Você está na página 1de 12

A COSTRUÇÃO SOCIAL DO COHECIMETO EM AULAS DE CIÊCIAS:

A VOZ DOS ALUOS*

Paulo ALMEIDA
Orlando FIGUEIREDO Universidade de Lisboa
Pedro RAPOSO Escola Secundária José Saramago – Mafra
Margarida CÉSAR

Introdução

Um dos princípios consignados na Lei de Bases do Sistema Educativo, promulgada em


1986, estabelece que a educação “promove o desenvolvimento do espírito democrático e
pluralista, respeitador dos outros e das suas ideias” (p.172), Este princípio repercute-se nos
objectivos expressos no mesmo documento, para o ensino básico e secundário, em que,
respectivamente, se preconiza “proporcionar aos alunos experiências que favoreçam a sua
maturidade cívica e sócio-afectiva, criando neles atitudes e hábitos positivos de relação e
cooperação” (p.174) e “criar hábitos de trabalho, individual e em grupo, e favorecer o
desenvolvimento de atitudes de reflexão metódica, de abertura de espírito” (p.175).
No final da década de 80 e na década de 90, foi levada a cabo a Reforma do Sistema
Educativo que, tendo como propósito fundamental combater o insucesso escolar, não logrou
erradicá-lo, tendo inclusivamente proporcionado a eclosão de muitas situações de insucesso
camuflado (César, 1994). Porém, também introduziu aspectos positivos, tais como a
excepcionalidade da retenção na avaliação dos alunos, a Área-Escola, os currículos alternativos
e a Gestão Flexível dos currículos.
Mau grado as dificuldades e insuficiências de que o nosso sistema educativo ainda
padece, é notório que se tem vindo a consolidar a intenção de formar, mais do que indivíduos
apetrechados com algumas ferramentas intelectuais e dotados de certas destrezas técnicas,
cidadãos intervenientes, conscientes das problemáticas que afectam o contexto social em que se
inserem e capazes de mobilizar as suas competências, no sentido de agir perante uma realidade
em permanente transformação.
Isto mesmo se depreende das directrizes apresentadas na mais recente proposta de
reestruturação curricular do ensino secundário, nomeadamente das que concernem à integração,
nos programas de todas as disciplinas e áreas disciplinares, das “competências transversais
comuns, nomeadamente, as relativas à educação para a cidadania e às novas tecnologias de
informação” (Ministério da Educação, 1999, p.7), e à inclusão, nos planos de estudo, da
denominada Área de Projecto/Projecto Tecnológico, que complementa as componentes de
Formação Geral e Formação Específica, e em cujas finalidades se contempla a necessidade de
desenvolver nos alunos capacidades e atitudes associados ao “trabalho de grupo, nomeadamente
a cooperação e respeito pelos outros” (Ministério da Educação, 1999. p.5).
_____________________
* O Projecto Interagir para Aprender: Contributos da Psicologia Social Genética para a promoção do sucesso escolar
e da escola inclusiva, foi subsidiado pelo Instituto de Inovação Educacional, medida 2 do SIQE (contrato nº 43/2000)
no ano 2000/01. O nosso profundo agradecimento a todos os alunos e professores que tornaram esta investigação
possível.
Mas, para que os princípios, objectivos e directrizes que temos vindo a citar não se
tornem letra morta, é necessário implementar práticas de sala de aula que viabilizem a sua
concretização.
Ao longo dos últimos anos tem-se constituído um quadro de referência teórico que,
conciliando as perspectivas de Piaget e Vygotsky (Tryphon e Vòneche, 1996) destaca a
importância do sujeito na construção do seu próprio conhecimento e aponta as interacções
sociais como uma dinâmica fulcral desse mesmo processo. Admite-se que o conhecimento é
socialmente construído, o que significa que a aprendizagem não se resume a uma aquisição
individual, consistindo antes numa apropriação de saberes, mediante a sua recontextualização
do espaço interpessoal para o intrapessoal. Afigura-se, assim, que as estratégias promotoras das
interacções entre pares poderão potenciar a tensão entre estes dois espaços epistemológicos, ou
seja, suscitar conflitos sócio-cognitivos que promovam uma efectiva mobilização das
competências dos alunos.
O projecto Interacção e Conhecimento começou há oito anos, integrando actualmente
turmas de Matemática, Ciências e Filosofia. Por seu turno, o projecto Interagir para Aprender
foi implementado em 2000/01, integrando 8 turmas de Ciências da Natureza, CTV e Técnicas
Laboratoriais de Biologia. O objectivo foi estudar e promover interacções sociais que permitam
desenvolver nos alunos atitudes mais positivas em relação a essas disciplinas, promovendo
também o seu desenvolvimento sócio-cognitivo.

