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Luisinho e as Andorinhas

Luís Van Beethoven nasceu em 1770, em Bona, na Alemanha, e morreu em 1827, em Viena.
Compôs sonatas, quartetos, sinfonias e a ópera “Fidélio”.
Um sopro imenso de humanidade, de energia criadora, de beleza, percorre toda a sua obra imortal.
Teve uma existência por vezes difícil, e os últimos anos da sua vida foram atormentados pela surdez.

Contar histórias é misturar a realidade com a ficção, o concreto com o imaginário.

É, por vezes, confundir o passado com o presente.

Pode ser ainda, a partir do presente, prefigurar o futuro.

Por isso, amigos, não se admirem que, nesta história, as andorinhas possam escrever música
nos fios do telégrafo.

E por que não?

E se no tempo em que Beethoven viveu não existia ainda o telégrafo, cuja invenção é
posterior à sua morte, o que nos impede de imaginar as andorinhas pousando alegremente nos fios
telegráficos ou telefónicos como nos dias de hoje?

Claro que os fios de uma ramada teriam servido para a história. Mas porque os fios do
telégrafo e do telefone ressoam com a brisa, e por se pensar que neles viajam sons, palavras,
música — talvez fosse por isso que nesta história de um menino que tocava flauta eles surgissem
como pauta musical.

Mudar seres e objetos de um lugar para outro, de um tempo para outro, à velocidade quase
instantânea do pensamento, de recriar e transfigurar a realidade com o poder da imaginação, não é
isto admirável, amigos?

Assim nascem as histórias, assim todos serão capazes de escrevê-las também. Ou não?

Papiniano Carlos
Era uma vez um menino
chamado Luisinho.

Um dia,
Luisinho, O menino
ao voltar da escola, sentia o pequenino coração
viu estremecer.
que a primavera E seus olhos deslumbrados
havia chegado. viam os passarinhos
pousar-lhe nos ombros
Longo, e na palma da mão.
longo — Olá, amiguinhos,
fora o inverno, que brincadeira é essa?
dias sombrios, — É a primavera
frio, neve, chuva, que chegou, Luisinho!
vento bufando Bico amarelo,
vuu vuuuuuu. negro, luzidio,
o fato catita
Agora, brunido a preceito,
um grande sol radioso o malandro do melro,
cobria ah como ele assobiava!
campos, casas, caminhos, — Bom dia, amigo melro,
abria-se, queres emprestar-me
rosa de lume e alegria, o teu flautim?
a toda a roda
do horizonte. Vagarosamente,
E corninhos ao sol,
olhando as árvores, Zé Caracol
viu subia
que dos gomos inchados sobe que sobe,
subitamente a casa às costas,
rebentavam folhas pelo tronco
e flores. dum velho choupo,
corninhos ao sol,
Subitamente sobe que sobe.
tudo era luz e alegria — Olá, caracol!
— vermelho, rosa, azul, verde, ouro, — Olá, Luisinho!
no dia glorioso. Felizes,
no azul do céu, — Então espera que eu já volto
chilreavam as andorinhas. com as minhas irmãs,
Num rodopio, e todas juntas
setas velozes, vamos ensinar-te
subiam, que a grande música do mundo
desciam, é a que mora
subiam, desciam, na primavera que trazes
tocavam as nuvens, no coração.
tornavam a descer, E logo
setas velozes desapareceu
vinham rasar ervas, flores, árvores, nos ares.
casas, caminhos.
— Luisinho, Luisinho, queres ter asas como O menino
nós? mal teve tempo
Queres um dia voar connosco de esfregar os olhos.
até às estrelas, Num remoinho de asas
até à grande primavera e alegria
que há para além das primaveras? um bando de andorinhas
— Quero! Quero! rodava à sua volta.

Então Ena, que coisa mais linda,


uma andorinha, quem já viu
oh que linda era ela!, uma festa igual?
roda que roda, Rodaram,
três vezes volteou rodaram
mais três vezes saudando Luisinho,
e outras três, Depois,
gira que gira, como se obedecessem
em torno de Luisinho. a uma ordem invisível,
uma a uma,
Depois, as asas ruflando,
parando um momento no ar, começaram a pousar
tal um helicópterosinho nos fios do telégrafo.
as asas feitas hélice, E Luisinho
gira que gira, logo compreendeu.
a andorinha perguntou-lhe: As andorinhas eram notas
— Tens aí a tua flauta? numa pauta musical.
— Então não havia de ter?
Ele mesmo a fizera Lá estavam
com dois palmos de cana, nos fios,
e era tão linda uma a uma escritas
e tocava tão bem! as sete
— Queres que te ensine notas musicais
uma melodia? — Dó ré mi fá sol lá si.
— Quero! Quero! E a seguir
o menino leu, o atravessasse.
andorinha a andorinha, E Luisinho
descendo o olhar, tocava,
fio a fio, tocava,
si lá sol fá mi ré dó, tocava
esquecido de tudo.
Era isto a primavera?
Estaria acaso
a sonhar?

