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A TROYA NEGRA DE NINA

RODRIGUES: O QUILOMBO
DOS PALMARES, UM ESPAÇO
DO RACISMO CIENTÍFICO

Thyago Ruzemberg Gonzaga de Souza • Graduado em História


na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), professor
do Ensino Básico, mestrando do Programa de Pós-Graduação em
História da UFRN. E-mail: thyagoruzemberg12@yahoo.com.br

Envio em: Abril de 2013


Aceite em: Junho de 2013
RESUMO: O problema do “Negro” tornou-se uma questão emblemática na sociedade bra-
sileira no final do século XIX, sendo contemplada por poucos autores, mas movimentando
uma literatura que reivindicava o caráter científico para si. Este artigo tem como objetivo
analisar a reinvenção da espacialidade do Quilombo de Palmares nas produções de um ho-
mem de sciencia, Raimundo Nina Rodrigues. O autor inovou a historiografia sobre Palmares,
não apenas por contemplar boa parte das discussões feitas por autores anteriores que ainda se
encontravam muito dispersas e fragmentadas, mas principalmente por sua contribuição por
colocar no centro da composição de Palmares o “problema do negro”. Construiu um Palma-
res pensado a partir de uma racionalidade raciológica e o caracterizou como espaço banto,
dando novos significados a esse espaço.
Palavras chaves: Palmares. Racismo Científico. Nina Rodrigues.

TROYA NEGRA DEL NINA RODRIGUES:


O QUILOMBO DE LOS PALMARES UM
ESPACIO DEL RACISMO CIENTÍFICO
Resumen: El problema del “Negro” se convirtió en una cuestión simbólica en la sociedad
brasileña en el siglo XIX, está dirigida por unos pocos autores, pero mover una literatura
que reclamaba para sí el carácter científico. Este artículo tiene como objetivo analizar la rein-
vención de la espacialidad del Quilombo de los Palmares en las producciones de un hombre
sciencia, Nina Rodrigues. El autor ha innovado en la historiografía de Palmares, no sólo para
contemplar buena parte de los debates realizados por los autores anteriores que estaban to-
davía muy dispersos y fragmentados, pero principalmente por su contribución al colocar el
centro de la composición de la Palmares “problema de los negros”. Construido a Palmares
pensado desde una racionalidad raciological y caracterizado como el espacio Bantu, dando un
nuevo significado a ese espacio.
Palabras clave: Palmares. Racismo Científico. Nina Rodrigues.

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1. INTRODUÇÃO
Durante a segunda metade do século XIX, a identidade do Brasil como nação foi
debatida em meios intelectuais como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB), e ampliada com os debates sobre a abolição do trabalho escravo. Com o
advento da República, temáticas como a “raça brasileira” ou as diversas “raças” que
compõem o mosaico brasileiro ganharam importância nessas discussões. Na primeira
metade do século XX, principalmente na década de 1920, foi intensificada a produ-
ção e a problematização da identidade nacional. Com isso, a singularidade da cultura
brasileira e da cultura afro-brasileira foi problematizada em diversos campos artísticos,
intelectuais e científicos. O desfecho disso seria uma visão hegemônica que sairia da
esfera intelectual e entraria na política durante o governo de Getúlio Vargas, estabele-
cendo no centro dessa produção a ideologia da “democracia racial”. Segundo Antônio
Alfredo Guimarães (1999) seria o mito fundador de uma “nova nacionalidade”.
Palmares ganhou visibilidade como símbolo da cultura afro-brasileira na primeira me-
tade do século XX, tomando novos significados. O espaço palmarino é, sobretudo,
produzido de acordo com os debates contemporâneos em virtude de uma nova ra-
cionalidade constituidora da raça negra e da cultura afro-brasileira. Essa cultura foi
pensada por diversos autores. Vale destacar aqui três deles: Gilberto Freyre, Arthur
Ramos e Edison Carneiro.
No presente texto, será analisada a produção de Raimundo Nina Rodrigues sobre
Palmares. Conforme alguns autores que analisaram a tradição historiográfica sobre
Palmares, o escrito de Nina Rodrigues foi o marco inicial de uma nova visão sobre
o Quilombo no século XX. (FUNARI; CARVALHO, 2005; GOMES, 2005; REIS,
2004) De acordo com essa perspectiva, ele foi o autor que transformou a historiografia
sobre esse tema, no início do século passado. A maioria dos autores que produziram
posteriormente a teve que dialogar com sua obra. Antes dos escritos de Nina Rodri-
gues não existiam trabalhos que explicassem, de maneira aprofundada, como eram
os mocambos. Os escritos que mencionavam algo sobre a organização interna desses
espaços eram sempre curtos. Até o século XVIII, as narrativas históricas sobre Palma-
res se dedicavam às guerras impostas pelos colonizadores batavos ou portugueses. E
durante o século XIX, a historiografia narrou o heroísmo dos que teriam derrotado o
Quilombo, principalmente o grupo do bandeirante paulista Domingos Jorge Velho.
Os historiadores Jean Marcel C. França e Ricardo Alexandre Ferreira (2012, p. 92)
afirmaram acertadamente a grande novidade do ensaio de Rodrigues, esse teria feito
“de Palmares um problema a ser discutido pelos estudiosos brasileiros, uma questão
importante para entender o papel do negro na sociedade de então e o porquê da in-