Quadro de referência teórico

As investigações realizadas em Portugal nos últimos anos, em torno do papel das


interacções sociais no desenvolvimento sócio-cognitivo dos alunos, têm incidido
fundamentalmente na disciplina de Matemática (César, 2000). Estando em curso, no que
concerne ao ensino secundário, um processo de reestruturação curricular, afigura-se
particularmente oportuno reflectir sobre a possibilidade de adaptar esse tipo de estratégias às
aulas de Ciências, tendo em conta as suas especificidades (Almeida, 2000).
No decorrer das décadas de 60 e 70, o ensino das Ciências sofreu mudanças curriculares
devido à constatação de que estava a ser notório um “desfasamento entre o marasmo de
conteúdos e métodos de ensino em uso e os avanços galopantes da sociedade
tecnológica/industrial” (Santos, 1991, p.47). No entanto, e apesar dos esforços desde então
efectuados, verificou-se que poucas alterações efectivas se vieram a concretizar, nomeadamente
em termos de práticas pedagógicas, sendo fundamentalmente desenvolvidas capacidades de
baixo nível, ligadas à memorização de factos e conceitos (Trindade, 1996). Verifica-se assim,
que de facto as práticas pedagógicas no ensino das Ciências, nas nossas escolas, nos dias de
hoje, pouco diferem das de há três décadas atrás. Continua a ensinar-se o produto da Ciência
(conhecimento científico) – os factos e os princípios – sendo poucas as referências ao seu
processo de construção – conhecimento metacientífico. Por outro lado, o conteúdo das Ciências
é tratado como se fosse o de qualquer outra disciplina, não se tendo em consideração as suas
especificidades metodológicas. No entanto, a educação científica (métodos, processos e
produtos) é de crucial importância, já que constantemente somos alertados para problemáticas
que envolvem a tomada de decisão por parte de cidadãos, de quem se exige, portanto, uma
atitude consciente e interventiva.
Achamos, assim, que é de todo fundamental reflectir sobre as práticas pedagógicas
actuais, alterando-as de acordo com princípios epistemológicos que se pensam ser mais
adequados à época de constante mutação em que estamos inseridos, nomeadamente
desenvolvendo conteúdos científicos aliados aos conteúdos metacientíficos, utilizando
metodologias mais adaptadas ao processo de ensino-aprendizagem de disciplinas de carácter
experimental, permitindo aos alunos consciencializarem-se da importância da Ciência como
produto cultural e criar uma imagem dinâmica da construção da Ciência, reflectindo sobre a
mesma como empreendimento social (Gallagher, 1993).
Pretende-se, desta forma, através da alteração das práticas pedagógicas, atribuir
diferentes papéis aos alunos e professores (César et al., 2000). A utilização de práticas
construtivistas tem sido defendida nas últimas décadas – a partir dos anos 80, tendo por base
princípios epistemológicos associados às teorias piagetiana e vygotskiana – construtivismo
psicológico (Matthews, 1994). A visão tradicional da estrutura de uma aula em que o corpo de
conhecimentos que constitui o currículo escolar pode ser transferido do professor para os alunos
foi posto em causa, por se basear em princípios behavioristas, que consideravam os alunos
como receptáculos passivos de informação (Roth, 1993). De acordo com a perspectiva
construtivista, o conhecimento é uma construção individual que envolve o sujeito em inter-
relação com o meio físico e social que o rodeia e em que ocorre transformação do objecto do
conhecimento, uma vez que os alunos apreendem algo que é totalmente diferente daquilo que
era a intenção do professor, já que existe um processo de desconstrução e reconstrução do
conhecimento.
Assim, e de acordo com o construtivismo, o papel do aluno consiste em aceitar a
responsabilidade pela sua educação, devendo o professor assumir o papel de orientador das
aprendizagens, mais do que ser um transmissor de conhecimentos (César et al.2000).
Nas práticas construtivistas têm particular interesse as actividades realizadas em
pequeno grupo, situação que é bastante comum nas aulas de Ciências devido, nomeadamente, à
realização de actividades experimentais (Borges e César, in press), debate de temas actuais
envolvendo domínios da bioética e da biotecnologia (Reis, 1997) – extinção de espécies,
engenharia genética, utilização de animais na pesquisa farmacológica, por exemplo. A discussão
destes temas, na sala de aula, constitui-se como uma forma dos alunos construírem o seu
conhecimento sobre os mesmos, sendo fonte de enriquecimentos pessoais, assegurando uma
formação geral, que permita uma maturação cívica e sócio-afectiva e proporcione a aquisição de
atitudes autónomas, tendo em vista a formação de cidadãos responsáveis e intervenientes. Como
nos refere Roth (1993), “Porque o conhecimento é um fenómeno social, negociado e construído
através de interacções, a colaboração é uma necessidade primária nas aulas de Ciências. Tem
sido demonstrado que essas colaborações se traduzem em aspectos positivos na aprendizagem,
motivação e atitudes dos alunos” (p.148).
Em Portugal, têm sido realizadas algumas investigações utilizando as interacções como
factor primordial no desenvolvimento de competências e promotor do pensamento (Carvalho,
2001; César, 1994; Reis, 1997; Ribeiro, 1995), salientando-se a importância da interacção na
construção do conhecimento, através do “papel decisivo do confronto inter e intrapessoal de
ideias – conflito sócio-cognitivo – no desenvolvimento do cognitivo, social e afectivo e na
apropriação dos saberes” (Reis, 1997, p.130). Numa dessas investigações (Ribeiro,1995), aliado
ao poder das interacções na formação do indivíduo, foram utilizadas novas tecnologias de
informação, como forma de tornar a aprendizagem um processo activo e construtivista.
Verifica-se, assim, que a utilização de computadores, nomeadamente recorrendo ao trabalho em
díades, se torna uma fonte de possibilidades de exploração das potencialidades das interacções,
dentro do campo das Ciências, recorrendo a software adequado, já que o computador pode ter
uma função desestabilizadora, obrigando os sujeitos a efectuarem uma mudança de
representação no modo como executam uma tarefa, ou seja, pressionando-os para que
desconstruam e reconstruam aquele objecto do saber. No entanto, verifica-se que a maioria das
utilizações do computador nas escolas se limitam a “adaptar-se às práticas de ensino actual, em
vez de contribuírem para a consecução do principal objectivo cognitivo da educação (...)”
(Ribeiro, 1995, p.40). Assim, e de acordo com esta autora, a aprendizagem cooperativa e a
aprendizagem assistida por computadores resultou num novo campo de investigação, na qual se
vem relacionando a interacção entre pares com a aprendizagem baseada na utilização de
computadores. Outra forma de explorar as interacções entre pares relaciona-se com a
construção, por parte dos alunos, de mapas conceptuais, tarefa que permite ajudar os alunos a
visualizar as inter-relações entre os conceitos científicos, apresentados de uma forma gráfica,
através da execução de um esquema (Gallagher, 1993), o que permite o envolvimento dos
alunos e permite uma compreensão profunda dos conceitos em Ciência.
Abre-se, assim, um enorme potencial de investigação nos próximos anos, no que diz
respeito à utilização de recursos oferecidos pelas Ciências e sua exploração utilizando
metodologias que impliquem a interacção entre os sujeitos.

