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Tania Quintaneiro
Professora do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais.
Autora de: Retratos de Mulher. O cotidiano feminino no Brasil sob o olhar de viageiros do século XIX.
Petrópolis: Vozes, 1996; Cuba e Brasil: da revolução ao golpe (1959-1964) Uma interpretação sobre a política
externa independente. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1988; e co-autora de Um Toque de Clássicos:
Durkheim, Marx e Weber. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1995.
Introdução
A reflexão sobre as origens e a natureza da vida social ocorre desde tempos remotos, mas a Sociologia,
como um campo delimitado do saber científico, só emerge em meados do século XIX na Europa. Para melhor
entender sua constituição como ciência, é mister situá-la no quadro das mudanças econômicas, políticas e
sociais sucedidas entre os séculos XVI e XIX e considerar as principais correntes de pensamento filosófico
sob cuja influência foi-se definindo sua identidade.
As grandes transformações sociais não costumam acontecer de maneira súbita, sendo quase
imperceptíveis para aqueles que nelas estão imersos. Mesmo os sistemas filosóficos e científicos inovadores
entrelaçam-se a tal ponto com os que os antecedem que é difícil pensar em termos de rupturas radicais. Ainda
assim, a marca da Europa dos séculos XVIII a XIX foi, sem dúvida, a instabilidade, na forma de crises
econômicas, políticas e morais. Uma linha distintiva parecia separar a Modernidade que despontava do que
veio a se chamar Medievo.1 Mudanças na organização política e jurídica, nos modos de produzir e de
comerciar exerceram, mutuamente, um efeito multiplicador e geraram conflitos ideológicos e políticos de
monta. Foi no cerne desses câmbios e das contradições deles decorrentes que nasceu a Sociologia enquanto
um modo de interpretação científico chamado a explicar o “caos” informe e até certo ponto assustador em que
a sociedade parecia haver-se tornado. O propósito deste texto é destacar as dimensões sociais e
epistemológicas desse processo de construção de um conhecimento que se pretende científico, dotado por
vezes de uma disposição para a intervenção social.
A Modernidade e as Revoluções
A Reforma protestante, iniciada no século XVI, foi um momento importante na configuração do
individualismo.14 Ao contestar a autoridade da Igreja na interpretação dos textos sagrados e na absolvição dos
pecados e colocá-la sob a responsabilidade do fiel, capaz de comunicação sem mediações com Deus, a
Reforma institui o livre exame, o que fez da consciência individual a instância última de julgamento. Aos
poucos, correntes de pensamento assim como processos de ordem sócio-econômica convergirão para destacar
a individualidade, deteriorando a concepção orgânica, dominante na antigüidade e no período medieval, que
considerava o todo anterior e superior às partes. Mas é às Revoluções Industrial e Francesa, dois fenômenos
de longa duração e grande amplitude, que se atribui a maior contribuição para que o modo sociológico de
investigar e interpretar a realidade social se tornasse possível. O clima intelectual no qual floresceram foi se
configurando a partir do racionalismo e do empirismo, culminando com o movimento da Ilustração.15
Num movimento de longo prazo que vai se configurando desde a crise do feudalismo e que ainda
sobrevive em alguns de seus traços essenciais, o espírito da Modernidade se instala, caracterizando-se pela
prática sistemática da dúvida, do questionamento e da busca da verdade com base nos métodos da lógica e da
matemática. Gradualmente e com base no princípio de que a razão humana é capaz por si só de penetrar e
desvendar as leis que governam a dinâmica da realidade, o conhecimento do mundo natural e social vai se
distanciando da teologia e da moral religiosa, retirando da autoridade eclesiástica seu status de fonte da
verdade inalterável, depreciando a superstição e a magia. Consolidam-se, dessa maneira, métodos empíricos
de investigação e prova baseados na observação e na experimentação, com os quais seria possível conhecer e
controlar a dinâmica do mundo exterior. A sabedoria assim adquirida começa a socavar explicações fundadas
nas verdades reveladas. A ciência experimental legitima-se como um processo confiável e desacreditam-se as
filosofias que partiam do saber inato. O Iluminismo se alicerça nessa confiança na razão e no ceticismo crítico
a respeito das concepções tradicionais da religião que, segundo os pensadores do século XVIII, tinham
servido para escravizar a humanidade aos preconceitos, em vez de promover seu autodesenvolvimento. Por
outro lado, as ciências exatas e naturais, aplicadas aos processos produtivos, transformam as técnicas
tradicionais, incrementando extraordinariamente a geração de riqueza.16 Isso alimentou uma sólida confiança
no progresso material da humanidade – idéia que impregna boa parte da teoria social produzida no século
XIX.