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capacidade de tal sociedade em avançar rumo à dita civilização.” Esses fatos demons-
tram a importância dele para uma nova construção sobre o Quilombo.
Mas a sua importância extrapola os limites da escrita da história de Palmares. Autores
importantes da antropologia e etnologia no início do século XX foram vinculados a
Rodrigues, esse é o caso de Arthur Ramos e Edison Carneiro, considerados herdeiros
intelectuais e, sobretudo, reivindicantes dessa herança por fazerem parte da “Escola
Baiana de Antropologia”. Também batizada como “Escola Nina Rodrigues” por Ar-
thur Ramos e Afrânio Peixoto, os dois médicos ligados ao Instituto Nina Rodrigues
de medicina legal. Essa “Escola” é uma vinculação simbólica com o trabalho de Rai-
mundo Nina Rodrigues por um grupo de pesquisadores, em sua maioria médicos e
baianos, nas décadas de 1920 a 1940, que pesquisavam as temáticas da Cultura Negra,
Psicologia Social e Medicina Legal. Segundo Mariza Corrêa (2001, p. 223) a “Escola”
serviu como fator aglutinador de um olhar e compreensão do “problema do negro” e
de suas implicações sociais para a sociedade brasileira, estabeleceu uma rede de diálo-
gos entre seus membros, no entanto não tinha a unidade pretendida por alguns, fican-
do somente na “vontade de origem” ou “vinculação retórica” que os ligavam a Nina
Rodrigues. Portanto, é impossível compreender a construção de Palmares no século
XX sem compreender antes o espaço de Palmares produzido na obra de Raimundo
Nina Rodrigues.
À semelhança do que ocorreria tempos depois, a obra de Nina Rodrigues também es-
tava inserida na preocupação da construção ou “compreensão” – era assim que ele e os
outros autores da época entendiam a sua operação – da nação e da nacionalidade. Mui-
to embora o elemento de debate fosse outro, as produções desde o final da década de
1870 a 1910 destinavam a sua preocupação com a composição racial da nacionalidade
brasileira. Para compreender sob que racionalidade Nina Rodrigues produziu Palmares,
serão considerados três fundamentos metodológicos da “operação historiográfica” de
Michel de Certeau (2006) para analisar o texto: o lugar de fala, o autor e a escrita.
Para analisar a obra de Rodrigues, deve-se partir da premissa de que esse pensador faz
parte de uma tradição intelectual da segunda metade do século XIX que problematiza
o papel do negro na sociedade brasileira. Desde a década de 1870, houve um grupo de
pensadores traduzindo ideias provenientes da Europa, cujo evolucionismo social e o
racismo científico eram as teorias predominantes, produzindo conhecimento sobre o
Outro da sociedade - o Negro – estabelecendo um antagonismo que predominou no
imaginário da composição da sociedade brasileira, Branco e Negro. Levando em con-
sideração essas características na obra do autor, é de grande auxílio ao presente texto o
trabalho do crítico literário Edward Said, que analisou a produção do espaço “Orien-
te” pela literatura do Ocidente, operada por uma tradição intelectual denominada
“orientalismo”. Em seu trabalho, desenvolveu um referencial teórico-metodológico
para estudar a invenção de espaços mediante discursos e explorou o espaço construído
na relação também antagônica do Eu/Outro, Ocidente/Oriente.
Na realidade, esse tipo de abordagem que estamos propondo para uma análise de
história da historiografia é possível porque compreendemos o Quilombo dos Pal-