Metodologia

Devido à complexidade e carácter dinâmico do fenómeno em estudo, optámos por uma


abordagem qualitativa. O actual projecto adopta uma metodologia no âmbito dos projectos de
investigação-acção, abrangendo duas turmas do Ensino Secundário – uma turma de Ciências da
Terra e da Vida, do 10º ano e uma turma de Técnicas Laboratoriais de Biologia – Bloco III, do
12º ano. Nesta comunicação apenas serão analisados os dados recolhidos em relação à turma do
10º ano, pois por ter sido aplicado em duas disciplinas diferentes, as metodologias de trabalho
aplicadas com as turmas também foram diferentes, o que nos levaria a uma análise mais
aprofundada dos dados que não cabe neste tipo de apresentação.
Sujeitos de estudo
A turma do 10º ano com que trabalhámos, era constituída inicialmente por 22 alunos,
tendo a partir do início do 2º período ficado reduzida a 20 alunos, porque dois dos alunos que
frequentavam a disciplina, em regime de melhoria de classificação, anularam a respectiva
matrícula. Dos 20 alunos, 12 eram do sexo feminino e 8 do sexo masculino. A turma em que
foi aplicado o projecto estava atribuída a um dos autores da presente comunicação, que
leccionava numa escola secundária da área da Grande Lisboa.

