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Universidade de São Paulo

Departamento de Filosofia

Psicologias do fascismo
Curso completo – 2019

Prof. Vladimir Safatle


Psicologias do fascismo
Aula 1

Goebbels chega a minha fábrica. Manda os funcionários se alinharem em duas


filas, uma à direita, outra à esquerda. Eu devo ficar entre elas e fazer a
saudação a Hitler com o braço. Levo cerca de meia hora para levantar o braço
apenas alguns milímetros. Goebbels observa meu esforço como se assistisse a
um espetáculo, sem expressar nem aprovação nem desagrado. Quando
finalmente consigo erguer o braço até o fim, ele diz apenas seis palavras “Eu
não desejo a sua saudação”. Daí vira-se e vai na direção da porta de saída. Eu
fico exposto daquela maneira em minha própria fábrica, entre meus próprios
trabalhadores, com o braço levantado. Fisicamente, só posso ficar assim. Então
fixo o olhar no pé torto de Goebbels, enquanto ele se retira, mancando. E
permaneço nessa mesma posição até acordar1.

Este é o relato de um sonho de um pequeno industrial alemão em 1933, ano da


ascensão de Hitler à chancelaria. Um sonho no qual talvez se encontre muito da
realidade socio-econômica que seria a regra no país a partir de então. Lá estava a
figura do poder que reconstitui a sociedade a partir de novas posições nas quais todos
estão igualmente distantes do centro. O pequeno patrão agora está ao lado de seus
empregados, obrigado a fazer a saudação nazista como todos. Mas há algo nos corpos
que não se adestra muito bem. Os gestos são feitos com esforço indescritível. Há algo
nos corpos que sai de suas imagens necessárias. O corpo de Goebbels é manco, o do
pequeno patrão é exposto em seu descontrole, em seu esforço para sustentar um gesto
simples. “Eu não desejo sua saudação” é o que diz o ministro da propaganda de
Hitler. Esta é uma maneira de dizer : “seus gestos são vazios, eles denunciam como
falta-lhes o sedimento da identificação”.
Neste sonho, toda uma dimensão libidinal de resistência e conflito aparece. Por
mais que o sujeito procure “fazer como”, há o corpo que resiste, há o corpo que manca.
Quando ele acordar e estiver na realidade socialmente partilhada levantando o braço
para fazer a saudação nazista, o sonho lhe lembrará deste real. Ele lhe produzirá um
sentimento de irrealidade que pode a qualquer momento expo-lo em sua inverdade. O
corpo lhe lembrará do caráter real de seu próprio desejo e da irrealidade da vida social.

Uma abordagem psicológica de fenômenos sociais é desejável?

1
BERADT, Charlotte; Sonhos no Terceiro Reich, São Paulo: Três estrelas, p. 30
Começar com sonhos talvez seja uma maneira adequada de dar início a um
curso sobre o fascismo. Pois eles nos lembram não apenas como nossas formações do
inconsciente, nossos sintomas, angústias, desejos e fantasias são expressões de
dimensões fundamentais da vida social, como elas expressam formas sociais de
sofrimento e enraízam estruturas de resistência. Eles nos lembram também como a
verdade das dinâmicas imanentes a fenômenos sociais, como o fascismo, exige a
mobilização de uma dimensão propriamente “psicológica”, mesmo que este termo vá,
no decorrer de nosso curso, perdendo sua distinção específica, até o ponto em que
talvez não tenhamos mais certeza do que falamos quando falamos de “psicológico”, até
o ponto em que cheguemos à conclusão de que precisaremos, talvez, de abandonar
tanto o termo quanto seus opostos. Pois no interior deste trajeto todos os termos que
utilizávamos para falar de indivíduos e sociedade se demonstrarão atravessados por
uma urgente necessidade de modificação.
Por isto, gostaria de utilizar este primeira aula para abordar duas questões
prévias que pedem resposta antes de iniciarmos um curso cujo título é “Psicologias do
fascismo”. A primeira é de ordem epistemológica e poderia ser enunciada na forma
seguinte: “Qual a razão para se propor uma abordagem psicológica do fascismo?”, até
porque não é claro o que entendemos por “abordagem psicológica” neste caso. A outra
questão é simples apenas em aparência, a saber, o que entendemos neste contexto por
“fascismo”? Estamos a falar de um fenômeno totalitário historicamente situado nos
anos trinta do século passado ou de uma latência sempre presente nas formas
hegemônicas de vida no interior das sociedades liberais que, por isto, pode emergir a
qualquer momento? Se o segundo caso for correto, então qual sua especificidade, em
que condições poderíamos falar, de maneira analítica, de fascismo?
Uma questão como a anterior, relativa à abordagem psicológica do fascismo,
apenas declina outra, de ordem mais geral, a saber: “Não estaríamos a produzir um erro
categorial primário ao mobilizarmos categorias psicológicas para descrever fenômenos
sociais?”. Pois pode parecer inicialmente que estaríamos a propor alguma forma de
reducionismo que ignoraria a complexidade dos sistemas de interação entre as
múltiplas esferas sociais de valores em prol de descrições sociais baseadas na maneira
com que sujeitos individualizados mobilizam representações mentais, crenças, afetos,
desejos a fim de aderir a certos papéis e modos de reprodução material da vida. Como
se, ao final, as relações sociais pudessem ser descritas como desdobramentos de uma
situação ideal originária na qual encontraríamos, preferencialmente, duas consciências
interagindo em relações de autoridade e poder. Como se estivéssemos a falar que a
expressão institucional do Estado, por exemplo, tivesse sempre a tendência a submeter-
se à figura de uma pessoa singular na posição de líder. Estratégia que implicaria em
um estranho resquício de categorias da filosofia da consciência transpostas para o
quadro da análise da lógica do poder.
Como se não bastasse tal dificuldade epistemológica, haveria ainda um
problema mais grave que se explicita quando procuramos reconstruir a gênese do que
se convencionou chamar de “psicologia das massas”, conjunto do qual as análise
psicológicas do fascismo fariam parte. O campo da psicologia das massas nasce no
final do século XIX no interior de uma conjunção explícita entre: criminologia,
reflexão sociológica sobre o impacto social dos processo de urbanização na Europa,
reflexão política sobre movimentos de massa, além de considerações sobre a
psicologia do desenvolvimento. Em solo francês, eixo central para o campo do qual
estamos a falar, o termo não será exatamente “psychologie des masses”, mas
“psychologie des foules”, cuja tradução mais aproximada seria “psicologia das
multidões”. Os principais textos são escritos em um prazo de não mais de quinze anos:
Psychologie des foules, de Gustave Le Bon é de 1895. Les lois de l’imitation, do
magistrado francês Gabriel Tarde é de 1890, seu L’opinion et la foule, de 1901. La
folla delinquente, do jurista italiano Scipio Sighele é de 1891. Por sua vez, Essai sur la
psychologie des foules: considérations médico-judiciaires sur les responsabilités
collectives, do médico francês Henry Fournial é de 1892. Depois, as discussões sobre
psicologia das massas alcançarão o mundo anglo-saxão principalmente com os
trabalhos de Wilfred Trotter a respeito do instinto gregário (de 1908) e de William
McDougall, que em 1920 escreverá: The Group Mind: A sketch of the principles of
collective psychology with some attempt to apply them to the interpretation of national
life and character. O texto de Freud sobre a psicologia das massas e a análise do Eu é
de 1921.
Conhecemos análises anteriores a respeito de fenômenos de massa, elas estão
lá nos textos de Edmund Burke, de Hyppolite Taine, de Charles Mackay e de Jules
Michelet, assim como nos romances de Zola, de Victor Hugo e Maupassant. Mas esses
livros sobre a psicologia das massas que descrevi anteriormente explicitam uma
perspectiva analítica nova. Eles procuram, cada um a sua maneira, fazer das massas, da
multidão, o objeto de uma ciência a parte inteira, o que não era o caso anteriormente.
Na verdade, uma ciência da regressão social, das involuções que estariam a ameaçar as
novas sociedades capitalistas urbanas do século XIX. Assumindo uma noção bastante
presente na psicologia de então, que definia a doença mental como degenerescência,
como retorno a estágios arcaicos de maturação e desenvolvimento, esses trabalhos
(embora os trabalhos de Tarde sejam uma exceção a este caso) veem as massas como o
equivalente social de uma degenerescência patológica, propícia a comportamentos
criminosos, ao rebaixamento da inteligência e a reações violentas e incontroláveis.
Por exemplo, em seu livro supracitado que certamente será o mais influente
desta corrente inicial da psicologia das massas, Le Bon começa afirmando: “As massas
sempre desempenharam um papel importante na história, mas nunca tão considerável
quanto atualmente. A ação inconsciente das massas, substituindo a ação consciente dos
indivíduos, representa uma das características da idade atual”2. Pois não seria mais nos
conselhos de príncipes, mas na alma inconsciente das multidões (inconsciente
compreendido neste contexto como a dimensão do irracional, do primitivo) que se
estaria a decidir o destino das nações.
2
LE BON, Psychologie des foules, préface
Isto só pode significar, diz Le Bon, “uma fase de desordem”, um período de
“anarquia confusa precedendo a eclosão de novas sociedades”, período caracterizado
pelo império de uma “potência unicamente destrutiva”3 representada pelas massas. Le
Bon chega a usar a ideia de hipnose para caracterizar o pretenso caráter inconsciente do
comportamento dos indivíduos no interior da massa, para descrever como indivíduos
modificariam radicalmente seu comportamento quando parte da massa. Da mesma
forma, Gabriel Tarde irá descrever o homem social como um “verdadeiro sonâmbulo”4,
como alguém em estado constante de hipnose, já que, em todos os três casos
(sonambulismo, hipnose, ação social) encontramos a ilusão de ter ideias sugestionadas
e acreditar tê-las espontaneamente.
Sendo assim, todo o livro de Le Bon é uma tentativa de compreender o advento
das massas enquanto ator político como uma regressão no sentido psicológico do termo.
Regressão a uma sociedade ingovernável, já que não seria possível governar as massas.
No máximo, o conhecimento de sua psicologia permitiria não ser governado por elas.
O esquema da degenerescência fica claro quando Le Bon afirma ser tal mudança de
comportamento resultante do fato de que “nossos atos conscientes derivam de um
substrato inconsciente formado sobretudo por influências hereditárias (...) por trás das
causas assumidas de nossos atos, encontram-se causas sociais ignoradas por nós”5. Tais
causas resultantes de sedimentações que compõe “a alma de um povo” formariam um
inconsciente coletivo e arcaico responsável pela constituição da unidade mental da
massa. Daí a afirmação de que a psicologia das massas seria uma psicologia de
processos de regressão: “Pelo simples fato de fazer parte de uma massa, o homem
desce vários degraus na escada da civilização”6.
Se nos perguntarmos pelas condições históricas para o advento de tal psicologia
das massas, encontraremos uma velha conhecida que fará história posteriormente:

Hoje, as reivindicações das multidões são cada vez mais claras e visam destruir
de cima abaixo a sociedade atual, para lhe levar a esse comunismo primitivo
que foi o estado normal de todos os grupos humanos antes da aurora da
civilização7.

O que não poderia ser diferente, já que as condições históricas para o aparecimento de
tal psicologia não é outra que as experiências revolucionárias que sacudiram a França
do século XIX, em especial a Comuna de Paris, de 1871, com sua insubmissão das
classes populares às representações de ordem e autoridade. Isto explica um pouco da
razão pela qual foi na França que a psicologia das massas acabou por aparecer
inicialmente. Foram três revoluções populares em menos de um século (1789, 1848,
1871). Diante da subida à cena da história de revoluções de massa nas quais a natureza

3
Idem, p. 14
4
TARDE; Les lois de l’imitation, p. 84
5
LE BON, idem, p. 22
6
idem, p. 24
7
Idem, p. 13
do poder era contestada, a psicologia será mobilizada para construir um discurso social
com pretensões científicas no qual o corpo social era apresentado como em risco de
degenerescência, como tais fenômenos seriam explosões patológicas de
irracionalidade.
Certamente, devido a sua origem claramente reativa aos processos históricos de
transformação social, a psicologia das massas acabaria por ser relegada à condição de
curiosidade histórica se ela não tivesse sido completamente invertida por Sigmund
Freud, em seu Psicologia das massas e análise do eu, de 1921. Veremos com mais
calma tal inversão no interior de nosso curso, mas se nosso curso começa com Freud é
por ele ter representado uma espécie de novo começo para a abordagem psicológica
dos fenômenos sociais. Primeiramente, porque não se tratava mais de descrever as
regressões que ameaçariam do exterior a marcha do progresso própria ao processo de
racionalização das sociedades europeias do começo do século XX.
O tamanho do passo dado por Freud pode ser compreendido se levarmos em
conta um ponto. Contrariamente à tendência geral da psicologia social da época, que
procurava distinguir a natureza da massa desorganizada e de grupos organizados, isto a
fim de demonstrar que a regressão do primeiro não invalidava a racionalidade do
segundo, Freud se serve exatamente de dois grupos organizados paradigmáticos, a
saber, a igreja e as forças armadas, para descrever a natureza regressiva das massas. A
distinção entre grupo e massa se perde de forma deliberada. Pois Freud quer defender
que grupos como a igreja e as forças armadas demonstrariam, de maneira mais clara, o
que só pode aparecer nas massas espontâneas de maneira “mais camuflada”. Maneira
de afirmar que a psicologia das massas é, ao mesmo tempo, uma psicologia das
instituições, isto no sentido de uma psicologia da regressão imanente ao funcionamento
normal de nossas instituições, e não mais psicologia da regressão que apareceria como
desvio em relação ao bom funcionamento normal das instituições democráticas. Daí
virá uma das primeiras críticas feitas contra a psicologia das massas de Freud, no caso,
escrita pelo jurista Hans Kelsen8.
Notemos como este gesto freudiano consistia em mostrar como duas
instituições que aparecem como subsistemas inerentes a toda noção de democracia
liberal seriam a expressão mais evidente de núcleos de regressão social no interior
mesmo de nossas formas liberais de vida. No interior das sociedades liberais, igreja e
forças armadas não são a arché a ser superada por um fortalecimento dos processos
decisórios em instituições democrático representativas, como se esperaria se
assumíssemos a teses de um processo weberiano de desencantamento do mundo e de
um fortalecimento progressivo da sociedade civil no interior do liberalismo. Na
verdade, igreja e forças armadas seriam nosso verdadeiro destino. Décadas depois,
outro psicanalista, Jacques Lacan, será ainda mais explícito ao dizer: “A religião
triunfará não apenas sobre a psicanálise , ela triunfará sobre muitas outras coisas. Não
podemos sequer imaginar como é potente, a religião”9.

8
Ela está em KELSEN, Hans; A democracia, São Paulo: Martins Fontes, 2002
9
LACAN, Jacques; Le triomphe de la religion, Paris, Seuil, p. 78
Se, para Freud, a história da democracia no ocidente será uma história de
afastamentos malogrados em relação tanto ao núcleo teológico-político do poder
quanto a suas figuras fortemente hierárquicas e militarizadas, se esses núcleos e figuras
conhecerão retornos periódicos e constantes em lugares e momentos que menos se
espera, é porque nunca de fato teríamos conseguido abandonar uma concepção
teológico-política de poder (a secularização de nossas sociedades é um projeto
bloqueado), nem nunca de fato teríamos nos livrados de uma realidade social cuja
matriz fundamental de relação é a guerra, para ser mais preciso, a guerra civil (nossos
Estados continuam sendo profundamente militares). É desta forma que, a partir de
Freud, a psicologia das massas deixará de ser uma aplicação da noção clínica de
doença como degenerescência tendo em vista dar conta de fenômenos sociais que
colocariam em risco o horizonte de racionalidade da democracia liberal. Ela se tornará
então a análise das latências de regressão imanentes a tal racionalidade.
É neste ponto que o sentido de uma abordagem psicológico de fenômenos
sociais pode se fazer sentir. Pois para Freud é claro que se nunca nos livramos do
núcleo teológico-político do poder nem da guerra como paradigma central das relações
sociais é porque a maneira com que os indivíduos modernos são constituídos, seus
desejos socializados, a maneira com que os processos de individuação se realizam
perpetuariam modos de relação social fundados em fantasmas de autoridade cujos
modelos historicamente constituídos são próprios ao amparo produzido pelo poder
pastoral e pela submissão à soberania do líder da guerra. Ou seja, a individualidade
moderna não seria exatamente o esteio de uma forma democrática de vida baseada na
cooperação imanente e no respeito à integridade da pessoa. Ela seria a porta aberta a
todas as formas de regressão social. E não será por acaso que comportamentos
xenófobos, racistas e violentos não virão necessariamente dos integrantes de famílias
em decomposição, povos submetidos a crises profundas e submetidos a autoridade em
degradação, mas também de famílias aparentemente sólidas, países aparentemente
prósperos. A teoria freudiana deve ser vista pois como um momento fundamental de
auto-crítica da modernidade e isto ficará muito claro quando a Escola de Frankfurt se
voltar a ele para analisar o fascismo.
Mas voltemos a nossa questão epistemológica inicial, esta que dizia respeito à
adequação de propor uma análise psicológica de fenômenos sociais. O que vemos aqui
é como não seria possível compreender fenômenos sociais, seus modos de criação de
adesão, as modalidades de produção de corpos sociais, sem levarmos em conta a
mobilização de fantasmas, de afetos e representações que não são individuais, mas
profundamente sociais. Pois este é um dos maiores equívocos vinculados ao que
chamamos normalmente de vida psíquica, a saber, acreditar que fantasmas, crenças e
desejos são individuais. Lembremos do que diz Freud:

A oposição entre psicologia individual e psicologia social ou das massas, que à


primeira vista pode parecer muito significativa, perde boa parte de sua agudeza
se a examinarmos mais detidamente. É certo que a psicologia individual se
dirige ao ser humano particular, investigando os caminhos pelos quais ele busca
obter a satisfação de seus impulsos instintuais, mas ela raramente, apenas em
condições excepcionais, pode abstrair das relações deste ser particular com os
outros indivíduos. Na vida psíquica do ser individual, o Outro é via de regra
considerado enquanto modelo, objeto, auxiliador e adversário, e portanto a
psicologia individual é também, desde o início, psicologia social, num sentido
ampliado mas inteiramente justificado10.

Em uma afirmação desta natureza, fica evidente quão pouco clara são noções
como “ser humano particular”, como se estivéssemos a falar de algo dotado de
realidade ontológica. Se pensamos o ser humano no interior de relações de desejo, é
impossível abstrair o fato de sermos obrigados a descrever estruturas sociais de relação.
Na verdade, fantasmas, afetos, crenças e desejos são modos de participação social.
Podemos mesmo dizer, não são indivíduos que desejam, mas a sociedade deseja
através dos indivíduos. Não são indivíduos que produzem fantasias, mas a sociedade
produz fantasias através dos indivíduos. É a história dos desejos desejados antes de
mim, como disse uma vez Alexandre Kojève, que se manifesta nos desejos que julgo
meus, nos fantasmas que julgo meus. Neles, encontram-se tanto a constelação familiar
quanto a história dos povos, das raças, as figuras de sua literatura, assim como do que
se recusou a se constituir como família, como povo, como raça.

O que é fascismo?

O texto de Freud é de 1921 e seu horizonte histórico é profundamente marcado pela


primeira guerra civil europeia que passou para a história como a Primeira Guerra
Mundial. Ou seja, seu objeto não poderia ser o que aparecerá anos depois como
fascismo. Mas com a ascensão do nazismo em janeiro de 1933 foram publicados, no
mesmo ano, dois textos propondo uma análise psicológica do fascismo a partir do
quadro compreensivo derivado do proposto por Freud. São eles : A estrutura
psicológica do fascismo, de Georges Bataille, e A psicologia de massa do fascismo, de
Wilhelm Reich. Esses dois textos, escritos por autores que não se conheciam e vindos
de tradições distintas, irão inaugurar uma longa série de trabalhos que procurarão
utilizar conceitos clínicos para dar conta tanto do fascismo como de seus mecanismos
imanentes, como o anti-semitismo (muito mais presente no nazismo alemão do que no
fascismo italiano), o totalitarismo, a concepção orgânica do corpo social com sua
forma de vínculo ao território, o nacionalismo militarista, a concepção imunitária de
identidade.
Dois aspectos saltam imediatamente aos olhos na comparação entre esses dois
textos. O primeiro consiste em perceber como eles procuram fornecer uma teoria
libidinal da regressão social. Ou seja, eles procuram defender a tese de que fenômenos
como o fascismo não podem ser explicados se não levamos em conta a economia

10
FREUD, Sigmund; Psicologia das massas e análise do Eu, São Paulo: Companhia das Lestras, p. 14
libidinal que lhe seria própria. Ele não seria um fenômeno de classe, de raça, de nação,
mas uma estrutura libidinal que poderia se fazer sentir em qualquer lugar e momento.
Para sermos claros, o que esses textos afirmam é a existência de algo como um regime
fascista do desejo que deveria ser o verdadeiro alvo de uma ação política.
Este teoria da estrutura libidinal do fascismo, no entanto, não procurará
descreve-lo como alguma espécie de expressão política do retorno a estruturas arcaicas
de comportamento, um pouco como vimos Le Bon a falar da emergência das massas no
campo político. Alguém como Reich, por exemplo, insistirá que longe da ressurgência
de comportamentos arcaicos, estaríamos diante do resultado final de um trabalho de
civilização que confunde socialização e repressão pulsional. Pois até agora não houve
processo civilizacional que não se constituiu sobre os escombros das pulsões sexuais,
tema também caro a Bataille. Daí porque é importante lembrar como: “a estruturação
autoritária do homem se produz em primeiro lugar através da ancoragem de inibições e
de angústias sexuais na matéria viva das pulsões sexuais”11. Ou seja, tudo se passa
como se eles estivessem a dizer que não é falta de civilização que produz o fascismo,
mas civilização em sua função repressiva bem sucedida e em sua capacidade de
produção de satisfações substitutas à sexualidade reprimida.
Mas essas teorias não funcionarão simplesmente como a figura do que Foucault
chamará décadas depois de “a hipótese repressiva”. Pois elas lembrarão como o
fascismo será incompreensível a partir da hipótese de um regime repressivo “lei e
ordem”. Antes, ele é a mobilização contínua e simultânea da transgressão e da
repressão. Ele é a articulação entre a suspensão da lei e o culto da lei. É que visa Reich
ao afirmar: “O fascismo não é, como se tende a acreditar, um movimento puramente
reacionário, mas ele se apresenta como um amálgama de emoções revolucionárias e de
conceitos sociais reacionários”12. Bataille dirá algo semelhante quando afirmar, sobre o
fascismo: “a revolução afirmada como um fundamento é ao mesmo tempo
fundamentalmente negada desde a dominação interna exercida militarmente por
milícias”13. Há a emergência do que Bataille chama de “heterogeneidade”, há a recusa
da homogeneidade da sociedade utilitária da produção pulsando no interior do
fascismo. Mesmo o vínculo a autoridade fascista será caracterizado por uma
incondicionalidade que se coloca para além de todo julgamento utilitário.
Desta forma, tanto Reich quanto Bataille assumem a proposição política de que
o fascismo só pode crescer em situações pré-revolucionárias. De certa forma, ele é a
figura maior do que poderíamos chamar de uma contrarrevolução preventiva que se faz
passar por revolução, e este “se fazer passar por” é o ponto decisivo aqui. Pois esta é
uma forma desses autores afirmarem que o ponto analítico fundamental passa por
compreender por que, em dado momento, setores majoritários da população desejaram
o fascismo. Pois uma teoria que eleva o desejo a estrutura fundamental dos laços

11
REICH, Wilhelm; La psychologie de masse du fascisme, Paris: Payot, p. 75
12
Idem, p. 17
13
BATAILLE, Georges; La structure psychologique du fascisme, In: Oeuvres complètes vol. I, Paris:
Galllimard, p. 362
sociais precisará responder sobre como é possível desejar o fascismo, ela precisará
procurar nele os traços conjugados de revolta contra a opressão social e reforço da
opressão.
No que, paradoxalmente, nos encontramos em um terreno clássico para a
filosofia política, ao menos desde Etienne de La Boétie. Pois se o Discurso sobre a
servidão voluntária, de 1553, pode ser visto como o texto inaugural da literatura
política moderna é por ele aparecer como o primeiro a colocar o problema da servidão
a partir dos termos de sua aquiescência. Por que em certos momentos se deseja a
servidão, por que em certos momentos se deseja esse processo de concentração radical
da soberania na mão de um? Não se trata de descrever a servidão a partir da
submissão à força, mas a partir da sua associação à voluntas, de um querer e participar
à sua própria servidão, e este é o ponto fundamental:

Gostaria apenas de entender como é possível que tantas pessoas, tantas aldeias,
tantas cidades e tantas nações suportem por vezes um único tirano, que tem o
poder que elas mesmas lhe dão; cujo poder de prejudicá-las é o poder que elas
mesmas aceitam, que só sabe fazer-lhes algum mal porque elas próprias
preferem padecer deste mal a contradizer o tirano14.

O segredo será pensar as modalidades através das quais os sujeitos participam


de sua própria servidão, como eles serão, ao mesmo tempo, a vítima e o carrasco.
Quando em 1971, Deleuze e Guattari se voltarem ao problema da estrutura libidinal do
fascismo, eles não deixarão de lembrar do tipo de estratégia outrora colocada em
circulação novamente por Reich:

Pois como disse Reich, o surpreendente não é que pessoas roubem, que outros
façam greve, mas sim que os famintos não roubem sempre, que os explorados
não façam greve sempre: por que os homens suportam desde séculos a
exploração, a humilhação, a escravidão, ao ponto não apenas de quere-las para
os outros, mas para si mesmos? (...) Não, as massas não foram enganadas, elas
desejaram o fascismo em tal momento, em tal circunstância, e é isto que se faz
necessário compreender15.

A resposta de Reich e Bataille passará por insistir que categorias como


opressão, repressão, ameaça não bastam, embora não se trate de ignorar a presença
dos fenômenos que elas descrevem. Há certa liberação que o fascismo realiza, há certa
revolta que ele libera e não será possível compreender sua força sem analisar sua
produção. Entender a natureza dessa produção será um dos desafios mais complexos.
Quando décadas depois Deleuze e Guattari retornarem aos problemas internos
às psicologias do fascismo e às formas de paralisia à emancipação social, após a

14
LA BOËTIE, Etienne; Discurso da servidão voluntária, São Paulo: Nós, 2016, p. 16
15
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix: L’anti-Oedipe, Paris: Seuil, 1972, p. 37
consciência da paralisia das forças de transformação produzidas a partir de maio de 68,
quando eles retornarem em uma via que procura explicitamente recuperar pontos
importantes do pensamento de Reich, eles claramente verão como estratégia política
maior mobilizar a crítica em duas direções: uma macro-política e outra micro-política.
Se a primeira se refere as grandes estruturas normalmente binárias e biunívocas de
representação, suas classes, partidos, seus objetos e instituições que tendem a
convergir na figura do Estado e de uma política dirigida para o Estado (molares), a
segunda se refere à lateralidade dos fluxos libidinais que estabelecem relações e
processos de transformação para além dos lugares socialmente codificados e
determinados pelas estruturas sociais (molecular). Da mesma forma, pode haver um
macro-fascismo e um micro-fascismo. Daí afirmações como: “é muito fácil ser anti-
fascista no nível molar, sem ver o fascista que se é si-mesmo, que se conversa e
alimenta, que se autocompraz com as moléculas, pessoais e coletivas”16. E é nesta
dimensão micro-fascista que podemos encontrar uma resposta à questão: por que se
deseja sua própria repressão? É ela que prepara a consolidação de uma política estatal
fascista e que aparece como condição para sua emergência.
Dentre as múltiplas questões que a abordagem de Deleuze e Guattari produzirá,
uma chamará em especial nossa atenção. Ela se refere à utilização do conceito de
pulsão de morte para descrever o modelo de movimento em direção à catástrofe que
seria imanente ao fascismo. Essa realização da catástrofe, como se uma máquina de
guerra descontrolada tivesse se apropriado do Estado, criando não exatamente um
Estado totalitário, mas um Estado suicidário (para falar com Paul Virilio), uma
tanatopolítica que é uma necropolítica a se voltar contra si mesma, levará os dois a
afirmarem:

Há no fascismo um niilismo realizado. É que, a diferença do Estado Totalitário


que se esforça por colmatar todas as linhas de fuga possíveis, o fascismo se
constrói sobre uma linha de fuga intensa, que ele transforma em linha de
destruição e de abolição puras. É curioso como, desde o início, os nazis
anunciaram à Alemanha o que eles trariam: ao mesmo tempo as núpcias e a
morte, inclusive sua própria morte e a morte dos alemães (...) Uma máquina de
guerra que tinha apenas a guerra por objeto e que preferia abolir seus próprios
servos a parar a destruição17.

Nós veremos com calma o sentido desse recurso à pulsão de morte como
fundamento de um desejo social de catástrofe, como fundamento de uma experiência
de purificação, de um movimento sem telos que só pode se realizar na sua própria
aniquilação.

Frankfurt contra o fascismo

16
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix; Mil Plateaux, Paris: Seuil, p. 262
17
Idem, p. 280
Outra vertente que se apoiará nos trabalhos de Freud para desenvolver uma
reflexão de larga escala sobre a psicologia do fascismo será a Escola de Frankfurt.
Desde os estudos pioneiros de Erich Fromm sobre a adesão do operariado
alemão ao nazismo a partir da análise das articulações entre “impulsos
emocionais do indivíduo e suas opiniões políticas”18, os frankfurtianos
tomaram para si a tarefa de utilizar o quadro psicanalítico para compreender as
formas sensíveis de sujeição social. Fromm procurava, para além da expressão
explícita do engajamento político, compreender e tipificar as estruturas
motivacionais e emocionais que sustentavam tais decisões. Sua compreensão
visava lançar luz sobre as contradições imanentes entre comportamentos
públicos e representações psíquicas, o que poderia explicar o sistema de
modificações bruscas das posições políticas da classe operária, como a
deserção do comunismo em direção ao nazismo.
Principalmente a partir dos anos quarenta, os frankfurtianos farão
diversos estudos sobre o anti-semitismo, sobre a formação do estado nazista
(Behemoth, de Franz Neumann), sobre a antecipação do nazismo no interior da
cultura alemã (De Calegari a Hitler e O ornamento da massa, de Sigfried
Kracauer), sobre as estruturas da propaganda fascista e de extrema direita (A
técnica psicológica de Martin Luther Thomas, de Adorno; Profetas do engano,
de Löwenthal e Guterman), sobre a economia nazista (Sobre o nacional-
socialismo: uma nova ordem?, de Friedrich Pollock), sobre a personalidade
autoritária (Estudos sobre a personalidade autoritária, de Adorno e o grupo de
Berkeley). Em suma, não seria possível menosprezar o tamanho do impacto do
nazismo no interior da trajetória da primeira geração da Escola de Frankfurt e
da maneira com que boa parte de suas figuras moldarão sua compreensão das
próprias sociedades de democracia liberal.
Mas será na Dialética do Esclarecimento, em especial em seu capítulo
intitulado “Elementos de anti-semitismo”, que encontraremos pela primeira vez
de forma sistemática a descrição do fascismo como uma patologia social.
Adorno e Horkheimer se servirão do quadro clínico da paranoia para dar conta da
natureza dos vínculos sociais no fascismo, assim como das tendências de segregação
inerentes às democracias ocidentais. Assim, ao aproximar o fascismo e outras formas
de autoritarismo da paranoia, Adorno e Horkheimer estavam a dizer que a paranoia
seria o modo hegemônico de participação social no interior de tais sociedades. O que
implicava afirmar que, nestes casos, os vínculos sociais se sustentariam a partir da
generalização da paranoia como tipo social, mesmo que os sujeitos, do ponto de vista
de suas patologias individuais, tivessem outra forma de organização de seus sintomas.
Neste sentido, não teríamos apenas uma analogia, mas a descrição de uma modalidade
de funcionamento social a partir de gestão do sofrimento através da elevação de
comportamentos patológicos a forma de participação social. Como condição de

18
FROMM, Erich. Arbeiter und Angestelle am Vorabend des Dritten Reiches, Stuttgart:
Deutsche Verlags-Anstalt, 1980. p. 110. Para uma discussão sobre as primeiras colaborações
de Erich Fromm ao Instituto de Pesquisas Sociais, ver: JAY, Martin. The Dialectical
Imagination. Berkely: California University Press, 1996.
participação, os sujeitos deveriam agir como paranoicos. Um “agir como” que não
deixará de ter implicações na própria estrutura da personalidade subjetiva. Ao pensar
na paranoia, Adorno e Horkheimer falam de um funcionamento específico das relações
de identidade e alteridade, das fantasias de imunização, de contágio, de perseguição e
de grandeza. Na verdade, é a configuração do corpo social que será compreendida
como paranoica. O fascismo como um corpo social paranoico.
Veremos como o conceito psicanalítico de paranoia, base do uso dos
frankfurtianos, a aproximava de uma patologia que colocava, à céu aberto, os
mecanismos de identificação e introjeção próprios do narcisismo que, por sua vez,
eram a expressão de dinâmicas próprias à constituição mesma do Eu do indivíduo
moderno com seus desconhecimentos e denegações. Freud insistira claramente, por
exemplo, que o narcisismo era uma fase necessária do desenvolvimento individual e
que seu mecanismo expunha dinâmicas próprias da paranoia e da melancolia. Neste
ponto, encontramos uma radicalização desta perspectiva em Lacan e em sua maneira de
mostrar como a própria constituição “normal” do Eu moderno era paranoica, pois
produtora de uma instância psíquica que organizava suas relações ao mundo através de
projeções, introjeções e fundava sua identidade a partir de um sistema de denegações e
agressividades19.
Neste sentido, era impossível colocar em circulação uma crítica que eleva a
paranoia à condição de patologia social sem defender que o indivíduo moderno não era
o esteio da vida democrática, mas a ferida aberta que coloca o corpo social em risco
perpétuo de deriva autoritária. Como se ao capitalismo restasse fornecer regressões
paranoicas periódicas aos sujeitos que ele socializa e produz. Isto pode nos explicar
porque a reflexão dos frankfurtianos não se serve do fortalecimento do indivíduo
moderno como contraponto à natureza paranoica dos vínculos sociais, como seria o
caso em uma perspectiva liberal. Na verdade, os dois conceitos tecem relações
profundas de solidariedade. Isto explicará porque, nos anos 50, ao analisar a estrutura
do que conhecemos por “personalidade autoritária”, os frankfurtianos desenvolverão
estudos extensivos aos modos gerais de regressão presentes também nas sociedades
liberais.
Tudo isto visa mostrar a vocês, como deve ter ficado claro, as razões pelas
quais trabalharemos neste curso com a hipótese de que “fascismo” não deve ser
utilizado apenas para descrever a experiência histórica que terá lugar na Alemanha e na
Itália anterior a Segunda Grande Guerra. Ele explicita uma convergência de práticas e
discursos que persegue nossas sociedades como uma sombra e que se atualiza nas
condições as mais diversas. Mas a titulo operacional, essa sombra poderia ser descrita a
partir de quatro vetores. Gostaria que vocês tivessem isto em mente durante todo nosso
curso.
Quatro elementos definem a forma de vida fascista e suas patologias. Primeiro,
o culto da violência. Pois se faz necessário acreditar que a impotência da vida
ordinária e da espoliação constante será vencida através da força individual de quem

19
Ver, por exemplo, LACAN, Jacques; Séminaire II, Paris: Seuil, 1982
enfim tem o direito de tomar para si a produção autorizada da violência. O fascismo
oferece uma certa forma de liberdade, ele sempre se construiu a partir da vampirização
da revolta. Há uma anarquia bruta, um carnaval sempre liberado pelo fascismo. Mas no
seu caso, a liberdade se transforma na liberação da violência por aqueles que já não
aguentam mais serem violentados. O carnaval não é aqui a reversão da ordem, mas a
conjugação entre a ordem e a desordem: a desordem travestida com a fantasia da
ordem.
Segundo, não há fascismo sem ressurreição dos Estados-nação em sua versão
paranoica. Pois alguém tem que cuidar das nossas fronteiras, que são completamente
porosas. Alguém tem que ensinar Educação Moral e Cívica para nossas crianças a fim
de que elas têm orgulho desta pátria construída através do genocídio dos índios e da
escravidão dos negros. Alguém tem que impedir que sejamos invadidos por mais uma
leva de refugiados que vem para cá com seus crimes. O Estado-nação se mostra como
o último refúgio do que é meu, do que me é próprio. É o meu território, o meu país, a
minha língua, os meus costumes, a minha miséria, a minha violência, o meu
sufocamento. A comunidade nacional é o avesso do comum. Ela é apenas a figura
alargada de uma propriedade que aparece como a expressão básica do medo como
afeto político central.
Terceiro, o fascismo sempre será solidário da insensibilidade absoluta em
relação à violência com classes vulneráveis e historicamente marcadas pela opressão.
Ele é a implosão da possibilidade de solidariedade genérica. Essa insensibilidade
expressa o desejo inconfesso de que as estruturas de visibilidade da vida social não
sejam transformadas. Pois toda política é uma questão de circuito de afetos e de
estruturas de visibilidade. Trata-se de definir o que pode nos afetar, com qual
intensidade, através de qual velocidade. Para tanto, há de se gerir a gramática do
visível, a forma com que as existências são reconhecidas. Na vida social, ser
reconhecido é existir, o que não reconhecido não existe. Mas ser reconhecido não
significa apenas uma recognição do que já existia. Todo reconhecimento é implicativo,
ele exige que aquele que reconhece mude também, pois habitará um mundo agora com
corpos que antes não o afetavam, e isto é o que aparece para alguns como insuportável.
Por fim, o fascismo sempre será baseado na deposição da força popular em prol
de uma liderança fora da lei. Ele é a colonização do desejo anti-institucional pela
própria ordem. O desejo anti-institucional, quando realmente liberado, pode criar
poderes que voltam às mãos do povo, democracias que abandonam a representação
para transferir a deliberação e a gestão para a imanência do povo. Mas o fascismo faz
dessa anti-institucionalidade um clamor pela mão forte do governo expresso em uma
liderança que parece estar acima da lei, que parece poder falar o que quiser sem culpa,
expor seus piores sentimentos sem preocupação com seus efeitos, demonstrar seu
desejo mais baixo de violência como expressão de uma liberdade conquistada.
Por isso, é necessário que tais líderes pareçam cômicos, sejam uma mistura de
militar e palhaço de circo. Pois só assim, através dessa ironização, tais proposições
poderão circular com fricção baixa. Afinal, não é para levar a sério tudo o que eles
dizem. Mas quem sabe o que se deve então levar exatamente a sério? O que é real e o
que é apenas bravata? Ninguém sabe, a não ser eles mesmos. Isto se chama: misturar a
ordem e a desordem, a lei e a anomia. Isto é fascismo. Dito isto, que cada use sua
capacidade de análise para saber em que situações atuais esta descrição encaixa.
Psicologias do fascismo
Aula 2

Na aula de hoje, começaremos a leitura de Psicologia das massas e análise do


Eu, escrito em 1921 por Sigmund Freud. Como havia dito anteriormente, a escolha
em começar um curso intitulado “psicologias do fascismo” com esse texto se justifica
pelo seu caráter fundador. O texto de Freud consolida um modelo de abordagem dos
fenômenos de massa que visa descrever, em um movimento sobreposto, o
funcionamento social regressivo de grupos, instituições e os processos de formação
do indivíduo moderno. Daí o título peculiar que articula “psicologia das massas” e
“análise do Eu”. Esta articulação permite a Freud fazer uma verdadeira crítica da
psicologia social até então existente que inverte completamente seus objetos e seu
horizonte. Tal crítica nos leva à compreensão das regressões imanentes a nossa vida
institucional. Esse modelo de análise aparecerá, à posteridade, como profícuo a fim de
compreender fenômenos como o fascismo e outras figuras do totalitarismo. Pois ele
permite uma análise no interior da qual democracia liberal e fascismo estarão em
linha de contato, na qual o fascismo será uma latência da democracia liberal. O que
proponho nos nossos próximos encontros é seguir a argumentação freudiana,
apresentando a teses principais de seu livro.
Antes, lembremos como a reflexão política de Freud conhece três obras
fundamentais. Cada uma delas aborda uma dimensão do problema do político e tecem
entre si relações profundas. A primeira é Totem e tabu, livro que visa apresentar uma
tese a respeito dos fundamentos antropológicos do político através do mito do
assassinato do pai da horda primitiva e da produção da culpabilidade e da melancolia
como afetos políticos centrais. A segunda é exatamente Psicologia das massas como
sua crítica da psicologia social e sua centralidade nos processos verticais de
identificação, como veremos nas próximas aulas. Por fim, a última é Moisés e o
monoteísmo, com sua maneira peculiar de fornecer uma crítica aos fundamentos
teológico-políticos do poder. Nós iremos ver esta obra no último módulo de nosso
curso.