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mares como um “espaço imaginativo” – ou geografia imaginativa -, construído por


uma tradição historiográfica. De acordo com as reflexões de Edward Said (2007, p.
92-93), o “espaço imaginativo”, significa que determinados espaços escapam a at-
mosfera objetiva e adentram em significados simbólicos, ou poéticos, e determinam
ou delimitam as fronteiras do Outro e consequentemente do Eu. Num diálogo claro
com o filósofo Gaston Bachelard, Said (2007, p.93) concluiu que “o espaço adquire
um sentido emocional ou mesmo racional, por uma espécie de processo poético, o
mesmo pelo qual as áreas distantes vazias ou anônimas são convertidas em significa-
dos para nós”. Ainda segundo ele, esse mesmo processo ocorre quando lidamos com o
tempo, é elaborada uma “história imaginativa” – ou tempo imaginativo. A geografia
e a história imaginativa andam juntas na construção de espacialidades, muitas vezes
elas fazem parte de uma tradição erudita que na nossa pesquisa identificamos como
uma tradição historiográfica sobre o Quilombo dos Palmares, por sua vez, no final
do século XIX tornou-se subordinada a uma tradição intelectual que pensava sobre o
negro na sociedade brasileira.

2. O PROBLEMA DO NEGRO
NA SOCIEDADE BRASILEIRA
Raimundo Nina Rodrigues é filho de um senhor de terras, o Coronel Francisco Sola-
no Rodrigues, dono do Engenho São Roque no interior da província do Maranhão.
A sua mãe, Luiza Rosa Nina Rodrigues, era descendente de uma família sefardita que
veio para o Brasil fugindo das perseguições aos judeus na Península Ibérica. Assim
como os filhos integrantes da elite rural seus estudos básicos foram completados na
capital da província, no seu caso em São Luís. Em 1882 encaminhou-se para a Facul-
dade de Medicina da Bahia em Salvador. Em 1885 transferiu-se para a Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro e em 1886 retornou à Faculdade de Medicina da Bahia.
Defendeu a sua tese no Rio de Janeiro em 1887, retornando a São Luís em 1888,
onde clinicou por todo esse ano já contribuindo na Gazeta Médica da Bahia (COR-
RÊA, 2005-2006, p. 130-139).
Rodrigues fez um concurso para adjunto da cadeira de Clínica Médica na Faculdade
de Medicina da Bahia, cujo titular era o conselheiro José Luiz de Almeida Couto, re-
publicano histórico, abolicionista, político de projeção nacional, seu mentor e futuro
sogro (CORRÊA, 2005-2006, p.132). Nesse ponto, podemos observar um elemento
importante para compreendermos os seus escritos: era filho da elite agrária que se tor-
nou homem urbano. O ambiente urbano era caracterizado por rápidas modificações e
Rodrigues viveu em duas das três maiores cidades do Brasil na época– Salvador e Rio
de Janeiro; as três cidades de sua formação eram as capitais das províncias com maiores
números de negros e mestiços na composição de sua população.
O fato dele ter sido um morador de Salvador, com certeza exerceu uma influência so-
bre a formação do seu modo de pensar. Segundo Robério S. Souza (2007, p. 83-85),

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a Bahia, principalmente sua capital Salvador, chegava à primeira década do século XX
na “contramão da história”. As suas características de uma cidade tradicional contra-
riavam os novos tempos do discurso da ordem republicana brasileira. Na visão dos le-
trados e visitantes contemporâneos, a imagem da Bahia, era a de um lugar que reinava
aquilo que eles gostariam de deixar no passado, e consequentemente os impediam de
se inserir na era do progresso e da civilidade.

Para as elites progressistas, tudo estava pelo avesso: o nítido atraso econômico de
sua capital em relação às outras capitais e a incipiente industrialização; o projeto
frustrado de branqueamento racial das elites; a memória da escravidão que se fazia
presente nas ruas, no universo do trabalho, nos costumes e na cultura da grande
maioria da população, composta por negros, mulatos e mestiços, nas cidades e
nos campos; tudo isso constituía obstáculos à ideia de civilização daqueles tempos
(SOUZA, 2007, p. 83).

