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SEGUNDA - 16/3/20

PEDRO SANTOS GUERREIRO

O senhorio não aguarda pelo coronavírus

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sta crise económica mata não pelo movimento mas pela paralisia. E se a recessão súbita parece certa, são os apoios do Estado que a tornarão mais ou menos destruidora. As medidas do
Governo são quase todas boas e terão de ser reforçadas. Uma é insuficiente: o apoio aos recibos verdes. Um terço do rendimento médio para os trabalhadores independentes, metade do
previsto para trabalhadores por conta de outrem, é pouco. Porque muitos recibos verdes são os primeiros a perder tudo - tudo menos as contas que pagam para viver e habitar.

As primeiras medidas do Governo foram preparadas à pressa, é natural que sejam imperfeitas e é evidente que serão reforçadas. O FMI vai despejar dinheiro, a UE anda a inventar dinheiro, o
BCE anda a oferecer dinheiro e os Estados vão gastar sem freio porque não pode ser de outra forma. É preciso atirar dinheiro de helicóptero para achatar duas curvas, a de subida dos infetados
pelo Covid-19 e a da descida dos afetados pela economia. Os limites aos défices vão entrar de férias e muito bem, desde que não se deixem descontrolar as dívidas. Porque a única boa notícia desta
severidade abrupta é que a recuperação poderá ser mais rápida, mas não antes do fim do ano.

As medidas são pobres para os recibos verdes, já de si precários. Milhares já viram os honorários reduzidos, as colaborações suspensas e as prestações de serviço canceladas. Neste momento, o
Estado garante 33% do rendimento médio, entre €438,81 e €1.097. A percentagem tem de subir para os 66% previstos para os trabalhadores por conta de outrem, compensando a fatia (33%) dos
patrões que os recibos verdes não têm. De outra forma, milhares não resistirão. Não conseguirão sequer pagar a renda.

OS ARTISTAS COSMONAUTAS
O título deste texto é uma declaração hoje ao “Jornal de Notícias” de Rui Oliveira, “ator profissional há mais de 30 anos que viu a sua preenchida agenda de março e abril desaparecer em dois
dias”. Os profissionais de espetáculos são um grupo particularmente exposto a esta crise, pois o resto da temporada está provavelmente perdido, o que os atira para um cenário sem atividade
regular até setembro, seis meses parados, meio ano sem rendimento.

Os artistas ganham pouco por mês, nunca ganham 14 meses por ano, quase nunca ganham sequer 12, alguns não ganham nada, muitos têm vários empregos em simultâneo, que não são empregos
mas biscates ou o que for possível. Além de precários e mal pagos, não têm quase proteção social, nunca puderam acumular poupanças e ainda por cima são vistos como mamões de subsídio por
grande parte da sociedade, “vai trabalhar malandro”, que ainda os vê como parasitas impertinentes improdutivos, “arranja mas é um emprego a sério”, não faz ideia das misérias que se recebe e
paga a todos com exceção das novelas de TV, e sabe que muitos disputam o minúsculo orçamento do Estado para a Cultura mas não aceita que não pode ser de outra forma, como de outra forma
não é nos demais países europeus.

Os recibos verdes também têm tesouraria que agora não têm, e precisam de entrar nesta primeira linha do
Estado. Não todos, mas os muitos que demonstrem quebra de rendimento. No mercado de trabalho, eles
sempre foram os filhos desprotegidos

Os teatros e companhias nacionais e municipais deverão nesta fase garantir parte das remunerações previstas e isso não será altruísmo mas garantia de continuidade sem devastação, mas por
exemplo as companhias independentes não têm como fazê-lo sem bilheteira. E isto significa várias coisas: que as câmaras municipais, sem as quais não haveria cultura se não em Lisboa e Porto,
têm de incluir os profissionais de espetáculo nos seus planos de contingência; que o Ministério da Cultura tem de entrar nos apoios que o Governo está a lançar; que os mecenas não façam férias;
mas também que todos os artistas se convoquem a si mesmos num país que está carente de criação, de imaginação, de pensamento, para que a sociedade descubra neste tempo de medo e
opressão formas de expressão, de grito ou de afeto, de inquietude ou de questionamento, de insurreição ou ressurreição, das artes não para as plateias de cadeiras necessariamente vazias, mas
para as janelas de vidro ou de plasma de cada casa em quarentena.

Em todas as crises agudas os artistas rebelaram-se com nuvens contra o chumbo e com chumbo contra as nuvens, e este é um momento que sintetiza uma era, e em que a criação artística deve
revelar o que não vemos, sintetizar contradições, denunciar o tempo velho e anunciar o tempo novo, para que cada pessoa, cada sociedade e este mundo se descerre em tempos de vírus e saia das
calhas que giram o rato na roda. Cada um é um elo da desacorrentada cadeia: não é mão estendida ao Estado, é um compromisso não apenas para a transação mínima de rendimentos mas para a
transição de uma estrutura posterior de sustentabilidade; não é um pedido lamuriento às instituições, é uma intimação perante a sua missão; não é “uma oportunidade” para os artistas, é um
repto para acendam focos impensáveis numa sociedade às cegas.

O COSMOS DOS RECIBOS VERDES


Mas os artistas são só um subgrupo mais definível dessa imensidão de recibos verdes que têm de pagar a renda. A renda nem sequer é uma imagem, é uma questão primordial, pois nas grandes
cidades tornaram-se uma forma de extorsão, depois de anos de especulação desenfreada, com subidas muito acima das dos rendimentos.

Segundo o INE, 16,9% dos empregados em Portugal trabalham por conta própria, são mais de 800 mil, 73% dos quais não empregam ninguém, só a si mesmos. Muitos estão felizes da vida, há até
sete mil que ganham mais de 650 mil euros por mês (sobretudo na advocacia e no imobiliário), mas muitos são falsos recibos verdes e a maioria vive de colaborações pontuais que estão a ser
canceladas.

O governo está a atuar bem, um pouco aos tropeções, com contradições, mas genericamente bem. Os primeiros a cuidar são os mais vulneráveis e os mais expostos, começando pelo turismo, pelos
restaurantes, por sectores exportadores, com apoios sobretudo à tesouraria. Os recibos verdes também têm tesouraria que agora não têm, e precisam de entrar nesta primeira linha do Estado.
Não todos, mas os muitos que demonstrem quebra de rendimento. No mercado de trabalho, eles sempre foram os filhos desprotegidos. E este governo, que lhes mantém uma tributação cavalar
mas até tem melhorado a sua condição, tem de admiti-los à sala das urgências. Ou perecerão sozinhos, como sozinhos sempre estiveram, mas agora sem ninguém a quem recibo passar. Só o
cheque ao senhorio.

PS: este texto segue uma corrente de artigos sobre os impactos do Covid-19. Leia sobre os impactos económicos AQUI, sobre as primeiras medidas do governo AQUI e sobre os médicos e o SNS
AQUI.

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