Freud, leitor de Le Bon

A oposição entre psicologia individual e psicologia social e das massas, que à


primeira vista pode parecer muito significativa, perde boa parte de sua agudeza
se a examinamos mais detidamente. É certo que a psicologia individual se dirige
ao ser humano particular, investigando os caminhos pelos quais ele busca obter
a satisfação de seus impulsos instintuais, mas ela raramente, apenas em
condições excepcionais, pode abstrair das relações deste ser particular com os
outros indivíduos. Na vida psíquica do ser individual, o Outro é via de regra
considerado enquanto modelo, objeto, auxiliador e adversário, e portanto a
psicologia individual é também desde o início, psicologia social, num sentido
ampliado, mas inteiramente justificado20.

20
FREUD, Psicologia das massas, São Paulo: Companhia das Letras, p. 14
Essa introdução a Psicologia das massas deve ser lida, principalmente, como uma nota
metodológica. Freud insiste de maneira reiterada na impossibilidade de se estabelecer
distinções estritas entre psicologia individual e psicologia social. O que só pode
significar que uma clínica da subjetividade será, necessariamente, uma clínica de
fenômenos sociais. Pois não há fato psicológico legível a partir de uma perspectiva
solipsista, os modos de relação a si e a própria constituição de uma noção identitária
como o si-mesmo é dependente destes fenômenos sociais que são: “as relações dos
indivíduos aos seus pais, irmãos e irmãs, a seu objeto de amor, a seu professor e a seu
médico”21. Freud chega mesmo a afirmar que a distinção entre atos psíquicos sociais e
atos psíquicos narcísicos deve ser situada no interior da psicologia individual, já que
não há ato psíquico narcísico, ou seja, não há amor de si que não se oriente a partir da
internalização de uma teleologia das relações sociais. O que não poderia ser diferente
já que identidades individuais são produções relacionais, as próprias instâncias da vida
psíquica são internalizações de disposições sociais de conduta. Proposições que podem
nos levar à interpretação de Etienne Balibar, para quem: “a própria individualidade é
um caso particular da formação de massa”22.
Mas há de se saber como compreender tais estruturas de relações sociais. Neste
sentido, a grande crítica de método que Freud faz a psicologia social de seu tempo
pode ser sintetizada através da noção de abstração. Ao tomar o indivíduo isolado como
“membro de uma linhagem, de um povo, uma casta, uma classe ou uma instituição”, a
psicologia social passa por cima da estruturação sistêmica dos modos de interação
social, ou seja, deste modo de interação social que vai progressivamente se abrindo dos
primeiros contatos entre mãe e bebê à família, às instituições sociais e ao Estado.
Desenvolvimento progressivo que implica que experiências primeiras de interação no
interior do núcleo familiar servirão de base para desenvolvimento subsequentes. Isto é
importante não para assumir alguma forma de familiarismo, mas para insistir na
dimensão instauradora do conflito. Pois a família é, antes de qualquer coisa, um núcleo
produtor de conflitos e de ambivalências.
Por outro lado, note-se que Freud não ignora a dependência das configurações
familiares a estruturas sociais mais amplas. No entanto, quem diz dependência não diz
subsunção simples. Por isto Freud afirma: de nada adiante tentar compreender a
configuração dos processos de interação social postulando algum princípio abstrato
como “pulsão gregária”, “pulsão social”, “group mind” etc. Devemos compreender
como modos elementares de interação influenciam regimes de aplicação de princípios
sociais mais gerais. Daí porque Freud termina insistindo: “Nossas expectativas são
orientadas por duas possibilidades: que a pulsão social não seja nem originária nem
indecomponível e que os inícios de sua formação possam ser encontrados em um
círculo mais restrito, como por exemplo na família”23.

21
FREUD, Psicologia das massas - introdução
22
BALIBAR; “Psychologie des masses et analyse du moi: le moment transindividuel”. p. 42
23
FREUD, Psicologia das massas - introduçõa
A partir de tais considerações, Freud parte para uma certa revisão de literatura
que ocupará os próximos dois capítulos. Tal revisão começa com o livro de Gustave
Le Bon, La psychologie des foules, editado em 1895. A razão não deve ser procurada
apenas no caráter fundador deste livro que, aos olhos de muitos, aparece como a
inauguração da psicologia social e como a realização clássica dos princípios de uma
sociologia das massas de forte caráter conservador. De fato, Freud encontra uma
problemática com a qual ele compartilha, embora marcado por um encaminhamento
que lhe é estranho. Em seu livro, Le Bon começa afirmando:

As massas sempre desempenharam um papel importante na história, mas nunca


tão considerável quanto atualmente. A ação inconsciente das massas,
substituindo a ação consciente dos indivíduos, representa uma das
características da idade atual24.

Esta consciência do advento das massas à cena do político nas democracias modernas,
advento que implica uma política de mobilização capaz de romper com o impéris
seguro das leis e instituições, é o pano de fundo sócio-histórico das reflexões de Le
Bon. Todo seu livro é uma tentativa de compreender o advento das massas enquanto
ator político como uma regressão no sentido psicológico do termo. Daí porque ele
insistirá que uma massa psicológica seria dotada de uma unidade mental resultante do
desaparecimento da personalidade consciente dos indivíduos Le Bon chega a usar a
idéia de hipnose para insistir no caráter inconsciente do comportamento dos indivíduos
no interior da massa. Freud aceitará tal perspectiva ao afirmar que o comportamento da
massa não pode ser visto como a somatória dos comportamentos individuais:

Devemos explicar o surpreendente fato de que este indivíduo sinta, pense e aja
de uma maneira totalmente distinta daquela que esperávamos desde que entra
em uma multidão de homens (Menschenmenge) que adquiriu a qualidade de
uma massa psicológica25.

Le Bon compreende tal mudança de comportamento como resultante do fato de:


que “nosso atos conscientes derivam de um substrato inconsciente formado sobretudo
por influências hereditárias (...) por trás das causas assumidas de nossos atos,
encontram-se causas sociais ignoradas por nós”26. Tais causas resultantes de
sedimentações que compõe “a alma de um povo” formariam um inconsciente coletivo
responsável pela constituição da unidade mental da massa. Daí a afirmação que a
psicologia das massas seria uma psicologias de processos de regressão: “Pelo simples

24
LE BON, Psychologie des foules, préface
25
FREUD, Psicologia das massas – capítulo II
26
LE BON, idem, p. 22
fato de fazer parte de uma massa, o homem desce vários degraus na escada da
civilização”27.
Esta comparação entre comportamento social e hipnose já havia sido abordada
por Gabriel Tarde em um livro que apareceu cinco anos antes que este de Le Bon, As
leis da imitação. Tarde, visto também como um nome importante na constituição da
psicologia social e recuperado recentemente principalmente devido ao interesse de
Gilles Deleuze por sua obra, insistia no papel fundamental da imitação na estruturação
do vínculo social: “o ser social, enquanto social, é por essência imitador. A imitação
desempenha nas sociedades um papel análogo àquele da hereditariedade nos
organismos e da ondulação nos corpos brutos”28. No entanto, esta imitação
fundamental para a reprodução do vínculo social seria um fenômeno, em larga medida,
desenvolvido de maneira inconsciente. Daí porque Tarde irá descrever o homem social
como um “verdadeiro sonâmbulo”29, como alguém em estado constante de hipnose, já
que, em todos os três casos (sonambulismo, hipnose, ação social) encontramos a
ilusão de ter ideias sugestionadas e acreditar tê-las espontaneamente.
Mas, a fim de dar conta deste esquema de reprodução social através da
imitação, Tarde precisa insistir no papel formador das relações de autoridade e de
prestígio. Daí afirmações como:

Foi necessário a fortiori no início de toda sociedade antiga uma grande


autoridade exercida por alguns homens soberanamente imperiosos e afirmativos.
Foi através do terror e da impostura, como se diz normalmente, que eles
reinaram? Não, esta explicação é claramente insuficiente. Eles reinaram graças
a seu prestígio30.

A fim de explicar o que entende por prestígio, por uma certa forma de admiração capaz
de sustentar relações sociais, Tarde faz então apelo às relações próprias a hipnose.
Segundo ele, o hipnotizado tem uma “força potencial de crença e de desejo,
imobilizada em lembranças de toda natureza, adormecidas mas não mortas”31. O
hipnotizador será aquele capaz de, através do seu prestígio, atualizar tal força potencial,
atualizar este desejo imobilizado em lembranças de toda natureza. Ele será aquele
capaz de colocar-se como sujeito que saber a respeito da verdade do meu desejo. O
que Tarde não está longe de aceitar ao dizer: “Obedecer alguém não é sempre querer o
que ele quer ou parece querer?”32.Tal relação de hipnose social baseada em relações
assimétricas de prestígio poderia nos explicar aquilo que Tarde chama de: “a
passividade imitativa do ser social”. Uma passividade que leva Tarde a dizer que a
“sociedade é a imitação e a imitação é uma espécie de sonambulismo”33.
27
idem, p. 24
28
TARDE, Les lois de l´imitation, p. 12
29
idem, p. 84
30
idem, p. 86
31
idem, p. 87
32
idem, p. 97
33
idem, p. 97
Freud compreenderá fenômenos como a mútua sugestão dos indivíduos e o
prestígio do líder (poderíamos acrescentar aqui o carisma) como necessitando de
explicações. E para tanto ele mobilizará o conceito de “libido”. Ou seja, as relações de
autoridade e de coesão no interior da massa são expressões de vínculos libidinais
inconscientes, vínculos esses que Freud não teme em remeter ao conceito platônico de
“Eros”. Mas a respeito de tais vínculos, Freud dirá:

Todas essas tendências seriam expressão dos mesmos impulsos instintuais que
nas relações entre os sexos impelem à união sexual, e que em outras
circunstâncias são afastados dessa meta sexual ou impedidos de alcançá-la, mas
sempre conservam bastante da sua natureza original, o suficiente para manter
sua identidade reconhecível (abnegação, busca de aproximação)34.

Ou seja, as relações políticas e a constituição das massas são uma questão de


atração libidinal, de amor. Não há relação vertical à autoridade e horizontal aos
membros da massa que não seja constituída a partir da dinâmica das relações amorosas,
com sua produção de objeto de amor e suas modalidades de identificação. Não há
sujeição ou submissão sem amor, é o que lembra Freud. Amor que não desconhece a
força de atração dos corpos, a afecção dos corpos e suas modalidades de prazer.
Afecção que, mesmo deslocada, tem sua inteligibilidade nos mecanismos sexuais de
procura de prazer e gozo. Há um gozo das massas e é ele que precisa ser compreendido
caso queiramos entender a natureza do político.
Se voltarmos a Psicologia das massas e análise do Eu, veremos Freud se serve
deste esquema a fim de afirmar que. no interior da massa, o indivíduo poderia se livrar
dos recalques de suas moções pulsionais, o que acarretaria a desaparição dos
sentimentos de responsabilidade e da consciência moral. Essa supressão do recalque
aproxima os fenômenos de massa e as formações do inconsciente. Mas ele logo insiste
em operar uma distinção extremamente significativa: o inconsciente de Le Bon, diz
Freud, este inconsciente resultante da sedimentação de heranças arcaicas não é o
inconsciente psicanalítico fundado em operações de recalque:

Nós não negamos que o núcleo do Eu (o Isso, como nomeamos mais tarde), ao
qual a “herança arcaica” da alma humana pertence, seja inconsciente, mas nós
distinguimos um ‘recalque inconsciente” que é uma parte desta herança. Este
conceito de recalque falta em Le Bon35.

Quer dizer, falta uma elaboração clara da natureza dos conflitos psíquicos como motor
das experiências sociais que podem aparecer como herança de experiências históricas.
A verdadeira questão é: quais os conflitos que levam sujeitos a se constituírem em uma
massa que se sustenta através da implementação de exigências libidinais? Esses

34
FREUD; Psicologia das massas, op. cit., p. 43
35
FREUD, Psicologia das massas, capítulo II
conflitos psíquicos, cuja compreensão exige a mobilização dos conflitos inerentes à
constituição do Eu, com suas dinâmicas de identificação, com suas modalidades de
sujeição psíquica, explicam principalmente a natureza das relações sociais de
autoridade. Por isto, contrariamente a Le Bon, Freud não se interessa pelas dinâmicas
revolucionárias, já que os processos revolucionários são exatamente aqueles nos quais
as figuras de autoridade são depostas.
A este respeito, lembremos como alguns anos antes de Freud escrever
Psicologia das massas e análise do eu, um de seus mais antigos colaboradores, Paul
Federn, escrevera Sobre a psicologia da revolução: a sociedade sem pais (1919). Neste
texto, que Freud certamente conhecia pois seus argumentos principais foram
apresentados na Sociedade das quarta-feiras, Federn via no fim do Império Austro-
Húngaro e na queda da figura do Imperador, assim como na vitória da Revolução
Soviética, a possibilidade do advento de sujeitos políticos que não seriam mais
“sujeitos do Estado autoritário patriarcal”. Para tanto, tais sujeitos deveriam apelar à
força libidinal das relações fraternas, relações distintas e que não se derivam
completamente da estrutura hierárquica de uma relação com o pai que até então havia
marcado a experiência política de forma hegemônica. Para que novas formas de
identidades coletivas fossem possíveis, não bastaria apenas transmutar a identificação
com o pai em recusa de seu domínio. Seria necessária a existência de um modelo
alternativo de identificações que se daria de maneira horizontal e com forte
configuração igualitária. Daí uma afirmação maior como: “Dorme em nós, igualmente
herdada ainda que em uma intensidade inferior ao sentimento de filho, um segundo
princípio social, este da comunidade fraterna cujo motivo psíquico não está carregado
de culpabilidade e temor interior. Seria uma liberação imensa se a revolução atual, que
é uma repetição das revoltas antigas contra o pai, tiver sucesso”36.
O modelo de Federn, baseado na defesa de que as relações fraternas poderiam
constituir um “segundo princípio social” relativamente autônomo e não completamente
dedutível das relações verticais entre filhos e pais, inscreve-se no horizonte de
reflexões sobre estruturas institucionais pós-revolucionárias. A partir de tal modelo,
Federn tentará pensar o fundamento libidinal de organizações políticas não-
hierárquicas como, por exemplo, os sovietes e os conselhos operários que procuravam
se disseminar na nascente república austríaca graças às propostas dos social-
democratas. A sociedade sem pais a que Federn alude tem a forma inicial de uma
república socialista de conselhos operários.
É fato que Freud não seguirá esta via. Para tanto, seria necessária a defesa de
uma dimensão de relações intersubjetivas naturalmente cooperativas baseada na
reciprocidade igualitária. Tal dimensão não existe nos escritos de Freud que, neste
sentido, estaria mais à vontade lembrando da agressividade própria às relações
fraternas com suas estruturais duais baseadas em rivalidade. Por isto, as relações de
cooperação tipificadas em confrarias ou comunidades de iguais só podem se consolidar,
dentro de um paradigma freudiano, apoiando-se na exclusão violenta da figura

36
FEDERN, Paul; “La société sans père”, In: Figures de la psychanalyse 2/2002 (n. 7), pp. 217-238
antagônica. Isto talvez explique porque, mesmo dizendo-se interessado pelos
desdobramentos da revolução bolchevique, Freud pergunta-se sobre o que os soviéticos
farão com sua violência depois de acabarem com seus últimos burgueses.
Neste sentido, não é um mero acaso que os dois exemplos privilegiados de
massa para Freud não sejam, como poderíamos esperar, eclosões revolucionárias
(como a Comuna de Paris, para Le Bon), mas o exército e a igreja: duas instituições
que não pareceriam, a primeira vista, exemplos de regressão social. Pois se trata de
afirmar que a lógica da regressão social, esta mesma que anteriormente foi usada para
dar conta da tríade selvagem, criança, neurótico e que agora se vê acrescida da massa,
é peça constitutiva que atua no cerne de nossas instituições (e não simplesmente nas
força que visam desestabilizá-las). Se levarmos em conta que estamos a falar de um
cidadão do finado Império Austro-Húngaro, podemos imaginar que esta forma de falar
sobre o poder teológico-político da igreja e as forças armadas é uma maneira
metonímica de se referir ao estado.
Ao falar sobre a igreja e as forças armadas, Freud privilegia a natureza
constitutiva das relações verticais ao líder. No caso da igreja, já que o exemplo
freudiano vem da igreja católica, o líder é Cristo. No caso das forças armadas, o
general. As relações entre os membros e o líder constitui uma relação na qual todos
estão igualmente distantes do centro, Por outro lado, é o vínculo libidinal ao líder que
constitui tais massas, isto a ponto do desaparecimento do líder provocar ou pânico
provocado pela anulação das ligações mútuas ou uma desintegração que libera a
violência generalizada contra aquele que aparece como o outro.
Isto nos leva a dois fatores. O primeiro deles é a relação entre identidade e
identificação no interior dos fenômenos sociais. A proposição de Freud se refere a uma
tese sobre o processo de formação de identidades coletivas. Uma identidade coletiva
precisa de uma identificação vertical para se constituir. Ela precisa de uma relação à
representação de soberania. Essa é uma tese forte e polêmica, mas lembremos que tal
identificação vertical não precisa necessariamente ser um líder. Ela pode se referir a
um princípio diretivo, uma ideia, uma representação, uma organização. Mas, para
Freud, tais identificações verticais devem necessariamente existir.
Por outro lado, vemos como como as massas se organizam contra dois
fenômenos: o pânico e violência sem direção já que, como lembra Freud, não há
religião do amor sem violência; “Uma religião, mesmo que se denomine a religião do
amor, tem de ser dura e sem amor para com aqueles que não pertencem a ela. No fundo,
toda religião é uma religião do amor para aqueles que a abraçam, e tende à crueldade e
à intolerância para com os não seguidores”37. Nesta proposição, está sintetizado o
fundamento do antagonismo político através da consolidação de relações amigo-
inimigo. As massas são constituídas como mecanismos de defesa contra o pânico
vindo da angústia da ausência de identificação, assim como da defesa contra a
desintegração da gestão das relações antagonistas entre amigo e inimigo.

37
FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 14
Problemas de imagens

Um outro ponto central que leva Freud a se aproximar de Le Bon enuncia-se na


afirmação: ‘A massa pensa por imagens que se chamam (hervorrufen) por associação,
tal como acontece no homem isolado quando este dá livre curso a sua imaginação”38.
Este pensar por imagens, pensar que segue a lógica da associação com suas regras de
contiguidade e semelhança, pensar que explicaria fenômenos como o contágio social, a
catarse e a sugestão, seria o ponto de partilha entre massa, pensamento selvagem,
pensamento infantil e neurose:

Os raciocínios inferiores das massas são, como os raciocínios elevados,


baseados em associações: mas as idéias associadas pelas massas tem, entre elas,
apenas ligações aparentes de semelhança ou de sucessão. Elas encadeiam-se à
maneira das idéias de um Esquimó que, sabendo por experiência que o gelo,
corpo transparente, dissolve na boca, conclui que o vidro, corpo igualmente
transparente, deve dissolver na boca também; ou do selvagem que acredita
adquirir a bravura de um inimigo corajoso ao comer seu coração, ou do
operário que, explorado pelo patrão, conclui que todos os patrões são
exploradores39.

Esta noção assume a distinção entre imagem e conceito, entre a abstração


própria ao conceito e a contiguidade indevida das imagens. No entanto, percebemos
novamente o deslocamento operado por Freud em idéias relativamente correntes de sua
época. O modo de pensar que Freud descreve é aquele próprio aos processos primários
do inconsciente. Neste sentido, eles não são arbitrários e vinculados ao erro, mas
descrevem processos de encadeamento de representações absolutamente necessários do
ponto de vista da dinâmica do desejo. Eles permitem a compreensão dos conflitos e
desenvolvimentos que dão inteligibilidade a uma função intencional central como o
desejo. Por outro lado, sendo as massas e as instituições o espaço de desdobramento de
processos primários, chega-se rapidamente à conclusão de que a análise não deverá se
basear nas disposições normativas imanentes ao horizonte de racionalidade social. Há
uma dinâmica inconsciente que deve ser desvelada e na qual se encontra o verdadeiro
fundamento da coesão social.
Por outro lado, vemos como a figura de um pensar por analogias, por
similitudes aparece como pensar defeituoso que ignora os princípios elementares da
lógica e do entendimento. Foucault e Adorno, por razões distintas, insistiram bastante
neste ponto: como a razão moderna impôs à mimesis como figura de um pensar
exilado das exigências de racionalidade do entendimento. Desde o descrédito

38
idem,
39
LE BON, idem, pp. 44-45
cartesiano à imaginação, o que tem afinidade mimética é negado enquanto algo dotado
de potência cognitiva. Vale sempre a pena lembrar que a potência disruptiva da
mimesis em sociedades pré-modernas implica na implementação social de processos de
diferenciação que não são solidários da entificação do princípio de identidade, como é
o caso no pensamento próprio ao conceito moderno de razão.
Por enquanto, devemos lembrar como Freud identifica o ponto cego das teorias
de Le Bon, assim como as teorias de McDougall, na reflexão sobre a natureza do líder
das massas. De nada adiante, segundo Freud, tentar compreender o poder da liderança
(seja uma pessoa, uma idéia ou instituição) a partir de conceitos vagos como prestígio
ou carisma. Mas antes de aprofundar a natureza da relação entre indivíduo e líder da
massa, Freud passa à distinção de McDougall entre massas organizadas (group)
dotadas de singularidade e responsáveis por processos de individuação e massas
desorganizadas e efêmeras (crowd) que parecem impedir toda e qualquer individuação.
O fato significativo é que Freud irá privilegiar o primeiro caso como o caso
paradigmático. Ou seja, de fato, a tradução inglesa de Strachey não estava totalmente
incorreta: o diagnóstico freudiano é também uma group psychology. O que deixa a
crítica freudiana ainda mais próximo de nossos modos de organização social.
É esta proximidade que mobiliza a crítica do jurista austríaco Hans Kelsen à
psicologia freudiana das massas. Em “O conceito de Estado e a psicologia social, com
especial referência à teoria da massa de Freud”, Kelsen se volta contra a possibilidade
das hipóteses fundamentais de Psicologia das massas e análise do eu valerem também
para sociedades democráticas insistindo, no seu caso, na irredutibilidade da norma
jurídica à crença ou amor por uma pessoa ou ideia personificada. Ao acreditar na
relação fundamental entre norma e fantasia, ou antes, ao operar como quem não é
capaz de estabelecer distinções entre norma e fantasia, Freud generalizaria
indevidamente o comportamento das massas e dos “grupos transitórios” fortemente
dependentes de móbiles psicológicos para todo e qualquer ordenamento jurídico
possível. Freud não apenas indicaria a gênese das ilusões substancialistas que afetam a
representação da autoridade do Estado, mostrando como tais ilusões significariam o
retorno de uma mentalidade arcaica a ser combatida por inviabilizar uma concepção
democrática da vida política incapaz de sobreviver ao conflito particularista das
paixões. Neste sentido, a perspectiva freudiana não é eminentemente crítica, o que para
Kelsen seria bem-vindo. Ao contrário, ao insistir em compreender todo e qualquer
vínculo social a partir “dos processos de ligação e associação libidinal” em sua
multiplicidade empírica, ele pareceria expor a necessidade de tal ilusão tanto para a
própria sobrevida da soberania do Estado quanto para a legitimidade da ordem jurídica.
De um lado, Kelson dirá: “Freud, portanto, vê o Estado como uma mente de grupo”40,
insistindo que uma linha vermelha teria sido atravessada, já que o Estado, para o jurista
austríaco

40
KELSEN, Hans; A democracia, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 323
Não é um dos vários grupos transitórios de extensão e estrutura libidinal
variáveis; é a ideia diretora, que os indivíduos pertencentes aos grupos
variáveis colocaram no lugar de seu ideal de ego, para poderem, por meio dela,
identificar-se uns com os outros. As diferentes combinações ou grupos
psíquicos que se formam quando da realização de uma única ideia de Estado
não incluem, de modo algum, todos os indivíduos que, num sentido
inteiramente diverso, pertencem ao Estado. A concepção inteiramente jurídica
do Estado só pode ser entendida na sua conformidade jurídica específica, mas
não psicologicamente, ao contrário dos processos de ligação e associação
libidinal, que são o objeto da psicologia social41.

Ou seja, a existência de uma concepção inteiramente jurídica exigiria uma


universalidade genérica que não pode ser assegurada se creio que todas as instituições
devem necessariamente encontrar seu fundamento em processos de identificação e
investimento libidinal, tal como quer Freud. Pois não haveria identificações
universalmente recorrentes, já que elas dependem das particularidades empíricas das
relações familiares em sua contextualidade especifica.
No entanto, é fato de que, para o psicanalista, a “concepção inteiramente
jurídica do Estado” da qual fala Kelsen seria simplesmente uma hipóstase que nos
impediria de compreender as dinâmicas próprias àquilo que poderíamos chamar de
“estrutura fantasmática da autoridade” em nossas sociedades, a saber, a maneira com
que autoridade e fantasia se articulam, o que nos levará diretamente à teoria do supereu,
como veremos na próxima aula.
Freud havia fornecido as bases filogenéticas da fantasia que estrutura nossa
relação ao lugar soberano do poder em Totem e tabu. Lá, Freud lembrava como tudo
se passava como se sujeitos agissem no interior das relações sociais tendo que carregar
o peso da culpabilidade e da melancolia produzida pelo assassinato de um pai
primordial. Os sujeitos se socializam, eles agem socialmente a partir da culpa e da
melancolia. Culpa anterior a qualquer ação, melancolia vinda do sentimento de perda
de um objeto perdido vivida sob a forma de reprimendas e auto-depreciação. Neste
sentido, se Freud se vê obrigado a afirmar o caráter filogenético de sua fantasia social
do pai primevo, é por entender que os vínculos à ordem jurídica procuram se legitimar
através da reiteração retroativa de um modelo de demanda de autoridade. Tais vínculos
não se alimentam apenas da especificidade de relações familiares, mas assentam-se em
outros “aparelhos de estado” como a igreja ou o exército, aparelhos mais gerais que
incitam continuamente a certas formas de vínculos libidinais. Com esta crítica, Freud

41
Idem, p. 327. Não deixa de ser sintomático a proximidade entre a vertente formalista kelseniana e
leituras “republicanas” como a crítica a Freud sugerida por Bernard Baas: “O agrupamento do povo
para o exercício do poder soberano, ou seja, do poder de fazer leis às quais todos aceitam obedecer, é a
ereção dos cidadãos que formam o bando político republicano. É claramente a ideia republicana que é
aqui objeto de amor unificando os cidadãos em um mesmo corpo: mas se trata de um corpo sem cabeça,
sem ‘chefe’ no sentido freudiano do termo” (BAAS, Bernard; Y a-t-il de psychanalystes sans-culotte?,
op. cit., p. 217)
recusa até mesmo a legitimidade de um ordenamento jurídico para além do Estado, já
que se trata de criticar o fundamento fantasmática da autoridade. De fato, a esfera do
direito da qual fala Kelsen exige uma espécie de “purificação política dos afetos”
através da defesa da validade ideal da norma que só pode nos levar à crença na
imunidade à problematização política do quadro jurídico com seu ordenamento e seus
mecanismos previamente estabelecidos de revisão. a teoria freudiana da psicologia das
massas fornece uma crítica a tal positivismo jurídico.
Psicologias do fascismo
Aula 3

Na aula de hoje, continuaremos a leitura de Psicologia das massas e análise do


eu a partir do comentário dos capítulos IV a VIII. É neste momento do texto que fica
mais explícito aquilo que Freud entende por “análise do Eu” e, principalmente, como
ele conta utilizar tal análise no interior do projeto de compreender a natureza da
psicologia das massas. Aqui aparecem a noção de identificação, a descrição do
processo de constituição da identidade pessoal através do Complexo de Édipo, além a
natureza libidinal da relação entre a massa e o líder e a dinâmica melancólica desse
investimento. A ideia central de Freud é mobilizar processos genéricos de constituição
do Eu a fim de expor os fundamentos da regressão social. Ou seja, trata-se de mostrar
como a compreensão da constituição do Eu moderno nos explica a tendência, inata a
nossas formas de vida, de produção de uma política regressiva de massas. Enquanto
constituirmos individualidades como fazemos, tais regressões serão sempre o nosso
horizonte mais concreto.
Notem, por exemplo, a maneira como Freud passa de fenômenos psicológicos
“normais” às relações próprias à massa. Ele é capaz de começar por descrever as
dinâmicas de enamoramento e de amor para aproximá-las da hipnose para,
posteriormente, falar da relação ao líder da massas como uma relação hipnótica. Isto
lhe leva a afirmar que a hipnose seria, na verdade: “uma formação de massa a dois”42.
O que poderia nos levar a compreender as relações amorosas como uma formação de
massa a dois, como a repetição potencial de tendências que serão aumentadas no
interior das massas.
Lembremo-nos do que vimos na aula passada, antes de continuar nossa leitura.
Freud partia da impossibilidade de se estabelecer distinções estritas entre psicologia
individual e psicologia social. O que só podia significar que uma clínica da
subjetividade seria, necessariamente, uma clínica de fenômenos sociais. Pois não
haveria fato psicológico legível a partir de uma perspectiva solipsista, os modos de
relação a si e a própria constituição de uma noção identitária como o si-mesmo seriam
dependentes de fenômenos sociais como: “as relações dos indivíduos aos seus pais,
irmãos e irmãs, a seu objeto de amor, a seu professor e a seu médico”43.
Mas Freud insistia na necessidade de compreender como se dão, de forma
concreta, tais estruturas de relações sociais. Neste sentido, a grande crítica de método
que Freud fazia a psicologia social de seu tempo estava sintetizada na noção de
“abstração”. Ao tomar o indivíduo isolado como “membro de uma linhagem, de um
povo, uma casta, uma classe ou uma instituição”, a psicologia social passaria por cima

42
FREUD, Psicologia das massas e análise do eu, op. cit., p. 71
43
FREUD, Psicologia das massas - introdução
da estruturação sistêmica dos modos de interação social, ou seja, deste modo de
interação social que vai progressivamente se abrindo dos primeiros contatos entre mãe
e bebê à família, às instituições e ao Estado. Desenvolvimento progressivo que implica
que experiências primeiras de interação no interior do núcleo familiar servirão de base
para desenvolvimentos subsequentes. Isto permite a Freud fazer afirmações como:

a exploração psicanalítica dos indivíduos ensina de maneira enfática que o deus


de cada homem é formado a partir do pai, que a relação pessoal a deus depende
da sua relação ao pai carnal, que ela oscila e se transforma a partir desta última,
e que deus, no fundo, não é outra coisa que um pai elevado44.

Ou ainda, a respeito do comportamento social das massas : “Há nas massas humanas
uma forte necessidade de uma autoridade que se possa admirar (...) A psicologia do
indivíduo nos ensinou de onde vem tal necessidade das massas. Trata-se da nostalgia
do pai”45. No entanto, não se trata simplesmente de assumir alguma forma de
familiarismo que reduz a complexidade dos fenômenos políticos e religiosos à
projeção de dinâmicas internas ao núcleo pais/mãe/filhos. O que Freud realmente
procura é insistir na dimensão instauradora do conflito. Pois a família é vista por Freud,
antes de qualquer coisa, como um núcleo produtor de conflitos e de ambivalências.
Eu dissera na aula passada como esta era uma maneira de desconstituir a crença
na existência de um núcleo de cooperação imanente e de mutualismo natural no
interior da vida social. Se visões autoritárias de sociedade tendem normalmente a
recuperar uma visão idílica da família, além de projetar para as estruturas gerais do
poder as figuras do núcleo familiar (o pai dos povos, a mãe dos pobres, etc.), é por
estarmos diante da defesa da artificialidade do antagonismo. Como se a vida social não
fosse antagônica desde seu núcleo mais elementar de interação social. Como se tais
antagonismos pudessem ser extirpados através de procedimentos de imunização contra
os que não se conformam às formas da unidade e da totalidade orgânica. Lembremos,
por exemplo, de um manifesto eleitoral do partido nacional-socialista de 1932:

A mulher é por natureza e destino a companheira do homem. Isto implica que


todos os dois não são apenas companheiros para a vida, mas também
companheiros de trabalho. Da mesma forma que a evolução econômica
transformou, ao curso de milênios, o domínio do trabalho do homem, ela
transformou o da mulher. Mais imperioso que o trabalho em comum é o dever
do homem e da mulher na perpetuação do gênero humano. É a nobreza dessa
missão de sexos que é a causa dos dons naturais específicos que a providência,
em sua sabedoria eterna, dispensou invariavelmente ao homem e à mulher.
Nossa mais alta tarefa consiste em facilitar aos dois companheiros ligados
eternamente a fundação de uma família. Sua destruição definitiva equivale à

44
FREUD, Totem und tabu in Gessamelte Werke, vol.IX, Frankfurt, Fischer, 1999,, p. 177
45
FREUD, O homem Moisés e a religião monoteista, p. 207
supressão de toda humanidade superior (...) ele é a unidade menor mas também
a mais importante de toda a estrutura do Estado.

Freud precisa insistir na prevalência do núcleo familiar para colocar, na origem


da vida social, as marcas do antagonismo. Por isto, seu conceito de família é
basicamente a narrativa de um sistema de conflitos de identificação descrito por ele
através do complexo de Édipo.
Neste sentido, podemos aceitar que: “livrar a ideia do dirigente político da
analogia familiar-política, da analogia teológico-política assim como da analogia
epistemo-política (a compreensão do dirigente como detentor do Saber) foi e continua
sendo uma tarefa incessante do pensamento crítico”46. Mas não devemos ver Freud
como alguém que procuraria retornar a tais analogias familiar-políticas ao insistir em
como as representações de liderança são produzidas e dependem de representações
familiares. Pois se Freud opera desta forma é para demonstrar como as saídas
neuróticas do complexo de Édipo ainda determinam nossas formas de aquiescência ao
poder, nossas maneiras de dirigir demandas à esfera do político.
Lembremo-nos disto para compreender melhor porque Freud partilha com Le
Bon a defesa da natureza inconsciente da ação das massas, mas para dizer que o
inconsciente psicanalítico nada tem a ver com o sistema de heranças hereditárias
descrito pela psicologia das massas de sua época:

Nós não negamos que o núcleo do Eu (o Isso, como nomeamos mais tarde), ao
qual a “herança arcaica” da alma humana pertence, seja inconsciente, mas nós
distinguimos um ‘recalcamento inconsciente” que é uma parte desta herança.
Este conceito de recalcamento falta em Le Bon47.

Se falta uma elaboração clara da natureza dos conflitos psíquicos como motor das
experiências sociais que podem parecer herança de experiências históricas, é porque
falta a compreensão da maneira com que os conflitos psíquicos produzidos nos
processos “normais” de socialização produzem indivíduos com fortes tendências a
regressão social. Por isto, lembrei a vocês como não era mero acaso que os dois
exemplos privilegiados de massa para Freud não fossem, como poderíamos esperar,
eclosões revolucionárias (como a Comuna de Paris, para Le Bon), mas o exército e a
igreja: duas instituições que não pareceriam, a primeira vista, exemplos de regressão
social. Pois se tratava de afirmar que a lógica da regressão social, esta mesma que
anteriormente foi usada para dar conta da tríade selvagem, criança, neurótico e que
agora se vê acrescida da massa, é peça constitutiva que atua no cerne de nossas
instituições (e não simplesmente nas força que visam desestabilizá-las). Assim, se a
questão fundamental do texto de Freud era: “porque homens modernos retornam a

46
MONOD, Jean-Claude; Qu’est-ce qu’un chef en démocratie?, Paris: Seuil, p. 87
47
FREUD, Psicologia das massas, capítulo II
estruturas de comportamento em contradição flagrante com seus próprios níveis de
racionalidade e com o estágio atual da civilização tecnológica esclarecida”48, a
resposta passava por expor como tais “níveis de racionalidade” e tal “estágio atual da
civilização” era indissociável da conservação de arcaísmos e de formas de servidão.
Freud termina esta parte introdutória identificando uma espécie de ponto cego
das teorias de Le Bon, assim como nas teorias de McDougall. Ponto este que se
encontraria na reflexão sobre a natureza do líder das massas. De nada adiante, segundo
Freud, tentar compreender o poder da liderança (seja uma pessoa, uma idéia ou
instituição) a partir de conceitos vagos como prestígio ou carisma. Para compreender a
dinâmica do político nas sociedades modernas faz-se necessário uma teoria que vincule
os processos de formação do Eu à análise da natureza dos vínculos entre sujeitos e
figuras de autoridade. Este é o problema central do livro e é ele que será o objeto das
articulações presentes nos próximos capítulos. Trata-se de um problema que permitirá,
a leitores como Adorno, encontrar neste livro a previsão: “da ascensão e natureza dos
movimentos fascistas de massa através de categorias puramente psicológicas”49.

Identificação e interação social

Partamos pois da análise dessa “mais antiga e original forma de ligação


afetiva”50, a saber, a identificação. Notemos inicialmente que “identificação” é um
conceito que visa descrever um dispositivo fundamental do processo de formação do
Eu como instância de auto-referência. É só através da identificação que o Eu se
constitui como instância, já que não haveria nada parecido a um Eu, com sua
capacidade de auto-referência e sua estrutura de identidade, originariamente. No
entanto, sabemos que a psicanálise partilha a noção de que a constituição do Eu é
resultado de um processo de socialização. Em suma, não há instância idêntica ao Eu
antes da internalização de processos de socialização. Mas socializar é,
fundamentalmente, “fazer como”, atuar a partir de tipos ideais que servem de modelo
e de pólo de orientação para os modos de desejar, julgar e agir. Daí porque a
identificação pode aparecer como peça fundamental para a compreensão do processo
de formação do Eu. O Eu é uma produção social e trata-se de compreender melhor as
engrenagens de tal produção.
Nós já sabemos que Freud trabalha com uma lógica sistêmica na articulação
dos processos de socialização, lógica esta que se inicia no interior do núcleo familiar
para se abrir em direção a esferas sociais cada vez mais amplas. Isto explica sua
tendência em procurar raízes de problemas e configurações de vínculos sociais mais
amplos a partir dos conflitos próprios à esfera familiar. É isto que vemos no capítulo
VII do nosso texto. Nele ,Freud se propõe a descrever a lógica dos processos de
identificação na esfera familiar a partir do Complexo de Édipo. A seu ver, isto poderia
dar conta da natureza da relação do indivíduo ao líder das massas, assim como do
sistema de expectativas que ela suporta.

48
ADORNO, Freudian theory ..., p. 412
49
ADORNO, Freudian theory and the patterns of fascist propaganda, p. 411
50
FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 63
Do Complexo de Édipo guardemos aqui este processo que vemos mais
claramente no caso da criança masculina. A fim de ser reconhecido como sujeito no
interior do núcleo familiar, ele deve se identificar com o pai e com a ordem que ele
estabelece. Isto significa não poder realizar o investimento libidinal neste primeiro
objeto que lhe proporcionou satisfação lidibinal, ou seja, a mãe. Esta distinção entre
identificação e investimento é da mesma ordem que a diferenciação entre ser como um
tipo ideal e ter um objeto capaz de preencher expectativas de satisfação pulsional.
No entanto, esta identificação implica em internalização de princípios de
conduta através da formação de um “Ideal do eu” e de dispositivos de repressão a
moções pulsional através daquilo que Freud chama de “supereu”. Esta internalização é
o que Freud chama no texto de “introjeção do objeto no eu” e pode aparecer ainda
como processo de introjeção do objeto perdido na melancolia ou como escolha
homossexual de objeto. Lembremos ainda que tal introjeção pode se dar de outras
formas, além da constituição de ideais. Ela pode se dar de maneira parcial “tomando
apenas um traço da pessoa-objeto”51. Ela pode se por identificação ao sintoma do outro,
ou seja, repetindo seus modos de adoecer e seus conflitos.
Freud insiste nestes processos de identificação a fim de lembrar como ele tem
valor explicativo no caso da relação entre o indivíduo e o líder da massa. Pois
percebamos que este objeto introjetado, embora apareça inicialmente como limitação
do narcisismo, é ainda um modo de investimento narcísico, já que ele aparece como
Ideal do eu. Isto nos leva a afirmar que:

o caráter primitivamente narcísico da identificação como um ato de devorar, de


fazer o objeto amado parte de si mesmo, pode nos providenciar uma explicação
para o fato de que a moderna imagem do líder parece, as vezes, o alargamento
da própria personalidade do sujeito, uma projeção coletiva de si mesmo52.

