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O COLAPSO FINANCEIRO DOS ESTADOS NACIONAIS E A PRIVATIZAÇÃO


DOS PRESÍDIOS

Ms. Fábio da Silva Miranda1


Francisca Anália Albano da Silva2

RESUMO

Este artigo dedica-se a compreender as contradições inerentes ao


modelo de transferência do agir estatal para o particular,
especificamente nos presídios, fruto de uma política Neoliberal
iniciada nos anos 1970. Coloca, ainda, a necessidade do debate entre o
público e o privado como condição para análise da eficiência dessa
política pública, principalmente levando em consideração a
ineficiência crônica das prisões e a falência de sua função penalógica
como mecanismo ressocializador.

Palavra-chave: Reforma do Estado. Gestão Pública. Terceirização.


Cogestão e Eficiência.

1 INTRODUÇÃO

Conforme ensina Bitencourt (2011), o encarceramento sempre esteve presente na


sociedade, com finalidades múltiplas que não lembram uma sanção penal. Servia apenas de
contenção, de depósitos subumanos até o julgamento ou execução dos delinquentes. Por
séculos, a reclusão, encarceramento correcional e detenção não passavam de nomenclaturas
de um mesmo castigo. A privação da liberdade como a conhecemos na contemporaneidade,
ou seja, como sanção penal, só teve início na Holanda do século XVI.
Com as mudanças ocorridas desde o início do século XVI, que incluíram a extinção
do suplício, e as implementadas no século XIX, que firmaram a pena privativa de liberdade
como centro de toda punição pelo Estado, ocorreu um aumento vertiginoso da população
carcerária sem o correspondente número de vagas ou unidades capazes de suprir esta
demanda. No mundo é crescente o quantitativo de encarcerados acima da capacidade dos
estabelecimentos penais em comportá-los.

1
Mestre em Planejamento e Políticas Públicas pela Universidade Estadual do Ceará, graduado em Filosofia na
mesma Universidade e acadêmico de Direito pela Universidade Federal do Ceará.
2
Graduada em Administração de empresas pela Unifametro e acadêmica de Direito pela Faculdade Estácio.
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Nos últimos anos, o Brasil passou por diversas transformações em sua política
penitenciária. Elas têm origem nos anos 1970 com a crise capitalista liberal que levou grande
parte dos países à reestruturação.
Essas mudanças, balizadas nas políticas de cunho neoliberal, pregavam a não
intervenção do Estado na economia de mercado e a transferência de empresas e serviços do
Estado para a iniciativa privada. Inicialmente abrangeram setores como energia,
telecomunicação, siderurgia, transporte e chegando a setores tidos como exclusivos do
Estado, dentre eles, o sistema prisional.
Nesse contexto de crise fiscal, reforma do Estado e privatizações de empresas e
serviços é que, na década de 1980, no governo do então presidente dos EUA Ronald Reagan,
emerge a privatização do sistema prisional no capitalismo contemporâneo.
Nos anos de 1960, a população penitenciária estadunidense decresceu. No ano de
1975 o número de detentos caiu para 380 mil. Naquele período, debatia-se acerca do
“desencarceramento”, penas alternativas, ao tempo em que se reservasse o cárcere apenas
para os presos considerados de alta periculosidade (em torno de 10% a 15% da quantidade
demandada de criminosos).
Os índices de violência, criminalidade e, consequentemente, de encarceramento,
começam a se inverter. Em apenas dez anos, os índices de presos eram superiores a 740 mil e
maiores do que 1,5 milhão.
No Brasil, a defesa da terceirização das prisões, como forma de minimizar as
mazelas (superlotação, condições indignas, doenças, entre outras) vividas dentro dos cárceres
brasileiros também crescia. D´Urso (1999) acentuava que o Estado sozinho não era capaz de
resolver o problema, que é de toda sociedade. Com essa política pública o Estado poderia
reduzir custos transferindo ao particular a administração dos serviços (limpeza, alimentação,
conservação, entre outros) nas penitenciárias.
A polêmica acerca do tema terceirização do sistema prisional, desde então, fez
crescer os debates e pesquisas. Araújo Junior (1995) foi um dos primeiros juristas a estudar a
fundo os modelos da gestão privada adotados no mundo, especialmente no Brasil. Criticou
fervorosamente as políticas de transferência do Estado para o particular, no que tange à
administração de unidades prisionais. Ele assevera que o Estado não pode, do ponto de vista
moral e jurídico, transferir a uma pessoa física ou jurídica o poder de coação legítimo do
Estado (jus puniendi), pois o objetivo da administração penitenciária é reduzir a criminalidade
e não obter lucratividade a suas expensas.
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Este cenário de transferência da gestão das unidades prisionais para o particular é


oriundo das experiências adotadas nos Estados Unidos, na Inglaterra e, principalmente, na
França. A tese utilizada para sua implantação no Brasil radicava na possibilidade de se
ampliar rapidamente o número de vagas no sistema prisional mediante parcerias com
empresas privadas, de reduzir os custos e investimentos públicos com a manutenção e
custódia dos detentos e na ideia de que a administração gerencial das empresas seria mais
eficiente do que a administração burocrática do Estado.
Para compreender esse processo que culminou com a terceirização das prisões é
necessário analisar a redução sistemática do agir estatal na provisão de serviços públicos, o
qual se iniciou com a política Neoliberal, propiciando os fundamentos para as terceirizações
de unidades prisionais no mundo e no Brasil.

