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GABRIEL LANDI FAZZIO

O TRABALHO DOMESTICADO: EMPREGO DOMÉSTICO, TRABALHO REPRODUTIVO


E DIREITO DO TRABALHO

OU
CONTRIBUIÇÃO PARA A CRÍTICA FEMINISTA MATERIALISTA HISTÓRICA DO EMPREGO DOMÉSTICO

Tese de Láurea
Orientador Professor Associado Dr. Jorge Luiz Souto Maior

Universidade de São Paulo


Faculdade de Direito
São Paulo-SP
2014
2

GABRIEL LANDI FAZZIO

O TRABALHO DOMESTICADO: EMPREGO DOMÉSTICO, TRABALHO REPRODUTIVO


E DIREITO DO TRABALHO

OU
CONTRIBUIÇÃO PARA A CRÍTICA FEMINISTA MATERIALISTA HISTÓRICA DO EMPREGO DOMÉSTICO

Tese de conclusão de curso apresentada à Banca


examinadora da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo como requisito parcial
para a obtenção do título de Bacharel em Direito,
desenvolvido sob orientação do professor Jorge Luiz
Souto Maior.

São Paulo
Setembro de 2014
3

A Helieth Saffioti, in memorian, pelo mais vivo pensamento


brasileiro em termos de feminismo e marxismo.

À memória da luta da Laudelina Campos Melo, pioneira na


organização política e sindical das empregadas domésticas,
nascida em 1904, filha de pai e mãe alforriados em 1871
pela Lei do Ventre Livre, e falecida em 1991.

À presença da luta de Benedita da Silva, relatora na Câmara


Federal da PEC da Emenda Constitucional 72 de 2013.
Nascida no Morro do Chapéu, Mangueira, lutou pelos direitos
das negras e negros, e das empregadas domésticas, desde
sua participação na Assembleia Nacional Constituinte, tendo
sido eleita Deputada Federal pelo Partido dos Trabalhadores
em 1986.

A todo trabalho anônimo. Vosso é o mundo.


4

AGREDECIMENTOS

A meu filho, Caetano D´Alkimin Landi Fazzio, por revolucionar o sentido do trabalho
reprodutivo em minha vida.

À mãe dele, Larissa D´Alkimin. Há trabalho seu nessas linhas, invisível, mas
completamente.

À minha mãe e meu pai, Eliane Gehrt Landi Fazzio e Ricardo Fazzio, por todo o
carinho, cuidado e trabalho. A meu pai, por me despertar o interesse pelo estudo, pelas
letras e pela ciência. À minha mãe, pelas lições de abnegação e paciência. E, em nome
deles, à toda a família, especialmente às minhas irmãs, Luana Leme Fazzio e Mariana Landi
Fazzio.

Às minhas companheiras e companheiros que operam o direito trabalhista,


personificados no Dr. Ericson Crivelli. Da divisão cotidiana de nosso trabalho brota todo meu
interesse pelo Direito do Trabalho.

Às e aos camaradas da luta social, sejam as e os da angústia de nossa classe, com


quem convivemos mais, mas principalmente as e os que sempre nos acolheram como iguais
na luta, a despeito das diferenças, e nos ensinaram. De cada uma e um levo lições. De
algumas, os aprendizados mais fundamentais da vida, da política e da sociabilidade. A
distância não apaga a importância cotidiana dos referenciais de mundo aos quais me
abriram. “Ardente batalhão, suas mãos vão levantado a justiça e a razão, mulher, com fogo e
com valor”. (El pueblo unido jamás será vencido, Quilapayún).
5

“Sobre o abismo pairava Deus


O Homem era um dos aliados seus.
Era de se ver, era de se ver.
Mas Nora ignora os poderes reais
Do chicote, da espada e sua leis morais.
Era de se ver, era de se ver.”
-Tom Zé, Canção de Nora (Casa de Bonecas),
in Estudando o Pagode na Opereta Segregamulher e o Amor

“Não existe Lei Maria da Penha que nos proteja,


Da violência de nos submeter aos cargos de limpeza.”
-Yzalú, Mulheres Negras.
6

SUMÁRIO

Introdução ....................................................................................................................7

1. Na História do Direito, a evolução do Emprego Doméstico ....................................9


Preliminarmente ..........................................................................................................9
Periodização ..............................................................................................................11
Emprego Doméstico do Período de Consolidação das Leis do Trabalho .................12
Emprego Doméstico no Período de Constitucionalização das Leis do Trabalho ......16

2. Gênero e Trabalho .................................................................................................21


A empregada doméstica no interior das cifras ..........................................................21
Da Divisão Sexual do Trabalho ao patriarcado capitalista ........................................23
O patriarcado capitalista e as mulheres frente ao trabalho doméstico ......................25
O patriarcado capitalista e as mulheres frente ao emprego ......................................27
O Emprego Doméstico no patriarcado capitalista .....................................................30

3. Trabalho, produção e produtividade ......................................................................32


Trabalho produtivo e trabalho improdutivo ................................................................32
Trabalho produtivo e trabalho reprodutivo .................................................................37
Subordinação da reprodução à produção .................................................................41

4. Contribuição à crítica do Direito do Trabalho Doméstico ......................................45


Serviço, emprego e trabalho .....................................................................................45
O lar como mundo do trabalho ..................................................................................48
O trabalho em Juliet Mitchell ....................................................................................54

Conclusão ..................................................................................................................56

Referência Bibliográficas ...........................................................................................59


7

INTRODUÇÃO

“Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes


1
maneiras; porém, o que importa é transformá-lo.”
- Karl Marx

“Para começar, lembremos alguns fatos: não foi tratando


a questão do aborto, como usualmente se diz, que o
movimento feminista começou. Foi a partir da tomada de
consciência de uma opressão específica: tornou-se
coletivamente “evidente” que uma enorme massa de
trabalho era realizada gratuitamente pelas mulheres; que
esse trabalho era invisível; que era feito não para si, mas
para os outros e sempre em nome da natureza, do amor
2
e do dever maternal.”
- Danièle Kergoat

PEC das Domésticas. Foi assim chamada na imprensa privada e nos meios
oficiais e ficou conhecida pela população brasileira a Emenda Constitucional 72 de
abril de 2013, cuja regulamentação não foi concluída até a data da conclusão e
entrega desta monografia à avaliação, o que permite ainda o aprofundamento do
debate sobre o sentido da regulamentação do trabalho doméstico. Ainda sim, a
tramitação e aprovação da PEC 66/2012 ergueu debates sobre a condição jurídica e
social das empregadas domésticas.
Nos debates jurídicos, tanto nos julgados quanto na ciência do direito, o ponto
de vista das famílias empregadoras frente às empregadas domésticas e seus
direitos trabalhistas foram esmiuçados. O efeito inflacionário da aprovação da PEC
nos rememorou argumentos seculares.3 A despeito de terem alguns juristas lançado
luz ao significado histórico trabalhista e mesmo racial da aprovação da PEC, suas
implicações foram parcamente apreendidas de um ponto de vista do reconhecimento
do trabalho feminino.
No campo da ação política feminista e em outras áreas das ciências humanas,

1
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Trad. Álvaro Pina. São Paulo: Expressão
Popular, 2009.

2
KERGOAT, D. Divisão sexual do trabalho (verbete) In.: HIRATA, LABORIE, LE DOARÉ, SENO-
TIER (Orgs.). Dicionáriocritico do feminismo. São Paulo: EditoraUnesp, 2009.

3
“Tentou-se, por fim, formar o convencimento de que a abolição representaria a falência da
economia nacional e percebendo que o argumento não era sustentável, tendo à vista a grande
inserção do trabalho imigrante nas lavouras, passou-se a defender a necessidade do recebimento de
uma indenização pela perda da “propriedade”, qual seja, os escravos.”. Jorge Luiz Souto Maior, na
Carta Maior. Disponível em: http://bit.ly/1w4Gi7S. Acesso em 08/09/2014.
8

a PEC resultou em discussões importantíssimas exatamente sobre o trabalho


feminino doméstico e familiar, e suas relações com as contradições raciais no Brasil.
Em um contexto de avanço da formalização do trabalho feminino combinado com
sua inserção nos postos de trabalho mais precários (terceirizados ou temporários, e
em atividades desvalorizadas de cuidados, limpeza e organização), a PEC foi tida
como aproximação para a quitação de uma dívida histórica para com uma parcela
historicamente discriminada dentre as categorias de empregadas assalariadas.
Se aos debates jurídicos muito prescinde das reflexões sobre a divisão sexual
do trabalho, à perspectiva feminista materialista histórica (como ao materialismo
histórico em geral, arriscamos dizer) carece a aproximação com o Direito do
Trabalho, tanto em sua perspectiva histórica quanto prática, para a crítica e
elaboração das alterações jurídicas emanadas da EC 72/13, suas reais limitações e
perspectivas.
A parca legislação existente permite traçar, ao menos no plano do
desenvolvimento legislativo (ou seja, sem levar em conta o desenvolvimento da
jurisprudência e da doutrina), a evolução histórica jurídica do emprego doméstico.
Posteriormente, tal exposição será norteadora da aproximação prioritária com
determinados conceitos do feminismo materialista histórico, como a divisão sexual
do trabalho e o trabalho reprodutivo. Com tal aproximação, não apenas acreditamos
ser possível uma melhor compreensão da legislação trabalhista sobre o emprego
doméstico, mas a crítica da própria forma jurídica do emprego e do trabalho, na
mesma linha de reflexão que afirma que “ao pretendermos analisar a forma como a
relação de compra e venda da força de trabalho se mostra socialmente aparente em
sua veste jurídica, de forma completamente dissonante com a real relação existente
entre o comprador e o vendedor desta peculiar mercadoria, não estamos propondo
pesquisa ‘supérflua’, mas sim o estudo de questão que foge ao conhecimento de
grande parcela dos estudiosos do Direito do Trabalho”.4
O que se coloca aqui, prontamente, é que não há dissociação entre método e
objeto em nossa exposição, nem imparcialidade em nossa reflexão. E, mais do que
uma contribuição à análise jurídica sobre o emprego doméstico, o que se pretende é
uma contribuição à síntese do feminismo materialista histórico mediante o recurso à
análise jurídica.

4
MACHADO, Gustavo Seferian Scheffer. A Ideologia do contrato de trabalho: contribuição à
leitura marxista da relação jurídica laboral. São Paulo, 2012, p. 10.
9

1. NA HISTÓRIA DO DIREITO, A EVOLUÇÃO DO EMPREGO


DOMÉSTICO

Preliminarmente

“Tudo que corre, grita, trabalha, tudo que transporta e


carrega é negro.”
- Em 1858, frase proferida por Robert Ave-Lallemant,
médico e explorado alemão que viajou pelo Brasil.

“Todo serviço doméstico é feito por pretos: é um cocheiro


preto quem nos conduz, uma preta que nos serve, junto
ao fogão, o cozinheiro é preto e a escrava que
amamenta a criança branca; gostaria de saber o que fará
essa gente quando for decretada a completa
5
emancipação dos escravos.”
- Ina Von Binzer.

Embora desenvolvamos a crítica do emprego doméstico com base em sua forma


jurídica, algumas das invisibilidades que pesam sobre o trabalho doméstico
impedem que iniciemos nossa exposição sem algumas considerações. Nossas
formulações não brotam espontâneas da análise dos fatos, senão nos impelem a
nos debruçar sobre os fatos. Daí deriva que seja necessário afirmar prontamente
questões candentes, notadamente as em torno das contradições raciais no Brasil, na
medida em que consideramos que terão menor destaque adiante.
A primeira norma jurídica sobre o trabalho reprodutivo realizado por pessoa
terceira à família esteve inscrita no Código de Posturas do Município de São Paulo,
de 1886, que estabelecia as regras para as atividades dos “criados de servir e amas-
de-leite”. Versava sobre as posturas das trabalhadoras no exercício de sua função, e
não sobre a compra e venda do trabalho doméstico, uma vez que as trabalhadoras
em questão eram pessoas escravizadas.
Afirmamos, então, que não basta apontar que o emprego doméstico tem gênero,
mas também que tem raça. Se já durante a escravidão inúmeras mulheres negras
eram forçadas a dedicar suas vidas aos trabalhos domésticos de terceiros brancos

5
FERRAZ, Fernando Basto; RANGEL, Helano Márcio Vieira. A discriminação sociojurídica ao
emprego doméstico na sociedade brasileira contemporânea: uma projeção do passado colonial.
Fortaleza: Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI, 2010, p. 8640.
10

em relações de absoluta subordinação, dependência econômica e desamparo


jurídico, com a abolição da escravidão pouco mudou, e lentidão do desenvolvimento
da proteção trabalhista das empregadas domésticas traz às marcas mais claras da
desvalorização do trabalho negro que se verifica em toda a América Latina. Tudo o
que limpa, cozinha, serve, lava e passa é negra.
Sobre tal questão étnica, ainda, não apenas a problemática da negra e do negro
vale ser ressalvada, mas a das migrações. Se em países como a Europa tal questão
assume o posto principal do debate sobre o racismo, no Brasil (ainda com as
crescentes imigrações haitianas e bolivianas) as contradições raciais têm
historicidade própria, ligada ao tráfico de mão de obra escravizada negra. Ainda sim,
principalmente combinando a “questão meridional” 6 brasileira e a desigualdade
regional sob a chave de análise da questão racial, a relação entre os fluxos
migratórios e o trabalho doméstico é relevante:

“Ao explicar o significativo excedente feminino nas popu-


lações das cidades pré-industriais da Europa Ocidental,
Antoinette Fauve-Chamoux (1998) concluiu que era de-
terminante o papel da imigração feminina, sobretudo das
domésticas na formação das populações urbanas. No
Brasil contemporâneo, a população urbana caracteriza-
se também por um alto desequilíbrio entre os sexos: 94
homens para cada cem mulheres; nas capitais, a des-
proporção é ainda maior (o número de homens baixa pa-
ra 91 a cada cem mulheres). Nas zonas rurais, ao con-
trário, observa-se um considerável déficit feminino (109
homens para cada cem mulheres). O desequilíbrio entre
os sexos seja entre citadinos, seja entre camponeses,
não pode ser atribuído a uma natalidade ou a uma mor-
talidade diferenciada entre homens e mulheres, cuja va-
riação se daria em função da população ser urbana ou
rural. Ele expressa, na verdade, o caráter sexuado dos
movimentos migratórios, a saber, uma sobrefeminilidade
das trocas entre o rural e o urbano e uma sobremasculi-
nidade dos fluxos entre o urbano e o rural. Em outras pa-
lavras, o êxodo rural, que alimenta o crescimento da po-
pulação urbana, é um fenômeno majoritariamente femi-
7
nino.”

6
Sobre a utilização do conceito de “questão meridional”, oriundo de Gramsci, à realidade
brasileira, ver SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São
Paulo: Editora Companhia das Letras, 2012.
7
JACQUET, Christiane. Urbanização e emprego doméstico. São Paulo: Revista Brasileira de Ci-
ências Sociais, vol. 18, nº 52, 2003. Importante ter em conta também as reflexões sobre uma sociolo-
gia do trabalho doméstico no interior da sociologia das migrações em BLÈTIÈRE, Vanessa. Por uma
Sociologia do Trabalho Doméstico: Contribuição para um Projeto Interdisciplinar. Lisboa: Centro de
Estudos sobre a Mudanças Socioeconomica, 2008. Disponível em: http://bit.ly/1nyDnMx. Acesso em:
04/08/2014
11

Periodização

Um estudo mais global da História do Direito do Trabalho requereria uma


periodização mais especifica do que a da qual nos valeremos. Seria importante
elaborar as lutas da classe operária antes da CLT, o período entre a CLT e a
Ditadura Militar-Civil, o período até a abertura do regime e, então, um período
contemporâneo, no qual se inseriria a redemocratização brasileira, o neoliberalismo
e seu esgotamento8. Se nos valêssemos dessa periodização mais extensa, poucos
proveitos haveria para o estudo do desenvolvimento do emprego doméstico na
legislação brasileira – ainda que fossem fundamentais se nos propuséssemos a uma
compreensão de historicidade mais material das lutas das empregadas domésticas
pela conquista de direitos. Não sendo este tanto nosso escopo, propomos a divisão
de dois períodos emblemáticos para o emprego doméstico na História do Direito do
Trabalho brasileiro.
O primeiro período seria o de consolidação do conceito jurídico do emprego
doméstico. Remontando o início da regulamentação trabalhista no Brasil até a
Assembléia Nacional Constituinte de 1987/88, é o período no qual se matura o
conceito e se conferem os primeiros direitos às empregadas domésticas.
O segundo período seria inaugurado pela Constituição de 1988, que alçou a luta
política pela equiparação das empregadas domésticas aos demais empregos ao
patamar constitucional sem, contudo, reavivar o debate sobre a regulamentação
conceitual do emprego doméstico.
Para uma análise mais detida da ação política das empregadas domésticas na
luta por seus direitos, no movimento sindical, no movimento negro e no movimento
feminista, recomendamos a leitura de Joaze Bernardino-Costa e Judith Karine
Cavalcanti Santos9.