Profundas mudanças na estrutura de classes e na ossatura do Estado vinham também ocorrendo em
muitas das sociedades européias em decorrência, por um lado, do surgimento de novas forças sociais –
burguesia e proletariado – e de pressões por uma maior participação política e, por outro, do desaparecimento
ou enfraquecimento da aristocracia, das instituições e classes do sistema feudal: servidão, propriedade
comunal, organizações corporativas artesanais e comerciais. Em outras palavras, o capitalismo tornava-se o
modo de produção dominante no Ocidente e, com ele, as antigas organizações econômica, política e social –
aí incluídos os sistemas moral, religioso, científico, jurídico e intelectual – iam se modificando, marcando, de
fato, uma nova era. As pressões por participação política deram origem a novas instituições no seio do Estado,
modificando sua estrutura eminentemente aristocrática. Isso não poderia ter deixado de suscitar problemas
relativos à redefinição das relações sociais consolidadas na forma de direitos e deveres – seja por parte de
capitalistas em sua relação com trabalhadores, seja do Estado com os cidadãos, desses entre si ou com outras
instituições, como famílias, igrejas, sindicatos, universidades e, posteriormente, partidos políticos. Além
disso, fatores como o saneamento público e as técnicas de higiene, os novos métodos de cura e controle de
doenças, o desenvolvimento da produção de alimentos, o abandono de antigas crenças, preconceitos e
superstições tiveram impacto positivo sobre as taxas demográficas – com profundas conseqüências para todas
as dimensões da vida social.
Mudanças significativas ocorreram na instituição familiar, tanto no que se refere ao status e direitos de
seus membros segundo sexo e idade, como à natureza das relações pessoais e jurídicas entre eles, por
exemplo, o controle de propriedades por parte das mulheres, que, em geral, encontravam-se nas mãos de pais
e maridos, a relativa autonomia dos filhos, o desaparecimento do direito de primogenitura e outras
modificações que variam de acordo com os processos internos de cada sociedade. Nas camadas altas e médias
das sociedades medievais, nome e fortuna tinham sido até então o binômio que marcara os destinos de
homens e mulheres. A escolha de parceiros dependia de critérios estamentais ou refletia interesses políticos
ou econômicos familiares.17 A mulher, por ter um “espírito fraco” e ser incapaz de zelar pela sua pureza, devia
ser entregue bem cedo a um marido que a controlasse. Os costumes e a Igreja passaram mais tarde a limitar a
idade aceita para o casamento a não menos de 12 anos para as moças e de 14 para os rapazes, o que se adequa
às taxas de mortalidade e à baixa esperança de vida da época. Já havia algumas brechas para uma seleção
relativamente livre de parceiros desde o século XIII entre os ingleses. Certas instituições modernas – como o
amor romântico, o casamento por escolha mútua, a estrutura nuclear da família, o reconhecimento da infância
e mesmo da adolescência enquanto fases da vida – começaram a se consolidar e a adquirir importância,
redefinindo-se também os papéis sexuais. O amor pelas crianças é também uma novidade, de certa forma uma
conseqüência da gradativa redução da mortalidade infantil. Ainda no século XVII, na França, até que
ultrapassassem o limite de idade que permitia aos pais ter esperança em sua sobrevivência, as crianças eram
tratadas com uma indiferença que hoje provocaria escândalo.18 Entre as classes possuidoras, nem mesmo a
amamentação era uma tarefa materna, e os bebês eram enviados por meses para alguma casa nos subúrbios
onde uma ama cuidava de diversos filhos alheios. Os métodos de esterilização e de pasteurização do leite
animal em fins do século XIX vieram, então, a salvar umas quantas vidas. Nas camadas mais baixas, a
negligência ou a absorção dos pais nas lides de sobrevivência podiam acarretar a morte de filhos pequenos
devido a acidentes característicos do modo de vida que levavam, como sofrerem quedas em fontes e lareiras
ou serem vítimas de animais selvagens ou do gado. Além disso, como na estória de João e Maria e em outras
contemporâneas, muitos eram abandonados por famílias que não tinham meios de criá-los. O infanticídio era
praticado secretamente e moralmente tolerado até fins do século XVII. Não era raro que uma criança nascida
deficiente fosse morta (apesar de leis que procuraram controlar tal crime) e aceitava-se que fosse vendida a
mendigos e saltimbancos que viveriam de exibi-la em feiras e circos. Só em finais do século XIV começam a
