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ENSINAR E APRENDER COM A AD

FRANCESA
 
Por Rejane Centurion (UNEMAT) [1]
 
A sala de aula como ponto de partida
É do lugar de professora, por 15 anos, na Educação Básica, que nos posicionamos
nesse momento. E é exatamente nesse lugar, propriamente dito, que se ouvem
afirmações do tipo: A teoria é muito interessante, mas a prática é bem diferente; Na
teoria é fácil, mas a nossa realidade é outra... Teoria interessante? Fácil? Prática
diferente? Outra? Essas questões nos incomodavam e nos acompanharam no período em
que encontrávamo-nos em qualificação (nível mestrado), período este em que
tentávamos, a todo tempo, associar teoria à prática. Era preciso, então, dar uma
resposta aos meus colegas, à escola, enfim, àqueles que acreditavam na
indissociabilidade entre ensino/ pesquisa; teoria/ prática; “escola”/ academia...
A partir daí, surgiu a necessidade de mostrar como a pesquisa desenvolvida
poderia auxiliar na prática educacional, no dia-a-dia com os alunos... Dessa forma,
tentaremos mostrar, por meio de uma seqüência didática, a aplicação da análise de
discurso (doravante AD) à sala de aula, tomando esta como referência. Não gostaríamos,
porém, que tal proposta fosse concebida como uma “receita”, mas apenas uma
demonstração prática de como tal teoria pode subsidiar o trabalho desse professor.
Parafraseando GERALDI (2006, p.79), a preocupação maior deste texto é indicar
possibilidades.
 
Adoção de uma teoria discursiva
Segundo os PCNs (1998, p. 23), (...) toda educação comprometida com o
exercício da cidadania precisa criar condições para que o aluno possa desenvolver sua
competência discursiva. Assim, acreditamos que o primeiro passo para que se
desenvolva um trabalho crítico em sala de aula seja a adoção de uma teoria discursiva
por parte do professor, especificamente, a análise de discurso de orientação francesa,
cujo objetivo inicial foi o de domesticar o olhar de colonos franceses sobre os textos.
Ainda segundo os PCNs (1998, p. 27),
 
Tomando-se a linguagem como atividade discursiva, o texto como
unidade de ensino e a noção de gramática como relativa ao conhecimento
que o falante tem de sua linguagem, as atividades curriculares em Língua
Portuguesa correspondem, principalmente, a atividades discursivas: uma
prática constante de escuta de textos orais e leitura de textos escritos e de
produção de textos orais e escritos, que devem permitir, por meio da
análise e reflexão sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a expansão e
construção de instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente,
ampliar sua competência discursiva.
 
A AD pode, a nosso ver, ser concebida como um dispositivo de leitura que
possibilita a ampliação da competência discursiva do aluno: partindo do pressuposto de
que se tinha, no século XIX, a ilusão de que a linguagem era transparente, no século XX,
Althusser, por meio da releitura que faz de Marx, mostra que a história não é
transparente, Lacan, o sujeito(relendo Freud) e Pêcheux, a linguagem (pela releitura
de Saussure). A partir de tais contribuições coloca-se em questão a transparência, e
surge a necessidade de se produzir um dispositivo teórico para a interpretação. O
analista de discurso, ao construir esse dispositivo, expõe o “olhar-leitor” não na
transparência do texto, mas na opacidade.
O discurso político sempre ocupou um lugar privilegiado na AD, desde o
surgimento da disciplina, no qual era objeto específico [2], como também nas fases
seguintes, nas quais divide o interesse dos analistas com outros tipos de discursos.
Porém, com uma série de transformações históricas, ele transformou-se. Midiatizou-se.
Espetacularizou-se. Passou do palanque à televisão, clamando por transformações
teóricas e metodológicas, como considerar o corpo, a voz, as imagens e a tela; em outras
palavras, considerar sua circulação. Apesar de Pêcheux ter afirmado que o campo
discursivo já estava ligado às mídias, e Orlandi ter concebido a tricotomia constituição/
formulação/ circulação, Piovezani Filho (2006, p. 245) atenta para o fato de que, ao
menos no que concerne ao discurso político, continuou a [se] dar menos atenção que, de
fato, os suportes materiais do discurso mereciam.
E no dia-a-dia, em sala de aula, como a AD francesa e, especificamente, o estudo
do discurso político, podem contribuir no tocante ao ensino da leitura e produção de
textos?
 