Ou seja, a identificação não é normalmente com alguém em posição de ideal


regulador, de modelo sublimado, mas alguém que é “o alargamento da própria
personalidade do sujeito”, alguém que é “como nós”, que tem as mesmas fraquezas,
explosões de raiva e incongruências. Ele fala o que nós pensamos mas não temos mais
o direito de falar. Isto porque a identificação é narcísica. O líder sempre terá traços
que o faz alguém que parece estar no mesmo nível que nós, pois se trata de constituir
relações sociais a partir do narcisismo.
É para insistir neste ponto que Freud lembra como a identificação própria aos
processos de formação do Eu está em operação em estados amorosos nos quais o
objeto amado é colocado no lugar do Ideal do Eu, como se uma certa quantidade de
libido narcísica fosse transposta para o objeto para depois retornar sob as formas da
introjeção. E veremos como Freud descreve essas relações amorosas em chave
necessariamente narcísica.

51
FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 64
52
ADORNO, idem, p. 418
Melancolia e poder

Comecemos, no entanto, por salientar outro aspecto. Notemos como Freud


insiste que esse processo de introjeção que constitui o Eu e suas relações também se
encontra na base da melancolia. Nesse caso, vemos: “o Eu dividido, decomposto em
dois pedaços, um dos quais se enfurece com o outro. Esse outro pedaço é aquele
transformado pela introjeção, e que contém o objeto perdido”53. Na verdade, ao
mostrar a similitude entre identificação e certa forma de patologia, Freud toca em um
ponto central a respeito das relações entre melancolia e poder. Judith Butler foi uma
das primeiras a perceber claramente isto ao lembrar que:

o relato sobre a melancolia é uma relato a respeito de como os domínios


psíquico e social são produzidos um em relação ao outro. Enquanto tal, a
melancolia oferece uma visão potencial a respeito de como os laços do social
são instituídos e mantidos, não apenas às expensas da vida psíquica, mas
através da ligação da vida psíquica à formas de ambivalência melancólica54.

Pois a melancolia é o modo privilegiado de produção da vida psíquica, ao menos no


interior das relações de poder que são imanentes a nossas formas de vida. Podemos
dizer isto porque a melancolia deixa evidente uma dinâmica de produção da vida
psíquica que levará à constituição de estruturas fundamentais da vida psíquica, como o
supereu. Partamos, por exemplo, de afirmações como:

foi-nos dado esclarecer o doloroso infortúnio da melancolia, através da


suposição de que um objeto perdido é novamente estabelecido no Eu, ou seja,
um investimento objetal é substituído por uma identificação (…) Desde então
compreendemos que tal substituição participa enormemente na configuração do
Eu e contribui de modo essencial para formar o que se denomina seu caráter55.

Se a melancolia deixa evidente dimensões importantes do processo de configuração do


Eu em seu caráter próprio, das transformações do caráter do Eu, e se elas são
mobilizadas para explicar como se dá a relação entre massa e líder, é porque as
identificações nas quais o poder político se assenta agem produzindo em nós
melancolia, fazendo-nos ocupar uma posição necessariamente melancólica. Podemos
dizer que o poder nos melancoliza e é desta forma que ele nos submete. Esta é sua
verdadeira violência, muito mais do que os mecanismos clássicos de coerção e
dominação pela força, pois se trata aqui de violência de uma regulação social que leva
o Eu a acusar a si mesmo em sua própria vulnerabilidade, sujeitando-se e paralisando

53
FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 67
54
BUTLER, Judith; The psychic life of power, p. 168
55
FREUD, Sigmund; “O Eu e o Id”, In: Obras completas vol. 16, São Paulo: Companhia das Letras,
2011, p. 34.
sua capacidade de ação ou de levá-lo a uma reação agressiva contra aqueles que
portam o que outrora foi amado. Pois a melancolia tem dois destinos: a auto-
reprimenda sádica ou a exteriorização da violência contra si para algo que outrora foi
amado.
A este respeito, lembremos primeiro como, para Freud, a melancolia é uma
forma de amor. Mesmo a maneira com que Freud descreve o enamoramento não deixa
de ter traços profundamente melancólicos. Por exemplo:

O objeto se colocou no lugar do ideal do Eu. Agora é fácil descrever a


diferença entre a identificação e o enamoramento em suas mais desenvolvidas
formas, chamadas de ‘fascínio’ e ‘servidão enamorada’. No primeiro caso o Eu
se enriqueceu com os atributos do objeto, ‘introjetou-os’, na expressão de
Ferenczi; no segundo ele está empobrecido, entregou-se ao objeto, colocou-o
no lugar de seu mais importante componente56.

Ou seja, o apaixonar-se é descrito por Freud como uma espécie de “servidão


enamorada” na qual o Eu se empobrece por se entregar ao objeto, por idealiza-lo: “o
objeto consumiu o Eu, por assim dizer”57. Isto a ponto de Freud comparar o objeto
amado ao hipnotizador: “a mesma humilde sujeição, mesma docilidade e ausência de
crítica ante o hipnotizador, como diante do objeto amado”58. Essa forma de descrever o
enamoramento como empobrecimento do Eu, e não como alguma forma de
confirmação mútua de si no interior de relações pretensamente simétricas ou como
alguma forma de despossessão mútua que leva todos a narrarem a si de outra forma,
mostra como estamos a falar de relações assimétricas fundadas em uma lógica
melancólica, na qual o objeto amado retira sua força da associação a um objeto perdido.
Se formos a um texto fundamental de Freud tal qual “Luto e melancolia”,
veremos porque Freud insiste em inserir a etiologia da melancolia no interior de uma
reflexão mais ampla sobre as relações amorosas. Essa é a maneira freudiana de lembrar
que o amor não é apenas o nome que damos a uma escolha afetiva de objeto. Ele é a
base dos processos de formação da identidade subjetiva a partir da transformação de
investimentos libidinais em identificações. Esta é uma maneira de dizer que as
verdadeiras relações amorosas colocam em circulação dinâmicas identificatórias de
formação da identidade, já que tais relações fornecem o modelo elementar de laços
sociais capazes de socializar o desejo, de produzir as condições para o seu
reconhecimento. Através das relações amorosas, traços de caráter são modificados e
identificações ao outro são integradas. Eu sou aquilo que eu amo.
Por exemplo, Freud aceita uma teoria na qual a bissexualidade é a posição inata
dos sujeitos. Eles começam por investir libidinalmente as duas figuras parentais, o pai e
a mãe. No decorrer do processo de constituição de uma identidade de gênero, um

56
FREUD, idem, p. 73
57
Idem, p. 72
58
Idem, p. 73
desses investimentos é recalcado, perdido. Mas essa perda não é simples anulação.
Antes, ela produz uma posição melancólica. A posição masculina deve perder o
investimento libidinal na figura paterna, trocando-o por uma identificação. A posição
feminina deve perder o investimento libidinal na figura materna, trocando-o por uma
identificação. Estes investimentos, no entanto, mesmo recalcados voltam
melancolicamente ou como reprimenda e desvalorização contra si, por ter perdido o
objeto outrora amado. Neste sentido, lembremos da definição freudiana:

A melancolia se caracteriza por um desânimo profundamente doloroso, uma


suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar,
inibição de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima, que
se expressa em auto-recriminações e auto-insultos, chegando até a expectativa
delirante de punição 59.

Assim a tese fundamental de Freud consiste em dizer que tudo se passa como
se a sombra desse objeto fosse internalizada por incorporação, como se a melancolia
fosse a continuação desesperada de um amor que não pode lidar com suas perdas.
Incapacidade vinda do fato da perda do objeto que amo colocar em questão o próprio
fundamento da minha identidade. Mais fácil mostrar que a voz do objeto ainda
permanece em mim, através da autoacusação patológica contra aquilo que, em mim,
parece ter fracassado em conservá-lo ou que permanece em mim como marcas de
identificação narcísica com o objeto que me decepcionou. Nesse sentido, uma
afirmação importante de Judith Butler diz que “Freud identifica consciência elevada e
auto-reprimendas enquanto signos da melancolia com um luto incompleto. A negação
de certas formas de amor sugere que a melancolia que fundamenta o sujeito expressa
um luto incompleto e não resolvido”60. Assim, a sujeição do desejo pode se
transformar em desejo por sujeição. Essa é uma maneira de dizer que a melancolia é o
saldo afetivo fundamental de um modelo hegemônico de instauração da vida psíquica.
Notemos então como o poder melancoliza os sujeitos que ele assujeita,
fornecendo o fundamento libidinal das dinâmicas de servidão voluntária. Freud
compreende que a relação da massa ao líder é caracterizada por impulsos sexuais
inibidos na meta. Isto significa que, mesmo servindo-se de energia libidinal, as
relações autoritárias de poder fundamentam-se na perpetuação de certa forma de
recalque. Mas de um recalque que, ao mesmo tempo, reascende a força do objeto
anteriormente investido. Assim Freud poderá dizer:

É interessante ver que justamente os impulsos sexuais inibidos na meta


conseguem criar laços tão duradouros entre as pessoas. Mas isso se entende
com facilidade a partir do fato de não serem capazes de plena satisfação,

59
FREUD, Sigmund; Luto e melancolia, São Paulo: Cosac e Naif, 2010, p. 47.
60
BUTLER, The psychic life of power, p. 23
enquanto os impulsos sexuais não inibidos experimentam uma extraordinária
redução, mediante a descarga, toda vez que atingem sua meta61.

A plena satisfação dos impulsos sexuais permite uma descarga que não faz
“laços tão duradouros entre as pessoas”. Mas a duração é baseada em uma forma
muito específica de inibição, a saber uma inibição melancólica. Uma inibição da meta
que guarda relações indiretas com a meta inibida. O líder autoritário guarda sempre
traços daquilo que ele combate ou organiza purgações periódicas contra grupos e
sujeitos que reascendem aquilo que os sujeitos precisaram perder para constituir os
sistema de cicatrizes que representa sua própria identidade. Essa dinâmica é
fundamental para compreendermos a lógica libidinal da relação entre massa e líder. O
líder, assim como a instituição autoritária, oferece uma maneira do sujeito se relacionar
àquilo que fora anteriormente objeto de seu investimento e que ele precisou recalcar
para constituir uma identidade. Essa maneira pode se dar de duas formas: através de
impulsos sexuais inibidos na meta (e não é por outra razão que Freud procurou, como
paradigma das massas, duas instituições homogêneas e de forte vínculo homossexual
inibido como a igreja e o exército) ou através da inversão do afeto, de amor a raiva, e a
constituição do objeto social de agressão. A explosão de desrecalque que a massa
produz é, na verdade, apenas a contrapartida de uma posição melancólica mais
profunda e original.

Uma teoria do supereu

Nesse ponto, podemos entender melhor a definição freudiana de massa: “Uma


massa primária desse tipo é uma quantidade de indivíduos que puseram um único
objeto no lugar de seu ideal do eu e que, consequentemente, se identificaram uns com
os outros em seu Eu”62. Os membros da massa identificam-se entre si horizontalmente
porque todos eles se identificam verticalmente com um único objeto no lugar de seu
Ideal do Eu, ou ainda, de seu supereu. O líder da massa é assim um representante do
supereu social. Freud ainda dirá, de forma mais explícita: “o indivíduo abandona seu
ideal do eu (Ichideal) e o troca pelo ideal da massa, encarnado pelo líder (Führer)” 63.
Lembremos, a este respeito, de alguns traços gerais dos processos de
socialização próprios à família burguesa. Relação marcada pela sobreposição entre
rivalidade e identificação que aparece de maneira mais visível no conflito entre o filho
e aquele que sustenta a lei paterna. Para ser reconhecido como sujeito e como objeto de
amor no interior da esfera familiar, faz-se necessário que o sujeito se identifique
exatamente com aquele que sustenta uma lei repressora em relação às exigências
pulsionais. Para ser reconhecido como sujeito, a criança deve abrir mão de certos
desejos (como os desejos incestuosos e agressivos) e saber hierarquizar suas pulsões a

61
FREUD, Psicologia das massas, p. 75
62
FREUD, idem, - capítulo VIII
63
FREUD, Massenpsychologie und Ich-analyse, p. 144
partir de uma vontade relativamente unitária. Ele deve aprender a « agir como » uma
autoridade paterna dotada de força de coerção.
O resultado é a internalização psíquica de uma ”instância moral de
observação”, no caso, o supereu derivado da identificação com os pais e outras
representações de autoridade. A internalização da lei parental através do supereu é,
para Freud, signo sempre legível de uma demanda de amor, e saber-se objeto amado
por um Outro (que é representante da Lei simbólica), saber-se potencialmente
protegido por alguém a quem reconheço certa força tem, para o sujeito, o valor da
anulação de uma posição existencial de pura contingência. Lembremos disto: todo
vínculo a autoridade é baseado sob alguma forma de demanda de amor e
reconhecimento; ele nunca é simplesmente o resultado de alguma coerção. No entanto,
há um conflito fundamental entre, de um lado, repressão a desejos incestuosos,
agressivos e polimórficos e, de outro, demanda de amor e reconhecimento.
Podemos nos perguntar aqui por que a formação de uma instância psíquica
como o supereu deve ser vivenciada necessariamente sob a forma da repressão. Pois ela
poderia ser vivenciada como uma espécie de aceitação tanto da limitação necessária de
exigências pulsionais de satisfação quanto de um ordenamento fundamental para a
perpetuação da vida social. Mas sabemos como Freud insiste ser impossível submeter-
se integralmente às injunções do supereu sem que isto não leve à pura e simples auto-
destruição. Conhecemos as páginas de Freud dedicadas à descrição da « ferocidade »
irracional do supereu na sua aplicação de exigências ao Eu. Isto a ponto dele indicar,
como ideal do tratamento psicanalítico : « fortalecer o Eu, torná-lo independente do
supereu, estender seu campo de percepção e ampliar sua organização de maneira que
ele possa se apropriar de pedaços do Isso. Onde Isso estava, devo Eu advir »64. Isto
talvez se explique pelo fato do supereu não ser apenas a internalização de um conjunto
de regras e normas que visam orientar a conduta e o desejo. Antes, ele indica a
constituição e internalização de uma representação fantasmática de autoridade que
sempre acompanhará o sujeito. Ele é o complemento fantasmático necessário para
minha aquiescência à regra e à norma. Tal representação é, ao mesmo tempo, objeto
de amor (por ocupar o lugar para o qual minhas demandas de amparo se dirigem, por
alimentar minhas expectativas de gratificação, por aparecer como promessa de
segurança e proteção) e de ódio (por suas injunções serem vivenciadas de maneira
restritiva).
Jacques Lacan tem uma maneira precisa de explicar esta natureza restritiva do
supereu, isto quando insiste que ele é uma “lei desprovida de sentido”65. Podemos
compreender tal ausência de sentido a partir da ideia de que as injunções do supereu
são determinações contraditórias feitas apenas para submeterem o sujeito a uma
representação fantasmática de autoridade que deve perpetuar um sentimento de
inadequação, fraqueza e impotência. Como se, ao final, a afirmação do líder para as

64
Idem, GW vol. XV, op. cit., p. 86
65
LACAN, Jacques; Séminaire I, Paris: Seuil, 1975, p. 9
massas seria sempre um: “vocês não estavam à altura”. Como Hitler a dizer que ao
final que o povo alemão não estava à altura de seu destino.
Este sentimento de inadequação é fundamental para conservar uma
representação de autoridade superegóica, já que a possibilidade de tal representação
conservar-se como lócus de acolhimento de uma demanda de amor está vinculada ao
velamento de sua impossibilidade em dar conta do desamparo e de impedir a
confrontação com a contingência. E a maneira mais eficaz para isto é impondo
obrigações contraditórias ou superlativas que nunca poderão ser realizadas pelo sujeito.
Desta forma, a ineficácia do supereu em suas funções de proteção e segurança acaba
por ser, de uma certa forma, invertida para ser vivenciada como impotência do próprio
sujeito em se adaptar às exigências do supereu, o que ao menos preserva o supereu
como representação fantasmática de autoridade. Estamos dispostos a tudo, mesmo a
nos auto-destruir, para defender a crença de que há um amor que pode nos livrar da
insegurança. Estamos dispostos até a esconder a impotência do Outro que nos promete
tal amor. Neste sentido, só podemos concordar com psicanalista inglês Adam Phillips :

“Do ponto de vista de Freud, nossa impotência não diminui com o tempo. Ela
nos inquieta cada vez mais, e o terror da qual ela é a fonte nos faz procurar a
segurança ao invés da satisfação, a magia ao invés do alimento, o desmentido
ao invés da constatação. Para Freud, somos animais atormentados por nossa
impotência”66.

Isto explica um pouco porque o supereu é, como disse Balibar em uma fórmula
feliz, o representante da política no interior da teoria do inconsciente e o representante
do psiquismo inconsciente no interior da teoria política67. Pois, primeiro, ele expõe de
maneira clara como as relações de poder constituem sujeitos através da internalização
não apenas de normas, mas de uma “instância moral de observação” que nos
“pastoreia” ao mesmo tempo que nos julga implacavelmente. Perguntar-se sobre a
economia libidinal do poder é, para Freud, evidenciar o ponto de interseção entre
“cuidar” e “culpar”, entender como o cuidado paterno é indissociável da perpetuação
de relações profundas de dependência e sujeição alimentadas não apenas pela
reiteração do medo da paz do rebanho ser, a qualquer momento, destruída pela matilha
de lobos, medo que o pastor saberá bem manejar para conservar o rebanho paralisado,
mas pela culpabilização do meu próprio desejo de violência contra a norma de
igualdade restritiva enunciada pelo poder. Neste sentido, se Freud pode dizer que o
sentimento de culpa é o “mais importante problema no desenvolvimento da
civilização”68 é porque, entre outras coisas, ele conhece sua função decisiva na
construção da coesão social e na sustentação das relações com a autoridade. Uma

66
PHILLIPS, Adam; Trois capacites négatives, Paris : Editions de l´Olivier, 2009, pp. 90-91.
67
BALIBAR, Etienne; Citoyen Sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, Paris: Seuil, 2011,
p. 384
68
FREUD, Sigmund; “O mal estar na civilização”, op. cit., p. 106
função que não se reduz à expressão da responsabilidade consciente diante dos
impulsos de transgressão de normas aceitas como necessárias para a perpetuação da
vida social. Ela indica principalmente o vínculo libidinal inconsciente com objetos que
perdemos, que ainda tem a força de projetar em nós a sombra de reprimendas sem fim
e de auto-destruição melancólica. A culpa que sustenta os laços sociais sob a égide do
poder tem uma gênese em fantasias inconscientes construídas a partir de objetos que
perdemos, e muito pouco tem a ver com a expressão de uma responsabilidade diante da
perpetuação da vida institucional assumida de forma consciente.
Psicologias do fascismo
Aula 4

Na aula de hoje, vamos terminar nossa leitura de Psicologia das massas e análise do eu
através do comentário de seus últimos capítulos. Neles, veremos a mobilização feita
por Freud a partir da hipótese antropológica do assassinato de uma figura coercitiva
como fundamento do vínculo social. Assassinato provoca uma circulação de afetos que
pulsam entre a melancolia e a mania, definindo as dinâmicas regressiva no interior da
massa.
Antes, gostaria de lembrar a vocês o que vimos até agora, qual o saldo de nosso
trajeto de leitura. Vimos como Freud abria o espaço para uma psicologia das massas
que se enraizava na análise dos processos de formação da individualidade moderna.
Sua ideia central era de que os fenômenos sociais de regressão não poderiam ser vistos
como a emergência de estruturas arcaicas sedimentadas em um inconsciente que se
confundiria com a dimensão do irracional. Eles eram o anverso necessário dos
processos hegemônicos de constituição de individualidades. Freud procurou mostrar
como individualidades eram constituídas a partir de identificações através das quais
lidávamos com nossas contradições, nossas bivalências, nossa polimorfia a partir da
internalização de figuras disciplinares que tiravam sua força não daquilo que eles eram
capazes de produzir, mas da maneira com que eles eram capazes de perpetuar nossa
dependência a um poder social que não poderia entregar o amparo que prometia. Ou
seja, a ideia central de Freud é que a individualidade moderna é estruturalmente
dividida, ela é um espaço estrutural de sofrimento por estar cindida entre a disciplina e
sua transgressão, entre a unidade e a multiplicidade, por ser o campo de uma espécie
de guerra civil.
As formas de sua gestão desta divisão serão o fundamento para os processos de
regressão social. Assim, as regressões não serão simplesmente o retorno a alguma
forma de demanda de proteção paterna, de retorno à simplicidade dicotômica de
situações. Elas serão, na verdade, as formas de gestão da divisão subjetiva. Vimos
uma dessas formas de gestão através da melancolia. Eu afirmara que a massa é uma
produção melancólica, que a verdadeira violência do poder consiste em submeter
sujeitos à melancolia, que há uma melancolia das massas. Isto nos permitiu
compreender um pouco porque Freud insiste tanto em levar em conta a natureza
vertical da relação entre massas e líder. Pois ele quer mostrar como a violência das
massas contra grupos e populações específicas, sua relação hipnotizada ao líder não
são explosões arcaicas de violência originária, nem a expressão de uma necessidade
animal de submissão e de comando. Elas são expressões de reações melancólicas. A
violência contra grupos é indissociável da maneira com que objetos anteriormente
amados e investidos serão postos em uma série na qual encontraremos ao final os
grupos atuais que são alvos de violência. Daí porque essas dinâmicas de massa são tão
vinculadas às temáticas da traição, da luta contra os infiltrados, contra aqueles que
parecem conosco mas não o são.
Baseando-se em uma interversão do afeto, de amor a ódio, note-se como este
“ódio” é estruturalmente diferente, pois ele é um afeto através do qual sujeitos se
voltam contra aquilo que um dia amaram, o que faz dele um sentimento muito mais
contínuo. A dimensão maníaca da ação das massas será sempre marcada por tal
dinâmica. Ela se baseia no caráter de “festa” que esta esse “periódico desrespeito das
proibições”69 produz.
Por outro lado, a identificação das massas ao líder é descrita por Freud como
uma identificação superegóica. Isto significa que sua função é perpetuar uma fantasia
que dará sustentação ao poder. Esta fantasia é baseada em uma demanda de amor cujo
resultado só pode ser certo empobrecimento do Eu, certa paralisia de sua ação. Pois
este amor é baseada na internalização de objetos perdidos que agora se voltam contra o
próprio Eu em uma dinâmica de auto-reprimenda e auto-depreciação. A função do
líder, neste caso, é levar os indivíduos a exigências cada vez mais superlativas, como
se estivéssemos diante de provas de amor que precisam sempre serem dobradas. O fim
não poderia ser outro que uma relação na qual o próprio líder se volta à massa como se
ela não estivesse à altura de seu destino, como se ela o tivesse traído. O líder promete
à massa que ela será “grande novamente”. Ele entrega sempre uma catástrofe na qual
todos são jogados à sua própria pequenez.

Retorno ao problema da horda

Voltemos então ao texto freudiano para compreender seus últimos


desdobramentos. Após fornecer esta teoria da constituição do vínculo social no
interior de sociedades de massa a partir de uma teoria das identificações, Freud
reconhece que tal estratégia pode parecer insuficiente. Vários fenômenos ligados ao
caráter regressivo das massas e de suas estruturas de julgamento parecem não poder
ser explicados a partir do problema das identificações. Por isto, Freud se propõe
analisar um teoria distinta da sua, esta desenvolvida pelo cirurgião e psicólogo social
britãnico Wilfred Trotter e apresentada no livro Instincts of the herd in peace and war.
A base da teoria de Trotter consiste na defesa da existência de uma espécie de
instinto gregário em operação em todo organismo vivo, instinto a partir do qual ele
procura derivar todos os sentimentos que desempenham papéis fundamentais na
conservação do vínculo social, como a consciência do dever e o sentimento de culpa.
No entanto, Freud age como quem vê, nesta posição de forças instintuais na
antecâmara de todo vínculo social, um certo recurso á abstração. A posição de um
instinto gregário nos impede de compreender o peso das relações concretas do
indivíduo na configuração de suas expectativas sociais. Há um certo empirismo
fundamental freudiano, empirismo de quem afirma que não há nada que possa atuar
na consciência que não tenha, anteriormente, se apresentado á consciência. Daí o
sentido de afirmações que procuram demonstrar como : “durante muito tempo, não
percebemos na criança nada parecido a um instinto gregário ou de um sentimento de
massa. Tal sentimento se forma primeiramente em maternidades com grande número

69
FREUD, Psicologia das massas, p. 91
de crianças, a partir da relação entre criança e pais, e ele se forma em reação ao ciúme
com o qual o mais velho acolhe o irmão mais novo”70. Ou seja, não compreenderemos
nada da configuração dos vínculos sociais se não partirmos da maneira particular com
que os investimentos libidinais vão sendo determinados a partir da história social do
desejo. A abstração das forças deve dar lugar à perspectiva concreta das dinâmicas
sociais de conflito. É tal perspectiva que permite Freud propor uma arqueologia do
sentimento de solidariedade social a partir da reversão (Umwendung) de um
sentimento inicialmente hostil em vínculo positivo próprio à natureza da
identificação”71.
Por outro lado, a noção de instinto gregário passa ao largo, mais uma vez, do
caráter constitutivo das relações sociais de dominação. Ela não fornece um quadro
explicativo sólido para a compreensão da figura do líder (ou de alguma instância
central de autoridade) como elemento fundador da massa. Pois, para compreender o
problema da natureza dos vínculos sociais, não é possível abstrair o problema dos
modos de interação social do problema do poder. Ao contrário, devemos sempre
lembrar que relações simétricas fundam-se a partir do reconhecimento anterior da
essencialidade de relações assimétricas. Daí porque o problema freudiano é, seguindo
esta longa tradição de reflexão sobre o fato político que vincula o problema do
política à assimetria do poder, compreender porque: “todos querem ser dominados por
um só”72. É para tentar dar conta deste problema que Freud retorna, mais uma vez, ao
seu mito antropogenético do assassinato do pai primevo.
De fato, Freud é claro em seus propósitos quando afirma que: “A massa nos
aparece como uma revivescência da horda originária. Da mesma forma que o homem
das origens manteve-se virtualmente em cada indivíduo, a horda originária pode se
constituir a partir de qualquer agregado humano”73.A função desta articulação entre
massa e horda originária consiste, principalmente, em fornecer uma perspectiva de
apreensão das peculiaridades da figura do líder das massas modernas. Tanto é assim
que Freud não deixa de lembrar: “as massas humanas nos mostram, mais uma vez, a
imagem familiar de um indivíduo isolado, onipotente no interior de uma horda de
iguais, imagem igualmente presente na nossa representação da horda originária”74.
Esta aproximação é fundamental no interior do quadro freudiano de análise porque se
trata de mostrar como a força de coesão do líder das massas não vem, simplesmente,
da sua capacidade em se colocar como tipo ideal que regula sua conduta, por exemplo,
a partir do ascetismo do dever, da imagem de auto-controle sereno de si, da ética da
convicção, como poderíamos imaginar se compreendermos a gênese das figuras de
autoridade como o que advém destes ideais do eu sintetizados pela internalização da
lei paterna. Ao contrário, e este foi um ponto claramente visto por alguém como
Adorno, as figuras de liderança são encarnações de algo como um supereu social. Daí
porque Freud pode afirmar que: “o pai originário é o ideal da massa que domina o eu
no lugar do ideal do eu”75.
Esta natureza própria ao supereu social apropriado pelo líder explica, aos
olhos de Freud, dois traços maiores advindos das figuras modernas de liderança. O
primeiro é que, enquanto tipo ideal pautado pela imagem arcaica de um pai primevo
que não se submete aos imperativos de repressão do desejo, o líder consegue

70
FREUD, Psicologia das massas ... – capítulo IX
71
idem
72
idem
73
idem, - capítulo X
74
idem
75
FREUD, idem, cap. X
mobilizar uma revolta contra a civilização e sua lógica de socialização (já que fornece
uma imagem para além da lógica repressiva), mas perpetuando relações de dominação
instrumental. Ele mobiliza representações vinculadas ao fantasma de que a demanda
de amor que suporta os processos sociais de identificação seja direcionada e ouvida
por figuras marcadas pela onipotência (maneira de bloquear a rivalidade própria à
ambivalência da figura paterna na família burguesa). Neste sentido, sua legitimidade
vem da força em mobilizar continuamente estruturas fantasmáticas inconscientes
pressupostas por processos de socialização no interior da família burguesa.
Aqui, vale a pena retornar a algumas considerações postas rapidamente no
final de nossa leitura de Totem e tabu.

O mito do pai primevo

Ao ler o mito freudiano do pai primevo, Lévi-Strauss dirá:

Freud dá conta, com sucesso, não do início da civilização, mas de seu presente.
Partindo à procura da origem de uma proibição, ele consegue explicar não a
razão pela qual o incesto é conscientemente condenado, mas porque ele é
inconscientemente desejado76.

Tal afirmação é repetida, a sua maneira, por alguém a milhas de distância de Lévi-
Strauss, Herbert Marcuse:

Se a hipótese de Freud [a respeito do pai primevo] não for corroborada por


qualquer prova antropológica, terá de ser inteiramente rejeitada, excetuando o
fato de que ela encaixa, numa sequência de eventos catastróficos, toda a
dialética histórica de dominação e, por conseguinte, elucida aspectos da
civilização até aqui inexplicados77.

Estas duas afirmações convergem na defesa da força do mito freudiano em


formalizar impasses e aspirações vivenciadas no presente. Neste sentido, a importância
de Freud estaria no fato de ter fornecido um mito à altura daquilo que a modernidade
colocava a si mesmo como questão. De toda forma, esta não será a primeira vez que a
reflexão sobre a natureza dos vínculos sociais modernos faz apelo a um mito para dar
conta da figuração do que tem, de fato, a força indestrutível de um mito, isto se
pensarmos no mito como uma construção social que visa dar sentido a um conflito
socialmente vivenciado. No caso de Freud, as consequências são enormes pois: “a
constituição da cidadania (o pertencimento a uma politeia) pede um suplemento mítico
que parece vir das constituições mais arcaicas de autoridade e que alimenta as
representações patológicas da soberania”78.

76
LEVI-STRAUSS, Les structures élémentaires de la parenté, p. 610
77
MARCUSE, Eros e civilização, p. 70
78
BALIBAR, Etienne; L’invention du surmoi, p. 32
Freud inicia seu texto retomando certas considerações sobre o totemismo que
haviam sido esboçadas no primeiro capítulo de seu livro. Inicialmente Freud havia
insistido na relação privilegiada entre totemismo e exogamia, seguindo uma via
defendida por Frazer. Agora, trata-se de tentar apreender qual a gênese possível de tais
exigências de exogamia. Daí porque ele valoriza afirmações sobre o totem como esta:

Um totem, escreveu Frazer em seu primeiro ensaio, é um objeto material a


respeito do qual o selvagem porta um respeito supersticioso pois ele acredita
que entre sua própria pessoa e cada coisa desta espécie existe uma relação
absolutamente particular79.

Tal relação absolutamente particular indicaria uma certa forma de participação:


“quanto mais voltamos no tempo, mais evidente fica que o membro de uma clã se
considera como fazendo parte da mesma espécie que seu totem”, como se os membros
do clã descendessem de um totem elevado à condição de ancestral. Isto permite a
Freud afirmar que a questão central do totemismo estaria presente nas relações entre a
descendência totêmica e os imperativos de exogamia.
Com este problema em vista, Freud passa em revista às teorias sobre a origem
do totemismo, organizando, para isto três grupos explicativos. No primeiro, estariam
explicações de cunho nominalista. O totem seria uma designação nominal através da
qual um clã tomaria o nome de um animal de empréstimo a fim de realizar exigências
de distinção. Posteriormente tal empréstimo teria se naturalizado, fazendo com que a
ilusão da descendência totêmica fosse criada. No segundo grupo, estariam as ditas
teses sociológicas que veem no totemismo a representação visível de uma religião
social. Por fim, as teses psicológicas baseadas na ideia de que o totemismo seria
resultado da crença primitiva a respeito da transmigração das almas e da reprodução.
Nenhuma destas explicações satisfaz Freud, já que todas elas parecem ignorar a
relação necessária entre elaboração de conflitos pulsionais e formação de estruturas
sociais, ou antes, entre economia libidinal e teoria social. Desta forma, ele passa então
a construir, a partir de teorias distintas, um outro quadro explicativo para o fenômeno
do totemismo. Dois nomes são fundamentais aqui: Charles Darwin com sua teoria da
horda primitiva apresentada em A descendência do homem e Seleção em relação ao
sexo, de 1871 e William Robertson Smith com sua teoria do festim totêmico
apresentada em A religião dos semitas, de 1889.
Baseado nas teorias de Darwin, Freud afirma que o estado social originário do
homem estaria marcado pela vida em pequenas hordas no interior das quais o macho
mais forte e mais velho impediria a promiscuidade sexual, produzindo com isto a
exogamia. Para acoplar tal teoria aos esquemas próprios ao totemismo, bastou a Freud
recorrer às similitudes entre fato social e sintoma, no caso, sintomas infantis de fobia
de animais. Por exemplo, é sintomático como Freud compreendia a lógica que regia a
constituição do objeto fóbico do pequeno Hans (o medo de ser mordido por um cavalo).

79
FREUD, Totem und tabu, p. 125
Um dos pólos de produção da fobia vem do fato de que ele ama e odeia seu pai, ou
seja, a mesma representação paternal é objeto de afeto e medo, o que provoca uma
instabilidade no interior da identidade da representação. Para rejeitar tal ambivalência,
Hans desloca a angústia diante do pai para uma angústia diante de cavalos e denega a
moção agressiva contra o pai. O cavalo aparece assim como um “substituto do pai
(Vatersurrogat)”. É exatamente a mesma lógica que permitirá a Freud afirmar que o
animal totem não seria outra coisa que uma representação substituta do pai, da mesma
forma que o animal no interior de uma fobia infantil. Daí a afirmação central que
permite a compreensão do sentido das interdições tabu através do uso do Complexo de
Édipo:

Se é verdade que o animal totem é o pai, os dois principais mandamentos do


totemismo – a interdição de matar o totem e de usar sexualmente uma mulher
pertencente ao totem – coincidem, em conteúdo, com os dois crimes de Édipo,
que matou seu pai e tomou sua mãe por mulher, assim como coincidem com os
dois desejos originários da criança, cujo recalcamento insuficiente ou o
despertar formam o núcleo de todas as psiconeuroses80.

Afirmações como esta renderam várias críticas ao texto freudiano, já que se trata de
assumir a universalidade do Complexo de Édipo (um complexo resultante de certas
características específicas da família burguesa, como a sobreposição de rivalidade e
identificação com a figura paterna) como dispositivo geral de socialização do desejo no
interior da cultura.
Por fim, Freud apoia-se em Robertson Smith a fim de insistir que o sacrifício e
a festa são práticas sociais fundadoras e renovadoras dos vínculos sociais. Neste
sentido, lá onde há sacrifício e festa há uma organização social baseada na circulação
de dons (sacrifício) e no reconhecimento de uma Lei que se faz sentir no momento
mesmo em que é suspensa (festa). Smith lembra que: ‘a forma mais antiga do sacrifício,
anterior ao uso do fogo e ao conhecimento da agricultura, era o sacrifício animal cuja
carne e sangue eram consumidos em comum pelo deus e seus adoradores”81 isto a fim
de identificar o animal sacrificado e o animal totêmico. Daí a hipótese do “festim
totêmico”:

O sacrifício era um sacramento, a vítima era um membro do clã. Na verdade,


era o antigo animal totem, o próprio deus primitivo, através da sua morte e
absorção, os membros do clã renovavam e confirmavam a semelhança que
estes tinham em relação ao deus82.

80
FREUD, Totem e tabu
81
idem
82
idem
A partir daí, as peças estão armadas para que Freud apresente a hipótese do
assassinato do pai primevo, senhor da horda originária:

Um dia, os irmãos que tinham sido expulsos da hordas se uniram, mataram e


comeram o pai, colocando assim um fim a horda paterna (...) Que eles tenham
comido o cadáver, isto é evidente para o selvagem canibal. O pai originário
tirânico fora certamente o modelo invejado e temido de cada um dos membros
da irmandade. Assim, através do ato de comê-lo, eles realizaram a identificação
com o pai (...) O festim totêmico, talvez a primeira festa da humanidade, seria a
repetição deste gesto criminoso memorável que está no começo de tantas coisas:
organizações sociais, restrições morais e religião (...) Eles odiavam o pai que
representava um forte obstáculo ás suas necessidades de poder e às suas
exigências sexuais, mas eles também o amavam e o admiravam. Uma vez que
eles o eliminaram, satisfizeram seu ódio e realizaram seu desejo de com ele se
identificar, as moções tenras que tinham sido violentadas reapareceram. Isto se
produziu sob a forma do arrependimento (Reue) , desenvolve-se um sentimento
de culpa que coincide com o arrependimento sentido coletivamente83.

Deste sentimento de culpa, segue-se a renúncia às mulheres desejadas (e, com ela, a
exogamia), a conservação da organização social comunitária, assim como a
preservação do lugar do pai primevo como um lugar vazio ocupado por um substituto,
o totem, que deve a partir de então ser objeto de homenagens e cuidados. O totemismo
aparece assim como um sistema de defesa contra o sentimento de culpa. Sem o
totemismo, tal sentimento recrudesce novamente (o que explicaria seu retorno na
modernidade).
Com este esquema explicativo, Freud procura dar conta do advento da religião
(que teria herdado do totemismo este esquema de sentimento de culpa em relação a
uma representação paterna), assim como a transformação de uma “sociedade sem pais”
em sociedade patriarcal. Sociedade, no entanto, em que a figura paterna é uma pálida
encarnação desta representação do pai primevo.
Mas o que podemos dizer deste mito freudiano? Ha duas dimensões do
problema que merecem nossa atenção. A primeiro diz respeito a esta figura do poder
que Freud apresenta através da hipótese do pai primevo. A segunda diz respeito à
anterioridade da culpabilidade em relação ao estabelecimento da Lei social e da
moralidade.
Sobre o primeiro ponto, lembremos que o mito freudiano constrói o pai
primevo como uma figura na qual convergem a enunciação soberana da Lei e
exigências de regulação social que tocam, principalmente, expectativas de satisfação
sexual. Como se uma genealogia do poder fosse, necessariamente, arqueologia da
maneira com o que é da ordem do sexual é regulado no interior do tecido social. Não é
por acaso que a posse do macho mais forte não é simples posse de bens, mas posse de

83
idem
mulheres. Freud acaba por dar forma a esta crença moderna de que o sexual
transformara-se em fator central da política. Neste sentido, lembremos desta afirmação
fundamental de Foucault: : ”o que é próprio das sociedades modernas não é o terem
condenado o sexo a permanecer na obscuridade, mas sim o terem-se devotado a falar
dele sempre, valorizando-o como o segredo”84. Um valorização que permitiu que algo
da ordem das expectativas utópicas que animaram a esfera do político transformasse o
que é da ordem do sexual em campo fundamental de intervenção social. O que explica
a constatação surpresa de Foucault:

E perguntemo-nos como foi possível que o lirismo, a religiosidade que


acompanharam durante tanto tempo o projeto revolucionário tenham sido, nas
sociedades industriais e ocidentais, transferidas, pelo menos em boa parte, para
o sexo85.

É tendo tais questões em mente que podemos ver o pai primevo freudiano como
um estranha figuração, talvez a única possível à sensibilidade moderna, do lugar de
exceção próprio à soberania. O lugar do pai primevo é um lugar soberano por deixar à
vista esta articulação, que estaria escondida em toda formação social (que seria a
dimensão recalcada de toda formação social “racionalizada”), onde a enunciação do
poder e a apropriação do gozo se vinculam. O mito do pai primevo é assim a
representação imaginária própria a um tempo que vê a essência de todo poder como
regulação e administração da satisfação subjetiva. Se o mito é aquilo que fornece uma
matriz explicativa capaz de guiar a conduta dos sujeitos diante de certos conflitos
socialmente vivenciados, então podemos dizer que, através do mito do pai primevo,
Freud acaba por nos dizer (mesmo se a contragosto) que o sujeitos modernos agem
como quem vê instituições e figuras reconhecidas de autoridade como aquilo que
instaura e é responsável por uma distribuição desigual das possibilidades de satisfação
subjetiva. Maneira de conservar certas representações fantasmáticas de satisfação que
só podem ter realidade fantasmática.
As consequências políticas de tal representação imaginária serão exploradas
em Psicologia das massas e análise do eu. Ao invés do que poderíamos normalmente
esperar (ou seja, consolidação de demandas de “redistribuição”), as sociedades
modernas estariam abertas ao retorno de figuras superegóicas de autoridade vindas na
linha direta do mito do pai primevo, deste objeto perdido inicial, ou que permitem a
identificação com tais tipos ideais. Neste sentido, lembremos como algumas das
grandes contribuições da Escola de Frankfurt na análise dos líderes fascistas era a
insistência de que não estávamos diante de líderes que pregavam alguma forma de
sistema repressivo “law and order”, mas de encarnações de sistemas sócio-políticos
voltados para a mobilização contínua de exigências libidinais e de transgressões

84
FOUCAULT, História da sexualidade I, p. 36
85
idem, p. 13
controladas. Daí porque eles lembravam que a verdadeira análise da ideologia fascista
era uma análise da economia libidinal que suportava o vínculo a tal ideologia.