tal qual aprendera O sol


na escola. morria já
— Sim, entendi, amiguinhas; por trás das casas e das árvores.
podem escrever agora Oh era tão tarde!
a melodia. Que horas seriam?
Ai os seus pais
E Luisinho como deviam estar inquietos
não teve mais com a sua demora!
que tirar dos buracos As andorinhas
da sua flauta tinham já abalado,
as notas a noite descia.
que as andorinhas
iam escrevendo Meteu a flauta no bolso,
nos fios telegráficos. caminhou para casa.
E sentia, — Luisinho! Luisinho!
ouvia a música A voz saía
ressoar de um tufo de ervas.
no fundo dos seus ouvidos, — Sou eu, Luisinho.
dentro — Ah, és tu, amigo?
do seu coração.
E João Sapão,
Luisinho soprava arrimado à sua bengala,
na sua flauta muito direito
e, feliz, e cheio de dignidade,
tocava, com sua voz rouca
tocava, de velho sapo,
tocava. disse ao menino:
— Não estejas triste, Luisinho.
Era Se explicares
como se um rio a teu pai a razão
de música, da tua demora, verás,
um rio de pássaros, ele não te vai ralhar.
de brisa talvez,
poderosa Quando chegou a casa,
mas lentamente encontrou a mãe aflita:
— Porque te demoraste tanto, pôde escrever
meu filho? as sonatas e sinfonias
Sentado à mesa, onde
o pai esperava-o: o canto dos pássaros
— São horas e o respirar da brisa,
de vires para casa? a silenciosa harmonia
Por onde andaste tu? dos astros girando
(Que havia de responder?) no espaço,
Não dizes nada? se misturavam
— Desculpe, meu pai, ao bramir do mar,
estive a estudar ao zunir dos raios,
com as andorinhas! ao ranger dos trovões,
ao clamor dos homens
Mas que tem este moço?, escravizados
perguntou-se o pai, e ao seu grito futuro,
mas não lhe ralhou. livre e triunfal.

Muitos anos Depois


se passaram. ficou velho
Luisinho cresceu, e doente.
estudou, E ficou surdo.
estudou, Por isso
aprendeu a tocar todos se admiravam
todos os instrumentos como continuava a escrever
— cravo, piano, violino, violoncelo, sem descanso
oboé, baixo, clarinete — nos seus cadernos,
fez-se homem, nota a nota,
passou trabalhos, dores, as grandes harmonias
horas de felicidade, como nunca ninguém
tornou-se até aí escrevera.
um grande compositor.
Pois se ele
Sabia não ouvia mais as notas
finalmente que punha nas pautas,
misturar se ele
os sons de todos não podia mais ouvir
os instrumentos, o som dos violinos,
separá-los o som do oboé,
ou juntá-los, o som das teclas do cravo
marcar as pausas e do piano?!
e silêncios, Como era possível?
conduzir Somente,
o rio sonoro que as pessoas não sabiam
que inventava. que desde aquele dia
Assim, em que aprendera
com as andorinhas, Então todos saberão
a música que,
irrompia no seu coração, com a sua música,
era dentro de si mesmo,
por detrás dos seus ouvidos
que ela ressoava.
ele ajudou também
a construir
o que somos hoje,
o que seremos amanhã,
o rosto radioso
da primavera
que sem descanso
dentro
e fora de nós
dia após dia construímos.

Assim,
mesmo surdo,
ele a ouvia por dentro,
assim
a ;podia escrever
nota a nota
— dó ré mi f á sol lá si —
nos seus cadernos,
assim
podia cantar os grandes, puros
ideais
da humanidade,
a força criadora
da natureza,
a alegria invencível
de viver
e criar.

Um dia,
todos vão conhecer
melhor
quem foi Luisinho,
este menino,
quem foi o homem
Papiniano Carlos
que se chamou Luisinho e as Andorinhas
Luís van Beethoven. Porto, Campo das Letras, 2001
(adaptação)

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