surgir entidades protetoras de órfãos e abandonados, assim como de pobres, enfermos e viúvas. A exploração
da força de trabalho infantil e de adolescentes não teve por um longo tempo limites claros. Na sociedade
inglesa era permitido, por lei, reunir crianças pobres nos grandes estabelecimentos surgidos com a Revolução
Industrial, onde eram colocadas a trabalhar em jornadas médias de 12 horas e tinham o turno da noite para
freqüentar a escola.19
Um sentimento de família mais semelhante ao que existe nos dias de hoje originou-se com o
aparecimento dos espaços privados domésticos nas casas burguesas, antes desconhecidos. Foi na Inglaterra
onde começou a se dar uma separação entre o lugar do trabalho e o da vida privada.20 O proletariado urbano
demorou ainda a alcançar esse benefício. No período da revolução industrial, a pobreza, o alcoolismo, os
nascimentos ilegítimos, a violência e a promiscuidade tornavam-se mais visíveis no ambiente das cidades
industriais e atingiam os membros mais frágeis do novo sistema, desprotegidos também no quadro das
instituições sociais nascentes. Os homens desse tempo – eruditos ou incultos, conservadores ou radicais,
privilegiados ou miseráveis – experimentaram mais ou menos agudamente essas transformações e o
sentimento de ruptura com o passado que acarretaram.21
A Ilustração
A confiança na razão e na capacidade do conhecimento de levar a humanidade a um patamar mais alto
de progresso, regenerando o mundo através da conquista da natureza e promovendo a felicidade aqui na terra,
tornou-se bandeira e símbolo do movimento de crítica cultural que marca o Setecentos, o Século das Luzes –
o Iluminismo. A idéia de liberdade passou, então, a ter a conotação de emancipação do indivíduo da
autoridade social e religiosa, conquista de direitos e autonomia frente às instituições. A burguesia européia
ilustrada acreditava que a ação racional traria ordem ao mundo, sendo a desordem um mero resultado da
irracionalidade. Portanto, os seres humanos, ao serem educados, seriam bons e iguais. Embora o status da
mulher continuasse a ser inferior, começa-se timidamente a pensar sobre os fundamentos da igualdade entre
os sexos.36 A idéia de que o progresso era uma lei inevitável que governava as sociedades principia a se
consolidar e vem a adquirir toda a sua força no pensamento social do século XIX, atuando diretamente sobre
os primeiros teóricos da Sociologia. Na busca de explicações sobre a origem, a natureza e os possíveis rumos
que tomariam as sociedades surgidas das mudanças, temas tais como liberdade, moral, leis, direito,
obrigações, autoridade e desigualdade ganharam destaque e vieram a fazer parte também do elenco de
questões que a Sociologia se colocaria mais tarde. Sem negar os pressupostos básicos desse programa de auto-
suficiência, mas como uma espécie de contrapeso às conseqüências, percebidas como negativas, do
individualismo exacerbado, é que, mais tarde, setores da Sociologia, principalmente da francesa, priorizarão a
vida coletiva, acenando com a ordem, a tradição, o consenso, os valores da comunidade, a religiosidade e a
moral.
Charles Louis de Secondat, Barão de la Brède e de Montesquieu, conhecido como Montesquieu (1689-
1755), foi um filósofo político de grande impacto sobre as ciências sociais, tendo lançado mão do
conhecimento histórico e empírico para fundar seus argumentos, escapando, assim, ao raciocínio dedutivo
característico dos contratualistas. Graças ao saber adquirido por meio de suas viagens e leituras, inovou ao
propor a assunção de um ponto de vista comparativo no estudo das sociedades e suas instituições, tendo
analisado, não apenas os povos europeus, mas também os turcos, os persas, os espartanos e outros. Talvez sua
contribuição teórica mais importante se refira à sua concepção de leis como “relações necessárias que derivam
da natureza das coisas”.37 Portanto, no caso das sociedades humanas, tais leis seriam derivadas de condições
históricas, sociais ou físicas, de um “espírito” que lhes dá sentido, que constitui a individualidade de um povo.
Mas as leis que governam os homens não são sempre obedecidas por eles, sujeitos a mil paixões, à ignorância
e ao erro. Por isso, o mundo inteligente não seria tão bem governado como o físico. Em função disso, “a
liberdade é o direito de fazer tudo quanto as leis permitem; e, se um cidadão pudesse fazer o que elas
proíbem, não teria mais liberdade porque os outros teriam idêntico poder”.38 A divisão de poderes entre os
órgãos do corpo social teria como resultado o mútuo controle que impede os excessos.