2 A CRISE FISCAL DOS ANOS 70 E O NEOLIBERALISMO

Durante os anos 1970, os investimentos e a capacidade de sua manutenção


diminuíram consideravelmente nos países capitalistas. O capitalismo mundial como o
conhecíamos até então entrou em estagnação, associado, sobretudo, a baixas taxas de
crescimento, elevados percentuais de inflação e défice público acentuado. Era a extenuação
do padrão de capitalismo adotado durante os anos 1940/50 e 60 que tinha como principais
características as altas taxas de crescimento econômico e a grande intervenção do Estado na
economia.
No ano de 1973, afloraram os primeiros sinais de crise no mundo capitalista quando
a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) resolveu aumentar o preço do seu
produto (matriz energética essencial na indústria mundial), elevando, assim, os valores de
venda dos produtos industrializados.
Nesse mesmo período, o modelo de produção fordista3, grande exponencial do
crescimento econômico durante o período pós New Deal, caracterizado principalmente pelo
trabalho assalariado e produção em grande escala, dirigida a um público passivo e insaciável
por consumo (TEIXEIRA, 1996), também começou a dar sinais de crise.
A manutenção desse modo de produção exigia a contratação de grande quantidade de
trabalhadores e, durante sua vigência, significou a inclusão social de uma grande parcela da

3
Modelo de produção em massa e de forma padronizada que implicou em aumento extraordinário da
produtividade e diminuição dos custos de produção, com uma grande quantidade de funcionários executando
tarefas simples, porém, especializadas (FILGUEIRAS, 1997). “O modelo fordista apresenta-se como um
sistema produtivo que elabora mercadorias padronizadas e homogêneas, que produz em quantidades no limite
das possibilidades tecnológicas”. (MONTAÑO, 1999, p.6).
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sociedade antes excluída do consumo de bens e serviços (FILGUEIRAS, 1997). Neste


diapasão, a crise no fordismo implica, também, na queda de um determinado padrão de vida,
associado à estabilidade no emprego com sérias consequências na renda das famílias.
A diminuição na arrecadação dos governos, decorrentes da baixa produtividade e
consumo, impactou diretamente nas políticas sociais, pois demandavam cada vez mais
recursos para sua implantação e ou continuidade (FILGUEIRAS, 1997).
Todos esses fatores associados, aumento da inflação causada pela alta dos preços,
queda da produtividade com diretas consequências na manutenção dos empregos, crise fiscal
do Estado - que não tinha mais condições de manter os investimentos nem os gastos
crescentes com a área social - levaram o mundo a uma recessão profunda nas economias
capitalistas liberais (ARAÚJO JÚNIOR, 1995).
Neste contexto histórico, as ideias fundadas em 1947 pela Sociedade de Mont
Pèlerin4 ganham corpo e se espalham rapidamente pelo mundo. Seus idealizadores pregavam
a contenção dos gastos públicos com o bem-estar social, ampliação do número de
desempregados para quebrar ou diminuir o poder dos sindicatos, diminuição de impostos dos
altos rendimentos e o afastamento do Estado em relação à gestão de diversos setores da
economia tidos como não exclusivos, que ficou popularizado pelo nome de privatização.
Os teóricos do neoliberalismo afirmavam que a crise instalada no mundo capitalista
decorria de intervenção constante do Estado na economia. Pregavam, também, que o
igualitarismo do Estado de Bem-Estar Social acabava com a liberdade dos cidadãos e impedia
a livre concorrência. Deste modo, passaram a combater toda e qualquer limitação à liberdade
do mercado por parte do Estado (ANDERSON, 1996; TEIXEIRA, 1996).
Para combater a crise, a cartilha neoliberal defendia o argumento de que os Estados
precisavam conter os gastos com as políticas de bem-estar social da população. Isso levaria as
pessoas a buscarem no mercado os serviços antes oferecidos pelos governos. Outro ponto
importante era forçar o aumento do desemprego para combater a força dos sindicatos e criar
um exército de reserva de trabalhadores submetidos à lógica do mercado, mediante a
restauração da taxa natural de desemprego. Da mesma forma, o Estado deveria reduzir a
taxação de impostos sobre os altos rendimentos, para que eles tivessem, em tese, recursos
disponíveis para investir em seus respectivos mercados. O Estado deveria, também,
desregulamentar a economia para facilitar a concorrência, bem como reduzir seu campo de

4
Em 1947, Friedrich Hayek, principal idealizador da não intervenção ou qualquer forma de limitação aos
mecanismos de mercado, convocou uma reunião na estação de Mont Pèlerin na Suíça. Ai se fundou a
Sociedade de Mont Pèlerin (ANDERSON, 1996).
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atuação, transferindo para o mercado todas as atividades tidas como não exclusivas do Estado,
“com destaques para a privatização e a reforma da ordem econômica, com a quebra dos
monopólios estatais”. (FILGUEIRAS, 1997, p. 911).

3 A PRIVATIZAÇÃO DOS PRESÍDIOS NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

Na década de 1970, passados mais de 25 anos de crescimento elevado da economia


mundial, inicia-se uma grande recessão nos países capitalistas. Sua expressão máxima aparece
associada às elevadas taxas de inflação, profunda recessão, baixa produtividade com várias
consequências na lucratividade das empresas.
Nesta realidade de instabilidade econômica, política e social, a proposta de reforma
neoliberal auferiu perspectiva pública e angariou caudatários em todo o globo.
Paulatinamente, os governos adotaram o remédio neoliberal na intenção de salvaguardar a
manutenção do capitalismo. Dentre suas principais mudanças, houve a retirada do Estado da
economia e a transferência dos serviços tidos como não exclusivos do Estado para empresas
privadas por meio das privatizações e terceirizações.
A política neoliberal empenhou-se num esforço global de imposição da disciplina do
mercado, inicialmente abrangendo setores básicos como energia, telefonia, transporte e agora
abordando setores tidos como exclusivos do Estado, dentre eles o sistema prisional.
Nesse âmbito neoliberal das privatizações, é que, na década de 1980, no governo do
então presidente estadunidense Ronald Reagan, apareceu a ideia de privatizar o sistema
prisional. Logo, a privatização das prisões era apenas uma das vertentes da ampla política de
delegação do agir estatal.
Dentre as imposições ideológicas pregadas pela política neoliberal, a privatização é
uma das principais medidas implantadas nas últimas décadas. Os Estados Unidos da América
foram os pioneiros na privatização da execução penal, transferindo parte do seu Poder-Dever
de Punir (o jus puniendi) à iniciativa privada.
No Brasil, a participação de agentes privados na operacionalização das prisões teve
suas sementes plantadas em 1970, com a Associação de Proteção ao Condenado - APAC, uma
organização sem fins lucrativos que, segundo Cabral (2007), era ligada a entidades religiosas
da cidade de São Paulo. Sua finalidade era trabalhar o recluso com vistas ao seu retorno à vida
em sociedade.
Nas décadas de 1980/90, com o aumento da população carcerária, associada às
péssimas condições nos cárceres e o défice nas contas públicas brasileiras, teve uma redução
dos investimentos na área penitenciária.
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Em janeiro de 1992, aflorou pela primeira vez no Brasil uma proposta de


