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George Williams e a mãe natureza

Article  in  Ciência Hoje · June 2011

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Felipe A P L Costa

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ensaio E V O L U Ç Ã O

George Williams e a mãe natureza


Ideias do biólogo norte-americano foram cruciais na conceituação da seleção natural

FELIPE A. P. L. COSTA Muitos cientistas, a partir das ideias originais de Darwin e Wallace, detalharam
Biólogo, autor de Ecologia, evolução e fortaleceram a teoria da evolução por seleção natural. Nos últimos 50 anos, a
& o valor das pequenas coisas (2003), teoria evolutiva foi influenciada pelos escritos de três autores: os ingleses William
meiterer@hotmail.com
D. Hamilton (1936-2000) e John Maynard Smith (1920-2004) e o norte-america-
no George Christopher Williams (1926-2010). As ideias de Williams foram parti-
cularmente importantes para moldar a noção que temos hoje a respeito do papel
da seleção natural na evolução de adaptações.

F oram necessários quase 100 anos


para que a teoria da evolução por
seleção natural, proposta original-
der essa pergunta, Williams chamou
especial atenção para a necessidade
de uma abordagem mais explícita e
mente pelos naturalistas britânicos rigorosa sobre os níveis de seleção –
Charles Darwin (1809-1882) e Alfred isto é, os níveis de organização bioló-
R. Wallace (1823-1913), se tornasse gica (genes, indivíduos, grupos de in-
a espinha dorsal da biologia. Esse pro- divíduos etc.) potencialmente sujeitos
cesso de cristalização, finalizado na à seleção natural.
década de 1940, não significou, con- Graças a seu trabalho, a ênfase até
tudo, que a teoria evolutiva estivesse então dada aos níveis mais elevados
‘concluída’. Na verdade, muita coisa de organização (grupo, população, es-
mudou a partir de então. pécie) migrou para os níveis mais bá-
Um dos responsáveis pelas prin- sicos (gene, indivíduo, família). Ao
cipais inovações conceituais que sur­ mesmo tempo, a importância até então
giram na biologia evolutiva na segun- atribuída à premissa de que a seleção
da metade do século 20 foi George favorece o que ‘é bom’ para a espécie
C. Williams. Embora não mui­to co- foi perdendo espaço. Anos depois, o
nhecido fora dos círculos acadêmicos, livro O gene egoísta (1976), do biólogo
algumas de suas ideias tornaram-se britânico Richard Dawkins, divulgaria
populares, graças, sobretudo, à lite­ para o grande público essa mudança
ratura de divulgação científica. de perspectiva ocorrida dentro da co-
Williams deixou um legado de munidade científica.
obras notáveis, algumas de funda-
mental importância, como seu primei- POR QUE HÁ SENESCÊNCIA? Até mea­
ro livro, Adaptação e seleção natural dos do século 20, a maioria dos biólogos
(1966). Seu trabalho ajudou a estabe- não via qualquer problema em manter
lecer novos patamares em biologia, simultaneamente dois tipos de expli-
notadamente nas discussões sobre a cações a respeito do nível de discrimi-
evolução de adaptações e os níveis de nação da seleção natural. Predomina-
seleção natural. va a ideia de que a seleção pode ocor-
ILUSTRAÇÃO LULA

Como a seleção natural promove a rer tanto entre organismos individuais


evolução de adaptações? Para respon- quanto entre grupos de indivíduos.

