
Este tipo de inclusão divina não consiste na ausência de separação,
mas na presença da individualidade henádica, que preserva a
integridade de cada hénada sem submeter as “unidades absolutas” à
lógica de exclusão e separação próprias das “unidades relativas”.
Meus leitores escolásticos podem protestar, alegando que, se não há
uma distância epistêmica entre as hénadas, elas então são exatamente
a mesma coisa. Porém, eu diria que isso simplesmente pressupõe que
a individualidade envolva a diferenciação; o que levanta a questão
contra a individualidade henádica, mantendo o que não são unidades
perante padrões que só se aplicam às unidades relativas. Os Deuses se
conhecem como hénadas e, assim, como perfeitamente individuais.
Mas Eles não se conhecem enquanto objetos de pensamento
relacionalmente discretos. Podemos dizer – ao modo neoplatônico –
que Odin está em Zeus “zeusicamente”, e que Zeus está em Odin
“odinicamente”.

É neste “panta-en-pasin” (todas as coisas em cada coisa, de forma


única) que se situa a compreensão a respeito dos Deuses
(compreensão que decorre do seu entendimento enquanto hénadas),
naquilo que afinal a “policentricidade” propriamente consiste, explicando
por que os Deuses não derivam de um princípio mais elevado, e nem
por este estão unidos.

Aquino e a Equivocidade profunda


Tomás de Aquino nos ensinou que a razão pela qual qualquer coisa
singular é esta coisa particular é o fato de ela não poder ser
comunicada a muitos. “Sócrates é um homem” pode ser comunicado a
muitos, ao passo que aquilo que o torna este homem em particular é
somente transmissível a um. Portanto, fosse Sócrates um homem por
aquilo que o faz ser este homem em particular – não podendo haver
muitos Sócrates –, não poderia existir muitos homens. Agora, isso
pertence somente a Deus, pois o próprio Deus é a sua própria natureza,
como foi mostrado acima (Q. 3, A. 3). Assim, Deus é Deus, e Ele é este
Deus. Portanto, é impossível que muitos Deuses existam. (S.T. I.11.3)
A ideia é basicamente esta: porque “Deus” transcende toda a divisão e
composição, Ele não é um sujeito de uma natureza. Ou seja, não há
diferença em Deus entre o que o torna “Deus” e o que o torna “Ele”.
Não é como se você tivesse essa “divindade” ou natureza divina de um
lado e então um indivíduo que possui na natureza por outro lado: não
há diferença em Deus entre “quem” e “o quê” ele é. (Cf. STI3.3) Mas,
como consequência, não há sentido em falar de “Deuses” diferentes
deste particular, pois o que faria com que cada um deles fosse “Deus”
também tornaria cada um deles um Deus em particular: a “natureza” e o
“individuador” são, na realidade, exatamente a mesma coisa.

Comentando o argumento de Tomás de Aquino contra o politeísmo em


“Ser e Essência”, Joseph Bobik argumenta: “Seja qual for o número de
caminhos que alguém poderia inventar para multiplicar algo, se o que
está sendo multiplicado é encontrado entre os membros da pluralidade
resultante, ele deve ser tomado em um estado puro ou não misturado, e
é por isso que nunca pode ser mais do que um. Todos os outros
membros da pluralidade devem ser tomados com uns; do contrário, não
serão distinguíveis uns dos outros, ou do que está sendo plurificado.”
(Bobik, Joseph. Aquinas On Being And Essence: A Translation and
Interpretation. Notre Dame, IN: U of Notre Dame. p. 171).