privatização do sistema prisional. A propositura foi trazida pelo então componente do
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) - Edmundo Oliveira. A
proposta antevia a privatização de unidades penais nos moldes semelhantes ao americano.
O projeto foi rejeitado pelo Conselho, mediante o processo SAL nº.
08027.000152/00-71, e criticado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ministério
Público (MP) e parte do Judiciário por entenderem que a propositura era incompatível com a
legislação brasileira, repudiando, assim, tal proposta (KUEHNE, 2005).
O Ceará, por seu turno, no ano 2000, enviou ao plenário da sua Assembleia
Legislativa o Projeto de Lei nº 51/2000, de autoria da deputada Gorete Pereira, que previa
autorizar o Governo Estadual a firmar contrato com a iniciativa privada para administrar
alguns presídios cearenses. O projeto recebeu parecer contrário da Procuradoria da
Assembleia por afrontar dispositivos constitucionais, a doutrina e o Direito Administrativo.
Segundo Grecianny Carvalho (2005), a justificativa feita pela então deputada Gorete.
na apresentação do Projeto de Lei. aludia que os gastos feitos pelo Estado com o setor
penitenciário poderiam ser redirecionados para saúde, saneamento, habitação, entre outros.
Mesmo com parecer contrário da Procuradoria da Assembleia Legislativa, a
Secretaria da Justiça e Cidadania – SEJUS (atual Secretaria da Administração Penitenciária –
SAP), em 2001, assinou contrato com a empresa Humanitas sem licitação e pelo prazo de um
ano para administrar uma unidade prisional no Ceará. O valor do contrato previa o pagamento
de R$ 5,2 milhões ao ano. Ao final do contrato, o Estado prorrogou por três meses a parceria
com a empresa privada.
Foi nesse entrecho histórico de crise fiscal do Estado - que diminui seu poder de
investimentos; das políticas neoliberais de transferência, para a iniciativa privada, de
empresas e serviços públicos; da superlotação das unidades penais, em associação com altas
taxas de criminalidade; das deficiências prisionais, que mais brutalizavam o homem
encarcerado do que o reintegrava a sociedade - que as ideias de privatização do sistema
prisional ganharam força como uma espécie de panaceia destinada a driblar os gargalos do
sistema penitenciário.

4 A GESTÃO PRIVADA DO SISTEMA PRISIONAL

A crise mundial que assolou o mundo capitalista nos anos 1970 levou os Estados a
repensarem alternativas para a falta de recursos, pois a crise fiscal os impossibilitava de
investir nos diversos setores onde o Estado atuava. A guerra contra as drogas e a política de
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endurecimento das penas elevou rapidamente o número de presos no sistema prisional dos
EUA. A privatização das prisões apareceu no contexto de contenção de despesas e aumento
crescente da criminalidade nos Estados Unidos.
Atualmente podemos destacar três modelos em gestão penitenciária: a estatal, a
privada e a comunitária (CORDEIRO, 2005).
Na forma estatal, a gestão da unidade prisional é feita diretamente pelo Estado, ente
soberano detentor do poder-dever de punir. Não há, aqui, qualquer ingerência do particular na
execução da pena. Consoante esse modelo, o Estado assume todas as atribuições
administrativas e jurisdicionais impostas pela sentença ao condenado. Apesar dos esforços em
se impor a disciplina do mercado, inclusive na administração prisional, o Estado ainda é o
responsável pela gestão das unidades prisionais.
No modelo de perfil privado dos estabelecimentos penais, o Estado transfere ao
particular a responsabilidade pelos presídios. Há, aqui, uma ingerência direta de empresas
privadas no controle das unidades prisionais, podendo ocorrer em maior ou menor grau.
Nesse âmbito, Freire (1995) identifica quatro formas diferentes de participação de
empresas privadas no setor penitenciário.
 Privatização total: a empresa edifica, gerencia e comanda a prisão, recebendo
os presos diretamente do Estado.
 Leasing: a empresa privada edifica a prisão e a aluga para o Estado.
 Cogestão: quando o Estado constrói a prisão e transfere somente alguns
serviços à iniciativa privada.
 Prisões industriais: o trabalho do preso é objeto de lucro dos empresários, que
podem, inclusive, recontratar o trabalho do recluso em companhias da vizinhança. Em
contrapartida, o empresário fica responsável pelo alojamento, alimentação, saúde, entre outros
cuidados, em relação ao preso.
No modelo comunitário, a execução da pena é feita diretamente pela comunidade por
intermédio de organizações do terceiro setor (ONGS) ou associações sem fins lucrativos
(CARVALHO, 2005). Os recursos financeiros são fornecidos pelo Estado para que as
entidades possam gerir o cumprimento da pena privativa de liberdade. Aqui a função do
Estado é apenas fiscalizar a aplicabilidade dos recursos.
Para melhor compreender o modelo de transferência da gestão dos presídios para a
iniciativa privada é importante conhecer os modelos adotados nos Estados Unidos da América
(EUA), na Grã-Bretanha e na França, pioneiros na gestão privada dos presídios, com vistas a
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encontrarmos as nuanças que engendraram tais formas de gestão e sua aplicabilidade no


Brasil.

