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PRODUÇÃO PATROCÍNIO

IRIS HELENA  Práticas de arquivo morto -- Notas


Distribuicão gratuita. Comercialização proibida.

CAIXA Cultural São Paulo


Praça da Sé, 111, Centro. CEP 01001-001
Prefira o transporte público
(11) 3321-4400

IRIS HELENA
Práticas
de arquivo
morto
--
Notas

PRODUÇÃO PATROCÍNIO
PRODUÇÃO PATROCÍNIO

IRIS HELENA
Práticas
de arquivo
morto
--
Notas

Curadoria
Agnaldo Farias

13 de novembro de 2019
a 19 de janeiro de 2020

CAIXA Cultural São Paulo


A Caixa valoriza amplamente a cultura nacional como ferramenta
de inclusão social e reforço do orgulho de ser brasileiro. Nos últimos
cinco anos, os espaços culturais da Caixa investiram mais de R$ 385
milhões distribuídos em Brasília, Curitiba, Recife, Fortaleza, Salvador,
São Paulo e Rio de Janeiro.
Os investimentos incluem iniciativas nos segmentos de artes
plásticas, fotografia, espetáculos musicais, dança, teatro, exibição
de filmes, lançamento de livros, palestras e oficinas por meio da
seleção pública de projetos, realizada via Programa de Ocupação
dos Espaços da Caixa Cultural. Esse programa é um dos principais
instrumentos da política de patrocínio cultural do banco. Com equipa-
mentos e projeto educativo próprios, a Caixa coloca em prática uma
política de fomento à cultura, formação de plateia, apoio à diversi-
dade cultural, profissionalização e democratização do acesso a bens
culturais para aproximação com os mais diferentes públicos. Ao todo,
são quase 40 anos de investimento contínuo em cultura.
É neste contexto que a Caixa patrocina a exposição “Práticas de
arquivo morto - Notas” da artista Iris Helena, com curadoria de Agnal-
do Farias. A mostra traz obras produzidas a partir do uso de materiais
perecíveis, e bastante presentes em nosso cotidiano, como marca-
dores plásticos de página, lembretes autoadesivos, papel higiênico,
e recibos de cartão de crédito, que são convertidos em suportes para
impressões térmicas ou a jato de tinta de fotografias ou imagens de
arquivo e também na montagem de instalações de caráter narrativo.
Com este projeto, a Caixa ratifica a sua política cultural, a sua
vocação social e o seu propósito de democratização do acesso aos
seus espaços e à sua programação artística. Desta forma, ela cumpre
seu papel institucional de estímulo à difusão e ao intercâmbio do
conhecimento, contribuindo para a valorização da identidade brasi-
leira bem como para o fortalecimento, a renovação e ampliação das
artes no Brasil e da cultura do nosso povo.

Caixa Econômica Federal

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PRETÉRITO IMPERFEITO
AGNALDO FARIAS

Iris Helena está convicta que o presente é


incompreensível sem a recuperação do passado,
sem a tentativa sistemática e amorosa de
presentificação das infinitas ausências, objetivo
que condenaria seu projeto ao fracasso, se isso
a paralisasse, o que não acontece. A artista
explora a liberdade interdisciplinar da produção
contemporânea, vai trabalhando e desenvolvendo
um comércio de cabotagem entre arte e economia,
política, antropologia, história, arquitetura
e urbanismo, utilizando fotografias, colagens,
assemblages, instalações, filmes, gravações,
entrevistas, e segue embarafustando-se por
arquivos, cascavilhando documentos, infiltrando-
se e organizando reuniões e assembleias com
grupos comunitários, convocando, aglutinando,
aliciando gente para seus projetos, suas
intervenções de toda ordem. De tudo isso segue-
se um apreciável elenco de séries e ações: de
impressões sobre fragmentos de alvenaria, placas
de tapumes, coisas ínfimas como marcadores de
páginas coloridos e autodesivos, post-its, até
monumentos físicos, totens e bandeiras, chegando
a datas comemorativas e pontos facultativos,
caso da sua ação Ode à Sena, realizada em julho
de 2013 no município acreano de Sena Madureira,
e que fez parte de um programa de residência

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artística financiada pela Universidade de crita, “Estive em Sena Madureira e lembrei de
Brasília. você”.
-- --
O eixo desse trabalho, acessível na internet, Iris Helena volta-se ao passado e, posto que ele
consistia em fazer com que seus habitantes pen- não é monolítico, tampouco homogêneo, o vai sepa-
sassem e montassem a sua história da cidade, rando em histórias de vida montadas a partir de
suas passagens marcantes, figuras memoráveis, algumas cicatrizes que os velhos contam por meio
e criassem efemérides em contraposição àquelas de narrativas entrecortadas, cheias de lacunas
definidas em âmbito federal, sempre genéricas e, e acréscimos produzidas pela imaginação, em ca-
como tal, alheias à vida do lugar, a bem dizer cos de fachadas recolhidas de casas arruinadas e
de todos os lugares, afinal, só mesmo por força sobre as quais ela imprime imagens fotográficas
de trabalhos escolares, a presença imorredoura em preto e branco, vistas esmaecidas de casarios
da Hora do Brasil, hinos tocados em aberturas de aparentados com esses reduzidos a lascas e restos
jogos de futebol, os benvindos feriados etc, é imprestáveis. Iris persegue a reconstrução dos
que os signos pátrios se impõem. O pressuposto fatos ocorridos, como se fosse possível a abo-
do projeto de Iris Helena era a valorização da lição da morte dos prédios que desapareceram ou
vida das cidades distantes dos grandes centros, que estão a caminho disso. E acontece que todos
vida simples e monótona, diriam os moradores estão a caminho disso, mesmo aqueles que ainda
das grandes cidades, mas, que diabo!, importante serão construídos, que estão em vias de o ser ou
para quem é de lá ou mora lá ou ainda veio de que sequer ainda foram premeditados. Como tudo,
lá. Não foi assim que Drummond, entre nossos ar- aliás. A maturidade do seu trabalho expressa-se
tistas mais universais, faz referência à herança em soluções certeiras e concisas que esclarecem
colhida em sua Itabira natal, as prendas diver- nossas infrutíferas tentativas de disfarçar o
sas que oferece ao leitor, como “São Benedito colapso iminente. Haverá saúde e apogeu capaz
do velho santeiro Alfredo Duval; este couro de de evitar o movimento inelutável da decadência,
anta, estendido no sofá da sala de visitas; este que consiga disfarçar o destino que Pessoa, num
orgulho, esta cabeça baixa...”? São muitos os verso de seu mais famoso poema, resumiu como “a
mineiros que se orgulham por ter a mesma origem morte a pôr humidade nas paredes e cabelos bran-
do grande poeta. Pois hoje, graças a Iris Helena, cos nos homens”?
tem gente de Sena Madureira orgulhosa de ser de --
lá, ciente de que a história de Sena Madureira A inteligência do projeto poético de Iris Helena
é só dela, pessoal e intransferível, gente que esclarece-se em sua sustentação contraditória:
sorri ao enviar ou receber um exemplar da série voltar-se para o passado para dele retornar com
de cartões postais que ela inventou, um conjunto as mãos vazias ou quase isso: coleções de ruí-
de imagens da cidade e arredores nos quais vem a nas, papéis esgarçados, depoimentos fraturados.
frase lavrada em doce fonte tipográfica manus- E poderia ser diferente? Sim e não. Sim, porque

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que ainda há quem aposte em reconstruções gran- --
diosas e exatas do passado. Não, porque segundo Em Catálogos de ruínas, uma série de três li-
o pensamento de gente como nossa artista, qual- vros de artista produzidos entre 2011 e 2013, as
quer tentativa de abordagem do passado será sem- imagens são impressas em jato de tinta sobre uma
pre malograda, o que conduz a conclusão de que sequência de páginas de papel higiênico dupla-fa-
qualquer explicação sobre o presente será insu- ce, tiras horizontais de 10 x 21 cm, juntadas e
ficiente. E, convenhamos, não é mesmo importante presas em uma das extremidades por uma dobradiça
que compreendamos isto? Que não há, entre os enferrujada. Graças a suscetibilidade do mate-
resíduos do que já se passou e o nosso presente, rial, todo e qualquer manuseio, por cuidadoso
nada além de aproximações, associações, relações que seja, mesmo vencendo a cada passo a presença
oblíquas, ou seja, que toda e qualquer evidência obstruente da dobradiça pesada e enferrujada,
esbarra em construção e arbítrio? concorre diretamente para o esgarçamento do ob-
-- jeto, isso sem contar o efeito deletério que por
Embora interessada no acontecido, pela vontade si só as condições ambientais provocam sobre as
de reavê-lo, a artista, consciente do fracasso folhas que se vão amarfanhando paulatinamente.
antecipado da sua proposta, não hesita em abra- Folheando o livro imponderável nota-se que as
çar a ironia, o que fica patente no uso recor- ruínas do título referem-se somente as imagens
rente de imagens fotográficas. E um dos grandes que o compõem ou também à nossa ação sobre ele,
efeitos subjacentes a invenção da fotografia foi não fossemos nós uns bons produtores de ruínas.
o presumível assassinato do tempo. Como antídoto Trepidantes, 2015, pertencente a mesma técnica e
ao fluxo perpétuo de tudo que há, a fotografia, linha de raciocínio (imagens de ruinas impressas
refiro-me aquela nasce do desejo de captura do em papel higiênico), reitera a ideia da fragili-
visível, fixa, enrijece, mesmo que também ela dade simultaneamente contida no que dá a ver e
esteja condenada ao esmaecimento, a descolora- no material que lhe serve como suporte. Uma ima-
ção, ao progressivo distanciamento do alvo da sua gem é aplicada a duas tiras de papel higiênico
atenção. Iris desmascara de cima a baixo essa devidamente colocadas numa parede, fixada pelas
pretensão estampando imagens de ruínas em pedaços extremidades superiores. Se o livro supõe o manu-
de ruínas: imprimindo em pedaços de arrancados seio, Trepidantes, embora não possa ser tocada,
e caídos das fachadas de casas abandonadas, ima- reage as discretas correntes de ar em curso pelo
gens de arquitetura reduzidas a tristes molambos, espaço, provenientes de um vento encanado, da
construções a beira do fim. A ironia se estende direção do ar condicionado, do simples desloca-
as impressões de casas abandonadas em faixas de mento do ar causado pelo trânsito dos visitantes.
papel higiênico, papel dos mais precários, cujas Se a integridade de cada retalho de papel res-
variações de porosidade, maciez, qualidade mais sente-se da simples passagem dos dias de duração
ou menos ordinária, serve ao propósito de reter da exposição e, antes disso, do acomodamento nas
as variadas secreções e impurezas que produzimos. pastas e mapotecas do atelier da artista, con-