8
FILHO, Wilson Ramos. Direito capitalista do trabalho: história, mitos e perspectiva no Brasil. São
Paulo, LTr 2012.

9
BERNARDINO-COSTA, Joaze. Sindicato das trabalhadoras domésticas no Brasil: teorias da
descolonização e saberes subalternos. Brasília: UNB, 2007. SANTOS, Judith Karine Cavalcanti, Par-
ticipação das trabalhadoras domésticas no cenário político brasileiro. Santa Catarina: Seminário In-
ternacional Fazendo Gênero, 2010.
12

Emprego Doméstico no Período da Consolidação das Leis do


Trabalho

Assevera Pontes de Miranda que na Antiguidade e na Idade Média não existia


contrato de trabalho doméstico. Havia o escravo ou o servo. O patrão só tinha de
mantê-lo para que não morresse. Aos servos domésticos, atribuía-se grau superior
em relação aos servos rústicos. Pinto Martins ensina também que:

“No século XVII, havia várias pessoas que faziam


serviços domésticos, como aias, despenseiros, amas,
amas-de-leite, amas-secas, cozinheiros, secretários,
criados, damas de companhia. Aos poucos, houve um
nivelamento entre os homens livres e os servos, surgindo
o famulatus. A Igreja começou a ser preocupar com a
situação do famulatus, de modo que houve uma melhoria
em sua condição, passando a ser considerado um
10
prestador de trabalho, de maneira autônoma”.

A evolução do conceito jurídico de emprego doméstico ao longo da História do


Direito do Trabalho brasileiro pode ser analisada tomando por ponto de partida11 o
Decreto-Lei 3.078, baixado em fevereiro de 1941 pelo Presidente da República,
Getúlio Vargas, usando da atribuição que lhe conferia o artigo 180 da Constituição
então vigente. Primeiro diploma legal a se valer do conceito, dispunha sobre “a
locação dos empregados em serviços doméstico”, considerados “todos aqueles que,
de qualquer profissão ou mister, mediante remuneração, prestem serviços em
residências particulares ou em benefício destas”. O Decreto-Lei obrigava o
“empregado” ao uso de “carteira profissional” e, com relação ao “empregador”,
constituía o dever de pagamento pontual dos “salários convencionados”. Tratava
pela definição de “contrato de locação de serviço doméstico” o vínculo obrigacional
existente entre o empregado e o empregador, no qual apenas após seis meses de
serviço permanente e exclusivo se tornaria exigível aviso prévio de oito dias como

10
Ambas citações dos juristas se encontram em FERRAZ, Fernando Basto; RANGEL, Helano
Márcio Vieira. A discriminação sociojurídica ao emprego doméstico na sociedade brasileira
contemporânea: uma projeção do passado colonial. Fortaleza: Anais do XIX Encontro Nacional do
CONPEDI, 2010, p. 8636-8637.
11
ANDRADE, Dárcio Guimaraes de. Empregado doméstico. Belo Horizonte, Revista do TRT da
3ª Região, jul./dez., 1997, p. 69/75.
13

restrição à rescisão do contrato.


A confusão (apenas aparentemente) anacrônica com que tais conceitos se
combinam ajuda a entender o Decreto-Lei como peça do ordenamento jurídico que
remonta um período de transição da regulamentação das relações capitalistas de
trabalho dos marcos do Direito Civil para o Direito do Trabalho. A forma contratual
em questão, por exemplo, toma suas bases no Decreto 16.107, de 1923, do antigo
Distrito Federal, que cuidava do “regulamento de locação dos serviços domésticos”,
elencando entre estes expressamente o rol daqueles que exercessem as funções de
cozinheiros e ajudantes, copeiros, arrumadores, lavadeiras, engomadeiras,
jardineiros, hortelões, porteiros ou serventes, enceradores, amas-secas ou de leite,
costureiras e damas de companhia, em casas ou hotéis e restaurantes.
Aqui é interessante mais um recuo, antes de seguir o desenvolvimento do
conceito que desdobramos. O rol do Decreto 16.107/23 permite, mais que os
diplomas legais posteriores, uma divisão de gênero no interior da categoria das
pessoas empregadas em tarefas domésticas. Esse fenômeno já estava inscrito no
Código de Posturas do Município de São Paulo, de 1886, que estabelecia as regras
para as atividades dos “criados de servir e amas-de-leite”. De 1941 em diante, o
empregado doméstico será tratado pelo Direito no gênero masculino, representando
sob uma universalidade ideológica as lavadeiras, engomadeiras, amas, costureiras e
damas de companhia do Dcreto 16.107/23.
Em seu artigo 16, o Decreto-Lei 3.078/41 dizia que “O Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio promoverá os estudos necessários ao estabelecimento de um
regime de previdência social para os empregados domésticos”. Nem o texto do
Decreto-Lei nem tal pretensão sua integrou à Consolidação das Leis do Trabalho,
decretada pouco mais de dois anos depois. Ao positivar o emprego doméstico
enquanto conceito, o Decreto de 1941 revive as antigas formas de regulamentação
jurídica do trabalho doméstico realizado por terceiros aos moradores do domicílio,
apenas para revogá-las junto consigo.
Quando o empregado doméstico surge no artigo 7º da CLT, é para ver-se
excluído da aplicação dos preceitos da Consolidação, passando a ser definido como
prestador de “serviços de natureza não econômica à pessoa ou à família, no
âmbito residencial destas”.
Quiçá tenha até sido por isso desnecessário ao Direito do Trabalho nascente
diferenciar, no interior do emprego doméstico, os copeiros e as lavadeiras: mal
14

preceitua que a todo trabalho de igual valor corresponderá igual salário, sem
distinção de sexo (artigo 5º), e já exclui as empregadas domésticas de tal guarida,
mesmo por que, afinal, não vê valor econômico em seu labor.
A CLT opera tal exclusão do emprego doméstico em relação aos Direitos que
institui “salvo quando for, em cada caso, expressamente determinado o contrário”.
Tal hipótese apenas veio décadas depois a ser utilizada. Quase que por cinismo do
legislador, no entanto, outros diplomas legais posteriores foram desnecessariamente
categóricos em reiterar a exclusão do emprego doméstico: a Lei 605 de 1949, que
institui o repouso semanal remunerado, afirma não se aplicar aos empregados
domésticos; e a Lei 3.807 de 1960, que dispõe sobre a Lei Orgânica da Previdência
Social, exclui expressamente de seu regime os empregados domésticos, salvo na
condição de se inscrever “na instituição de previdência social de profissional
comerciário, cabendo-lhes no caso, o pagamento em dobro das respectivas
contribuições”.
Em 11 de Dezembro de 1972, durante a presidência do militar Emílio G. Médici, a
promulgação da Lei 5.859 significou uma grande mudança para a regulamentação
do emprego doméstico, ainda que mantido o espírito de exclusão e diferenciação de
tal categoria frente ao emprego em geral. O empregado doméstico passa a ser
considerado “aquele que presta serviço de natureza continua e finalidade não
lucrativa à pessoa ou família no âmbito residencial destas”. A Lei implica em
uma conquista de Direitos, por um lado, ao estender algumas garantias à categoria
(vedação do desconto no salário por fornecimento de alimentação, vestuário, higiene
ou moradia; férias anuais remuneradas e acesso aos benefícios e serviços da Lei
Orgânica da Previdência Social na qualidade de segurados obrigatório). Por outro
lado, institui que o acesso a tais direitos apenas é dado ao empregado doméstico
que preste seu serviço de forma contínua, e estando registrado mediante a
assinatura pelo empregador de sua Carteira de Trabalho. Mantidos os altos índices
de informalidade no mercado do trabalho doméstico, e no contexto de crescimento
da prestação do trabalho doméstico na forma da prestação eventual das diaristas, a
Lei 5.859 se positiva assegurando direitos apenas a uma pequena parcela das
empregadas domésticas – as registradas.
Não seria preciso recorrer à hipótese da expressa determinação em caso
contrário, contida no artigo 7º da CLT, como fundamento da harmonização de tal Lei
com a Consolidação, vista a especificidade do diploma de 1972. Da mesma forma,
15

não seria o caso dos avanços legislativos contidos na Constituição Federal de 1988,
exatamente pelo caráter constitucional da normal contida no parágrafo único do
artigo 7º (ainda que, formalmente, o texto legal apresente exatamente a expressa
determinação em contrário exigida pela CLT, o que não desvirtua, em verdade, de
seu continuado espírito de diferenciação e minoração do empregado doméstico em
relação aos demais empregos). Talvez a única expressão de tal hipótese (ressalvada
a Lei Complementar 103 de 2000, da qual trataremos mais adiante) esteja contida
no Decreto 95.247 de 1987. Ao instituir o Vale-Transporte, a LC 103/2000
expressamente trata dos empregados domésticos, incluindo-os no conjunto de seus
beneficiários, no inciso II de seu artigo 1º. Sem sequer se valer da hipótese da CLT,
no entanto, salta aos olhos que apenas a partir de 1972, 31 anos após sua primeira
aparição jurídica, o emprego doméstico tenha alçado alguma proteção trabalhista.
Não obstante, pouco depois, em 1984, veto do presidente João Figueiredo
impediu a ampliação do direito a férias de 30 dias para empregadas domésticas, sob
a seguinte fundamentação:

“Excelentíssimos senhores membros do Congresso


Nacional:
Tenho a honra de comunicar a Vossas Excelências que,
eu, nos termos dos artigos 59, parágrafo 1º, e 81, item IV
da Constituição, resolvi vetar, na íntegra, por contrários
ao interesse público, o Projeto de Lei nº. 2.830, de 1980
(nº. 90, de 1979, no Senado Federal), que ‘concede aos
empregados domésticos férias anuais remuneradas de
trinta dias corridos, após cada período de doze meses de
trabalho’.
O projeto altera de vinte dias úteis para trinta dias
corridos as férias dos empregados domésticos,
equiparando-os nesse particular, aos assalariados em
geral.
Os serviços domésticos são exercidos no lar, onde
está excluído interesse econômico. O relacionamento daí
originado é sui generis.
Assim sendo não é prudente equiparar os regimes e
concessão de férias, porque os empregados domésticos
não estão subordinados aos habituais mecanismos de
controle de frequência ao trabalho, o que torna
impraticável a anotação de faltas que podem reduzir
12
proporcionalmente o período de férias”.

12
BERNARDINO-COSTA, Joaze. Sindicato das trabalhadoras domésticas no Brasil: teorias da
descolonização e saberes subalternos. Brasília: UNB, 2007, p. 238.
16

Emprego Doméstico no Período da Constitucionalização das Leis


do Trabalho

O processo de constitucionalização de uma série de direitos trabalhistas nos 34


incisos e no parágrafo único do artigo 7º da Carta Magna de 1988 não pode ser
entendido como mera compilação em instância superior do ordenamento jurídico de
alguns direitos já existentes e ampliação de outros. O papel desempenhado pelo
sindicalismo autêntico13 na abertura política do Estado Brasileiro guarda profundas
relações com a constitucionalização de tais direito do trabalho.
A Constituição significou às empregadas domésticas o acesso à guarida
protetora dos direitos ao salário mínimo, à irredutibilidade salarial, ao décimo terceiro
salário, ao repouso semanal remunerado, às férias anuais remuneradas e abonadas
com 1/3, à licença à gestante e ao pai, ao aviso prévio proporcional e à
aposentadoria (uma vez que não só a legislação de 1972 já conferia o direito à
integração à previdência social constitucionalizado no parágrafo único do artigo 7º
da CF, como o próprio artigo 6º já conferia tal direito, sem que dele emane qualquer
motivo aparente para que fossem consideradas excluídas as trabalhadoras
domésticas). Se tal positivação implicou em mudanças benéficas nas condições de
labuta das empregadas domésticas registradas, cumpre notar que nem a
Constituição Cidadã logrou conferir ao emprego doméstico o mesmo status do
emprego urbano e rural, sendo de 9/34 a desproporção entre os direitos de uns e de
outras, em relação aos incisos.
A Constituição Federal não redefine o que seja o emprego doméstico. Pode-se
entender, com isso, que se vale da definição dada pela Lei 5.859/72. Uma sutil mu-
dança terminológica, no entanto, tem algum significado a ser explorado (tarefa que
nos imporemos mais a frente): na Consolidação das Leis do Trabalho, há um forte
conteúdo ideológico14 ao tratar os empregados por trabalhadores, sejam rurais ou
urbanos. Não se faz menção, porém, a trabalhadores domésticos, e sim a emprega-
dos domésticos. A CF, neste sentido, ao versar sobre trabalhadores domésticos,
13
Sobre o papel do sindicalismo na queda do Regime autoritário Militar, ver MATTOS, Marcelo
Badaró. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2012, p. 101-152. Sobre
algumas experiências práticas de tal resistência, acerca do caso especifico do sindicalismo bancários
paulista, ver CRIVELLI, Ericson. Democracia sindical no Brasil. São Paulo: LTr, 2000.

14
MACHADO, Gustavo Seferian Scheffer. A Ideologia do contrato de trabalho: contribuição à
leitura marxista da relação jurídica laboral. São Paulo, 2012.
17

figura solitária e simbolicamente dignificante em meio à legislação sobre o emprego


doméstico.
De 1988 em diante, a legislação brasileira sobre o emprego doméstico passaria
ainda por duas décadas e meia de neoliberalismo sem qualquer avanço. Embora
alguns diplomas legais tenham tratado das empregadas domésticas nos anos 2000,
as mudanças trazidas por estes foram pontuais e, diferente do que proclamavam
intencionar, pouco inclusivas quanto ao acesso ao FGTS e ao Seguro Desemprego.
Mesmo a já mencionada Lei Complementar 103 de 2000 induz ao erro. Para a vista
incauta poderia parecer como se a legislação infraconstitucional se valesse da
hipótese de expressa determinação em contrário da CLT para estender o direito ao
piso salarial (inciso V do artigo 7º da Constituição Federal) às empregadas
domésticas. O diploma, no entanto, ao autorizar os Estados e o Distrito Federal a
instituir o piso salarial em questão, meramente versa sobre a possibilidade de
extensão de tal piso às empregadas domésticas. Em outras palavras: por um lado,
não versasse a Lei Complementar 103/2000 sobre o emprego doméstico, ainda sim
poderiam os Estados e o Distrito Federal, nos termos combinados de tal autorização
e da formulação celetista, expressamente determinar a extensão do piso às
empregadas domésticas – por outro, versando, não torna obrigatório aos Estados e
ao Distrito Federal estender o piso salarial às empregadas domésticas.
A exceção a esta estagnação apenas viria em 19 de julho de 2006, vedando a
dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada doméstica gestante por
intermédio da Lei 11.324. Intrigante que a Lei tenha advindo da Medida Provisória
284 de 6 de março de 2006, na qual não constava ainda tal vedação, senão o tema
de principal escopo mesmo da Lei: a situação previdenciária da empregada
doméstica. Vale ressaltar que, de toda a legislação sobre o tema desde 1923, é
apenas em tal texto legal, e apenas quando da vedação à dispensa arbitrária ou sem
justa causa da empregada gestante, que o emprego doméstico é personificado no
gênero feminino.
No curso deste um quarto de século de intermédio entre a Constituição de 1988
e a PEC 66/2012 (a expressivamente chamada PEC das Domésticas), talvez o
referencial jurídico mais avançado a se ter em conta sequer integre formalmente o
ordenamento nacional: a Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho.
Aprovada em 16 de junho de 2011, durante a 100ª Convenção da OIT, e tendo
18