De diferentes formas, as pretensões das elites progressistas foram frustradas pela re-
alidade que se apresentava. O que se via, na capital baiana, Salvador, nos primeiros
anos do regime republicano, era uma cidade negra, comercial e com constantes crises
econômicas. Conforme Maria Isaura Queiroz (1989, p. 32), na conjuntura nacional,
a coisa não era diferente, para os intelectuais e elites políticas, em um momento que se
“redescobria a nação”, indígenas, africanos e mestiços passavam a ser entendidos como
obstáculos para que o país atingisse o esplendor da civilização, como uma barreira para
a formação de uma verdadeira identidade nacional.
É importante observar que o negro aparece nos discursos da elite como elemento
desestabilizador da ordem social desde o século XIX. Enquanto crescia a participação
econômica e social dos negros nas grandes cidades durante Império, destacada pelo
historiador Sidney Chalhoub (1990), funda-se nesse momento a importância dos ne-
gros como um problema a ser estudado e discutido pelas elites. Essa importância foi
intensificada após dois acontecimentos: o primeiro foi a promulgação da Lei Aurea em
1888 que legaliza o final da escravidão; o outro foi o início da República brasileira em
1889, quando os negros e crioulos se tornaram um grupo social livre e “participativo”
politicamente. Como demonstram pesquisas sobre a realidade dos afro-descentes no
pós-emancipação, publicadas no livro “Quase-cidadão” organizado por Olívia Cunha
e Flávio Gomes (2007), parte desse grupo heterogêneo foi inserido na realidade agrária
como trabalhadores – geralmente meeiros – disputando com os imigrantes e deram
continuidade a organizações familiares nucleares, outra parte estavam as cidades rele-
gadas a um mercado informal, submetidos à marginalidade e a politicas públicas de
exclusão como as obras higienistas. O solo da liberdade era pantanoso, os ex-escravos
ou “livres de cor” tornaram-se cidadãos em estado contingente, quase-cidadãos, essa
liberdade não era sinônimo de igualdade.
Também é importante ressaltar que no final do período imperial aumentaram as
reações violentas promovidas em muitas fazendas e engenhos do interior, reações
que demonstram as tensões entre os negros e os brancos. Podemos citar as conclu-
sões alcançadas por Célia Maria M. de Azevedo (2004, p.153-188), pesquisando a

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realidade de São Paulo, percebeu que no imaginário da elite, o grande número de


negros que chegava à província para trabalhar, alimentava o medo do branco dessa
“onda negra”, e isso seria intensificado nas duas últimas décadas antes da abolição
com o agravamento dos crimes dos negros contra os senhores brancos, das revoltas
nos campos e nas cidades. No caso da Bahia, isso já viria ocorrendo muito antes,
pelo menos durante todo o período imperial, portanto podemos inferir que esse
“medo branco” em Salvador foi ampliado por ser a capital com maior número de
negros e mestiços, e porque no período republicano esses grupos eram relegados à
marginalidade social. Nina Rodrigues não deixou essa situação passar despercebida
e se dedicou desde a década de 1890 na produção de textos em que analisava esses
grupos e suas ações violentas. Esses textos se transformaram no livro “Coletividades
Anormais”, no qual há o texto polêmico sobre Antônio Conselheiro, o líder de Ca-
nudos (RODRIGUES, 2006, p. 41-56).
O “interesse” por parte dos intelectuais sobre os negros surgiu com as transformações
ocorridas depois da década de 1870. Nesse momento, começaram os primeiros ensaios
e debates sobre “racismo científico” no Brasil, pari passu com o acirramento dos deba-
tes sobre a abolição. Consequentemente ocorreu o início das discussões sobre os papéis
dos africanos e seus descendentes na nação, da mesma forma, sobre a substituição da
mão-de-obra escrava negra, pela mão-de-obra livre branca e europeia.
Essa explicação está de acordo com a perspectiva do historiador brasilianista Thomas
Skidmore (1976, p. 54-95) que propõe um predomínio das ideias racistas no Brasil
entre os anos de 1888 a 1914. Perspectiva que foi afirmada por outros autores, como
os sociólogos Renato Ortiz (2006. p. 13-35) e Sergio Costa (2006. p. 151-194). Esses
autores concordam que é desde a década de 1870 que essas ideias são recepcionadas no
Brasil. É importante colocar que desconsideramos que as ideias racistas tenham sido
copiadas ou importadas pelos intelectuais brasileiros, como afirmou Skidmore. Acredi-
tamos que houve uma singularidade do “racismo cientifico” brasileiro, como Lilia M.
Schwarcz (1993, p. 18) afirmou, gerado pela incompatibilidade entre: a expectativa
negativa das teorias estrangeiras sobre os mestiços; e as expectativas dos homens de scien-
cia do Brasil que ao pensar a nação se depararam com a realidade de um país mestiço.
O interesse era movido por uma preocupação das elites com o lugar do negro na so-
ciedade. Partindo de um “consenso” – do qual poucos pensadores não participaram,
como Manuel Bomfim - sobre a inferioridade dos africanos e de seus descendentes e
um desejo de afastar o negro do seio da sociedade. No entanto, essas elites sofreram
com uma tensão gerada pela impossibilidade desse afastamento. Por isso, para as elites
brasileiras tornou-se necessário pensar como o negro participou, participa ou poderia
e deveria participar da formação da nação brasileira. Nina Rodrigues denominou essa
preocupação como o ‘problema “O Negro” no Brasil’. Ele foi o primeiro intelectual
brasileiro que realizou pesquisas científicas sobre os africanos e seus descendentes, pio-
neirismo reivindicado por ele no seu livro “Os africanos no Brasil”.
O olhar médico sobre as questões sociais é uma de suas maiores marcas. Em 1891
foi transferido para a cadeira de Medicina Pública, ocupada por Vigilio Damásio,