Esses argumentos parecem ser bastante condenatórios, até que se


percebe que aqueles que acreditam em muitas hénadas – sejam
politeístas ou trinitarianos – de fato concordam com Tomás de Aquino:
não existe uma única coisa, como uma “Deusidade” que se plurifique ou
se distribua a muitos indivíduos, pois as hénadas não têm
absolutamente nada em comum uma com outra, mas são
completamente peculiares em si mesmas; a “Deusidade” simplesmente
significa algo diferente para cada hénada. Logo, é verdade que, para
cada hénada, o que a torna um “Deus” também a torna “este Deus em
particular”, de modo que não faz sentido falar, em seu próprio senso de
“Divindade”, de qualquer “Deus” ao lado dele ou dela. Em outras
palavras, ao contrário da suposição de Tomás de Aquino, o nome
“Deus” é predicado equívoco de cada hénada, ou em sentidos não
relacionados (e que esses sentidos devem ser não-relacionados é
apoiado somente se consideramos que cada hénada precede até
mesmo ser relacionada à outra) como poderia Aquino responder a isso?

Bem, ele aponta em Summa Contra Gentiles I.42.12 que: “Se existem
dois Deuses, ou o nome de Deus é predicado univocamente ou o é
equivocamente.” O problema de atribuir o nome a ambos
equivocamente é que “nada impede qualquer coisa dada de ser
equivocamente nomeada por qualquer nome dado, contanto que admitir
o uso daqueles que expressam o nome.” A força deste tipo de demissão
é sucintamente descrita por Hugh Ripelin de Strasburg, um
contemporâneo de Tomás ‘: “A conclusão evidente é que só pode haver
um Deus. Se houvesse muitos Deuses, eles seriam chamados por esse
nome, quer equivocamente, quer univocamente. Se eles são chamados
Deuses de forma equivocada, uma discussão adicional é infrutífera;
nada impede que outros povos apliquem o nome “deus” ao que
chamamos de pedra… “(Compendium Theologicae Veritatis I.15).

O que há de errado com o equívoco? Bem, nada, contanto que haja


alguma maneira de esclarecer o que queremos dizer. Porém, a ideia é
que não há nenhuma maneira de fazer isso. Ao refletir a respeito do que
essa carga equivale, vamos ver desdobrar uma objeção poderosa,
embora sem êxito, à crença em muitas hénadas. E, enfrentando essa
objeção, veremos a força e a beleza da policentricidade. Portanto, a
ideia aqui é que, se tudo acerca de cada hénada for totalmente seu,
então as hénadas não são sequer semelhantes entre si. Mas se as
hénadas não são nem mesmo semelhantes entre si, então não
podemos nem conceber mais do que uma hénada de uma só vez, visto
que não há por que conceitualmente agrupá-las, nenhum traço comum
a invocar, nenhuma analogia para desenhar, que iria refletir como elas
realmente são. Nós nos equivocamos cada vez que pensamos ou
falamos a respeito de mais de uma hénada, de modo que nunca
haveria um pensamento ou palavra que poderia ser significativamente
aplicada a mais de uma hénada. Todo argumento para várias hénadas
seria formalmente inválido por meio da equivocidade; toda conversa de
“politeísmo” ou algo parecido seria literalmente besteira. Teríamos que
remover todos os termos, construções e proposições gramaticalmente
plurais do nosso domínio do discurso teológico – o que, por mais difícil
que seja para conceber, resultaria em uma forma radical de
monoteísmo! Isto é o que eu chamei de “equívoca profunda”, visto que,
pela acusação, seria equívoco todo o caminho para baixo, sem nunca
chegar a um sentido significativo ou conteúdo que poderia ser aplicado
a mais de um hénada de uma vez. Obviamente, se esta objeção fosse
sadia, seria a morte para a crença em muitas hénadas. No entanto, a
objeção não leva em conta algo crucial para a crença em muitas
hénadas, algo que não parecia ser conhecido no momento em que
essas objeções foram formuladas. Discuti isto no último post, e pode ser
chamado de doutrina da inseparabilidade divina: porque as hénadas
precedem todas as relações, elas precedem a relação de separação.

Como tal, aqueles que acreditam em muitas hénadas pode novamente


encontrar-se concordando com os escolásticos.