4.1 O Modelo Estadunidense da Gestão Privada do Sistema Prisional

Na década de 1970, o sistema prisional americano se encontrava em situação caótica:


superlotação, maus-tratos, insalubridade, deficiência de serviços, entre outros, eram marcas
registradas do modelo da gestão prisional adotado nos EUA. Nessa época, os tribunais
estadunidenses utilizavam uma política penitenciária chamada de hands off5, segundo a qual,
após a sentença condenatória, os juízes não acompanhavam a execução da sentença. A
consequência desta atitude do Judiciário foi a indeterminação da pena (ARAÚJO JÚNIOR,
1995; CORDEIRO, 2005).
A execução penal era vista pelos jurisconsultos ianques como atividade meramente
administrativa, de sorte que impendia ao Poder Executivo sua aplicabilidade. Este modelo foi
responsável pela lastimável situação em que se encontravam os cárceres daquele País.
Com a política de hands off e de tolerância zero6, houve aumento significativo da
população carcerária. Com isso, aumentaram também as péssimas condições a que estavam
submetidos os detentos. Rebeliões e motins eram constantes. No ano de 1982, o Estado do
Tennessee chegou a ter suas prisões declaradas superlotadas, violentas, com punições cruéis e
degradantes para a dignidade humana (MASON, 2012).
Freire (1995) comenta que a violação aos direitos humanos básicos dos presos dos
EUA tornou o sistema de hands off insustentável, evidenciando-se a necessidade do Poder
Judiciário controlar e acompanhar a execução da pena.
A população carcerária em ascensão exigia a contraprestação do Estado para a
construção de mais estabelecimentos penais, porém, a crise econômica que assolou o mundo
impedia o Governo de investir nesta seara. Outro fator importante a essa restrição ocorria pela
animosidade da classe média ianque em aceitar a ampliação de impostos para financiar este
setor.

[...] os eleitores não veem com satisfação a emissão indiscriminada de títulos, com o
consequente aumento do déficit público, que terá necessariamente de ser coberto
com a elevação da carga tributária. (FREIRE, 1995, p.98).

5
Em tradução literal, significa lavar as mãos.
6
Política adotada para combater as drogas, que culminou com alto índice de encarcerados nos EUA (KRN e
WOOD, 2004).
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Como informa Mason (2012), a gestão privada de estabelecimentos de correção teve


início ainda na década de 1970 e se expandiu para os serviços de contenção de imigrantes
ilegais na década seguinte. Era o embrião das políticas de privatização das unidades penais
dos EUA e no mundo.
No ano de 1983, durante a Presidência de Ronald Reagan, Thomas Beasley,
presidente do Partido Republicano, criou a empresa Corrections Corporation of America
(CCA) na cidade de Nashville (Tenessee). Seu fundador afirmava que sua empresa teria
capacidade para construir e gerir prisões em âmbito estadual e federal com um custo abaixo
do praticado pelo Estado, porém, com qualidade superior (MASON, 2012).
Um ano após sua fundação, a empresa CCA ganhou o primeiro contrato para
administrar o centro de detenção Hamilton County, destinado a imigrantes e localizado na
cidade de Chattanooga (Tennessee). Logo em seguida, a CCA propôs administrar todo o
sistema prisional desse Estado, proposta que foi imediatamente rejeitada pela Assembleia
Legislativa local, afirmando ser muito arriscado tal intento, principalmente em razão das
fugas crescentes e da deficiência na prestação dos custos da empresa CCA. Apesar da
rejeição, a privatização se mostrou claramente como opção política interessante. No ano de
1995, a empresa CCA ganhou o primeiro grande contrato para administrar uma fazenda de
trabalho na cidade de Chattanooga (Tennessee).
A experiência estadunidense limitou-se inicialmente, a administrar apenas uma
pequena parcela da população carcerária, constituída por jovens delinquentes e criminosos em
fase final do cumprimento da pena privativa de liberdade (FREIRE, 1995).
A legislação do Estado do Tennessee, que autorizava a gestão dos presídios por
empresas privadas, deixava claro que ela deveria ser feita em caráter experimental com os
contratos não superiores a três anos. Tal cuidado, entretanto, foi logo abandonado, pois no ano
de 1986 a população carcerária do País ultrapassava o quantitativo de um milhão, sendo que,
dos seus 50 Estados, 38 estavam operando acima de sua capacidade e sete desses com
superlotação superior a 50% do número de vagas (NOSSAL; WOOD, 2004).
Nestas circunstâncias, a subcontratação de empresas privadas passou a ser vista
como política indolor no combate à superlotação, pois os custos de operação das unidades
penais poderiam ser pagos depois das construções, sem a necessidade de desembolso do
Tesouro nem aumento de tributos.
O censo demográfico dos estabelecimentos prisionais com gestão privada nos
Estados Unidos da América realizado em 2010 traz as seguintes características:
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QUADRO 1 – PRESOS MANTIDOS EM PRISÕES PRIVADAS NOS ESTADOS


UNIDOS7

Período 1999 2010 Mudança de 1999 - 2010


Popul. Prisional
1.366.721 1.612.395 + de 18% de aumento
Total
Total em Uni.
71.208 128.195 + de 80% de aumento
Privadas

Presídios Federais
3.828 33.830 + de 784 % de aumento
Privatizados

Presídios Estaduais
67.380 94.365 + de 40% de aumento
Privatizados
Fonte: Beck, A.J. (2000). Prisoners in 1999. Washington, DC: Bureau of Justice Statistics; Guerino, P., Harrison,
P.M., &Sabol, P.M. (2011). Prisoners in 2010. Washington, DC: Bureau of Justice Statistics. Prisoners in 1999
available online here: http://bjs.ojp.usdoj.gov/content/pub/pdf/p99.pdf

O modelo estadunidense foi o pioneiro na privatização do sistema prisional. Sua


legislação permite que os Estados, de acordo com suas necessidades, adotem os modelos
(arrendamento, contratação de serviços ou privatização total) convenientes a cada situação
específica. Tais modelos são questionados em diversos estudos acadêmicos atuais quanto a
sua real eficiência e eficácia, porém, não nos parece oportuno esgotar este assunto, porquanto
não é objeto de nosso estudo.

4.2 O Modelo Britânico da Gestão Privada do Sistema Prisional

Nossal e Wood (2004) exprimem que apesar do Governo de Margaret Thatcher, que
chegou ao poder no ano de 1979, ser associado com o início das políticas neoliberais de
privatizações, a ideia de particularizar as prisões britânicas não foi, de início, vista com bons
olhos pela “Dama de Ferro”.
Somente no ano de 1984, após relatório do Adam Smith Institute, a proposta de
privatizar o sistema prisional britânico foi avaliada por um comitê parlamentar. No ano de
1986, após visita aos EUA, o comitê designado para visitar aquele País propôs permitir que
empresas privadas fizessem propostas para gerir o sistema prisional, o qual se encontrava,
assim como nos EUA, em situação crítica.