A gênese da comunidade e o lugar vazio do poder

Neste ponto, fica claro como o ponto fundamental do argumento freudiano


neste livro não está na tentativa de fundamentar hipóteses antropogenéticas recorrendo
a uma pretensa cena originária da vida social com sua violência primordial. Melhor
seria se perguntar sobre qual perspectiva de avaliação da estrutura dos vínculos sociais
no começo do século XX leva Freud a procurar as bases para a autorreflexão da
modernidade em teorias como o totemismo, o festim totêmico e a ideia darwiniana de
que o estado social originário do homem estaria marcado pela vida em pequenas hordas
no interior das quais o macho mais forte e mais velho (o pai primevo) impediria a
promiscuidade sexual, produzindo com isto a exogamia. Por isto, devemos
compreender a criação do mito do assassinato do pai primevo como a maneira,
disponível a Freud, de dizer que, em relações sociais atuais, os sujeitos agem como
quem carrega o peso do desejo de assassinato de um pai que nada mais é do que a
encarnação de representações fantasmáticas de autoridade soberana. O fundamento da
vida social é a revolta e sua impotência.
Esta dimensão de um “agir como” é o que deve ser salientado aqui. Ela nos
envia a modos de representação fantasmática em operação nas relações de sujeitos
com instâncias de autoridade e instituições. Haveria muito a se dizer a respeito desta
estratégia freudiana, mas nos restrinjamos a alguns pontos gerais. Mas queria terminar
insistindo nos problemas ligados ao sentimento de culpa como modo de adesão social.
Este sentimento de culpa vem do fato do pai não ser apenas responsável pela crueldade
e coerção, mas ser também objeto perdido de amor e identificação. A este respeito,
lembremos como:

a identificação é ambivalente desde o início; ela pode se voltar tanto para a


expressão da ternura quanto para o desejo de eliminação (…) Como se sabe, o
canibal permanece nessa posição; ele gosta de devorar seus inimigos, e não
devora aqueles de que não poderia gostar de alguma maneira 86.

Mas notemos como a identificação com o pai primevo implica crença na transmissão,
na possibilidade de ocupar em algum momento o mesmo lugar. Note-se como a mera
possibilidade de tal lugar de exceção existir é, de maneira bastante peculiar, fonte de
amparo pois implica alcançar posição na qual as limitações normativas seriam
inefetivas, na qual a decisão se afirmaria, como gostava de dizer Carl Schmitt, “em sua
pureza absoluta” insubmissa à codificação prévia de suas condições, em sua indivisão

86
(FREUD, Sigmund; Psicologia das massas e análise do eu, p. 94)
teológica entre vontade e ação87. Mas com seu assassinato, instaura-se algo como uma
comunidade de iguais na qual todos acabam por abrir mão de ocupar o lugar outrora
preenchido pelo pai:

Os irmãos haviam se aliado para vencer o pai, mas eram rivais uns dos outros
no tocante às mulheres. Cada um desejaria, como o pai, tê-las todas para si, e
na luta de todos contra todos a nova organização sucumbiria. Nenhum era tão
mais forte que os outros, de modo a poder assumir o papel do pai. Assim, os
irmãos não tiveram alternativa, querendo viver juntos, senão - talvez após
superarem graves incidentes – instituir a proibição do incesto, com que
renunciavam simultaneamente às mulheres que desejavam, pelas quais haviam,
antes de tudo, eliminado o pai88.

Notemos inicialmente a recorrência da iminência hobbesiana da “luta de todos


contra todos” produzida pela igualdade natural de forças e pela convergência de objetos
de desejo. Como se antes do estado de natureza hobbesiano houvesse a soberania do
pai primevo. A possibilidade recorrente da luta deve produzir o desejo pela instauração
de normas responsáveis pela restrição mútua (no caso, a proibição do incesto) e pela
regulação das paixões, garantindo assim as condições de possibilidade para a
constituição do espaço político. Aparece, desta forma, uma espécie de contrato social
que permite a renúncia pulsional, o reconhecimento de obrigações mútuas e o
estabelecimento de instituições. Ele ainda tem, como saldo, a perpetuação da condição
feminina como exterior à determinação dos sujeitos agentes já que, nesta narrativa, as
mulheres se perpetuam como meros objeto de contrato.
No entanto, insistamos em outro ponto. No mito freudiano há de se levar em
conta como tal constituição do espaço político produz inicialmente a abertura de um
“lugar vazio” do poder, já que: “ninguém mais podia nem era capaz de alcançar a
plenitude de poder do pai”89. Tal lugar vazio, que Freud chega a descrever como
próprio a uma sociedade sem pais (vaterlose Gesellschaft) que parece poder realizar a
igualdade democrática, permitiu o aparecimento de laços comunitários baseados em
“sentimentos sociais de fraternidade (...) na sacralização do sangue comum, na ênfase
na solidariedade de todas as vidas do mesmo clã”90.
Mas esta comunidade de iguais, esta sociedade sem pais, tem uma fragilidade
estrutural: tal lugar vazio é suplementado por uma elaboração fantasmática. A fantasia
do pai primevo não foi abolida, já que ele permanece na vida psíquica dos sujeitos sob
a forma de um sentimento comum de culpa como fundamento de coesão social, que
denuncia, por outro lado, o desejo que tal lugar seja ocupado. Assim, o afeto de
87
Difícil discutir tal função da fantasia social do pai primevo sem recorrer à noção de decisão em
SCHMITT, Carl; Politische Theologie: Vier Kapitel zur Lehre von der Souveranität, Berlin: Duncker
and Humblot, 1934. Como se tratasse, em Freud, de fornecer a economia libidinal da soberania.
88
FREUD, Sigmund; “Totem e tabu”, In: Obras completas vol. 11, São Paulo: Companhia das Letras,
2012, p. 220
89
Idem, p. 226
90
Idem, p. 222
solidariedade que a comunidade dos iguais permite circular é também responsável pela
paralisia social de quem continua sustentando a “nostalgia pelo pai” (Vatersehnsucht)
agora elevado à condição de objeto perdido. Este pai que não está lá, mas que faz sua
latência ser sentida, retornará sob uma forma melancólica.
A sociedade sem pais deverá assim converter-se gradualmente em uma
sociedade organizada de forma patriarcal. Pois o lugar vazio do poder é, ao mesmo
tempo, lugar pleno de investimento libidinal em uma figura de exceção que se coloca
em posição soberana. Isto leva Freud a afirmar:

houve pais novamente, mas as realizações sociais do clã fraterno não foram
abandonadas, e a efetiva distância entre os novos pais de família e o ilimitado
pai primevo da horda era grande o suficiente para garantir a continuação da
necessidade religiosa, a conservação da insaciada nostalgia pelo pai91.

“Houve pais novamente”. Mas agora pais que poderiam cuidar, individualizar,
pregar a renúncia pulsional, em suma, aplicar o poder pastoral e nos lembrar da
importância do respeito à norma e às exigências restritivas das instituições. Pais que
precisavam lembrar que estavam lá para enunciar mais uma vez a Lei porque, caso não
mais lá estivessem, estaríamos vulneráveis a figuras como o pai primevo. Medo que
apenas ativa a memória da identificação arcaica com um direito natural que abri mão,
mas que constituiu em minha vida psíquica os laços melancólicos com um objeto
perdido, enredado nas sendas da transmissão. Assim houve pais novamente, mas pais
assombrados pela inadequação em relação à figuras de soberania que se fundamentam
em posição de excepcionalidade em relação à Lei. O que nos permite pensar que a
autoridade desses pais precisará reavivar periodicamente os traços do pai primevo e seu
lugar de excepcionalidade, dando espaço para um jogo de reiteração constante entre a
Lei e sua transgressão, pulsação pendular de retorno e distância em relação à cena
primitiva, pulsação afetiva que vai da mania à depressão. Assim, se esses pais
souberem como trazer periodicamente o pai primevo, a revolta contra a civilização
poderá servir de elemento para a perpetuação de uma ordem que todos sentem de
forma restritiva.

91
Idem, p. 227
Psicologias do fascismo
Aula 5

Na aula de hoje, gostaria de mostrar como o esquema que vimos em Psicologia das
massas, de Freud, servirá para a recomposição contemporânea da compreensão do
populismo. É conhecido de todos vocês como “populismo” tornou-se um termo central
na filosofia política atual. Hoje, ele é utilizado para dar conta das forças que parecem
se contrapor aos processos e modos de gestão inerentes à democracia liberal. Não é
difícil perceber como, na grande maioria dos casos, “populismo” é utilizado como
sinônimo de regressão social e política. Ele aparece assim como a expressão da
irracionalidade e do primado das identificações afetivas personalistas em política.
Vários teóricos liberais gostam de descrever o populismo como a explosão do
irracional e do afeto em política, como se a democracia corriqueira fosse o domínio
desencantado da razão.
Dentro desta lógica, o uso extensivo do termo populismo permite a criação de
uma estratégia de desqualificação e aproximação dos extremos políticos, isto a fim de
defini-los como posições políticas anti-democráticas, fundamentada não na força do
melhor argumento, mas na mobilização de afetos e paixões. Desta forma, o termo
“populismo” pode ser utilizado para evitar nomear grupos claramente racistas,
xenófobos e de tendências fascistas. Pois, cria-se uma certa relação de equivalência
entre os extremos políticos da direita e da esquerda. Por outro lado, ele tende a nomear
toda tendência que não se reconhece no interior das posições possíveis da democracia
liberal. Assim, “populista” serão as políticas econômicas anti-liberais, “populista”
serão as posições políticas que insistirão na necessidade de refundação institucional da
democracia. Pois notemos que o recurso à liderança como princípio de unificação
social não é um elemento diferencial do populismo, mas está presente no
funcionamento normal de quase todos os processos genéricos de governo.
No entanto, populismo descreve, de forma analítica, uma dinâmica precisa
ligada a construção de hegemonia no interior do campo político. Tal construção de
hegemonia está necessariamente ligada oa uso da noção de “povo” como operador
político central. O populismo aparece assim como uma forma de integração de massas
ao processo político através da construção do “povo” como agente. O filósofo
argentino Ernesto Laclau foi um dos poucos a conseguir escapar da desqualificação
genérica do populismo, ao mostrar como este descrevia uma característica fundamental
da democracia, a saber, a capacidade de incorporação, através da construção do
“povo”, de classes sempre expulsas do poder92. Na sua reconstrução do populismo,
Laclau recuperou a psicologia das massas de Freud a fim de lhe dar uma nova
dimensão. Na aula de hoje, eu gostaria de discutir tal operação, a fim de compreender
suas estratégias e limites, assim como entender melhor a psicologia inerente às formas
92
LACLAU, Ernesto; A razão populista, São Paulo: Três Estrelas, 2014. Discuto mais detidamente a
hipótese de Laclau nos dois primeiros capítulos de SAFATLE, Vladimir; O circuito dos afetos: corpos
políticos, desamparo e o fim do indivíduo, Belo Horizonte: Autêntica, 2016
atuais de análise de fenômenos políticos de massa e da lógica de formação de
identidades coletivas.

Demandas e afetos

O projeto de Laclau parte da impossibilidade de pensar o campo social a partir


da noção de grupos em conflito. A noção de grupo pressupõe uma homogeneidade de
interesse na constituição de atores sociais. Cada ator é portador de sistemas
homogêneos de interesses que entram em conflito com interesses de grupos opostos.
Na verdade, Laclau se propõe a dar um passo atrás a fim de abrir espaço a uma noção
na qual grupos aparecem como arranjos desenvolvidos a partir de demandas muitas
vezes heterogêneas. Neste sentido, é a noção de “demanda” que ganha importância.
Entende-se, neste contexto, por demanda uma petição, uma exigência. O que deixa
claro seu horizonte de direção a um Outro que deve, de certa maneira, ocupar uma
dimensão de poder. Grupos podem conter demandas muitas vezes contraditórias,
heteróclitas e toda questão gira em torno de compreender como demandas
contraditórias podem ser, muitas vezes, agenciadas em incorporações unificadoras. No
caso, como é possível a criação de hegemonia a partir de um terreno socialmente
fragmentado, disperso e múltiplo. Lembremos que, neste contexto, hegemonia deve ser
compreendido como:

Hegemonia aludirá a uma totalidade ausente, e às diversas tentativas de


recomposição e de rearticulação que, ao superar a ausência original, tornará
possível para as lutas um sentido e para forças históricas serem fortalecidas
com uma positividade plena93.

Por isto, o conceito de hegemonia irá emergir precisamente em um contexto


dominado pela experiência da fragmentação e pela indeterminação das articulações
entre diferentes lutas e posições subjetivas. O horizonte histórico deste pensamento
insere-se na crítica às noções tradicionais de classe e de consciência de classe como
modo de constituição de sujeitos políticos dotados de unidade potencial de ação e de
interesse. Por outro lado, trata-se de outorgar centralidade à noção de “afeto” na
constituição social. A possibilidade de incorporação não se dá através do
esclarecimento da existência de interesses comuns fundadores de uma classe, mas
através da mobilização de afetos capazes de estabelecer convergências entre demandas
contraditórias.
Notemos inicialmente como Laclau procura uma definição estrutural de
populismo para retirá-lo da condição de descrição de alguma forma de distorção no
campo pretensamente comunicacional do político. Na verdade, ele procura definir o
populismo como a expressão do político enquanto tal. Vejamos, por exemplo,

93
LACLAU, Ernesto e MOUFFE, Chantal; Hegemony and socialist strategy, p. 7
colocações como esta a respeito da “simplificação” que seria inerente às estratégias
populistas:

Não seria esta lógica da simplificação e da imprecisão a condição mesma da


ação política? Apenas em um mundo impossível, no qual a administração
suplantasse totalmente a política e uma piecemeal engineering no trato das
diferenças particularizadas tivesse suplantado totalmente as dicotomias
antagônicas, poderíamos dizer que a “imprecisão” e a “simplificação” teriam
sido realmente erradicadas da esfera pública. Nesse caso, sem dúvida, o traço
distintivo do populismo seria apenas a ênfase em uma lógica política que é um
ingrediante necessário da política tout court94.

Laclau está a dizer que as dinâmicas internas ao populismo são próprias a todo
e qualquer embate político. Laclau chega a ver no populismo “a via real para
compreender algo relativo à constituição ontológica do político enquanto tal”95. Isto a
ponto de defender não haver “nenhuma intervenção política que não seja, até certo
ponto, populista”96. A maneira depreciativa com a qual tais dinâmicas aparecem seriam,
na verdade, parte de uma estratégia de desqualificação da emergência de uma política
popular a partir do final do século XIX. Daí porque Laclau relê Le Bon a fim de
afirmar que sua maneira de descrever processos de regressão social não é outra coisa
que a descrição dos processos normais de produção de significação social e sentido.
Ele relê Hyppolite Taine, Lombroso, Sighele para mostrar como as representações das
massas tinham como objetivo dar conta das dinâmicas afetivas que constituíam os
laços sociais, mas sem nunca perceber que estávamos a descrever os processos gerais
de constituição de formas de corpo social.
É neste ponto que Laclau recorre a Freud. Ele verá em Psicologia das massas e
análise do eu tanto a descrição da lógica imanente às identidades coletivas populares
quanto as formas de regressão autoritária. Partindo das mesmas descrições do advento
da sociedade de massas que influenciaram Freud (Le Bon, Tarde, e McDougall) a fim
de deixar evidente seu caráter de reação ao aparecimento de identidades populares no
campo político, Laclau retorna ao texto freudiano para explorar a dubiedade do
fenômeno identificatório no qual sua psicologia das massas se baseia:

Se nossa leitura está correta, tudo gira em torno da noção chave de


identificação e o ponto de partida para explicar uma pluralidade de alternativas
socio-políticas deve basear-se no grau de distância entre o eu e o ideal do eu.
Se tal distância aumenta, encontraremos a situação centralmente descrita por
Freud: a identificação entre os pares como membros do grupo e a transferência
do papel de ideal do eu para o líder. (...) Se, ao contrário, a distância entre o eu

94
LACLAU, Ernesto; La razón populista, p. 33
95
LACLAU, Ernesto; La razón populista, Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2011, p. 91
96
Idem, p. 195
e o ideal do eu é menor, o líder será o objeto eleito pelos membros do grupo,
mas também será parte destes, participando do processo geral de identificação
mútua97.

Ou seja, Laclau procura definir uma diferença entre processos identificatórios a fim de
distinguir uma identificação autoritária (esta na qual o grau de distância entre o eu e a
ideal é grande) e outra própria a uma dinâmica de incorporação popular (esta na qual
temos um processo geral de identificação mútua).
Mas a mera proximidade entre eu e ideal do eu nos processos de identificação
entre líder e povo não é suficiente para determinarmos uma natureza não autoritária
dos vínculos políticos. Adorno insistia que os líderes fascistas eram exatamente aqueles
que se constituíam a partir de uma distância mínima entre o eu e o ideal do eu. Pois a
condição de ser, ao mesmo tempo, o ideal do eu e a representação de um mesmo
objeto internalizado - que permite a construção de relações gerais de equivalência na
massa - faz o líder tender a aparecer como “o alargamento da própria personalidade do
sujeito, uma projeção coletiva de si mesmo, ao invés da imagem de um pai cujo papel
durante a última fase da infância do sujeito pode bem ter decaído na sociedade atual”98.
Adorno explora tal traço ao afirmar que:

uma das características fundamentais da propaganda fascista personalizada é o


conceito de ‘pequeno grande homem’, uma pessoa que sugere, ao mesmo
tempo, onipotência e a ideia de que ele é apenas mais um do povo, um simples,
rude e vigoroso americano, não influenciado por riquezas materiais ou
espirituais99.

Pois as identificações não são construídas a partir de ideais simbólicos. Elas são
basicamente identificações narcísicas que parecem compensar o verdadeiro sofrimento
psíquico do “declínio do indivíduo e sua subsequente fraqueza”100, um declínio que
não é apenas apanágio de sociedades abertamente totalitárias. Isto talvez explique
porque este “mais um do povo” possa ser expresso não apenas pela simplicidade, mas
às vezes pelas mesmas fraquezas que temos ou que sentimos, pela mesma revolta
impotente que expressamos. Pois:

o líder pode adivinhar as necessidades e vontades psicológicas desses


suscetíveis à sua propaganda porque ele se assemelha a eles psicologicamente,
e deles se distingue pela capacidade de expressar sem inibição o que está
latente neles, isto ao invés de encarnar uma superioridade intrínseca101.

97
Idem, p. 87
98
ADORNO, Theodor; op.cit., p. 418
99
Idem, p. 421
100
Idem, p. 411.
101
ADORNO, Theodor; “Democratic leadership and mass manipulation”, op. cit., p. 427
A fim de salientar o fundamento democrático de sua hipótese, Laclau
descreverá a especificidade de certa forma de alçar a particularidade do líder à
condição de apresentação de uma totalidade composta pelo povo. Ela consiste em
mostrar como “uma particularidade assume uma significação universal incomensurável
consigo mesma”102, transformando-se no corpo de uma totalidade inalcançável. É
importante para Laclau insistir no caráter inalcaçável da totalidade a fim de impedir
que ela se coloque como fundamento a ser recuperado em um retorno autoritário à
essencialidade original dos vínculos sociais, aparecendo ao contrário como fundamento
de um horizonte de transformação continuamente aberto. Para tanto, tal particularidade
deve se tornar um “significante vazio”. Ou seja, não basta, como em Claude Lefort,
que o lugar simbólico do poder esteja vazio. Faz-se necessário que aquele que ocupa
tal lugar também apareça como um significante vazio e que tal vacuidade seja decisiva
na constituição de sujeitos políticos.
Neste ponto, encontramos um dos eixos fundamentais do conceito de populismo
em Laclau. Populismo é sempre uma forma de criar hegemonia em campos de
demandas heterogêneas. Encontramos demandas contraditórias que são colocadas em
uma série convergente, são articuladas a partir da convergência de todas elas a um
ponto comum. No entanto, como podem demandas sociais contraditórias convergirem
para um mesmo ponto, para uma mesma pessoa, para uma mesma ideia? Faz-se
necessário que esta pessoa seja um significante vazio: alguém que nunca enuncia
claramente suas posições, alguém que parece adequar-se a todos os grupos, como se
estivesse em uma posição flutuante. Este significante será a encarnação de uma
totalidade cujo nome será “povo”.

O vazio instaurador

Notemos alguns pontos aqui. O primeiro foi bem salientado por Slavoj Zizek:

“O vazio do ‘povo’ é o vazio do significante hegemônico que totaliza a cadeia


de equivalência, isto é, cujo conteúdo particular é ‘transubstanciado’ numa
incorporação do todo social, enquanto o vazio do lugar do poder é uma
distância que torna ‘deficiente’, contingente e temporário todo portador
empírico do poder”103.

Ou seja, não se trata de dizer que, no populismo, o lugar do poder está vazio. Trata-se
de dizer que o líder é a encarnação de um povo que precisa de um significante vazio
para se totalizar. Este significante pode ser, por exemplo, valores como “liberdade”,
“justiça”. Eles precisam ser vazios para que uma multiplicidade de demandas possa
encarnar-se, transcendendo seus próprios contextos particulares. Este momento
transcendente seria fundamental para a constituição de toda identidade coletiva.

102
Idem, p. 95
103
ZIZEK, Slavoj; Em defesa das causas perdidas, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 247
Só assim o vazio poderia preencher o papel que lhe cabe: instaurar o povo
como um modelo de identidade coletiva baseado na multiplicidade. No caso,
multiplicidade de demandas concretas de diferentes grupos distintos, muitas vezes
contraditórias entre si, mas capaz de ser agenciada em uma rede de equivalências que
permite, ao mesmo tempo, a constituição de uma identidade popular-coletiva e a
determinação de linhas antagônicas de exclusão (agora politizadas). Assim, Laclau
poderá afirmar:

Não há totalização sem exclusão, e sem que tal exclusão pressuponha a cisão
de toda identidade entre, de um lado, sua natureza diferencial que a
vincula/separa de outras identidades e, de outro, seu laço equivalencial com
todas as identidades restantes a partir do elemento excluído. A totalização
parcial que o vínculo hegemônico consegue criar não elimina a cisão mas, ao
contrário, deve operar a partir das possibilidades estruturais que derivam dela104.

Freud não falaria outra coisa ao denunciar a dinâmica autoritária da psicologia das
massas, mas Laclau não vê tal cisão como expressão necessária de práticas
segregacionistas. Vários movimentos populistas, em especial os latino-americanos, se
servem desta totalização por exclusão para operar no âmbito político das lutas de
classe, no que é incorreta a crítica de que Laclau desconheceria a luta de classes. Desta
forma, o populismo pode dividir a sociedade em dois campos antagônicos no interior
do qual o povo, mesmo não se confundindo com a totalidade dos membros da
comunidade, coloca-se como parte que procura ser concebida como única totalidade
politicamente legítima, plebs até então não-representada que reclama ser o único
populus legítimo. Assim se constitui um povo. O que não deixa de ressoar uma ideia
fundamental de Carl Schmitt:

Palavras como Estado, república, sociedade, classe e ademais soberania, Estado


de direito, absolutismo, ditadura, plano, Estado neutro ou total etc. são
incompreensíveis quando não se sabe quem deve ser, in concreto, atingido,
combatido, negado e refutado com tal palavra105.

Por isto, um elemento central do populismo é sua natureza anti-institucional.


Ele se constitui no interior de um processo de incorporação daqueles que até então não
existiam do ponto de vista dos atores políticos. Não-contados que foram colocados a
margem do funcionamento da vida institucional. Por isto, sua emergência só pode se
dar colocando em questão a ordem institucional vigente. No populismo, aqueles até
então invisíveis começam a ser contados. Mesmo que, para tanto, suas demandas
apareçam junto a várias outras demandas de naturezas distintas. Mas isto implica em
mobilizar a força política contra as instituições que, até o momento, foram

104
LACLAU, Ernesto; idem, p. 104
105
SCHMITT, Carl; O conceito de político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 32
responsáveis pela gestão da invisibilidade social. Laclau sintetiza isto da seguinte
forma:

Sabemos que o populismo requer a divisão dicotômica da sociedade em dois


campos – um que se apresenta a si mesmo como parte que reclama ser o todo –
dicotomia que implica a divisão antagônica do campo social e que pressupõe,
como condição de constituição do campo popular, a construção de uma
identidade global a partir da equivalência de uma pluralidade de demandas
sociais106.

No entanto, sob o populismo, a constituição do campo popular, quanto maior


for, pede cada vez mais a suspensão do caráter contraditório de demandas particulares
que ele precisa mobilizar. Por isto, só cabe à liderança ser um significante vazio que
parece operar como ponto de unidade entre interesses aparentemente tão distintos. Tal
caráter vazio dos significantes que unificam o campo popular não é resultado de algum
arcaísmo político próprio a sociedades prenhes de ideias fora do lugar. Ele
“simplesmente expressa o fato de que toda unificação populista tem lugar em um
terreno social radicalmente heterogêneo”107. Daí porque ele precisa afirmar:

A identidade popular se torna cada vez mais plena a partir de um ponto de vista
extensivo, já que representa uma cadeia sempre maior de demandas; mas ela se
torna intensivamente mais pobre, pois deve despojar-se de conteúdos
particulares a fim de abarcar demandas sociais que são totalmente heterogêneas
entre si. Isto é uma identidade popular que funciona como um significante
tendencialmente vazio108.

Laclau fornece vários exemplos para dar conta de um fenômeno que, em seu
caso, certamente tem expressões profundas no peronismo e em outras formas de
populismo latino-americano reformista, capazes de permitir a constituição de
identidades coletivas. Nestes casos, o populismo demonstrou tal função pelo fato da
defesa da ordem institucional nestes países ter sempre estado, em larga medida,
vinculada às demandas hegemônicas de setores conservadores da sociedade. O que
pode não ser o caso. Tal indeterminação de resultados relativos a fenômenos populistas
permite a Laclau ver no papel unificador de Nelson Mandela, que acaba por se
confundir com o nome do próprio Estado, na política cosa nostra do governador
paulista Adhemar de Barros ou nos projetos de Mao Tse-Tung exemplos do
antiinstitucionalismo populista. Pois:

existe em toda sociedade um reservatório de sentimentos anti status quo puros


que se cristalizam em alguns símbolos de maneira relativamente independente

106
LACLAU, Ernesto; La razón populista, p. 110
107
Idem, p. 128
108
Idem, p. 125
da forma de sua articulação política e é sua presença que percebemos
intuitivamente quando denominamos “populista” um discurso ou uma
mobilização109.

Tais símbolos são “significantes flutuantes” cujo caráter de “flutuação” vem do fato de
poderem aparecer organizando o discurso de perspectivas políticas muitas vezes
radicalmente distintas entre si. Por outro lado, esses sentimentos anti institucionais
normalmente se encarnam em chamados aos “de baixo”, aos que estavam fora da
ordem institucional. Por isto, Benjamin evocava a atração popular pelo criminoso, pelo
bandido. A atração vem da posição de exterioridade em relação à ordem legal.

Transformação e paralisia

As elaborações de Laclau são precisas em mais de um ponto. Elas mostram


como a perspectiva freudiana e seus desdobramentos permitem compreender, com
clareza, os processos identificatórios no campo político não apenas como regressivos,
mas também como constitutivos da própria dinâmica transformadora das lutas sociais.
Não há política democrática sem o reconhecimento de dinâmicas constituídas no ponto
de não-sobreposição entre direito e demandas sociais, entre legalidade e legitimidade.
Não há política democrática sem um excesso de antagonismo em relação às
possibilidades previamente decididas pela estrutura institucional, e é isto que a
experiência populista nos mostra, embora o populismo não seja o único modo de
existência do excesso de antagonismo sobre a estrutura democrático-institucional110.
De toda forma, Laclau nos permite compreender como a reflexão política freudiana
pode nos ajudar a sublinhar a complexidade da relação entre institucionalidade e
demandas que se alojam em um espaço anti-institucional. A irredutibilidade da posição
da liderança implica reconhecimento de um lugar, não completamente enquadrado do
ponto de vista institucional, marcado pela presença da natureza constituinte da vontade
política. Tal lugar pode tanto impedir que a política se transforme na gestão
administrativa das possibilidades previamente determinadas e constrangidas pelo
ordenamento jurídico atual quanto ser o espaço aberto para a recorrência contínua de
figuras de autoridade e liderança que parecem periodicamente se alimentar de fantasias
arcaicas de segurança, proteção e de medo. Esta ambivalência lhe é constitutiva, pois
ela é, na verdade, a própria ambivalência da incorporação em política. Tanto é assim
que a definição de demandas democráticas fornecida por Laclau é bastante sumária:

Há um ingrediente da noção de democracia na tradição marxista que é


necessário reter: a noção de insatisfação da demanda que enfrenta um status
quo existente e permite o desencadeamento da lógica equivalencial que conduz
ao surgimento do povo111.

109
Idem, p. 136
110
Cf. ZIZEK, Slavoj; Em defesa das causas perdidas, op. cit., p. 287
111
LACLAU, idem, p. 161
Como podemos notar, esta colocação não se diferencia muito de uma descrição
genérica de ruptura anti-institucional. O que nos coloca uma questão importante, a
saber, se a concepção política de povo é suficiente para descrever processos
emancipatórios. A constituição do povo e de sua visibilidade é condição suficiente
para falarmos em política emancipatória?
Pois talvez sejamos obrigados a afirmar que o povo é uma categoria política
provisória e profundamente limitada. Quando o povo sobe à cena e lá permanece de
forma não-provisória, é impossível impedir que seus eixos de convergência não se
cristalizem sob a figura da nação e se institucionalizem sob a figura do estado. Não há
povo sem nação. Não há nação sem exclusão, perseguição e afirmação territorial.
Não é possível criticar a colonização do campo político pelo estado-nação e tentar
conservar uma compreensão ontológica do povo. O povo induz necessariamente ao
estado e à nação, a não ser que ele só se encarne em momentos nos quais as
sociedades precisam concentrar sua potência em um linha de fuga a fim de que rupturas
e mudanças qualitativas sejam possíveis. Por isto, o povo não deve aparecer como
substância social, mas como potência de emergência. Uma potência de emergência que
ampliará sua força se for capaz de se encarnar em um corpo social des-idêntico e
inquieto, ao invés do corpo unitário do imaginário social. Pois a política é a
emergência do que não se estabiliza nos regimes atuais de existência
Por outro lado, a estratégia de Laclau tem ainda outro problema importante.
Pois ele deveria explorar com mais sistematicidade a natureza profundamente ambígua
das estratégias populistas e sua necessária limitação. Ambiguidade entendida não no
sentido da polaridade, sempre alimentada pelo pensamento conservador, entre
democracia com instituições fortes e autoritarismo personalista, mas no sentido de uma
oscilação contínua, interna a todo movimento populista, entre transformação e
paralisia. Por sustentar a necessidade de sujeitos políticos se expressarem como povo
constituído através de cadeias de equivalências entre demandas concretas muitas vezes
contraditórias, o populismo é assombrado continuamente pelo risco da paralisia dos
processos de transformação social devido ao fato de alcançarmos rapidamente um
ponto de equilíbrio no qual demandas conflitantes começam a se vetar mutuamente. O
populismo avança em situações nas quais há um cálculo possível que permite a várias
e determinadas demandas mais fortes serem, em algum nível, contempladas. No
entanto, ele se depara rapidamente com uma situação na qual processos de
transformação se estancam devido ao equiílbrio impossível entre demandas conflitantes,
o que faz do processo de liderança uma gestão contínua do imobilismo e da inércia,
desviada pela construção pontual de antagonismos setorizados com grupos exteriores.
Faz parte da dinâmica do populismo a presença destes momentos nos quais o
imobilismo se justifica pela transformação da luta de classes em mero fantasma a
assombrar, com ameaças de regressões a condições antigas de vulnerabilidade, os
setores submetidos à liderança. Assim, consolida-se a dependência às figuras de
liderança que já não são mais capazes de fazer o processo de transformação avançar,
mas que tentam nos fazer acreditar que, se desaparecerem, elas poderiam nos levar à
situação de perda das conquistas geradas. Figuras que a partir de então se perpetuarão
através do retorno fatídico à mobilização libidinal do medo como afeto político.
Psicologias do fascismo
Aula 6

Na aula de hoje, gostaria de discutir o texto “A estrutura psicológica do fascismo”, de


Georges Bataille. Escrito em 1933, no ano da ascensão do Partido Nacional Socialista
ao poder, o texto de Bataille é um dos primeiros a utilizar o quadro psicanalítico de
análise do social para dar conta diretamente do fascismo. Mas primeiramente
lembremos de alguns traços fundamentais do horizonte crítico de Georges Bataille.
Eles nos facilitarão na tarefa de compreender sua interpretação do fascismo.

Um crítica da sociedade do trabalho

Bataille inicia seu texto afirmando que a sociedade capitalista da produção é


uma sociedade homogênea, ou seja, baseada na construção de uma estrutura social na
qual relações e valores são baseadas na utilidade e na quantificação. Sociedade
homogênea produtora de indivíduos homogêneos. “Homogeneidade significa aqui
comensurabilidade e consciência dessa comensurabilidade (as relações humanas podem
ser mantidas por uma redução a regras fixas baseadas na consciência da identidade
possível de pessoas e de situações definidas)”112. Todo o problema de tais sociedades é
como lidar com a exclusão do que é heterogêneo, que Bataille aproxima daquilo que é
inconsciente, ou seja, sem forma própria de apreensão pela consciência. Ou seja, a
base da vida social é uma certa noção de homogeneidade criada pelo sistema de
produção, pela submissão das atividades à abstração monetária, pelos ditames da
sociedade do trabalho.
Em vários momentos, Bataille lembrará que nossas sociedades modernas
ocidentais são caracterizadas por serem, principalmente, sociedades do trabalho. O
trabalho aparece como atividade fundamental para a constituição das identidades
sociais e para o meu reconhecimento como sujeito. Se o trabalho tem esta dimensão
formadora é porque ele é uma das versões mais bem acabadas de certo processo de
auto-governo. Só aqueles capazes de se auto-governar são capazes de trabalhar. Pois,
como dizia Marx, através do trabalho, aprendemos a impor uma lei à vontade, lei que
deve ser reconhecida por mim como expressão da minha própria vontade. Esta vontade
que submete outras vontades e que aparece assim para o sujeito com um dever que ele
mesmo põe para si, dever que lhe permite relativizar as exigências imediatas de auto-
satisfação, é um fator decisivo na constituição da noção moderna de autonomia. Por
isto, só aqueles capazes de trabalhar são autônomos; não apenas no sentido material de
serem capazes de prover seus próprios sustentos, mas no sentido moral de serem
capazes de impor para si mesmo uma lei de conduta que é a expressão de sua própria
vontade. E se lembrarmos da ideia de Rousseau113, para quem a verdadeira liberdade é

112
BATAILLE, Georges; La structure psychologique du fascisme, p. 137
113
Ver ROUSSEAU, Jean-Jacques; Le contrat social, Paris : gallimard, 2000
a capacidade de dar para si mesmo sua própria lei, ser legislador de si mesmo, então
seremos obrigados a dizer que o trabalho é exercício mais importante para a liberdade.
No entanto, para Bataille, devido a esta natureza de auto-controle socialmente
validado não é possível ao trabalho aparecer, em qualquer momento que seja, como
modalidade bem sucedida de reconhecimento social. Trabalhar sempre será uma
operação servil. Podemos mesmo modificar radicalmente a divisão social imposta ao
trabalho pelo capitalismo e permitir que todos tenham a posse dos meios de produção e
de seus frutos. Para Bataille, isto não mudará o essencial, a saber, que o mundo do
trabalho é o mundo da produção e que produzir implica ser capaz de submeter
atividades ao cálculo de tempo e metas, não se deixar desviar das metas estabelecidas,
perguntar-se pela utilidade final de cada objeto produzido, avaliar cada ação a partir do
valor que ela produziu. Ou seja, o mundo do trabalho é um mundo no qual posso
calcular valores que são homogêneos. A lei que imponho para mim mesmo quando
organizo minhas atividades a partir da lógica do trabalho é uma lei que me ensina a
calcular, a medir, a quantificar minhas atividades, os objetos que produzo e,
principalmente, o prazer final que alcanço. E neste ponto que se encontra, para Bataille,
o verdadeiro núcleo da experiência de alienação produzida pela sociedade do trabalho.
Por isto, ele precisará lembrar:

O trabalho exige uma conduta em que o cálculo do esforço, relacionado à


eficácia produtiva, é constante. Exige uma conduta razoável, em que os
movimentos tumultuosos que se liberam na festa e, geralmente, no jogo, não
são admitidos. Se não pudéssemos refrear esses movimentos, não poderíamos
trabalhar, mas o trabalho introduz justamente a razão de refreá-los114.

Nesta citação, vemos Bataille introduzir uma oposição importante. Há um


modelo de cálculo derivado da lógica do trabalho. Tal modelo é indissociável da
noção de “utilidade”, assim como de um tempo no qual as atividades são calculadas
tendo em vista sua utilidade. Se nos perguntarmos sobre o que devemos entender por
“utilidade” neste contexto, teremos que apelar a um texto do início dos anos 30,
intitulado “A noção de dispêndio”. Nele, lemos:

A utilidade tem teoricamente como finalidade o prazer – mas somente sob uma
forma moderada, pois o prazer violento é tido como patológico – e se deixa
limitar, por um lado, à aquisição (praticamente à produção) e à conservação
dos bens e , por outro, à reprodução e à conservação das vidas humanas (...)
No conjunto, qualquer julgamento geral sobre a atividade social subentende o
princípio de que todo esforço particular deve ser redutível, para ser válido, às
necessidades fundamentais da produção e da conservação115.

114
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 64
115
BATAILLE, Georges; A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”, p. 20
Ou seja, fica claro como a utilidade aparece não apenas enquanto modo de
descrição da racionalidade própria a um sistema social determinado, mas
principalmente como o princípio fundamental de definição da natureza dos sujeitos
próprios a tal sistema. Os sujeitos racionais no interior do capitalismo são aqueles que
organizam suas ações tendo em vista sua auto-conservação, a conservação de seus
bens e a fruição de formas moderadas de prazer. Eles são aqueles que se julgam
racionais por sempre se perguntarem pela utilidade de suas ações, não apenas suas
ações no interior do mundo do trabalho, mas também suas ações relativas a outros
sujeitos. Pois, dessa forma, como dirá Marx a respeito do problema do fetichismo da
mercadoria, as relações entre pessoas acaba ganhando a forma de relações entre coisas:
“a humanidade, no tempo humano, antianimal do trabalho é em nós o que nos reduz a
coisas”116.
Segundo Bataille, esta homogeneidade social produzida pelo trabalho exige a
figura do Estado. Pois a função do Estado seria garantir a homogeneidade e usar sua
autoridade contra forças inassimiláveis. O processo produtivo produz, no entanto,
contradições ligadas ao desenvolvimento da vida econômica. Isso pode levar “uma
parte apreciável da massa dos indivíduos homogêneos a cessar de ter interesse na
conservação da forma de homogeneidade existente”117. Esta parte pode se associar a
formas heterogêneas já existentes.