Uma experiência possível...[3]
Em alguns livros didáticos, o estudo do conteúdo gramatical “Estrutura e
Formação de Palavras” encontra-se destinado ao primeiro ano do Ensino Médio.
Diferentemente do que costuma acontecer, propomos que ao invés de um estudo do tipo
“decoreba”, envolvendo os processos de formação de palavras e listas de prefixos e
sufixos, os alunos possam entender que os sufixos funcionam como marcas de
heterogeneidade (mostrada) e derrisão, tomando o texto como ponto de partida e
utilizando em torno de dez aulas de 50 minutos, numa turma de primeiro ano do Ensino
Médio. Trabalharíamos não só com a estrutura e formação de palavras, mas também
com sua ressignificação, haja vista que é muito comum palavras serem ressignificadas
no dia-a-dia, surgindo, assim, sentidos “outros”[4].
A seguir, detalharemos a experiência no “entremisturar” teoria e prática.
Inicialmente, proporíamos a leitura de um texto jornalístico intitulado “Entre o
lulismo e o petismo”[5], promovendo uma discussão sobre a política nacional. Na aula
seguinte, apresentaríamos o conteúdo “Estrutura, formação e ressignificação de
palavras”, associando o discurso político ao emprego da derivação sufixal,
especificamente ao emprego do sufixo -ismo. Dessa forma, a sufixação poderia deixar
de ser vista como um processo mecânico de formação de palavras, passando a ser
concebida como um processo discursivo. Acreditamos que tal discussão seja relevante
em sala de aula, pois o discurso político se constitui num terreno bastante fecundo de
manifestação do fenômeno em análise. Parafraseando livremente Foucault, diríamos que
o discurso político é o solo privilegiado do qual irrompem os sufixos derrisórios.
Após consulta a algumas gramáticas normativas brasileiras, pudemos perceber
que estas desconsideram a homofonia dos sufixos, se preocupando mais com a
apresentação de listas de sufixos do que com um meticuloso estudo gramatical do
processo em questão. Assim, utilizaremos como recorte para discussão, o sentido de
“formador de nomes que indicam maneira de pensar, ideologia” (ex: lulismo, petismo...).
O próximo passo será apresentar enunciados [6] diversos envolvendo palavras
formadas a partir do sufixo -ismo, e mostrar o dialogismo presente entre os mesmos. A
partir daí, mostrar que as escolhas lexicais dos políticos não são coincidentes, mas
constitutivas da formação discursiva na qual se encontram. Empregam, pois, tais
palavras de modo que seus sentidos se caracterizem como negativos e/ ou pejorativos,
com o intuito de polemizar, desqualificar o discurso do político oponente. Tais formações
ou ressignificações antecipam os efeitos de sentido pretendidos, sendo comentadas ao
mesmo tempo em que empregadas.
É extremamente importante o professor fundamentar-se nas contribuições de
Jacqueline Authier-Revuz, no tocante ao conceito de heterogeneidade, já que precisará
mostrar que o sufixo instaura na palavra uma “outra” leitura. Em enunciados como O
populismo fabrica a verdade. (...) apela, organiza, inflama as massas. (...) alimenta sem
cessar a enganosa ilusão de um futuro melhor (Enrique Krauze)[7], não é o sentido de
popularidade, de algo relativo a povo, que o enunciador instaura, mas o de “populismo”,
maneira de pensar que não reflete as vontades do povo, mas a do governante, que, por
sua vez, tenta governar por meio de uma ditadura.
Para falar da heterogeneidade, faz-se necessário voltar ao ano de 1979, ao
colóquio “Materialidades discursivas”, o qual representou um novo ponto de partida para
os estudos do discurso; voltar, pois, ao início da fase do outro sobre o mesmo – fase em
que o trabalho com o intradiscurso passou a ser relacionado ao interdiscurso.
A presença de Jacqueline Authier em tal colóquio deu início à colaboração de uma
lingüista externa ao campo da análise do discurso, cuja responsabilidade foi a de apontar
elementos decisivos à problemática da heterogeneidade do discurso. O sentido e a
enunciação já eram por ela abordados por meio do discurso relatado, desde 1978,
evidenciando, assim, as rupturas enunciativas no fio do discurso, o discurso outro no
próprio discurso.
                 