entrado em vigor em 06 de setembro de 201315, trata da necessidade de assegurar


condições decentes de trabalho aos empregados domésticos de todo o mundo. À
época, tramitava no Congresso Nacional a PEC 478/2010, que estendia todos os
direitos do artigo 7º da Constituição às empregadas domésticas através da
revogação do parágrafo único do mesmo artigo. No ano da aprovação da
Convenção 189, iniciou sua tramitação a PEC 114/11, de idêntica inspiração, seja no
objetivo ou no método de implementação. Após duas décadas de políticas
neoliberais e após três anos de crise econômica internacional, a dignidade do
emprego doméstico retornava ao centro do debate jurídico trabalhista.
Coube, em 2012, à deputada federal Benedita da Silva (PT/RJ) a formulação da
PEC 66/2012, que viria a ser aprovada em 2013. Em relatório 16 apresentado à
Comissão Especial destinada a proferir parecer à proposta de emenda à
Constituição Nº 478-A de 2010 (à qual foi apensada a PEC 114 de 2011), Benedita
da Silva apresentou proposta mediadora quanto à tática frontal de revogação do
parágrafo único do artigo 7º da CEF. Elaborou, em tal relatório, a fundamentação dos
motivos pelos quais estender cada um dos incisos do artigo 7º às empregadas
domésticas. Coube a uma mulher negra e outrora empregada doméstica, esta
parlamentar que desde a sua atuação como Deputada Constituinte 17 em 1988
defendeu a ampliação de direitos à categoria, o papel histórico de formular o que
viria a ser a EC 72/2013, recuando de sua posição original de enfrentamento ao
parágrafo único a fim de ampliar garantias jurídicas que viu recusadas 25 anos antes.
Só com a aprovação da EC 72 de 02 de abril de 2013, as empregadas
domésticas passaram a ter direitos como a proibição do trabalho noturno, perigoso
ou insalubre aos menores; proibição de discriminação de sexo, idade, cor ou estado
15
Organização Internacional do Traablho, 2013. Disponível em: http://bit.ly/1ungkcH, apud
http://bit.ly/Z7luOi. Acesso em: 25/07/2014.
16
Câmara dos Deputados, 2012. Disponível em: htttp://bit.ly1w8pVUW. Acesso em 03/09/2014.
17
“Em referência à criação do mesmo projeto de lei, Carli do Santos [presidenta do sindicato das
empregadas domésticas do município do Rio de Janeiro] apresenta a sua formulação como um
processo onde as empregadas domésticas estiveram plenamente ativas, trabalhando em conjunto
com Benedita da Silva. Ao falar da suas atuação como candidata a deputada federal, durante o quinto
congresso da categoria realizado em 1985, mostra como ela influenciou na possibilidade de aquisição
de direitos para a categorias: “Nesse congresso inclusive, Benedita ainda era futura candidata [...] ela
ficou louca com aquela mulherada toda, eram 120 participantes... aí nós falamos, vamos fazer a leia
da domestica, foi escrito pelas domésticas [...] queríamos FGTS, seguro-desemprego, horário de
trabalho, licença gestante, décimo terceiro, férias [...] ela (Benedita) ajudou no sentido de abrir as
portas quando ela tava lá como deputada, ajudando a abrir as portas, por que não queriam deixar as
domésticas entrarem no plenários da câmara”. BARROS, Rachel. Conflitos sobre a categoria
emprego doméstico: entra (in)definições, lutas e mudanças. Revista Eletrônica da Rede de Estudos
do Trabalho. Ano IV, n. 11, 2012.
19

civil; jornada de 44 horas semanais; hora extraordinária remunerada com valor


superior a 50% do normal, entre outros direitos, estes por sua vez conferidos
“atendidas as condições estabelecidas em leis e observadas a simplificação do
cumprimento das obrigações tributárias, principais e acessórias, decorrentes da
relação de trabalho e suas peculiaridades”. Elencam-se entre os direitos
mencionados com tal ressalva a proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa
causa, a remuneração do trabalho noturno superior ao diurno e o salário família, por
exemplo.
Neste sentido, ainda que a alteração constitucional tenha reduzido a
desproporção entre os direitos elencados no artigo 7º para 25/34, é forçoso
reconhecer, antes de tudo, que a tão propalada equiparação entre as empregadas
domésticas e os demais trabalhadores assalariados não se deu. Resta mantida a
minoração do “trabalhador doméstico” frente ao “trabalhador urbano e rural”. Dos
novos direitos alcançados, sem que se entre ainda no mérito de tal restrição, 7 deles
são limitados à observação de suas peculiaridades. Ora, diversas peculiaridades
diferenciam entre si as diversas categorias de trabalhadores urbanos e rurais. Tais
peculiaridades, frente ao Direito do Trabalho, sempre foram tema de legislação
ordinária, ou de debates jurisprudenciais – exceto quanto às empregadas
domésticas, constitucionalmente ressalvadas sem que haja, porém, apontamento de
qualquer dessas peculiaridades expressamente.
Mais um fator de manutenção da desigualdade jurídica entre o emprego
doméstico e os demais empregos reside no fato de que tais alterações
constitucionais preservam intacta a exclusão operada pelo artigo 7º da CLT. Se tal
assertiva pode ser auferida lançando mão da hermenêutica jurídica, também o é na
simples opção formal da CF em valer-se da inclusão do emprego doméstico ao rol
de direitos mediante expressa determinação em contrário, posteriormente à
discriminação dos direitos em questão. Assim, ainda que a prática forense e a
jurisprudência não limitem o acesso das empregadas domésticas à justiça, é de se
espantar: se a elas não se aplicam os preceitos da CLT, e se nem a EC 72 teve o
condão de dar-lhes acesso à garantia do prazo prescricional do inciso XXIX do artigo
7º da Constituição, a situação da categoria frente o Processo do Trabalho é da mais
absoluta insegurança jurídica.
O longo caminho trilhado pelo emprego doméstico não o equiparou às demais
relações de emprego em termos de garantias trabalhistas. A análise detida dos
20

direitos ainda negados, no interior do rol do artigo 7º da Constituição, apresenta


importantes indícios dos motivos de tal discrepância. Sendo “serviço de natureza
continua e finalidade não lucrativa”, compreensível nos marcos da legislação de
1972 a exclusão frente os incisos XI (participação nos lucros) e XXXIV (igualdade
entre o obreiro com vínculo permanente e avulso). A proteção face à automação
também não é conferida às empregadas domésticas, talvez levando em conta
também a finalidade não lucrativa do trabalho doméstico familiar – ou mesmo pela
consideração não-justificada que o avanço tecnológico apenas tem a atenuar o
esforço necessário ao labor doméstico. Mas as justificativas plausíveis se
interrompem por ai para dar espaço às reais impressões sociais sobre o trabalho
doméstico. O afastamento em relação aos incisos XXIII e XXXII guarda a presunção
de que não haveria nada de penoso ou insalubre na atividade doméstica, conjugada
por sua vez com a negação implícita da existência de trabalho intelectual ou técnico
no espaço do lar. Assim, esse trabalho meramente manual e ao mesmo tempo nada
penoso, realizado no idílio salubre do lar, justificaria tais desamparos jurídicos.
Alguma presunção de benevolência do empregador ou indolência da empregada
também parece pairar sobre o signo do emprego doméstico, o qual se presume não
se realize em turnos ininterruptos (considerada a não-inclusão ao inciso XIV).
Talvez a exclusão mais significativa, no entanto, se dê no que tange ao inciso XX:
se tanto fala a legislação sobre o emprego doméstico no masculino, o que senão a
realidade especificamente feminina de sua prestação justificaria a inexistência de
proteção específica, mediante incentivos, ao mercado de trabalho da mulher? É em
tal negligência jurídica que cai o véu a encobrir a realidade material do emprego
doméstico. E aqui encerramos nossa exposição sobre o desenvolvimento jurídico do
conceito para retomá-lo criticamente adiante, após um panorama do ferramental
teórico relevante oriundo das reflexões feministas materialistas históricas.
21

2. GÊNERO E TRABALHO

A empregada doméstica no interior das cifras

Quando tratamos por empregada doméstica, no feminino, a obreira da categoria


abordada, não é sem fundamento estatístico. Antes que enveredemos a estudar a
divisão sexual do trabalho, consideramos de bom tom metodológico expor algumas
cifras.
Em 1995, no Brasil, no interior de algumas das funções que integram a categoria
das empregadas domésticas, pode ser auferido flagrantemente por que a
Constituição negligencia ao emprego doméstico a proteção do mercado de trabalho
da mulher: quanto às arrumadeira/camareiro, babá/ama/acompanhante, cozinheira/o,
diarista/faxineira, lavadeira e governante/mordomo, a proporção de mulheres figurou
em 96,44%, 99,06%, 97,23%, 97,53%, 99,24% e 96,85%, respectivamente. 18
Apenas no que tange à função de atendente/jardineiro/motorista se verifica, no seio
da categoria, uma proporção superior de homens, de 79,08%. A proporção geral de
mulheres, porém, mantinha-se de 93,16%.
Em 2011, 14,7% das mulheres com ocupação formal na região metropolitana de
São Paulo realizavam serviços domésticos.19
A análise estatística também revela que, diferente de outras categorias, as
empregadas domésticas apresentam diferenças pouco expressivas de rendimentos
entre as trabalhadoras negras e não negras, 20 de forma que é evidente que as
marcas de desvalorização legadas pela escravidão ao emprego doméstico atingem
de forma similar as 61% de negras da categoria e as 39% de não-negras.
Outro ponto relevante para compreendermos o panorama material do emprego
doméstico é a proporção entre mensalistas e diaristas no interior da categoria. Entre
2000 e 2010, uma sensível queda no número de mensalistas e crescimento do

18
MELO, Hildete Pereira de. O serviço doméstico remunerado no Brasil: de criadas a
trabalhadoras. Brasília, Revista Brasileira de Estudos da População, 15(1), 1998.

19
DIEESE, Boletim Trabalho Doméstico. Março de 2012. Disponível em: http://bit.ly/YfkOrc .
Acesso em: 15/05/2014

20
PED, A mulher nos mercados de trabalho metropolitanos. Abril de 2011. Disponível em:
http://bit.ly/1qAw0HP. Acesso em: 15/05/2014.
22

número de diaristas pode ser verificada, ainda que a proporção de mensalistas tenha
se mantido, nas grandes capitais, superior a 68,7% do contingente de empregadas
domésticas.21 Relevante, porém, notar o crescimento das diaristas em Porto Alegre
(de 24,6% para 32,6%), em São Paulo (de 20,4% para 31,3%) e em Salvador (de
10,3% para 21,6%). Ainda que a proporção seja próxima da auferida em outras
capitais, o destaque as esses exemplos permite verificar crescimento similar em
regiões com distintas proporções de composição de renda e raça em sua demografia,
razões que podem estar na origem dos índices diversos.
Confirmado o caráter feminino do emprego doméstico, é necessário fazer uso da
formulação feminista sobre o trabalho para entender tal sobrefeminilidade. Como
explica Maneschy:

“As atividades domésticas não são, em princípio, traba-


lho, muito menos profissão, embora cruciais na reprodu-
ção social das famílias, das comunidades locais e, por
extensão, do próprio sistema econômico capitalista, ba-
seado na separação entre esfera doméstica e esfera
produtiva. Esta última é claramente reconhecida como
econômica, ou seja, arena da produtividade, do cálculo,
da monetarização enfim, da aplicação da racionalidade
econômica. Tal separação de esferas segue sendo fun-
cional ao sistema econômico porque parte dos custos de
reprodução da força de trabalho dos trabalhadores em-
pregados não são contabilizados, já que assumidos ba-
seando-se nos laços sociais entre as pessoas, muitas
vezes como “obrigação de mulher”, de “dona de casa”.
Quando essas lides são feitas com a contratação de
pessoas de fora do círculo familiar, remuneradas, a lite-
ratura também destacou – Heleieth Saffioti dentre outros
autores – o fato de o emprego doméstico contribuir para
amenizar os potenciais conflitos derivados das oscila-
ções na demanda de trabalhadores por parte dos setores
formais da economia. Contingentes de desempregados,
temporários ou de longa duração, encontram nos servi-
ços domésticos alternativa de sobrevivência, além de
comumente representarem o primeiro emprego de mui-
tas jovens de famílias de baixa renda Brasil afora. [...]
A crítica feminista do trabalho acarretou a maior
consciência pública da interconexão entre atividades
desenvolvidas na esfera doméstica e na esfera
profissional, expressão da divisão sexual do trabalho
sobre a qual assenta a divisão mais ampla do trabalho
social (HIRATA e KERGOAT, 2007, p. 598). Segundo
essas autoras, a divisão sexual do trabalho tem dois
princípios organizadores: separação (atividades
femininas e masculinas) e hierarquia (valoração inferior
para atividades classificadas como femininas), princípios
que se sustentam à conta de uma ideologia naturalista

21
PED, A mulher nos mercados de trabalho metropolitanos. Abril de 2011, p. 9. Disponível em:
http://bit.ly/1qAw0HP. Acesso em: 15/05/2014.
23

que “rebaixa o gênero ao sexo biológico”. É importante


assinalar que embora as situações empíricas sejam
dinâmicas e mutáveis, a distância característica da
divisão sexual do trabalho se mantém, asseveram as
22
autoras”.

Da Divisão Sexual do Trabalho ao patriarcado capitalista

É ponto fulcral do feminismo materialista histórico a concepção defendida pelas


autoras citadas no trecho acima, de que no interior da divisão social do trabalho23 é
possível identificar a permanência central de uma divisão sexual do trabalho. A
formulação de Hirata e Kergoat sobre tais princípios organizadores da divisão sexual
do trabalho vão de encontro às verificações da situação das empregadas
domésticas no mercado de trabalho e no ordenamento jurídico: existe uma
separação de tais atividades para um massivo contingente de mulheres e sua
valorização é inferior àquelas dadas a outras formas de emprego e trabalho.
Tal concepção de uma divisão sexual do trabalho representa uma grande
mudança para os paradigmas do trabalho, de diversos pontos de vista. As autoras
tem tal compreensão:

“Os fundadores da sociologia do trabalho partem de um


modelo assexuado, seu sujeito – o homem – tendo sido
erigido como universal. Esse modelo foi fortemente inter-
pelado desde os anos 70 pela problemática da divisão
sexual do trabalho (1): trata-se de ir na direção de uma
reconceituação do travail pela inclusão desse conceito; 1)
do sexo social (do gênero); 2) do trabalho doméstico. E
acabou sendo ampliada para o entendimento do trabalho
não assalariado, não remunerado, não mercantil, do tra-
balho informal. Trabalho profissional e doméstico, produ-
ção e reprodução, regime salarial e família, classe social
e sexo social, são consideradas como as categorias in-
dissociáveis. A partir desta proposição epistemológica e
da imbricação de dimensões antes separadas, foi possí-
vel construir um questionamento permitindo jogar luz en-

22
MANESCHY, Maria Cristina. O emprego doméstico e as relações de gênero no mundo do
trabalho. Belém, Gênero na Amazônia, n. 3, jan./jun., 2013.

23
Sobre a centralidade do conceito de divisão social do trabalho, ver MARX, Karl. Introdução à
crítica à economia política. Trad. Florestan Fernandes. São Paulo: Expressão Popular, 2008. “"Na
produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e
independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa
determinada de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de
produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma
superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência.
Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que
determina sua consciência.””
24

tre as diferentes esferas de atividade (2) e de romper de-


24
finitivamente com a antiga noção de especificidade.”

“A crítica dessa representação social de esferas


separadas, produção e reprodução, permitiu não apenas
a reformulação do conceito de trabalho, libertando-o do
“paletó estreito de sua compreensão capitalista” (HIRATA
e KERGOAT, 2007), como também deu origem a uma
instigante linha de investigação sobre as formas e
significados do cuidar. Nessa linha, trabalho passou a ser
compreendido não mais na ótica restrita da economia
capitalista, mas como toda atividade relacionada à
produção do viver, na expressão das autoras.
Consequentemente, também os cuidados com o meio
ambiente, com a conservação dos recursos naturais
comuns e com o seu uso sustentável entram nessa
25
categoria de produção da vida”.

A separação entre produção e reprodução enquanto esferas sociais definidoras


de um espaço do trabalho masculino e um espaço do trabalho feminino e sua
hierarquização é um processo que compõe a totalidade da divisão social do trabalho,
como debate Heleieth Saffioti:

“Embora muitos adeptos do materialismo histórico


tenham compreendido o conceito de modo de produção
de forma economicista, as obras de Marx e Engels não
autorizam este tipo de entendimento. Na tentativa de não
alongar muito esta discussão, optou-se pela transcrição e
uma texto coletivo, de autoria dos pensadores referidos,
cuja riqueza pode ser aferida.
“Produzir a vida, tanto a sua própria, através do trabalho,
quanto a vida de outro, através das procriação, nos
aparece pois, desse agora, como uma dupla relação: de
uma parte, como uma relação natural, de outra parte,
como uma relação social – social no sentido de ação
conjugada e muitos indivíduos, pouco importando em
que condições, de que maneira e com que objetivo. Disto
decorre que um modo de produção determinado (...) está
permanentemente vinculado a um modo de cooperação
determinado (...) e que este modo de cooperação é, ele
próprio, uma ´força produtiva´...”
(...)
A produção da vida envolve:
a) A produção da vida material propriamente dita, ou
sejam, os meios de subsistência necessários à
satisfação das necessidades humanas;

24
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Paradigmas sociológicos e categorias de gênero. Que
renovação aporta a epistemologia do trabalho? Belém: Novos Cadernos NAEA, v. 11, n.1, p; 39-50,
jun. 2008.