O sagrado e o poder

Bataille afirma que o sagrado é o melhor exemplo social do heterogêneo, já que


ele pode ser definido, como o faz Durkheim, como o absolutamente heterogêneo em
relação ao mundo profano, como aquilo dotado de uma força desconhecida e perigosa
e, por isto, submetido a uma proibição social de contato que o separa do mundo
homogêneo ou profano. Mas o sagrado, por sua vez, é apenas uma parte do que
Bataille chama de “dispêndios improdutivos”: tudo aquilo que a sociedades
homogêneas rejeitam como detrito sem valor ou como valor superior transcendente. Há
uma dualidade fundamental do mundo heterogêneo, preso entre a glória e a decadência,
entre o puro e o impuro (como a própria palavra sacer indica). Tais objetos
heterogêneos podem, por isto, produzir tanto atração quanto repulsão e se apresentam
a nós através da força violenta do choque.
Assim, contra essa sociedade do trabalho, Bataille quer apelar a tudo o que ela
compreende como excessivo, tudo capaz de mobilizar um gozo que não se confunde
com o cálculo do prazer e desprazer e, principalmente, toda ação social que aparece
como improdutiva. Pois devemos inicialmente entender por “gozo” aquilo que está
para além do prazer, aquilo que dissocia desprazer e dor, prazer e alegria. Daí o sentido
de uma afirmação como:

116
Idem; O erotismo, p. 184
117
Idem, La structure psychologique du fascisme, p. 342
A atividade humana não é inteiramente redutível a processos de reprodução e
de conservação, e o consumo deve ser dividido em duas partes distintas. A
primeira, redutível, é representada pelo uso do mínimo necessário para os
indivíduos de uma dada sociedade, à conservação da vida e ao prosseguimento
da atividade produtiva: trata-se, portanto, simplesmente da condição
fundamental desta última. A segunda parte é representada pelos dispêndios
ditos improdutivos: o luxo, os enterros, as guerras, os cultos, as construções de
monumentos santuários, os jogos, os espetáculos, as artes, a atividade sexual
perversa (isto é, desviada da finalidade genital) representam atividades que,
pelo menos nas condições primitivas, têm em si mesmas seu fim118.

Há várias questões que poderíamos colocar a partir de afirmações desta


natureza. Elas apontam para o fato de toda sociedade ser atravessada pela necessidade
de experiências de excesso, de dispêndio e de destruição que, do ponto de vista das
exigências econômicas de produção e maximização, são simplesmente irracionais.
Este excesso tem duas formas principais, duas formas contrárias à utilidade e ao
cálculo: uma forma superior e outra inferior. Uma pura e outra impura. Uma que tem
um valor elevado e outra que tem um valor . Esta distinção é fundamental e implica
duas dinâmicas possíveis às forças heterogêneas. Elas podem aparecer como um poder
intocável e purificado, sem medida comum com o mundo homogêneo. Ou elas podem
aparecer como um aquém da forma, como uma potência do informe. Um exemplo
dessas determinações contrárias encontra-se na palavra sacer.
Bataille afirma então que os líderes fascista, de uma forma muito peculiar,
pertencem a tal existência heterogênea. Eles mobilizam o descontentamento com a
homogeneidade social e o peso fastidioso das normas a seu favor. No entanto, o fluxo
afetivo que eles mobilizam se dirige a uma unidade, a uma instância dirigente
representada pela autoridade do líder:

O fluxo afetivo que une o líder aos seus apoiadores – que toma a forma de uma
identificação moral destes com aquele que eles seguem (e reciprocamente) - é
função da consciência comum dos poderes e das energias cada vez mais
violentas, cada vez mais desmedidas que se acumulam na pessoa do chefe e se
tornam indefinidamente disponíveis nele119.

Cria-se assim uma soberania presa apenas a um lado da heterogeneidade, o que produz
uma soberania assentada na experiência da dominação. É assim que Bataille introduz o
tema da soberania. Normalmente, o conceito de soberania é utilizado no interior da
filosofia política para descrever aquele que se encontra em um lugar excepcional, pois
fonte de emanação do poder. O exemplo mais paradigmático aqui é o lugar do rei no
poder monárquico. O rei é soberano porque, sendo a fonte do poder, a lei é expressão

118
Idem; A parte maldita, p. 21
119
Idem, La strucuture psychologique du fascisme, p. 348
da sua vontade. Por isto, ele pode, ao mesmo tempo, ser o fundamento da lei e
suspendê-la quando entender dever ser o caso. O soberano é aquele que pode estar
dentro ou fora da lei, aplicá-la ou suspendê-la, porque é dele que emana o poder.
Estando fora, ele é uma potência heterogênea que dirige a violência contra todo
exterior ou contra as formas de heterogeneidade vinculadas às formas miseráveis.
Bataille aproxima a soberania monárquica, da soberania religiosa e militar. Poder
religioso e poder militar são as formas mais claras da soberania, no que Bataille se
apropria das figuras freudianas da constituição das massas organizadas. O fascismo
tenderia sempre a reunir todas essas figuras, reativando uma instância soberana latente.
Para Bataille, as forças armadas são baseadas na transformação de uma massa
miserável (sempre são os pobres que entram na linha de frente das guerras) em figura
de glória através da identificação com o chefe militar:

Os seres humanos incorporados em um exército são apenas elementos negados,


negados com um espécie de raiva (de sadismo) manifesto no tom de cada
mandamento, negados nos desfiles, pela uniforme pela regularidade geométrica
realizada dos movimentos cadenciados. O chefe enquanto imperativo é a
encarnação dessa negação violenta. Sua natureza íntima, a natureza de sua
glória, constitui-se em um ato imperativo anulando o populacho infame (que
constitui o exército) enquanto tal (da mesma forma que ele anula a carnificina
enquanto tal)120.

Assim esta dominação soberana , para se afirmar, volta-se contra tudo o que a
sociedade homogênea definiu como heterogêneo mas impuro, exterior. Ela se volta
contra o outro lado da heterogeneidade que poderia quebrar a experiência da
dominação, revelando a força do descentramento. Assim, o fascismo se transforma no
uso do heterogêneo como astúcia última da sociedade homogênea. Contra ela, Bataille
crê que devemos procurar uma forma de heterogeneidade que não se submete a esta
soberania monárquica recuperada pelo fascismo. É isto que ele procura ao falar das
experiências do sagrado e do erotismo.

O sacrifício

“O sacrifício – que é, como a guerra, a suspensão do interdito do assassinato – é o ato


religioso por excelência”121. Mas por que o sacrifício seria o ato religioso por
excelência? Certamente, Bataille não está a falar do sacrifício como limitação da
minha vontade em nome de um ideal moral. Algo presente quando falo, por exemplo:
“eu me sacrifiquei para defender nossa causa”. Sacrifício significa uma destruição
improdutiva, melhor meio de negar uma relação utilitária entre o homem, as coisas e

120
BATAILLE, La structure psychologique du fascisme, p. 358
121
BATAILLE, Georges; O erotismo, p. 105
os animais. Um animal sacrificado é uma animal com o qual não tenho mais uma
relação de uso e de submissão à lógica da produção. Ele é objeto de uma
“consumação sem lucro”. Mas, principalmente, um animal sacrificado é um animal do
qual eu participo, ele me representa e tomo parte no ritual do sacrifício através dele e,
principalmente, nele. No sacrifício do animal, eu posso ser um com ele. Por isto,
Bataille pode dizer: “o sacrifício é o calor em que se reencontra a intimidade daqueles
que compõem o sistema das obras comuns”122. Esta intimidade revelada pelo sacrifício
implica certa forma de simbiose e de fusão que Bataille aproxima da relação amorosa.
Daí uma afirmação central como:

O que o ato de amor e o sacrifício revelam é a carne. O sacrifício substitui a


vida ordenada do animal pela convulsão cega dos órgãos. O mesmo se dá com
a convulsão erótica: ela libera órgãos pletóricos cujos jogos cegos prosseguem
além da vontade refletida dos amantes. A essa vontade refletida sucedem os
movimentos animais desses órgãos inchados de sangue. Uma violência, que a
razão não controla mais, anima esses órgãos, tensiona-os até a explosão e, de
repente, é a alegria dos corações de ceder ao excesso dessa tempestade123.

O sacrifício revela a carne que nos constitui aquém da individualidade. Ele é a


revelação de um corpo em nós que é feito de carne, ou seja, de algo próprio a uma
corporeidade que reage para além da vontade refletida dos amantes. A carne, como
dirá quase na mesma época Maurice Merleau-Ponty, é o “anonimato inato de mim
mesmo”, este ponto no qual sou habitado por uma matéria anônima que me aproxima
do que exige uma explosão violenta para aparecer.
O recurso à ideia de carne pode ser visto como a expressão daquilo que Bataille
chama por um momento de “baixo materialismo”. Trata-se de uma ideia por ele
apresentada nos anos trinta e que consiste em dizer que todo ideal elevado assenta-se
em uma base material constantemente negada. Neste ponto, não parece que estejamos
longe do Marx de A ideologia alemã com sua crítica à impossibilidade de ver como o
sistema metafísico de ideias era a expressão invertida dos processos de reprodução
material da vida. No entanto, Bataille insiste que tal base material tem uma base
distinta daquela que encontramos no materialismo histórico marxista. Ela é a
composição material heterogênea e disforme da qual toda forma é extraída. Ela é este
solo primeiro anterior a toda forma e sempre negado como impuro, obsceno,
nauseabundo e repulsivo. Por isto, o termo “baixo materialismo”. É em direção a tal
solo que o sacrífico procura nos levar, em direção a uma matéria que é produção
contínua de diferença e que pode aparecer sob a forma do grotesco e do informe.
Notem aqui, principalmente, que a aproximação entre sacrifício e amor não é
feita em nome da visão moral de que a relação afetiva duradoura exige a restrição dos
interesses próprios em nome da construção de um empreendimento comum. Bataille

122
BATAILLE; A parte maldita, p. 73
123
Idem, O erotismo, p. 116
aproxima sacrifício e amor para dizer que o erotismo partilha deste sentimento de
participação através do desvelamento de um elemento comum, a carne, que é o
elemento informe que me forma, o elemento impessoal que me personaliza e que, por
isto, se encontra partilhado em um sistema de partilha que une desiguais, homem e
animal, morto e vivo.
Desta forma, através do erotismo, opera-se um reconhecimento que não é
movimento através do qual eu confirmo meus interesses e desejos ao ver que ele é
levado em conta pelo outro. O reconhecimento produzido pelo erotismo é
reconhecimento de que em mim habita o que me leva a abrir-se como um animal
sacrificado, a procurar me ver no que perde sua forma e se submete a um agir que não
pode ser visto como expressão de um Eu. Ou seja, se o amor sempre foi, na filosofia, a
figura de um modelo importante de reconhecimento social no qual seria capaz de,
através do outro, assegurar-me de minha identidade ao mesmo tempo em que
reconheço a identidade do outro, construindo assim um sistema de mútuo
estabelecimento de identidades, o erotismo, ao menos segundo Bataille, produz um
fenômeno de outra ordem. Pois: “o que, desde o início, é sensível no erotismo é o
abalo, por uma desordem pletórica, de uma ordem que exprime uma realidade
parcimoniosa, uma realidade fechada”124. Entre o amor dos filósofos e o erotismo de
Bataille há uma diferença que se expressa na distinção entre um processo de
reconhecimento entre sujeitos e outro processo de reconhecimento de si na alteridade
radical do que não aparece mais como sujeito.
Neste sentido, podemos dizer que, através do erotismo, eu perco a segurança da
minha identidade e não sou mais capaz de assegurar a identidade do outro. Em seu
lugar aparece esta intimidade que descreve a força de um elemento comum que nos une
e nos dissolve. Algo que deve ser compreendido não como identidade, mas como
espaço de confrontação com a heterogeneidade que não se submete a uma unidade. Por
isto, o erotismo produz uma fusão que Bataille deve descrever como: violenta,
excessiva, disforme e desordenadora. Como se a existência de tal modelo de fusão
fosse a condição para uma experiência social de emancipação em relação às amarras
da figura do indivíduo, assim como de toda e qualquer fascinação pela identidade, tal
como vimos, por exemplo, no modelo da fusão próprio às massas fascistas, com sua
fusão organizada a partir da identificação a um soberano capaz de produzir
homogeneidade.
Neste ponto, podemos retornar ao problema do fascismo, segundo Bataille, isto
a fim de compreendermos melhor a aposta política feita por ele com seu conceito de
erotismo. Bataille insiste que nossa sociedades sofrem por não saberem como dar conta
de uma experiência da heterogeneidade que se manifesta sob a forma de desejo de
fusão e de perda de limites da individualidade. Vimos como o fascismo seria maneira
de absorver tal desejo através de uma política das massas, mas onde o desejo de fusão
produz uma homogeneidade organizada sob a identificação, profundamente disciplinar,
a um líder transcendente, cujo discurso é marcado pela unidade, pela depuração e

124
Idem, p. 129
purificação do corpo social. Maneira da identidade ter a última palavra, mesmo se
através do uso do desejo de heterogeneidade. Pois: “a tentar controlar e purificar a
heterogeneidade, o fascismo acaba por destruir a heterogeneidade que está a usar”125.
Contra o fascismo, dirá Bataille, de nada adianta tentar alimentar as
experiências descontínuas ligadas à figura do indivíduo. Contra o fascismo, só mesmo
outra forma de heterogeneidade, esta mais radical ligada ao que vem de baixo, ao que
expressa este ponto no qual forma alguma se estabiliza, mas no qual toda forma ainda é
possível. Esta heterogeneidade é aquilo que não se disciplina, aquilo que quebra toda
hierarquia pois expressa a consciência da dependência entre o alto e baixo. Ela teria,
segundo Bataille, um poder subversivo, por exigir que: “o que é alto se transforme em
baixo, o que é baixo se transforme em alto”126. Por isto, o fascismo procura destrui-la e
retira-la do contato dos homens. Para Bataille, de uma forma bastante peculiar, a
melhor arma contra o fascismo é o erotismo. Pois a luta não é entre regimes políticos,
mas entre formas de vida, e não haverá superação do fascismo se não lhe
compreendermos como uma forma de vida que só pode ser barrada através de outra
forma de circulação do desejo. No fundo, a questão política realmente relevante será
sempre: como o desejo circula. Daí uma afirmação importante como:

Não apenas as situações psicológicas das coletividades democráticas são, como


toda situação humana, transitórias, mas continua possível encontrar, como uma
representação ainda imprecisa, forças de atração diferentes das já utilizadas,
tão distintas do comunismo atual ou passado quanto o fascismo é das
reivindicações dinásticas. É tendo em vista tais possibilidade que se deve
desenvolver um sistema de conhecimentos permitindo prever as reações
afetivas sociais que percorrem a super-estruturas – talvez mesmo, em até certo
ponto, delas se dispor127.

É possível se perguntar como poderíamos pensar uma experiência política


revolucionária (pois é isto que Bataille procura) apelando a aberturas desta natureza.
Talvez a melhor resposta passe pela influência que Bataille sofreu de Alexandre
Kojève. Uma das principais características do ensino de Kojève foi insistir na
importância de compreendermos as dinâmicas dos conflitos sociais como problemas
ligados a demandas de reconhecimento. Conflitos sociais são, principalmente, conflitos
por reconhecimento de nossa posição de sujeitos. Bataille acrescenta a esta ideia a
noção de que todas conflitos por reconhecimento só pode ser efetivamente
compreendidos se levarmos em conta como sujeitos aspiram à soberania, ao dispêndio
improdutivo, ao erotismo, ao sacrifício. No interior deste processo, cria-se um
problema importante e complexo, a saber, o que pode ser uma sociedade de sujeitos
soberanos?

125
NOYS, Benjamin; Georges Bataille’s base materialism, p. 506
126
BATAILLE, La structure psychologique du fascisme, p. 157
127
Idem, p. 163
Psicologias do fascismo
Aula 7

Na aula de hoje, gostaria de expor os traços fundamentais da reflexão de


Wilhelm Reich a respeito do fascismo. Reflexão esta cuja influência não será apenas
restrita aos anos trinta, mas que será uma referência fundamental para as lutas de
emancipação social que ocorrerão a partir do final dos anos sessenta. Reich será peça
importante na compreensão das relações entre dominação política e repressão libidinal,
entre sexualidade e poder. Psicanalista de relações turbulentas com a ortodoxia
freudiana devido a sua concepção de tratamento, libido e sexualidade, ele será afastado
da Associação Psicanalítica Internacional no início dos anos trinta. Ao invés de uma
técnica centrada no manejo da palavra, Reich defendia um terapia de intervenção
corporal visando liberar a força libidinal reprimida.
Suas reflexões, no entanto, não derivam apenas de problemas eminentemente
clínicos. Elas nasceram de uma articulação extensa sobre regimes de sujeição social.
Reich é um dos principais nomes (juntamente com Alfred Adler, Siegfried Bernfeld,
Otto Fenichel, Paul Federn, Erich Fromm) do que se convencionou chamar por um
tempo de “freudo-marxismo”, ou seja, a tentativa de aproximar reflexão marxista sobre
processos de alienação social e psicanálise. Reich irá procurar na psicanálise a chave
para compreender os mecanismos de paralisia da emancipação no capitalismo. A
impossibilidade de constituição de uma consciência de classe ou de uma atitude
revolucionária será derivada de processos de sujeição psíquica responsáveis pela
própria formação da personalidade e do sujeito psicológico. Trata-se de entender como
os desejos inconscientes paralisam a emergência de uma consciência de classe. Todos
esses autores fazem parte de um tempo histórico no qual a possibilidade de uma
revolução política se colocava de forma concreta no horizonte, principalmente depois
da vitória da Revolução Russa.
No entanto, eles se deparam com o crescimento contínuo de alternativas
fascistas e de extrema-direita no próprio seio da classe proletária. Uma resposta a isto
passa pela defesa de que o fracasso da política marxista se deveria a uma concepção
insuficiente da psicologia humana, suas contradições e conflitos. Há de se entender por
que as massas desejaram o fascismo. Daí porque talvez a melhor maneira de começar a
refletir sobre as posições de Reich seja lembrando de afirmações como:

Para a psicologia social, o problema se apresenta de maneira inversa: ela não se


demora sobre as razões que levam o homem faminto ou explorado ao roubo ou
à greve, mas ela procura explicar por que a maioria dos famintos não rouba,
por que a maioria dos explorados não faz greve128.

128
REICH, idem, p. 62
Esta é uma das colocações fundamentais de A psicologia de massas do fascismo, de
Wilhelm Reich, escrito em 1933. O livro, uma das principais obras de Reich
juntamente com A função do orgasmo e A análise do caráter apareceu como uma
reflexão psicológica sobre os mecanismos de servidão e, em segundo nível, como um
estudo sobre a psicologia social do fascismo. A questão inicial gira em torno da
tentativa de compreender a constituição psicológica dos indivíduos como uma forma
de sujeição social, ou seja, como a psicologia do indivíduo moderno é fruto da
internalização da sujeição social. Desta forma, ele espera explicitar em novas bases a
profunda relação entre desejo e o campo social.

Fascismo e sexualidade

A partir desta questão inicial, o fascismo será tratado como a figura extrema da
sujeição. Ou seja, o que temos aqui é uma teoria geral da sujeição psíquica e uma
teoria específica da estrutura psicológica do fascismo. O fascismo aparece assim como
uma tendência sempre inscrita na estrutura psicológica dos sujeitos modernos.
A escolha em construir a análise da sujeição social através da produção da
psicologia do indivíduo é clara. Primeiro, trata-se de afirmar que tal psicologia tem
como seu operador fundamental os mecanismos de repressão. Ou seja, as faculdades
mentais e as instâncias psíquicas são fundadas na operacionalização da repressão à
experiência sexual:

O mecanismo através do qual as massas humanas perdem o sentido da


liberdade, como a economia sexual social provou de maneira abundante graças
a experiências clínicas é a repressão social da sexualidade genital das crianças,
dos adolescentes e dos adultos129.

O materialismo de Reich tem uma espécie de base energética fundada em uma noção
que eleva a sexualidade à condição de fundamento material do humano. Reich
desenvolverá uma compreensão naturalista da energia sexual, uma bioenergética da
libido (compreendida como urgência psíquica em direção à gratificação sexual) que é
fruto de uma perspectiva materialista bastante explícita, definindo a prática clínica
como um processo de liberação, pela via do contato físico (vegetoterapia), da referida
energia sexual de sua couraça caracterial e muscular repressora. As disposições
corporais, os traços de caráter funcionam como uma armadura cuja análise deve saber
como desconstituir. Uma desconstituição que tem não apenas função clínica, mas
fundamentalmente política.
Tal repressão vinculada de forma estrutural aos processos de socialização não é,
no entanto, a condição para a civilização. Ou seja, é possível para Reich pensar formas
de sociedade não-repressiva. Trata-se, e isto não se encontrará em Freud, de

129
Idem, p. 299
estabelecer as coordenadas históricas da repressão, e não suas coordenadas
antropológicas. Não é o processo civilizatório que produziria uma sociedade repressiva,
baseada na culpabilidade e na agressividade. Há coordenadas históricas bastante
precisas que podem e devem ser superadas. O trabalho analítico deve ser um setor de
tal superação. Daí a necessidade de sublinhar como a repressão é o resultado direto da
reprodução material de certa forma bastante específica de forma de vida:

Ao voltarmos para a história da repressão sexual descobrimos que ela não


nasceu com a cultura, que ela não é condição para a formação da cultura, mas
que ela iniciou relativamente tarde, após a instauração do patriarcado
autoritário e do nascimento das classes130.

Isto é uma maneira de afirmar que a vida social permite modos de socialização que não
passam pela repressão das pulsões sexuais. No entanto, um modelo de dominação
política baseado no patriarcado autoritário e um modelo de espoliação econômica
baseado na perpetuação da sociedade de classes é profundamente solidário da
generalização de formas de repressão. Reich eleva a família autoritária, cujo teatro
inconsciente nos é fornecido pelo Complexo de Édipo, ao núcleo central de reprodução
social das dinâmicas de regressão. Ela será a “célula reacionária central”131, um
Estado autoritário em miniatura que visa não apenas a naturalização de um tipo
patriarcal de dominação, mas também a oposição da mulher como genitora e a mulher
como ser sexual, de onde se segue, por exemplo, a defesa fascista das famílias
numerosas: estratégia clássica para submeter a mulher a condição de genitora. O que
significa que apenas o desmantelamento da família burguesa pode permitir o advento
de uma sociedade emancipada. Apenas a anulação de uma prática clínica baseada na
redução dos conflitos psíquicos aos processos de identificação no interior do núcleo
familiar poderia contribuir para a emancipação.
Ou seja, Reich procura fornecer uma análise da gênese do fascismo que se
fundamente na natureza dos processos de repressão social em operação nas dinâmicas
de socialização, em especial na família. O que significa aceitar que: “todo espírito
autenticamente revolucionário, toda arte e toda verdadeira ciência tem suas raízes no
núcleo biológico natural do homem”132. A emancipação social é indissociável de uma
certa ressureição da natureza negada, da afirmação de uma força biológica que permite
aos sujeitos amar, conhecer e trabalhar. Não será por outra razão que Reich passará
para a história como aquele que inventará a noção de “revolução sexual”. Não haverá
revolução efetiva sem a quebra das dinâmicas repressivas que fundamentam os
processos de socialização.
Esta será a razão que levará Reich a criticar as revoluções comunistas que
ocorrem no início do século XX. A seu ver, o potencial revolucionário desaparece na

130
Idem, p. 73
131
Idem, p. 164
132
REICH, Wilhelm; La psychologie de masse du fascisme, op. cit., p. 15
medida que as tentativas iniciais de transformação das estruturas das relações entre os
sexos, dos modos de reprodução da família são abandonadas em prol do fortalecimento
dos modelos autoritários tradicionais. Lembremos como, de fato, os primeiros anos da
Revolução Russa foram marcados pela descriminalização da homossexualidade (1917),
pelo reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo, legalização do
aborto (1919), além das defesas da união livre, da emancipação da mulher através do
trabalho assalariado (criação massiva de creches e escolas em período integral), da
socialização dos trabalhos domésticos (muitos dos trabalhos domésticos seriam
transferidos para a esfera pública através de lavanderias coletivas, refeitórios públicos
etc.) e da crítica da família (criação do casamento civil, supressão do poder marital,
exercício conjunto da autoridade dos pais sobre os filhos, e facilitação extrema dos
processos de divórcio). Tais mudanças se consolidam através do Código das Leis sobre
Casamento, Família e Tutela de 1918, mas que serão revistas no período stalinista.

Uma personalidade fascista

Ao descrever as estruturas da vida psíquica, Reich fala de três camadas distintas


do que ele chama de estrutura biopsicológica. Uma camada mais superficial diria
respeito às dinâmicas sociais de cooperação e civilidade. Uma segunda se refere a
impulsos agressivos, concorrenciais e belicistas. Por fim, a última está vinculada ao
núcleo biológico natural do humano. Nela, encontra-se uma forma de cooperação mais
natural e sexualmente desenvolvida. Depois da decomposição da organização
democrática primitiva fundada no trabalho, o núcleo biológico do humano não teria
mais conhecido representação social. Por isto, sua recuperação seria necessariamente
revolucionária.
O fascismo seria a expressão politicamente organizada da estrutura caracterial
do homem médio, esse cuja caracteriologia estaria ligada à segunda camada. Tal
estrutura seria universal e internacional, não sendo próprio de raças, nações ou partidos
determinados. Ou seja, a análise do fascismo é uma análise caracterial.
A noção de caráter permite a Reich “integrar no edifício da sociologia não
apenas os dados econômicos, mas também os dados sexuais”. Sobre a noção de caráter,
Reich lembrará que os mecanismos de defesa do Eu, assim como seus traços de caráter
que compõem o cerne da personalidade psicológica, são constituídos da mesma forma
que os sintomas. Daí porque:

A forma das reações do ego, que difere de um caráter para outro mesmo
quando os conteúdos das experiências são semelhantes, pode ser remontada às
experiências infantis, da mesma maneira que o conteúdo dos sintomas e das
fantasias133.

133
REICH; Wilheim; Análise do caráter, São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 53
Na análise, estamos lindando com resistências que são manifestações de traços de
caráter. Este caráter ou “modo de existir de uma pessoa”134, seu sistema de reações, de
regularidades, representa uma expressão de todo seu passado. Ao analisar o fascismo a
partir da estrutura caracterial, Reich apenas mobiliza mais claramente a relação entre
arqueologia social das repressões e produção de personalidade psíquica. Ou seja, Reich
é praticamente o primeiro a insistir que há uma personalidade fascista, que o fascismo
é uma forma de personalidade. Isto permite a Reich afirmar que o líder fascista só pode
ocupar tal lugar porque sua personalidade coincide com a estrutura daquela própria a
largas parcelas da população. O que lhe leva a analisar de forma extensiva os traços de
personalidade de Hitler.
Lembremos ainda que esta estrutura caracterial precisa ser objeto de uma
adesão forte para constituir uma personalidade fascista. Isto explica porque a base de
seus recrutados estaria nos estratos médios, na “pequena burguesia medíocre e
reacionária”. Pois a pequena burguesia simplesmente teria copiado a atitude dos
“grandes”, fornecendo sua versão caricatural e exagerada: “não se representa
impunemente ao pequeno burguês a comédia da ‘grande política’”135. Ela naturaliza
aquilo que, nos estratos mais elevados, seria algo como uma aparência assumida
enquanto tal. Ela é o setor que realmente acredita nas injunções do discurso do poder e
suas estratégias retóricas de auto-justificação.
A personalidade estará assim assentada em uma arqueologia social das
repressões porque o destino da sexualidade moldaria toda a extensão dos traços de
caráter do indivíduo. É isto o que permite a Reich fazer afirmações como:

A inibição moral da sexualidade natural da criança cuja última etapa é o


afunilamento característico da sexualidade genital faz da criança alguém
ansioso, selvagem, submisso, obediente, “amável” e “dócil” no sentido
autoritário da palavra; impondo a todo movimento de vida e liberdade uma
forte carga de angústia, ela paralisa as forças de revolta no homem e deteriora,
ao impedi-lo de pensar nas coisas sexuais, sua potência intelectual e seu senso
crítico136.

Ou ainda, de forma mais explícita:

O homem genitalmente satisfeito é honesto, consciente do seu dever, corajoso,


disciplinado sem fazer muito caso disto. Todas essas qualidades estão
organicamente ligadas à sua personalidade. O indivíduo sofrendo de fraqueza
genital cuja estrutura sexual é plena de contradições, está constantemente em
guarda para dominar sua sexualidade, para salvar sua honra sexual, para lutar
corajosamente contra as tentações, etc. Cada adolescente e cada criança

134
Idem, La psychologia de masse …p. 56
135
Idem, p. 19
136
Idem, p. 74
conhece a luta contra a tentação da masturbação. Ë no curso desse combate que
se desenvolve todos os elementos estruturais, sem nenhuma exceção, do
homem reacionário137.

A colocação é clara. Haveria uma espécie de moral naturalizada que derivaria


da ausência de distorções de comportamento provocada pela repressão à função do
orgasmo. Tal moral naturalizada seria o fundamento para uma estrutura de caráter que
não está às voltas com a necessidade dos sujeitos se mortificarem até se tornarem
completamente submissos à ordem ou dar conta de contradições que aparecerão
insuperáveis, que obrigarão os sujeitos a encontrar formas de satisfação substitutiva,
de desvio agressivo àquilo com o qual eles não são mais capazes de lidar.
Reich chegará a dizer que o medo da liberdade sexual, sinônimo na mente
reacionária de caos e depravação sexual é o que realmente freia a superação da
liberação em relação à exploração econômica. A exploração econômica é assentada
na naturalização de dinâmicas sociais de opressão, de mando, de submissão. Tais
dinâmicas são inefetivas em alguém cuja liberdade sexual é conquistada. Não por
outra razão, os fascistas cunharão o termo de “bolchevismo sexual” para dar conta do
que seria o processo de depravação e enfraquecimento da nação produzida pela
“libertinagem” bolchevique.

Imunizar o corpo social

A partir desta estrutura repressiva de base, Reich procura derivar algumas das
características principais do fascismo, a saber, o racismo e sua variante anti-semita, o
lugar das temáticas religiosas (o que Reich chama de misticismo) e a fantasia da
purificação do corpo social que fundamenta uma concepção unitária e identitária de
nação, de estado e de pátria. Analisemos cada um desses pontos.
A respeito dos vínculos entre fascismo e religião, Reich afirma que eles se
fundam na reversão do caráter masoquista da antiga religião patriarcal em sadismo.
Daí porque um regime que se coloca como a redenção sagrada contra a decadência
ateísta pode admitir de forma tão orgânica todos os padrões de violência.
Por outro lado, essa experiência religiosa nada tem a ver, por exemplo, com a
defesa de Georges Bataille a respeito da força de descentramento do sagrado. Antes,
ela é redução da temática religiosa à defesa contra a destituição das estruturas
psicológicas de reprodução da vida social sob a forma da “individualidade”. Reich cita,
por exemplo, um trecho de texto de propaganda fascista:

Como o bolchevismo quer aniquilar toda individualidade, ele destrói a família,


que imprime ao homem sempre uma marca individual. É por isto que ele
detesta todas as aspirações nacionais. Ele quer uniformizar os povos tornando-
os dóceis ... Mas todas as tentativas de aniquilar a vida pessoal serão reduzidas

137
Idem, p. 104
a nada enquanto restar no coração do homem uma centelha de religião, pois é
na religião que sempre se manifesta a liberdade pessoal em relação ao mundo
ambiente138.

Sobre o racismo fascista, Reich lembrará como ele estará sempre associado ao
imaginário da purificação do corpo social, da sua unidade e da sua imunização
necessária:

A ideologia mundial da ‘alma’ e da ‘pureza’ é a ideologia mundial da


asexualidade, da ‘pureza sexual’ ou, para chamar as coisas por seus nomes,
uma forma de recalque sexual e de angústia sexual, emanação de uma
sociedade patriarcal autoritária139.

Assim, Reich insiste que o racismo não é apenas uma justificação biológica
para aspirações imperialistas. Sua posição estrutural e decisiva está ligada, por um lado,
à clara desumanização dos que serão objetos da reificação máxima, pois serão
reduzidos à condição de objeto. Mas o racismo fascista, como é voltado contra setores
não submetidos à reificação da escravidão, como os judeus, é para Reich fruto de
estrutura psicológica precisa. Nele, pulsa as formas mais elementares de recalque
sexual através da temática da purificação das raças e da hierarquia pressuposta que
procura aproximar motivos teológicos e geográficos:

A ideologia fascista separa o desejo de orgasmo do homem das estruturas


humanas formadas pelo patriarcado autoritário e atribui tal separação às
diferentes raças: nórdico se torna assim sinônimo de luminoso, celeste,
assexual, puro; o Oriente médio, inversamente, é instintual, demoníaco, sexual,
orgiástico140.

Ou seja, o racismo é indissociável das dinâmicas próprias à repressão.


Sabemos como tal divisão emtre o nórdico luminosos e o semita instintual marca
também os negros e os africanos. O fascismo relega o sexual e o sensual às raças
estrangeiras, aos costumes que pervertem nosso povo. Reich mostra, por exemplo, a
abundante propaganda produzida pelos nazistas alemães a respeito da pretensa
promiscuidade da então União Soviética, onde não haveria mais casamento, onde
mulheres seriam disponíveis a todos em uma espécie de prostituição generalizada, de
socialização das mulheres, onde “não haveria mais união entre homem e mulher, onde
se viveria hoje com uma pessoa, amanhã com outra, de acordo com seus caprichos”141.
Mas notemos como colocar o problema do racismo e do antisemitismo inerente
ao fascismo desta forma é maneira de afirmar que sua superação não passa pela

138
Idem, p. 192
139
Idem, p. 139
140
Idem, p. 143
141
Idem, p. 170
denúncia das dinâmicas econômicas e de exploração imanentes a tal violência social.
Na verdade, os problemas do racismos e do antisemitismo exigem o esclarecimento de
seu fundamento sexual e a atuação neste nível. O racismo para Reich se combate
através de uma revolução sexual.
Reich tem o mérito de expor como não há autoritarismo sem regulação
necessária da vida sexual, pois se trata de lembrar que isto não é uma manobra
diversionista, não é um elemento auxiliar, mas o fundamento necessário de toda
servidão e sujeição social. Reich era tão consciente deste ponto que, no início dos anos
trinta, organizará ações chamadas de Sex-Pol que visavam fornecer às classes
proletárias esclarecimentos e auxílios para uma sexualidade livre.
Psicologias do fascismo
Aula 8

Ao prefaciar a versão norte-americana de O anti-Édipo, Foucault dirá que se tratava de


uma introdução à vida não-fascista:

não apenas o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini - que soube tão bem
mobilizar o desejo das massas – mas também o fascismo que está em todos nós,
que assombra nossos espíritos e nossos comportamentos cotidianos, o fascismo
que nos faz amar o poder, desejar esta coisa mesma que nos domina e nos
explora142.

A colocação de Foucault revelava inicialmente um uso da noção de fascismo


que não se reduzia à descrição de movimentos totalitários no Europa dos anos 30.
Tratava-se de falar de algo que estaria em todos nós, como uma potencialidade
imanente às formas de vida que partilhamos. Isto a ponto de Foucault continuar
perguntando:

Como fazer para não se tornar fascista, mesmo quando (e sobretudo quando) se
crê ser um militante revolucionário? Como livrar nosso discurso e nossos atos,
nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como encontrar o fascismo
que se incrustou em nosso comportamento? Os moralistas cristãos procuravam
os traços da carne que se alojavam nas dobras da alma. Deleuze e Guattari
procuram os traços mais ínfimos do fascismo no corpo143.

Esta maneira de compreender o fascismo se enraizava na maneira que vimos


Wilhelm Reich definir o fascismo a partir de uma análise caracterial e uma análise de
estruturas de personalidade. Mas não se tratava apenas de uma recuperação de certa
psicologia das massas própria a fenômenos históricos dos anos 30. Deleuze e Guattari
começam a escrever juntos tendo um problema central em vista. Ele está enunciado na
seguinte constatação de Guattari:

Esta colaboração não é o resultado de um simples encontro entre dois


indivíduos. Para além do concurso das circunstâncias, há também todo um
contexto político que nos conduziu a ela. Na origem, tratou-se menos da
apresentação em comum de um saber que de um certo desnorteamento diante
da guinada que tomaram os acontecimentos após maio de 68. Fazemos parte de
uma geração cuja consciência política nasceu do entusiasmo e da ingenuidade
da Liberação, com sua mitologia conjuratória do fascismo. E as questões

142
FOUCAULT, Michel; Dits et écrits II, p. 154
143
Idem, p. 155
deixadas em suspenso por esta outra revolução abortada que foi maio de 68 se
desenvolveram para nós segundo um contraponto tão preocupante que nós nos
inquietamos, como várias outras pessoas, das alvoradas que nos preparam e que
poderiam cantar hinos de um fascismo nova roupagem que nos levaria a ter
saudades do fascismo dos velhos tempos. Nosso ponto de partida consistiu em
considerar que, em um momento crucial, algo da ordem do desejo manifestou-
se à escala de toda a sociedade para em seguida ser reprimido, liquidado, tanto
por forças do poder quanto por partidos e sindicatos ditos operários e, até certo
ponto, pelas próprias organizações esquerdistas144.

É assim que Félix Guattari apresentou O anti-Édipo em um debate organizado


pela Quinzaine littéraire, em 1972. Dificilmente poderíamos ser mais claros a respeito
do que produziu não apenas este livro decisivo para a filosofia contemporânea, mas
todo o projeto intitulado “Capitalismo e esquizofrenia” com seus dois volumes.
Segundo Guattari, trata-se de pensar porque, diante das possibilidades de
transformação postas pelas revoltas de maio de 68, algo pareceu se quebrar. Da revolta,
aparece um desnorteamento provocado pelos acontecimentos que se seguiram a maio
de 68, um conjunto de promessas que parecem não se realizar. Como se maio de 68
fosse uma latência na vida social que deveria ser fechada o mais rápido possível, tanto
pelas forças do poder quanto por partidos e sindicatos ditos operários e pelas próprias
organizações esquerdistas.
De certa forma, a primeira questão que mobiliza o projeto de Deleuze e
Guattari é um questão de prática política: como se aborta uma revolução? Seria o caso
de fazer análises sociológicas sobre os conflitos no interior dos grupos que
mobilizaram maio de 68, suas fragmentações e equívocos estratégicos? Ou seja, há de
se compreender tal aborto como o resultado de escolhas políticas equivocadas, cálculos
de circunstância errados? Ou seria o caso de ir em direção a outro nível de análise, um
nível mais elementar que procura compreender a dificuldade na constituição de sujeitos
políticos capazes de sustentar processos de transformação? Nível este que deve
começar com uma crítica dos modelos hegemônicos de subjetividade com seus
aparelhos sociais de reprodução internalizados como um sistema de repressões e
limitações que parece nos paralisar diante de acontecimentos com forte potencial
emancipador?
Questões desta natureza parecem naturalmente procurar articular os campos da
psicologia e da política. A sua maneira, elas parecem inicialmente ser uma
revivescência de estratégias críticas que já teriam sido colocadas em circulação no
século XX, em especial à ocasião de pesquisas feitas nos anos trinta a respeito da
psicologia do fascismo. Todos estes trabalhos procuravam compreender, a partir da
análise da economia libidinal dos sujeitos, a forma com que a paralisia diante das
possibilidades de uma revolução operária estava enraizada nos regimes de constituição
da vida psíquica. Todos eles, à sua maneira, viam o fascismo não apenas como um

144
GUATTARI, Félix in DELEUZE, Gilles; L’île déserte, Paris: Minuit, pp. 301-302
regime político, mas como a consequência necessária de um modo de constituição da
vida psíquica. O fascismo seria, inicialmente, um modo de funcionamento da vida
psíquica. Por isto, tais trabalhos procuravam compreender como a própria constituição
da vida psíquica, com suas dinâmicas de identificação, com suas modalidades de
organização de conflitos, com seus sistemas de repressão pulsional era, na verdade, o
fundamento de formas de sujeição social. Daí a ideia de que não haveria
transformação política possível que não começasse por partir da crítica à sujeição que
dá forma à vida psíquica.
Mas havia algo mais no projeto de Deleuze e Guattari e que faz de “Capitalismo
e esquizofrenia” uma experiência intelectual única. Lembremos desta afirmação de
Guattari: “em um momento crucial, algo da ordem do desejo se manifestou”. Ele deixa
claro um dos pressupostos maiores do projeto Capitalismo e esquizofrenia, a saber, a
ideia de que uma teoria do desejo é, necessariamente, uma teoria dos modos sociais de
produção e que, por consequência, uma teoria da transformação dos modos sociais de
produção só pode ser uma teoria da transformação do desejo. Um marxista clássico
torceria o nariz a tal colocação, lembrando que a teoria dos modos de produção deve
ser compreendida como expressão dos regimes sociais de trabalho. De fato, de certa
forma, Deleuze e Guattari operam uma substituição da centralidade da categoria de
trabalho ao proporem a centralidade da categoria de desejo. Como dirá Guattari em
conceitualização marxista, o desejo não deve ser considerado como uma superestrutura
subjetiva, mas como elemento fundador da infraestrutura. Isto a ponto de Deleuze e
Guattari afirmarem, por exemplo:

Na verdade, a produção social é unicamente a própria produção desejante em


condições determinadas (...) Só há desejo e social, nada mais. Mesmo as
formas as mais repressivas e mais mortíferas de reprodução social são
produzidas pelo desejo, a partir da organização que deriva de tal ou tal
condição que devemos analisar (...) Não, as massas não foram enganadas, em
certo momento elas desejaram o fascismo e é isto que se trata de explicar, esta
perversão do desejo gregário145.