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dições que lhe vão abrindo escaras, lacerações, Não obstante “os bafos horrendos que sopravam
necrosando-os, o mesmo se pode dizer das casas pelas cidades alemãs” nos meses subsequentes,
e construções depauperadas, com pisos, tetos e a apatia dos moradores andando pelos escombros
paredes desgastados, desmoronados e, vestígios surpreendeu a várias testemunhas. Alfred Döblin,
de arquiteturas desmoralizadas ao longo de déca- em transcrição de Sebald, escreve sobre os mora-
das e séculos, representadas em imagens em preto dores que se moviam “pelas ruínas medonhas como
e branco. se, na verdade, nada houvesse acontecido e [...]
-- esse sempre tivesse sido o aspecto da cidade.”
A Série Aliança consiste num conjunto de 21 Sebald, fazendo coro com Hans Magnus Enzensber-
painéis de madeira compensada, placas quadradas ger, assinala o contraste entre esse indiferença
e retangulares, unidas em duplas por meio de fruto de um trauma sem precedentes com a dis-
dobradiças e fixadas na parede em arranjos irre- posição pelo recomeço, mais do que isso, “como
gulares. As dobradiças permitem que cada unidade o primeiro estágio de uma reconstrução bem-su-
bascule, ficando aberta ou fechada. No primeiro cedida”, do que é prova o desejo externado por
caso, têm-se acesso as imagens, cada uma delas empresários alemães em abril de 1945, registrado
trazendo um par de imagens: de um lado detalhes com estupefação pelo diplomata norte-americano
do centro histórico de Frankfurt destroçado em Robert Thomas Pell, citado por Enzensberger, de
1945 pela vingança desapiedada dos ingleses, de “reconstruir seu país ainda maior e mais podero-
outro, ângulos de Brasília sendo construída, pro- so”. Ora, o ponto de partida do texto de Sebald
va da volúpia construtiva do desenvolvimentismo é justamente a coleção de imagens de Frankfurt
do governo de Juscelino Kubitschek, cujo ambi- destruída, as mesmíssimas utilizadas por Iris
cioso Plano de Metas instituiu a famosa promessa Helena, e que na cidade alemã são vendidas como
de “50 anos em 5”, 5 anos de mandato. cartões-postais em bancas de jornais e casas de
-- souvenires, várias delas divulgando uma mesma
O estabelecimento do Frankfurt/Brasília, o pa- área da cidade em solução do tipo “antes e de-
ralelo entre a destruição de uma e construção pois”. Na esteira da imensa operação de recalque
da outra, dá muito o que pensar. Comentando a sobre a experiência da guerra, esse material é
avassaladora destruição das cidades alemães pela sintoma do aparentemente indestrutível ufanismo
Royal Air Force – RAF, no final da 2o Grande alemão, seu eufórico sentimento sobre sua capa-
Guerra, Sebald, em seu Guerra aérea e literatura cidade de reconstrução.
(texto que integrou seu On the natural history of --
destruction. London:Penguin Random House, 2004) Num insight inspirado, nossa artista percebe a
começa com dados estarrecedores: morte de 600 mil relação entre ambos fenômenos, a construção de
civis, 7,5 milhões de desabrigados, provocados Brasília em tempo recorde como suposta prova da
pelos mais de 400 mil vôos para o despejo de 1 capacidade do brasileiro de se libertar do atra-
milhão de toneladas de bombas sobre 131 cidades. so, da condição de país subdesenvolvido, efeito

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ampliado pelas feições pretensamente, senão futu- motivo que com o passar dos anos o barro e ci-
ristas imponderáveis da cidade, com grande efeito mento e pedras das casas desabam sobre o chão,
pelo mundo afora, seu padrão urbanístico vazado como se esse os reclamasse.
no deslocamento pelo automóvel, sublimando não --
só os pedestres, um de seus aspectos marcantes, Livro do tombo é o titulo ambíguo de um traba-
mas, sobretudo, porque a artista escolheu cenas lho de 2018, que retoma essa questão nuclear sob
da capital em obras, com os andaimes e escoras outro prisma: um conjunto de placas de madeirite
fabricados de troncos de árvores apenas desbas- cor de rosa, até bem pouco o material empregado
tados. A cidade se fez expurgando de si os ope- como tapume das obras civis, fôrmas para con-
rários, reservando-lhes áreas distantes, vários cretagem entre outras aplicações, articulados
deles desaparecidos durante um processo notável entre si por meio de dobradiças, possibilitando
pelo açodamento e pela falta de segurança. Quem que suas partes sejam fechadas e abertas até a
falava em segurança do trabalho no Brasil dos dimensão máxima de 40 cms de altura por 145 de
anos 1950? Mesmo hoje em dia, considerando-se comprimento. Desdobrando-o, experimentando os
que só em 2018, fiscais da Inspeção do Trabalho vários arranjos possíveis, o visitante depara-se
contabilizaram 1,7 mil casos de trabalho escravo. com imagens da construção de Brasília, bem como
-- dos trabalhadores que para lá se encaminharam na
A construção de hoje será a ruina de amanhã, con- esperança de uma vida melhor.
clui Iris Helena, e nessa dinâmica circular como --
uma moenda, a matéria prima esmagada, pulverizada Entre Aliança e Livro do tombo houve o vídeo Casa
e espargida como cinzas, são os corpos das pes- pré-fabricada, 2015, como os outros, o respeito
soas diretamente envolvidas no desmedido labor aos trabalhadores, à gente aviltada e indevi-
dispendido na construção das casas e cidades. damente posta à margem. Nele dá-se o pungente
Tal como Aldo Rossi, que em sua Autobiografia depoimento de Dona Genô, velha senhora, natural
científica (Lisboa: Edições 70, 2018) parafra- do interior da Paraíba, cuja juventude levou-a,
seou Max Planck em seu fascínio pelo princípio de em 1967, a se aventurar nos começos de Brasília
conservação de energia, tomando como sua a lição – “Casei num dia e viajei no outro”. Acompanhou
seminal que Planck recebeu de seu antigo mestre o marido, que lá havia chegado em 1960, justo no
escola, segundo a qual o bloco de pedra levada ano da inauguração da cidade signo do sonho de
com muito esforço por um pedreiro para o alto um Brasil melhor. Genô ficou alguns anos lá, até
de uma casa, conserva em si, latente, armazena- mudar-se para Olho D’Água, interior de Goiás,
do, esse esforço. Rossi espicha o raciocínio de lugar calmo, no dizer do marido “parece o nor-
Plank “até que um dia pode acontecer que o bloco deste”. O vídeo começa com a voz de dona Genô,
se desprenda e caia sobre a cabeça de um tran- viúva há tempos, moradora de Olho D’Água há mais
seunte, matando-o”, para concluir que a morte é de 40 anos, convidando a artista a entrar em sua
uma conservação de energia; que não é por outro casa, pedindo-lhe sucessivas desculpas sobre a

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bagunça, ao mesmo tempo que justificando que inspeciona os detalhes da ruína a voz calorosa,
“casa de pobre é assim mesmo, sempre bagunçada”. receptiva de Dona Genô vai falando de sua vida,
Segue com ela contando sua história, explicando seu comentário tranquilo sobre o fim das coisas.
sua rotina, suas comidas, lembrando como era a --
vida em Brasília. Enquanto isso o filme, acompa- Impossível reconstruir o passado da casa filma-
nhando a fala da dona Genô mas sem registrar seu da ou compreender o presente da casa onde vive
rosto e sua casa, também eludindo as perguntas a protagonista. O exame meticuloso da casa em
da artista, começa enquadrando uma casa abando- ruínas termina por não fazer pensar no que houve
nada para ir lentamente entrando, esquadrinhan- por lá, como era a vida naqueles ambientes. Por
do-a meticulosamente, como se aquele inventário, pequena e miserável que seja, a casa filmada é
auxiliado pela fala ilustrativa da protagonista, rodeada pelo seu silêncio, e, como tal, é mag-
ajudasse a compreender o que se passou por ali, nífica, eloquentemente magnífica. Mesmo em seu
como se as vozes e os ruídos domésticos da vida modo despretensioso, pois diferentemente do Coli-
em Olho D’Água, fossem espectros do passado da seu e do Parthenon, nada de grandioso aconteceu,
casa atentamente registrada pela câmera. Uma a casa desmanchada é um pórtico para o futuro,
casa aniquilada: sem teto, portas e janelas ou tal como o fluxo de água ininterrupto da “zona”,
com vestígios desses elementos, os despojos de a área em escombros onde se passa o Stalker, a
um espaço caseiro típico, semelhantes a milhões obra prima de Andrei Tarkovski.
espalhados pelo país, constituído por paredes --
parcialmente arrebentadas, o chão repleto de Neste ponto, será fértil considerar quanto a
entulho, recoberto por um novo chão composto por biografia de Iris Helena incide em seu trabalho.
dejetos, retalhos, escombros e estilhaços das Nordestina de nascimento, residente em Brasília
paredes, de restos de objetos reconhecíveis, mó- desde o começo desta década, quando decidiu in-
veis e eletrodomésticos, enfim, todo um entulho gressar no programa de pós-graduação da Univer-
a corroborar a tese de que o futuro da natureza sidade de Brasília, é fácil entender sua iden-
será um produto nosso. As paredes descoradas e tificação com os nordestinos, com destaque as
descascadas ostentam indícios das cores outrora mulheres, que migraram para a nova capital menos
vivas, embora muitas delas, nota-se, já foram desejosa que obrigada a abandonar seus locais de
pintadas com desleixo, um preâmbulo das incon- origem. Sua condição dupla afeta sua sensibili-
táveis gretas, manchas, rachaduras, fissuras dade, orienta sua afeição para desconhecidos que
e perfurações, um amálgama de ações de autoria a rigor lhe são próximos, criados sob o mesmo
inatribuível. A câmera fica como que atarantada. veio da língua portuguesa, o mesmo regime alimen-
Realiza longos travellings para se interromper tar, faz com que se alie a gente que “não gosta
em alguns poucos planos fixos, e tem titubeios de cama mole e não sabe comer sem torresmo”, e
típicos de quem não fez uso de tripé. Melhor as- termina por incidir na escolha do que e do como
sim, porquanto mais coerente. Enquanto a câmera dizer. Feita essa observação, importa apontar