25
MANESCHY, Maria Cristina. O emprego doméstico e as relações de gênero no mundo do
trabalho. Belém, Gênero na Amazônia, n. 3, jan./jun., 2013.
25

b) a reprodução dos seres humanos;


c) relações sociais ou um modo de cooperação entre os
indivíduos, capazes de permitir a produção e a
reprodução da vida;
d) o conceito de força produtiva ultrapassa os limites do
mundo meramente material, englobando as próprias
relações sociais que se desenvolvem entre os seres
26
humanos”.

A autora justifica sua opção pelo materialismo histórico exatamente pela


centralidade do trabalho nesta teoria e a concepção de modo de produção como
abrangendo toda uma série de relações de reprodução e produção da vida. Diante
dessa visão da divisão sexual do trabalho face a divisão social do trabalho, lhe
parecia que “patriarcado e capitalismo são duas faces de um mesmo modo de
produzir e reproduzir a vida”, estando a “divisão sexual do trabalho (...) na base da
subordinação da mulher ao homem, relação de dominação esta que coloca o
fenômeno da reprodução subordinado ao da produção.”27 Não lhe parece que seja
possível distinguir duas estruturas paralelas que se aproveitam uma da outra (o
capitalismo e o patriarcado), mas um único modo de produção e reprodução da vida
capitalista e patriarcal. “Se o patriarcado sempre integrou configurações históricas
anteriores ao capitalismo, não há razão, pelo mero fato de o processo econômico ter
aflorado à superfície da sociedade e o dinheiro ter passado a permear todas a
relações sociais para deixar de concebê-lo como consubstancial ao capitalismo.”28
Ao falar em consubstancialidade, Saffioti busca fazer dialogar sua análise marxista
diretamente com a concepção de divisão sexual do trabalho de Kergoat.

O patriarcado capitalista e as mulheres frente ao trabalho


doméstico

Ainda que seja evidente que uma enorme massa de trabalho é realizada
gratuitamente pelas mulheres, essa gratuidade e imposição às mulheres se vê

26
SAFFIOTI, Heleieth. Força de trabalho feminina no Brasil: no interior das cifras. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1985.

27
SAFFIOTI, Heleieth. Força de trabalho feminina no Brasil: no interior das cifras. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1985, p. 98.

28
SAFFIOTI, Heleieth. Força de trabalho feminina no Brasil: no interior das cifras. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1985, p. 100.
26

justificada socialmente na natureza, no amor e no dever maternal, instintivos e


femininos29.
Em artigo de 2009, Hildete Pereira de Melo30 se propõe a enfrentar a questão de
quem faz trabalho reprodutivo no Brasil. Contrastando dados acerca da realização
de trabalhos domésticos no interior da População em Idade Ativa, da População
Economicamente Ativa, da população ocupada e da população não economicamente
ativa, verifica índices interessantes. A existência de uma dupla jornada de trabalho
produtivo/reprodutiva é posta em evidência, verificado que 91% da mulheres
ocupadas também realizam afazeres domésticos, contra 51% dos homens; e que
média semanal que tais mulheres declaram dedicar a tais afazeres é de 20,8 horas,
contra 9,1 horas dos homens.
Por outro lado, o mais espantoso que a pesquisa revela é que se a mulher
ocupada na esfera produtiva tem uma dupla jornada, por outro lado o homem inativo
economicamente tem uma meia jornada de trabalho, comparado à mulher na mesma
situação:

“A população considerada inativa é quase 66% composta


por mulheres. Do contingente feminino de inativas, 97%
declaram realizar afazeres domésticos. Esse percentual
é um pouco mais elevado do que os 91% das mulheres
ocupadas que realizam afazeres e, sobretudo, muito
superior ao percentual de homens inativos que declaram
realizar atividades domésticas (53%) (...)
Observem que 30% dessas mulheres (donas de casa)
fazem mais de 40 horas domésticos semanais, enquanto
31
os homens na mesma situação são apenas 3% .”

Outro levantamento interessante, de metodologia diversa, 32 aponta que as


mulheres identificam sua jornada semanal de 39 horas e 36 minutos, em média, nos
cuidados da casa e da família. A média cai para 27 horas e 42 minutos entre as

29
KERGOAT, D. Divisão sexual do trabalho (verbete) In.: HIRATA, LABORIE, LE DOARÉ,
SENOTIER (Orgs.). Dicionáriocritico do feminismo. São Paulo: EditoraUnesp, 2009.
30
MELO, Hildete Pereira de; CASTILHO, Marta. Trabalho reprodutivo no Brasil: quem faz? São
Paulo: R. Econ. Contemp., v. 13, n. 1, p 135-158, 2009.

31
MELO, Hildete Pereira de; CASTILHO, Marta. Trabalho reprodutivo no Brasil: quem faz? São
Paulo: R. Econ. Contemp., v. 13, n. 1, p 135-158, 2009.

32
Fundação Perseu Abramo. Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado. Agos-
to de 2010. Disponível em: http://bit.ly/1txtztk. Acesso em: 06/09/2014.
27

mulheres não casadas e sobre para 48 e 30 minutos entre as que moram com o
cônjuge, contra 5 horas e 36 minutos de seus parceiros. O trabalho global dos
cônjuges aumenta levemente além do dobro do que a mulher não casada, mas é
transferido majoritariamente para a mulher.
O recurso ao cômputo das horas utilizadas em afazeres domésticos é importante
por auferir o volume do trabalho socialmente utilizado para a reprodução das
condições de produção e reprodução. Para outras atividades (as ditas produtivas), é
possível lançar mão à estimativa do preço global ou médio de tal força de trabalho,
ou mesmo o volume da riqueza produzida com tal trabalho em dado tempo, em
termos correntes nas relações de troca. Da desproporção entre tais medidas deriva
o conceito de mais-valia. Para o trabalho doméstico, uma vez que se trata de
trabalho não remunerado, todas essas verificações são impossíveis, senão num
plano hipotético de (provavelmente) impossível comprovação empírica, substituída
por planilhas de cálculos de remunerações lastreadas no valor corrente do emprego
doméstico e desdobramentos inflacionários. Daí que, para aquelas e aqueles que se
põe do ponto de vista da práxis 33 , a estimativa do tempo médios gasto em tais
afazeres é fundamental.
Da mesma forma, é fundamental o estudo do trabalho reprodutivo exercido fora
do próprio domicilio.

O patriarcado capitalista e as mulheres frente ao emprego

No modo de produção que hierarquiza e separa a produção da reprodução, não


apenas as tarefas reprodutivas do espaço privado são valoradas como inferiores e
de responsabilidade feminina, como a inserção da mulher na esfera do trabalho
público e produtivo se dá em posições menos valorizadas e comumente associadas
às funções reprodutivas (limpeza, cuidados, organização).
Se grande parte das discussões feministas sobre o trabalho buscaram combater
a legitimação e naturalização da divisão sexual do trabalho sob argumentos
biológicos ou pseudo-históricos (anti-dialéticos), as formulações das feministas

33
“Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; porém, o que importa é
transformá-lo”. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Trad. Álvaro Pina. São Paulo:
Expressão Popular, 2009.
28

materialistas históricas sempre tiveram entre suas tarefas a demonstração de que


concerne não a um patriarcado primitivo, mas ao patriarcado capitalista a
radicalização da expulsão das mulheres da vida produtiva – na contramão do
discurso liberal que aponta nas conquistas tecnológicas e abertura do mercado de
trabalho às mulheres a emancipação do gênero, vista como dádiva do Mercado.
Logo no início do século XX, já era possível entrever tal compreensão nos debate
de Clara Zetkin e Alexandra Kollontai:

“No âmbito teórico, Zetkin ampliou as análises iniciais de


Engels e Bebel. Focando a transição da economia
agraria para a industrial, Zetkin explorou as mudanças
nos papéis das mulheres com a expanção da produção
de mercadorias. Argumentava que, em uma sociedade
pré-capitalista, as mulheres eram ‘ uma força produtiva
extraordinária’, que produzia todos ou quase todos os
bens necessários para a família. A transição para
produção mecânica e a indústria em grande escala
tornou a atividade econômica da mulher dentro da família
supérflua, uma vez que a indústria moderna produz bens
de maneiras mais rápida e barata. À medida que a
produção de bens dentro do lar se tornou
crescentemente desnecessária, a atividade doméstica
das mulheres perdeu sua função e significado.(...)
Bukharin diferenciava a família camponesa, uma
‘unidade sólida’ diretamente baseada na produção, da
família da classe trabalhadora, uma unidade mais débil,
baseada centralmente no consumo. Descreveu a atrofia
da função produtiva da família na transição para a vida
urbana e trabalho assalariado ao observar que os
serviços nas cidades, o ingresso das mulheres na força
de trabalho e a crescente mobilidade do trabalho eram
todos elementos que resultavam na ‘desintegração da
família’.
Kollontai aprofundou a dicotomia de Bukharin entre
produção e consumo em seu estudo de seus efeitos em
tradições sociais e moralidade sexual. Ela argumentava
que as relações familiares e matrimoniais foram mais
fortes em economias pré-capitalistas, nas quais a família
servia tanto como unidade de produção quanto de
consumo. O ‘definhamento’ da família era o resultado de
um longo processo histórico que se inicio com a
eliminação da família como unidade primária da
34
produção.”

No caso brasileiro, não tanto se abordou a perda do papel produtivo da família,


mas a consolidação do emprego industrial e a participação feminina neste:

34
GOLDMAN, Wendey. Mulher, estado e revolução: política familiar e vida social soviética, 1917-
1936. Trad. Natália Angyalossy Alfonso. São Paulo: Editora Boitempo, 2014, p. 62 e 66.
29

“Não se pode esquecer, tampouco, que um pequeno


surto industrial teve lugar no Brasil durante a Primeira
Guerra Mundial. Enquanto em 1907 o numero de
estabelecimentos industriais totalizava 3.258,
absorvendo 151.841 operários, em 1920, estas cifras
haviam aumentado para, respectivamente, 13.336 e
275.512. Se em 1900 as trabalhadoras compareciam
com 91,3% dos efetivos empregados no setor secundário
das atividades econômicas, esta proporção cai para
33,7% em 1920; quando a indústria já havia
experimentado certa diferenciação, a fim de atender às
necessidades antes satisfeitas por importações,
35
prejudicadas pela Primeira Guerra Mundial.”

Saffioti ajuda a afastar o idílio que lança a divisão sexual do trabalho a tempos
imemoráveis e tribais, quando homens caçavam e mulheres coletavam e cuidavam
das crianças. A exclusão e a subordinação feminina ao mundo produtivo não é mero
legado do passado humano, mas forma de organização social reavivada pela
revolução burguesa, quando da constituição das instituições políticas republicanas e
das relações de produção industriais e modernas.
O desenvolvimento ulterior do capitalismo brasileiro viria a reintroduzir
gradativamente a mulher na esfera produtiva, em posição de subordinação e
desvalorização. Já em 1970 (década de aprovação da primeira Lei a dar direitos às
empregadas domésticas):

“O Brasil dos anos 1970 conheceu acelerado processo


de industrialização, que impulsionou uma mudança signi-
ficativa na estrutura de redistribuição do produto social,
permitindo o aparecimento de uma classe média com
renda elevada e com possibilidade de consumo. As mu-
lheres trabalhadoras não ficaram fora deste processo.
Houve, no período, um incremento acentuado da expan-
são do trabalho feminino. Todavia, a maior parte (89%!)
foi absorvida pelo setor de serviços e com altíssima con-
centração nos empregos domésticos. Ocupações de bai-
xo prestígio e de remuneração reduzida constituíram o
reduto da mão-de-obra feminina. Ocorreu um incremento
da procura de bens de consumo duráveis e, ao mesmo
tempo, a expansão do consumo de serviços pessoais,
sobretudo o doméstico. A grande empresa não foi capaz
de absorver toda a força de trabalho disponível e parcela
considerável desta mão-de-obra [passou] a constituir-se
como trabalhadores autônomos. Neste processo, a mu-
36
lher foi elemento menos favorecido”.

35
SAFFIOTI, Heleieth. Força de trabalho feminina no Brasil: no interior das cifras. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1985, p. 98.

36
GONÇALVES, Renata. O feminismo marxista de Heleieth Saffioti. Lutas Sociais, n. 27, São
Paulo, 2011.
30

O Emprego Doméstico no patriarcado capitalista

No conjunto do trabalho doméstico reprodutivo realizado socialmente, o emprego


doméstico constitui uma forma específica, tanto historicamente quanto em sua
inserção na divisão social do trabalho. Se em sua forma jurídica essa relação de
produção diz-se continua, não econômica ou não lucrativa, e realizada na residência
familiar, em verdade o que diferencia o emprego doméstico do conjunto do trabalho
reprodutivo não são tais elementos. O que diferencia o emprego doméstico é a
mediação de sua realização pelo assalariamento. No texto da legislação vigente,
essa relação salarial se esconde por trás da afirmação de que o empregado
doméstico é aquele que presta serviço a família.
É possível afirmar o acobertamento da relação salarial nessa relação entre
emprego e serviço familiar rememorando o não tão omisso Decreto-Lei 3.078/41,
não Consolidado. Conforme já vimos, nele se dispunha sobre “a locação dos
empregados em serviços doméstico”, considerados “todos aqueles que, de
qualquer profissão ou mister, mediante remuneração, prestem serviços em
residências particulares ou em benefício destas”. O Decreto-Lei, escorado ainda
em uma estrutura contratual civilista, não tratava do salário e do emprego como
conhecemos no Direito do Trabalho moderno, tanto que fala sobre “locação”. Ainda
sim, o recurso à conceituação da atividade profissional doméstica como “serviço”,
ainda quando fala de emprego remunerado, permite refletir a omissão da legislação
posterior sobre a remuneração da empregada doméstica concomitante à reiteração
do conceito de “serviço”.
Estima a OIT que, em 2010, existiam no Brasil 6,7 milhões de empregadas
domésticas37. Em estudo, Pochaman38 aufere o mesmo montante da OIT para o ano
de 2009, no interior do qual apenas 27,9% teriam carteira assinada, enquanto 29,3%
do total de empregadas domésticas não teria carteira assinada por ser
diarista/horista, ou seja, prestadora eventual de serviço doméstico. Enquanto mais

37
Somadas aos empregados domésticos, são 7,2 milhões de pessoas em tais empregos. A índia
é o país com o segundo maior contingente de pessoas em empregos domésticos> 4,2 milhões. Cabe
considerar que a população indiana é quase seis vezes maior que a brasileira.
38
POCHMAN, Márcio. Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira. São
Paulo: Editora Boitempo, 2012, p. 47.
31

da metade (12,1 milhões) dos 23,6 milhões trabalhadores envolvidos direta e


indiretamente com a prestação de serviços às famílias recebe até um salário mínimo
mensal; para as empregadas domésticas diretas, a proporção é de 97% com
remuneração mensal de até dois salários mínimos.39 Daí que os serviços indiretos
ao lar possam ser considerados mais valorizados que os serviços prestados
diretamente no domicílio, o que se verifica no levantamento realizado pelo autor,
principalmente no tocante a afazeres onde os homens tem maior presença.
Pochman inclui o emprego doméstico em um movimento contido de valorização,
compondo parte dos milhões de postos de trabalho criados na primeira década dos
anos 2000, no interior dos quais 9 de cada 10 tem remuneração até 1,5 salário
mínimo.40 Assim, há materialidade na compreensão de autoras41 que relacionam a
evolução dos salários das empregadas domésticas, a partir da década de 90, com a
evolução do salário mínimo.
Nesse processo, há tendência a ser posta em negrito ao cabo de toda nossa
explanação sobre a situação do emprego doméstico no Brasil:42

“A ocupação de trabalhador doméstico no Brasil continua


sendo, cada vez mais, de pessoas não brancas. Em
1989, quase 49% dos ocupados eram branco; em 2009,
essa parcela reduziu-se para menos de 38%”.

39
Não obstante o parco rendimento auferido, cumpre destacar que tal remuneração corresponde
a 40% da renda familiar das empregadas domésticas brasileiras. POCHMAN, Márcio. Nova classe
média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira. São Paulo: Editora Boitempo, 2012, p. 61.