Instrumentos
Ao longo do projecto, e no decorrer do ano lectivo foi realizada observação de aulas,
por diversos observadores – observação participante - algumas aulas, em particular as da
Unidade de Ensino sobre a qual se focou mais o projecto, foram gravadas (áudio e vídeo), foram
policopiados documentos dos alunos, como cadernos, fichas de trabalho, testes individuais de
avaliação e mini-testes, foram efectuadas entrevistas, no final do ano, a alguns alunos – 3
rapazes e 3 raparigas – que serviram de informadores privilegiados e foi entregue, a cada aluno,
um questionário sobre a avaliação do projecto, que depois de respondido foi devolvido ao
professor. Nesta comunicação vamos analisar os dados referentes aos questionários de avaliação
do projecto, aplicado no final do ano lectivo.

Procedimento
O projecto foi implementado desde o início do ano lectivo, tendo sido elaborada uma
planta da sala de aula com os alunos sentados por forma a constituírem díades não aleatórias.,
ou seja, após aplicação e análise das respostas a um questionário e uma tarefa para
conhecimento das capacidades e competências dos alunos, as díades foram constituídas de
forma heterogénea (díades assimétricas) e, de preferência, um elemento do sexo masculino com
um elemento do sexo feminino.
As actividades desenvolvidas com os alunos, na sala de aula, constaram,
essencialmente, de actividades de discussão (fichas de trabalho, actividades do manual escolar,
realização de actividades experimentais) que, inicialmente, eram realizadas pela díade e,
posteriormente, debatidas numa discussão geral (grupo turma). Os critérios de avaliação foram
explicitados no início do ano lectivo, sendo que, para além do trabalho diário da aula, os alunos
também realizaram mini-testes em díade e testes de avaliação individual. Os mini-testes
consistiram em pequenas fichas de trabalho, que abordavam os conteúdos científicos analisados
nessa semana, pois esta forma de avaliação era realizada semanalmente. Os alunos tinham a
oportunidade de, em díade, resolver o mini-teste que era entregue ao professor para correcção.
Das classificações obtidas nos mini-testes, calculava-se a média. Para o cálculo desta eram
contabilizadas todas as classificações obtidas, ao longo de um período lectivo, com excepção da
classificação mais elevada e mais baixa.
A análise que foi sendo efectuada ao longo do ano, no que diz respeito à avaliação
qualitativa e quantitativa, levou à alteração de algumas díades formadas inicialmente.
Apesar do projecto ter tido a duração de um ano lectivo, o estudo centrou-se
particularmente numa Unidade de Ensino do programa da disciplina – “A Origem da Vida”.

Apresentação e Discussão dos Resultados

No questionário que foi respondido pelos alunos, que participaram no projecto até ao
final do ano lectivo, diferenciámos três grandes grupos de questões: um primeiro grupo relativo
a aspectos cognitivos, um segundo onde se avalia o desenvolvimento da socialização e um
último onde se avaliam aspectos interrelacionais. Faremos em seguida uma apresentação dos
principais aspectos relativos a cada um dos grupos atrás definidos, bem como de uma discussão
dos mesmos.
Em relação à avaliação que os alunos fizeram do projecto implementado verifica-se que
19 alunos referiram que gostaram de trabalhar em díade (Quadro1). Para além disso, 17 alunos
gostariam de continuar, no próximo ano lectivo, a desenvolver actividades em díade (Quadro 2).
Em termos de avaliação do trabalho desenvolvido (Quadro 5), 13 alunos consideraram o
trabalho muito positivo, 6 avaliaram-no como positivo, tendo apenas 1 aluno classificado o
trabalho como neutro. Verifica-se, desta forma, que a grande maioria dos alunos considera o
trabalho em díade muito proveitoso. Como principais factores relevantes que contribuíram para
essa opinião, os alunos referem a melhoria do rendimento da aprendizagem – “porque acho
muito bem. Gostei. Aprende-se mais”(J.), desenvolvimento de espírito de interajuda e
cooperação – “porque nos ajudou a desenvolver o nosso espírito de cooperação”(R.),
esclarecimento de dúvidas mais proveitoso – “é um método que nos ajuda a compreender
melhor as nossas dúvidas. Esclarecemos muito as dúvidas, pois duas cabeças pensam melhor
que uma”(A.), promoção da aproximação entre colegas – “para além de dar para nos
aproximarmos de pessoas com quem não falamos também é sempre uma grande ajuda” (I.), e
um processo de ensino-aprendizagem inovador – “porque foi uma experiência nova e achei
muito interessante” (S.).