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outros rumos tomados por sua pesquisa, igual- constituem documentos imprescindíveis para a com-
mente preocupados com a memória. E se até agora preensão das práticas comerciais entre culturas
tratou-se do vetor de sua pesquisa voltada à pre- remotas. Quanto as Finanças, toda essas séries
ocupação da memória do fatos ocorridos, sua cor- de Iris Helena revelam-na como responsável dire-
rosão no presente como pré-figuração do futuro, ta pela produção diária de uma massa monumental
cabe destacar o vetor orientado para aspectos do de lixo poluente e indiscernível, isso ao par de
presente que pressagiam o apagamento de aspectos sua documentação por via digital, de natureza
decisivos da vida num futuro muito próximo. instável, um legítimo castelo de cartas, salvo
-- para quem confia que haja qualquer coisa de só-
Diários, Arquivo Morto (ambos de 2013), Capital lido no corpo das “nuvens”.
(2014), Indício (Queda) e Indício Noturno (ambos --
de 2016), são trabalhos que têm como denominador Os documentos, ínfimos e perecíveis, são arran-
comum o uso de cupons fiscais, comprovantes de jados em soluções diversas, explorando, de um
pagamentos, extratos bancários, tickets, canhotos lado, sua imprevista potencialidade formal, de
e toda a variedade de papeizinhos insignificantes outro sua proliferação que o eleva a condição
cuspidos das bobinas encaixadas nas entranhas de matéria prima da paisagem futura, tudo isso
das máquinas de calcular, caixas registradoras e remetendo a várias camadas de significação. Vale
terminais bancários. Por serem termossensíveis, lembrar que essa modalidade de burilação de ma-
descoram-se com rapidez vertiginosa e acabam terial, retirando do circuito de circulação,
amassados nas bolsas, dentro de livros, como represando-o em lugar de deixa-lo seguir seu
parte considerável do lixo diário mais junto a caminho em direção ao lixo ou a desaparição, tem
nós, ilegíveis, ignorância que se estende as suas antecedência em dois artistas: Cildo Meireles e
altas propriedades daninhas.* seus Inserções em circuitos ideológicos, e Jac
-- Leirner em séries como Pulmão e Corpus Delicits.
O ramo das Ciências Econômicas conhecido como Somando-se a esses dois artistas, Iris, em Di-
Finanças, pedra basilar do Capitalismo Financei- ários, foi reunindo papeizinhos ao longo de um
ro, não obstante sua ubiquidade no mundo atual, ano. O resultado é um conjunto de 4 montinhos
não tem a envergadura da sua célula mater, cuja deles espetados em 4 hastes de metal, espécies
etimologia grega já sinaliza a concretude de de pregos utilizados em escritório que, fixados
seus objetos de estudos: produção, distribuição verticalmente sobre bases circulares e coloca-
e consumo de bens e serviços. A dignidade do dos sobre mesas, servem como depósito de ordens
território amplo da Economia pode ser aferido de serviço e memorandos cumpridos ou a serem
nos produtos compulsados pela Numismática. O cumpridos. Mas o de Iris, fixados um ao lado do
mesmo pode ser dito sobre a importância dada aos outro na parede, na altura do olhar do visitante,
contratos de toda sorte ao longo da história. ameaçam ao mesmo tempo em que convidam a pensar
As práticas cartoriais, de existência milenar, nas operações realizadas diariamente, na rede de

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pessoas postas em movimento por detrás de cada de 24 monumentos brasilienses impressos em 25
operação realizada, não importando quais sejam, e comprovantes termossensíveis, dá-se uma diverti-
das quais cada um deles é o documento final. Isso da sobreposição de sentidos. Como foi amplamente
conduz à relação de cada um com a satisfação das festejado, em 1987, na altura em que celebrava 27
necessidades da artista, assim como sua relação anos, Brasília foi elevada a condição de Patri-
com a satisfação das nossas etc. Cada papelucho mônio Cultural da Humanidade, primeira cidade do
enreda-se no corpo da artista como poderia estar século XX a receber tal honraria. Com isso, além
enredado em cada um de nós, são resíduos deixados de ser reconhecida como obra prima do gênio de
pela dimensão econômica, no sentido amplo apre- Lucio Costa e Oscar Niemeyer, posto que o pacote
sentado acima, de seu trânsito cotidiano. Indí- incluía o assim chamado Plano Piloto e as edi-
cio (Queda), com seu acabamento premeditadamente ficações, passou também a ficar, pretensamente,
descuidado, como se fora confeccionado sobre uma defendida da ação predatória dos especuladores,
mesa vendo televisão, ademais da aparência de uma como também, diga-se, de qualquer outra trans-
cascata de consumo, o que por si só já o torna formação. Numa palavra, embalsamou-se Brasília,
digno de interesse, tira partido dos parcos re- como se ela se trata-se da milenar Veneza, cuja
cursos cromáticos, do azul e do amarelo, enfim atenção e carinho universais não logra barrar a
do corantes que juntam ao ácido e a matriz para força das águas que a inundam. Vai daí que nossa
impregnar ao papel. A sinuosidade da peça traduz artista imprime alguns dos monumentos da capital
a vertigem propiciada pelos cartões de crédito (e será sempre útil considerar que a etimologia
que, ao contrário do dinheiro vivo, facilitam o do termo remete a palavra latim monere, recor-
consumo em virtude do caráter abstrato que eles dar, lembrar), ainda que mal tenham acabado de
impõem as transações econômicas. E as camadas serem feitos, ainda que em breve, brevíssimo
assemelham-se a um corte na paisagem revelando tempo, um átimo, pode-se dizer, desaparecerão,
as finas camadas de sedimentos acumuladas ao consoante a lógica da película termossensível
longo de séculos. Indício (Noturno), composição que o serve de suporte. E que o fornecedor desse
de feições arbóreas realizada com os tickets de material seja a Cielo, a empresa líder da Amé-
supermercado expostos ao calor, o que catalisa rica Latina do setor de “captura, transmissão e
a reação latente, escurece-os num jogo de luz e liquidação financeira de transações com cartões
sombra. de crédito e débito”, cuja história repleta de
-- períodos de monopólio, mais fusões, aquisições e
Essas séries atestam a capacidade da artista de da mais encarniçada concorrência, mete medo em
explorar plasticamente um material a primeira qualquer um, é uma ironia das mais sofisticadas.
vista raso, sem maiores atributos, demonstrando-o Efetivamente, o céu do Planalto Central, sob o
pletórico quanto a diversidade de significações, qual esplende Brasília, está atravessado pelas
entre os quais seu futuro sombrio como parte da nuvens que fazem as delicias dos Cielos projeta-
composição do chão. Em Capital, 2014, conjunto dos no Vale do Silício entre outras paragens em

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que essas infraestruturas são urdidas, as nuvens
do Kapital.
--
Embora recente, a trajetória de Iris Helena tem
se afirmado como uma das mais sólidas produções
acerca da dialética entre destruição e constru-
ção, lembrança e esquecimento, presente/passado/
futuro. Seu notável ponto de partida: cenas ur-
banas estampadas em uma miríade de post-its, as
folhinhas de papel auto-desivas, amarelinhas e
rosadas, que obsessiva, compulsivamente vamos
fixando em toda parte com a finalidade de evitar
o esquecimento, prova que é mesmo provável que
não haja solução, que seremos soterrados pela
matéria débil e evanescente das lembranças que
gostaríamos de reter.

--
* Essa tecnologia de impressão, denominada tecnologia de
impressão térmica reversível, disseminada pelo mundo
afora, responsável pela homogeneização universal dos
documentos, foi inventada em 2006 por uma divisão da NCR
Corporation, gigante norte-americana que se apresenta
como especializada em produtos para o varejo e setores
financeiros, e que em 1991 foi absorvida pela ciclópica
AT&T. Mas a facilidade proporcionada por essa invenção
tem um preço. O insignificante papelzinho que recebemos a
cada operação financeira, por banal e maquinal que seja,
impregnado por uma mistura de corante e ácido, não se
presta a reciclagem. Mais ainda: contém bisfenol-A, BPA,
em sua composição, que, segundo o site Ecycle, por sua vez
apoiado em informações assinadas pela conspícua Sociedade
Brasileira de Endocrinologia e Metabologia de São Paulo
(SBEM-SP), tem como alguns de seus efeitos desequilibrar
o sistema endócrino, causar aborto, anomalias e tumores
do trato reprodutivo, câncer de mama e de próstata,
déficit de atenção, diabetes, a lista prossegue para
eventual desespero e indignação dos preocupados pelo rumo
das tecnologias anunciadas como redentoras.
https://www.ecycle.com.br/component/content/
article/6-atitude/818-extratos-bancarios-papel-termico-e-
entrave-para-reciclagem.html

20 21
36 POSES
RAPHAEL FONSECA

Fotografa-se para recordar – este aparente lugar


comum na abordagem crítica e teórica das imagens,
não deixa de ser uma tentativa de compreensão dos
objetos fotográficos e, por consequência, dizer
respeito à pesquisa artística de Iris Helena.
As técnicas de registro visual se alteraram com
o tempo, mas o desejo de se criar uma biografia
através de imagens permanece – se ontem econo-
mizávamos as trinta e seis poses do filme foto-
gráfico (que nunca eram trinta e seis), agora
pedimos aos nossos parentes que, por favor, ao
menos tenham o trabalho de marcar nossos rostos
e clicar na opção “compartilhar”.
--
Esta exposição se encontra norteada em verbo se-
melhante: a artista divide com o público imagens
que podem ser interpretadas como uma autobiogra-
fia fotográfica. Se seu rosto não se faz presen-
te, o mesmo não pode ser dito dos contextos onde
estas paisagens foram produzidas. Da aparente
tranquilidade do seio doméstico, sobreposto a
imagens recentes de espaços públicos, para o ex-
cesso, a verticalidade arquitetônica e os remé-
dios tomados capazes de acalmar a experiência em
uma megalópole como São Paulo. Estes deslocamen-
tos da artista também se fazem presentes através
de uma coleção de notas fiscais. No lugar de
cartões postais e de uma memória pasteurizada,

22 23
nos deparamos com substratos de seu consumo. Se
aquilo que foi comprado é rapidamente digerido,
o mesmo se pode dizer destes documentos que,
lentamente, estão fadados ao desaparecimento.
--
Iris Helena cria objetos artísticos que nos fazem
lembrar – a infância e nossos mitos fundacionais
particulares, a entrada no mundo do trabalho e
das cifras. Se hoje esta exposição “passa por
muitas cidades”, o distanciamento do olhar pode-
rá enquadrá-las futuramente como não-lugares. Na
incerteza do que nos aguarda, aceitemos seu con-
vite: viajemos e tentemos fazer com que nossos
encontros com geografias diversas ganhem algum
sentido quando transformados em imagem.