40
POCHMAN, Márcio. Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira. São
Paulo: Editora Boitempo, 2012, p. 10.
41
MELO, Hildete Pereira de; PARREIRAS, Luiz Eduardo; PESSANHA, Márcia Chamarelli. A
economia política do serviço doméstico remunerado: rendimentos e luta sindical. Revista Mulher e
Trabalho, v. 5, Porto Alegre, 2005, p. 93.
42
POCHMAN, Márcio. Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira. São
Paulo: Editora Boitempo, 2012, p. 64.
32

3. TRABALHO, PRODUÇÃO E PRODUTIVIDADE

Feita a aproximação do conceito jurídico do emprego doméstico com a crítica do


patriarcado capitalista, se põe a necessidade de nos determos numa determinada
polêmica antes de avançarmos para uma abordagem final e frontal das contradições
da ideologia jurídica do emprego doméstico.
O diálogo necessário que as feministas que tomam a divisão sexual do trabalho
como base em última análise da exploração e opressão feminina com o pensamento
marxista não se deu, ao longo de sua realização, de forma homogênea. Para muitas
autoras o materialismo histórico elaborado por Marx e Engels sempre afigurou como
ferramental teórico primeiro na análise da divisão social do trabalho (e mesmo o
envolvimento prático do marxismo nas lutas políticas aproximou o socialismo
científico das lutas das mulheres ao longo do último século e meio).
É importante ter em vista, porém, que muitas autoras que debruçaram sua
reflexão sobre a exploração do trabalho feminino tiveram polêmicas aguçadas com o
marxismo.43 Quando dizem que “os fundadores da sociologia do trabalho partem de
um modelo assexuado, seu sujeito – o homem – tendo sido erigido como universal”,
Hirata e Kergoat 44 fazem menção a tal polêmica. Kergoat, como outras autoras,
intitula como cega aos gêneros (sex blinded) a economia política clássica, em cujo
rol se insere Marx. A acusação de economicismo e de desvalorização do trabalho
doméstico também paira sobre Marx, no curso desta polêmica que passa por um
conceito fundamental da economia política: o de trabalho produtivo.

Trabalho produtivo e trabalho improdutivo

É importante ter em vista que o conceito de trabalho produtivo precede Marx, na


economia política clássica.

43
Ver, a esse respeito: NICHOLSON, LINDA. Chapter 6: Karl Marx: the theoretical separation os
the domestic and the economic. In: Gender & History. Columbia University Press, Columbia, 1986; e
FIRESTONE, Shulamith. The dialetic of sex. Londres: The Women’s Press, 1979.

44
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Paradigmas sociológicos e categorias de gênero. Que
renovação aporta a epistemologia do trabalho? Belém: Novos Cadernos NAEA, v. 11, n.1, p; 39-50,
jun. 2008.
33

“Até o surgimento da economia política neoclássica, as


abordagens dominantes nas análises, mesmo dos
principais economistas burgueses, começavam pelo
trabalho (a divisão do trabalho e sua relação com o
funcionamento do mercado; o trabalho como fonte do
valor das mercadorias) e tinham uma perspectiva
histórica.
A economia neoclássica estabeleceu um novo ponto de
partida analítico. A chave passou a ser o indivíduo e sua
conduta no mercado. [...] A essa indivíduo padrão deu-se
45
a denominação homo economicus”.”

A crítica de Marx à produção capitalista afastou qualquer possibilidade da ciência


econômica burguesa centrar sua análise no trabalho e preservar-se burguesa. Ao
criticar a economia política clássica, o marxismo desdobra os conceitos econômicos
em sua relação efetiva com a história, de um ponto de vista filosófico materialista
dialético (de onde se aduz ser reducionismo do pensamento liberal definir Marx
meramente como um economista). O mesmo se dá com o conceito de trabalho
produtivo. Sobre o assunto, e sobre o trabalho improdutivo, consultamos Marx46, por
crer obrar onde o panorama tanto do autor quanto da economia política clássica
melhor se desdobra:

“a) Produtividade do Capital - Expressão Capitalista


da Produtividade do Trabalho Social
Vimos como o capital produz, como ele mesmo é produ-
zido, e como, na qualidade de relação transmutada na
essência, resulta do processo de produção, nele se de-
senvolve. De um lado, transforma o modo de produção;
do outro, essa forma transmutada do modo de produção
e estádio particular do desenvolvimento das forças pro-
dutivas materiais são o fundamento e condição - o pres-
suposto da própria formação do capital. [...]
A produtividade do capital, antes de mais nada, consiste,
mesmo considerando-se apenas a subsunção formal do
trabalho ao capital, na coerção para se obter trabalho
excedente trabalho acima da necessidade imediata, co-
erção que o modo capitalista de produção partilha com
modos de produção anteriores, mas que exerce e efetiva
de maneira mais favorável à produção. [...]
O capital é, portanto, produtivo:
1. ao forçar a execução de trabalho excedente;
2. ao absorver as forças produtivas do trabalho social e
as forças produtivas sociais gerais, como a ciência, e de-
las se apropriar (personificando-as).

45
CODAS, Gustavo. Economia neoclássica e economia marxista: dois campos teóricos e as
possibilidades das analises de gênero. In: FARIA, Nalu; NOBRE, Miriam. Economia feminista. São
Paulo: Sempreviva Organização Feminista, 2002, p. 18.

46
MARX, Karl. Livro 4 – Teorias da mais-valia. São Paulo: Bertrand, v. 1, 1987.
34

[...]
b) Trabalho Produtivo no Sistema de Produção
Capitalista
Só o tacanho espírito burguês, que considera absolutas
e, portanto, formas naturais eternas as formas capitalis-
tas de produção, pode confundir estas duas perguntas -
que é trabalho produtivo do ponto de vista do capital, e
que trabalho é em geral produtivo ou que é trabalho pro-
dutivo em geral - e assim ter-se na conta de muito sábio,
ao responder que todo trabalho que produza alguma coi-
sa, um resultado qualquer, por isso mesmo, é trabalho
produtivo. [...]
Tome-se, ao contrário, outro ramo de produção, por e-
xemplo, tipografia, onde ainda não se emprega maquina-
ria. Nesse ramo, 12 horas produzem tanto valor quanto
12 horas em ramos de produção em que a maquinaria
tem desenvolvimento máximo. Por conseguinte, o traba-
lho que produz valor continua sempre a ser trabalho do
indivíduo, mas se expressa na forma de trabalho geral. O
trabalho produtivo - como trabalho que produz valor -
confronta, por isso, o capital sempre na forma de traba-
lho da força de trabalho individual, do trabalhador isola-
do, sejam quais forem às combinações sociais de que
participem esses trabalhadores no processo de produ-
ção. Assim, enquanto o capital representa perante o tra-
balhador a força produtiva social do trabalho, o trabalho
produtivo representa sempre perante o capital nada mais
que o trabalho do trabalhador isolado. [...]
A produtividade do capital consiste em contrapor-se ele
ao trabalho convertido em trabalho assalariado, e a do
trabalho, em contrapor-se aos meios de trabalho
convertidos em capital.” (grifo nosso)

Temos neste trecho uma compreensão da produtividade do capital e do trabalho,


o que enseja um apontamento principal. O conceito de produtividade aparece em
mais de uma acepção: a produtividade em geral, por um lado, e a produtividade
específica do capital, por outro, esta por sua vez tida como expressão capitalista da
produtividade do trabalho social. Marx diferencia as duas acepções inequivocamente,
ainda que se debruce sobre a produtividade especifica do capital. Como explica
Codas,47 o foco do estudo de Marx são as relações econômicas mediadas pelas
relações mercantis e a orientadas pela dinâmica de acumulação de capital.
Ainda sim, a distinção feita por Marx entre a produtividade específica do capital e
a produtividade em geral deixa em aberto a relação real do conceito de trabalho
produtivo com o de produção, central do ponto de vista da teoria marxista:

47
CODAS, Gustavo. Economia neoclássica e economia marxista: dois campos teóricos e as
possibilidades das analises de gênero. In: FARIA, Nalu; NOBRE, Miriam. Economia feminista. São
Paulo: Sempreviva Organização Feminista, 2002, p. 22.
35

"Na produção social da própria vida, os homens


contraem relações determinadas, necessárias e
independentes de sua vontade, relações de produção
estas que correspondem a uma etapa determinada de
desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A
totalidade destas relações de produção forma a estrutura
econômica da sociedade, a base real sobre a qual se
levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual
correspondem formas sociais determinadas de
consciência. Não é a consciência dos homens que
determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social
48
que determina sua consciência.”

Sobre tal confusão conceitual se erguem sólidas e importantes crítica de


feministas, às quais nos aprofundaremos adiante49. Antes de enveredarmos por elas,
exporemos a concepção marxiana de trabalho improdutivo, que surge mais adiante
no escrito supracitado, e em contraposição ao conceito já delineado de trabalho
produtivo:

“e) Trabalho Improdutivo e Prestação de Serviços.


Compra de Serviços nas Condições do Capitalismo.
Concepção Vulgar da Relação Entre Capital e
Trabalho como Troca de Serviços
Releva distinguir agora diversas questões.
Para mim tanto faz comprar uma calça ou comprar pano
e mandar vir em casa um alfaiate a quem pago o serviço
(isto é, trabalho de alfaiate) de converter o pano em cal-
ça, se o que está em jogo é apenas obtê-la. Compro a
calça da alfaiataria que vende roupas feitas, em vez de
mandar faze-la em casa, por ser cara esta solução, e
custar menos à calça, ser mais barata, quando produzida
pela alfaiataria capitalista. Mas, nos dois casos, trans-
formo o dinheiro com que compro a calça não em capital
e sim em calça, e nos dois casos trata-se para mim de u-
tilizar o dinheiro como simples meio de circulação, isto é,
convertê-lo nesse valor de uso particular. O dinheiro aí
não exerce, portanto, a função de capital, embora num
caso se troque por mercadoria e no outro compre o pró-
prio trabalho como mercadoria. Só tem a função de di-
nheiro e, mais precisamente de meio de circulação.
Contudo, o alfaiate que vem a minha casa não é traba-
lhador produtivo, embora seu trabalho me forneça o pro-
duto, a calça, e a ele, o preço do trabalho, o dinheiro. É
possível que a quantidade de trabalho que o alfaiate me
fornece seja maior que a contida no preço que de mim
recebe. E isso é mesmo provável, pois o preço de seu
trabalho é determinado pelo preço que os alfaiates pro-
dutivos recebem. Mas esse assunto não me interessa.
[...]

48
MARX, Karl. Introdução à crítica à economia política. Trad. Florestan Fernandes. São Paulo:
Expressão Popular, 2008.
49
NICHOLSON, LINDA. Chapter 6: Karl Marx: the theoretical separation os the domestic and the
economic. In: Gender & History. Columbia University Press, Columbia, 1986.
36

Ao revés, o serviço que o mesmo alfaiate, empregado


pelo dono da alfaiataria presta a esse capitalista não
consiste em converter pano em calça, mas em ser o
tempo de trabalho necessário, materializado numa calça
= 12 horas de trabalho, e a remuneração que recebe = 6
horas. O serviço que lhe presta consiste, portanto, em
trabalhar de graça 6 horas. Que isso aconteça sob a
forma de confecção de calças apenas dissimula a verda-
deira relação. O dono da alfaiataria, logo que possa, pro-
cura por isso converter de novo calça em dinheiro, isto é,
numa forma em que desaparece por completo o caráter
determinado do trabalho de alfaiate, e o serviço prestado
consiste em ter substituído o tempo de trabalhe de 6 ho-
ras, configurado em determinada soma de dinheiro, pelo
tempo de trabalho de 12 horas, expresso no dobro da-
quela soma de dinheiro. [...]
Infere-se daí que a mera troca de dinheiro por trabalho
não transforma este em trabalho produtivo, e ademais
que não faz diferença, de início, o conteúdo desse traba-
lho.” (grifo nosso)

Marx expõe como paradigma do trabalho improdutivo a prestação de serviços,


quando manda “vir em casa um alfaiate a quem pago o serviço”.50 Esse alfaiate não
é trabalhador produtivo do ponto de vista do capital, uma vez que o que produz é a
calça, e não trabalho não pago para a acumulação de capital, ainda que seu trabalho
seja remunerado.
Tal definição põe em negrito uma questão importante, mostrando sua utilidade
para alguma compreensão do baixo valor conferido socialmente ao emprego
doméstico: sendo o preço do trabalho do alfaiate improdutivo de Marx determinado
pelo preço recebido pelos alfaiates produtivos, há mesmo a tendência de que a
quantidade de trabalho fornecida pelo alfaiate improdutivo seja maior que a contida
no preço pago. Da mesma forma, poderia se investigar de qual forma o preço do
trabalho das empregadas domésticas encontra sua determinação no preço recebido
pelas empregadas de agências terceirizadas de limpeza doméstica, trabalhadoras
produtivas por sua vez.
Entretanto, a insuficiência do conceito de improdutividade para a análise
especifica do trabalho doméstico, realizado pelas mulheres nos marcos da divisão
sexual do trabalho, levou as feministas a criticarem o economicismo marxista e à
necessidade de cunhar uma nova tipologia. Ademais, centralidade das relações de

50
Intrigante, no sentido da crítica de Nicholson, que Marx também aqui lance mão de um trabalho
material, isto é, a confecção de uma calça, como paradigma de trabalho, ainda que Marx mais adiante
afirme indiferente para todos efeitos o conteúdo desse trabalho. Outrossim, a prestação domiciliar tem
centralidade no paradigma exposto, de modo que o texto citado se apresenta como peça fundamental
para a crítica do conceito clássico de improdutividade à luz do estudo do trabalho doméstico.
37

troca e do “valor de troca” presentes no estudo de Marx não permitia às feministas a


justa afirmação do valor do trabalho reprodutivo, debate este centrado em seu “valor
de uso”.
Isso se torna evidente na análise do trecho transcrito, onde é forçoso reconhecer
que a desvalorização recíproca do preço do trabalho das empregadas domésticas e
do preço do trabalho das empregadas em agências terceirizadas de limpeza se
sobredeterminam, mais do que reciprocamente, ambos, na gratuidade do trabalho
doméstico feminino e em sua hierarquização frente ao trabalho produtivo material51.

Trabalho produtivo e trabalho reprodutivo

A crítica frontal ao “produtivismo” de tal tipologia encontra forte expressão em


Nicholson, transcrita abaixo no original em inglês:

“In comprehending Marxism on gender it is first important


to note that Marx's concept of class relies on the narrow
translation of "production" and "economic"-i.e., as
incorporating only those activities concerned with the
making of food and objects. Thus the criterion which Marx
employs to demarcate class position, "relations to the
means of production," is understood as relation to the
means of producing food and objects. […]
Many feminist theorists have noted the consequences for
Marx of leaving out reproductive activities from his theory
of history. Mary O'Brien, for example, argues that one
effect is to separate historical continuity from biological
continuity, which one might note is particularly ironic for a
"materialist":
“Thus Marx talks continuously of the need for men to
'reproduce' themselves, and by this he almost always
means reproduction of the self on a daily basis by the
continual and necessary restoking of the organism with
fuel for its biological needs. Man makes himself
materially, and this is of course true. Man, however, is
also 'made' reproductively by the parturitive labour of
women, but Marx ultimately combines these two
processes. This has the effect of negating biological

51
Consideramos uma falsa solução aquela que busca resolver as insuficiências de tal tipologia
marxiana mediante a consideração da utilidade indireta do trabalho doméstico para a acumulação.
Sobre tal solução Marx argumentaria, com o faz no interior do texto de referência sobre o tema: “Um
daqueles sabichões de Paul de Kock pode dizer-me que sem essa compra, como sem a compra de
pão, não posso viver e, em conseqüência, não posso enriquecer-me; que ela portanto é um meio
indireto ou pelo menos uma condição para meu enriquecimento. Da mesma maneira, a circulação do
meu sangue e meu processo respiratório são condições para me enriquecer. Mas, por isso, nem a
circulação do sangue nem o processo respiratório, por si mesmos, me enriquecem, e ambos, ao
contrário, pressupõem um metabolismo que requer despesas elevadas, e não haveria pobres-diabos,
caso ele não fosse necessário. A mera troca direta de dinheiro por trabalho, portanto, não transforma
o dinheiro em capital ou o trabalho em trabalho produtivo.”
38

continuity which is mediated by women's reproductive


labour, and replacing this with productive continuity in
which men, in making themselves, also make history.
Marx never observes that men are in fact
separated materially from both nature and biological
continuity by the alienation of the male seed in
copulation.” […]
Young also recognises the narrowness of Marx's
category of production:
“Such traditional women's tasks as bearing and rearing
children, caring for the sick, cleaning, cooking, etc. fall
under the category of labor as much as the making of
objects in a factory. Using the category of production or
labor to designate only the making of concrete material
objects in a modern factory has been one of the
52
unnecessary tragedies of Marxian theory.” (grifo nosso)

Com tais reflexões, a autora estabelece a crítica à teoria do sistema dual, ela-
borado por algumas feministas diante de tais insuficiências do marxismo clássico.
Segundo tal teoria, seria tarefa das feministas modificar o modelo sócio histórico cu-
nhado por Marx de modo a inscrever em seu interior duas subestruturas opostas, a
da produção e a da reprodução. Segundo Nicholson, a oposição de tais subestrutu-
ras não conduz imediatamente à síntese de um modelo sócio histórico total, ou seja,
não solucionando as cegueiras de gênero do modelo original. A seu ver, a solução
dual seguia tratando a opressão feminina como mero tópico suplementar da opres-
são do trabalho.53