Se referências plurais às hénadas, seja no pensamento ou na palavra,


fossem referências a objetos separados e distintos, então o mesmo
pensamento ou termo seria aplicado a coisas completamente não
relacionadas, e uma pluralidade de hénadas seria literalmente
inconcebível. Contudo, não há nenhuma “distância” de qualquer tipo
entre as hénadas. Portanto, nossas referências plurais às hénadas não
são referências a objetos separados e distintos; não há equívoco
ocorrendo.

Aquino nos ensina que “[podemos] falar de coisas simples apenas


como se elas fossem como as coisas compostas das quais derivamos
nosso conhecimento”. (S.T. I.3.3) Assim, quando pensamos ou falamos
de mais de uma hénada, o fazemos apenas como se elas fossem
análogas às coisas compostas de que derivamos nosso conhecimento
de multiplicidade. Mas estas são apenas plurificadas de formas que são
repugnantes às coisas simples. Como tal, quando nossas referências
ao Divino são plurais, elas devem ser purificadas das noções e
suposições próprias da multiplicidade de coisas compostas. E mediante
essa purificação, a coerência e a necessidade da pluralidade no nosso
domínio do discurso teológico permanecerão imaculadas”.
*N.T: Traduzi o termo “units” por “unidades absolutas” e “unities” como
“unidades relativas” para conservar o sentido dado pelo autor, sem ter a
necessidade de forjar algum neologismo.

Bônus:
Alguns comentários selecionados do Autor.
“Os neoplatônicos argumentaram que toda a realidade emana do Bem
– que é uma maneira de falar sobre qualquer Deus enquanto finalidade
última, e não é, em si mesma, uma hipostatização. Essa emanação, ou
“procissão do ser”, “precisa continuar até que a potência que sai do
Bem se torne completamente vazia e passiva, chegando a um fundo tão
fraco que não consegue produzir mais nada”. (Proclo: Uma Introdução,
Radek Chlup).

Cada nível nesta procissão diminui um pouco mais de sua origem


perfeita, e a “matéria” é o ponto mais baixo. Recusar-se do Bem é, para
os neoplatônicos, recusar-se do Uno: é aumentar sua complexidade e
restringir sua individualidade.

Duas coisas se seguem a partir do que precede que são relevantes


para a teodicéia:

Os deuses não “escolhem” criar a realidade, como se houvesse uma


dualidade de opções diante deles: ela brota deles e de sua bondade
superabundante. Como tal, o mal não é algo que os deuses
simplesmente optam por não impedir: ele de alguma forma surge da
realidade que emana deles. Mas por que?

Em última análise, não há uma única causa do mal, mas o mal surge
inevitavelmente porque os seres ficam aquém de suas naturezas. Este
fracasso é, por sua vez, inevitável, porque eles estão no final da
procissão do ser e, portanto, entre as mais complexas entidades,
unificando assim dentro de si um número de partes que se esforçam por
fins diferentes. Perseguir esses fins diferentes é apenas o conflito, e
desdobra os males físicos e morais.”

“Discutimos isso antes, e acho que posso explicar melhor minha


posição. Para você a questão é como poderia haver mais de um Deus,
mas para mim, a questão é exatamente o oposto. A idéia aqui é que
não existe tal coisa como o monoteísmo.

O “Monoteísmo” afirma que “há apenas um Deus”, reivindicação essa


que é entendida para contradizer o politeísmo. Mas, não há maneira
desta proposição contradizer o politeísmo.