De fato, não é possível explicar a racionalidade de um sistema econômico e


político se não formos capazes de explicar como se constrói a adesão psicológica a
suas injunções e premissas. Esta ideia está presente desde o momento em que Max
Weber lembrava ser impossível compreender o capitalismo sem partir do ethos que ele
exige com seus regimes específicos de vontade e de auto-controle, sem partir da ética
protestante na qual ele se sustenta e que ele perpetua, ao menos durante sua primeira
fase. Podemos dizer que é uma intuição semelhante que levam Deleuze e Guattari a
defender a necessidade de afirmar que todo modo de produção social é, basicamente,
um modo de inscrição social do desejo, isto a ponto de afirmarem que só há desejo e
social, nada mais.

145
DELEUZE e GUATTARI; L’anti-OEdipe, pp. 36-37
No entanto, Deleuze e Guattari dizem ainda algo a mais. Pois não há regime de
sujeição que seja baseado na pura e simples coerção, não há dominação que seja
apenas uma questão de submissão pela força. A sua maneira, toda sujeição é também
uma captura do desejo. Daí a necessidade de afirmar: não, as massas não foram
enganadas. Em certo momento elas desejaram o fascismo e este é o verdadeiro desafio:
compreender como se deseja o fascismo, quais são os afetos que nos mobilizam a tal
desejo, como eles são produzidos para que eles possam ser desativados. Trata-se então
de fazer a crítica de modalidades de inscrição social do desejo que bloqueiam algo que
poderíamos chamar, se quisermos, de potencial emancipatório.
Neste sentido, o projeto “Capitalismo e esquizofrenia” é uma peculiar crítica da
antropologia filosófica baseada na categoria de desejo, crítica construída com o
objetivo de fornecer a genealogia dos múltiplos processos de alienação social. Uma
genealogia que não teme apelar, entre outros, a procedimento clássicos da filosofia
social, como uma filosofia da história constituída, neste caso, a partir dos
desdobramentos da forma-Estado e que visa construir, ao menos segundo as palavras de
Pierre Clastres: “uma teoria geral da sociedade e das sociedades”. Por isto, podemos
dizer que o eixo fundamental do projeto de Deleuze e Guattari pode ser descrito da
seguinte forma: articular a crítica da economia política a uma crítica da antropologia
filosófica do desejo. Como dirá Deleuze: “É pois a economia política enquanto tal, a
economia dos fluxos, que é inconscientemente libidinal: não há duas economias; o
desejo ou a libido são apenas a subjetividade da economia política”146. Maneira de
mostrar como a economia política própria ao capitalismo, com seus processos de
racionalização, é indissociável da procura em dar realidade social a um conceito de
agente cuja compreensão exige a análise de seus modos de desejar, fundamento maior
de seus modos de ser.
Neste ponto, encontra-se uma de suas operações filosoficamente mais
surpreendentes do projeto. Deleuze e Guattari mobilizam uma forte crítica a uma certa
compreensão filosófica do desejo que aproximaria nomes como Platão, Hegel e,
principalmente, a psicanálise (cuja metapsicologia seria fortemente dependente de certa
tradição filosófica), isto a fim de afirmar que tal compreensão filosófica forneceria o
horizonte normativo dos modos de socialização no interior do capitalismo avançado.
Como se o capitalismo fosse dependente de uma certa metafísica, como se ele fosse, à
sua maneira, a realização social de uma certa metafísica. Por fim, como se sua crítica
só pudesse ser, ao mesmo tempo, a crítica de uma metafísica pretensamente
hegemônica no pensamento ocidental. Maneira de submeter a economia política do
capitalismo a uma crítica da metafísica ocidental, de afirmar que, de certa forma, o
capitalismo é uma metafísica materializada em processos de racionalização social.
Contra tal compreensão metafísica do desejo, faz-se necessário contrapô-la a
uma outra, construída principalmente através do acoplamento dos conceitos de conatus,
em Spinoza e de potência (Macht), em Nietzsche. Dois filósofos aparentemente

146
DELEUZE, Gilles; L’île déserte, p. 274
marginais à constituição hegemônica do pensamento ocidental. Faz-se necessário
ainda acoplar tal reflexão filosófica aos conceitos produzidos pelas práticas de
tratamento da psicose colocadas em circulação na Clínica de La Borde, da qual
Guattari fazia parte. A seu ver, este embate ao mesmo tempo filosófico e clínico é, no
fundo, estratégia necessária para fazer a crítica não apenas de um ontologia do desejo,
mas de toda uma política que, por pensar processos de organização apenas a partir das
figuras do partido e do Estado, não sabe o que fazer quando o desejo aparece, em
acontecimentos com forte potencial de ruptura, para além das figuras de sua alienação.
Por isto, “Capitalismo e esquizofrenia” não é apenas um projeto crítico, mas é uma
proposição de refundação dos campos da clínica e da política, uma tentativa de
fornecer a teoria que, de certa forma, teria faltado a maio de 68, a teoria que o
acontecimento seria capaz de produzir. Pois:

Se é verdade que a revolução social é inseparável de uma revolução do desejo,


então a questão se desloca: sob quais condições a vanguarda revolucionária
poderá se liberar de sua cumplicidade inconsciente com as estruturas
repressivas e desativar as manipulações do desejo das massas pelo poder,
manipulações que as fazem: ‘combater pela sua servidão como se estivessem a
combater pela sua salvação’?147

Segmentaridade e micropolítica

Este horizonte pode nos permitir melhor compreender a maneira com que o problema
do fascismo retorna em Mil Platôs, em especial no seu capítulo IX. Deleuze e Guattari
introduzem sua discussão sobre o fascismo a partir de uma teoria geral da organização
social. Essa teoria não parte de formas de desenvolvimento em sequência, ela não é
evolutiva. Na verdade, ela tenta dar conta de um jogo de dinâmicas distintas presentes
em todas as formas sociais. Maneira de abandonar uma perspectiva histórica
teleológica.
Tendo isto em mente, Deleuze e Guattari partem de uma apresentação de
modos de segmentaridade, conceito que vem de Durkheim e se refere a regimes de
organização e reorganização social que estabelece relações não a partir de um centro
funcional, como no caso da noção de Estado. Aparece aí a distinção entre sociedades
de segmento e as sociedades centralizadas.
Deleuze e Guattari partem daí para abandonar tal distinção e propor duas
formas de segmentaridade : uma dura e binária, outra flexível e não-binária. Todas as
duas estariam presentes em todas as formas sociais, em maior ou menor grau. Esta é a
base para uma distinção bastante presente em sua teoria entre estruturas molares e
estruturas moleculares. Note-se que tais dualidades não são mobilizadas tendo em vista
uma distinção etapista entre tipos de sociedades. Elas procuram dar conta de tendências
diversas, de níveis distintos no interior de todas as formas sociais. Esta dualidade será

147
DELEUZE, Gilles; L’île déserte, p. 304
fundamental para a distinção que nos interessa, a saber, esta entre macropolítica e
micropolítica. Deleuze e Guattari a descreve assim:

Sejam conjuntos do tipo percepção ou sentimento: sua organização molar, sua


segmentaridade dura não impede todo um mundo de micro perceptos
inconscientes, de afetos inconscientes, segmentações finas que não apreendem
ou não experimentam as mesmas coisas, que se distribuem de outra forma, que
operam de outra forma. Uma micropolítica da percepção, da afecção, da
conversação, etc. Se consideramos os grandes conjuntos binários, como os
sexos ou as classes, fica claro que eles passam também nos agenciamentos
moleculares de outra natureza, e que há dependência recíproca. Pois os dois
sexos reenviam a múltiplas combinações moleculares que colocam em jogo
não apenas o homem na mulher, mas a relação de cada um no outro com o
animal, a planta, etc. Mil pequenos sexos148.

Ou seja, a macropolítica é aquela que se organiza a partir de um modo necessariamente


binário e opositivo, daí a referência às esferas da classe e do sexo. Este binarismo é o
modo privilegiado de organização e legislação inerente ao Estado, a uma constituição
do que eles chamarão de “aparelho de Estado”. Nesse sentido, a macropolítico
normalmente opera pela visibilidade de grandes oposições.
No entanto, esses binarismos molares também se enraízam em estruturas
moleculares. Assim, os binarismos escondem um rede molecular de relações em seu
interior que sempre forçam as oposições molares a um ponto de decomposição. As
contradições sociais só funcionariam a grande escala; do ponto de vista micropolítico
as organizações se fazem a partir de linhas de fuga, de dinâmicas de transbordamento.
Deleuze e Guattari fazem a mesma observação a respeito da relação entre classe e
massa. Há sempre um outro regime que coexiste com a separação e a totalização de
segmentos duros. Há sempre uma tensão internas às formas sociais entre processos de
codificação e fluxo de descodificação.
Deleuze e Guattari ainda farão uma distinção interna às estruturas moleculares.
Há os fluxos moleculares que permitem devires e micro-devires, que estabelece
conexões e relações para além dos binarismos molares. Mas há também aquilo que
eles chamarão de linhas de fuga com seu empuxo em direção ao fora.
Neste sentido, a análise política não deve se deixar aprisionar pela dimensão
macropolítica, embora tal dimensão não seja indiferente. Ela também não deve ter a
ilusão de que a dimensão micropolítica é a verdadeira esfera decisiva: “As fugas e
movimentos moleculares não seriam nada se eles não repassassem pelas organizações
molares, não refizessem seus segmentos, suas distribuições binárias de sexo, de classe,
de partidos”149. Esta é uma maneira de dizer que uma análise efetiva deve compreender
as articulações entre macropolítica e micropolítica, deve apreender os fenômenos em

148
DELEUZE e GUATTARI, Mille Plateaux, p. 260
149
DELEUZE e GUATTARI, Mille Plateaux, p. 264
seu ponto de articulação entre os dois níveis. Pois só assim será possível apreender o
movimento efetivo e as tensões concretas em jogo nas transformações políticas.
Esta dimensão micropolítica não é “individual” em contraposição à dimensão
“social”. Podemos dizer que ela é libidinal, organizada como fluxo, em contraposição
à dimensão institucional e organizada como segmento. Uma contraposição fundada sob
uma solidariedade profunda. Daí porque:

A administração de uma grande segurança molar organizada tem por correlato


toda uma microgestão dos pequenos medos, toda uma insegurança molecular
permanente, a ponto de que a fórmula dos ministérios do interior poderia ser:
uma macropolítica da sociedade por e para uma micropolítica da insegurança150.

Uma teoria do fascismo

Esta compreensão das relações entre molar e molecular será fundamental para a leitura
que Deleuze e Guattari farão do fascismo. Pois não se trata de privilegiar a dimensão
macropolítica e descrever o fascismo a partir da presença de uma concepção totalitária
de Estado, até porque outros modelos políticos conhecerão figuras totalitárias do
Estado. O fascismo traz um tipo muito específico de totalitarismo no qual a
preservação do Estado totalitário não será o eixo da lógica da ação política. Mas para
entender este ponto, faz-se necessário compreender a dimensão molecular do fascismo,
compreender o micro-fascismo. Neste nível, o fascismo se mostra muito menos
centralizado e duro do que, por exemplo, o estado stalinista, que seria a figura mais
clássica de um Estado totalitário. Observando-o a partir de sua estrutura molecular, o
fascismo aparece muito mais como um corpo cancerígeno do que como um organismo
totalitário.
Nesta dimensão do “microfascismo”, fica mais claro encontrar uma resposta à
questão reichiana: “Por que o desejo deseja sua própria repressão?”. Pois: “é muito
fácil ser anti-fascista no nível molar sem ver o fascista que se é, que nos entretemos e
alimentamos, que cuidamos com moléculas pessoais e coletivas”151. Mas a resposta de
Deleuze e Guattari a respeito do que nos faz desejar o fascismo passa pela
implementação política de uma certa dimensão da pulsão de morte, mesmo que os dois
afirmem, à ocasião: “não invocamos pulsão de morte alguma”. Mas não seria
necessário invoca-la de maneira explícita. Basta ouvir o que pulsa em afirmações como:

Eis aí o quarto perigo: que a linha de fuga atravesse a parede, que ela saia dos
buracos negros, mas que, ao invés de se conectar com outras linhas e aumentar
suas valências a cada vez, ela se volta à destruição, à abolição pura e simples,
à paixão de abolição152.

150
Idem, p. 263
151
DELEUZE e GUATTARI, Mille Plateaux, p. 262
152
Idem, p. 280
Nós veremos na aula que vem por que insistir que se trata aqui de uma leitura
libidinal do fascismo que se apoia, à sua maneira na mobilização de um certo risco
interno à pulsão de morte. Mesmo as ambiguidades que Deleuze e Guattari descrevem
(o mesmo processo pode produzir a pura e simples abolição ou a mutação das formas e
lugares) está bastante enraizado nos usos do conceito psicanalítico de pulsão de morte.
Como veremos na aula que vem, Guattari deixará isto mais claro.
Mas, por enquanto, insistamos em outro ponto, a saber, o fascismo não é
exatamente o culto da ordem, o fortalecimento da estrutura binária da norma e de suas
formas de controle. Há algo em seu interior que se assemelha a essas dinâmicas
libertárias de linha de fuga, a esses fluxos moleculares que paradoxalmente são
fundamentais para processos de singularização. Mais uma vez, encontramos a ideia de
que há algo que necessariamente aproxima o fascismo de um processo revolucionário
efetivo. No entanto, essa possibilidade de efetivação é cortada por uma submissão da
força de transformação a uma paixão de abolição.
De toda forma, percebamos que é necessário que o assujeitamento faça também
parte do desejo, que ele se enraíze nos agenciamentos do desejo. Ele é uma de suas
linhas que sempre pode ser seguida. Deleuze e Guattari lembram então como tais
liberações de linhas de fuga são impulsionadas por máquinas de guerra. Essa figura da
máquina de guerra visa dar conta de um princípio social de movimento e
desterritorialização. Ela descreve todo agenciamento social em relação de exterioridade
ao campo estatal de uma dada situação. Ou seja, a guerra não aparece aqui como um
exercício do Estado, mas como um princípio exterior que o Estado procura, por várias
formas, capturar. Pois em toda sociedade, o que é primeiro são suas linhas de fuga,
seus movimentos de fuga. Posteriormente, aparecem aparelhos do Estado cuja função é
captura-las. A guerra se aproxima aqui da figura nietzscheana da potência e do combate.
Trata-se da virtude do guerreiro, que em várias situações se coloca em confronto com
as obrigações do Estado. Trata-se da figura do nômade que não se move por viver em
um espaço liso.
Tal máquina de guerra pode operar como um princípio de mutação contínua de
formas, por um princípio de nomadismo que se desdobra em um longa linha de fuga ou
pode liberar uma carga catastrófica de destruição. Nesse caso, a máquina de guerra
funciona exatamente a partir da guerra, pois a guerra: “é o único objeto que resta
quando a máquina de guerra perdeu sua potência de mover”153. O mesmo princípio de
transformação pode se deteriorar em forma bruta da destruição. Toda linha de fuga tem
um risco interno de se tornar uma linha de abolição, de destruição de si e dos outros.
De certa forma, a questão central gira em torno viver em linhas de fuga, de impedir que
as linhas de fuga sejam tomadas por máquinas de destruição e de autodestruição.
Quando isto ocorre, uma forma fascista necessariamente emerge. Por isto, é importante
para Deleuze e Guattari indicar diferenças entre o fascismo e o totalitarismo:

153
Idem, p. 281
O totalitarismo é conservador por excelência. Já no fascismo trata-se
claramente de uma máquina de guerra. E quando o fascismo constrói um
Estado totalitário, não é mais no sentido em que um exército de Estado toma o
poder mas, ao contrário, no sentido de uma máquina de guerra que toma para si
o Estado. Uma colocação bizarra de Virilio nos coloca no bom caminho: no
fascismo, o Estado não é exatamente totalitário, mas suicidário. Há no
fascismo um niilismo realizado154.

Ou seja, a guerra fascista não é uma guerra de conquista, ela não tem como parar, ela
não tem como se realizar. Como se fosse um “movimento perpétuo, sem objeto nem
alvo” cujos impasses só levam a uma aceleração cada vez maior. A ideia nazista de
dominação não está ligada ao fortalecimento do Estado, mas a um movimento em
movimento constante. Hannah Arendt falará da: “essência dos movimentos totalitários
que só podem permanecer no poder enquanto estiverem em movimento e transmitirem
movimento a tudo o que os rodeia”155. há uma guerra ilimitada que significa a
mobilização total de todo efetivo social, a militarização absoluta em direção a uma
guerra que se torna permanente. Guerra, no entanto, cuja direção não pode ser outra
que a destruição simples. Como se o horizonte da catástrofe fosse, desde o início, o
verdadeiro horizonte da ação. Deleuze e Guattari lembram, por exemplo, dessas
afirmações de Goebbels:

No mundo da fatalidade absoluta no interior do qual se move Hitler, nada tem


mais sentido, nem o bem nem o mal, nem o tempo nem o espaço, e o que os
outros homens chamam de ‘sucesso’ não pode servir de critério (...) É provável
que Hitler terminará em catástrofe156.

Não por outra razão, tudo se passa como se o nazismo tivesse necessariamente
que se realizar neste famoso telegrama 71, no qual Hitler anuncia: “Se a guerra está
perdida, que a nação pereça”. Arendt, cuja análise Deleuze apreciava, falava do fato
espantoso de que aqueles que aderiam ao fascismo não vacilavam mesmo quando eles
próprios se tornavam vítimas, mesmo quando o monstro começava a devorar seus
próprios filhos.

154
Idem, p. 281
155
ARENDT; Origens do totalitarismo, p. 434
156
Idem, p. 282
Falta a aula 9
Psicologias do fascismo
Aula 10

Na aula de hoje, iniciaremos o nosso módulo sobre o problema do fascismo na Escola


de Frankfurt através do comentário do último capítulo da Dialética do Esclarecimento:
“Elementos do anti-semitismo: limites do Esclarecimento”. Do ponto de vista
metodológico, este é o capítulo mais importante do livro. Pois Adorno e Horkheimer
submetem a discussão sobre o anti-semitismo a um modelo de análise do que
poderíamos chamar de “patologias sociais”. Trata-se de compreender o anti-
semitismo não apenas como um comportamento político, mas como o sintoma de um
vínculo social que se organiza tal como uma patologia mental. Desta forma, as
estruturas autoritárias e totalitárias da vida social não serão explicadas apenas através
de sua necessidade econômica, mas principalmente através de seu vínculo a estrutura
psíquica dos sujeitos socializados. Sem negligenciar a pergunta sobre as condições
sócio-econômicas que geraram o anti-semitismo, interessa aos nossos autores,
principalmente, compreender como funciona a estrutura psíquica e libidinal do anti-
semita.
No entanto, esta perspectiva não visa, por sua vez, patologizar o anti-semita
como alguém que sofreria, porventura, de alguma forma de doença mental. Esta seria
uma forma de transformar o anti-semitismo em um fenômeno marginal vinculado a
indivíduos ou grupos refratários ao processo de esclarecimento e racionalização social.
No entanto, a perspectiva de Adorno e Horkheimer é mais radical e consiste em
analisar o anti-semitismo como: “um esquema profundamente arraigado, um ritual da
civilização”157. Um modo de comportamento organicamente vinculado ao modo com
que a modernidade constitui individualidades e pensa, tanto psiquicamente quanto
socialmente, ideias como identidade e diferença. Assim, a análise da estrutura
psíquica e libidinal do anti-semita aparecerá como a lente de aumento que nos permite
observar as tensões no interior de todo e qualquer processo de formação do Eu
moderno. Por isto que o anti-semitismo aparecerá como um “limite do
esclarecimento”, como um fenômeno que expõe os limites internos do esclarecimento.
Para realizar este modelo de análise do anti-semitismo, Adorno e Horkheimer
precisam colocar em circulação um movimento duplo. Primeiro, trata-se de
compreender porque “em razão de sua adaptação deficiente” os judeus seriam o grupo
que: “tanto prática quanto teoricamente, atraem sobre si a vontade de destruição que
uma falsa ordem social gerou dentro de si mesma”158. Argumentos que levam em
conta a posição sócio-econômica dos judeus na Europa, representantes do capital mas
sem direito de posse, assim como a tensão entre as religiões cristã e judaica serão
utilizados. Nesta parte, que vai até o sub-capítulo V, o modelo de análise é
relativamente tradicional.
No entanto, a partir do sub-capítulo V, Adorno e Horkheimer farão apelo a
uma antropologia filosófica profundamente inspirada na psicanálise freudiana para
descrever dois processos complementares: a passagem de uma racionalidade mimética
a uma racionalidade conceitual e o processo de formação do Eu como instância auto-
identitária. É na maneira com que a racionalidade mimética será recalcada para
permitir o fortalecimento das ilusões identitárias do Eu que Adorno e Horkheimer

157
ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 160
158
Idem, p. 157
verão as raízes psíquicas do anti-semitismo e de todo e qualquer processo de
segregação social, já que:

A cólera é descarregada sobre os desamparados que chamam a atenção . E


como as vítimas são intercambiáveis segundo a conjuntura: vagabundos,
judeus, protestantes, católicos, cada uma delas pode tomar o lugar do assassino,
na mesma volúpia cega do homicídio, tão logo se converta na norma e se sinta
poderosa enquanto tal159.

Na verdade, esta análise do totalitarismo fascista como patologia social terá dois
momentos: este que encontramos em nosso texto e uma análise das mutações da
autoridade através do quadro freudiano fornecido por Psicologia das massas e análise
do Eu. Podemos encontrar tal elaboração no texto de Adorno: Teoria freudiana e as
estruturas da propaganda fascista. O que vincula os dois desenvolvimentos é o uso
contínuo da categoria clínica de “paranoia” para descrever a estrutura psíquica e
libidinal no interior do fascismo. Longe de ser uma simples metáfora, tal uso de um
conceito clínico para a análise de fenômenos sociais é de extrema importância.
Esta era uma maneira de lembrar que a compreensão de fenômenos como o
fascismo era incompleta se mobilizasse apenas categorias econômicas, sociológicas e
políticas. Elas precisariam mobilizar também categorias psicológicas para dar conta
da maneira com que experiências políticas podem gerir estruturas psíquicas e se
enraizar em dimensões nas quais as ações não são motivadas apenas por cálculos de
maximização de interesses ou de crença política, mas também por circuitos
inconscientes de afetos.
Assim, ao aproximar o fascismo e outras formas de autoritarismo da paranoia,
Adorno e Horkheimer estavam a dizer que a paranoia seria o modo hegemônico de
participação social no interior de tais sociedades. O que implicava afirmar que, nestes
casos, os vínculos sociais se sustentariam a partir da generalização da paranoia como
tipo social, mesmo que os sujeitos, do ponto de vista de suas patologias individuais,
tivessem outra forma de organização de seus sintomas. Neste sentido, não teríamos
apenas uma analogia, mas a descrição de um modalidade de funcionamento social a
partir de gestão do sofrimento através da elevação de comportamentos patológicos a
forma de participação social. Como condição de participação, os sujeitos deveriam
agir como paranoicos. Um “agir como” que não deixará de ter implicações na própria
estrutura da personalidade subjetiva.
Mas há um ponto que gostaria de insistir nessa aula. Lembremos como o
conceito psicanalítico de paranoia, base do uso dos frankfurtianos, a aproximava de
uma patologia que colocava, à céu aberto, os mecanismos de identificação e
introjeção próprios do narcisismo que, por sua vez, eram a expressão de dinâmicas
próprias à constituição mesma do Eu do indivíduo moderno com seus
desconhecimentos e denegações. Freud insistira claramente, por exemplo, que o
narcisismo era uma fase necessária do desenvolvimento individual e que seu
mecanismo expunha dinâmicas próprias da paranoia e da melancolia. Neste ponto,
encontramos uma radicalização desta perspectiva em Lacan e em sua maneira de
mostrar como a própria constituição “normal” do Eu moderno era paranoica, pois
produtora de uma instância psíquica que organizava suas relações ao mundo através
de projeções, introjeções e fundava sua identidade a partir de um sistema de

159
ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 160
denegações e agressividades160. Isto lhe obrigava a pensar uma clínica que é,
inicialmente, crítica das ilusões identitárias e sintéticas do Eu, se não quisesse ser o
fortalecimento de tendências paranoicas nos indivíduos.
Neste sentido, é impossível colocar em circulação uma crítica que eleva a
paranoia à condição de patologia social sem defender que o indivíduo moderno não é
o esteio da vida democrática, mas a ferida aberta que coloca o corpo social em risco
perpétuo de deriva autoritária. Como se ao capitalismo restasse fornecer regressões
paranoicas periódicas aos sujeitos que ele socializa e produz. Isto pode nos explicar
porque a reflexão dos frankfurtianos não se serve do fortalecimento do indivíduo
moderno como contraponto à natureza paranoica dos vínculos sociais, como seria o
caso em uma perspectiva liberal. Na verdade, os dois conceitos tecem relações
profundas de solidariedade. Gostaria de desenvolver este ponto nas próximas aulas.

O anti-semitismo

Na aula de hoje, partiremos da discussão sobre o anti-semitismo. Adorno e


Horkheimer começam seu texto lembrando que os judeus são o grupo que atrai para si,
de maneira privilegiada, a vontade de destruição gerada pela falsa ordem social. Sua
caracterização como povo sem pátria, ligado a si apenas pela força da tradição e da
religião teria levado a um “apego inflexível às suas próprias formas de ordenamento
da vida” e a uma relação sempre insegura com a ordem dominante. Isto auxiliou a
eleição do anti-semitismo em modo social maior de racismo.
Adorno e Horkheimer são sensíveis às representações sociais normalmente
associadas aos judeus: banqueiros e intelectuais, o dinheiro e o espírito como o sonho
renegado daqueles que a dominação mutilou. Na posição de banqueiros eles são os
bodes expiatórios da injustiça econômica de uma classe inteira. Pois os judeus ficaram
presos ao setor de circulação, sem direito a aceder a posses no setor produtivo, eles se
transformaram nos oficiais de justiça para o sistema inteiro, atraindo a si o ódio que
normalmente deveria estar direcionado a uma classe inteira. Na Europa, eles se
transformaram nos intermediários que representam, para o povo, a conta a pagar pelo
progresso:

Os judeus não foram os únicos a ocupar o setor de circulação, mas ficaram


encerrados nele tempo demais para não refletir em sua maneira de ser o ódio
que sempre suportaram. Ao contrário de seu colega ariano, o acesso à origem
da mais-valia ficou-lhes em larga medida vedado. Foi só após inúmeras
dificuldades e tardiamente que lhes foi permitido o acesso à propriedade dos
meios de produção161.

Desta forma, a revolta contra uma classe econômica se transforma em revolta contra
um povo. O conflito sócio-econômico se transforma em conflito cultural, em revolta
contra formas de vida pretensamente diferentes. Assim, o destino dos judeus esteve
ligado ao descontentamento em relação a um processo de racionalização econômica
que eles foram obrigados a representar por serem “capitalistas sem propriedade”.
Esta explicação ligada à posição econômica dos judeus na Europa será
acrescida à defesa de uma relação particularmente problemática entre cristianismo e

160
Ver, por exemplo, LACAN, Jacques; Séminaire II, Paris: Seuil, 1982
161
Idem, p. 163
judaísmo, até porque o judaísmo esteve, durante toda a época de intolerância religiosa
na Europa, presente como minoria constantemente vítima de revoltas.
Adorno e Horkheimer desconfiam do propalado universalismo paulino do
cristianismo por identificarem uma “nostalgia incontrolada” dos vínculos
comunitários religiosos canalizados como “rebeliões racistas” esporádicas: “os
descendentes dos visionários evangelizadores são convertidos, segundo o modelo
wagneriano dos cavaleiros do Santo graal, em conjurados da confraria do sangue e em
guardas de elite”162. A potencia comunitária da religião cristã é ativada de forma
violenta contra os semitas. Esta nostalgia incontrolada dos vínculos comunitários
pode ser melhor compreendida se lembrarmos da leitura frankfurtiana do cristianismo,
que coloca de ponta a cabeça a leitura hegeliana. Ela está resumida na seguinte
afirmação:

Na medida em que o absoluto é aproximado do finito, o finito é absolutizado.


Cristo, o espírito que se tornou carne, é o feiticeiro divinizado. A auto-
reflexão-humana no absoluto, a humanização de Deus por Cristo, é o próton
pseudos. O progresso para além do judaísmo tem por preço a afirmação de que
o homem Jesus era Deus. É justamente o aspecto reflexivo do cristianismo, a
espiritualização da magia, que está na origem do mal163.

Podemos entender tais colocações da seguinte maneira. No cristianismo, um


particular (Cristo) é elevado à condição de universal abstrato (Deus). Tal
humanização do divino tem um preço: a impossibilidade de vivenciar a limitação do
particular, com suas exigências. Um finito vale por absoluto, ele deve se sacrificar no
absoluto, mas tal sacrifício nunca é completo, pois implica perpetuação da natureza
representativa da finitude. Algo muito diferente do judaísmo e de seu caráter
radicalmente anti-representativo. Ao dar tal lugar à finitude, Adorno e Horkheimer
podem dizer que o cristianismo queria permanecer espiritual, mesmo quando aspirava
à dominação. O sacrifício do finito através da morte de Cristo faz com que o
cristianismo viva entre a recaída em uma religião natural (e o reconhecimento da
inanidade do sacrifício da representação finita) e o reconhecimento do paradoxo de
um fé que exige sacrifício completo da razão do mundo (como vemos nestes “cristão
paradoxais”, como Pascal e Kierkegaard). Os que recaíram em uma religião natural
precisavam ver, nos que não confundiram seu particularismo com o universal (a
religião judaica), o inimigo a ser abatido.

Mimese

Mas o verdadeiro cerne da discussão de Adorno e Horkheimer sobre o anti-


semitismo está vinculado à necessidade do recalque da mimese enquanto condição
para a formação da individualidade. Com o recalque da mimese é o problema da
relação à alteridade que se transforma em questão: “A mera existência do outro é
motivo de irritação. Todos os outros são ´muito espaçosos´ e devem ser recolocados
em seus limites, que são os limites do terror sem limites”164. Sendo os judeus uma das
figuras privilegiadas da alteridade na Europa, abre-se espaço para uma discussão que

162
Idem, p. 165
163
Idem, p. 166
164
Idem, p. 171
enquadra o anti-semitismo como sintoma de uma recuperação social da revolta contra
a mimese perdida.
Esta é a maneira frankfurtiana de dizer que a consolidação de uma
racionalidade que expulsa as afinidades miméticas de seu horizonte é paga com o
retorno, no campo político, do extermínio de todo risco de se perder no outro, de sair
do invólucro defensivo de uma identidade construída de maneira compulsiva. Esse
extermínio não é sem definir modalidades de “retorno” à mimese recalcada, a uma
“mimese da mimese”, como se fosse o caso de: “colocar diretamente a serviço da
dominação a própria rebelião da natureza reprimida contra a essa dominação”165.
Uma maneira de introduzir o problema da assimilação da mimese passa pela
compreensão de afirmações como:

A natureza que não se purificou nos canais da ordem conceitual para se tornar
algo dotado de finalidade; o som estridente do lápis riscando a lousa e
penetrando até a medula dos ossos, o haut goût que lembra a sujeira e a
putrefação; o suor que poreja a testa da pessoa atarefada; tudo o que não se
ajustou inteiramente ou que fira os interditos em que se sedimentou o
progresso secular tem um efeito irritante e provoca uma repugnância
compulsiva166.

As figuras mobilizadas aqui indicam certa forma de vínculo libidinal ao que


não se purificou na ordem conceitual, ao som que toca os ossos, à mistura promíscua
entre putrefação e alimentação, ao elemento não ajustado à imagem. Como se
houvesse alguma forma de tendência de retorno ao não completamente formado, ao
não completamente determinado, ao que não se submete integralmente à “recognição
no conceito”. Esta tendência a uma identificação com o que não é provido de
semelhança, de uma imitação do que não se assemelha é exatamente o que Adorno e
Horkheimer chamam de “mimese”.
Para apreender a especificidade de tal conceito, faz-se necessário lembrar que
sua construção visa dar conta de quatro problemas diferentes, porém complementares,
a saber, o problema do conteúdo de verdade do pensamento analógico que sustenta
práticas mágicas e rituais, a tendência pulsional a regressar a um estado de natureza
marcado pela despersonalização, o mimetismo animal e, sobretudo, as experiências
estéticas contemporâneas de confrontação com materiais reificados. Teoria
antropológica da magia, teoria psicanalítica das pulsões, mimetismo animal e o
problema estético da representação: eis os eixos da problemática frankfurtiana do
mimetismo.
Não é o caso de discutir aqui todas essas dimensões do problema, mas apenas
de lembrar de alguns traços essenciais do uso frankfurtiano da noção de mimese e
suas consequências políticas. Primeiramente, lembremos da maneira com que a
problemática do conteúdo de verdade do pensamento mágico coloca-se para Adorno e
Horkheimer. Se o pensamento racional deve denegar toda força cognitiva da mimese,
é porque se trata de sustentar: “a identidade do eu que não pode perder-se na
identificação com um outro, mas [que] toma possessão de si de uma vez por todas
como máscara impenetrável”167. A identidade do eu seria pois dependente da
entificação de um sistema fixo de identidades, de uma rigidez de diferenças

165
Idem, p. 172
166
Idem, p. 168
167
ADORNO et HORKHEIMER, Dialética do esclarecimento, p. 24
categoriais. A projeção de tal sistema sobre o mundo é exatamente aquilo que Adorno
e Horkheimer chamam de “falsa projeção” ligada à dinâmica do narcisismo e a
processos de categorização do sujeito cognoscente.
Mas, por outro lado, se a racionalidade mimética do pensamento mágico pode
pôr as múltiplas afinidades entre o que existe, é porque ele seria mais aberto ao
reconhecimento da natureza constitutiva da identificação. Isto pode nos explicar a
importância de considerações como: “o espírito que se dedicava à magia não era um e
idêntico: ele mudava igual às máscaras do culto, que deviam se assemelhar aos
múltiplos espíritos”168. Mas Adorno e Horkheimer sabem que tal imitação pode ir até
aquilo que não tem forma. Sigamos uma afirmação canônica sobre o mimetismo. Ele
seria o index de uma: “ tendência a perder-se no meio ambiente (Unwelt) ao invés de
desempenhar aí um papel ativo, da propensão a se deixar levar, a regredir à natureza.
Freud a qualificou de pulsão de morte (Todestrieb), Callois de mimetismo”169. A
pulsão de morte freudiana expõe a economia libidinal que leva o sujeito a vincular-se
à uma natureza compreendida como espaço do inorgânico, figura maior da opacidade
material aos processos de reflexão. Esta “tendência a perder-se no meio ambiente” da
qual fala Adorno e Horkheimer pensando na pulsão de morte é o resultado do
reconhecimento de si no que é desprovido de inscrição simbólica. É tal manifestação
da pulsão de morte que deverá ser negada por aqueles que negam a mímese.
Isto fica ainda mais claro se levarmos a sério o recurso feito por Adorno a
Roger Caillois. Operação extremamente esclarecedora pois nos ajuda a compreender
melhor o que significa esta “tendência a perder-se no meio ambiente” da qual fala
Adorno. Pois lembremos que, com seu conceito de psicastenia lendária, Caillois
tentava demonstrar como o mimetismo animal não deveria ser compreendido como
um sistema de defesa, mas como uma “tendência a transformar-se em espaço” que
implicava em distúrbios do “sentimento de personalidade enquanto sentimento de
distinção do organismo no meio ambiente”170. Falando a respeito desta tendência,
própria ao mimetismo, de perder-se no meio ambiente, Caillois afirma:

O espaço parece ser uma potência devoradora para estes espíritos


despossuídos. O espaço os persegue, os apreende, os digere em uma fagocitose
gigante. Ao final, ele os substitui. O corpo então se dessolidariza do
pensamento, o indivíduo atravessa a fronteira de sua pele e habita do outro
lado de seus sentidos. Ele procura ver-se de um ponto qualquer do espaço, do
espaço negro, lá onde não se pode colocar coisas. Ele é semelhante, não
semelhante a algo, mas simplesmente semelhante171.

Este espaço negro no interior do qual não podemos colocar coisas (já que ele
não é espaço categorizável, condição transcendental para a constituição de um estado
de coisas) é um espaço que nos impede de ser semelhantes a algo de determinado. Por
outro lado, tal como na noção freudiana de tendência de retorno a um estado
inorgânico, Caillois lembra que o animal geralmente mimetiza não apenas o vegetal

168
ADORNO E HORKHEIMER, idem, p. 24 [tradução modificada]
169
idem, p. 245 [tradução modificada]
170
O termo « psicastenia » refere-se a nosografia de Pierre Janet que compreendia a psicatenia como
afecção metal caracterizada por rebaixamento da tensão psicológica entre o eu e o meio, sendo
responsável por desordens como sentimentos de icompletude, perda do sentido da realidade,
fenômenos ansiosos, entre outros.
171
CAILLOIS, Le mythe et l’homme, p. 111
ou a matéria, mas o vegetal corrompido e a matéria decomposta. “A vida recua em um
degrau”, dirá Caillois (2002, p. 113).
O que faria o fascismo, segundo Adorno e Horkheimer, não é apenas perpetuar
esse recalque da mimese, mas permitir seu retorno através da violência contra aqueles
contra os quais a afinidade mimética está proibida. Assim: “o impulso recusado é
permitido na medida em que o civilizado o desinfeta através de sua identificação
incondicional com a instância destruidora”172. Há uma “mimese desinfetada” nos
rituais de homogeneidade fascista, há uma “mimese desinfetada” na possibilidade de
imitação dos judeus a partir do escárnio e da derrisão. Há projeção nos judeus de tudo
aquilo que seriam os impulsos que o sujeito não admite como seus e que, no entanto,
lhe pertencem. É neste ponto que aparece a mobilização da paranoia como patologia
social do fascismo.

A sombra da razão

Na estrutura clínica psicanalítica, a paranoia é ainda concebida como um dos


três quadros nosográficos próprios à estrutura psicótica, juntamente com a
esquizofrenia e a melancolia (ou psicose maníaco-depressiva). Sua caracterização
atual não é muito distinta daquela que encontramos em Freud. Desde 1895, Freud
compreendia a paranóia como um “modo patológico de defesa”173 que se servia de
mecanismos como o delírio174 e uma forte tendência à projeção de representações
inconciliáveis com a coerência ideal do Eu. À ocasião de seu texto paradigmático
relativo ao caso Schreber, tais mecanismos de defesa encontrarão seu fundamento em
uma desesperada reação contra um certo impulso homossexual impossível, por razões
estruturais, de ser vivenciado como tal pelo sujeito.
Por trás desta temática aparentemente muito redutora ligada à defesa contra a
homossexualidade (que, no limite, nos obrigaria a tese incorreta do ponto de vista da
fenomenologia clínica referente à impossibilidade de alguém ser, ao mesmo tempo,
paranoico e homossexual explícito) há, no entanto, o que poderíamos chamar de uma
intuição psicanalítica fundamental a respeito das psicoses. Ela se refere à
impossibilidade de alguma forma de mediação simbólica das identificações e da
alteridade devido à fixação em um estado de desenvolvimento e de maturação que
Freud chamava de “narcísico”. Assim, devido a tal fixação, todo reconhecimento de si
em um outro aparece como anulação catastrófica dos regimes de identidade que, até
então, sustentavam uma certa estabilidade pré-psicótica. O problema da defesa contra
o homossexualismo é, no fundo, modo freudiano de dizer que, na psicose paranoica,
todo reconhecimento de si em um outro é vivenciado de maneira ameaçadora e muito
invasiva, o que coloca uma personalidade formada a partir da internalização de
identificações em rota contínua de colapso. Notemos ainda como tal situação indica
um certo modo de ligação defensiva à identidade, de negação da “interioridade da
diferença”, que demonstram a fragilidade, no caso da psicose, dos modos de síntese
psíquica fundadas na noção funcional de Eu.
O primeiro traço do fascismo que Adorno e Horkheimer associam à paranoia é
a natureza projetiva da relação ao mundo:

172
ADORNO e HORKHEIMER; Dialética do esclarecimento, p. 172
173
Ver, FREUD; Sigmund; Manuscrit H In: La naissance de la psychanalyse, Paris: PUF, 1996, p. 98.
174
Sendo que, em Freud, o delírio paranóico é: “uma tradução em representações de palavras do
reprimido que retornou maciçamente na forma de signos perceptuais” (SIMANKE, Richard; A
formação da teoria freudiana das psicoses, Belo Horizonte: Loyola, 2008, p. 100)
O anti-semitismo baseia-se numa falsa projeção. Ele é o reverso da mimese
genuína, profundamente aparentada à mimese que foi recalcada, talvez o traço
caracterial patológico em que esta se sedimenta. Se a mimese se torna
semelhante ao mundo ambiente, a falsa projeção torna o mundo ambiente
semelhante a ela175.