Partindo da concepção de estado de natureza onde não existiriam desigualdades, o genebrino Jean
Jacques Rousseau (1712-1778), ao mesmo tempo que prolonga a tradição contratualista, modifica o conteúdo
e o sentido do chamado “pacto social”, assim como questiona o valor do próprio processo civilizatório. No
estado primitivo, o homem é, segundo ele, “um ser livre, cujo coração está em paz e o corpo com saúde”.
Com a formação da sociedade e das leis e o surgimento de governantes, os seres humanos perdem a liberdade
e os direitos naturais. A vida civil e a dependência mútuas criam entre eles laços de servidão. “Embora nesse
estado (o ser humano) se prive de muitas vantagens que frui da natureza, ganha outras de igual monta: suas
faculdades se exercem e se desenvolvem, suas idéias se alargam, seus sentimentos se enobrecem, toda a sua
alma se eleva a tal ponto que, se os abusos dessa nova condição não o degradassem freqüentemente a uma
condição inferior àquela de onde saiu, deveria, sem cessar, bendizer o instante feliz que dela o arrancou para
sempre e fez, de um animal estúpido e limitado, um ser inteligente e um homem.”39 Entre as vantagens
alcançadas, o hábito de viver juntos criou nos homens sentimentos doces como o amor conjugal e paterno,
não havendo, no início, diferenças entre o modo de viver dos dois sexos. O jugo auto-imposto – a fonte dos
males – deveu-se ao aumento de comodidades, que acabaram por se tornar indispensáveis. Assim, “o homem,
de livre e independente que antes era, devido a uma multidão de novas necessidades, passou a estar sujeito,
por assim dizer, a toda a natureza e, sobretudo, a seus semelhantes dos quais, num certo sentido, se torna
escravo, mesmo quando se torna senhor: rico, tem necessidade de seus serviços; pobre, precisa de seu
socorro...”40 Esses males constituem o efeito da propriedade privada, cujo estabelecimento é o primeiro
progresso da desigualdade. Numa frase muito conhecida, ele afirma, “o verdadeiro fundador da sociedade” foi
aquele que primeiro cercou um terreno e lembrou-se de dizer: “isto é meu”, tendo encontrado “pessoas
suficientemente simples para acreditá-lo”.41 O gênero humano ficou, então, submetido ao trabalho, à servidão
e à miséria, surgiram preconceitos “contrários à razão, à felicidade e à virtude” e, por fim, o despotismo.
Assim, “por mais que se admire a sociedade humana, não será menos verdadeiro que ela necessariamente leva
os homens a se odiarem entre si à medida que seus interesses se cruzam, a aparentemente se prestarem
serviços e realmente a se causarem todos os males imagináveis”.42 No coração de todo homem civilizado está
o desejo de ser o rei do universo, diz Rousseau.
Uma contribuição de grande importância para a Sociologia foi dada pelo filósofo prussiano Immanuel
Kant (1724-1804), que refletiu sobre as categorias do conhecimento, a moral, a felicidade, a liberdade, a
virtude, o bem. Dois são os seus aportes para os propósitos dessa discussão: a separação que estabelece entre
o conhecimento científico, a metafísica e a moral; e suas reflexões filosóficas sobre a moral, o dever e a lei.
Na Crítica da Razão Pura, Kant discute a aspiração humana ao saber, a representação dos objetos por
meio de conceitos e o caráter a priori do conhecimento puro, cujos princípios são fornecidos pela razão,
independentemente do dado empírico. É sobre essa base que ele considera o conhecimento científico como
estando, necessariamente, alicerçado na experiência sensível e, ao mesmo tempo, sujeito às determinações da
mente humana. Segundo Kant, é o sujeito cognitivo que coloca as categorias e as formas a priori (tempo e
espaço) com as quais organiza suas percepções e estabelece nexos causais necessários entre os fenômenos. O
caráter nomológico do saber científico descansa em ambos os fundamentos: experiência sensível e categorias
a priori. Assim, nem o conhecimento transcende a experiência sensível, nem a mente é tabula rasa onde o
mundo fica impresso sem a intervenção ativa do sujeito. A filosofia de Kant situa-se, pois, a meio caminho
entre o idealismo puro e o empirismo.