52
NICHOLSON, LINDA. Chapter 6: Karl Marx: the theoretical separation os the domestic and the
economic. In: Gender & History. Columbia University Press, Columbia, 1986
53
A crítica frontal à cegueira de gênero do pensamento de Marx se escora, principalmente, na
naturalização feira pelo autor quanto à divisão sexual do trabalho. Quanto às sociedades tribais, diz
Marx: “A divisão do trabalho está nesta fase ainda muito pouco desenvolvida e limita-se a um
prolongamento da divisão natural do trabalho existente na família.” Ou quando diz: “Deste modo se
desenvolve a divisão do trabalho, que originalmente nada era senão a divisão do trabalho no acto
sexual, e depois a divisão espontânea ou "natural" do trabalho em virtude da disposição natural (p.
ex., a força física), de necessidades, acasos, etc., etc. A divisão do trabalho só se torna realmente
divisão a partir do momento em que surge uma divisão do trabalho material e espiritual.” No entanto,
importante considerar que Saffioti, em seu texto supracitado de 1985, faz outra interpretação de A
ideologia alemã (fonte de todos excertos marxianos desta nota). Aqui, em Marx, o “natural”, bem
como o “produtivo”, teria duplamente um significado universal e um significado específico, que não se
confunde com a naturalização ahistórica das relações sociais, como vemos no início do capítulo II da
mesma obra:
“Com a divisão do trabalho, na qual estão dadas todas estas contradições, e a qual por sua vez
assenta na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade em famílias individuais
e opostas umas às outras, está ao mesmo tempo dada também a repartição, e precisamente a
repartição desigual, tanto quantitativa como qualitativa, do trabalho e dos seus produtos, e portanto a
propriedade, a qual já tem o seu embrião, a sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos
são os escravos do homem. A escravatura latente na família, se bem que ainda muito rudimentar, é a
primeira propriedade, que de resto já aqui corresponde perfeitamente à definição dos modernos
economistas, segundo a qual ela é o dispor de força de trabalho alheia. (...)
Precisamente porque os indivíduos procuram apenas o seu interesse particular, o qual para eles
39

Exatamente levando em consideração a preocupação expressa na autora, o


pensamento feminista preservou o conteúdo especificamente capitalista do trabalho
produtivo, desnudando-o mediante a contraposição ao trabalho reprodutivo, e não
apenas à sua versão negativa, o trabalho improdutivo. É o que se pode depreender
de diferentes autoras brasileiras:

“A separação entre trabalho doméstico (reprodutivo), rea-


lizado prioritariamente pelas mulheres, e trabalho produ-
tivo, destinado aos homens, permaneceu, durante muito
tempo, naturalizada. O movimento feminista procurou
denunciar essa questão, apontando que essa separação
dentro do mercado de trabalho não representava o desti-
no natural de cada sexo, mas era fruto da organização
do trabalho e da economia. O movimento passou, então,
a revelar as grandes contribuições do trabalho reproduti-
vo para o sistema capitalista, entre elas a de reproduzir a
baixo custo a força de trabalho e a de exercer de forma
gratuita parte do trabalho necessário à manutenção da
54
economia capitalista”.

“As condições de vida de mulheres e homens não são


produtos de um destino biológico, mas sim, fruto de
construções sociais que tem como base material o
trabalho e esse exprimem através de uma divisão social
do trabalho entre os sexos. Essa divisão sexual do
trabalho reflete o fato que a maioria dos homens exerce
suas atividades no mercado de trabalho capitalista (o
chamado “trabalho produtivo”) e as mulheres dividem

não coincide com o seu interesse comunitário — a verdade é que o geral é a forma ilusória da
existência na comunidade -, este é feito valer como um interesse que lhes é "alheio" [18] e
"independe" deles, como um interesse "geral" que é também ele, por seu turno, particular e peculiar,
ou eles próprios têm de se mover nesta discórdia, como na democracia. Por outro lado, também a
luta prática destes interesses particulares, que realmente se opõem constantemente aos interesses
comunitários e aos interesses comunitários ilusórios, torna necessários a intervenção e o refreamento
práticos pelo interesse "geral" ilusório como Estado.
E, finalmente, a divisão do trabalho oferece-nos logo o primeiro exemplo de como, enquanto os
homens se encontram na sociedade natural, ou seja, enquanto existir a cisão entre o interesse
particular e o comum, enquanto, por conseguinte, a atividade não é dividida voluntariamente, mas sim
naturalmente, a própria ação do homem se torna para este um poder alheio e oposto que o subjuga,
em vez de ser ele a dominá-la. E que assim que o trabalho começa a ser distribuído, cada homem
tem um círculo de atividade determinado e exclusivo que lhe é imposto e do qual não pode sair; será
caçador, pescador ou pastor ou crítico crítico, e terá de continuar a sê-lo se não quiser perder os
meios de subsistência. (...)
O poder social, isto é, a força de produção multiplicada que surge pela cooperação dos diferentes
indivíduos condicionada na divisão do trabalho, aparece a estes indivíduos — porque a própria
cooperação não é voluntária, mas natural — não como o seu próprio poder unido, mas como uma
força alheia que existe fora deles, da qual não sabem donde vem e a que se destina, que eles,
portanto, já não podem dominar e que, pelo contrário, percorre uma série peculiar de fases e etapas
de desenvolvimento independente da vontade e do esforço dos homens, e que em primeiro lugar
dirige essa vontade e esse esforço.”
54
FREITAS, Taís Viudes de. O cenário atual da divisão sexual do trabalho. In. FREITAS, Taís Vi-
udes de; SILVEIRA, Maria Lúcia. (org.). Trabalho, corpo e vida das mulheres: crítica à sociedade de
mercado. Sempreviva Organização Feminista, São Paulo, 2007, p. 11.
40

seu tempo “naturalmente” entre a produção de


mercadorias fora de casa e a realização das tarefas
domesticas relativas aos cuidados da família (o dito
55
“trabalho reprodutivo”)”.

Saffiotti se inscreve na mesma tradição de divisão entre o trabalho produtivo e


reprodutivo e entendimento de que o patriarcado capitalista subordina a reprodução
à produção. Dá menos centralidade, porém, à polêmica entre tais conceitos, como
expõe estudiosas da autora:

“Apesar do pagamento – salário – pelo desempenho de


trabalho doméstico em residências ter sido algo criado
pelo sistema capitalista, é fato, argumenta a autora, que
as atividades desempenhadas pelas empregadas
domésticas nas residências onde trabalham não são
capitalistas. [...]
Heleieth Saffioti, após citar esses inúmeros pontos de
vista, tira suas próprias conclusões. Primeiro, afirma que
qualquer trabalho dentro do sistema capitalista pode ser
caracterizado como produtivo ou improdutivo,
dependendo das circunstâncias. Diz, também, que o
trabalho da empregada doméstica não pode ser
considerado como produtivo simplesmente porque ela
ganha um salario, já que não é a simples troca de
dinheiros por trabalho que faz com que esse trabalho se
encaixe no conceito de produtivo. Porém, também não se
trata de produção simples de mercadorias ou trabalho
improdutivo dentro do sistema capitalista (como, por
exemplo, as atividades comerciais).
O trabalho doméstico atua de forma não-capitalista,
segundo ela, inserido na família, que representa uma
instituição não-capitalista, mas que é responsável direta
pela produção e reprodução da força de trabalho. Ou
seja, o trabalho doméstico produz força de trabalho em
moldes não-capitalistas, ainda que profundamente
vinculado a estes. O tipo de exploração exercido sobre
as empregadas diverge do exercido sobre o proletariado,
uma vez que, mesmo que presente, essa exploração não
pode ser convertida em capital.
Heleith Saffioti prefere admitir o trabalho doméstico como
vinculado ao modo de produção doméstico e redefinido
pelas condições sociais impostas pelo capitalismo (como
56
o assalariamento deste trabalho)”. (grifo nosso)

Nestes termos, não bastaria quanto ao trabalho doméstico diagnosticá-lo como

55
MELO, Hildete Pereira de; CASTILHO, Marta. Trabalho reprodutivo no Brasil: quem faz? São
Paulo: R. Econ. Contemp., v. 13, n. 1, p 135-158, 2009.

56
PEDRO, Joana Maria; MELLO, Soraia Carolina de; OLIVERIA, Veridiana Bertelli Ferreira de. O
feminismo marxista e o trabalho doméstico: discutindo com Heleieth Saffioti e Zuleika Alambert. In:
Revista História Unisinos, v. 9, nº 2, São Leopoldo, 2005. Disponível em: http://bit.ly/1pxDFD3. Acesso
em: 04/09/2014.
41

uma parcela improdutiva do trabalho capitalista, mas como trabalho diverso do


trabalho produtivo capitalista, inserido nos marcos de uma relação de reprodução e
produção não capitalista, cuja totalidade se faria presente no sistema chamado
patriarcado capitalista.

Subordinação da reprodução à produção

A economia feminista critica a confusão entre produção social e produção de


mercadorias, e em contrapartida, a confusão do trabalho com o emprego. 57 A
segunda confusão, derivada da primeira, enriquece o entendimento acerca da
desvalorização do emprego doméstico. No entanto, nos detenhamos na primeira,
motivo pelo qual, independente do enriquecimento do entendimento, a empregada
doméstica segue sendo explorada.
A afirmação do caráter de trabalho da atividade feminina e a denúncia de sua
gratuidade se posicionam como crítica da teoria da improdutividade econômica. A
crítica da produtividade capitalista, presente em Marx, é posta diante da crítica
feminista da improdutividade, e aqui se põe uma diferença importante entre a
economia feminista e a economia política clássica, mesmo a marxista.
A centralidade dada pela economia marxista à análise das relações de produção
capitalista, marginalizando o trabalho doméstico e reprodutivo por sua
improdutividade, é descontentamento antigo das feministas.58 Ao falar em trabalho
reprodutivo, a crítica da produtividade capitalista é incorporada epistemologicamente
ao próprio conceito do trabalho produtivo, definido como termo subordinador do
desvalido mundo da reprodução.
Sem abrir mão deste salto teórico possibilitado pela crítica do trabalho
reprodutivo à divisão social do trabalho, diversas autoras reiteram a importância do
materialismo histórico para a síntese de tal crítica. A economia feminista mostra
como trabalho a atividade reprodutiva, que em parte da formulação marxista aparece

57
“Por sua vez, a utilização do conceito de divisão sexual do trabalho, consolidado desde a
industrialização, possibilita a subestimação das atividades realizadas pelas mulheres da família.
Essas atividades são consideradas como não-trabalho, porque se confundem “produção” com
“produção de mercadorias” e “trabalho” com “emprego”. MELO, Hildete Pereira de; CASTILHO, Marta.
Trabalho reprodutivo no Brasil: quem faz? São Paulo: R. Econ. Contemp., v. 13, n. 1, p 135-158,
2009, p.139.

58
NOBRE, Miriam. Introdução à economia feminista. In: FARIA, Nalu; NOBRE, Miriam. Economia
feminista. São Paulo: Sempreviva Organização Feminista, 2002, p. 14.
42

como mero consumo 59 ou dispêndio, 60 tendo, em verdade, sua improdutividade


capitalista confundida com seu caráter de não-trabalho. A rigor, isso contraria própria
crítica marxiana à produtividade capitalista:

“Quão improdutivo, do ângulo da produção capitalista, é


o trabalhador que produz mercadoria vendável – mas só
até o montante correspondente a sua força de trabalho,
sem fornecer mais-valia ao capital, pode-se ver em
Ricardo nas passagens onde diz que o mero existir
dessa gente é uma praga. Essa é a teoria e a prática do
61
capital”.

A crítica da economia feminista ao homo economicus 62 pode ser antevista na


crítica de Marx à produtividade capitalista do trabalho.63 A incompreensão sobre tais
pontos, por outro lado, no interior do pensamento materialista histórico teve de ser
amplamente combatido pelas feministas, em todas as épocas!64 65 66A subordinação

59
GOLDMAN, Wendey. Mulher, estado e revolução: política familiar e vida social soviética, 1917-
1936. Trad. Natália Angyalossy Alfonso. São Paulo: Editora Boitempo, 2014

60
MARX, Karl. Livro 4 – Teorias da mais-valia. São Paulo: Bertrand, v. 1, 1987.
61
MARX, Karl. Livro 4 – Teorias da mais-valia. São Paulo: Bertrand, v. 1, 1987.
62
NOBRE, Miriam. Introdução à economia feminista. In: FARIA, Nalu; NOBRE, Miriam. Economia
feminista. São Paulo: Sempreviva Organização Feminista, 2002, p. 10.
63
Ver CODAS, Gustavo. Economia neoclássica e economia marxista: dois campos teóricos e as
possibilidades das analises de gênero. In: FARIA, Nalu; NOBRE, Miriam. Economia feminista. São
Paulo: Sempreviva Organização Feminista, 2002, p. 18. Ver também MARX, Karl. Livro 4 – Teorias
da mais-valia. São Paulo: Bertrand, v. 1, 1987:
“A produtividade do capital, antes de mais nada, consiste, mesmo considerando-se apenas a
subsunção formal do trabalho ao capital, na coerção para se obter trabalho excedente trabalho acima
da necessidade imediata.[...]
Assim, enquanto o capital representa perante o trabalhador a força produtiva social do trabalho,
o trabalho produtivo representa sempre perante o capital nada mais que o trabalho do trabalhador
isolado. [...]
A produtividade do capital consiste em contrapor-se ele ao trabalho convertido em trabalho
assalariado, e a do trabalho, em contrapor-se aos meios de trabalho convertidos em capital.”
64
“O contraste na família entre o marido como proprietário e a mulher como não proprietária se
tornou a base da dependência econômica e da ilegalidade social do sexo feminino. Essa ilegalidade
social representa, de acordo com Engels, uma das primeiras e mais antigas formas da exploração de
classes. Ele afirma: “Na família, o marido representa a burguesia e a esposa o proletariado”.
No entanto, a questão das mulheres não era questionada neste sentido específico do mundo
moderno. Somente o modo de produção capitalista, o modo de produção que criou a transformação
social, que levantou a questão feminina destruindo o antigo sistema econômico e familiar, trazendo
substância e sentido de vida para a grande massa de mulheres, durante o período pré-capitalista.”
ZETKIN, Clara. Apenas junto com as mulheres proletárias os socialismo será vitorioso. Trad.
Fernando A. S. Araújo. Discurso ao congresso do Partido da Social Democracia da Alemanha, Gotha,
16 de outubro de 1896.

65
“Embora muitos adeptos do materialismo histórico tenham compreendido o conceito de modo
43

teórica da reprodução à produção não deixa de ser, no interior o marxismo inclusive,


reflexo da subordinação real da reprodução à produção no interior do patriarcado
capitalista. A improdutividade do trabalho reprodutivo para o capital se aufere
simultaneamente na gratuidade massiva da prestação feminina desse labor bem
como na inexistência de acumulação de capital mediante o labor da empregada
doméstica. Intrigante, no entanto, tendência das últimas décadas dentro do modo de
produção capitalista, à conformação de empresas terceirizadas de limpeza e
cuidados. Ainda nesse exemplo, seguindo raciocínio marxiano, tais trabalhadoras
são improdutivas para as empresas onde trabalham fisicamente, porém produtivas
para a empresa de terceirização que as emprega. Ou seja: essa improdutividade não
é senão relativa – ao capital67.
O que insere massivamente o trabalho feminino na improdutividade capitalista
não é senão o próprio patriarcado capitalista em seu processo social de produção e
reprodução. Essa compreensão avança em relação à crítica da produtividade de
Marx, atingindo o patamar de crítica da improdutividade, capaz de uma síntese que
ponha a centralidade da organização do trabalho na reprodução.
Saffioti nota, a esse respeito, que:

“Se a dominação patriarcal e o despotismo do capital são


faces de uma mesma moeda:
a) as relações de produção não se restringem ao
domínio do trabalho “público”, invadindo o terreno
“privado” das relações sociais de reprodução;
b) as relações sociais de reprodução extrapolam o
domínio “privado” do lar para penetrar vigorosamente no

de produção de forma economicista, as obras de Marx e Engels não autorizam este tipo de
entendimento.” SAFFIOTI, Heleieth. Força de trabalho feminina no Brasil: no interior das cifras. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1985.