A lingüista Jacqueline Authier, eu já o sugeri, intervinha de maneira
completamente diferente. “Palavras mantidas à distância”, através de uma
fusão de exemplos finamente trabalhados, abordava a questão das aspas
que, colocadas em uma palavra ou expressão, marca uma suspensão da
tomada a cargo pelo enunciador. Esta questão tocava diretamente o
surgimento do outro no discurso de um sujeito. Ela sustentava a
problemática da heterogeneidade oferecendo um ponto de ancoragem
para a análise (MALDIDIER, 2003, p.77).
 
Authier-Revuz (2004) classifica a heterogeneidade em dois tipos: a constitutiva e
a mostrada. A primeira ocorre quando o discurso é colocado em relação de alteridade,
não se mostrando no fio do discurso. A segunda, por sua vez, faz referência à presença
do Outro, podendo ser marcada (as glosas, as aspas, o discurso direto, o discurso
indireto...) ou não-marcada (a ironia, a imitação...).
A autora se ancora em dois pontos de vista exteriores à lingüística para
fundamentar a heterogeneidade constitutiva do discurso: o dialogismo do círculo de
Bakhtin e a psicanálise na interpretação lacaniana de Freud. Para o primeiro ponto de
vista, a interação com o discurso do outro constitui qualquer discurso. Para o segundo, o
discurso se constitui atravessado pelo discurso do Outro. Dessa forma, todo discurso se
mostra constitutivamente atravessado pelos ‘outros discursos’ e pelo ‘discurso do
Outro’” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.69). Trata-se da heterogeneidade da palavra e do
descentramento do sujeito.
A autora acredita que as formas da heterogeneidade mostrada manifestam
diversos tipos de negociação do sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva de
seu discurso:
 
(...) a heterogeneidade mostrada não é um espelho, no discurso, da
heterogeneidade constitutiva do discurso; ela também não é
“independente”: ela corresponde a uma forma de negociação – necessária
– do sujeito falante com essa heterogeneidade constitutiva – inelutável
mas que lhe é necessário desconhecer; assim, a forma “normal” dessa
negociação se assemelha ao mecanismo da denegação(AUTHIER-REVUZ,
2004, p.71-2).
 
Para ela, fica evidente que a heterogeneidade mostrada pode ser considerada
como um modo de denegação no discurso da heterogeneidade constitutiva. Não há
como escapar da heterogeneidade da fala; suas marcas explícitas representam uma
ameaça ao sujeito falante, tendo este a ilusão de ser o dono do seu discurso. É como se
aquilo que não estivesse explícito, fosse seu, empenhando-se, portanto, em fortalecer
o estatuto do um.
Não há, portanto, sentidos gerais, como apregoam as gramáticas normativas em
relação aos sufixos, mas efeitos de sentidos únicos, sendo as palavras formadas para
provocar um efeito de sentido específico para a situação na qual são empregadas. Para
corroborar nossa afirmação, citamos Vendryes (apud AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 30):
 
Entre os diversos sentidos de uma palavra, só emerge à
consciência aquele que é determinado pelo contexto. Todos os outros são
abolidos, extintos, não existem (...) Na linguagem corrente, uma palavra
tem um único sentido por vez.
 