--
(texto curatorial da exposição “Caminho por uma rua que
passa por muitas cidades”, de Iris Helena, na galeria
Archidy Picado, em João Pessoa, entre 11 e 31 de janeiro
de 2013)

24 25
[DAQUI PARTEM DISTÂNCIAS]1
KARINA DIAS

Quantas imagens compõem uma paisagem vivida?


Como conservar, “no tênue desenho do devaneio,
no limiar do pensamento”2 os lugares vividos? Em
meio às coisas do mundo buscamos uma morada para
o nosso olhar, vislumbramos uma paisagem sempre
em constituição. Nessa experiência sensível do
espaço desvela-se a imagem de um mundo vivido.
“[...] a paisagem não é simplesmente vista, ela
é habitada [...] a paisagem não é simplesmente
habitada, ela é vivida[...]”3.
E esse lugar parece ser aquele que nos situa
em um limiar: entre o que vemos e o que não ve-
mos, entre o que vimos e o que não desistimos de
ver, entre o que não queremos esquecer e o que
impreterivelmente esqueceremos. Nesse movimento,
vamos constituindo pontos de visão em meio às
situações rotineiras e banais, em um movimento
acelerado de pontos de vista distintos. A paisa-
gem é passagem, um deslocamento do olhar.
*

1 Tomo emprestado aqui o enunciado Daqui partem


distâncias que compôs a exposição-instalação Grand-Tour
desenvolvida pelo grupo de pesquisa Vaga-mundo: poéticas
nômades, coordenado por mim e do qual Íris Helena e
mais 8 artistas fazem parte. A exposição ocorreu na
Alfinete Galeria em Brasília no ano de 2014. https://
cargocollective.com/vaga-mundo.
2 BACHELARD, Gaston. {Estudos}. Rio de Janeio: 2008, p.23
3 COLLOT, Michel. L’horizon fabuleux, I XIX siécle. Paris :
Librairie José Corti, 1998, pp.12/13.

26 27
Seria possível regular as distâncias e as apro- espaços e com as pessoas, ela tem como destino a
ximações que nos fazem ver ou não-ver a cidade? desaparição. Quanto tempo uma vista resiste até
Somos observadores solitários em meio a espaços desaparecer? Como se dá esse longo caminho rumo
de superlativos. Como atravessar o mundo e se a sua desaparição? Perder a vista, é perder tam-
deixar atravessar por ele? Como estar incluído bém uma terra à vista. O que resta quando já não
nele, em seu interior e ainda assim encontrar os vemos? Face à precariedade insistente da matéria
miradores que nos permitirão reencontrá-lo? utilizada (papel higiênico, post-it, canhotos,
Dessa solitária experiência, nosso olhar sele- cupons fiscais de papel termossensível) contem-
ciona, fragmenta o que nos envolve, capta e (re) plamos o apagamento da imagem. Salta ao nosso en-
ordena detalhes que compõem uma geografia. Ima- contro, então, uma superfície acidentada, dobra-
gens que ecoam os elos estabelecidos com a cidade da, esfumaçada, anoitecida, impregnada de gestos
vivida e tem a duração de um ponto de vista. O da artista e de relevos perdidos. Uma superfície
espaço designado pelos olhos daquele que contem- que expõe escalas, que pode organizar-se, por um
pla, compõe então a sua paisagem. agenciamento com o espaço, em um quadrante/de-
-- serto5. Quanto a nós espectadores, contemplamos
9 de agosto : a contemplação tem seu dia4. o apagamento, tateando por entre vistas e do-
-- bras. Em muitos trabalhos nossa presença provoca
Os trabalhos de Íris Helena surgem dessa alian- pequenas sismografias, somos o vento que passa e
ça com o espaço vivido. Olho atento que [a]nota movimenta a fina camada de papel anunciando que
aquilo que [não] se deixa escapar. Entre monu- estamos chegando em suas ruínas e em nosso Qui-
mentos em ruína, souvenires despedaçados, vistas nhão6. Rastros de um horizonte sempre fugidio.
apagadas, arqueologias possíveis e cartografias Sombreada visão. Sombreada paisagem. Matéria
imaginadas, Íris compõe o seu arquivo [nada] noturna. Nesse sfumato da visão e da memória dos
morto de notas dispersas, feitas de materiais lugares e das coisas, acompanhamos uma cena se
descartáveis cujo destino não era o de se tornar desfazer, ângulos serem subtraídos pelas mãos
visto, ou de dar à vista. apressadas dos espectadores que levam para casa
Acompanhamos então uma travessia nos espaços, o fragmento de uma vista. O lembrete7 de uma
uma rota traçada na espessura do mundo. Uma tra- cidade.
jetória onde a paisagem parece nunca ser dada. --
Ao mesmo tempo em que ancorada, no coração da Souvenir é lembrança, reminiscência e memória,
vida urbana, no afeto que Iris estabelece com os e também é aquele objeto característico de um

5 Refiro-me aqui à Quadrantes/Desertos da série Paraísos


4 Em referência ao trabalho Ode à Sena realizado por
Fiscais de 2016.
Íris Helena no ano de 2012. O trabalho foi constituído
de intervenção urbana e intervenção em calendário 6 Refiro-me aqui à Quinhão da série Ruínas de 2015.
cívico na cidade de Sena Madureira no Acre. https:// 7 Refiro-me aqui à série Lembretes realizada entre os anos
cargocollective.com/irishelena/residencias-residencies de 2010 e 2019. https://cargocollective.com/irishelena

28 29
lugar, vendido como lembrança a viajantes, espe- A câmera fotográfica é um bloco de notas11. Iris
cialmente a turistas. Objeto-de-viagem, aquele utiliza a fotografia, mas não considera seu tra-
adquirido pelo turista que quer levar para casa balho como fotográfico. Persegue ruínas e tampou-
um fragmento que condense os lugares por onde co seu trabalho é sobre ruínas. Talvez seja na
passou. Simultaneamente, lembrança e lembranci- incompletude da visão, da paisagem e da memória;
nha. Imagem e fragmento. Lugar de afeto e cartão na precariedade da matéria que é superfície e
postal. Que detalhe(s), então, seria(m) capaz(es) suporte de suas imagens que se situe a linha tê-
de armazenar o horizonte, de condensar o mundo, nue12 de sua pesquisa poética. Uma matéria quase
de sustentar a sua arquitetura? Atiçar o desejo arruinada, uma vista quase perdida. Dinâmica do
de ver, fissurar a paisagem, arruinar o panorama8. pensamento e da ação que expõe a fragilidade da
-- nossa visão: vemos porque não vemos.
O visível, por mais imprevisível que seja, deve --
provocar, aponta Jean-Luc Marion9, a mirada que Ruínas trazem distâncias longínquas e extrema-
o tornará acessível. Desse lugar, a paisagem mente próximas. Perturbam o presente porque nos
emergiria na superfície como um relevo, salta- colocam ante um passado devorado que resiste,
ria aos nossos olhos, em um movimento que nunca que insiste em nos olhar. Nessa ambivalência são,
se completa, uma vez que, para que algo apareça simultaneamente, edificação e dissolução - da ci-
na visibilidade, outra deve submergir na (in) dade, da paisagem, do olhar. Declínio e princípio
visibilidade. Como, então, arquivar o visível? esperança13. Estrelas-cadentes que nos lembram
Qual seria o limite de sua visibilidade? O que que a fratura é iminente e a vulnerabilidade
acontece quando as condições de visibilidade se imprescindível. As ruínas de Iris nos espreitam
alteram e o desenho do mundo se dissolve, nos e seus monumentos se transformam em marcadores14
convocando a evocar os contornos de nossa memó- que cabem na palma de nossas mãos.
ria, daquilo que foi visto e vivido? Quantas são --
as práticas de arquivo do visível? Imprimir ima- Inventariar aqui é fabricar escalas, subverter a
gens. Sabotar engrenagens10. Encontrar a medida
do olhar. 11 Questão desenvolvida em Práticas de Arquivo-
morto dissertação de mestrado de Íris Helena
-- defendida em 2016 no Programa de Pós-Graduação
em Artes Visuais da Universidade de Brasília.
Orientação: Profa. Dra. Karina Dias. https://
8 Refiro-me aqui ao trabalho Souvenir realizado pela repositorio.unb.br/bitstream/10482/20982/1/2015_
artista em 2016. https://cargocollective.com/irishelena/ IrisHelenaFran%c3%a7adeAra%c3%bajo.pdf
Alianca 12 Título de um dos trabalhos de Iris Helena da série
9 MARION, Jean-Luc. La croisée du visible. Paris: PUF, Registros de 2013.
1996, p.62. 13 Em referência à obra Princípio Esperança obra de Ernest
10 Para realizar as impressões Íris Helena testa as Bloch.
impressoras, altera seus programas para que elas consigam 14 Refiro-me aqui à Monumentos/Série Apontadores,
imprimir as suas imagens. desenvolvida pela artista de 2011 a 2016.

