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CRÍTICA

m arxista
Zero à esquerda

4ESENHAS
Paulo Eduardo Arantes
São Paulo, Editora Conrad,
2004 (Coleção Baderna)

ISABEL LOUREIRO*

Zero à esquerda (que poderia ter curso”, convertendo-se assim no seu “exa-
por subtítulo “o mundo de marcha a ré”), to oposto conformista”. O último, pu-
coletânea de artigos e entrevistas de Paulo blicado no começo do governo Lula, faz
Arantes publicados de 1997 a 2003, é a crônica de um suicídio. A peça é a
um livro que vem na hora certa, precisa- mesma, só mudaram os atores, ou me-
mente porque colabora na tarefa urgen- lhor, o “ocupante de plantão”. O título
te de repensar a esquerda no Brasil. Em auto-irônico do livro já é em si um ma-
vez de ficar com as “coisas boas de sem- nifesto: com ele, Paulo Arantes deixa bem
pre”, a integridade intelectual do autor claro seu distanciamento, tanto do ba-
o obriga a partir das “coisas novas e ruins”, luartismo da esquerda dogmática quan-
bem no espírito da coleção anteriormente to do pragmatismo da esquerda de re-
coordenada por ele e Iná Camargo Costa sultados, que, em nome de uma necessi-
na Editora Vozes. dade histórica inexorável, se ajustou
Um quadro resumido do novo e gostosamente ao novo curso do capita-
ruim mostra lá fora o fortalecimento do lismo.
imperialismo norte-americano, aqui den- Leitor incansável da atual produ-
tro a adoção automática do programa ção de esquerda, e também dos ideó-
do capital pela esquerda no poder. Nesse logos da direita, o autor tem como ob-
sentido, os dois artigos, o que abre e o jetivo desmontar a versão apologética
que fecha a coletânea, fazem pendant. O da globalização e assim lançar os alicer-
primeiro, escrito em pleno apagão da era ces de uma Teoria Crítica à altura da
FHC, diagnostica o fim da tradição crí- presente reconfiguração do capitalismo
tica brasileira que, apelando para um pro- global. A tarefa não é fácil quando o
cesso sem sujeito, justifica o “desastre em que temos pela frente é uma realidade

* Professora aposentada do Departamento de Filosofia, UNESP/Marília.

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não-linear, em transição para algo que tempo, repetindo um diagnóstico que
ainda não sabemos no que vai dar, mas já não é capaz de dizer que horas são. É
desconfiamos que será apenas o prolon- preciso reconhecer que a sociedade
gamento piorado da barbárie atual. unidimensional da época do fordismo
Neste texto-montagem, elíptico e explodiu: “a ditadura do mercado finan-
muitas vezes sibilino, cheio de ironias, ceiro sustentada pela retomada fraudu-
formulações lapidares, interrogações, o lenta da hegemonia americana”, apoia-
autor desconcerta o leitor desavisado em da no “poder de emissão do dinheiro
busca de respostas que ainda não exis- mundial lastreado pelo poder das ar-
tem. O quadro geral do movimento do mas”, que ameaça destruir o mundo,
capital vai sendo composto a partir da está longe de ser pacífica.
análise de vários fenômenos políticos e Quem acompanha a trajetória do
culturais contemporâneos (o ajustamen- autor sabe que sua obra se caracteriza
to do pensamento crítico brasileiro, a por ser um exercício de Ideologiekritik.
brasilianização do mundo, as idéias de Levando às últimas conseqüências a crí-
nação e nacionalismo, a assimilação tica da ideologia dos frankfurtianos,
entre cultura e dinheiro, o movimento Adorno à frente, Arantes insiste em boa
de maio de 1968, as ONGs, a política parte dos textos que as mudanças no
no Brasil) – todos eles atravessados pelo capitalismo do século XX levaram ao
fio vermelho da acumulação do capital e questionamento da crítica marxista da
de uma incipiente luta de classes –, que civilização burguesa, segundo a qual
desmonta em filigrana a coreografia ide- havia um fosso entre os ideais univer-
ológica do mundo atual. sais da cultura burguesa e a sua real
Os golpes à esquerda são dirigi- efetivação. A ideologia era falsa por ser
dos ao marxismo mecanicista com sua promessa não cumprida. Assim, a críti-
ênfase no econômico como determinan- ca da ideologia, ao mostrar que a reali-
te da vida social. Aliás, ironia da histó- dade não correspondia ao seu conceito,
ria, marxismo economicista e neolibera- implicava necessariamente realizar na
lismo, ao comungarem no ideário que prática, por meio de uma refundação
tudo subjuga ao econômico, acabaram revolucionária da realidade, os ideais
virando parentes próximos, o último abstratos do liberalismo burguês. À
pondo em prática o que no primeiro Ideologiekritik clássica subjazem uma
era interpretação do mundo. Mas, em- concepção otimista da história e uma
bora herdeiro da Teoria Crítica, Arantes fé ingênua no desenvolvimento das for-
também insiste que é preciso atualizar ças produtivas como mola propulsora
o diagnóstico do mundo administrado do fim da escassez e, por conseguinte,
contemporâneo do fordismo, feito pela da emancipação humana – todo um
Escola de Frankfurt. Uma Teoria Críti- ideário que desmorona no decorrer do
ca digna do nome não pode parar no século XX.