Em sua filosofia moral, Kant aborda a questão dos princípios da ação humana e afirma que somente os
seres racionais podem agir segundo princípios, só eles possuem vontade, que é a razão prática porque deriva
as ações do respeito às leis, ou seja, do dever. Para o filosofo alemão, a ação humana, para ser moral, precisa
ser livre, indeterminada. A moral não significa simples adequação (obediência) das ações que os homens
executam às prescrições estabelecidas por códigos religiosos ou princípios naturalistas que fogem à vontade
humana. A ação sujeita a determinações de ordem natural ou metafísica deixa de ser livre, e sobre essa base
não seria possível fundamentar a responsabilidade política e social dos indivíduos, enquanto cidadãos perante
seus semelhantes. Portanto, é mister que, nessa esfera, o indivíduo que se submeta à lei moral e seja, ao
mesmo tempo, o seu fundamento. Em outras palavras, para Kant, nem o egocentrismo hobbesiano, nem a lei
natural de Locke servem para a construção de uma ética civil e cosmopolita. Um mandamento da razão é
aquele que obriga uma vontade que o respeita, e sua fórmula é um imperativo, expresso pelo verbo “dever”.
Um imperativo categórico representa “uma ação como objetivamente necessária por si mesma”43 e um
princípio conveniente a ele seria o de que a ação que dele resulta não se funda em nenhum interesse ou efeito
dela esperado: ela é incondicional. O homem existe como um fim em si mesmo e não como meio para o uso
de qualquer outra vontade. O imperativo, diz, “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa
como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.”44
Segundo os argumentos kantianos, “a moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas
coisas que têm dignidade”, isto é, não têm preço porque estão acima dele, elas só têm um valor íntimo.45 O
cumprimento do dever gera nos seres racionais um sentimento de prazer.
Advogar que, utilizando-se da razão, os homens podiam melhorar sua condição levou ao surgimento de
um grande interesse por parte de certos setores da sociedade na divulgação de conhecimentos científicos e
práticos.46 O movimento iluminista depositava uma imensa fé na capacidade de a humanidade utilizar-se da
razão e assim progredir. Na França, alguns desses pensadores iluministas planejaram a elaboração de uma
enciclopédia ambiciosa, como um quadro geral dos “esforços da mente humana” para que, por meio do saber,
os homens pudessem tornar seus descendentes mais instruídos, logo, mais virtuosos e felizes. Em 1750,
Diderot lançou o Prospectus através do qual a Enciclopédia foi apresentada.47 No Discurso Preliminar,
publicado em 1751, D’Alembert procura mostrar que, a partir de nossas sensações, nós nos damos conta de
nossa própria existência e, em seguida, dos objetos exteriores, entre os quais nosso corpo “sujeito a mil
necessidades e extremamente sensível à ação dos corpos exteriores”. Dentre os objetos exteriores,
descobrimos seres semelhantes a nós, o que nos faz pensar que possuem as mesmas necessidades e “o mesmo
interesse em satisfazê-las” e que, portanto, deve ser vantajoso nos unirmos a eles. Assim, “a comunicação de
idéias é o princípio e a base dessa união e exige necessariamente a invenção dos signos; tal é a origem da
formação das sociedades com a que as línguas devem ter nascido”.48 D’Alembert rende homenagens aos
gênios de Francis Bacon, de René Descartes, de Newton e de John Locke. Mas o otimismo intelectual que
caracteriza o pensamento iluminista não pode impedir que a conquista do saber prático e do desenvolvimento
material se fizessem, na realidade, às custas dos esforços de uma significativa parcela da humanidade formada
de homens, mulheres e crianças, sem acesso à educação ou à saúde e que pouco desfrutaram da riqueza, da
ciência e do progresso.
Por fim, um dos filósofos mais significativos para a teoria social foi o alemão Georg Wilhelm Fredrich
Hegel (1770-1831), que participa da corrente idealista moderna, isto é, a que reflete sobre as relações entre o
ser, a realidade e a consciência do sujeito pensante. A concepção de dialética tem origem no pensamento
clássico grego e foi retomada por Hegel. O movimento dialético é, para ele, o do desenvolvimento ou da
realização da realidade, a qual é idêntica à razão. Ele afirma: “o verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a
essência que atinge a completude por meio do seu desenvolvimento.”49 A consciência possui um saber sobre o
que é verdadeiro para ela a respeito de um objeto. É a consciência para ela mesma desse saber. Se esse saber
não corresponde ao objeto em si, ela deve mudar esse saber a fim de torná-lo adequado ao objeto. Ela realiza
sua própria conversão. Com isso, o objeto também se torna outro “porque ele pertence essencialmente a esse
saber”, e não permanece estável. Tal é “o movimento dialético que a consciência realiza de si mesma, tanto no
seu saber quanto no seu objeto, enquanto, a partir dele, o novo objeto verdadeiro surge para a consciência
mesma e é chamado experiência.”50 Esse é, portanto, um processo por meio do qual a realização do
conhecimento se dá através da negação e da contradição intrínsecas à própria realidade. A plena compreensão
da dialética exige, como se pode perceber, muito mais do que essa pequena amostra.