30 31
monumentalidade dos espaços e de seus monumentos, Para Íris, algumas notas,
avizinhar cidades distantes, compor um diário com afeto e admiração.
de notas de pagamentos realizados em distintos
locais com datas e horários precisos, imprimindo Brasília, primavera de 2019
sobre o cielo outro céu. Notas guardadas no bol-
so, amassadas, esquecidas que reunidas se trans-
formam em arpões que impedem a nossa aproximação
para espiar. Há nos trabalhos de Íris uma relação
entre espaço público e o espaço privado, o aber-
tamente coletivo e a esfera de uma intimidade
que muitas vezes não queremos compartilhar. Em
sua obra, o movimento parece ser sempre esse de
dentro para fora, do indivíduo para o grupo, do
íntimo para o vasto mundo.
--
Como constelações compostas por fragmentos de
vistas avizinhadas pelo abismo que as separam15.
Vultos guardados em seu silêncio. Desterradas
parecem flutuar pelo espaço como estrelas-este-
las, casa e cosmos nos lembrando, como escreve
Borges, que o olvido é a tênue substância de que
é feito o universo16. E nessa face clara da noite
que [não] se deixa revelar17, eis a tua história
que também é a minha18.

15 Em referência à Michel Déguy para quem a poesia escava


o abismo entre vizinhos para que possam novamente
avizinhar-se pelo abismo. DÉGUY, Michel. Geopoética in
Reabertura após obra. Campinas: Ed. UNICAMP, p.127.
16 Borges, Jorge Luis, KODAMA, María. Atlas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010 p.127
17 Penso aqui no poeta Lorand Gaspar que explora a noite em
seu texto Le quatrième état de La matière – connaissance
de la lumière in Sol Absolu et autres textes. Paris :
Poèsie Gallimard, 1982.
18 Borges, Jorge Luis, KODAMA, María. Atlas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010 p.25.

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ENGLISH TEXT

CAIXA widely values n ​​ ational culture as a tool for exhibition “Archive Practices - Notes” by artist
social inclusion and reinforces its pride in being Iris Helena, curated by Agnaldo Farias. The exhi-
Brazilian. Over the past five years, CAIXA’s cultural bition features works produced from the use of
spaces have invested more than R$ 385 million perishable materials, which are very present in
distributed in Brasilia, Curitiba, Recife, Fortaleza, our daily lives, such as plastic page markers,
Salvador, Sao Paulo and Rio de Janeiro. self-adhesive reminders, toilet paper, and credit
Investments include initiatives in the fine card receipts, which are converted into thermal
arts, photography, music concerts, dance, thea- or jet print holders of ink from photographs or
ter, film exhibitions, book launches, lectures and archival images and also in the installation of
workshops through the public selection of projects, installations with a narrative inflexion.
carried out through the Caixa Cultural Space Oc- With this project, CAIXA ratifies its cultural
cupancy Program. This program is one of the main policy, its social vocation and its purpose of de-
instruments of the bank’s cultural sponsorship mocratizing access to its spaces and its artistic
policy. With its own educational equipment and programming. In this way, it fulfills its institutional
project, Caixa implements a culture promotion, role of stimulating the diffusion and exchange of
audience formation, support for cultural diversity, knowledge, contributing to the appreciation of the
professionalization and democratization of access Brazilian identity as well as to the strengthening,
to cultural goods policy in order to approach the renewal and expansion of the arts in Brazil and
most different publics. With all that, it is almost the culture of our people.
40 years of continuous investment in culture.
It is in this context that CAIXA sponsors the CAIXA Econômica Federal

64 65
PRETÉRITO IMPERFEITO ( *EN )
AGNALDO FARIAS

Iris Helena está convicta que o presente é incom- do projeto de Iris Helena era a valorização da vida
preensível sem a recuperação do passado, sem a das cidades distantes dos grandes centros, vida
tentativa sistemática e amorosa de presentificação simples e monótona, diriam os moradores das
das infinitas ausências, objetivo que condenaria grandes cidades, mas, que diabo!, importante para
seu projeto ao fracasso, se isso a paralisasse, o quem é de lá ou mora lá ou ainda veio de lá. Não foi
que não acontece. A artista explora a liberdade assim que Drummond, entre nossos artistas mais
interdisciplinar da produção contemporânea, universais, faz referência à herança colhida em
vai trabalhando e desenvolvendo um comércio sua Itabira natal, as prendas diversas que oferece
de cabotagem entre arte e economia, política, ao leitor, como “São Benedito do velho santeiro
antropologia, história, arquitetura e urbanismo, Alfredo Duval; este couro de anta, estendido no
utilizando fotografias, colagens, assemblages, sofá da sala de visitas; este orgulho, esta cabeça
instalações, filmes, gravações, entrevistas, e baixa...”? São muitos os mineiros que se orgulham
segue embarafustando-se por arquivos, cascavi- por ter a mesma origem do grande poeta. Pois
lhando documentos, infiltrando-se e organizando hoje, graças a Iris Helena, tem gente de Sena
reuniões e assembleias com grupos comunitários, Madureira orgulhosa de ser de lá, ciente de que
convocando, aglutinando, aliciando gente para a história de Sena Madureira é só dela, pessoal e
seus projetos, suas intervenções de toda ordem. intransferível, gente que sorri ao enviar ou receber
De tudo isso segue-se um apreciável elenco de um exemplar da série de cartões postais que ela
séries e ações: de impressões sobre fragmentos inventou, um conjunto de imagens da cidade e
de alvenaria, placas de tapumes, coisas ínfimas arredores nos quais vem a frase lavrada em doce
como marcadores de páginas coloridos e auto- fonte tipográfica manuscrita, “Estive em Sena
desivos, post-its, até monumentos físicos, totens Madureira e lembrei de você”.
e bandeiras, chegando a datas comemorativas Iris Helena volta-se ao passado e, posto que
e pontos facultativos, caso da sua ação Ode à ele não é monolítico, tampouco homogêneo, o
Sena, realizada em julho de 2013 no município vai separando em histórias de vida montadas a
acreano de Sena Madureira, e que fez parte de partir de algumas cicatrizes que os velhos contam
um programa de residência artística financiada por meio de narrativas entrecortadas, cheias de
pela Universidade de Brasília. lacunas e acréscimos produzidas pela imagina-
O eixo desse trabalho, acessível na internet, ção, em cacos de fachadas recolhidas de casas
consistia em fazer com que seus habitantes pen- arruinadas e sobre as quais ela imprime imagens
sassem e montassem a sua história da cidade, fotográficas em preto e branco, vistas esmaecidas
suas passagens marcantes, figuras memoráveis, de casarios aparentados com esses reduzidos
e criassem efemérides em contraposição àquelas a lascas e restos imprestáveis. Iris persegue a
definidas em âmbito federal, sempre genéricas reconstrução dos fatos ocorridos, como se fosse
e, como tal, alheias à vida do lugar, a bem dizer possível a abolição da morte dos prédios que
de todos os lugares, afinal, só mesmo por força desapareceram ou que estão a caminho disso.
de trabalhos escolares, a presença imorredoura E acontece que todos estão a caminho disso,
da Hora do Brasil, hinos tocados em aberturas mesmo aqueles que ainda serão construídos, que
de jogos de futebol, os benvindos feriados etc, é estão em vias de o ser ou que sequer ainda foram
que os signos pátrios se impõem. O pressuposto premeditados. Como tudo, aliás. A maturidade do