A projeção serve para expulsar impulsos que o sujeito não admite como seu,
assim como tudo aquilo que quebraria a unidade e a coerência suposta da
personalidade. Adorno e Horkheimer admitem que, em certo sentido, perceber é
projetar. Ou seja, eles assumem a natureza projetiva da percepção como algo
faltamente inerente ao espírito devido a exigências de autoconservação. No entanto,
tal tendência à projeção seria paulatinamente controlada através de uma dupla
reflexão, de uma reflexão duplicada. O sujeito tem a experiência da resistência que
vem do objeto e tal resistência pode ser integrada através deuma reflexão de segundo
grau. Daí porque Adorno e Horkheimer podem dizer: “o patológico no anti-semitismo
não é comportamento projetivo enquanto tal, mas a ausência de reflexão que o
caracteriza”176. Nota-se claramente uma articulação profunda entre paranoia e
narcisismo que está na base da descrição psicanalítica da nosografia. O paranoico
projeta o mundo a sua imagem e semelhança, reificando tal projeção.
Por outro lado, contrariamente a outras categorias da psicose, como a
esquizofrenia, a paranoia teria como traço diferencial a preservação das funções
superiores do raciocínio. Neste sentido, não é desprovido de interesse perceber como
encontramos tal intuição em um trabalho profícuo de psicologia social como Massa e
Poder, de Elias Canetti177. Esta absorção de modos formais de raciocínio e
comportamento próprios a estrutura normal pode ser identificado, por exemplo, na
presença, no interior da paranoia, de algo como um “vício da causalidade” e um
“vício da fundamentação”. Uma espécie de princípio de razão suficiente elevado à
defesa patológica : nada acontece que não tenha uma causa. Assim, na “ontologia
paranóica”, não haverá lugar para noções como contingência e acaso. Por trás da
máscara do novo, há sempre o mesmo. Tudo o que é desconhecido deve ser remetido
a algo conhecido e referido ao doente. Isto leva o paranoico à necessidade compulsiva
do desmacaramento. Ele quer que haja algo por trás dos fenômenos ordinários e só se
acalma quando uma relação causal é encontrada. Como dirá Adorno e Horkheimer:

A excessiva coerência paranoica, este mau infinito que é o juízo sempre igual,
é uma falta de coerência do pensamento. Ao invés de elaborar
intelectualmente o fracasso da pretensão absoluta e assim continuar a
determinar seu juízo, o paranoico se aferra à pretensão que levou seu juízo ao
fracasso178.

Essa excessiva coerência seria traço de uma forma de saber chamada por
Adorno e Horkheimer de “semicultura” ou “semiformação”: “uma semicultura que,
por oposição à simples incultura, hipostasia o saber limitado como verdade, não pode
suportar a ruptura entre o interior e o exterior, o destino individual e a lei social, a

175
ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do esclarecimento, p. 174
176
Idem, p. 176
177
CANETTI, Elias; Massa e poder, São Paulo : Companhia das Letras, 2005, pp. 448-463
178
ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 181
manifestação e a essência”179. Eles chegam a dizer que a paranoia seria o sintoma do
indivíduo semicultivado, com sua atribuição arbitrária de sentido ao mundo exterior,
seus estereótipos e generalizações marcadas por perseguições e grandeza. Ou seja, o
traço fundamental dessa semicultura é a hipóstase de relações, a impossibilidade de
admitir a limitação do saber, o que leva o sujeito a não suportar rupturas entre o
exterior e o interior, o destino individual e a lei social, a manifestação e a essência.
“Desde Hamlet, a vacilação tem sido para os modernos um sinal de pensamento e de
humanidade”180. Daí uma tendência às formas do complot, da perseguição.
Neste sentido, é possível dizer que um dos traços fundamentais da paranoia,
traço que fornece a base de sua certeza delirante e da incorrigibilidade de seus
julgamentos, está vinculado à naturalização das estruturas e dos quadros narrativos de
organização da experiência. Não é possível ao sujeito tomar distância de suas próprias
construções, retificando criticamente suas pretensões a partir dos acasos e
contingências da experiência, desconfiando de sua sistematicidade e de sua exigência
absoluta de sentido e ligação, pois tais construções foram naturalizadas. Neste sentido,
não seria incorreto ver, nesta forma imanente de adesão a suas próprias crenças, um
efeito maior daquilo que em teoria social chamaríamos simplesmente de reificação.
O que talvez nos permitiria dizer que a paranoia é uma sombra da razão, pois é o risco
aberto quando ocorre uma reificação da própria estrutura do conhecimento. Esta
compreensão da paranoia como uma espécie de “patologia da reificação” estará
claramente presente em Adorno e Horkheimer quando estes afirmarem:

Sempre que as energias intelectuais estão intencionalmente concentradas no


mundo exterior, ou seja, sempre que se trata de perseguir, constatar, captar
(que são as funções que, tendo origem na empresa primitiva de subjugação dos
animais, se espiritualizaram nos métodos científicos da dominação da
natureza), tendemos a ignorar o processo subjetivo imanente à esquematização
e a colocar o sistema como a coisa mesma. Como o pensamento patológico, o
pensamento objetivador contém a arbitrariedade do fim subjetivo que é
estranho à coisa; ele esquece a coisa e, por isto mesmo, inflige-lhe a violência
a que depois é, mais uma vez, submetida na prática181.

Por outro lado, notemos como há um conjunto de valores políticos que


parecem nortear o sofrimento paranoico. Falamos de unidade, identidade, controle e
risco de invasão. Como se fosse questão de assegurar a posse e a unificação de um
território a todo momento ameaçado. Não é difícil perceber, já neste momento, como
os motivos paranoicos parecem derivados de uma certa compreensão a respeito
daquilo que uma ordem deve ser capaz de produzir.

179
ADORNO e HORKHEIMER, idem, p. 182
180
Idem, p. 191
181
ADORNO e HORKHEIMER; idem, p. 180
Psicologias do fascismo
Aulas 11 e 12

Na aula de hoje iremos terminar o módulo dedicado à Escola de Frankfurt em sua


leitura do fascismo. Gostaria de começar por fazer uma recapitulação desse módulo.
Deve ter ficado claro para vocês como a leitura frankfurtiana do fascismo privilegia o
problema do anti-semitismo e o lugar funcional que os processos de segregação
ocupam como motor de construção de coesão social. Claro que a leitura dos
frankfurtianos não se resume ao lugar funcional da segregação no interior das práticas
do Estado totalitário. Na verdade, se puder dar a vocês um panorama dos trabalhos da
Escola de Frankfurt sobre o tema, eu desenvolveria três eixos.
No primeiro, encontramos os trabalhos sobre a consolidação do Estado fascista.
O principal trabalho neste eixo é Behemoot: a estrutura e prática do nacional-
socialismo, de Franz Neumann, mas devemos lembrar também do premonitório texto
“O combate ao liberalismo na concepção totalitária de estado”, escrito por Herbert
Marcuse no início dos anos trinta e “Capitalismo de Estado: suas possibilidades e
limitações”, do economista Friedrich Pollock. Esta discussão a respeito do Estado
fascista está conectada a uma hipótese que será um dos eixos de discussão entre os
frankfurtianos, a saber, a ascensão do capitalismo de estado, segundo Pollock. Nele,
encontramos a tese da passagem inexorável de um “capitalismo privado” determinado
pelo mercado para um capitalismo de alta regulação estatal, seja ele totalitário ou
democrático. Capitalismo no qual as decisões econômicas estariam submetidas à
orientação política das deliberações de gestão controlada pela burocracia estatal, pelo
partido vitorioso e pela classe empresarial. Pollock chega a falar em uma substituição
de problemas econômicos por problemas administrativos, criando um horizonte
“racional” de gestão.
Este modelo dialoga, em certos pontos, com a ideia de que a noção
fascista de “estado total” que, como compreendera Marcuse já nos anos trinta,
nunca havia se contraposto ao liberalismo. Antes, era seu desdobramento
necessário em um horizonte de capitalismo monopolista. Compreendendo
como o fundamento liberal da redução da liberdade à liberdade do sujeito
econômico individual em dispor da propriedade privada com a garantia
jurídico-estatal que esta exige permanecia como a base a estrutura social do
fascismo, Marcuse alertava para o fato do “estado total” fascista ser compatível
com a ideia liberal de liberação da atividade econômica e forte intervenção nas
esferas políticas da luta de classe. Daí porque:

“Os fundamentos econômicos desse trajeto da teoria liberal à teoria totalitária


serão assumidos como pressupostos: repousam essencialmente na mudança da
sociedade capitalista do capitalismo mercantil e industrial, edificado sobre a
livre concorrência dos empresários individuais autônomos, ao moderno
capitalismo monopolista, em que as relações de produção modificadas
(sobretudo as grandes ‘unidades’ dos cartéis, dos trustes etc.) exigem um
Estado forte, mobilizador do todos os meios do poder”182

Esta articulação entre liberalismo e fascismo fora tematizada por Carl


Schmitt, pois vem de Schmitt a noção de que a democracia parlamentar com
seus sistemas de negociações tendia a criar um “Estado total”183. Tendo que dar
conta das múltiplas demandas vindas de vários setores sociais organizados, a
democracia parlamentar acabaria por permitir ao estado intervir em todos os
espaços da vida, regulando todas as dimensões do conflito social,
transformando-se em mera emulação dos antagonismos presentes na vida social.
Contra isto, não seria necessário menos estado, mas pensar uma outra forma de
estado total. Neste caso, um estado capaz de despolitizar a sociedade, tendo
força suficiente para intervir politicamente na luta de classes, eliminar as forças
de sedição a fim de permitir a liberação da economia de seus pretensos entraves
sociais. Como bem lembrará Pollock, esse mesmo modelo poderá tanto operar
em chave de democracia liberal quanto de regime autoritário. Se pudermos
completar, essa indiferença vem do fato dos dois polos estarem menos longe do
que se gostaria de imaginar. Na verdade, tanto em um caso como em outro os
fundamentos da racionalização liberal, com sua noção de agentes econômicos
maximizadores de interesses individuais, permanecia com a estrutura da vida
social e dos modos de subjetivação, justificando toda forma de intervenção
violenta contra tendências contrárias.
Neumann compreende em outra chave o estado nazista. Na verdade, sua
leitura está muito mais vinculada à compreensão de uma situação de conflito
perpétuo que decompõe a capacidade de planificação do estado em prol de um
movimento anárquico em direção à guerra imperialista. Uma guerra levada por
um estado que está a todo momento a ponto de se decompor. Por isto, uma
guerra que deve ser implacável:

Nada resta senão lucro, poder, prestígio e, acima de tudo, medo. Desprovidos
de qualquer lealdade comum e preocupados somente com a preservação de seus
próprios interesses, os grupos dominantes romperão tão logo o Líder milagreiro
encontre um oponente de valor. No presente, cada seção precisa das outras. O
exército precisa do partido porque a guerra é totalitária. O exército não pode
organizar a sociedade “totalmente”; isto é tarefa do partido. O partido, por
outro lado, precisa do exército para vencer a guerra e assim estabilizar e mesmo
ampliar seu próprio poder. Ambos precisam da indústria monopolista para
garantir a expansão contínua. E todos os três precisam da burocracia para
alcançar a racionalidade técnica sem a qual o sistema não consegue operar.
Cada grupo é soberano e autoritário; cada é equipado com poderes legislativos,

MARCUSE, Herbert; Cultura e sociedade, vol. I, São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 61
182

Ver SCHMITT, Carl; “Starker Staat und gesunde Wirtschaft. Ein Vortrag für Wirtschaftsführen”, in
183

Volk und Reich Politische Monatshefte für das junge Deutschland, 1933, tomo 1, caderno 2, pp. 81-94
administrativos e jurídicos próprios; cada um é assim capaz de conduzir hábil e
inescrupulosamente os compromissos necessários aos quatro184.

No segundo eixo de estudos dos frankfurtianos, encontramos as análises sobre a


relação entre nazismo e cultura. Talvez o mais exemplar desses estudos sobre De
Caligari a Hitler, de Sigfried Kracauer, não por acaso uma “história psicológica do
cinema alemão”. Kracauer analisa a produção cinematográfica alemã até a ascensão
de Hitler a fim de recompor “o padrão psicológico de um povo numa determinada
época”185. Foi após a Primeira Guerra Mundial que o cinema alemão realmente nasceu.
Ele não poderia ser indiferente a seu próprio nascimento, a sua necessidade de elaborar
os traumas de um país humilhado pela derrota e conduzido por um governo fraco até
uma crise econômica de proporções catastróficas. Kracauer insistirá na compreensão
da psicologia social como condição para determinar os processos que levam à
consolidação do nazismo. Daí afirmações como:

A dissolução de sistemas políticos resulta na decomposição de sistemas


psicológicos e, no tumulto subsequente, atitudes internas tradicionais, agora
liberadas, são impelidas a se tornarem manifestas, sejam elas combatidas ou
apoiadas186.

Por fim, temos o eixo das análise do fascismo como patologia social. Foi isto
que vimos nas últimas duas aulas. Primeiro, eu insistira com vocês no sentido em
abordar um fenômeno social como o fascismo enquanto patologia social. Vale a pena
entendermos melhor este ponto devido a sua importância epistemológica.

Retornando à hipótese do fascismo como patologia social

Podemos compreender sociedades como sistemas produtores e gestores de


patologias. Inexiste sociedade que não se fundamente em um complexo processo de
gestão de patologias e tal gestão é uma dimensão maior, mas nem sempre
completamente explícita, de reprodução social de afetos. Não se trata apenas de se
perguntar pelas modalidades de sofrimento que sociedades produzem, já que toda
forma de restrição e coerção, toda forma de assunção normativa é necessariamente
produtora de sofrimento. No entanto, nem toda forma de restrição e coerção é
produtora de patologias, da mesma forma que nem todo sofrimento é traduzível
imediatamente na forma de patologia. Um sofrimento patológico é um sofrimento
socialmente compreendido como excessivo e, por isto, objeto de tratamento por
modalidades de intervenção médica que visam permitir a adequação da vida à valores
socialmente estabelecidos com forte carga disciplinar.

184
NEUMANN, Behemoot, p. 397
185
KRAKAUER; De Calegaria a Hitler, p. 20
186
Idem, p. 21
Há de se insistir neste ponto pois reconhecer-se como portador de uma
patologia é indissociável do ato de se reconhecer em uma identidade social com clara
força performativa. Uma patologia mental pressupõe um ato de reconhecimento por
parte do próprio portador, um ato que o modifica e o inscreve socialmente. Por isto, a
discussão sobre os processos de produção de identidade social tem, no debate a
respeito da estrutura do sofrimento psíquico, um setor importante de desenvolvimento.
Pois ao ser traduzido em patologia, o sofrimento transforma-se em modo de partilha de
identidades que trazem em seu bojo regimes definidos de compreensão dos afetos e de
expectativas de efeitos. Neste sentido, podemos dizer que as patologias são setores
fundamentais de processos de socialização. Socializamos sujeitos, entre outras coisas,
ao faze-los internalizar modos de inscrever seus sofrimentos, seus “desvios” e
descontentamentos em quadros clínicos socialmente reconhecidos. Não se socializa
apenas levando sujeitos a internalizar disposições normativas positivas, mas
principalmente ao fornece-lhes uma gramática social do sofrimento, ou seja, quadros
patológicos oferecidos pelo saber médico de uma época. Não se socializa apenas
através da enunciação da regra, mas principalmente através da gestão das margens.
Por isto, as categorias clínicas utilizadas para descrever patologias próprias a
sofrimentos psíquicos são necessariamente patologias sociais. Neste contexto, percebe-
se que falar em “patologias sociais” implica, inicialmente, discutir a maneira com que
categorias clínicas participam de formas sociais de disciplina.
Mas é fato que a análise de Adorno e Horkheimer a respeito do fascismo como
um laço social paranoico dizia um pouco mais. Pois se tratava não apenas de
compreender como patologias mentais forneciam a inscrição de formas de sofrimento a
serem geridas e classificadas. Tratava-se de mostrar como essas mesmas patologias se
transformavam em modo normal de participação social. Até porque:

Padrões de personalidade que foram descartados como ‘patológicos’ porque


não estavam em consonância com os padrões manifestos mais comuns ou com
os ideais mais dominantes em uma sociedade, mostraram-se em um
investigação mais apurada serem apenas exagerações do que era quase
universal sob a superfície dessa sociedade. O que é ‘patológico’ hoje pode, com
a modificação de condições sociais, tornar-se a tendência dominante de
amanhã187.

Ou seja, falar em patologias sociais implicava inicialmente uma reflexão sobre


as patologias enquanto categorias que descrevem modos de participação social, e não
uma reflexão sobre a sociedade como organismo saudável ou doente. Tal reflexão
permitiria, por sua vez, o desenvolvimento de uma articulação entre clínica e crítica no
interior da qual a crítica social aparece indissociável do diagnóstico de limitação do
campo de experiências implicado na circulação massiva de quadros de patologias, na
transformação reiterada de sofrimento em patologias específicas.

187
ADORNO e alli.,; Studies in the Authoritarian personality, p. 157
Isto explica muito dos dois processos principais em jogo na compreensão do
fascismo proposta por Adorno e Horkheimer. O primeiro diz respeito a definição da
estrutura projetiva da paranoia como ponto de partida para a análise do fascismo. Na
paranoia, a relação ao mundo dos objetos é marcado pela projeção, graças a qual os
conflitos internos ao aparelho psíquico são expulsos e retornam sob a forma de delírios.
Vimos como Adorno e Horkheimer reconheciam que todo pensamento tinha uma
dimensão projetiva. No entanto, o que diferencia percepção e delírio é certa
capacidade de retificação da experiência através da internalização dos fracassos da
projeção. A isto, os dois chamavam de “reflexão duplicada”. Esta capacidade de
retificação da experiência inexistiria no fascismo, pois não há internalização do
princípio de resistência dos objetos.
Vimos como tal ausência de retificação da experiência era resultado da
generalização da reificação da estrutura do conhecimento. Neste ponto, Adorno
introduzia sua teoria da semiformação. A este respeito, notemos o sentido de
afirmações como:

Hoje, mais provavelmente, as áreas rurais são criadouros de semiformação. Lá,


sobretudo graças aos meios de comunicação de massa como o rádio e a
televisão, o mundo de representação pré-burguesa, essencialmente apegado à
religião tradicional, está subitamente despedaçado. Ele está suplantado pelo
espírito da indústria cultural; todavia, o a priori do conceito propriamente
burguês de formação, a autonomia, não teve tempo para se formar. A
consciência passa imediatamente de uma heteronomia a outra; em vez da
autoridade da bíblia, se coloca a do campo de esportes, da televisão e das
“histórias verdadeiras” que se sustentam na exigência do literal, da factualidade
do aqui e agora da imaginação produtiva. O ameaçador ali, que no Reich de
Hitler se revelou amplamente mais drástico do que as questões relativas à mera
sociologia da formação, quiçá até hoje dificilmente foi enxergado de maneira
correta188.

O que diz Adorno? Ele não afirma que semiformação diga respeito a uma
incapacidade da circulação de informações, do acesso a conhecimento produzir por si
só autonomia. Ao contrário, “a consciência passa de uma heteronomia a outra”, da
autoridade de bíblia, à autoridade da indústria cultural, à autoridade dos que
denunciam a verdade expressa em complots inimagináveis. Em todos esses casos, o
elemento central é a incapacidade de uma relação cognitiva ao mundo sob o fundo de
crise. Digamos que nenhum lugar vazio circula, nenhuma contingência ocorre, nenhum
acaso obriga à revisão. Semiformação não está ligada à falta de acesso à pretensa
totalidade do saber, mas impossibilidade de lidar com a fragilidade do saber, com os
descompassos entre experiência e saber. Isto pede não apenas uma descrição

188
ADORNO, Teoria da semiformação
sociológica das modalidades de circulação do saber, mas uma descrição psicológica da
relação entre saber e desejo, do saber como anteparo a certas formas de desejo.

O problema da identificação narcísica

Assim, se nos perguntarmos porque certos sujeitos abraçam semiformações,


devemos nos dirigir ao outro polo do diagnóstico do fascismo como patologia social, a
saber, a redução dos processos identificatórios a identificações narcísicas. Adorno sabe
que nossa era é uma era marcada pelo declínio da autoridade paterna. Este era um
tópico presente nos trabalhos dos frankfurtianos desde os anos trinta. Isto significa,
entre outras coisas, que as figuras de autoridade não poderiam mais se constituir a
partir de representações paternas e ideais sublimados e tipos sociais marcados pelo
auto-controle de seus próprios desejos. As identificações não serão simbólicas, elas
serão imaginárias. Por isto, as identificações só poderiam ocorrer com personalidades
que são a projeção narcísica do próprio sujeito.
Isso faz o líder fascista tender a aparecer como “o alargamento da própria
personalidade do sujeito, uma projeção coletiva de si mesmo, ao invés da imagem de
um pai cujo papel durante a última fase da infância do sujeito pode bem ter decaído na
sociedade atual”189. Adorno explora tal traço ao afirmar que:

uma das características fundamentais da propaganda fascista personalizada é o


conceito de ‘pequeno grande homem’, uma pessoa que sugere, ao mesmo
tempo, onipotência e a ideia de que ele é apenas mais um do povo, um simples,
rude e vigoroso americano, não influenciado por riquezas materiais ou
espirituais190.

Pois as identificações não são construídas a partir de ideais simbólicos. Elas são
basicamente identificações narcísicas que parecem compensar o verdadeiro sofrimento
psíquico do “declínio do indivíduo e sua subsequente fraqueza”191, um declínio que
não é apenas apanágio de sociedades abertamente totalitárias. Isto talvez explique
porque este “mais um do povo” possa ser expresso não apenas pela simplicidade, mas
às vezes pelas mesmas fraquezas que temos ou que sentimos, pela mesma revolta
impotente que expressamos. Daí porque: “o líder pode adivinhar as necessidades e
vontades psicológicas desses suscetíveis à sua propaganda porque ele se assemelha a
eles psicologicamente, e deles se distingue pela capacidade de expressar sem inibição o
que está latente neles, isto ao invés de encarnar uma superioridade intrínseca”192. Ao
descrever de maneira mais precisa o processo imanente às identificações narcísicas,
Adorno dirá:

189
ADORNO, Theodor; op.cit., p. 418
190
Idem, p. 421
191
Idem, p. 411.
192
ADORNO, Theodor; “Democratic leadership and mass manipulation”, op. cit., p. 427
A fragilidade do eu [tema que Adorno traz do psicanalista Hermann Nunberg]
que retrocede ao complexo de castração, procura compensação em uma
imagem coletiva e onipotente, arrogante e, assim, profundamente semelhante ao
próprio eu enfraquecido. Esta tendência, que se incorpora em inumeráveis
indivíduos, torna-se ela mesma uma força coletiva, cuja extensão até agora não
se estimou corretamente193.

Ou seja, a figura da liderança fascista é uma compensação à experiência efetiva


de enfraquecimento do Eu, ameaçado pelo complexo de castração. Marcado pelo seu
enfraquecimento, o Eu não é capaz de estabelecer mediação alguma com aquilo que
não lhe é absolutamente semelhante. Toda capacidade de afinidade mimética será
brutalmente denegada, toda presença da alteridade é vista como fonte de frustração.
Neste sentido, Adorno é um dos primeiros a compreender a funcionalidade do
narcisismo enquanto modo privilegiado de vínculo social em uma sociedade de
enfraquecimento da capacidade de mediação do eu, adiantando em algumas décadas
problemas que levarão às discussões sobre a “sociedade narcísica”. Ele sabe como tal
fraqueza permite, através da consolidação narcísica da personalidade com suas reações
diante da consciência tácita da fragilidade dos ideais do eu, aquilo que chama de
expropriação do inconsciente pelo controle social, ao invés de transformar o sujeito
consciente de seu inconsciente. O que serve para nos lembrar como estas apropriações
frankfurtianas de considerações freudianas servem, entre outras coisas, para nos
mostrar como o autoritarismo em suas múltiplas versões não é apenas uma tendência
que aparece quando a individualidade é dissolvida. Ele é potencialidade inscrita na
própria estrutura narcísica dos indivíduos modernos de nossas democracias liberais. O
que não poderia ser diferente para alguém que afirma: “Quanto mais nos aprofundamos
na gênese psicológica do caráter totalitário, tanto menos nos contentamos em explicá-
lo de forma exclusivamente psicológica, e tanto mais nos damos conta de que seus
enrijecimentos psicológicos são um meio de adaptação a uma sociedade enrijecida”194.
Por ter que lidar com uma sociedade enrijecida, a constituição moderna do
indivíduo é potencialmente autoritária, pois ela é narcísica, com tendência a projetar
para fora o que parece impedir a constituição de uma identidade autárquica e unitária,
além de continuamente aberta à identificação com fantasias arcaicas de amparo e
segurança. Conhecemos a ideia clássica segundo a qual situações de anomia, famílias
desagregadas e crise econômica são o terreno fértil para ditaduras. Um pouco como
quem diz: lá onde a família, a prosperidade e a crença na lei não funcionam bem, lá
onde os esteios do indivíduo liberal entram em colapso, a voz sedutora dos discursos
totalitários está à espreita. No entanto, se realmente quisermos pensar a extensão do
totalitarismo, seria interessante perguntar por que personalidades autoritárias aparecem
também em famílias muito bem ajustadas e sólidas, em sujeitos muito bem adaptados a
nossas sociedades e a nosso padrão de prosperidade.

193
ADORNO, Theodor; Ensaios de psicologia social e psicanálise, São Paulo: Unesp, 2015
194
ADORNO, Theodor; Ensaios de psicologia social e psicanálise, op. cit.
A personalidade autoritária

Este é o horizonte dos Estudos sobre a Personalidade Autoritária, publicados em 1950


e desenvolvidos por Theodor Adorno e pelos psicólogos Else Frenkel-Brunswik,
Daniel Levinson e R. Nevitt Sandford. Trata-se de um largo estudo sobre indivíduos
potencialmente fascistas. Ele parte da premissa de que convicções políticas,
econômicas e sociais formam uma “mentalidade” que expressa tendências de uma
“personalidade”. Tal personalidade seria responsável seria essencialmente “uma
organização de necessidades”, uma estrutura que, ainda que sempre modificável, é
frequentemente muito resistente a transformações fundamentais:

As forças da personalidade são primariamente necessidades (pulsões, desejos,


impulsos emocionais) que variam de um indivíduo a outro em sua qualidade,
intensidade, modo de gratificação e objetos aos quais se vinculam, e que
interagem com outras necessidades em padrões conflituais ou harmônicos195.

Notemos como, sem mencioná-lo, esse estudo recupera a intuição de Reich em


Psicologia das massas e fascismo a respeito do fascismo como um tipo de
personalidade. Lembremos como Reich determinava uma etiologia de tal personalidade
através do destino do processo de socialização das pulsões sexuais, o que não será o
caso nesse estudo. Mas mesmo não oferecendo uma etiologia da personalidade
autoritária, o estudo insiste na existência de um padrão geral de comportamento
marcado pela permanência estrutural de dinâmicas de segregação que facilmente
podem evoluir para comportamentos abertamente fascistas. Há um “fascismo
potencial” naturalizado em práticas de segregação que habitam de forma extensiva no
interior de nossas democracias liberais. Potencialidade que indica como indivíduos
diferem em sua suscetibilidade a propaganda antidemocrática. Daí porque se trata de
insistir que as práticas de segregação não são fenômenos isolados, mas parte de um
quadro ideológico mais amplo que dá forma à personalidade. Alguém hostil em
relação a uma minoria é normalmente hostil a uma variedade de outros grupos. O que
nos leva a compreender a personalidade como uma espécie de “ideologia privada”.
Uma das inovações fundamentais dessa pesquisa consistiu em levar a sério a
compreensão de que tal personalidade é formada, inclusive, por elaborações
inconscientes que não são imediatamente acessíveis aos próprios sujeitos. O que lhe
levou a desenvolver um modelo de abordagem que privilegia questões indiretas, que
trabalha com “níveis” no interior da personalidade. Isto os levou a questionários
compostos por questões fatuais, escalas de atitude e opiniões, além de questões
‘projetivas’. A expectativa era de que tal formato de questionário permitiria
inferências sobre níveis profundos da personalidade dos sujeitos.

195
ADORNO e alli.; Studies no authoritarian personality, p. 155
O sistema de escalas era composto por três escalas visando avaliar níveis de
anti-semitismo, de etnocentrismo e de conservadorismo político-econômico. Com o
desenrolar da pesquisa, ficou claro que as escalas de anti-semitismo e de etnocentrismo
tendiam a se correlacionar com um horizonte fascista que permitiu a constituição do
que será conhecido como “escala F”. Trata-se de um questionário composto por um
conjunto de 77 questões visando medir o potencial fascista da personalidade em
questão. Tais questões estavam divididas em eixos que visavam medir:
convencionalismo, submissão autoritária, anti-intracepção, superstição e estereotipia,
poder e rudeza, destrutividade e cinismo, projetividade e sexo. Já o universo da
pesquisa era composto tanto de voluntários da Universidade de Berkeley e Oregon
quanto por pacientes da clínica psiquiátrica da Universidade da California, prisioneiros
da Prisão estadual de San Quentin, membros de sindicatos, grupos de fieis de igrejas,
além de membros do Rotary club.
Por fim, lembremos como esta procura por uma “personalidade autoritária”
visava explicar porque os padrões de comportamento e de adesão fascista não estavam
vinculados diretamente a classes, mas a estruturas psicológicas. Em situações de
fascismo não é incomum indivíduos irem contra seus próprios interesses materiais.
Pois não se trata de compreender tais ações como ações de indivíduos maximizadores
de interesses, mas como sujeitos motivados por sonhos, fantasias e delírios.
Psicologias do fascismo
Aula 13

Na aula de hoje, começamos nosso último módulo. Ele é dedicado à compreensão das
estruturas afetivas do fascismo, do neoliberalismo, além de apresentar de uma proposta
de superação de processos de regressão de laços sociais, desenvolvida por Freud.
Trata-se de discutir as bases afetivas do fascismo, sua perpetuação no interior do
neoliberalismo e a resposta freudiana a tal desafio. Tendo isto em vista, gostaria de
começar através da discussão de certos aspectos da teoria do poder de um dos mais
influentes teóricos que deram suporte ao nazismo, a saber, o jurista alemão Carl
Schmitt. Schmitt é o teórico de uma visão de estado, de política e de poder que se
realiza de forma explícita através do nazismo alemão. No entanto, sua astúcia vem do
fato de, no mesmo movimento, explicitar, dinâmicas presentes no interior da tradição
de nossa filosofia política.
Há várias formas de abordar sua teoria, mas eu gostaria de explorar uma de
maneira privilegiada. Ela concerne a compreensão do fundamento do estado a partir de
certa teoria dos afetos. Podemos encontrar este ponto em sua leitura da filosofia
política de Thomas Hobbes. A leitura de Hobbes feita por Schmitt não é apenas rica.
Ela explicita, em um vocabulário aberto, uma concepção de política que ultrapassa o
quadro do absolutismo hobbesiano. Para tanto, proponho seguir tal leitura,
reconstruindo alguns aspectos importante da teoria do Estado de Thomas Hobbes.

O fantasma da guerra total

Partamos da definição célebre de Hobbes:

Durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de


mantê-los todos em temor respeitoso eles se encontram naquela condição a que
se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os
homens196.

Daí porque: “a origem de todas as grandes e duradouras sociedades não provém


da boa vontade recíproca que os homens teriam uns para com os outros, mas do medo
recíproco que uns tinham dos outros”197. Esta definição determina uma das condições
centrais do estado de natureza, a saber, a insegurança e a guerra iminente. Uma guerra
que não é apenas o tempo da batalha, mas a disposição contínua à violência contra o
outro. É uma reflexão sobre a guerra que funda a reflexão política moderna. Ou seja, o
problema político fundamental em Hobbes estará ligado ao destino da destrutividade,
ao destino desta “inimizade” beligerante. A saída do estado de natureza e de sua guerra
de todos contra todos, estado este resultante de uma igualdade natural que não implica
196
HOBBES, Thomas; Leviatã, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 109.
197
HOBBES, Thomas; Do cidadão, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 28
consolidação da experiência do bem comum mas conflito perpétuo entre interesses
concorrenciais, se faria pelas vias da internalização de um “temor respeitoso”
constantemente reiterado e produzido pela força de lei de um poder soberano. Pois:

se os bens forem comuns a todos, necessariamente haverá de brotar


controvérsias sobre quem mais gozará de tais bens, e de tais controvérsias
inevitavelmente se seguirá o tipo de calamidades, as quais, pelo instinto natural,
todo homem é ensinado a esquivar198.

Proposição que ilustra como as individualidades seriam animadas por algo como uma
força de impulso dirigido ao excesso. Não pode haver bens comuns porque há um
desejo excessivo no seio dos indivíduos, desejo resultante da “natureza ter dado a cada
um direito a tudo”199 sem que ninguém esteja assentado em alguma forma de lugar
natural. Como lembrará Leo Strauss, a respeito de Hobbes: “o homem
espontaneamente deseja infinitamente”200. Tal excesso aparece, necessariamente para
Hobbes, não apenas através do egoísmo ilimitado, mas também através da cobiça em
relação ao que faz o outro gozar, da ambição por ocupar lugares que desalojem aquele
que é visto preferencialmente como concorrente. Pois o excesso, como é traço comum
de todos os homens, só pode acabar como desejo pelo mesmo. “Muitos, ao mesmo
tempo, têm o apetite pelas mesmas coisas”201. A guerra será inevitável se lembrarmos
que o direito natural (jus naturalis) é o direito de tudo fazer para preservar minha
própria natureza, ou seja, minha vida. Da mesma forma, a lei natural (lex naturalis)
prescreve a proibição de fazer e aceitar aquilo que é destrutivo à minha vida. Assim,
Hobbes descreve como o aparecimento histórico de uma sociedade de indivíduos
liberados de toda forma de lugar natural ou de regulação coletiva predeterminada só
pode ser compreendido como o advento de uma “sociedade da insegurança total”202.
Este ponto é fundamental pois é a possibilidade efetiva da morte violenta que definirá a
necessidade de emergência do político.
Notemos pois como o conflito entre indivíduos se dá como consequência
necessária da expressão da natureza de seus desejos. É na verdade uma reflexão sobre
o desejo como disposição humana fundamental que inaugura uma das bases da filosofia
política moderna. O que demonstra como o desejo é, para os modernos, uma categoria
política por excelência. Segundo Hobbes, os desejos são miméticos. Deseja-se o
mesmo que o outro, vejo como o outro deseja para saber como desejar, ou seja, há
desde o início uma certa forma de dependência entre os seres humanos, mas esta
racionalidade mimética não se traduz em empatia ou tendência à cooperação. Ela se
traduz em rivalidade e violência direta. É a expressão do desejo que coloca os

198
HOBBES, Thomas; Do cidadão, op. cit., p. 7
199
Idem, p. 30
200
STRAUSS, Leo; The political philosophy of Thomas Hobbes, University of Chicago Press, 1963, p.
10
201
HOBBES, Do cidadão, p. 30
202
CASTEL, Robert; L’insécurité sociale: qu’est-ce qu’être protégé?, Paris: Seuil, 2003, p. 13
indivíduos na rota de uma luta de vida ou morte. No entanto, esta luta não pode ser
regulada pelos próprios contendores. Dela, não emerge nada a não ser um impasse, já
que todos os indivíduos são portadores de força relativamente igual. A força maior de
um não irá muito mais além do que a força de dois ou três unidos. A luta só pode ser
superada então através da introdução de um terceiro elemento, que neutraliza a
rivalidade da relação dual, a saber, através da instauração do direito e do Estado. Daí
esta definição de Schmitt: “Para Hobbes, o Estado não é outra coisa que a guerra civil
constantemente impedida por meio de um força ilimitada”203.
No entanto, há de se entender melhor qual é a natureza deste direito. É ele
expressão da liberdade dos indivíduos e sua capacidade de criar instituições? Ou é o
Estado a expressão de uma coerção consentida, de uma restrição legítima como
condição para a não desagregação do laço social? Qual a natureza do pacto que
produz o advento do Estado?
A fim de responder tal questão percebamos que é contra a destrutividade
amedrontadora desse excesso que coloca os indivíduos em perpétuo movimento,
fazendo-os desejar o objeto de desejo do outro, levando-os facilmente à morte violenta,
que se faz necessário o Estado. Ou seja, como nenhuma forma de pacto imanente entre
indivíduos é possível, como a própria figura do indivíduo portador de interesses já é a
consolidação da inevitabilidade do conflito, já que luto pelos meus interesses a
despeito dos interesses do outro, não haverá outra saída para a regulação social do que
o aparecimento de uma força externa chamada de “governo” capaz de estabelecer um
pacto feito da auto-restrição mútua e da limitação de si.
Notemos, no entanto, um ponto importante. Este estado de natureza é composto
de indivíduos que parecem naturalizar princípios de conduta baseados na concorrência,
no sentimento de posse e na propriedade. Daí porque Hobbes dirá que os três
principais motivos de conflito são: a concorrência, a desconfiança e a glória. Ou seja, e
esta é uma tese avançada pela primeira vez por Macpherson no clássico A teoria do
individualismo possessivo, tudo se passa como se Hobbes tivesse naturalizado a
emergência do indivíduo moderno liberal em situação de ator animado pela exigência
de reconhecimento de seus interesses, colocando-o no fundamento de uma antropologia
normativa do humano. Mesmo sem ser exatamente um teórico liberal, já que Hobbes
submete o direito da propriedade individual às condições de sobrevivência do Estado,
vemos claramente como sua teoria política é, na verdade, resultado da naturalização
antropológica dos pressupostos imanentes à individualidade liberal.

O medo como afeto que funda o laço social

Neste sentido, há de se estar atento para o circuito de afetos que constituirá o


fundamento possível desta forma de vida social. Pois a possibilidade mesma da
existência do governo e, por consequência, ao menos neste contexto, a possibilidade de
estabelecer relações através de contratos que determinem lugares, obrigações,

203
SCHMITT, Carl; Le Leviathan dans la doctrine d’état de Thomas Hobbes, p. 86
previsões de comportamento, fornecendo à sociedade sua racionalidade, estaria
vinculada à circulação do medo como afeto instaurador e conservador de relações de
autoridade. A emergência do indivíduo moderno é indissociável da elevação do medo
à condição de afeto social central. Ninguém melhor que Carl Schmitt descreve os
pressupostos desta passagem hobbesiana do estado de natureza ao contrato fundador da
vida em sociedade:

Este contrato é concebido de maneira perfeitamente individualista. Todos os


vínculos e todas as comunidades são dissolvidos. Indivíduos atomizados se
encontram no medo, até que brilhe a luz do entendimento criando um consenso
dirigido à submissão geral e incondicional à potência suprema204.

Notemos o sentido da elevação do medo como afeto político instaurador de


laços sociais. Esse medo teria a força de estabilizar a sociedade, paralisar o movimento
e bloquear o excesso das paixões, viabilizando assim a perpetuação de nossas formas
sociais. Isto leva comentadores, como Remo Bodei, a insistir em uma “cumplicidade
entre razão e medo”, não apenas porque a razão seria impotente sem o medo, mas
principalmente porque o medo seria, em Hobbes, uma espécie de “paixão universal
calculadora” por permitir o cálculo das consequências possíveis a partir da memória
dos danos, fundamento para a deliberação racional e a previsibilidade da ação205. Ou
ainda, como dirá Esposito, em Hobbes, o medo “não determina apenas fuga e
isolamento, mas também relação e união. Não se limita a bloquear e imobilizar, mas
ao contrário, leva a refletir e neutralizar o perigo: não tem parte com o irracional, mas
com a razão. É uma potência produtiva. Politicamente produtiva: produtiva de
política”206. Por isto, o medo ligado à força coercitiva da soberania, ou seja, o medo
que tenho do soberano, deve ser visto apenas como certa astúcia para defender a vida
social de medo maior:

porque os vínculos das palavras são demasiado fracos para refrear a ambição, a
natureza, a avareza, a cólera e outras paixões dos homens, se não houver o
medo de algum poder coercitivo – coisa impossível de supor na condição de
simples natureza, em que os homens são todos iguais, e juízes do acerto dos
seus próprios temores (2003, p. 119).