66
“Sobre o pensamento de Roswitha Scholz, nele se destaca “a referência teórica da Crítica do
Valor, cujo centro está no ‘outro Marx’ e não no seus interpretes marxistas ou no ‘Marx vulga’”.
CARMO, Íris Nery do. Gênero e trabalho revisitados: o “trabalho doméstico” hoje sobre as lentes de
Helena Hirata e Roswitha Scholz. Revista Sinal de Menos, ano 3, n. 7, 2011, p. 112.
67
Nesse sentido, importante o posicionamento de Saffioti sobre a polêmica, citado no ponto
anterior. Em PEDRO, Joana Maria; MELLO, Soraia Carolina de; OLIVERIA, Veridiana Bertelli Ferreira
de. O feminismo marxista e o trabalho doméstico: discutindo com Heleieth Saffioti e Zuleika Alambert.
In: Revista História Unisinos, v. 9, nº 2, São Leopoldo, 2005. Disponível em: http://bit.ly/1pxDFD3.
Acesso em: 04/09/2014.
44
68
âmbito da produção “pública” .

O patriarcado capitalista é assumido historicamente como uma forma específica


que tem na vinda à tona da dominação econômica pública e comercial como
responsável evidente pela exploração e opressão do trabalho produtivo e
reprodutivo.
Ainda que em sociedades patriarcais de classes anteriores se possa verificar a
dominação da reprodução pela produção, e a dominação dos proprietários dos
meios de produção sobre as trabalhadoras e trabalhadores da produção e
reprodução, só se dá no capitalismo o império superior da forma produtiva sobre a
reprodutiva.
Se a primeira forma de divisão social do trabalho é a entre homens e mulheres69,
o patriarcado constitui primeira divisão da sociedade em classes. Assim, faz sentido
falar em modo de “produção”, (como produção material e pública), subordinando a
reprodução. No entanto, só no capitalismo, na distinção extrema operada entre o
produtivo e o improdutivo, tendo o processo econômico “aflorado à superfície da
sociedade e o dinheiro passado a permear todas as relações sociais de produção”70
se permite a definição específica, em tais termos patriarcais, da produtividade em
oposição à improdutividade, ao dispêndio, ao consumo. Assim, Nicholson aponta
com justeza em Marx como a concepção burguesa de improdutividade interfere no
conceito de modo de produção e, em última instância, de classe social.71

68
SAFFIOTI, Heleieth. Força de trabalho feminina no Brasil: no interior das cifras. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1985, p. 98.

69
ENGELS, Friederich, A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. São Paulo:
Expressão Popular, 2012.

70
SAFFIOTI, Heleieth. Força de trabalho feminina no Brasil: no interior das cifras. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1985, p. 100.

71
Outra crítica possível do economicismo produtivista que pode derivar do marxismo se expressa
na Teoria do Valor-Dissociação, de Roswitha Scholz. CARMO, Íris Nery do. Gênero e trabalho
revisitados: o “trabalho doméstico” hoje sobre as lentes de Helena Hirata e Roswitha Scholz. Revista
Sinal de Menos, ano 3, n. 7, 2011.
45

4. CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DO DIREITO DO TRABALHO


DOMÉSTICO

Serviço, emprego e trabalho

Nos debates feministas, na academia e no movimento feminista, a categoria


trabalho foi debatida à exaustão. Em busca de dar visibilidade a atividades
realizadas gratuitamente ou mediante baixa remuneração por mulheres no âmbito
doméstico, lançou-se mão de noções como “trabalho doméstico”, “atividade
doméstica”, “atividade reprodutiva”, “serviço doméstico”, “emprego doméstico”,
“trabalho familiar”, “trabalho reprodutivo”, “trabalho de reprodução”, “serviços do
cuidado (care)” e “trabalhos de cuidados”. Como diz Carrasco72:

“El hecho de que exista una variada terminología para


expresar un único concepto, es un indicador de que
ninguno de los términos es totalmente satisfactoria.”

Consolidadas as premissas da divisão social do trabalho no interior da reflexão


sobre o modo de produção e reprodução patriarcal capitalista, o retorno à análise da
ideologia jurídica do emprego doméstico pode ser realizado em patamar superior.
O processo de elevação teórico das atividades reprodutivas e domésticas à
condição de trabalho atingiu igualmente o trabalho doméstico realizado no próprio lar
e o no lar de terceiro, na forma de emprego. Do ponto de vista do ordenamento
jurídico, no entanto, bem como da economia, tal trabalho segue considerado
improdutivo. Com efeito, no caminho em que Marx lança luz ao versar sobre o
trabalho improdutivo como prestação de serviços, a legislação se refere ao emprego
doméstico minorando-o frente aos demais empregos (tratados genericamente por
trabalho, tendo reconhecido seu valor e economicidade) mediante destaque
especifico deste enquanto emprego, e posterior definição nos termos de serviço, e
conferindo-lhe natureza não econômica e finalidade não lucrativa.
Ainda sim, é bastante ideológica do ponto de vista da desvalorização da própria
reprodução tal construção jurídica nos marcos da economia política clássica quando,

72
Apud CARMO, Íris Nery do. Gênero e trabalho revisitados: o “trabalho doméstico” hoje sobr as
lentes de Helena Hirata e Roswitha Scholz. Revista Sinal de Menos, ano 3, n. 7, 2011, p. 98.
46

em outros casos, a improdutividade não significa questionamento quando à natureza


trabalhista jurídica da relação de emprego. É o caso da equiparação jurídica das
instituições de beneficência, associações recreativas e outras instituições sem fins
lucrativos “que admitam trabalhadores como empregados” aos empregadores
celetistas para todos os efeitos, conforme artigo 2º, parágrafo 2º da CLT 73 .
Patentemente, nem todo trabalhador assalariado é produtivo, nem todo trabalhador
assalariado é celetista, mas também nem todo trabalhador celetista é trabalhador
produtivo para o capital.
Há algo de concreto na ideologia celetista: para os trabalhos produtivos do ponto
de vista do patriarcado, trabalho e emprego coincidem. No capitalismo, um/a
trabalhador/a metalúrgico/a, químico/a, petroleiro/a, eletricitário/a, aeroviário/a, não
podem ser senão empregado/as assalariado/as. A dificuldade da norma trabalhista
para definir o emprego doméstico vem do fato de que à trabalhadora doméstica, a
condição de trabalhadora não coincide necessariamente com seu assalariamento.
Para melhor expor essa complexidade, esboçamos um cruzamento analítico de
diversos trabalhos socialmente realizados e seu enquadramento nas categorias
produtivo/improdutivo em relação ao capital e produtivo/reprodutivo em relação ao
gênero:

Ponto de vista do capital X Produtivo Improdutivo


Ponto de vista do gênero
Produtivo Indústria moderna de Atividade comercial e
bens materiais, agro- empresarial, serviço pú-
indústria, alguns ser- blico, força policial, ativi-
viços imateriais comer- dade político-religiosa.
cializados.

Reprodutivo Atividades terceiriza- Trabalho doméstico fa-


das de limpeza, cuida- miliar, emprego domes-
dos e organização; tico, saúde e educação
saúde e educação pri- públicas.
vadas.

73
FERRAZ, Fernando Basto; RANGEL, Helano Márcio Vieira. A discriminação sociojurídica ao
emprego doméstico na sociedade brasileira contemporânea: uma projeção do passado colonial.
Fortaleza: Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI, 2010, p. 8646.
47

Para o trabalho produtivo do ponto de vista do capital e do gênero, temos que


seja completamente composto por contingentes proletários, assalariados e
empregados. O mesmo ocorre com o trabalho produtivo do ponto de vista do capital
e reprodutivo do ponto de vista do gênero. Interessante, no entanto, é nos deter nas
contradições entre os trabalhos improdutivos, e especificamente sobre o trabalho
reprodutivo.
No interior do trabalho improdutivo do ponto de vista do capital, mas produtivo do
ponto de vista do gênero, temos uma série de atividade da maior importância para o
patriarcado especificamente capitalista! Aqui se situam as pessoas ocupadas em
atividades referentes à maior parte das atividades da burocracia estatal, da força
policial e da atividade política e religiosa. Estas, especificamente, são assalariadas,
mas seu assalariamento não produz mais-valia (condição da produtividade
capitalista).Mais intrigante ainda é verificar que tal seja a posição ocupada pela
própria classe dos capitalistas! Antes de tudo sendo não assalariados, uma vez que
obtém seus vencimentos através da renda e do lucro, as pessoas ocupadas na
atividade de direção do comércio e da empresa capitalista não produzem mais-valia
com seu trabalho, sendo improdutivos do ponto de vista do capital! Deriva daí mais
um embasamento para a posição marxista, que trata a atividade burguesa não como
trabalho, mas como personificação do capital, em sua apresentação aparente, e
como parasitismo, em sua apresentação pelo ponto de vista totalizante da crítica
histórica.
Cai por terra, portanto, a posição que simplesmente atribui à improdutividade do
trabalho doméstico a sua desvalorização no interior do patriarcado capitalista.
Por fim, pela exposição visual cruzada de tais conceitos de produtivo/improdutivo
e produção/reprodução, chegamos à conclusão que tanto a posição ocupada pelas
trabalhadoras que realizam trabalho doméstico em seus próprios lares quanto as
que realizam trabalho doméstico mediante assalariamento em lares de terceiros é a
mesma, tanto do ponto de vista da produção capitalista quanto da produção
patriarcal74.

74
O mesmo vale para o trabalho público de saúde e educação, o qual pouco aprofundamos
nessa pesquisa. Ainda sim, acreditamos que faça sentido situar no campo da reprodução o trabalho
de educação e saúde. Para um estudo mais aprofundado, no caso da saúde, ver BARBOSA, Regiena
Helena Simões, MENEZES, Clarissa Alves Fernandes de et al. Gênero e trabalho em saúde: um
olhar crítico sobre o trabalho de agentes comunitárias/os de saúde. Botucatu: Revista Interface v.16,
48

Isso ajuda a entender o motivo pelo qual é custoso à ideologia jurídica


burguesa conferir ao emprego doméstico o mesmo status do emprego em geral:
admitido como trabalho do ponto de vista jurídico, o emprego doméstico aprofunda a
contradição da gratuidade e desvalorização do trabalho doméstico realizado pelas
mulheres nas famílias.75
Sobre tal efeito dos avanços jurídicos sobre a consciência das desigualdades,
ENGELS foi categórico:

“De igual maneira, o caráter particular do predomínio do


homem sobre a mulher na família moderna, assim como
a necessidade e o modo de estabelecer uma igualdade
social efetiva entre ambos, não se manifestarão com
toda a nitidez senão quando homem e mulher tiverem,
por lei, direitos absolutamente iguais. Então é que se há
de ver que a libertação da mulher exige, como primeira
condição, a reincorporação de todo o sexo feminino á
indústria social, o que, por sua vez, requer a supressão
da família individual enquanto unidade econômica da
76
sociedade”.

O lar como mundo do trabalho


Chegamos à conclusão de que a natureza improdutiva ao capital e
reprodutivo ante o patriarcado é comum tanto ao emprego doméstico assalariado
quanto ao trabalho doméstico gratuito. A combinação dos dois fatores pode ser
atribuída ao local da realização de tal trabalho: o mundo doméstico. Como denuncia
Bruschini, 77 a análise econômica negligencia o lar como mundo do trabalho e o

n.42, 2012.
75
Em tal ponto outras abordagens, ainda que se utilizem da explicação da contribuição do
trabalho doméstico para a acumulação capitalista como sendo indireta, com a qual já afirmamos
discordar, nos oferecem análises interessantes. “O problema que o direito jamais conseguirá resolver
é ínsito à seguinte proposição: trabalho gera valor para o capitalista, mas não pode ser
considerado, em si mesmo, como um valor, sob pena de inviabilizar a primeira parte da
proposição. [...] Quando se diz que o trabalho da empregada doméstica coincide com aquele que se
realiza no âmbito residencial e sem fins econômicos (...), essa assertiva deve ser vista no contexto da
tensão anterior, com prevalência do econômico sobre o jurídico claramente evidenciado – atribuição
de não-valor ao trabalho para geração de valor para o capitalista”. CORREIA, Marcus Orione
Gonçalves; BIONDI, Pablo. Uma leitura marxista do trabalho doméstico. São Paulo: LTr, 2011, v. 75, p.
312.
76
ENGELS, Friederich, A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. São Paulo:
Expressão Popular, 2012, p. 97
.
77
BRUSCHINI, Cristina. Trabalho doméstico: inatividade econômica ou trabalho não-
remunerado? Revista Brasileira de Estudos da População, São Paulo, v. 23, n. 2, p. 331-353, jul./dez.,
2006.
49

define como lócus de inatividade econômica (ou consumo, dispêndio, como já


vimos). A autora não está sozinha em tal compreensão:

“No caso especifico das mulheres, esta questão torna-se


mais complexa, já que as alocadas exclusivamente ao
campo da reprodução não são consideradas
desempregadas. Trabalham sem remuneração e este
trabalho é considerado não-trabalho, já que se situa no
âmbito da reprodução e não no terreno da produção. É a
partir desta última esfera que se constrói a noção de
trabalho; por conseguinte, as categorias censitárias a
obedecem, dificultando sobremodo a análise das
78
atividades femininas.”

Ainda de que do ponto de vista do direito o trabalho como um todo tenha de


ser tratado como um não-valor,79 o trabalho doméstico em especial deve ser tratado
como um não-trabalho, o que obsta os avanços das próprias empregadas
domésticas quanto a garantias trabalhistas. A esse respeito, versamos de condição
específica da produtividade patriarcal capitalista, como é possível entender na
própria relação da categoria “dona de casa”:

“A dona-de-casa emergiu, simultaneamente, com o


proletário – os dois trabalhadores característicos da
80
sociedade capitalista desenvolvida.”

““Dona de casa” não pode ser sinônimo de esposa e mãe,


81
mas, sim, de trabalho doméstico não remunerado.”

Se tal condição limita os direitos das empregadas domésticas, quanto às donas


de casa seu reconhecimento pelo ordenamento jurídico sequer se deu. Cabe
lembrar quanto à Assembléia Nacional Constituinte, por exemplo:

“Entre as emendas que tratavam dos direitos da mulher,


a que continha o maior número de assinaturas era
promovida por três entidades: a Federação das

78
SAFFIOTI, Heleieth. Força de trabalho feminina no Brasil: no interior das cifras. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1985, p. 107.

79
CORREIA, Marcus Orione Gonçalves; BIONDI, Pablo. Uma leitura marxista do trabalho
doméstico. São Paulo: LTr, 2011, v. 75, p. 311-317.),

80
SAFFIOTI, Heleieth. Força de trabalho feminina no Brasil: no interior das cifras. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1985, p. 106.

81
MELO, Hildete Pereira de; CASTILHO, Marta. Trabalho reprodutivo no Brasil: quem faz? São
Paulo: R. Econ. Contemp., v. 13, n. 1, p 135-158, 2009, p.139.
50

Associações de Bairro de Salvador, a Associação de


Moradores de Plataforma e a Associação de Mulheres de
Cosme e Farias. Apresentava como proposta a
aposentadoria das donas-de-casa, justificando o trabalho
doméstico como contribuição à renda familiar, e a
aposentadoria como reparação pelas atividades
profissionais não exercidas pelas mulheres em razão de
82
sua ocupação (Emenda 19)”.

A reivindicação da aposentadoria para a dona de casa segue sendo erguida,


no entanto. Ainda que a Lei Complementar 123 de 2006 tenha alterado a Lei
8.213/91 para a dona de casa sem rendimentos, na prática, contribuir para a
Previdência Social com alíquota menos, de 11%; e a Lei 12.470/11 tenha reduzido
mais ainda tal alíquota, reduzindo-a a 5%, tais legislações sequer fazem menção à
dona-de-casa. Similar é o caso do Projeto de Lei do Senado 370 de 2011: embora
este faça menção, em sua introdução, à dona de casa, se vale da mesma
denominação da Lei 12.470 de 2011: “segurado facultativo sem renda própria que se
dedique exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua residência, desde
que pertencente a família de baixa renda”. De qualquer forma, o mero
reconhecimento do afazer doméstico de tais mulheres como trabalho tem um
significado grande para as lutas feministas, menos até como conquista simbólica e
mais como expressão jurídica de seu avanço político na sociedade.
O direito burguês não poderia se desarmonizar da economia política burguesa
em seu trato com o trabalho doméstico, ainda que as reivindicações das
trabalhadoras domésticas se ponham no plano da previdência social e que a forma
assalariada específica da empregada doméstica a ponha em movimento por direitos
trabalhistas. Para ambas as perspectivas cientifico-ideológicas, resta impossível
conceber radicalmente o lar como mundo do trabalho, como bem nota quanto ao
mundo jurídico Ferraz:83

“De fato, o trabalho doméstico é regido por uma


convenção de regras inerentes ao lar familiar; um
universo avesso às normas externas e cerrado à
fiscalização da autoridade pública. Assim, por mais que o
serviço doméstico seja disciplinado pelas leis da

82
PINTO, Célia Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2003.

83
FERRAZ, Fernando Basto; RANGEL, Helano Márcio Vieira. A discriminação sociojurídica ao
emprego doméstico na sociedade brasileira contemporânea: uma projeção do passado colonial.
Fortaleza: Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI, 2010, p. 8651.
51

República Federativa do Brasil, o seu exercício, no


âmbito familiar, o torna mais suscetível às regras do lar
do que àquelas que imperam no mundo público da rua,
da empresa. Essa sobreposição da ordem pública e da
privada prejudica o pleno reconhecimento do emprego
doméstico, assim como prejudicou os “libertos” de
outrora. Assim se posiciona o jurista Mozart Victor
Russomano:
“Hoje, sente-se contra isso uma reação, que se deve,
entretanto, exercer cautelosamente. E isso porque a
legislação regulamentadora do trabalho só produz bons
efeitos quando amparada, eficientemente, pela
fiscalização administrativa, fiscalização essa que esbarra,
no caso dos domésticos, no princípio constitucional da
inviolabilidade do domicílio.””