Quadro 1 – Respostas à questão: Quadro 2: Respostas à questão:


“ Gostou dessa forma de trabalho?” “Acha que devia ser continuado no próximo ano?

19
20 20
17
15 15

Sim Sim
10 10
Não Não

5 5
3
1

0 0
Quadro 4 – Respostas à questão:
Quadro 3 – Respostas à questão:
“Trabalhar em díade modificou as suas relações
“Como descreve as suas relações com os seus
com os seus colegas?”
colegas?”

14
14
12
12 10
10 8 Sim
6 Não
8 6
6 12 4
4 2
2 5 0
3
0 0 0
Muito Boas Médias Más Muito
Boas Más

Quadro 6 – Respostas à questão:


Quadro 5 – Respostas à questão:
“Gosta de C.T.V.?”
“Globalmente considera que o trabalho em díade tem
sido...”
20 19

15
15
Sim
10
10 Não

12 5
5
5 1
3
0 0 0 0
Muito Positivo Neutro Negativo Muito
Positivo Negativo

O único aluno que refere não ter gostado do trabalho em díade, menciona que não gosta
de qualquer forma de trabalho. Compreende-se, desta forma, que a maioria dos alunos, quando
lhes é dada a opção de continuar o projecto, no ano lectivo aderem a essa hipótese, pois acham
que dessa forma melhoram o rendimento, as relações sociais e aumenta a intervenção dos alunos
nas actividades da aula, tornando as aprendizagens mais rentáveis e “divertidas”. Há, ainda, o
aconselhamento para se envolverem mais alunos neste tipo de projecto, o que revela que os
alunos que experimentaram trabalhar colaborativamente consideram que esta metodologia é
vantajosa não só para eles próprios, mas para os alunos em geral. No entanto, há alunos que
apesar de reconhecerem a importância do trabalho em díade, mostram algum receio de serem
confrontados com ideias diferentes das suas, bem como de perderem a confiança no seu trabalho
individual, como por exemplo “porque acho que nós devemos começar a trabalhar por nós
próprio. 'ão quer dizer que trabalhar em díade não se trabalhe, mas acho que devíamos
começar a ser um pouco mais individualistas e confiarmos no nosso trabalho. Por vezes, há
pessoas que deixam de estudar porque o seu parceiro na díade o faz”(R.). Isto verifica-se pois
o trabalho em díade exige uma intersubjectividade comum, de acordo com Werscht (1991), pelo
que é necessária a existência de processos de centração-descentração relativamente ao outro, o
que pode abalar as convicções e conhecimentos que cada elemento do par tem.
Ao ter sido aplicado na disciplina de C.T.V., é evidente que ao avaliarem o trabalho
desenvolvido nesta disciplina, os alunos estão também a avaliar o próprio projecto. Verifica-se
que os alunos gostaram da disciplina de C.T.V. (Quadro 6), no geral, pois consideraram que
existiu uma boa relação com o professor, a forma de trabalho foi inovadora, permitindo
rentabilizar a aprendizagem através da realização de trabalho em díade e de trabalhos
experimentais. Apesar disso, os alunos salientarem alguns aspectos negativos como o
comportamento geral da turma, o volume de trabalho realizado nas aulas (que é muito maior que
o habitual), e a dificuldade de gerir as relações interpessoais na díade. É óbvio que o clima de
uma sala de aula em que se desenvolve esta forma de trabalho é mais agitado dado que a
autonomia e a liberdade de acção dos alunos é maior quando comparada com uma aula
tradicional de tipo expositivo. Assim, se os alunos discutem entre si a resolução de questões, é
natural que o ruído na sala de aula aumente. Esta característica é salientada como negativa pelos
alunos, por oposição à grande maioria das aulas das restantes disciplinas, nas quais têm um
papel meramente passivo e pouco interventivo. Desta forma, não é de estranhar que tenham
surgido propostas que visam a alteração do comportamento global da turma no contexto da sala
de aula. No entanto, pensamos que derivado do tipo de actividades desenvolvidas torna-se
difícil contornar este aspecto, pois o barulho existente, em grande parte das situações, não era
derivado de um comportamento indisciplinado mas tão só devido à discussão, na díade, das