Se isso significa que “Deus” é uma espécie de entidade que tem


apenas uma instância, então ela deixa de ser uma proposição teísta,
muito menos uma que contradiga o politeísmo, porque o que é deidade
não instancia nada. Mas, se não significa que “Deus” é uma espécie de
entidade, deve significar que “Deus” é uma divindade particular. No
entanto, nesse caso, a afirmação de que “há apenas um Deus” significa
pouco mais do que “há apenas um [YHWH, Poseidon, Odin, Zeus,
etc.]”, e isso de modo algum contradiz o politeísmo.
Como é amplamente entendido então, não existe tal coisa como o
monoteísmo. Em vez disso, é uma posição não teísta que trata Deus
como um tipo de entidade ou é uma posição que é trivialmente
verdadeira no politeísmo que trata Deus como uma divindade em
particular.”
“O real e o imaginário têm algo em comum: ambos têm a determinação
de ser uma coisa em vez de outra; uma identidade. É como somos
capazes de conceber e falar sobre eles.
Mas, se o real e o imaginário têm identidade em comum, então deve
haver mais no que torna uma coisa real do que sua identidade.
Em outras palavras, há uma diferença entre o que faz uma coisa ser
(seu princípio de existência) e o que faz uma coisa ser o que quer que
seja ou quem quer que seja (seu princípio de identidade).
Assim, o que faz uma coisa ser um quark não é que ele existe, senão
tudo que existe seria um quark!
Para colocar isso em uma fórmula de tipos: um princípio de existência +
um princípio de identidade = um ser real.
Nesse sentido, os “seres reais” referem-se apenas a compostos ou
unidades de princípios de existência e identidade. Mas, os deuses não
são unidades de princípios, são unidades (ou “hénadas” como dizem os
platonistas). Então, sua existência e identidades não são distintas,
como são para “seres reais”: na realidade, eles são um e o mesmo.”

“Eu acho que o argumento leibniziano precisa de algum retrabalho ou


esclarecimento, pelo menos, como no que diz respeito à questão de
saber o que condiciona o ato contingente de Deus para causar o ser
contingente. Mas, o que me impressionou desta vez ao ler é que,
concedendo todas as suas premissas, o argumento mostra, no máximo,
que há um Deus que faz todas as coisas, na medida em que são
contingentes. Não mostra que há um Deus que causa todas as coisas
em todos os aspectos. Por exemplo, este Deus pode causar os seres
humanos na medida em que são contingentes, mas não os causa na
medida em que são humanos. Eu acho que os outros argumentos
sofrem da presunção não demonstrada de monoteísmo também,
especialmente o argumento da experiência religiosa.”

“Cada Deus é a causa primária de todas as coisas, somente a seu


próprio modo. Assim, por exemplo, há o Deus que causa primariamente
todas as coisas na medida em que vêm a ser, ou mudar.
Tradicionalmente, ele tem sido conhecido como Poseidon. A esfera de
atividade de Poseidon é muito mais ampla do que se pensa
popularmente, mas é porque ela engloba a mudança por si mesma que
se pensa incluir, no fundo e como imagem, o elemento sempre em
mudança da água. Da mesma forma, o Deus que Leibniz defende é a
causa primária de todas as coisas, na medida em que são contingentes,
etc.”

“Os politeístas clássicos descrevem a “divindade”, pelo menos em


parte, através do conceito de “henadicidade”: ser Deus é ser henádico,
é ser uma unidade, entendendo que “Deusidade” não é uma mônada
que um indivíduo tem, seja exclusivamente ou em comum com os
outros, e é aqui que o monoteísmo acaba por ser uma confusão sobre
este modelo: quando se diz que há apenas um Deus, ele trata a
“Divindade” monadicamente ou como algo que apenas um indivíduo
tem. Fazendo isso, o monoteísmo deixa de falar sobre o que é
verdadeiramente divino ou henádico. Mas, pode-se protestar, não
podem os monoteístas fazer apenas o que os politeístas clássicos
fazem e não tratar a “divindade” de forma monádica, mas ao invés disso
se referir a uma unidade em sua perfeitamente peculiar Individualidade?
A resposta é que, naturalmente, eles poderiam! Mas, então, a sua
alegação de que há apenas um Deus é uma afirmação que seria
trivialmente verdadeira à respeito de todos os Deuses, e não iria
contradizer o politeísmo.”

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