As aulas dialogarão, dessa forma, com a proposta de Jacqueline Authier-Revuz, já
que parte das formas da língua para mostrar as não-coincidências (ao invés das
evidências) que atravessam os dizeres. A autora aponta uma inevitável heterogeneidade
teórica que afeta a abordagem lingüística dos fatos enunciativos, impondo a explicitação
dos exteriores teóricos. Partir das formas da língua inscreve seu trabalho numa
corrente enunciativa no sentido estrito, neo-estruturalista. Authier-Revuz não ignora a
questão da estrutura, dando um lugar para o conhecimento de sua articulação com a
linguagem.
Segundo a autora, o dizer é afetado por quatro campos de não-coincidência: a
interlocutiva; a do discurso consigo mesmo; a que ocorre entre as palavras e as coisas; e
a das palavras consigo mesmas. Não se pode escapar a essas não-coincidências, sendo
constitutivas do dizer. E é nesse espaço que o sentido é produzido, espaço no qual as
palavras não falam por si, mas pelo Outro. Nesse mesmo espaço, o sentido pode
desfazer-se, representando a fixidez do sentido uno, porém, uma força de ligação e de
coesão o protege, e esse sentido uno faz ‘obter’ uma fala, que faz com que obter uma
fala seja, entre outros, fazer ‘ter junto’ o que não faz outro sentido senão o de não ser
um (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 26). É justamente nessa tensão entre o um e o não
um da enunciação que se tem a configuração enunciativa complexa da reflexividade
opacificante.
 
A modalidade autonímica aparece nesse jogo de um que ‘junta’ e
de não-um que ‘esgarça’, como um modo dacostura aparente[8], que
ressalta em um mesmo movimento a falha da não-coincidência enunciativa
(contrariamente ao modo da superfície una), e sua sutura metaenunciativa
(contrariamente ao modo da ruptura ‘bruta’ do lapso).
 