[...] Uma nova abordagem é necessária se quisermos romper com o ciclo de


violência, superlotação e declínio do sistema penal [...] Em muitos casos, as queixas

7
MASON, Cody. Too Good to Be True: Private Prisons in America. The Sentencing Project January 2012.
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dos presos sobre as péssimas condições em que são obrigados a viver são legítimas.
(YOUNG, 1987, p.4)8.

Nesse período, o então secretário britânico para assuntos relacionados ao sistema


prisional, Douglas Hurd, chegou a afirmar que o Governo era contra estender as políticas de
privatizações ao sistema penitenciário. Em março de 1989, no entanto, o Secretário, apoiado
pelo Governo britânico, mudou de ideia e autorizou tanto a construção como a gestão dos
presídios por parte da iniciativa privada, ressaltando, inclusive, as “virtudes” deste novo
modelo:

A introdução do setor privado na gestão do sistema penal certamente representa um


afastamento corajoso dos pensamentos e práticas anteriores [...] não devemos
desprezar estas ideias novas que, se bem-sucedidas, trará uma importante
contribuição ao programa governamental e propiciar condições dignas a todos os
presos a um custo razoável. (HANSARD, MARCH 1989, COL. 278 apud RYAN,
p.1)9.

A posição inicial do Governo era de limitar a participação da iniciativa privada à


construção e administração de unidades para presos provisórios (FREIRE, 1995; NOSSAL;
WOOD 2004). As propostas oferecidas ao Governo, no entanto, da parte da iniciativa privada,
foram no sentido de assumir o controle total das penitenciárias.
Em fevereiro de 1991, o Governo firmou contrato com a empresa Group 4 para
administrar, em caráter experimental, a Her Majesty´s Prison Wolds, uma unidade então
recém construída para abrigar presos provisórios. Essa política de cunho experimental logo
virou rotina no sistema prisional britânico (KRN; WOOD, 2004).
Efetivamente, o Governo lançou o The Criminal Justice Act, de 1991, formalizando
as privatizações inglesas. Estabeleceram-se as atribuições do Estado e dos contratantes. Este,
inicialmente, seria responsável pelos serviços de hotelaria (lazer, alimentação, saúde) e aquele
pela segurança externa. O que aconteceu na prática foi a privatização no seu conceito mais
amplo: serviços, segurança, direção, entre outros.
Inicialmente, o Estado só permitiu a contratação para custódia de presos provisórios,
mas mudanças na Criminal Justice Act, pelo Parlamento britânico (ROTH, 2004) autorizaram
o secretário do Governo a contratar empresas privadas de administração penitenciária para
custodiar, também, os presos condenados.
A diferença básica entre os modelos ianque e britânico está relacionada,
principalmente, à forma de financiamento. Enquanto os Estados Unidos precisavam emitir

8
Tradução nossa.
9
Tradução nossa.
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títulos públicos para financiar o setor prisional e para tanto, necessitavam de autorização
legislativa, na Grã-Bretanha o financiamento sucedia por meio da arrecadação de impostos ou
financiamento do mercado. A burocracia no modelo estadunidense os impelia a utilizar o
método do arrendamento, pois não necessitariam emitir títulos para se financiar, ao passo que
os britânicos utilizam o modelo da gestão total dos presídios pelas empresas privadas com
financiamento direto do mercado.
Até o ano de 2005, a Grã-Bretanha já havia privatizado mais de 08% de seu sistema
prisional. No ano de 2011, esse percentual já havia crescido para 15% da população
penitenciária e um total de 13 unidades geridas por empresas privadas 10. As privatizações do
sistema prisional britânico ficam atrás apenas dos Estados Unidos (NOSSAL; WOOD, 2004).
Como se percebe, o modelo britânico só permite a gestão total pelo particular das
unidades privatizadas. Sua legislação não prevê outros desdobramentos como no ianque. Tal
possibilidade é impraticável no Brasil, considerando nossa atual legislação como
explicaremos posteriormente.

4.3 O Modelo Francês da Gestão Privada do Sistema Prisional

As primeiras privatizações do sistema prisional francês datam do século XIX quando


a Assembleia Nacional de França aprovou, em 12/08/1850, a criação de colônias
penitenciárias públicas ou privadas destinadas a jovens infratores de ambos os sexos. A
promiscuidade entre os adolescentes e a arbitrariedade com que os menores eram tratados, no
entanto, levou estes estabelecimentos ao insucesso (ALVES; SANTOS; BORGES, 1995).
Assim como no sistema prisional estadunidense e britânico, o francês também se
encontrava em situação caótica. A reforma penitenciária ocorrida em 1945, associada com a
crise política na Argélia, agravou a situação nos presídios franceses passando rapidamente de
18 mil para 70 mil presos. Este aumento vertiginoso no número de reclusos e a falta de
dotação orçamentária para financiar a área penitenciária impediam o Estado de ampliar e
melhorar o sistema de forma global.
Nos anos seguintes não foi diferente. Em 1984, foi encomendada uma pesquisa pelo
Governo francês com o intuito de verificar a situação dos presídios. O resultado foi alarmante:
os delitos aumentaram 469,73% e a taxa de criminalidade 394,40%. Com isso, a população
carcerária ultrapassou os 51 mil reclusos em 1987.