É verdade que Hobbes também afirma: “As paixões que fazem os homens
tenderem para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias
para uma vida confortável e a esperança de consegui-las por meio do trabalho”207. Ou

204
SCHMITT, Carl; Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un
symbole politique, Paris: Seuil, 2002, p. 95.
205
BODEI, Remo; Geometria delle passioni: Paura, speranza, felicità – filosofia e uso politico, Milão:
Feltrinelli, 2003, p. 86.
206
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op.cit., p. 6
207
HOBBES, Thomas; Leviatã, p. 111
seja, parece não haver apenas um afeto, mas três: medo, desejo e esperança. Da mesma
forma, ele lembra que, sendo a força da palavra demasiado fraca para levar os homens
a respeitarem seus pactos, haveria duas maneiras de reforçá-la: o medo ou ainda o
orgulho e a glória por não precisar faltar com a palavra. Tais considerações parecem
abrir espaço à circulação de outros afetos sociais, como a esperança e um tipo
específico de amor-próprio ligado ao reconhecimento de si como sujeito moral. Renato
Janine Ribeiro, por exemplo, insistirá que “pode-se reduzir a pares a multiplicidade das
paixões: medo e esperança, aversão e desejo ou, em termos físicos, repulsão e atração.
Mas não é possível escutar a filosofia hobbesiana pela nota só do medo, que não existe
sem o contraponto da esperança”208.
No entanto, a antropologia hobbesiana faz com que tais afetos circulem apenas
em regime de excepcionalidade, o que fica claro em afirmações como: “de todas as
paixões, a que menos faz os homens tender a violar as leis é o medo. Mais: excetuando
algumas naturezas generosas, é a única coisa que leva os homens a respeitá-las”209.
Faltaria à maioria dos homens a capacidade de se afastar da força incendiária das
paixões e atingir esta situação de esfriamento na qual o vínculo político não precisaria
fazer apelo nem ao temor nem sequer ao amor (que, enquanto modelo para a relação
com o Estado, acaba por construir a imagem da soberania à imagem paterna,
modelando a política na família). Ou seja, o esfriamento das paixões aparece como
função da autoridade soberana e condição para a perpetuação do campo político,
mesmo que tal esfriamento se pague com a moeda da circulação perpétua de outras
paixões que parecem nos sujeitar à contínua dependência.
Por isto, mais do que expressão de uma compreensão antropológica precisa,
que daria a Hobbes a virtude do realismo político resultante da observação
desencantada da natureza humana, seu pensamento possui como horizonte uma lógica
do poder pensada a partir de uma limitação política, no caso, a impossibilidade de
pensar a política para além dos dispositivos que transformam o amparo produzido pela
segurança e pela estabilidade em afeto mobilizador do vínculo social. Política na qual
“o protego ergo obligo é o cogito ergo sum do Estado”210. Difícil não chegar em uma
situação na qual esperamos finalmente por “um quadro jurídico no interior do qual não
exista realmente mais conflitos – apenas regras a colocar em vigor”211. O que fica claro
em afirmações como:

entre os homens são muitos os que se julgam mais sábios e mais capacitados do
que os outros para o exercício do poder público. E esses esforçam-se por
empreender reformas e inovações, uns de uma maneira e outros doutra,
acabando assim por levar o país à perturbação e à guerra civil212.

208
RIBEIRO, R.J.; Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu tempo, Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2004, p. 23
209
HOBBES, Leviatã, p. 253
210
SCHMITT, Carl; O conceito do político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 56
211
BALIBAR, Etienne; Violence et civilité, Paris: Galilée, 2010, p. 56
212
HOBBES, Thomas; Leviatã, op. cit., p. 146
As reformas e inovações são um convite à perturbação e à guerra civil. Pois o
estado hobbesiano é, acima de tudo, um Estado de proteção social, ou seja, Estado
baseado na promessa de amparo, que se serve de todo poder possível, instaurando um
domínio de legalidade própria neutro em relação a valores e verdade. Estado que
precisa realizar sua tarefa sem constrangimento externo algum, ou seja, como uma
máquina administrativa que desconhece coerções em sua função de assegurar a
existência física daqueles que domina e protege. Um Estado construído a partir da
dessocialização de todo vínculo comunitário, constituindo-se como o espaço de uma
“relação de não-relações”213.
Não é por acaso que este Estado será comparado a um Leviatã. A metáfora não
poderia ser mais adequada. O Leviatã é um monstro aquático dotado de força
descomunal que aparece no Livro de Jó. O contexto de sua aparição é sintomático.
Sem entender os desígnios divinos, enfermo e despossuido de tudo o que tinha, Jó
expressa sua perplexidade. Sendo um servo temente, por que sofre tanto? Jeová então
lhe aparece não para lhe responder a apazigua-lo, mas para mostrar a desmedida entre a
ciência divina e a ciência humana. Ou seja, ele está diante de Jó para dizer : quem és
tu que questiona meus desígnios? Neste contexto, Jeová apresenta a figura de duas
forças descomunais: uma aquática (o Leviatã) e outra terrestre (Behemooth). “Não há
nada mais tremendo sobre a terra que se lhe possa comparar”, dirá a Bíblia. Um poder
o mais potente, supremo e sem partilha. Ou seja, fazer do Estado um Leviatã é
inscrever-lhe a força de uma imagem teológica que visa anular o sofrimento e a
restrição como disposição de revolta. Daí porque Schmitt dirá, que o Estado aparece aí
como: “uma totalidade mítica, compreendendo o deus, o homem e a máquina”214. Ele
precisa ser dotado de uma força absoluta a fim de realizar seu designo de proteção. Isto
significa que sua autoridade não se deixa limitar por valores e verdade. Seu
mandamento é uma decisão soberana não restringida por nada, única forma de evitar o
conflito inevitável de interpretações e a sedição. Daí afirmações como:

Ou bem esse Estado é realmente existente como estado, e então ele funciona
como o instrumento irresistível de calma, segurança e ordem, e todo o direito
objetivo, assim como o subjetivo, está de seu lado, pois enquanto legislador
único e supremo ele edita todo o direito; ou então ele não existe realmente e
não realiza sua função de assegurar a paz, e novamente é o estado de natureza
que reina, não havendo simplesmente mais Estado215.

Por isto, não é possível dizer que o Estado opere aqui a partir de uma lógica do
reconhecimento. Ele opera, ao contrário, através da impossibilidade de reconhecer
aquilo que seria constitutivo da natureza humana. Pois há uma violência elevada à

213
ESPOSITO, Roberto; Communitas, op. cit., p. 12
214
SCHMITT, Carl; Le Leviathan …, p. 84
215
Idem, p. 107
condição de determinação metafísica do humano. Violência que só pode aparecer
como desagregação de todo e qualquer laço social. Notem que há uma decisão, prenhe
de consequências, que faz a violência vinda do caráter excessivo do desejo ser
expressa apenas como tendência à despossessão do outro, de sua vida e de seus bens.
Cabe ao Estado usar o medo para impor aos indivíduos a limitação de seus
desejos e a restrição de suas possibilidades de reconhecimento. Cria-se assim uma
duplicidade fundamental na estrutura dos sujeitos que são cidadãos e cidadãs de tal
Estado. Como cidadão e cidadã do Estado ajo como sujeito capaz de me auto-limitar,
sujeito dotado de controle. No entanto, o que me vincula a tal personalidade é um afeto
responsável pela restrição e repressão de meus reais impulsos. Por isto, a própria
noção de personalidade será comparada por Hobbes a uma máscara, recobrando o
sentido originário do termo persona entre os gregos. Máscara que não reconhece, mas
que encobre algo a ser reprimido para que o laço social possa existir.
Mas há um ponto no qual essa força é quebrada, ao menos no interior da teoria
de Hobbes. Pois há uma única limitação que Hobbes reconhece ao poder do Estado.
Ela se refere ao direito dos indivíduos à auto-defesa quando a vida está ameaçada pelo
poder soberano, o que decorre do respeito ao primeiro direito natural. Se o soberano
atenta contra minha vida, tenho o direito de a ele me contrapor, pois o que me liga a ele
é um pacto de proteção que não existe mais. No entanto, o soberano guarda o direito
de continuar sua ação contra mim já que pode tudo fazer para garantir a proteção
social e a permanência do Estado.
Nesta mesma linha, Schmitt dirá que o germe de morte que destruiu o Leviatã
foi a preservação da liberdade interior de pensamento e de crença. Teria sido por este
caminho que o “pensamento judeu liberal” de Spinoza teria se aproveitado para
distinguir a obrigação dos rituais do culto exterior e a liberdade da crença privada,
reduzindo paulatinamente o Estado a uma mera aparência reguladora, a um garantidor
do direito à opinião individual. Este seria o caminho para uma situação na qual o
Estado não poderia mais reduzir os conflitos no seio da sociedade à condição de
“distúrbios” e tentativas de rebeliões.

A função do amparo

Mas nos atentemos para outro aspecto do nosso problema. Ele diz respeito ao
modelo geral de gestão social quando as exigências de reconhecimento são bloqueadas.
Pois o Estado não será apenas a instância que opera a repressão. Ele será o gestor da
lembrança contínua de que há algo a se reprimir. Ele não será apenas o bombeiro da
vida social, mas também o próprio piromaníaco. Pois o fato fundamental no interior
desta relação de não-relações é a necessidade que a legitimação da soberania pela
capacidade de amparo e segurança tem da perpetuação contínua da imagem da
violência desagregadora à espreita, da morte violenta iminente caso o espaço social
deixe de ser controlado por uma vontade soberana de amplos poderes. O segredo da
legitimidade do Estado é a perpetuação da iminência da guerra de todos contra todos.
O fundamento fantasmático deste Estado será a figura do conflito social reduzida à
condição de guerra de todos contra todos. Daí uma conclusão importante de Agamben:
“A fundação não é um evento que se cumpra uma vez por todas in illo tempore, mas é
continuamente operante no estado civil na forma da decisão soberana”216. Este
mecanismo de fundação que necessita ser continuamente reiterado diz muito a respeito
da continuidade do medo como força de reiteração da relação do Estado ao seu
fundamento.
Sendo o Estado nada mais que “a guerra civil constantemente impedida através
de uma força insuperável”217, ele precisa provocar continuamente o sentimento de
desamparo, da iminência do estado de guerra, transformando-o imediatamente em
medo da vulnerabilidade extrema, para assim legitimar-se como força de amparo
fundada na perpetuação de nossa dependência. Na verdade, devemos ser mais precisos
e lembrar que a autoridade soberana tem sua legitimidade assegurada não apenas por
instaurar uma relação baseada no medo para com o próprio soberano, mas
principalmente por fornecer a imagem do distanciamento possível em relação a uma
fantasia social de desagregação imanente no laço social e de risco constante da morte
violenta. Uma fantasia social que Hobbes chama de “guerra de todos contra todos”. É
através da perpetuação da iminência de sua presença que a autoridade soberana
encontra seu fundamento. É alimentando tal fantasia social que se justifica a
necessidade do “poder pacificador” da representação política, ou seja, do abrir mão de
meu direito natural em prol da constituição de um representante cujas ações soberanas
serão a forma verdadeira de minha vontade. Só assim o medo poderá “conformar as
vontades de todos”218 os indivíduos, como se fosse o verdadeiro escultor da vida social.
É importante ainda salientar que essa fantasia pede uma dupla fundamentação.
Por um lado, ela apela à condição presente dos homens. Não sendo uma hipótese
histórica, o estado de natureza é uma inferência feita a partir da análise das paixões
atuais. Isto leva comentadores como Macpherson a afirmar que, longe de ser uma
descrição do ser humano primitivo, ou do ser humano aparte de toda característica
social adquirida, o estado de natureza seria: “a abstração lógica esboçada do
comportamento dos homens na sociedade civilizada” 219.
Hobbes pede que lembremos como “todos os países, embora estejam em paz
com seus vizinhos, ainda assim guardam suas fronteiras com homens armados, suas
cidades com muros e portas, e mantém uma constante vigilância”. Lembra ainda como
os “particulares não viajam sem levar sua espada a seu lado, para se defenderem, nem
dormem sem fecharem – não só as portas, para proteção de seus concidadãos – mas
até seus cofres e baús, por temor aos domésticos”220. Mas notemos um ponto central.

216
AGAMBEN, Giorgio; Homo sacer, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 115.
217
SCHMITT, Carl; Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes: sens et échec d’un
symbole politique, op. cit., p. 86
218
HOBBES, Thomas; Leviatã, op. cit., p. 147
219
MACPHERSON, C.B.; The political theory of possessive individualism: Hobbes to Locke, Oxford
University Press, 1962, p. 26.
220
HOBBES, Thomas; Do cidadão, p. 14.
A espada que carrego, as trancas na minha porta e em meus baús, os muros da cidade
na qual habito são índices não apenas do desejo excessivo que vem do outro. Eles são
índices indiretos do excesso do meu próprio desejo. Como se Hobbes afirmasse: “olhe
para suas trancas e você verá não apenas seu medo em relação ao outro, mas o excesso
de seu próprio desejo que lhe desampara por querer lhe levar a situações nas quais
imperam a violência e o descontrole da força”. A retórica apela aqui a uma
universalidade implicativa.
De toda forma, como não se trata de permitir que configurações atuais sejam,
de maneira indevida, elevadas à condição de invariante ontológica, faz-se
absolutamente necessário também a produção contínua dessas construções
antropológicas do exterior caótico e do passado sem lei. Ou seja, mesmo não sendo
uma hipótese histórica, não há como deixar de recorrer à antropologia para pensar o
estado de natureza. Assim, aparecem construções como esta que leva Hobbes a
acreditar que:

os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do governo de


pequenas famílias, cuja concórdia depende da concupiscência natural, não
possuem nenhuma espécie de governo, e vivem nos nossos dias daquela
maneira brutal que antes referi221.

Ou seja, sociedades sem Estado como nós, os povos de muitos lugares da América, são
mobilizadas continuamente para lembrar à sociedade europeia porque a soberania é
legítima. No interior desta lógica de legitimação, esta é nossa função. Ou ainda:

sabemos disso também tanto pela experiência das nações selvagens que
existem hoje, como pelas histórias de nossos ancestrais, os antigos habitantes
da Alemanha e de outros países hoje civilizados, onde encontramos um povo
reduzido e de vida breve, sem ornamentos e comodidades, coisas essas
usualmente inventadas e proporcionadas pela paz e pela sociedade222.

Sociedades da violência e sociedades da penúria estão à nossa espreita seja em uma


diferença geográfica, seja em uma diferença histórica. Na verdade, sempre deverá
haver um “povo selvagem da América” à mão, o Estado sempre deverá criar um risco
de contaminação da vida social pela violência exterior, independente de onde esse
exterior esteja, seja geograficamente no Novo Mundo ou no Oriente Médio, seja
historicamente em uma cena originária da violência. Ao menos neste ponto, Carl
Schmitt é o mais consequente dos hobbesianos quando afirma que:

Palavras como Estado, república, sociedade, classe e ademais soberania, Estado


de direito, absolutismo, ditadura, plano, Estado neutro ou total etc. são

221
Idem, p. 110.
222
HOBBES, Thomas; Os elementos da lei natural e política, São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 70
incompreensíveis quando não se sabe quem deve ser, in concreto, atingido,
combatido, negado e refutado com tal palavra223.

Neste ponto, será importante ao Estado operar em duas frentes. Primeiro,


colocando continuamente a sociedade em guarda contra os “distúrbios”, as revoltas
internas. Deverá assim sempre haver um princípio de sedição contra o qual deveremos
estar à espreita. Segundo, a função do Estado consistirá em definir quem são os
inimigos, como se gerencia a guerra, que será sua ação fundamental, mesmo que essa
seja uma guerra fria. Isso explica porque Schmitt dirá:

O inimigo político não precisa ser moralmente mau, não precisa ser
esteticamente feio; ele não tem que se apresentar como concorrente econômico
e, talvez, pode até mesmo parecer vantajoso fazer negócios com ele. Ele é
precisamente o outro, o desconhecido e, para sua essência, basta que ele seja,
em um sentido especialmente intenso, existencialmente algo diferente e
desconhecido, de modo que, em caso extremo, sejam possíveis conflitos com
ele, os quais não podem ser decididos nem através de uma normalização geral
empreendida antecipadamente, nem através da sentença de um terceiro “não
envolvido” e, destarte, “imparcial”224.

Ou seja, o inimigo é aquele que mobiliza o caráter polêmico da diferença e do


desconhecimento, o sistema de defesas contra o que me implica como alteridade. Não
haveria vida política sem uma operação desta natureza. A vida política é, para Schmitt,
a mobilização contínua da força tendo em vista a gestão do medo da despossessão
produzido pela existência da diferença. Pois a diferença não é apenas algo que tolero,
ela é o que me transforma e me despossui. Ela me leva a uma forma de vida outra.
Contra isto, uma certa política existe. Ela existe inclusive para impedir outra forma de
diferença, fora do horizonte da guerra, a diferença do “distúrbio”:

Em hipótese alguma se constitui em um progresso no sentido do humanitarismo


proscrever a guerra cerceada do Direito internacional europeu, designando-a
como reacionária e criminosa e, em seu lugar, em nome de uma guerra justa,
desencadear inimizades revolucionárias entre classes e raças que não mais são
capazes, e tampouco o querem, de diferenciar entre inimigo e criminoso225.

223
SCHMITT, Carl; O conceito de político – Teoria do partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 32
224
Idem, p. 28
225
Idem, p. 10
Psicologias do fascismo
Aula 14

Na aula de hoje, gostaria de falar sobre a psicologia do indivíduo neoliberal e sua


estrutura de afetos. Pois lembremos que o neoliberalismo não é apenas um modo de
regulação dos sistemas de trocas econômicas baseado na maximização da concorrência
e do dito livre-comércio. Ele é um regime de gestão social e produção de formas de
vida. Margareth Thatcher mostrou ao menos a virtude da honestidade ao afirmar que “a
economia é o método. O objeto é modificar o coração e a alma”226. Se Thatcher tivesse
lido Foucault, ela complementaria afirmando que o coração e a alma são peças na
dominação que o poder exerce sobre o corpo. Há uma instauração sensível da vida
psíquica cujos mecanismos precisam ser compreendidos. Há de se ter isto em mente
quando se perguntar o que seria então este novo homem neo-liberal, qual sua
economia libidinal.
Neste sentido, toda reflexão sobre o neoliberalismo talvez tenha de partir de um
paradoxo aparente. Poderíamos começar lembrando como o desmantelamento
neoliberal do sistema de seguridade social construído pelos ditos Estados de Bem-estar
a partir dos anos setenta provocou a liberação de um processo de expropriação da
mais-valia absoluta, ou seja, de acumulação econômica através de uma expropriação
baseada na intensificação dos regimes de trabalho e na redução dos salários. Os
números são claros neste sentido: por exemplo, enquanto o PIB norte-americano por
habitante cresceu 36% entre 1973 e 1995, o salário horário de trabalho de não-
executivos (que constitui a maioria dos empregos) caiu em 14%. No ano 2000, o salário
real de não-executivos nos EUA retornou ao que era há cinqüenta anos227. No entanto,
tal processo ocorreu paradoxalmente a partir do momento em que as sociedades
capitalistas não podiam mais constituir sua coesão social e sua adesão psicológica a tal
processo através do recurso aos modelos de internalização psíquica de uma ética do
trabalho de moldes weberianos; devido, entre outras coisas, ao desenvolvimento
exponencial da sociedade de consumo e suas exigências de mobilização total dos
desejos, de enunciação integral dos desejos no interior da esfera da multiplicação da
satisfação mercantil. Neste momento, em que um novo ethos do capitalismo se fazia
necessário, o neoliberalismo conseguiu consolidá-lo através de uma certa expropriação
direta da economia libidinal dos sujeitos.
A disciplina neoliberal não pode ser compreendida como simples conjunto de
condições para a internalização de dinâmicas repressivas capazes de determinar
sujeitos em individualidades rígidas e funcionalizadas, como vemos nas “sanções
psicológicas” da moralidade própria ao espírito protestante do capitalismo, tal como
descrito por Weber. Por serem repressivas, tais estruturas disciplinares produziam
subjetividades clivadas entre exigências de conformação social e uma “outra cena” na

226
THATCHER, Margaret; Interview in http://www.margaretthatcher.org/document/104475
227
Ver, a este respeito, THUROW, Lester ; Les fractures du capitalisme, Paris, Village Mondial, 1997.
qual se alojava a potência desreguladora do desejo. A uniformização disciplinar criava
uma matriz de conflito claramente presente na fratura entre princípio de realidade e
desejo recalcado cujo modelo de sofrimento psíquico era tão claramente expresso nas
neuroses, tais como descritas por Freud. Mas regimes de gestão social que se queiram
realmente eficazes não podem permitir clivagens desta natureza com a consequente
constituição de um polo alternativo de motivações para o agir, que encontrariam
muitas vezes expressão em atividades normalmente dissociadas do universo
compulsivo do trabalho alienado, atividades vistas por este como improdutivas (como o
sexo, a experiência amorosa, o fazer estético, dar aulas sobre o problema da
contradição em Hegel, etc.). Ele deve expropriar todas as esferas que poderiam
fornecer espaço para experiências que não se deixam ler a partir da lógica em operação
na esfera econômica, eliminado os afetos que tais experiências geram. Processo de
expropriação cujas bases foram pela primeira vez descritas através do conceito
frankfurtiano de “dessublimação repressiva”. Mas expropriar só é possível aqui através
da absorção da própria dinâmica pulsional pela lógica econômica, ou seja, através de
uma socialização das pulsões que não passe mais, de forma hegemônica, pelas
clivagens organizadas sob a forma do recalque. Uma socialização que não é
simplesmente retorno à temática da integração das demandas particulares de satisfação
por uma sociedade cada vez mais “hedonista”, topos clássico de uma crítica moral da
sociedade de consumo, mas que se refere à maneira com que a estrutura polimórfica e
disruptiva da ordem das pulsões, sua potência de indeterminação é traduzida em um
novo papel sócio-econômico através de uma forma renovada de gerir conflitos
psíquicos.
O neoliberalismo conseguiu resolver esta equação através da constituição de
um “ideal empresarial de si” como dispositivo disciplinar:

lá onde o liberalismo clássico mantinha uma distinção e às vezes mesmo uma


tensão entre critérios da moral individual ou coletiva e as ações econômicas (de
onde se seguem as diferenças impressionantes de tom, de tipos de questões e
mesmo de prescrições entre A riqueza das nações de Adam Smith e sua Teoria
dos sentimentos morais) o neoliberalismo produz normativamente os indivíduos
como atores empreendedores, endereçando-se a eles como tais, em todos os
domínios de suas vidas 228.

Assim, se nos perguntarmos sobre como foi possível colocar em marcha um processo
de recentragem da acumulação através da extração da mais-valia absoluta no momento
em que não havia mais condições para apelar à ética protestante do trabalho,
responderemos que devemos estar atentos a a maneira com que um certo

228
BROWN, Wendy; Les habits neuf de la politique mondiale: néolibéralisme et néoconservatisme,
Paris: Les Prairies Ordinaires, 2007, p. 54
“consentimento moral”229 a tal expropriação, vindo exatamente daqueles que dela mais
sofrem, constitui-se graças ao impacto psíquico da internalização de um “ideal
empresarial de si”. Graças à internalização de tal ideal, o risco de insegurança social
produzido pela desregulamentação do trabalho foi suplantado pela promessa de
plasticidade absoluta das formas de vida produzidas como propriedades de projetos
individuais; tal desregulamentação se traduziu em liberação da potencialidade de
constituir projetos conscientes de formas de vida, da mesma forma que a intensificação
do desempenho e das performances exigida pelo ritmo econômico neoliberal se
transformou em um peculiar modo subjetivo de gozo. Assim, o medo do risco
provocado pela insegurança social pode aparecer como covardia moral.
Este ideal empresarial de si foi o resultado psíquico necessário da estratégia
neoliberal de construir uma “formalização da sociedade com base no modelo da
empresa”230, o que permitiu à lógica mercantil, entre outras coisas, ser usada como
tribunal econômico contra o poder público. Pois é fundamental ao neoliberalismo “a
extensão e disseminação dos valores do mercado à política social e a todas as
instituições”231. A generalização da forma-empresa no interior do corpo social abriu as
portas para os indivíduos se auto-compreenderem como “empresários de si mesmos”
que definem a racionalidade de suas ações a partir da lógica de investimentos e retorno
de “capitais” e que compreendem seus afetos como objetos de um trabalho sobre si
tendo em vista a produção de “inteligência emocional”232 e otimização de suas
competências afetivas. Ela permitiu ainda a “racionalização empresarial do desejo”233,
fundamento normativo para a internalização de um trabalho de vigilância e controle
baseado na auto-avaliação constante de si a partir de critérios derivados do mundo da
administração de empresas. Esta retradução das dimensões gerais das relações inter e
intrasubjetivas em uma racionalidade de análise econômica baseada no “cálculo
racional” dos custos e benefícios abriu uma nova interface entre governo e indivíduo,
criando modos de governabilidade muito mais enraizados psiquicamente.
Notemos ainda que esta internalização de um ideal empresarial de si só foi
possível porque a própria empresa capitalista havia paulatinamente modificado suas
estruturas disciplinares a partir do final dos anos 20. A brutalidade do modelo taylorista
de administração de tempos e movimentos, assim como a impessoalidade do modelo
burocrático weberiano haviam paulatinamente dado lugar a um modelo “humanista”
desde a aceitação dos trabalho pioneiros de Elton Mayo, fundados nos recursos
psicológicos de uma engenharia motivacional na qual “cooperação”, “comunicação” e
“reconhecimento” se transformavam em dispositivos de otimização da produtividade.
O que permitiu a uma socióloga como Eva Illouz lembrar que:

229
Bem percebido, como veremos no próximo capítulo, por Axel Honneth em HONNETH, Axel; Das
recht der Freiheit, Frankfurt: Suhrkamp, 2013.
230
FOUCAULT, Michel; O nascimento da biopolítica, op. cit., p. 222
231
BROWN, Wendy; Les habits neufs de la politique mondiale: néolibéralisme et néo-conservatisme,
Paris: Les Prairies Ordinaires, 2007, p. 50
232
Cf. GOLEMAN, Daniel; Inteligência emocional, Rio de Janeiro: Objetiva, 1996
233
DARDOT e LAVAL: La nouvelle raison do monde, op. cit, p. 440.
a esfera econômica, longe de ser desprovida de sentimentos, tem sido, ao
contrário, saturada de afeto, um tipo de afeto comprometido com o imperativo
da cooperação e com uma modalidade de resolução de conflitos baseada no
‘reconhecimento’ bem como comandada por eles 234.

Esta “humanização” da empresa capitalista, responsável pela criação de uma zona


intermediária entre técnicas de gestão e regimes de intervenção terapêutica, com um
vocabulário entre a administração e a psicologia, permitiu uma mobilização afetiva no
interior do mundo do trabalho que levou à “fusão progressiva dos repertórios do
mercado com as linguagens do eu”235. As relações de trabalho foram “psicologizadas”
para serem melhor geridas, até chegar ao ponto em que as próprias técnicas clínicas de
intervenção terapêutica começaram por obedecer, de forma cada vez mais evidente,
padrões de avaliação e de gerenciamento de conflitos vindos do universo da
administração de empresas. Sem tal movimento prévio, não teria sido possível ao
neoliberalismo reconstruir processos de socialização, em todas as esferas sociais de
valores, através da internalização de um ideal empresarial de si.
É fato, no entanto, que tal internalização de ideais exige uma mobilização
cruzada de regimes de identificação. Se, por um lado, ele apoia-se na constituição de
ideais, por outro é inegável que tal processo deve ser impulsionado, entre outros, por
uma parcela significativa de medo. Há uma produção neoliberal da adesão social
através da circulação do medo que não deve ser menosprezada, mesmo que ela não
sirva de causalidade suficiente. É do manejo conjunto do medo e da esperança, do
temor e do desejo, que estruturas de poder se fundamentam.
Esta dimensão psicológica do medo foi claramente compreendida por Adorno
em suas reflexões sobre o capitalismo tardio e as modificações na economia psíquica
que ele implica. Enquanto instância psíquica de auto-observação submetida ao impacto
das transformações sociais, o supereu mesclaria atualmente o medo arcaico de
aniquilação física com “o medo muito posterior de não mais pertencer ao conjunto
humano”236 devido ao fracasso de ser bem sucedido como sujeito econômico. Assim, é
importante que o discurso social produza a circulação incessante do risco de morte
social devido à degradação econômica iminente daqueles que resistem a reconstruir
sua vida psíquica a partir da racionalidade econômica. Pois:

quem não se comporta segundo as regras econômicas, hoje em dia raramente


naufraga imediatamente, mas no horizonte delineia-se o rebaixamento
socioeconômico (...) O medo de ser excluído, a sanção social do
comportamento econômico, internalizou-se há muito através de outros tabus,
sedimentando-se no indivíduo237.

234
ILLOUZ, Eva; O amor nos tempos do capitalismo, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011, p. 37
235
Idem, p. 154
236
ADORNO, Theodor; Escritos sobre psicologia social e psicanálise, op. cit., p. 76
237
Idem, p. 75
Uma mobilização contínua do medo advindo do risco de morte social só efetivamente
possível a partir do momento que o desmantelamento do Estado-providência se impôs
como realidade inelutável e consensual.
Tal medo se funde com outros medos produzidos no interior da sociedade
neoliberal, como a insegurança advinda de um estado contínuo de guerra, sem
distinção possível entre situação de guerra e de paz. Insegurança impulsionada pela
violência espetacular de pretensas “comunidades arcaicas” refratárias à lógica
neoliberal de valores e de modos de circulação de desejos. Peça fundamental da adesão
social às sociedades neoliberais a ponto destas serem, cada vez mais, sociedades que se
deixam transpassar por formas militares de controle, criando uma oscilação sintomática
entre liberalidade e restrição securitária. Pois o amálgama produzido pela lógica de
confronto entre “nossos valores e modos de vida liberais” e tudo aquilo que é descrito
como fruto de uma mentalidade baseada na recusa à nossa liberdade, visa alimentar a
sensibilidade social contra a possibilidade de nos afastarmos da racionalidade
econômica que funda a esfera dos nossos valores. Os medos funcionam como um
sistema de vasos comunicantes.

A função do medo

A função do medo dentro da psicologia do indivíduo neoliberal é central. Lembremos,


a este respeito, como Frederik Hayek estabelecia uma oposição entre o conceito liberal
de liberdade e a democracia, alertando para os riscos de uma “democracia totalitária”
ou de uma “ditadura plebiscitária”. Hayek considerava que a democracia deveria ser
limitada, pois colocaria em risco a verdadeira liberdade, isto é, a livre concorrência. A
liberdade aparece para o liberalismo como a livre disposição da propriedade e a
liberdade para cumprir à risca as exigências irracionais da acumulação.
Mas esse conceito liberal de liberdade só poderia se impor à base de choques.
Afinal, as sociedades não aceitam sem resistência limitar seus desejos e sua
inquietude à liberdade de empreender (reservada para alguns). A experiência histórica
das lutas por liberdade revela justamente a insistência em livrar a atividade da
submissão à forma do trabalho, da ânsia pela igualdade radical e pelo fim da
naturalização da exploração, da vontade de liberação do mundo das coisas dos
contratos de propriedade. Para tanto, a experiência do medo da morte social deveria
ser imposto custe o que custar. O que nos explica a necessidade de despolitizar a
sociedade, nem que seja apelando a ditaduras. Como dirá Hayek, em entrevista ao
jornal chileno El mercurio, em 1981, ou seja, durante o regime Pinochet:

Eu diria que, enquanto instituição de longo termo, sou totalmente contra


ditaduras. Mas uma ditadura pode ser um sistema necessário durante um
período de transição. Às vezes, é necessário para um país ter, durante certo
tempo, uma forma de poder ditatorial. Como vocês sabem, é possível para um
ditador governar de maneira liberal. E é possível que uma democracia governe
com uma falta total de liberalismo. Pessoalmente, prefiro um ditador liberal a
um governo democrático sem liberalismo.
Difícil não perceber que a matriz desta ditadura liberal vem exatamente de
Carl Schmitt, como vimos na aula passada.

O infinito ruim do neoliberalismo

Mas voltemos os olhos para a estrutura interna dos ideais empresariais de si a


fim de compreender melhor a natureza de suas disposições normativas. Lembremos,
neste sentido, como tais ideais se baseiam na racionalização das ações a partir de uma
dinâmica de maximização de performances. Ações que visam à pura maximização de
performances devem se organizar de maneira similar a atividades econômicas baseadas
na extração da mais-valia e, por consequência, nos processos de auto-valorização
circular do Capital. Este é o sentido fundamental da estratégia lacaniana em insistir na
homologia entre a forma pela qual objetos que causam o desejo (objetos a) circulam
socialmente no interior das sociedades capitalistas contemporâneas e o estatuto da
mais-valia em Marx, criando com isto o sintagma “mais-gozar” (plus-de-jouir).
Lacan se interessa pelo fato da mais-valia poder ser extraída a partir do
momento em que o trabalho social inscreve-se no mercado como trabalho abstrato,
mensurável como puro quantum de trabalho, permitindo com isto que o capitalismo se
sirva da dessimetria entre valor pago pelo tempo de trabalho e valor dos objetos
produzidos durante tal tempo quantificado. Assim, se Lacan pode afirmar que “o que
Marx denuncia na mais-valia é a espoliação do gozo”, é para lembrar que a renúncia
ao gozo produzida pela abstração do tempo de trabalho (tema batailleano por
excelência que nos lembra como o tempo do gozo e o tempo do trabalho não se
confundem), esta “redução do próprio trabalhador a não ser nada mais que valor” 238,
ou seja, não ser mais que suporte do processo de produção do valor, permite a
produção de um mais-valor que inaugura a circulação incessante da auto-valorização
do Capital. Circulação do que “é absolutamente urgente gastar. Se não se gasta, isto
produz toda forma de consequência”239.
Esta racionalidade própria a uma sociedade organizada a partir da circulação do
que não tem outra função a não ser se auto-valorizar, que determina as ações dos
sujeitos a partir da produção do valor, precisa socializar o desejo levando-o a ser
causado pela pura medida da intensificação, pelo puro empuxo à ampliação que
estabelece os objetos de desejo em um circuito incessante e superlativo chamado por
Lacan de mais-gozar. Assim é possível afirmar que “subjetivação ‘contábil’ e
subjetivação ‘financeira’ definem em última análise uma subjetivação do excesso de si
sobre si ou ainda pela ultrapassagem indefinida de si”240.
Como se trata, porém, de uma lógica contábil e financeira, em momento algum
o excesso deve colocar em questão a normatividade interna do processo capitalista de
acumulação e desempenho. Em momento algum o excesso implica quebra das ilusões

238
LACAN, Jacques; Séminaire XVII, Paris: Seuil, 1991, p. 93
239
Idem, p. 19
240
DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian; La nouvelle ordre du monde, op. cit., p. 437
de autonomia que orientam os indivíduos empresariais em suas relações por
propriedade. Pois este é um excesso quantitativo que não se transforma em
modificação qualitativa. Sob a forma-empresa, ao contrário, todo excesso é
financeiramente codificável, é confirmação do código previamente definido241. Como
diria Hegel a respeito de outros fenômenos, esse excesso é marca de uma má infinitude,
pois não passa ao infinito verdadeiro do que muda sua própria forma de determinação
a partir de si, do que é infinito por realizar-se produzindo paradoxalmente a exceção de
si. Uma exceção que, ao ser integrada, modifica processualmente a estrutura da
totalidade anteriormente pressuposta. Antes, ele é o infinito do ruim do que é sempre
assombrado por um para além que nunca se encarna, para além cuja única função é
marcar a efetividade com o selo da inadequação, do gosto amargo do “ainda não”. A
análise do capitalismo sempre precisou de uma teoria dos dois infinitos.
Por fim, é importante salientar que um ideal empresarial de si baseado na
dinâmica de maximização de performances exige a flexibilização contínua de normas
tendo em vista o crescimento de quem vence relações de concorrência. O sujeito
neoliberal é muito mais um agente calculador de custos e benefícios do que um sujeito
a quem se espera a conformação às normas sociais. Ele não segue normas positivas,
mas calcula resultados e por isto, flexibiliza normas continuamente. Pois sendo a
concorrência o valor moral fundamental do laço social, uma versão mercantil da luta
hobbesiana entre os indivíduos, cabe ao Estado assegurar as condições de possibilidade
no interior das quais sua violência possa desdobrar-se. Tais condições fundamentam-se,
por sua vez, na tradutibilidade geral, na conversão sempre possível da violência da
concorrência em flexibilização contínua de normas e formas. A violência contra o
outro se converte em violência contra as formas e normas que pareciam determinar o
outro e que permite ultrapassá-lo.
Desta forma, através da flexibilização normativa, a forma de vida neoliberal
traduz a violência da estrutura pulsional polimórfica e fragmentária - que anteriormente
parecia ser o fundamento libidinal da revolta - para a crítica à funcionalização e à
fixidez das identidades sociais. Este é um ponto importante, pois é necessário que os
sujeitos aprendam a desejar a flexibilização, não apenas devido às promessas de
realização e de ganho presentes no capitalismo, mas também devido à tentativa de
transformação da flexibilidade em expressão natural da dinâmica pulsional dos sujeitos,
à variabilidade estrutural de seus objetos. Se o neoliberalismo pode contar com o
consentimento moral ao risco ligado à precarização resultante de processos de
flexibilização próprios a modos intermitentes de trabalho baseados em “projetos”,
deslocalizações contínuas e reengenharias infinitas, é porque tal flexibilização parece
traduzir a pulsão em seu ponto mais insubmisso. Todo consentimento moral
fundamenta-se em um consentimento pulsional mais profundo. Assim fica mais fácil
marcar toda recusa a ela como covardia moral e infantilismo.

241
Desta forma, “não se trata de assegurar aos indivíduos uma cobertura social dos riscos, mas de
conceder a cada um uma espécie de espaço econômico dentro do qual podem assumir e enfrentar
riscos” (FOUCAULT, Michel; O nascimento da biopolítica, op. cit., p. 198)
No entanto, há de se lembrar como a flexibilização não implica desarticulação
dos quadros de regulação, mas apenas seu deslocamento. O enfraquecimento de
estruturas institucionais com sua capacidade de assistência e amparo, assim como o
enfraquecimento de capacidade de produção de lugares e identidades sociais, além de
normas fixas, dá lugar à mutação das instituições sociais (Estado, escola, igreja etc.)
em empresa. Todas elas começarão a funcionar a partir de uma mutação na qual suas
lógicas se adaptarão à lógica empresarial. O desamparo provocado pelo
enfraquecimento da capacidade institucional de assegurar condições mínimas de defesa
nas relações trabalhistas é pago pelo amparo produzido pelo discurso do indivíduo
como promessa de que toda experiência poderá ser objeto de cálculo de utilidade, de
interesse, de satisfação, amparo produzido pela injunção a ser plenamente um
indivíduo empreendedor de si como condição para o reconhecimento social e a auto-
realização pessoal.
Desta forma, não se trata mais de regular através da determinação institucional
de identidades, mas através da internalização do modo empresarial de experiência,
com seu regime de intensificação, flexibilidade e concorrência. A regulação passa
assim do conteúdo semântico dos modelos enunciados pela norma ao campo de
produção plástica dos fluxos que se conformam ao modo empresarial de experiência.
A regulação social poderá produzir uma das mais impressionantes características do
modelo disciplinar neoliberal, a saber, sua capacidade de construir espaços de “anomia
administrada”, isto ao assumir situações de anomia na enunciação das conformações
normativas, mesmo guardando a capacidade de administrá-lo através da regulação do
modo geral de experiência. A biopolítica das sociedades capitalistas contemporâneas se
transforma assim em uma peculiar gestão da anomia.
É com tais processos em mente que podemos entender as mutações da
corporeidade na era neoliberal. Tais mutações poderão nos mostrar como a biopolítica
própria ao neoliberalismo não poderia, de fato, ser compreendida através do impacto
de estruturas normativas disciplinares que funcionariam a partir de exigências de
conformação a mandatos simbólicos claramente determinados. Ela estaria vinculada à
conformação dos sujeitos a certa forma de indeterminação absorvida pelo modo de
funcionamento normal do capitalismo atual. É necessário que eles organizem sua
experiência subjetiva naquilo que ela tem de mais decisivo, a saber, em seu modo de
relação com a diferença, através desta forma de circulação financeira da
indeterminação. É necessário que tal organização seja corporalmente sentida, que ela
tenha uma realidade corporal.

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