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seu trabalho expressa-se em soluções certeiras reduzidas a tristes molambos, construções a beira pisos, tetos e paredes desgastados, desmorona- externado por empresários alemães em abril de
e concisas que esclarecem nossas infrutíferas do fim. A ironia se estende as impressões de casas dos e, vestígios de arquiteturas desmoralizadas 1945, registrado com estupefação pelo diplomata
tentativas de disfarçar o colapso iminente. Haverá abandonadas em faixas de papel higiênico, papel ao longo de décadas e séculos, representadas norte-americano Robert Thomas Pell, citado por
saúde e apogeu capaz de evitar o movimento dos mais precários, cujas variações de porosidade, em imagens em preto e branco. Enzensberger, de “reconstruir seu país ainda maior
inelutável da decadência, que consiga disfarçar maciez, qualidade mais ou menos ordinária, serve A Série Aliança consiste num conjunto de 21 e mais poderoso”. Ora, o ponto de partida do texto
o destino que Pessoa, num verso de seu mais ao propósito de reter as variadas secreções e painéis de madeira compensada, placas quadra- de Sebald é justamente a coleção de imagens de
famoso poema, resumiu como “a morte a pôr impurezas que produzimos. das e retangulares, unidas em duplas por meio de Frankfurt destruída, as mesmíssimas utilizadas por
humidade nas paredes e cabelos brancos nos Em Catálogos de ruínas, uma série de três dobradiças e fixadas na parede em arranjos irregu- Iris Helena, e que na cidade alemã são vendidas
homens”? livros de artista produzidos entre 2011 e 2013, as lares. As dobradiças permitem que cada unidade como cartões-postais em bancas de jornais e
A inteligência do projeto poético de Iris Helena imagens são impressas em jato de tinta sobre bascule, ficando aberta ou fechada. No primeiro casas de souvenires, várias delas divulgando
esclarece-se em sua sustentação contraditória: uma sequência de páginas de papel higiênico caso, têm-se acesso as imagens, cada uma delas uma mesma área da cidade em solução do tipo
voltar-se para o passado para dele retornar com dupla-face, tiras horizontais de 10 x 21 cm, junta- trazendo um par de imagens: de um lado detalhes “antes e depois”. Na esteira da imensa operação
as mãos vazias ou quase isso: coleções de ruínas, das e presas em uma das extremidades por uma do centro histórico de Frankfurt destroçado em de recalque sobre a experiência da guerra, esse
papéis esgarçados, depoimentos fraturados. E dobradiça enferrujada. Graças a suscetibilidade do 1945 pela vingança desapiedada dos ingleses, de material é sintoma do aparentemente indestrutível
poderia ser diferente? Sim e não. Sim, porque material, todo e qualquer manuseio, por cuidadoso outro, ângulos de Brasília sendo construída, prova ufanismo alemão, seu eufórico sentimento sobre
que ainda há quem aposte em reconstruções que seja, mesmo vencendo a cada passo a presen- da volúpia construtiva do desenvolvimentismo do sua capacidade de reconstrução.
grandiosas e exatas do passado. Não, porque ça obstruente da dobradiça pesada e enferrujada, governo de Juscelino Kubitschek, cujo ambicioso Num insight inspirado, nossa artista percebe
segundo o pensamento de gente como nossa concorre diretamente para o esgarçamento do Plano de Metas instituiu a famosa promessa de a relação entre ambos fenômenos, a construção
artista, qualquer tentativa de abordagem do objeto, isso sem contar o efeito deletério que por “50 anos em 5”, 5 anos de mandato. de Brasília em tempo recorde como suposta pro-
passado será sempre malograda, o que conduz si só as condições ambientais provocam sobre as O estabelecimento do Frankfurt/Brasília, o va da capacidade do brasileiro de se libertar do
a conclusão de que qualquer explicação sobre o folhas que se vão amarfanhando paulatinamente. paralelo entre a destruição de uma e construção atraso, da condição de país subdesenvolvido,
presente será insuficiente. E, convenhamos, não Folheando o livro imponderável nota-se que as da outra, dá muito o que pensar. Comentando a efeito ampliado pelas feições pretensamente,
é mesmo importante que compreendamos isto? ruínas do título referem-se somente as imagens avassaladora destruição das cidades alemães pela senão futuristas imponderáveis da cidade, com
Que não há, entre os resíduos do que já se passou que o compõem ou também à nossa ação sobre Royal Air Force – RAF, no final da 2o Grande Guerra, grande efeito pelo mundo afora, seu padrão urba-
e o nosso presente, nada além de aproximações, ele, não fossemos nós uns bons produtores de Sebald, em seu Guerra aérea e literatura (texto que nístico vazado no deslocamento pelo automóvel,
associações, relações oblíquas, ou seja, que toda ruínas. Trepidantes, 2015, pertencente a mesma integrou seu On the natural history of destruction. sublimando não só os pedestres, um de seus
e qualquer evidência esbarra em construção e técnica e linha de raciocínio (imagens de ruinas London:Penguin Random House, 2004) começa aspectos marcantes, mas, sobretudo, porque a
arbítrio? impressas em papel higiênico), reitera a ideia da com dados estarrecedores: morte de 600 mil artista escolheu cenas da capital em obras, com
Embora interessada no acontecido, pela fragilidade simultaneamente contida no que dá civis, 7,5 milhões de desabrigados, provocados os andaimes e escoras fabricados de troncos de
vontade de reavê-lo, a artista, consciente do a ver e no material que lhe serve como suporte. pelos mais de 400 mil vôos para o despejo de 1 árvores apenas desbastados. A cidade se fez
fracasso antecipado da sua proposta, não he- Uma imagem é aplicada a duas tiras de papel milhão de toneladas de bombas sobre 131 cidades. expurgando de si os operários, reservando-lhes
sita em abraçar a ironia, o que fica patente no higiênico devidamente colocadas numa parede, Não obstante “os bafos horrendos que sopravam áreas distantes, vários deles desaparecidos duran-
uso recorrente de imagens fotográficas. E um fixada pelas extremidades superiores. Se o livro pelas cidades alemãs” nos meses subsequentes, te um processo notável pelo açodamento e pela
dos grandes efeitos subjacentes a invenção da supõe o manuseio, Trepidantes, embora não possa a apatia dos moradores andando pelos escombros falta de segurança. Quem falava em segurança
fotografia foi o presumível assassinato do tempo. ser tocada, reage as discretas correntes de ar em surpreendeu a várias testemunhas. Alfred Döblin, do trabalho no Brasil dos anos 1950? Mesmo hoje
Como antídoto ao fluxo perpétuo de tudo que há, curso pelo espaço, provenientes de um vento em transcrição de Sebald, escreve sobre os mo- em dia, considerando-se que só em 2018, fiscais
a fotografia, refiro-me aquela nasce do desejo encanado, da direção do ar condicionado, do radores que se moviam “pelas ruínas medonhas da Inspeção do Trabalho contabilizaram 1,7 mil
de captura do visível, fixa, enrijece, mesmo que simples deslocamento do ar causado pelo trânsito como se, na verdade, nada houvesse acontecido casos de trabalho escravo.
também ela esteja condenada ao esmaecimento, dos visitantes. Se a integridade de cada retalho e [...] esse sempre tivesse sido o aspecto da ci- A construção de hoje será a ruina de amanhã,
a descoloração, ao progressivo distanciamento de papel ressente-se da simples passagem dos dade.” Sebald, fazendo coro com Hans Magnus conclui Iris Helena, e nessa dinâmica circular
do alvo da sua atenção. Iris desmascara de cima dias de duração da exposição e, antes disso, do Enzensberger, assinala o contraste entre esse como uma moenda, a matéria prima esmagada,
a baixo essa pretensão estampando imagens de acomodamento nas pastas e mapotecas do atelier indiferença fruto de um trauma sem precedentes pulverizada e espargida como cinzas, são os
ruínas em pedaços de ruínas: imprimindo em da artista, condições que lhe vão abrindo escaras, com a disposição pelo recomeço, mais do que corpos das pessoas diretamente envolvidas no
pedaços de arrancados e caídos das fachadas lacerações, necrosando-os, o mesmo se pode isso, “como o primeiro estágio de uma recons- desmedido labor dispendido na construção das
de casas abandonadas, imagens de arquitetura dizer das casas e construções depauperadas, com trução bem-sucedida”, do que é prova o desejo casas e cidades. Tal como Aldo Rossi, que em

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vive a protagonista. O exame meticuloso da casa encaixadas nas entranhas das máquinas de calcu-
sua Autobiografia científica (Lisboa: Edições 70, D’Água há mais de 40 anos, convidando a artista
em ruínas termina por não fazer pensar no que lar, caixas registradoras e terminais bancários. Por
2018) parafraseou Max Planck em seu fascínio pelo a entrar em sua casa, pedindo-lhe sucessivas
houve por lá, como era a vida naqueles ambientes. serem termossensíveis, descoram-se com rapidez
princípio de conservação de energia, tomando desculpas sobre a bagunça, ao mesmo tempo
Por pequena e miserável que seja, a casa filmada é vertiginosa e acabam amassados nas bolsas,
como sua a lição seminal que Planck recebeu que justificando que “casa de pobre é assim
rodeada pelo seu silêncio, e, como tal, é magnífica, dentro de livros, como parte considerável do lixo
de seu antigo mestre escola, segundo a qual o mesmo, sempre bagunçada”. Segue com ela
eloquentemente magnífica. Mesmo em seu modo diário mais junto a nós, ilegíveis, ignorância que
bloco de pedra levada com muito esforço por contando sua história, explicando sua rotina, suas
despretensioso, pois diferentemente do Coliseu se estende as suas altas propriedades daninhas.*
um pedreiro para o alto de uma casa, conserva comidas, lembrando como era a vida em Brasília.
e do Parthenon, nada de grandioso aconteceu, a O ramo das Ciências Econômicas conhecido
em si, latente, armazenado, esse esforço. Rossi Enquanto isso o filme, acompanhando a fala da
casa desmanchada é um pórtico para o futuro, como Finanças, pedra basilar do Capitalismo
espicha o raciocínio de Plank “até que um dia dona Genô mas sem registrar seu rosto e sua
tal como o fluxo de água ininterrupto da “zona”, Financeiro, não obstante sua ubiquidade no mundo
pode acontecer que o bloco se desprenda e caia casa, também eludindo as perguntas da artista,
a área em escombros onde se passa o Stalker, a atual, não tem a envergadura da sua célula mater,
sobre a cabeça de um transeunte, matando-o”, começa enquadrando uma casa abandonada
obra prima de Andrei Tarkovski. cuja etimologia grega já sinaliza a concretude de
para concluir que a morte é uma conservação de para ir lentamente entrando, esquadrinhando-a
Neste ponto, será fértil considerar quanto a seus objetos de estudos: produção, distribuição
energia; que não é por outro motivo que com o meticulosamente, como se aquele inventário,
biografia de Iris Helena incide em seu trabalho. e consumo de bens e serviços. A dignidade do
passar dos anos o barro e cimento e pedras das auxiliado pela fala ilustrativa da protagonista,
Nordestina de nascimento, residente em Brasília território amplo da Economia pode ser aferido
casas desabam sobre o chão, como se esse os ajudasse a compreender o que se passou por ali,
desde o começo desta década, quando decidiu nos produtos compulsados pela Numismática. O
reclamasse. como se as vozes e os ruídos domésticos da vida
ingressar no programa de pós-graduação da mesmo pode ser dito sobre a importância dada
Livro do tombo é o titulo ambíguo de um em Olho D’Água, fossem espectros do passado da
Universidade de Brasília, é fácil entender sua aos contratos de toda sorte ao longo da história.
trabalho de 2018, que retoma essa questão nuclear casa atentamente registrada pela câmera. Uma
identificação com os nordestinos, com destaque As práticas cartoriais, de existência milenar,
sob outro prisma: um conjunto de placas de ma- casa aniquilada: sem teto, portas e janelas ou
as mulheres, que migraram para a nova capital constituem documentos imprescindíveis para
deirite cor de rosa, até bem pouco o material em- com vestígios desses elementos, os despojos de
menos desejosa que obrigada a abandonar seus a compreensão das práticas comerciais entre
pregado como tapume das obras civis, fôrmas para um espaço caseiro típico, semelhantes a milhões
locais de origem. Sua condição dupla afeta sua culturas remotas. Quanto as Finanças, toda essas
concretagem entre outras aplicações, articulados espalhados pelo país, constituído por paredes
sensibilidade, orienta sua afeição para desconhe- séries de Iris Helena revelam-na como respon-
entre si por meio de dobradiças, possibilitando parcialmente arrebentadas, o chão repleto de
cidos que a rigor lhe são próximos, criados sob sável direta pela produção diária de uma massa
que suas partes sejam fechadas e abertas até a entulho, recoberto por um novo chão composto
o mesmo veio da língua portuguesa, o mesmo monumental de lixo poluente e indiscernível, isso
dimensão máxima de 40 cms de altura por 145 de por dejetos, retalhos, escombros e estilhaços
regime alimentar, faz com que se alie a gente que ao par de sua documentação por via digital, de
comprimento. Desdobrando-o, experimentando das paredes, de restos de objetos reconhecí-
“não gosta de cama mole e não sabe comer sem natureza instável, um legítimo castelo de cartas,
os vários arranjos possíveis, o visitante depara-se veis, móveis e eletrodomésticos, enfim, todo
torresmo”, e termina por incidir na escolha do que salvo para quem confia que haja qualquer coisa
com imagens da construção de Brasília, bem como um entulho a corroborar a tese de que o futuro
e do como dizer. Feita essa observação, importa de sólido no corpo das “nuvens”.
dos trabalhadores que para lá se encaminharam da natureza será um produto nosso. As paredes
apontar outros rumos tomados por sua pesquisa, Os documentos, ínfimos e perecíveis, são
na esperança de uma vida melhor. descoradas e descascadas ostentam indícios das
igualmente preocupados com a memória. E se até arranjados em soluções diversas, explorando, de
Entre Aliança e Livro do tombo houve o cores outrora vivas, embora muitas delas, nota-se,
agora tratou-se do vetor de sua pesquisa voltada um lado, sua imprevista potencialidade formal,
vídeo Casa pré-fabricada, 2015, como os outros, já foram pintadas com desleixo, um preâmbulo
à preocupação da memória do fatos ocorridos, de outro sua proliferação que o eleva a condição
o respeito aos trabalhadores, à gente aviltada e das incontáveis gretas, manchas, rachaduras,
sua corrosão no presente como pré-figuração de matéria prima da paisagem futura, tudo isso
indevidamente posta à margem. Nele dá-se o fissuras e perfurações, um amálgama de ações
do futuro, cabe destacar o vetor orientado para remetendo a várias camadas de significação.
pungente depoimento de Dona Genô, velha senho- de autoria inatribuível. A câmera fica como que
aspectos do presente que pressagiam o apaga- Vale lembrar que essa modalidade de burilação
ra, natural do interior da Paraíba, cuja juventude atarantada. Realiza longos travellings para se
mento de aspectos decisivos da vida num futuro de material, retirando do circuito de circulação,
levou-a, em 1967, a se aventurar nos começos interromper em alguns poucos planos fixos, e
muito próximo. represando-o em lugar de deixa-lo seguir seu
de Brasília – “Casei num dia e viajei no outro”. tem titubeios típicos de quem não fez uso de
Diários, Arquivo Morto (ambos de 2013), caminho em direção ao lixo ou a desaparição,
Acompanhou o marido, que lá havia chegado tripé. Melhor assim, porquanto mais coerente.
Capital (2014), Indício (Queda) e Indício Noturno tem antecedência em dois artistas: Cildo Meireles
em 1960, justo no ano da inauguração da cidade Enquanto a câmera inspeciona os detalhes da
(ambos de 2016), são trabalhos que têm como e seus Inserções em circuitos ideológicos, e Jac
signo do sonho de um Brasil melhor. Genô ficou ruína a voz calorosa, receptiva de Dona Genô vai
denominador comum o uso de cupons fiscais, Leirner em séries como Pulmão e Corpus Delicits.
alguns anos lá, até mudar-se para Olho D’Água, falando de sua vida, seu comentário tranquilo
comprovantes de pagamentos, extratos ban- Somando-se a esses dois artistas, Iris, em Diários,
interior de Goiás, lugar calmo, no dizer do marido sobre o fim das coisas.
cários, tickets, canhotos e toda a variedade de foi reunindo papeizinhos ao longo de um ano. O
“parece o nordeste”. O vídeo começa com a voz Impossível reconstruir o passado da casa
papeizinhos insignificantes cuspidos das bobinas resultado é um conjunto de 4 montinhos deles
de dona Genô, viúva há tempos, moradora de Olho filmada ou compreender o presente da casa onde