10
Jornal The Guardian. Disponível em: <http://www.guardian.co.uk/society/2011/nov/13/privatise-prisons-
scandal>. Acesso em: 04 fev. 2013.
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Araújo Júnior (1995) nos lembra de que, durante o ano de 1986, houve uma mudança
na legislação penal francesa, que agravou ainda mais a superlotação das prisões: modificou as
regras para redução das penas, dificultando a saída dos condenados, criou regime mais severo
para crimes praticados com violência e reprimiu o terrorismo. Com isso, as já sucateadas
instalações penais ficaram ainda mais precárias. Violência, proliferação de doenças
contagiosas (HIV, tuberculose, DSTs em geral e outros) e desrespeito à dignidade da pessoa
humana encarcerada eram alguns dos inúmeros problemas vividos nos cárceres franceses.
Segundo Alves, Santos e Borges (1995), o custo de implantação de somente mais 15
mil vagas no sistema prisional francês seria de cinco bilhões de francos para os cofres
públicos, caso o Estado resolvesse assumir sozinho essa empreitada.
Com a mudança do ministro da Justiça francesa, ainda no ano 1986, houve mudança
significativa na forma de condução do sistema prisional. Rapidamente se impregnou o sistema
de uma visão mais humanizadora das penas e prisões. Entrementes, o Governo francês
apresentou à Assembleia Nacional um projeto ambicioso para criação de aproximadamente 40
mil vagas. A ideia era entregar ao setor privado a responsabilidade pela construção e,
concomitantemente, pela gestão total de estabelecimentos penais.
Diferentemente do ocorrido nos presídios ianques e britânicos, o projeto de
privatização total das unidades prisionais foi rejeitado pela Assembleia Nacional francesa, e,
em seu lugar, foi encaminhado o projeto 15.000 promulgado com a criação da Lei 87/432, de
22/06/1987.

O projeto 15.000 era pautado em duas bases: entregar ao setor privado a construção
e a gestão de estabelecimentos penitenciários, para este fim erigidos em terrenos do
Estado ou de particulares, com a condição de que a transferência de domínio fosse
“incontinenti” ao término da construção (ALVES; SANTOS; BORGES 1995, p.78).

Com isso, as empresas privadas passaram a deter o direito de, a priori, edificar as
prisões e, a posteriori, gerir determinados serviços (saúde, trabalho, alimentação etc.). Deste
modo, seriam construídas 25 prisões com capacidades que variavam entre 400 e 600 vagas
por toda a França (ALVES; SANTOS; BORGES, 1995).

Art. 2.º O Estado pode confiar a uma pessoa de direito público ou privado ou a um
grupo de pessoas de direito público ou privado uma missão versando ao mesmo
tempo sobre a construção e a adaptação de estabelecimentos penitenciários.
[...]Nos estabelecimentos penitenciários as funções outras que de direção, cartório,
vigilância, podem ser confiadas a pessoas jurídicas de direito público ou privado [...]
escolhidas em processo licitatório.
Art. 3.º [...] Cabe ao Ministério da Justiça designar os membros da direção do
cartório e de vigilância dos estabelecimentos públicos penitenciários. Estas pessoas
permanecem sujeitas a estatuto próprio e serão membros da administração
P á g i n a | 225

penitenciária. (Lei 87/432 aprovada pelo Senado francês apud ARAÚJO JÚNIOR et
al, 1995, p.86 e 87).

No ano de 1987, foi aberto processo licitatório para contratação de empresas privadas
e selecionados 27 locais para construção das penitenciárias. À época, 33 empresas
manifestaram interesse em participar do processo, porém, somente quatro organizações foram
selecionadas.
Com as mudanças implementadas na legislação, os estabelecimentos penais
continuaram públicos. Os cargos relativos às funções de direção, vigilância interna e externa,
entre outros, ou seja, todos aqueles exclusivos do Estado (oriundos do juspuniendi ou poder-
dever de punir), permaneceram sob a responsabilidade do ente estatal. Somente os serviços de
manutenção estrutural, saúde, trabalho do preso, hotelaria (alimentação, vestuário, higiene
entre outros), social e jurídica ficavam na responsabilidade da organização particular.
Este modelo político-administrativo ficou conhecido por cogestão. A
responsabilidade pelo gerenciamento e administração das unidades penitenciárias ficava a
cargo do Estado e também do grupo empresarial.
As empresas privadas que atuam em parceria com o Governo francês permanecem
sob a autoridade maior da Administração Correcional (órgão vinculado ao Ministério da
Justiça, responsável por coordenar o sistema prisional francês). Diferentemente dos EUA
onde as empresas privadas podem receber receitas de contratos públicos e permanecerem
independentes, em França, elas ficam sob a fiscalização diuturna do Governo (KAZEMIAN;
ANDERSSON, 2012).
Segundo dados divulgados pela revista The Economist (UK), publicada em 14 de
maio de 2009, a situação dos cárceres franceses não havia melhorado após anos da gestão
privada do sistema prisional. A causa, segundo citado magazine, era a rigidez das penas em
França. O défice de vagas ainda é gritante. O censo penitenciário de abril de 2012, revelava
que o número de presos nos cárceres franceses chegou a 67.16111. Vale ressaltar que não
foram localizados na literatura nacional, nem estrangeira, os dados atualizados relativos ao
quantitativo de presos custodiados pelo modelo da gestão privada em França.
O modelo francês, portanto, diferiu dos demais citados. Optou-se por trabalhar em
parceria com a iniciativa privada em vez de delegar toda a incumbência pela gestão da
unidade prisional ao particular. O Estado passou a atuar, dentro da unidade, em parceria com

11
Dados publicados pelo jornal Frances Le Huffington Post e disponível no endereço eletrônico:
http://www.huffingtonpost.fr/2012/04/13/surpopulation-carcerale-france-record-nombre-detenusprisons
_n_1423551.html
P á g i n a | 226

o gestor privado, acompanhando diuturnamente a evolução dessa parceria e suas implicações


no cotidiano dos reclusos.

5 A REFORMA DO ESTADO BRASILEIRO E A PRIVATIZAÇÃO DOS PRESÍDIOS

Com a crise, os Estados viram sua capacidade de intervenção no domínio econômico


e social diminuir consideravelmente. Perderam poupança e sua capacidade de ampliá-la, o
Estado ficou imobilizado.
No Brasil, Bresser Pereira (1996) asseverava que o responsável pela crise econômica
era o Estado interventor, antes considerado fator de desenvolvimento e agora transformado
em barreira para sua expansão. Assim, na óptica do autor, para superar a crise, era preciso
reformar o Estado.

A causa fundamental dessa crise econômica foi a crise do Estado [...] Crise que se
caracteriza pela perda de capacidade do Estado de coordenar o sistema econômico
de forma complementar ao mercado. Crise que se define como uma crise fiscal,
como uma crise do modo de intervenção do Estado, como uma crise da forma
burocrática como o Estado é administrado. (BRESSER PEREIRA, 1996, p.2 e 3).