questões às quais os alunos tinham que responder. Aliás, os observadores externos que
assistiram às aulas não consideraram o barulho de fundo acima dos limites do que é aceitável, o
que talvez revele quanto é raro –e, por isso mesmo, estranho – para os alunos, poderem co-
elaborar soluções num contexto de sala de aula, ou seja, serem realmente co-construtores do seu
próprio saber.
O trabalho em díade tem, entre outros, o objectivo de promover o desenvolvimento
competências cognitivas e sociais. Através das respostas a este questionário confirmou-se que
os alunos, para além de se terem consciencializado sobre os benefícios que este tipo de
estratégia trazia em termos cognitivos, foi também muito relevante para o estabelecimento de
uma rede social ao nível da turma, que de outra forma dificilmente se conseguiria obter. Os
alunos, de uma forma geral, referem que o trabalho em díade modificou as relações com os
colegas(Quadro 4). Muitos referem que se não tivessem participado neste tipo de trabalho,
provavelmente haveria colegas do grupo turma com quem nunca teriam trocado ideias, opiniões
ou sequer ter tido interesse em conhecê-los. Outros referem ainda que com este tipo de trabalho
passaram a conhecer melhor os colegas, a partilhar as suas ideias e até a alterar algumas das que
eles próprios tinham relativamente aos assuntos discutidos nas aulas, o que contribuiu para
melhorar o clima da turma. Assim, podemos encontrar resposta do tipo: “Porque me ajudou a
trabalhar com um colega com quem talvez nunca viesse a trabalhar” (A.), “Porque havia
algumas pessoas com quem eu não comunicava muito e agora falo muito melhor.” (C.) ou
ainda “Ajudou-me a entender melhor a personalidade de certas pessoas e a lidar melhor com
elas” (R.).
Os alunos que indicaram que as relações com os colegas não se modificaram, justificam
a resposta indicando que as mesmas já eram muito saudáveis antes da aplicação deste tipo de
trabalho porque já se conheciam de anos anteriores, como por exemplo, “Já me dava bem com
eles antes” (D.) ou ainda “'ós, antes das díades, já nos dávamos muito bem, sempre fomos e
seremos amigas” (B.).
Quando lhes foi perguntado como descreviam as suas relações com os seus colegas
(Quadro 3), verificou-se que a grande maioria responde como boas ou mesmo muito boas,
apresentando justificações tão diversas como “porque aceito as suas ideias e eles aceitam as
minhas” (S.), ou simplesmente, “porque me dei bem com toda a gente” (N)., ou ainda “porque
existe um respeito mútuo” (F.).
Através da análise das respostas que foram dadas parece-nos evidente que o trabalho
em díade foi percepcionado por estes alunos como factor de grande importância no
estabelecimento de relações sociais, quer dentro quer fora da sala de aula. Assim, quando
pensamos em alguns objectivos definidos pela política educativa, como “contribuir para a
realização do educando, através do pleno desenvolvimento da personalidade, da formação do
carácter e da cidadania, (...)” e “assegurar a formação cívica (...) dos jovens” (Lei de Bases do
Sistema Educativo) vemos que o trabalho colaborativo permite passar dos ideais às práticas, ou
seja, possibilita a concretização do que está previsto na referida Lei. Um dos aspectos em que
esta forma de trabalho se revela particularmente adaptada é na preparação para o exercício da
cidadania, na medida em que desenvolve o espírito crítico, a capacidade de argumentação, o
respeito pelo ritmo de cada um, a capacidade de trabalhar em equipa, de seleccionar e tratar
informação e a tomada de decisão, aspectos que nos parecem essenciais para formar cidadãos
participativos e que dificilmente serão atingidos quando se recorre a aulas do tipo expositivo.
Podemos efectuar uma análise mais focalizada em termos da avaliação que os alunos
fizeram quanto ao estabelecimento de inter-relações com o seu par. Como se referiu
anteriormente, as díades constituídas eram não aleatórias, ou seja, eram assimétricas