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espetados em 4 hastes de metal, espécies de de 24 monumentos brasilienses impressos em amarelinhas e rosadas, que obsessiva, compul- O insignificante papelzinho que recebemos a cada
pregos utilizados em escritório que, fixados ver- 25 comprovantes termossensíveis, dá-se uma sivamente vamos fixando em toda parte com a operação financeira, por banal e maquinal que
ticalmente sobre bases circulares e colocados divertida sobreposição de sentidos. Como foi finalidade de evitar o esquecimento, prova que é seja, impregnado por uma mistura de corante e
sobre mesas, servem como depósito de ordens amplamente festejado, em 1987, na altura em que mesmo provável que não haja solução, que sere- ácido, não se presta a reciclagem. Mais ainda:
de serviço e memorandos cumpridos ou a serem celebrava 27 anos, Brasília foi elevada a condição mos soterrados pela matéria débil e evanescente contém bisfenol-A, BPA, em sua composição, que,
cumpridos. Mas o de Iris, fixados um ao lado do de Patrimônio Cultural da Humanidade, primeira das lembranças que gostaríamos de reter. segundo o site Ecycle, por sua vez apoiado em
outro na parede, na altura do olhar do visitante, cidade do século XX a receber tal honraria. Com informações assinadas pela conspícua Sociedade
ameaçam ao mesmo tempo em que convidam isso, além de ser reconhecida como obra prima -- Brasileira de Endocrinologia e Metabologia de
a pensar nas operações realizadas diariamente, do gênio de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, posto *Essa tecnologia de impressão, denominada São Paulo (SBEM-SP), tem como alguns de seus
na rede de pessoas postas em movimento por que o pacote incluía o assim chamado Plano tecnologia de impressão térmica reversível, dis- efeitos desequilibrar o sistema endócrino, causar
detrás de cada operação realizada, não impor- Piloto e as edificações, passou também a ficar, seminada pelo mundo afora, responsável pela aborto, anomalias e tumores do trato reprodutivo,
tando quais sejam, e das quais cada um deles pretensamente, defendida da ação predatória homogeneização universal dos documentos, câncer de mama e de próstata, déficit de atenção,
é o documento final. Isso conduz à relação de dos especuladores, como também, diga-se, de foi inventada em 2006 por uma divisão da NCR diabetes, a lista prossegue para eventual deses-
cada um com a satisfação das necessidades da qualquer outra transformação. Numa palavra, Corporation, gigante norte-americana que se pero e indignação dos preocupados pelo rumo
artista, assim como sua relação com a satisfação embalsamou-se Brasília, como se ela se trata-se apresenta como especializada em produtos para das tecnologias anunciadas como redentoras.
das nossas etc. Cada papelucho enreda-se no da milenar Veneza, cuja atenção e carinho uni- o varejo e setores financeiros, e que em 1991 foi https://www.ecycle.com.br/component/
corpo da artista como poderia estar enredado versais não logra barrar a força das águas que a absorvida pela ciclópica AT&T. Mas a facilidade content/article/6-atitude/818-extratos-bancarios-
em cada um de nós, são resíduos deixados pela inundam. Vai daí que nossa artista imprime alguns proporcionada por essa invenção tem um preço. -papel-termico-e-entrave-para-reciclagem.html
dimensão econômica, no sentido amplo apre- dos monumentos da capital (e será sempre útil
sentado acima, de seu trânsito cotidiano. Indício considerar que a etimologia do termo remete a
(Queda), com seu acabamento premeditadamente palavra latim monere, recordar, lembrar), ainda
descuidado, como se fora confeccionado sobre que mal tenham acabado de serem feitos, ainda
uma mesa vendo televisão, ademais da aparência que em breve, brevíssimo tempo, um átimo, pode-
de uma cascata de consumo, o que por si só já o -se dizer, desaparecerão, consoante a lógica da 36 EXPOSURES
torna digno de interesse, tira partido dos parcos película termossensível que o serve de suporte. RAPHAEL FONSECA
recursos cromáticos, do azul e do amarelo, enfim E que o fornecedor desse material seja a Cielo,
do corantes que juntam ao ácido e a matriz para a empresa líder da América Latina do setor de
impregnar ao papel. A sinuosidade da peça traduz “captura, transmissão e liquidação financeira
a vertigem propiciada pelos cartões de crédito de transações com cartões de crédito e débito”, We take pictures for recollection – this seemin- which these landscapes were created. From the
que, ao contrário do dinheiro vivo, facilitam o cuja história repleta de períodos de monopólio, gly common place in the critical and theoretical seemingly tranquility of a home’s heart, laid over
consumo em virtude do caráter abstrato que eles mais fusões, aquisições e da mais encarniçada approach of photographs is also an attempt to current pictures of public spaces, to the overflow,
impõem as transações econômicas. E as camadas concorrência, mete medo em qualquer um, é uma understand the photographic objects and, conse- the architectonic verticality and the pills taken
assemelham-se a um corte na paisagem revelando ironia das mais sofisticadas. Efetivamente, o céu quently, to refer to Iris Helena’s artistic research. that can ease the adventure in a megalopolis such
as finas camadas de sedimentos acumuladas ao do Planalto Central, sob o qual esplende Brasília, The techniques for visual record change over as São Paulo. The artist’s journeys also exist in a
longo de séculos. Indício (Noturno), composição está atravessado pelas nuvens que fazem as deli- time, the desire to create a biography through collection of sales slips. Instead of having post
de feições arbóreas realizada com os tickets de cias dos Cielos projetados no Vale do Silício entre images, however, remains – yesterday we saved cards and pasteurized memories, we face the
supermercado expostos ao calor, o que catalisa outras paragens em que essas infraestruturas são the photographic film’s thirty-six exposures (that subtracts of her consumption. If what it is bought
a reação latente, escurece-os num jogo de luz urdidas, as nuvens do Kapital. never were thirty-six) and now we ask our relatives is rapidly digested, the same happens to these
e sombra. Embora recente, a trajetória de Iris Helena to, please, at least tag our faces and click the documents that are, slowly, destined to fade.
Essas séries atestam a capacidade da artista tem se afirmado como uma das mais sólidas “share” button. Iris Helena creates artistic objects that make
de explorar plasticamente um material a primeira produções acerca da dialética entre destruição e This exhibition is guided by a similar verb: us remember of our childhood and our private fou-
vista raso, sem maiores atributos, demonstrando-o construção, lembrança e esquecimento, presente/ the artist shares images with the public that can ndational myths, the entry in the labor and figures
pletórico quanto a diversidade de significações, passado/futuro. Seu notável ponto de partida: be interpreted as a photographic autobiography. world. Nowadays, this exhibition “traverses many
entre os quais seu futuro sombrio como parte da cenas urbanas estampadas em uma miríade Her face is missing from the pictures, but we cities”, but if we stare at it with estrangement, they
composição do chão. Em Capital, 2014, conjunto de post-its, as folhinhas de papel auto-desivas, cannot say the same about the backgrounds in may be considered non places in the future. With