Eli Diniz (1996) nos lembra de que, durante a década de 1980, esses fatores
associados levaram à redefinição da agenda pública brasileira em prol da estabilidade
econômica e do ajuste fiscal. A ampliação do processo inflacionário e a conscientização da
necessidade de um novo modelo de Estado, mais ágil e que respondesse aos anseios da
sociedade, se transformaram num desafio para a nova democracia.
A globalização também teve um papel preponderante. Consoante Bresser Pereira
(1996), ela se tornou necessária para redefinir as funções do Estado, pois:

[...] Antes da integração mundial dos mercados e dos sistemas produtivos, os


Estados podiam ter como um de seus objetivos fundamentais proteger as respectivas
economias da competição internacional. Depois da globalização, as possibilidades
do Estado de continuar a exercer esse papel diminuíram muito. Seu novo papel é o
de facilitar para que a economia nacional se torne internacionalmente competitiva.
(IBIDEM, p.1).

A globalização foi um fator de assimetria no capitalismo. Ao passo que ela abriu a


possibilidade de expansão dos mercados, garantidos principalmente pela evolução tecnológica
e dos transportes, ensejou graves desequilíbrios financeiros e de gestão em virtude da
concorrência predatória das grandes potências. Com isso, os países perderam autonomia.
Assim, o Governo brasileiro empreendeu as reformas para diminuir o tamanho do
Estado:
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[...] mais voltado para as atividades que lhe são específicas, que envolvem poder de
Estado, mas mais forte, com maior governabilidade e maior governança, com mais
capacidade, portanto, de promover e financiar, ou seja, de fomentar a educação e a
saúde, o desenvolvimento tecnológico e científico, e, assim, ao invés de
simplesmente proteger suas economias nacionais, estimulá-las a serem competitivas
internacionalmente. Delineia-se, assim, o Estado do século vinte e um. Não será,
certamente, o Estado Social-Burocrático, porque foi esse modelo de estado que
entrou em crise. Não será também o Estado Neoliberal sonhado pelos conservadores,
porque não existe apoio político nem racionalidade econômica para a volta de um
tipo de Estado que prevaleceu no século dezenove. Nossa previsão é de que o Estado
do século vinte e um será um Estado Social-Liberal: Social porque continuará a
proteger os direitos sociais e a promover o desenvolvimento econômico; liberal,
porque o fará usando mais os controles de mercado e menos os controles
administrativos. (IBIDEM, p.59).

Esse contexto de diminuição do agir estatal foi preponderante para que se iniciassem
as privatizações de empresas públicas e do sistema prisional brasileiro.

5.1 O Modelo Brasileiro de Gestão Privada do Sistema Prisional

Conforme expresso anteriormente, a primeira proposta tendente a privatizar o


sistema penitenciário brasileiro surgiu no ano de 1992. A sugestão foi completamente
rejeitada por não haver previsão legal.
No ano de 1999, o então deputado federal Luís Barbosa apresentou um projeto de lei
para autorizar o Executivo a contratar, sob a forma de concessão com o particular, a
administração dos presídios. O projeto ora mencionado permitia que o Brasil adotasse a quase
totalidade do modelo francês da gestão privada do sistema penitenciário, ou seja, o Estado e a
iniciativa privada seriam os responsáveis pela gestão de determinadas unidades prisionais. O
Estado construiria a unidade e a iniciativa privada cuidaria dos serviços de hotelaria
(alimentação, conservação, alimentação, atendimento médico, entre outros).
Neste mesmo ano, o Estado do Paraná inaugurou o primeiro presídio brasileiro sob a
administração de uma empresa privada: o Presídio Industrial de Guarapuava (PIG). Ele foi
inaugurado com capacidade para 240 presos. Consoante noticia Monteiro (2007), os presos
executavam seu labor em fábricas de móveis, estofados e montagem de prendedores de roupas
instalados dentro da unidade, tudo supervisionado por uma empresa privada parceira do
Estado.
Vale ressaltar o fato de que a proposta do recém citado deputado federal Luís
Barbosa sequer havia sido votada na Câmara dos Deputados e ou analisada pelo CNPCP,
órgão responsável pelas diretrizes da área penitenciária no Brasil.
P á g i n a | 228

Somente em dezembro de 2002, o Conselho se reuniu para deliberar acerca da


privatização dos presídios e rejeitou a proposta de privatização do sistema prisional brasileiro
nos moldes do que restou estabelecido nos padrões dos EUA e/ou da Grã-Bretanha, pois,
segundo Kuehne (2005), o sistema prisional brasileiro carecia de previsão legal no
ordenamento jurídico. Informou, entretanto, ser viável a terceirização parcial do sistema
prisional mediante gestão mútua (cogestão) entre Estado e iniciativa privada.
Como anota Bresser Pereira (1998), a privatização difere da terceirização. Na sua
lição este é um processo de transferência, para a iniciativa privada, de serviços auxiliares ou
de apoio, ao passo que aquele se consubstancia em transformar uma empresa pública em
privada. Cogestão do sistema prisional, por seu turno, é constantemente confundida pela
literatura especializada com a terceirização.
A terceirização é um processo pelo qual o delegante, mediado por concessão,
permissão ou autorização, transfere ao particular para que execute em seu nome e por sua
conta e risco, determinados serviços. Em contrapartida, são remunerados pelo Poder Público,
direta ou indiretamente, pela cobrança de taxas pelos serviços prestados (serviço de transporte
público, por exemplo) (MEIRELES, 2006).
Na cogestão, o Estado participa, em forma de parceria direta, da execução e
administração com a iniciativa privada. “Não se trata de uma proposta de retirar do Estado a
administração penitenciária, mas sim reforçar a presença de parceiros aptos para cooperar em
busca de resultados positivos” (COSTA, 2008, p. 105). A empresa privada torna disponíveis
os meios e os serviços, contudo, ficam subordinados a um ou mais agentes públicos. É uma
gestão mista, que preservaria, assim, a função exclusiva do Estado, qual seja, a execução
penal.
Assim, com a superlotação e maus-tratos vividos dentro das celas que as experiências
estrangeiras da gestão privada dos presídios ganham corpo. A tese empregada para
implantação no Brasil de uma gestão por parte de agentes privados assentou-se na
possibilidade de se ampliar rapidamente o número de vagas no sistema prisional, por
intermédio de parcerias com empresas privadas; na diminuição dos custos e investimentos
públicos com a manutenção e custódia dos detentos; na ideia de que a administração gerencial
das empresas seria mais eficiente do que a administração burocrática do Estado, entre outras
motivações. (D´URSO, 1996; CABRAL, 2007).
Mesmo com a proibição, pelo CNPCP, de contratação de funcionários terceirizados
com a finalidade de realizar a segurança interna e zelar pela disciplina das unidades prisionais,
na prática, foi isso que aconteceu. Outra grande crítica que se fez às políticas da gestão
P á g i n a | 229