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Isso exige, por sua vez, a renova- ce a exibição cínica do poder, como
ção da crítica da ideologia, que Paulo nunca se viu desde o período entre as
Arantes herda de Roberto Schwarz. Em duas guerras mundiais. Só que pior,
sua análise da obra de Machado de As- porque as novas oligarquias imperiais
sis, Schwarz revela de que modo a críti- não enfrentam mais a oposição da clas-
ca da ideologia por aqui funcionava de se trabalhadora, e a própria esquerda dos
maneira diferente, e a razão pela qual partidos políticos contribui para forta-
isso acontecia “estava no fato de que a lecê-las.
experiência periférica da coexistência É como se estivesse em curso uma
sistêmica de capitalismo e escravidão mutação gênica, como se uma parte da
falseava a própria vigência dos padrões humanidade já pertencesse a uma nova
civilizatórios da idade liberal burgue- espécie zoológica adaptada à acumula-
sa”. Segundo Schwarz, Machado de ção “flexível”. As palavras perderam o
Assis nos permite entender que a civili- sentido: “destruição social virou sinô-
zação burguesa estava contaminada des- nimo progressista de ‘reforma’”; valo-
de a origem. Graças ao formalismo da res universais como igualdade, justiça,
troca de equivalentes, ela podia convi- solidariedade viraram invenção de per-
ver com todo tipo de barbaridade, des- dedores ressentidos, que recusam teimo-
de a escravidão, passando pelo nazis- samente os “benefícios” da moderniza-
mo, para acabar hoje na violência eco- ção em nome de direitos adquiridos
nômica, política e cultural do imperia- “corporativos”, vistos como “privilégi-
lismo norte-americano. os” contra os “excluídos”; os desempre-
Em outros termos, o desenvolvi- gados (mal inevitável decorrente das
mento do capitalismo no século XX pôs inovações tecnológicas) são responsáveis
a nu a “simbiose entre forças produti- pela sua condição, por não serem efici-
vas, servidão e extinção”, o que os entes e competitivos; ONGs (que subs-
frankfurtianos denunciaram em seu di- tituem um Estado desmantelado) apa-
agnóstico do mundo administrado e recem como solução democrática da
sem oposição, e que a intelectualidade pobreza; o apelo (“ético”) ao trabalho
acadêmica brasileira, predominante- voluntário (num mundo de desempre-
mente desenvolvimentista, não levou a go) mantém ocupados inempregáveis e
sério até recentemente. Esse mundo da senhoras de bom coração; defesa da
era fordista e do crescimento econômi- cultura como inclusão dos deixados-
co, em que sobravam migalhas para a por-conta e, se não funciona, as prisões
periferia, foi liquidado a partir dos anos estão aí para reinserir socialmente os
1970. E com ele acabou também a ilu- recalcitrantes – a gigantesca população
são do desenvolvimento. Com o carcerária nos Estados Unidos que o
aprofundamento da gigantesca desi- diga; e last but not least, a imposição do
gualdade da economia mundial, renas- modelo de desenvolvimento industrial

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predador e excludente aos países pobres, ciais. Entre elas, a do MST pela refor-
aceita de bom grado pelas elites periféri- ma agrária, que, numa época de priva-
cas como modernização. tização e mercantilização aceleradas de
Neste ponto, num dos ensaios todas as dimensões da vida, Arantes,
mais instigantes do livro (“A fratura bra- com razão, vê como “muito mais do que
sileira do mundo”), o autor registra que mera posse da terra”. Trata-se, na ver-
entramos no terreno das compensações. dade, neste fim de linha civilizacional,
Depois de aniquiladas as veleidades de de uma luta pela retomada dos bens pú-
o Brasil ser um dia o país do futuro (ten- blicos.
do por modelo, é claro, os países oci- Ou seja, a saída ainda é o socia-
dentais industrializados), podemos hoje lismo. Afinal, aprendemos após a sua
nos vangloriar de ter invertido os pa- derrocada que ele funcionava, na boa
péis e de estar na vanguarda, só que da fórmula de Robert Kurz, como uma
desintegração. Por assim dizer, anteci- “espécie de filtro moral sem o qual a
pamos o modelo de funcionamento do civilização moderna revela-se totalmente
mundo atual: uma sociedade altamen- incapaz de existir”. No entanto, é pre-
te polarizada, assentada em desigualda- ciso repensar a idéia clássica de socialis-
des de toda ordem, no trabalho infor- mo: este não resultará do “desdobra-
mal (precário-flexível), na delinqüência mento linear do desenvolvimento capi-
financeira da burguesia, na inseguran- talista das forças produtivas”, que por
ça econômica extrema. uma “espécie de milagre dialético” in-
Este o mundo de ponta-cabeça verteria a propriedade estatal-proletária
aparentemente sem saída que o autor dos meios de produção e aboliria o pro-
descreve. Mas o leitor atento verá que, letariado como classe e o Estado como
para além do diagnóstico da reconfi- Estado. Os socialistas do século XXI não
guração do capitalismo global, a crítica acreditam mais nesse tipo de mágica.
é feita da perspectiva de que existe vida Algumas indicações do que se pode pen-
para além do mercado. Dado esse diag- sar hoje como germes de socialismo em
nóstico, cabe a pergunta: será que ain- gestação na própria sociedade capitalis-
da faz sentido falar em socialismo, re- ta são dadas pelos movimentos sociais
volução e utopia? O autor acredita que em sua luta pela desmercantilização da
sim, para a salvação do planeta e da es- vida. É pouco? É. Mas é um dos reco-
pécie. O mote “socialismo ou barbárie” meços possíveis.
nunca fez tanto sentido quanto hoje.
Mas diferentemente de boa parte do
século XX, não se acredita que haja ga-
rantia de um final feliz para a guerra
social em curso, poderá ser a barbárie,
tudo depende do desfecho das lutas so-

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