A idéia de consciência alienada, separada da realidade, é a de consciência de si como natureza dividida.
A temática da perda do controle dos seres humanos, subjugados pela sua própria criação, pela riqueza, era,
como já vimos, um tema recorrente no pensamento filosófico. Da complexa obra hegeliana, os conceitos de
alienação e o uso do método dialético foram os mais influentes sobre a teoria social, especificamente na
produção de Marx (1818-1883), que associa a alienação dos trabalhadores à divisão do trabalho conjugada à
propriedade privada dos meios de produção, exacerbados na sociedade capitalista, e cuja solução encontrava-
se na negação desse modo de produção e na recuperação, pelos produtores, do controle sobre a produção.
Esse processo revolucionário seria, por sua vez, um resultado do movimento dialético, fundado nas
contradições da própria sociedade.
Os seguidores de Hegel dividiram-se em velhos hegelianos ou direita ortodoxa, e jovens hegelianos, ou
esquerda radical. Esses últimos dedicaram-se às teses políticas e adotaram o método dialético. Dentre eles,
estiveram Karl Marx e Friedrich Engels (1820-1895).
Conclusão
Apesar do caráter sucinto dessa discussão, podemos concluir que, ao tratar de compreender a especificidade
do que poderia ser chamado de “social” e dada a própria natureza de seu objeto, a Sociologia sofre
continuamente as influências de seu contexto. Idéias, valores, ideologias, conflitos e paixões presentes nas
sociedades permeiam a produção sociológica. Antigos temas – liberdade, igualdade, direitos individuais,
alienação – não desapareceram, mas assumem hoje outros significados. A Sociologia era, e continua a ser, um
debate entre concepções que, inspiradas na própria vida social, procuram dar resposta às questões cruciais de
sua época e que, como esta, não se encontram livres de contradições.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Notas
1 Com a queda do Império Romano, em 410, começam a configurar-se os elementos que caracterizarão a
chamada Idade Média ou o período medieval, que se estende até o século XV. Aí começa o Renascimento, o
nascimento da Modernidade.
2 A lepra teria sido a “sombra sobre a vida diária da humanidade medieval”. Difundindo-se na Europa desde o
século VI, chegou ao máximo nos séculos XIII e XIV, sendo endêmica entre os pobres.
3 As guerras eram também outro fator a ampliar as estatísticas referentes à mortalidade. A guerra dos Trinta
Anos, iniciada em 1618, provocou tal mortandade na população alemã que esta passou de 17 a 7 milhões. Em
algumas regiões foram tomadas medidas para aumentar a taxa de fertilidade, tais como permitir que um
homem tivesse duas esposas e dificultar a reclusão aos conventos.
4 Em inícios do século XVII, Maria de Medicis usou um vestido bordado por 32.000 pérolas e 300 diamantes.
5 Os quatro humores são o sangue, a cólera, a fleugma, e a bile amarela e a bile negra. Eles correspondem aos
quatro temperamentos: sangüíneo, colérico, fleugmático e melancólico e aos quatro elementos: fogo, água,
terra e ar. “A caracterização de humores e elementos é feita pela combinação de quatro atributos: quente, frio,
seco, úmido. Como o ar, o sangue é quente e úmido, como a água, a fleugma é fria e úmida, como o fogo, a
bile amarela é quente e seca, como a terra, a bile negra é fria e seca. Os temperamentos condicionam o modo
de ser do indivíduo (seu humour, na expressão inglesa). A doença resulta do desequilíbrio humoral, que é
restabelecido ajudando-se a natureza: o calor interno, gerado pelo coração, fará a cocção dos humores crus.
Os meios que para isso usam os médicos hipocráticos são a sangria, a purga e a dieta.” A melancolia, por
exemplo, adviria de um excesso de bile negra, do grego melanos, negro, chole bile. SCLIAR, Moacyr. A
Paixão Transformada. História da medicina na literatura. S. Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 31 e 75.
6 Uma das condutas profiláticas mais curiosas referentes à teoria dos miasmas e que prevaleceu durante muito
tempo foi o uso de tiros de canhão com o objetivo de purificar o ar. Assim, durante certas epidemias, a cada
meia hora podia-se escutar um novo disparo.
7 ROSEN, George. Uma história da saúde pública. Tradução Marcos F. S. Moreira, S. Paulo: UNESP, 1994,
p. 61.