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Além disso, a premissa adotada em explicação proposta por ele, ainda hoje em relação ao nosso estilo de vida
ambos os casos era a mesma: as adap- uma referência-chave sobre o assunto, atual? E assim por diante.
tações evoluiriam sempre ‘para o bem é a hipótese da avó, segundo a qual a Ainda segundo Williams e Nesse,
da espécie’. menopausa teria evoluído num con- uma formação mínima em biologia
Em 1957, insatisfeito com esse es- texto social no qual as mães ajudariam evolutiva traria benefícios imediatos
tado de coisas, Williams publicou um suas filhas a cuidar dos filhos delas, tanto na interpretação dos sintomas
artigo que tratava primariamente da ampliando assim as chances de sobre- quanto no tratamento dado a certas
senescência, a deterioração física que vivência de seus netos. doenças. Um exemplo é a anemia, ca-
acompanha o envelhecimento. Ele racterizada pelo baixo nível de hemo-
estava interessado em examinar a POR QUE ADOECEMOS? A partir da globina no sangue circulante: ao con-
questão de um ponto de vista evoluti- década de 1990, Williams passou a se trário do diagnóstico tradicional, a
vo (como essa deterioração se estabe- interessar mais de perto pelas impli- anemia pode não ser uma patologia,
leceu no curso da evolução?), e não os cações do darwinismo no cotidiano dos mas sim um mecanismo de defesa.
mecanismos fisiológicos envolvidos seres humanos, em especial na área Algo similar ocorreria com a febre.
(como tal processo se manifesta?). médica. Esse interesse o levou a uma Diagnósticos mais bem informados
Suas ideias apareceram como uma parceria intelectual com o médico podem resultar na adoção de terapias
hipótese pioneira e inovadora – referi­ norte-americano Randolph M. Nesse. mais eficazes – embora, às vezes, con-
da mais tarde como hipótese da pleio­ Em 1991, Williams e Nesse publica- trárias ao senso comum. A hipótese dos
tropia antagonística. Pleiotropia é um ram um artigo pioneiro sobre medici- velhos amigos, por exemplo, propõe
fenômeno genético e muitos genes – na darwiniana e, em 1994, detalharam que a exposição a certos parasitas
talvez a maioria – são pleiotrópicos. suas ideias em um livro, Por que (principalmente vermes) na infância
Um gene é pleiotrópico quando seus adoecemos: a nova ciência da medici- pode modular o comportamento do
efeitos afetam mais de um caráter na darwinista. Nos anos seguintes, nosso sistema imunológico, evitando
(morfológico, fisiológico, comporta- ainda publicariam juntos diversos ar- que mais tarde ele reaja de modo exa-
mental) do corpo. A pleiotropia é dita tigos e capítulos de livros. gerado, como ocorre em portadores de
antagonística quando um mesmo gene doenças alérgicas e autoimunes.
tem efeitos positivos sobre certos ca-
racteres e negativos sobre outros. O que vemos no mundo vivo é A TERRA É UM SUPERORGANISMO?
Segundo a hipótese da pleiotropia moldado pela seleção natural Williams tinha um senso crítico agu-
antagonística, a senescência não teria – processo impessoal, çado. Em 1992, por exemplo, publicou
evoluído por meio de seleção natural, um artigo intitulado ‘Gaia, o culto à
mas como epifenômeno. Ou seja, esse míope e oportunista natureza e falácias biocêntricas’ – o
processo seria apenas o somatório de título inicial era ainda mais ácido e
efeitos secundários de genes cujos Segundo eles, a formação tradi- revelador: ‘A mãe natureza é uma bru-
efeitos principais contribuem para cional deixa os médicos (e outros pro- xa velha malvada’. Nesse texto, ele
maximizar a aptidão (viabilidade e/ou fissionais de saúde) despreparados critica algumas noções adotadas por
fecundidade) de seus portadores. Co­ para enfrentar questões fundamen- segmentos do movimento ambienta-
mo a presença de genes que maximi- tais, do tipo: por que os seres humanos lista. Um dos seus alvos foi a hipótese
zam a aptidão é favorecida pela sele- são como são, e não de outro jeito Gaia, formulada originalmente pelo
ção natural, seus possíveis efeitos co­­ qualquer? Por que envelhecemos? químico inglês James Lovelock, se-
la­terais podem ser ignorados – ao me- Por que adoecemos? Por que as mu- gundo a qual a biota da Terra se com-
nos até certo ponto. Essa ‘tolerância’ lheres menstruam? O que uma pers- portaria como um superorganismo
da seleção seria mais expressiva quan- pectiva evolutiva pode nos ensinar a capaz de gerar, manter e regular em
do os efeitos negativos de genes pleio- respeito da natureza das doenças e escala planetária as condições propí-
trópicos se manifestam em alguma seus respectivos sintomas? Por que cias à manutenção da vida.
fase pós-reprodutiva da vida, como as doenças transmitidas por vetores Williams não via a natureza como
parece ser o caso dos genes associados tendem a ser mais letais que as trans- um lugar idílico e inspirador – ao menos
à senescência. mitidas por contágio? Até que ponto não em termos éticos e morais. Afinal,
No mesmo artigo, Williams abor- uma perspectiva evolutiva pode trans- o que vemos no mundo vivo é moldado
dou um aspecto intrigante da senes- formar a interpretação dos sintomas pela seleção natural – processo impes-
cência em seres humanos: a meno- em algo mais preciso e seguro, nota- soal, míope e oportunista, incapaz de
pausa, o fim da vida reprodutiva nas damente no ca­so de doenças infec- planejar ou perdoar. Não deveríamos,
mulheres (em geral, por volta dos 50 ciosas? Que impli­cações essas me- portanto, adotar os produtos desse pro-
anos). Por que as mulheres – mas não lhorias poderiam ter não só nos pro- cesso como exemplos ou fontes de ins-
os homens – têm sua vida reprodutiva cedimentos comumente adotados piração para os princípios que regem a
interrompida tão precocemente? A frente a tais sintomas, mas também vida humana em sociedade.

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