Quando Authier-Revuz se refere à escolha dos exteriores teóricos relativos à
questão do sujeito e de sua relação com a linguagem, aponta dois tipos de sujeito:
o sujeito-origem (o da psicologia e das suas variantes ‘neuronais’ ou sociais) e
o sujeito-efeito (aquele assujeitado ao inconsciente, da psicanálise, ou o das teorias do
discurso que postulam a determinação histórica em um sentido não individual). Se nos
apoiarmos em um sujeito fonte intencional do sentido (como o fazem as abordagens
pragmático-comunicacionais), é coerente considerar que o sentido é transparente e que
o enunciador está em condição de representar sua enunciação e o sentido produzido por
ela. Se, por outro lado, apoiarmo-nos em exteriores teóricos que destituem o sujeito do
domínio de seu dizer (como Pêcheux e Lacan o fizeram), este dizer não poderia ser
transparente ao enunciador, ao qual ele escapa, irrepresentável, em sua dupla
determinação pelo inconsciente e pelo interdiscurso.
Por tratar da enunciação, o trabalho de Authier-Revuz se situa na região do
esquecimento número dois: ao falarmos, o fazemos de uma maneira e não de outra e, ao
longo de nosso dizer, formam-se famílias parafrásticas que indicam que o dizer sempre
podia ser outro (ORLANDI, 1999, p. 35). Produz-se, por meio deste esquecimento, a
impressão da realidade do pensamento (uma ilusão referencial), fazendo-se acreditar na
relação direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo. Assim, pensa-se que o que
se diz só pode ser dito com aquelas palavras e não com outras, como se a relação entre
palavra e coisa fosse natural. Ainda segundo Orlandi, este esquecimento atesta que a
sintaxe significa: o modo de dizer não é indiferente aos sentidos. Essa autora conclui que
o esquecimento enunciativo é semi-consciente e muitas vezes voltamos sobre ele,
recorremos a esta margem de famílias parafrásticas, para melhor especificar o que
dizemos.
Outro conceito fundamental para conduzir a discussão dos enunciados é o de
derrisão, conceito este reelaborado pelos teóricos do discurso a partir da noção
de tropos zombeteiro, uma das mais antigas técnicas de oratória que utiliza como
recurso enunciativo a desqualificação do oponente por meio da zombaria, suscitando o
riso num determinado auditório.
Segundo Bonnafous (2003, p.35) a derrisão consiste na associação do humor e
da agressividade que a caracteriza e a distingue da pura injúria. É muito comum seu uso
no discurso político, visto que, ao se descaracterizar o discurso do oponente, obtém-se
com isso vantagens políticas. Ela acredita que a violência verbal está cada vez mais
presente no discurso político, nutrindo-o de zombarias, gracejos, trocadilhos, jogos de
palavras... O caso Dreyfus [9] é um exemplo destacado, no qual houve uma entrega aos
jogos discursivos envolvendo a invenção verbal e a composição. (...) os digladiadores
faziam-se as honras por meio de sufixações pejorativas[10], terminações eruditas e
paródicas, truncamentos e deformações. Dessa forma, a derrisão associa o humor e a
agressão, não se reduzindo ao riso. (...) uma espécie de amabilidade verbal violenta que
por produzir o riso foge de sanções negativas da legislação e, principalmente da opinião
pública (BARONAS, 2004, p.158).
As escolhas lexicais feitas pelos políticos nos enunciados analisados e colocados
em discussão, seguem essa linha: a da tentativa de, por meio de formas da língua,
desqualificar o discurso do oponente. As palavras lulismo e petismo não são lidas, pois, a
partir de um processo mecânico, mas discursivamente: petismo deixa de ser lido apenas
como “ideologia do PT”, passando a significar “ideologia de um partido, outrora ‘de
esquerda’, envolvido em escândalos de corrupção”; lulismo, por sua vez, que seria aquilo
que está relacionado à figura do presidente, passa a instaurar o sentido de “o que há de
ruim em Lula”. Para corroborar as afirmações supracitadas, apresentaríamos um vídeo
veiculado ao site www.youtube.com intitulado “Lulismo”. Neste, ao invés de assistirmos
a alguma notícia ou algo relacionado à postura política e/ ou à ideologia do presidente,
são apresentadas gafes por ele cometidas, em sua maioria, relacionadas ao emprego da
norma culta, à maneira de falar.Vemos, portanto, que o vídeo “Lulismo” apresenta o
que há de ruim no falar de Lula, confirmando a idéia de que o sufixo confere ao termo
um sentido negativo/ pejorativo.
Finalmente, os alunos seriam submetidos à atividade de pesquisa: cada um se
encarregaria de procurar (utilizando textos da mídia em geral) ocorrências formadas a
partir dos sufixos estudados, escolhendo um enunciado e fazendo a interpretação escrita
do mesmo (no mínimo um, e, no máximo, três enunciados). A seqüência didática se
concluiria com a apresentação oral das análises e sua exposição num mural denominado
“Sufixos: lendo o ‘outro’ a partir do ‘mesmo’”, contemplando, portanto, a produção tanto
do gênero escrito quanto do oral. Tal pesquisa não se restringiria ao uso do sufixo -ismo,
mas àqueles que também pudessem funcionar como modalizadores autonímicos
derrisórios: além de caracterizarem em seus contextos enunciativos, de forma
simultânea, um uso e um comentário sobre o mesmo, o fazem para desqualificar o
discurso do outro.
De forma esquemática, a seqüência didática se resumiria, pois, ao seguinte
quadro:
  Etapas: Nº
de
aulas
1ª Leitura de texto jornalístico e discussão sobre a política nacional (Material 01
de apoio – Texto: “Entre o lulismo e o petismo”).
2ª Apresentação do conteúdo “Estrutura, formação e ressignificação das 02
palavras”.
3ª Associação do discurso político ao emprego da derivação sufixal para a 02
formação de novas palavras e ressignificação das já existentes. Em
específico, do sufixo –ismo (Material de apoio: alguns dos enunciados
analisados em nossa dissertação de mestrado).
4ª Mostrar o dialogismo existente entre os textos, a heterogeneidade e a 01
derrisão características dos sufixos.
5ª Apresentação de vídeo (Material de apoio – Vídeo: “Lulismo”). 01
6ª Propor aos alunos a procura por ocorrências, no discurso político, 01
formadas a partir dos sufixos estudados, seguida da interpretação escrita
(Material de apoio: textos da mídia em geral).
7ª Apresentação oral das análises e exposição em mural dos enunciados 02
interpretados.
 