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uncertainty surrounding us, we shall accept her through a street that traverses many cities” from Hence, we follow a walk through the spaces, horizon, to summarize the world, to support its
invitation: let’s travel and try to assign meaning Iris Helena, in the Archidy Picado gallery, in João a route mapped as thick as the world. A course architecture? To stir the desire to see, to crack
to our encounters with diverse landscapes by Pessoa, from January 11th, 2013, to January 31st, where the landscape seems never to be given. the landscape to ruin the panorama8.
turning them into image. 2013) While anchored, to the core of urban life, to the --
(curatorial text for the exhibition “I walk affection Iris establishes with spaces and people, Jean-Luc Marion9 points out that, despite
its fate is to fade. How long does a landscape being unpredictable, what is visible must provoke
resists until it disappears? How does this long the gaze that of whom will make it reachable. From
course to its disappearance go? To lose sight of this place, the landscape would emerge into the
a landscape also means to lose a land in sight. surface as a landform, it would leap to the eyes, in
What is left when we no longer see? In face of the a never-complete movement, since for something
[THE DISTANCES ARE SET SAIL FROM HERE]1 repeating precarity of the used material (toilet to be visible, something else must plunge into
KARINA DIAS paper, post-its, counterfoils, sales slips made of the (in)visibility. Therefore, how to record what is
thermal paper), we contemplate the fading of the visible? What would be the limits for its visibility?
1 I hereby borrow the statement “The distances are set sail from here” that was part of the exhibition-installation Grand-Tour image. Therefore, a rugged, folded, and darkened What happens when the circumstances for visibility
developed by the research group Vaga-mundo: poéticas nômades, coordinated by me and from which Íris Helena and 8 other surface, stained from the actions of the artist and change and the depiction of the world dissolves,
artists are part of. The exhibition took place in the Alfinete Galery in Brasilia in the year of 2014. https://cargocollective.com/vaga-
mundo. full of lost relevance leaps to the eye. A surface calling us to evoke the outlines from what we
that exposes scales, that may be organized, by remember, from what was seen and lived? How
an agreement with the space, in a quadrant/de- many are the ways to record what is visible? To
sert5. As for us, the viewers, we contemplate the print images. To compromise gears 10. To find the
* latives’ spaces. How one crosses the world and
fading, feeling between the views and the folds. measure of the gaze.
How many pictures make a long-gone lived sce- let’s oneself cross it? How to be part of it, inside
In several works, our presence provokes small --
nery? How to preserve the places lived “in the fine it and still find the gazes that will allow one to
seismographies, we are the wind that blows and The photographic camera is a notepad
form of the daydream, in the edge of thoughts”? rediscover it?
moves a fine layer of paper that announces our The photographic camera is a notepad
2 Amidst the things of the world, we seek a place From this lonely experience, our gazes select,
arrival in its ruins and in our Quinhão6. Traces from The photographic camera is a notepad11.
of abode for our stare, we envision an always fragment what strikes a chord with us, capture
an always elusive horizon. Shadowy sight. Shadowy Iris makes use of photographs, but the does not
changing landscape. In this delicate experience of and (re)order the details that make a landscape.
landscape. Nocturnal matter. In this sfumato of the consider her work as photographic. She chases
space, a world lived is revealed. “[...] the landscape Images that echo the bonds created with the lived
sight and of the memory of places and things, we ruins, but her work is not about ruins. Maybe the
is not only a view, it is inhabited [...] the landscape city; and its duration is a point of view. The space
observe a scene dissolving, angles taken away by fine line12 of her poetic research stands in the
is not simply inhabited, it is lived [...]”3. assigned by the eyes of the one who contemplates,
the rushed hands of the viewers that take home a incompleteness of her vision, of the landscape
And this place seems to be the one that puts therefore, comprises its landscape.
fragment of a landscape. A city’s note 7. and of the memory; in the precarity of the material
us on an edge: between what we see and what we *
-- that serves as surface for her images. An almost
don’t, between what we saw and what we did not August 9th: there is a day for contemplation4.
Souvenir is remembrance, recollection and ruined material, an almost lost landscape. The
give up on seeing, between what we do not want to *
memory, and it is also that typical object from dynamics of thought and action that exposes the
forget and what we will unfailingly forget. During Iris Helena Works arise from this alliance with
a place, sold as gifts to travelers, specially tou- fragility of out sight: we see because we do not see.
this motion, we create viewing points amidst our the lived space. The attentive eye that [takes]
rists. Travelling-object, that one purchased by
ordinary and everyday tasks, in a swift motion notes what is [not] missed. Amidst ruined monu-
tourists that want to take home a fragment that 8 Reference to the work Souvenir created by the artist in 2016.
from different points of view. The landscape is ments, torn souvenirs, forgotten scenes, possible https://cargocollective.com/irishelena/Alianca
summarizes the places where they have been.
the pathway, a movement of the gaze. archaeologies and dreamed cartographies, Iris 9 MARION, Jean-Luc. La croisée du visible. Paris: PUF, 1996,
Memory and memento simultaneously. Image p.62.
* creates her [not] dead files of loose slips, made
and fragment. Affection place and post-card. 10 In order to print, Íris Helena tries the printers out, she
Would it be possible to adjust the distances of disposable material which destiny was not
Which details would, then, be able to contain the adjusts its configuration so they can print her images.
and approximations that makes us see or not see supposed to be made seen, or to make itself be 11 Developed in the Práticas de Arquivo-morto, Iris Helena’s
the city? We are lonely observers amidst super- seen. masters’ thesis defended in 2016 in the Post-Graduate
Program in Visual Arts of the University of Brasilia.
5 Reference to Quadrantes/Desertos of the Paraísos Fiscais Supervisor: Professor Doctor Karina Dias. https://
series from 2016. repositorio.unb.br/bitstream/10482/20982/1/2015_
4 In reference to the work Ode to Sena by Íris Helena in the
2 BACHELARD, Gaston. {Estudos}. Rio de Janeiro: 2008, p.23 year of 2012. It was an urban intervention intervenção urbana 6 Reference to Quinhão from the Ruínas series from 2015. IrisHelenaFran%c3%a7adeAra%c3%bajo.pdf
3 COLLOT, Michel. L’horizon fabuleux, I XIX siécle. Paris : and in the civic calendar in Sena Madureira in Acre. https:// 7 Reference to the Lembretes series held from 2010 to 2019. 12 Title of one of Iris Helena’s work in the Registros series from
Librairie José Corti, 1998, pp.12/13. cargocollective.com/irishelena/residencias-residencies https://cargocollective.com/irishelena 2013.

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-- from peeking. In Iris’ works there is a relationship
Ruins carry far-off and extremely close dis- between public and private spaces, the openly
tances. They disturb the present because they put collective and the intimacy that we often do not
us in front of a devoured past that withstands, that want to share. In her work there always seems
insists on looking at us. In this ambivalence, they to be an inside out motion, from the individual
are, simultaneously, building and dissolution – of to the group, from the private to the wide world.
the city, the landscape, the gaze. Downfall and *
the principle of hope13. Shooting stars that remind Such as constellations made of fragments
us that rupture is eminent, and vulnerability is of neighbor gazes from the abyss that separates
unavoidable. Iris’ ruins lurk at us and their mo- them 15. Shadows held in their silence. When isola-
numents turn into bookmarks 14 that fit in the ted, they seem to float through space like Stella’s
palms of our hands. stars, the home and the cosmos reminding us, as
* Borges writes, that oblivion is the fine substance of
Here, to catalog means to make scales, to which the universe is made16. And in that clear side
subvert the monumentality of the spaces and of the night that does [not] let itself be revealed17,
their monuments, to be around distant cities, there is your story, which is also mine 18.
to compose a journal of sales slips received in
different places with precise dates and time, To Iris, some notes, with love and admiration.
imprinting on the cielo another sky. Banknotes Karina Dias
stashed in pockets, crumpled, forgotten, and Brasilia, Spring of 2019
gathered together become harpoons that hinder us

15 Reference to Michel Déguy to whom poetry digs the abyss


between neighbors so they can, once again, be close by the
abyss. DÉGUY, Michel. Geopoética in Reabertura após obra.
Campinas: Ed. UNICAMP, p.127.
16 Borges, Jorge Luis, KODAMA, María. Atlas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010 p.127
17 Reference to the poet Lorand Gaspar who explores the night
in his work Le quatrième état de La matière – connaissance
13 Reference to the work The Principle of Hope from Ernest de la lumière in Sol Absolu et autres textes. Paris : Poèsie
Bloch. Gallimard, 1982.
14 Reference to the Monumentos/Série Apontadores, 18 Borges, Jorge Luis, KODAMA, María. Atlas. São Paulo:
developed by the artist from 2011 to 2016. Companhia das Letras, 2010 p.25.

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Iris Helena Montagem
Práticas de arquivo Morto BibianoArte
Notas
-- Montagem de luz
Curadoria Manu Queiroz
Agnaldo Farias
-- Assessoria de imprensa
Novembro de 2019 Adelante Comunicação Cultural
a janeiro de 2020
Fotografia
Joana França
--
Coordenação Cenografia
Bruna Neiva - tuîa arte produção Marcenaria Polovinas

Produção executiva Pintura


tuîa arte produção LM Montagem de Cenários

Design Vídeo
Molde.cc Rodrigo Resende
Felipe Cavalcante
Gabriel Menezes Textos para catálogo
Luã Leão Agnaldo Farias
Karina Dias
Expografia Raphael Fonseca
Adriana Yazbek
Tradução
Assistentes de expografia Paula Granato
Nathalia V. Duran Gregório Benevides
Alexandre Lins
Agradecimentos:
Projeto Luminotécnico Germana França, Lúcio Araújo, Nina Maia,
Caco Tomazzoli Flávia Maia Nobre, André Luiz, Karina Dias,
Raphael Fonseca, Arthur Gomes, Beatriz
Coordenação administrativa Saffi, Ádon Bicalho, Jaime Portas Vilaseca,
Elisa Mattos Gus Moura, Manuela Parrino, Gê Orthof, Levi
Orthof, Vinícius Britto, Daniel Belizário,
Produção Local Augusto Neiva, Marinilzes Mello, Emerson
Marcus Takatsuka Dionísio.

Fonte Simplon
Papel Offset 150g
Impressão Gráfica ...
Tiragem 1000

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