Para o direito, o trabalho realizado no interior da família surge necessariamente


como descontinuidade em relação ao trabalho realizado no terreno produtivo do
mercado – por isso mesmo, a crítica a tal descontinuidade não pode apenas
indiretamente ligar dois pólos mantidos cindidos, sob risco de preservar a
descontinuidade. Isso ocorre uma vez que, ainda que o “trabalhador” tenha seu
reconhecimento jurídico, é a “família” a instituição considerada como base orgânica
social do trabalho produtivo, base econômica da sociedade, ainda que (e por isso
mesmo) tenha sua economicidade negada.
A prudência dos tribunais dá conta de tal compreensão. Esteio cotidiano da
segurança jurídica da produção social, os julgados expõem as contradições jurídicas
entre a natureza familiar e trabalhista das relações de produção e reprodução:

“Acerca da possibilidade de reconhecimento de


relação empregatícia com entes familiares próximos
muito bem analisou o Juiz Mário Bottazzo que foi relator
do RO-01576-2004-008-18-00-9, a quem pede-se vênia
para aqui adotar como fundamento:

Não é presumível que a mulher que coabita com um


homem seja sua empregada, ou vice-versa: seu
relacionamento é de outra natureza, evidentemente.
Acredito que a presunção também não vale quando
se trata de relação de emprego entre parentes próximos,
onde impera o dever de auxílio recíproco. (...)
Ora, é absolutamente imoral que ascendentes e
descendentes deixem-se ao desamparo, tanto que a lei
os obriga reciprocamente à prestação de alimentos.
Assim, se um pai oferece ocupação ao filho, está
cumprindo um dever moral. Estaria também celebrando
um contrato, contraindo uma obrigação? É possível, mas
isso não é certo nem presumível, porque há, aqui, o
componente moral. A obrigação de auxiliar o parente
necessitado é compatível com a exigência de uma
contrapartida, geralmente em forma de trabalho, sem que
52

isso caracterize, necessariamente, uma relação de


emprego. Não é raro que pais dêem ocupação aos filhos
sem ao menos necessitar de seu auxílio; além disso,
entre pessoas assim tão próximas existe um outro
vínculo, pessoal, que é o amor: nenhum pai dá uma
pedra ao filho que pede pão, nem uma serpente ao que
pede peixe (salvo as aberrações que configuram a
exceção à regra). (...)

Como bem concluído na sentença,


[...] o trabalho da Reclamante ocorreu na condição
de ajudante por conta própria do marido, no regime de
mútua ajuda familiar, já que todo o grupo familiar retirava
a sua subsistência da empresa”.
(TRT da 18ª Região. Juiza Relatora DESEMBAR-
GADORA KATHIA MARIA BOMTEMPO DE ALBU-
QUERQUE. Processo n.º 00135-2008-005-18-00-4 RO.
Publicado em 08/07/2008. Partes: Recorrente: VERA
LÚCIA DE CARVALHO e Recorrido R.C.O. REPRESEN-
TAÇÕES LTDA. Disponível em: http://bit.ly/1lT1ISg. A-
cesso em 09/09/2014.)

“O juízo a quo pronunciou a prescrição nuclear,


quanto às pretensões relativas a obrigações de pagar,
como segue:

Conforme se verifica nos autos (...) restou


comprovado que a Reclamante foi admitida pelo Réu
como empregada de seu consultório no cargo de
atendente. (...)
A relação de emprego teve seu curso normal até
junho de 2009, quando assumiram uma relação de
natureza familiar com união estável do casal regida pelo
Direito de Família, sendo que dessa união inclusive
nasceu um filho.
A própria Reclamante admite nos autos que foi
contratada para trabalhar como atendente do consultório
e não como empregada doméstica para prestar serviços
no lar.
A Reclamante também reconhece (...) que em junho
de 2009, por já estar vivendo em concubinato com o réu
passou a realizar serviços domésticos na casa dele, alias,
casa dele não, casa do próprio casal, onde a reclamante
também vivia, como sua esposa e não como sua
empregada doméstica.
A Reclamante no depoimento pessoal admitiu que no
início de sua gravidez, em 2009, afastou-se do
consultório, que aliás, afigura-se muito normal já que
estava naquela ocasião vivendo em concubinado (sic)
com o réu num regime familiar, íntimo, de solidariedade
como esposa, o que afasta a relação subordinada e
hierárquica de emprego. Observe-se que não se trata de
uma empresa e sim de uma pessoa física que foi
empregador e se tornou companheiro.
Por certo, esposa ou companheira que vive em união
estável inclusive grávida não pode ser considerada
empregada doméstica porque cuida de sua própria casa.
Os serviços do lar prestados no teto comum do casal
53

afiguram-se totalmente incompatíveis com a relação de


emprego doméstico regido por lei própria.
A relação familiar não se confunde com relação de
emprego, de forma alguma. O período de união estável
do casal não pode ser tratado como relação jurídico-
trabalhista doméstico, pois envolve possível
pensionamento ou partilha de bens, enfim, outras
questões que fogem totalmente ao disposto na CLT.
A relação profissional entre ambos, regida pelo art.
30 do Texto Consolidado perdurou até o afastamento da
reclamante do consultório, quando ficou apenas
realizando atividades domésticas no lar do casal, em
junho de 2009. (...)
As partes alegaram que após o afastamento acima, a
reclamante voltou a atuar no consultório.
Acontece que desta vez a sua atuação não se dava
mais como empregada subordinada, e sim como esposa,
mãe do filho do réu, atuando com o intuito de ajudar o
marido a auferir seus ganhos, alias, ganhos estes que
serviam para o sustento de ambos.
Passou a ocorrer uma substituição da figura da
empregada subordinada da época da admissão com a
figura da companheira que ao lado do companheiro o
auxilia a auferir ganhos para o casal e filhos.
A Reclamante então pode fazer jus a algum rateio de
bens comuns, se for o caso, mas não de salário. (...)
A Relação de emprego não mais se restabeleceu, já
que o vínculo passou a ser familiar. (...)
Em Direito do Trabalho prevalece o princípio da
primazia da realidade.”

Evidentemente, o exercício de atividades domésticas


no lar do casal não gera vínculo de emprego. (...)
Quanto ao período em que a autora ajudou o réu no
consultório, de 15.3. a 4.6.2010, já o fez na condição de
companheira, visto como estava grávida, e a criança
nasceu em 20.6.2010.
(TRT da 1ª Região. 3ª Turma. Juiza Relatora
DESEMBARGADORA GLORIA REGIAN FERREIRA
MELLO. Processo n.º 0001054-54.2011.5.01.0004 RO.
Publicado em 04/03/2013. Partes: Recorrente:
FLAVIANNE DE ANDRADE SOARES e Recorrido LUIZ
GUSTAVO ZACCONI MARQUES. Disponível em:
http://bit.ly/1lT1ISg. Acesso em 09/09/2014.)

A unidade necessária entre patriarcado e capitalismo, no atual estágio de


desenvolvimento das forças sociais produtivas e reprodutivas, aponta para a
impossibilidade de reconhecimento do trabalho reprodutivo como valor social – ao
menos não nos mesmos parâmetros que o trabalho produtivo capitalista frente ao
Direito do Trabalho. Assim, tomamos lado da afirmação de Engels (mesmo que
simplista e otimista, diante da experiência histórica revolucionária que os separa de
nosso presente), que relega à superação da economia privada a possibilidade
objetiva de emancipação do trabalho feminino.
54

“Quando os meios de produção passarem a ser


propriedade comum, a família individual deixará de ser a
unidade econômica da sociedade. A economia doméstica
converter-se-á em indústria social. O trato e a educação
das crianças tornar-se-ão assunto público; a sociedade
84
cuidará, com o mesmo empenho, de todos os filhos”.

A obra em Juliet Mitchell

Autora feminista marxista (de matiz althusseriano) 85 sobre a qual não nos
detivemos, um estudo mais detalhado do pensamento de Juliet Mitchell possibilitaria
uma melhor compreensão da totalidade da posição do direito frente ao trabalho
reprodutivo.
Segundo Saffioti, a autora indica “os domínios nos quais as mulheres
desempenhavam suas funções, ou seja, a produção, reprodução, sexualidade e
socialização das gerações imaturas, esferas estas que a autora denomina de
estruturas”.
A formulação em questão muito tem de aportar à crítica da improdutividade,
principalmente pelo destacamento da sexualidade e socialização como funções
distintas da reprodução.
Ao separar estas duas categorias86, a grande contribuição se situa em definir a
tarefa de cuidados e a própria atividade sexual como trabalhos distintos do
reprodutivo, mas ainda sim inseridos nas atribuições femininas, ou seja, no trabalho
reprodutivo latu sensu.
Isso põe toda a crítica esboçada quanto à forma jurídica do emprego doméstico
numa perspectiva muito estreita para encerrar o debate sobre a relação entre o

84
ENGELS, Friederich, A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. São Paulo:
Expressão Popular, 2012, p. 99.

85
Sobre a autora, ver citação em SAFFIOTI, Heleieth. Força de trabalho feminina no Brasil: no
interior das cifras. São Paulo: Editora Perspectiva, 1985. Ademais, temos como centrais na autora os
obras: MITCHELL, Juliet. Women’s estate. London: Penguin, 1971; e MITCHELL, Juliet. Women: The
Longest Revolution. London: New Left Review, no. 40, 1966. Ambas obras parcialmente disponíveis
em: http://bit.ly/1rQw5c4 e http://bit.ly/1AkcRfP . Acesso em: 09/09/2014.

86
Mitchell acreditava que era no campo da sexualidade que a luta das mulheres mais tinha
avanços a obter, no estágio de desenvolvimento de forças em que se inseria.
55

direito e a divisão sexual do trabalho. A socialização das gerações imaturas vista


como trabalho feminino ajuda a compreender a presença feminina massiva na
escolarização de base. Mas, principalmente, a identificação da questão da
sexualidade frente à crítica feminista do trabalho improdutivo (quando não
simplesmente diante da questão econômica da prostituição) permite situar a
organização da reprodução social, do ponto de vista jurídico, na jurisdição penal
muito mais que nas juntas de reclamação trabalhista.
56

CONCLUSÃO

“A propósito do "direito ao trabalho", que é considerado


‘a primeira fórmula canhestra em que se condensavam
as exigências revolucionárias do proletariado’, afirma-se:
‘...mas por detrás do direito ao trabalho está o poder
sobre o capital, por detrás do poder sobre o capital a
apropriação dos meios de produção, a sua submissão à
classe operária associada, portanto a abolição
[Aufhebung] do trabalho assalariado e do capital e da
sua relação recíproca.”
87
-Engels

Acreditamos cumprida a exposição de nossa crítica à ideologia jurídica do


emprego doméstico. Sinteticamente, reiteramos julgar traçada a evolução histórica
do conceito jurídico positivo de emprego doméstico, e defrontado este com a crítica
da divisão sexual do trabalho e da produtividade social do trabalho reprodutivo.
Decerto, no entanto, isso em nada exaure a reflexão jurídica acerca das
possibilidades próximas de avanços legais para as empregadas domésticas, reflexão
esta de interesse prático das próprias empregadas.
Ademais, como crítica ideológica, não capta a realidade prática do emprego
doméstico. Só assim, realmente, poderíamos ter lançado mão de transcorrer em
nossa explanação passando ao largo do debate da exploração racial no interior do
modo de reprodução e produção brasileiro. Da mesma forma, nos estender agora
falando sobre a situação das diaristas não seria suficiente: não caracterizada a
continuidade, seu trabalho regride socialmente à condição de serviço, não emprego,
no interior da interpretação da primazia principiológica da realidade feita pelo Direito
do Trabalho.
No campo da análise material da divisão do trabalho no patriarcado capitalista,
ainda sim, temos por grande coisa que sequer possamos ter avançado à exposição
da não naturalidade do trabalho reprodutivo sendo trabalho feminino. Pudemos
demonstrar não só como tais atividades são trabalho, mas como a mulher não
esteve sempre atrelada a tais tarefas nos mesmo termos em que hoje se encontra.
Antes o capitalismo expulsou finalmente a mulher do mundo produtivo, que o abriu a

87
ENGELS, Friedrich. Introdução à edição de 1895 de As lutas de classes na França de 1848 a
1850. In MARX, KARL. As lutas de classes na França de 1848 a 1850. Trad, Nélio Schneide São
Paulo: Boitempo, 2012.
57

ela, como busca a literatura liberal nos fazer crer. Podemos fazer jus à assertiva que
dá título a esta pesquisa: o trabalho feminino nem sempre foi restrito ao mundo da
reprodução, senão quando operada a mudança produtiva capitalista e a perda do
papel produtivo da família. Assim como o trabalho servil camponês foi cercado pelo
capitalismo nascente, o trabalho feminino foi domesticado.
Em nossa pesquisa nos defrontamos, finalmente, com três dificuldades:
Primeiramente, partirmos do conceito jurídico de emprego doméstico para a
reflexão sobre o trabalho reprodutivo ocultou diversos segmentos das trabalhadoras,
notadamente as diaristas, as trabalhadoras terceirizadas de serviços de limpeza e
cuidados, quando não as próprias donas-de-casa.
Quanto a isso, sustentamos ainda sim que a tomada da categoria jurídica do
emprego doméstico como ponto de partida tem grande relevo para a crítica da
divisão social e sexual do trabalho: por um lado, permite nos debruçarmos sobre o
processo social de formação do trabalho reprodutivo como um não-trabalho; por
outro, permite um ponto de partida intrigante para o estudo da formação do emprego
em geral como um não-valor. 88 Assim, figura como conceito cujo estudo se faz
necessário para a síntese entre a crítica feminista e o materialismo histórico.
A segunda dificuldade encontrada no curso de nossa pesquisa se refere ao
aprofundamento teórico. Já esboçamos a crença em que um maior acúmulo acerca
da formulação de Juliet Mitchell poderia pôr o debate sobre a divisão sexual do
trabalho e o Direito em outro patamar, onde a regulamentação penal das relações de
gênero assumiria centralidade. Também nos foi impossível aprofundar os estudos da
Teoria do Valor-Dissociação. A própria afirmação titular de que “O Valor é o Homem”,
contida em Scholz, e alguma leitura superficial de sua obra faz crer que muito teria a
se aprofundar nossa formulação com o debate da autora, tendo a crítica da
improdutividade econômica como ponto nevrálgico da síntese entre o feminismo e o
marxismo para a compreensão do patriarcado capitalista.
Não obstante as duas dificuldades já expostas, uma terceira e última se coloca:
nos momentos finais de nossa crítica ao Direito do Trabalho Doméstico, pudemos
diagnosticar o abissal não reconhecimento do lar como mundo do trabalho para o
ordenamento jurídico. Assim, resta em aberto a tarefa de buscar não no Direito do

88
CORREIA, Marcus Orione Gonçalves; BIONDI, Pablo. Uma leitura marxista do trabalho
doméstico. São Paulo: LTr, 2011, v. 75, p. 311-317.
58

Trabalho, mas no Direito de Família (na pista deixada pela jurisprudência recolhida)
os elementos da forma trabalho, oculta na forma jurídica, na regulamentação mais
próxima da divisão do trabalho entre os gêneros no interior da família. Tal esforço,
porém, está aquém de nossas possibilidades momentâneas: requereria o estudo de
uma coleção infinitamente superior de legislação em sua sucessão histórica, recurso
à doutrina para organização de tal normativa e elaboração de uma metodologia de
mais fôlego de aproximação com o próprio arcabouço teórico do feminismo
materialista histórico.
De qualquer forma, conclusivamente, acreditamos dada nossa contribuição à
crítica feminista materialista histórica do emprego doméstico.
59

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