A seleção dos textos justifica-se por acreditarmos na necessidade cada vez maior
de a escola utilizar gêneros da mídia tanto para formar leitores críticos quanto pelo fato
de que esses gêneros despertam mais o interesse dos alunos, como é o caso
do site supracitado, cujo público alvo visitante é a juventude. Há também a oportunidade
de incentivo à leitura do jornal pelos alunos.
Segundo Petroni (2007, p.86),
 
Um dos pilares da proposta de seqüências didáticas é o contato
com a diversidade de textos socialmente produzidos (...) sobre o tópico da
discussão. (...). Essa pequena variedade de material permite o contato não
apenas com diferentes objetos lingüísticos, portanto, com diferentes
modos de dizer, mas também com material alternativo ao livro didático
(...).
 
Considerações finais
Como afirmamos inicialmente, a proposta deste texto é apresentar uma
possibilidade de aplicação de uma determinada teoria às atividades no dia-a-dia de uma
sala de aula da Educação Básica. A proposta mostra que o professor não deixará de
“seguir” o livro didático (uma dos argumentos mais utilizados), mas transporá um olhar
diferente a tal conteúdo, mobilizando conceitos como: discurso, formação discursiva e
ideológica, heterogeneidade mostrada e constitutiva, derrisão, dialogismo, interdiscurso,
intradiscurso, modalização autonímica[11]...
A gramática, tratada na perspectiva discursiva, serve de apoio para discussões de
aspectos da língua que o professor considerar necessários no decorrer do processo de
ensino-aprendizagem. A preocupação principal não deve ser, pois, se a gramática deve
ou não ser ensinada, mas o que, para que e como ensiná-la.
 
O que deve ser ensinado não responde às imposições de
organização clássica de conteúdos na gramática escolar, mas aos aspectos
que precisam ser tematizados em função das necessidades apresentadas
pelos alunos nas atividades de produção, leitura e escuta de textos (PCN,
1998, p. 29).
 
A realidade aponta, porém, que o trabalho com a língua em grande parte das
escolas brasileiras tem a gramática normativa como principal material didático para
nortear o ensino de leitura e escrita. Assim, torna-se comum a associação de fatos
relacionados à língua a prescrições. Afunilando a discussão, tendo em vista nosso objeto,
é prudente admitir que a derivação sufixal, hoje, ainda é ensinada como “regem” os
compêndios escolares, adotando uma abordagem gramatical/ normativa,
descontextualizando-se das práticas de linguagem. A respeito disso, os PCN apontam a
seguinte orientação:
 
É preciso entender, por um lado, que, ainda que se trate a palavra
como unidade, muitas vezes ela é um conjunto de unidades menores
(radicais, afixos[12], desinências) que concorrem para a constituição do
sentido. E, por outro, que, dificilmente, podemos dizer o que uma palavra
significa, tomando-a isoladamente: o sentido, em geral, decorre da
articulação da palavra com outras na frase e, por vezes, na relação com o
exterior lingüístico, em função do contexto situacional (PCN, 1998, p. 84).
 
Um dos objetivos do nosso trabalho é justamente mostrar que os sufixos, como
unidades menores da palavra também concorrem para a constituição do sentido.
Propomos, então, que as aulas de sufixação passem a ganhar mais sentido com
as contribuições da teoria discursiva. Que os alunos/ leitores possam “enxergar”, por
exemplo, que os sufixos, em determinados contextos, podem ser lidos como
modalizadores autonímicos derrisórios, ou seja, que o enunciador emprega-os e, ao
mesmo tempo, faz um comentário que desqualifica o discurso do outro, antecipando,
dessa forma, a interpretação que seu ouvinte/leitor venha fazer.
Numa perspectiva discursiva, o ensino de gramática (e, especificamente, o dos
sufixos) se efetivaria de forma contextualizada, e não isolada, como na maioria das
vezes acontece. A sufixação poderia ser abordada, por exemplo, nas aulas de leitura de
gêneros variados – charges, piadas, artigos de opinião, etc. As aulas de gramática
deixariam de ser “obsoletas” e se tornariam, certamente, mais interessantes, isso
porque os alunos estariam lidando com enunciados concretos, realizados em situações
específicas de uso da língua, e não com exemplos prontos, retirados de gramáticas
normativas e isolados de qualquer contexto. Dessa forma, pode-se, na nossa escola,
“construir estratégias para que o ler seja algo  mais do que viajar a bordo do sentido
verbal único” (BARONAS, 2004, p. 159).
Concluímos, por ora, que trocar o ensino prescritivo por um que privilegie a
abordagem discursiva, pode ser um dos caminhos para que formemos alunos/ cidadãos
mais críticos e, conseqüentemente, mais interessados à apreensão dos conteúdos.
 