privada das unidades prisionais estava relacionada com o auferimento de lucro advindos da
exploração da criminalidade, pois, segundo Araújo Júnior (1995, p. 20), “o objetivo teórico da
administração penitenciária é combater a criminalidade e não, obter lucro”. Em detrimento
destes e de outros problemas de caráter ético e político, muitas demandas judiciais e das
Cortes de contas estaduais foram iniciadas, com vistas a encerrar as atividades privadas junto
aos presídios no Brasil. O fator preponderante era o fato de os entes federados estarem
terceirizando, inclusive, os serviços exclusivos e indelegáveis do Estado e não agindo em
parceria (cogestão), como determinava a Resolução.
Todos esses fatores associados levaram os estados brasileiros cogeridos a não
renovarem o contrato com as empresas privadas e findaram com o processo de ampliamento
do agir privado na provisão de serviços públicos penitenciários.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A crise capitalista liberal dos anos 1970 foi primordial para as mudanças
econômicas, sociais e políticas que ocorreram no seio do Estado contemporâneo. Essas
mudanças levaram os países a se reorganizarem para superar a crise que abalou os
fundamentos macroeconômicos keynesianos. Conforme foi apresentado, isso significou a
ascensão das ideias neoliberais e a transformação do Estado burocrático weberiano num
Estado moderno gerencialista.
Esse novo modelo de Ente estatal foi o propulsor das privatizações disseminadas no
começo dos anos 1980 e que se popularizaram na década seguinte, diminuindo o tamanho do
Estado mediante a venda de órgãos estatais, da terceirização de serviços à iniciativa privada
ou da parceria entre o Estado com empresas particulares, que ficou conhecida por cogestão.
Essas políticas rapidamente se expandiram no Brasil, inicialmente com a negociação
de empresas do Governo Federal para consórcios internacionais e/ou empresas estrangeiras e,
posteriormente, com a transferência de serviços que eram executados diretamente pelo Estado
para o particular.
Na década de 1990, as privatizações e as terceirizações se difundiram entre os
Estados, que passaram a adotá-las como panaceia para a problemática falta de recursos
financeiros e a estagnação das economias locais.
Somados a este contexto histórico das privatizações, com a falta de vagas nos
presídios em âmbito mundial e a situação desumana vivida pelos presos dentro dos cárceres, é
que se iniciou a gestão privada dos presídios no Brasil e no mundo. Assim, o sistema prisional
P á g i n a | 230

brasileiro foi absorvido por esta nova política de redução do agir estatal na provisão de
serviços públicos, e transferiu, para o particular, a responsabilidade pela gestão de algumas
unidades prisionais e de determinadas atividades exclusivas do ente federado.
Conquanto, as políticas de transferência do agir estatal para o particular perdeu
forças ao final da primeira década do ano 2000. Altos custos para sua manutenção; baixo
número populacional carcerário nas unidades cogeridas, enquanto nas unidades gerenciadas
pelo Estado era de superlotação; rebeliões e fugas; elevado índice de reincidência dos detentos
(não ressocialização); baixa oferta de vagas de emprego (capacitação profissional) foram
disponibilizadas dentro das unidades, potencializando a ociosidade dos internos; observou-se,
também, que o custo social para manter essa política pública no Estado era muito elevado,
haja vista sua pequena cobertura em relação aos custos de sua manutenção.
De mesmo modo, em alguns Estados brasileiros, a transferência era quase completa
do Poder-Dever de Punir (jus Puniendi) do Estado ao particular, o que levou o Ministério
Público e o Judiciário a determinarem o fim dessa política pública.
Verificou-se, ainda, que é papel do Estado garantir aos reclusos uma condição digna
dentro do cárcere. Neste sentido, não deve transferir ao particular a responsabilidade pela
custódia dos internos. Destarte, não é ético que uma empresa privada aufira lucro mediante a
criminalidade.
É preciso assumir o compromisso com a transformação social dos presos; trabalhar
questões que envolvam e permitam, de fato, a ressocialização dos reclusos. É preciso dialogar
com a sociedade e encontrar caminhos que facilitem esse processo, para que o preso não seja
estigmatizado e brutalizado em seu retorno ao convívio social.
Há vários entraves técnicos para se implantar e implementar políticas públicas
voltadas para a conquista da humanidade nos presídios, principalmente pelos altos custos
envolvidos, pela descrença da sociedade em relação à ressocialização, bem como pelos
políticos que não enxergam possibilidades eleitorais nesse processo, principalmente tendo a
imprensa contribuído, diuturnamente e de forma negativa, para esse fim, ao instigar a
sociedade. Não se deve, porém, cessar de buscar meios que propiciem o ajustamento social
dessas pessoas.
Espero que o conhecimento produzido nesse artigo possa representar um estímulo à
reflexão no que tange à busca por melhorias na área prisional, com reflexos positivos na vida
dos encarcerados e de uma sociedade que se pretende mais justa, humana e igualitária.
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THE FINANCIAL COLLAPSE OF NATIONAL STATES AND THE


PRIVATIZATION OF PRISONS

ABSTRACT

This article is dedicated to understanding the contradictions inherent


in the model of the transfer of state-to-private action, specifically of
prisons, the result of a Neoliberal policy that began in the 1970s. It
places the need for public-private debate as a condition for analysis. of
the efficiency of this public policy, especially considering the chronic
inefficiency of prisons and the failure of their penal function as a
resocializing mechanism.

Keywords: Reform of the State. Public Management. Outsourcing.


Co-management. Efficiency.

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