apresentando os alunos diferentes graus de desenvolvimento das diversas competências
consideradas. Em alguns casos, associaram-se alunos que praticamente não se conheciam, ou
que nunca se tinham falado anteriormente. Tendo sido a maior parte das díades alterada ao
longo do ano lectivo, interessa-nos agora saber com que impressão ficou cada aluno
relativamente ao seu par. Antes de mais, raramente os alunos apontam outros colegas com quem
gostaram menos de trabalhar, mas dão grande relevância àqueles com os quais foram
incentivados a trabalhar e a discutir ideias ou com aqueles em que o trabalho era mais
“rentável”. A T. refere que “gostei mais de trabalhar com o D., porque mantínhamos uma boa
relação , o que fazia com que discutíssemos as perguntas com sinceridade e calma”, dizendo-
nos a S. que gostou de constituir díade com “o T. e a E., porque acho interessante esta
experiência de confronto de ideias com os outros”. Os alunos podem ainda ser motivados com
este tipo de trabalhos por ser para eles um desafio conseguir mostrar aos outros os seus pontos
de vista. Assim, o M. diz-nos que “Gostei mais de trabalhar com a I., porque me deu uma
maior capacidade de discussão de ideias na díade.” Por oposição, os motivos que levam um
aluno a não gostar tanto de trabalhar com outro em díade podem ser de natureza psicossocial,
como “porque ele não falava quase nada comigo e não tínhamos quase nenhuma troca de
ideias”(P.), ou “porque ele não era muito fácil de comunicar e com ele o nosso trabalho não
se podia chamar trabalho em díade” (I.), ou de natureza cognitiva, “porque ela ‘pendurava-se’
um pouco nas pessoas pois não estudava nada porque eu sabia tudo”(R.), ou “porque as
nossas respostas não batiam certo” (N.). É interessante notar como os alunos se apercebem,
com este tipo de trabalho, das características particulares dos outros e como se consciencializam
que tem de existir uma aproximação de cada elemento do par para que haja proveito, quer em
termos cognitivos quer em termos sociais, da relação estabelecida.
Porém, também é de realçar que, depois de trabalharem colaborativamente, os alunos
aceitaram melhor a diversidade, respeitando as diferenças, nomeadamente no modo como
abordavam as tarefas propostas, como expunham as suas ideias ou quanto às várias soluções
encontradas. Por outro lado, este aspecto é tanto mais interessante quando não corresponde a
falta de rigor ou a facilitismo. A aceitação era acompanhada de empenho, de auto-estima
positiva, o que levava a tentar melhorar os níveis atingidos nas diversas competências.
Quando solicitados a associar uma palavra a díade, os alunos escolheram termos como
“convivência (trabalho)” (T.), “confronto” (S.), “união” (F.), “amizade” (N.), “excelente”
(G.), “cooperação” (I.), ou “produtividade” (B.), entre outras. Neste caso, em que a pergunta,
por ser muito pouco estruturada, assume características próximas das técnicas projectivas,
podemos observar que as palavras escolhidas revelam adesão, gosto por esta forma de trabalho e
realça, de forma nítida, o clima de interajuda e cooperação que caracteriza esta forma de
trabalho. Numa sociedade – e numa Escola! – que desenvolve muito mais a competitividade e o
individualismo do que a cooperação e a solidariedade, apesar do trabalho em equipa ser cada
vez mais uma exigência social, parece-nos de maior relevo que as práticas de sala de aula
permitam ultrapassar este tipo de contradições, como acontece quando se implementa o trabalho
em díade.
Através do que atrás ficou referido, parece-nos bem patente o quanto o trabalho em
díade marcou a vida escolar destes alunos, pelo menos ao nível da disciplina de C. T. V. e como
deixou marcas que, muito provavelmente, ultrapassam a apropriação de conteúdos pois inserem-
se em vivências pessoais, ou seja, naquilo que Santos (1991) designava “aprender a ser”.
Considerações Finais