Referências bibliográficas:
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer.Campinas-SP: Editora da
Unicamp, 1998.
______. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004.
BARONAS, Roberto Leiser. Notas breves sobre a derrisão no gênero discursivo fotografia. In: Polifonia.
Revista do programa de pós-graduação em estudos de linguagem –Mestrado [do] Instituto de Linguagens.
Cuiabá: EdUFMT, 2004, Ano 7, nº 8.
BONNAFOUS, Simone. Sobre o bom uso da derrisão em J. M. Le Pen (tradução de Maria do Rosário Gregolin e
Fábio César Montanheiro). In: GREGOLIN, Maria do Rosário. Discurso e mídia: a cultura do espetáculo. São Carlos-
SP: Claraluz, 2003.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental. Língua
Portuguesa. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/ SEF, 1998.
GERALDI, João Wanderley. O texto na sala de aula. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006.
MALDIDIER, Denise. A inquietação do discurso (tradução de Eni Puccinelli Orlandi).Campinas – SP: Pontes,
2003.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas-SP: Pontes,1999.
PETRONI, Maria Rosa. Leitura e produção do discurso argumentativo escrito: linguagem e ensino. In: DIAS,
Marieta Prata de Lima (org.). Língua e literatura: discurso pedagógico. São Paulo: Ensino Profissional, 2007.
PIOVEZANI FILHO, Carlos. Análise do discurso político: novos objetos, novas perspectivas. In: NAVARRO,
Pedro (org.). Estudos do texto e do discurso: mapeando conceitos e métodos. São Carlos (SP): Claraluz, 2006.

[1]
 Professora no Departamento de Letras da Universidade do Estado do Mato Grosso, Campus de Tangará da
Serra e Mestre em Estudos da Linguagem, pela UFMT. E-mail: rejanecenturion@yahoo.com.br
[2]
 O discurso político não era o único a ser analisado, mas também o pedagógico, o científico e o dos
historiadores. Porém, o peso das descrições de corpora políticos sobrepujava qualquer outro, a ponto de se considerar,
de forma geral, o discurso político como objeto específico de análise.
[3]
 Para que nossa proposta fique clara, à medida que formos apresentando a experiência, mobilizaremos os
conceitos pertinentes a cada etapa da seqüência didática.
[4]
 Destacamos as operações da polícia federal, as quais recebem nomes como Vampiro, Sanguessuga,
Navalha, os quais não são lidos em seus sentidos “literais”...
[5]
 Texto publicado no jornal A Gazeta (estado de Mato Grosso), no dia 25 de abril de 2007, em seu editorial.
[6]
 Os enunciados selecionados para discussão nesse momento, envolvem o período de surgimento dos
escândalos do mensalão (maio de 2005) e da campanha eleitoral para o cargo de presidente da República (entre
outros), sendo um momento de desqualificação do discurso do outro. Descaracterizar o discurso do então presidente
da República (Luiz Inácio Lula da Silva) foi o maior desafio para a oposição. E, por outro lado, se defender das
acusações foi também um desafio para a situação.
[7]
 In: O Estado de São Paulo, edição digital, 15/04/2006.
[8]
 Grifo da autora.
[9]
 Escândalo político que dividiu a França por muitos anos, durante o final do séculoXIX.
[10]
 Grifo nosso.
[11]
 É importante deixar claro que tais conceitos farão parte do planejamento do professor. Não é o aluno que
precisa conhecer os conceitos, mas o professor. Se este não tem conhecimento da teoria, cabe aos cursos de formação
continuada suprir essa “falta”.
[12]
 Grifo nosso.

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