8 Ver a respeito DARNTON, Robert . O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural
francesa. Tradução Sônia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
9 A figura de Baco, por exemplo, assemelha-se às imagens então correntes do demônio. Há atualmente nos
Estados Unidos e na Europa uma revivescência desses cultos da natureza através de grupos de mulheres que
decidiram assumir a identidade de bruxas e realizar atividades antes proibidas. Nesses casos, a intenção é
recuperar o legado do conhecimento de plantas curativas e do uso de forças naturais que seriam a fonte da
sabedoria daquelas mulheres.
10 DUMELAU, Jean. História do medo no Ocidente, 1300-1800. Uma cidade sitiada. Tradução Maria Lúcia
Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
11 Mais tarde, a comunidade médica inglesa procurou também retirar das mãos femininas o direito a assistir a
partos, reivindicando o conhecimento científico fornecido nas universidades, interditas ao sexo feminino,
como o único legítimo.
12 ROUSSIAUD, Jacques. “A prostituição, sexualidade e sociedade nas cidades francesas do século XV”. in:
Ariès, Philippe e André Béjin. Sexualidades Ocidentais. S. Paulo: Brasiliense, 1987.
13 TILLY, Charles. Coerción, Capital and European States. AD 990-1992. Cambridge, Basil Blackwell,
1995.
14 Foi entre os séculos XVII e XVIII, sobretudo, que despontaram as concepções que faziam do indivíduo o
ponto de partida do saber e da vida social.
15 O racionalismo nasce no século XVII com René Descartes, juntamente com o contratualismo, com
Thomas Hobbes e John Locke, e o empirismo com Francis Bacon, entre outros. Enquanto o empirismo
fundava o conhecimento na experiência, sendo, portanto, indutivo, o racionalismo era dedutivo. A dedução
inicia-se com um conceito geral, abstrato, do qual derivam-se conclusões lógicas a respeito da realidade
concreta. Por exemplo, a partir da idéia de estado da natureza explica-se, através de um processo hipotético
dedutivo, a origem do Estado.
16 A avalanche de descobertas que se deu durante as revoluções industriais respondia às pressões geradas por
dificuldades específicas no processo de produção e, por outra parte, provocava um efeito multiplicador sobre
a tecnologia.
17 A história registra um caso extremo de uma menina da nobreza que foi casada pela primeira vez antes dos
quatro anos e, após enviuvar, ter sido casada novamente por mais duas vezes antes de completar onze. Isso
mostra o grau de dependência a que estavam submetidas as mulheres e a inexistência de laços afetivos como
fundamento das alianças, mais voltadas a outros interesses.
18 Ver ARIÈS, Phillippe . História Social da Criança e da Família. Tradução Dora Flaksman. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1981.
19 O tratamento das crianças é um bom exemplo das mudanças sociais ocorridas no processo de socialização
e na moralidade. A punição física sofrida pelas crianças na forma de palmadas e outros castigos, que já foi
considerada desejável, hoje começa a parecer inaceitável. Surgem entidades oficiais e privadas protetoras que
visam coibir abusos, mas às vezes é suficiente um ato que provoque publicamente sofrimento a uma criança
para que aqueles que o assistem manifestem seu desagrado e aversão. Mesmo assim, ainda hoje se tem
notícias sobre o infanticídio de meninas praticado por familiares, especialmente nas sociedades onde o sexo
feminino é socialmente desvalorizado e nas quais até mesmo a oferta de alimentos é menor para mulheres e
meninas, assim como oportunidades de educação, saúde, salários e cargos.
20 Cortinados ao redor das camas separavam-nas das atividades das oficinas ou do comércio que se
realizavam no mesmo ambiente.
21 Hobsbawn lista palavras que foram inventadas ou ganharam seus significados modernos no período das
duas revoluções: indústria, industrial, fábrica. classe média, classe trabalhadora, capitalismo, socialismo,
aristocracia, ferrovia, liberal, conservador, nacionalidade, cientista, engenheiro, proletariado, crise
(econômica), utilitário, estatística, sociologia, jornalismo, ideologia, greve, pauperismo. HOBSBAWN, Eric.
A Era das Revoluções. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 17.
22 MARX, K. “A sanguinária legislação contra os expropriados a partir dos finais do século XV. Leis sobre
salários”. O Capital, v. I, Buenos Aires: Cartago, 1973.