No panorama actual da Flexibilização Curricular e da revisão curricular, muitos são os


desafios com que os professores se confrontam: educar e não só transmitir conhecimentos;
desenvolver competências várias nos alunos, nomeadamente as que se prendem com a
socialização e a preparação para a cidadania; ou saber lidar com a diversidade numa perspectiva
de escola inclusiva, ou seja, de uma Escola onde Todos têm lugar e são apreciados apesar
daquilo que os diferencia.
O trabalho colaborativo, nomeadamente em díade, tem-se revelado uma forma bem
adaptada para dar resposta a este tipo de desafios, levando os alunos a investir de forma
empenhada nas tarefas propostas, proporcionando um clima de sala de aula agradável mas onde
se desenvolve trabalho de qualidade, contribuindo para o alargamento da literacia científica.
Ouvir a voz dos alunos, quando avaliam metodologias de ensaio, não é uma prática
muito difundida. Contudo, como afirmam César e Oliveira (in press), dar voz aos ecos, ou seja,
ouvir aqueles que frequentemente são silenciados, é essencial para alterarmos as práticas de sala
de aula de uma forma que permita passar dos ideais às práticas, fazendo com que a escola
inclusiva deixe de ser uma imagem e passe a ser uma realidade.

Referências bibliográficas

Almeida, P. (2000). Interacções entre pares na sala de aula de Ciências: a passagem dos discursos às
práticas pedagógicas. (projecto de inovação do Curso de Especialização em Desenvolvimento
Curricular em Ciências, Universidade de Lisboa, documento policopiado).
César, M. (1994). O papel da interacção entre pares na resolução de tarefas matemáticas: trabalho em
díade vs. trabalho individual em contexto escolar (dissertação de doutoramento, Universidade de
Lisboa, documento policopiado).
César, M. (2000). Interacções sociais e apreensão de conhecimentos matemáticos: a investigação
contextualizada. In J. P. Ponte & L. Serrazina (Eds.), Educação Matemática em Portugal,
Espanha e Itália. Actas da Escola de Verão – 1999(pp. 5-46). Lisboa: SEM/SPCE.
César, M. et al. (2000a). Interacções sociais e Matemática: ventos de mudança nas práticas de sala de
aula. In J. P. Ponte et al. (Org.), Interacções na aula de matemática (pp. 47-83). Lisboa:
SEM/SPCE.
Documentos de trabalho (1993). Guia da Reforma Curricular. Lisboa: Texto Editora.
Gallagher, J.J. (1993). Secondary science teachers and constructivist practice. In K. Tobin (Ed.). The
practice of construtivism in Science Education (pp. 179-191). New Jersey: Hillsdale.
Matthews, M. (1994). Science teaching: The role of History and Philosophy of Science. New
York/London: Routledge.
Ministério da Educação (1986). Lei nº 46/86: Lei de bases do sistema educativo. Diário da República, I
série, nº 237.
Ministério da Educação (1999). Proposta de Revisão Curricular do Ensino Secundário. Lisboa:
Departamento do Ensino Secundário.
Reis, P. (1997). A promoção do pensamento através da discussão dos novos avanços na área da
Biotecnologia e da Genética. [dissertação de mestrado, Universidade de Lisboa, documento
policopiado]. Lisboa: DEFCUL.
Ribeiro, C. (1995). Dinâmica relacional entre pares de alunos. [dissertação de mestrado, documento
policopiado]. Lisboa: Faculdade de Ciências e Tecnologia.
Roth, W,-M. (1993). Construction sites: science labs and classrooms. In K. Tobin (Ed.), The practice of
constructivism in Science Education (pp. 145-169). New Jersey: Hillsdale.
Santos, J. (1991). Ensaios sobre Educação II. Lisboa: Livros Horizonte.
Santos, M.E. (1991) Dimensão epistemológica do ensino das Ciências. In M.T. Oliveira (Coord.),
Didáctica da Biologia (pp. 43-72). Lisboa: Universidade Aberta.
Trindade, M.J. (1996). A educação em Ciência: algumas reflexões. Revista de Educação, 6(1), pp. 127-
132.
Tryphon, A. & Vonèche, J. (1996). Piaget-Vygotsky – The SocialGenesis of Thought. Hove: Psychology
Press.
Werscht. J.V. (1991). Voices of mind. A sociocultural approach to mediated action. Hewel Hempstead:
Havester Wheatsheaf.

Você também pode gostar