23 Em meados do século XIX, em 1500 dos porões de Manchester, três pessoas dormiam numa mesma cama;
em outros 738, havia quatro que descansavam sobre um só colchão, e em 281 porões, cada cama era
compartilhada por cinco pessoas. Nessa cidade, como provavelmente em outras, uma espécie de tina
esvaziada pelas manhãs era usada como privada. Em um de seus distritos, 33 dessas tinas serviam a 7.000
pessoas. Em Liverpool, 40.000 pessoas viviam em porões e 60.000 em pátios. A situação era semelhante na
França, na Bélgica, na Prússia e nos Estados Unidos. Rosen, George. Uma história da saúde pública, p. 166-
7.
24 Na França, por exemplo, só em 1793 foi determinado que cada doente deveria ocupar um único leito
hospitalar.
25 Segundo Scliar, “a teoria do miasma, ao mesmo tempo que alertava contra a transmissão de doenças pelos
maus ares, condenava o banho, que poderia abrir os poros e assim facilitar a entrada de eflúvios perigosos”.
Aos europeus causava surpresa a limpeza dos “selvagens”. SCLIAR, Moacyr. A paixão transformada, p. 169-
70.
28 Esse movimento ocorreu na Inglaterra no início do século XIX entre operários têxteis, contra as máquinas
que, segundo seu ponto de vista, causavam o desemprego.
29 Bacon caracteriza os ídolos como opiniões inúteis que bloqueiam a mente. Ele os associa às “noções falsas
que ocupam o intelecto humano”. Para repeli-los, o remédio seria a indução verdadeira, que permitiria formar
noções e axiomas livres dos afetos e das vontades.
31 HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Coleção Os
Pensadores.
32 Locke, Hobbes e Rousseau são representantes do jusnaturalismo ou teoria dos direitos naturais.
33 LOCKE, J. Two Treatises of Government. New York: Cambridge University Press, 1960.
34 ALTHUSSER, Louis. Montesquieu, la política y la historia. Madrid: Ciencia Nueva, 1968, p. 23.
35 tenham esses indivíduos permanecido em guerra uns contra os outros, como queria Hobbes, dedicados “à
alimentação e à sexualidade, sem quaisquer relações contínuas entre si”, como acreditava Rousseau ou, ainda,
em paz como queria Locke...
36 Helvétius escreve, em 1758, que as diferenças entre os seres humanos não se referem à sua capacidade de
conhecer, mas aos fatores sociais e políticos, ou morais; portanto, a educação deveria ser oferecida igualmente
a homens e mulheres. Seu livro foi condenado pelo Papa e queimado no Parlamento de Paris e na Faculdade
de Teologia, a Sorbonne.
37 MONTESQUIEU, O Espírito das Leis, livro I, cap. I, in: WEFFORT, Francisco. Os Clássicos da Política
– Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau, “O Federalista”, v. I, p. 121.
43 KANT, “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”. Textos Selecionados / Immanuel Kant. Seleção
Marilena Chauí. S. Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 124-5.
46 O termo arte já era, desde os gregos, aplicado à técnica, enquanto a ciência conhecia as coisas eternas:
substâncias, essências, movimentos.
47 Figuras proeminentes da Ilustração francesa, Denis Diderot (1713-1784), filósofo e literato, e Jean le Rond
d’Alembert (1717-1783), filósofo, físico e matemático, organizaram e publicaram a Enciclopédia.
48 DIDEROT e D’ALEMBERT. Dicionário Raciocinado das Ciências, das Artes e dos Ofícios por uma
Sociedade de Letrados. Trad. Fúlvia M. L. Morato. S. Paulo: UNESP, 1989, p.23. Entre 1757-1780 saíram à
luz 17 volumes de textos, 111 de pranchas e ilustrações, 5 de suplementos e 2 de índices. Contribuíram para a
Enciclopédia, entre outros, Condorcet, Rousseau e Voltaire.
49 HEGEL, Georg “Fenomenologia do Espírito”, tradução Henrique C. de Lima Vaz. Hegel. Coleção Os
Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 13.
51 SAINT-SIMON, “Parábola” in: Desanti, Dominique. Los socialistas utópicos, tradução Ignacio Vidal.
Barcelona: Anagrama, 1973.
52 O positivismo, fundado por Comte, só admitia o conhecimento baseado nos fatos e, portanto, na
observação. Comte rejeita a metafísica e a prática da dedução em benefício da ciência empírica e verificável.
53 COMTE, A. Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo. Comte. Coleção Os Pensadores, p. 97.
55 tendo superado os anteriores estados teológico e metafísico. Essa é a chamada lei dos três estados,
atribuída equivocadamente a Comte, mas que esteve presente em diversos outros sistemas de pensamento na
época.