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cujas ideias adotou como professor da disciplina de Medicina Legal, encabeçando
a luta pela implantação do ensino prático e a nomeação dos professores como pe-
ritos da polícia. A vinculação com a Antropologia, nesse caso, não se dá por acaso,
uma vez que se trata de uma área também proveniente da medicina e da biologia.
Segundo Mariza Corrêa (2001), as preocupações com a raça como origem de
problemas sociais e médicos e a proximidade com a antropologia, especialmente
a raciologia1, estão desde os seus primeiros textos. Porém é no livro “As Raças
Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil” de 1894 que a “antropologia
criminal” ganha centralidade em seu pensamento. O livro é inovador por causa
da sua defesa em favor de uma reorganização da lei para se adequar às condições
psicológicas das raças. Nessa obra, ele dialoga diretamente com Lombroso, Ferri,
Garofalo – chefes da nova escola criminalista italiana - e Alexandre Lacassagne -
chefe da nova escola médico legal francesa. Essa perspectiva de médico e de pre-
cursor da Antropologia, em especial da Antropologia Criminal, estará nos textos,
mesmo os de caráter histórico.
O olhar da Medicina Legal e da Antropologia criminal corrobora com a sua
ideia de inferioridade da raça negra, que ele defendia com tanta convicção, pois
“não é a realidade da inferioridade social dos negros que está em discussão. Nin-
guém se lembrou ainda de contestá-la. E tanto importaria contestar a própria
evidência”(RODRIGUES, 2010, p. 289). Para Schwarcz (1993, p. 23-42), a linha
de pensamento dos homens de sciencia brasileiros compreende a constituição da raça
como transitória e remediável, através de uma concepção original dos pensadores
brasileiros de conciliar o darwinismo social com as teorias poligenistas. Nina Rodri-
gues era singular por sua visão pessimista sobre a miscigenação, advogou que “toda
mistura de espécies era sinônimo de degeneração” elas evoluiriam separadamente, de
acordo com a sua capacidade e essência (SCHWARCZ, 2009, p. 38). Para a “cultura
historiográfica” do período, o Negro é o Outro, no qual as suas concepções seriam
impostas. Esse processo de conversão é disciplinado, é ensinado, tem suas próprias
sociedades, periódicos, tradições, retórica, tudo conectado e suprido pelas normas
políticas e culturais prevalecentes nos lugares de produção.
A produção sobre Palmares estava submetida a uma determinada “cultura historio-
gráfica”. É preciso compreender que há uma maneira de fazer textos históricos que
predominam em certos períodos e certas sociedades, para compreender a operação
historiográfica, é necessário pensar a “cultura historiográfica” que é antes de tudo, um
conjunto de padrões - comportamento, crenças, conhecimentos, costumes, estéticos
etc. -, de tradições e valores - intelectuais, morais, espirituais, éticos – que compõem
as maneiras de escrever a história por determinados grupos sociais em tempos distin-
tos. Para isso ela é em parte fruto de um complexo de atividades, instituições e grupos
sociais ligados à produção intelectual e artística. E também fruto da subjetividade dos
sujeitos que escrevem a história (ALVES, 2009).

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3. PALMARES: O DESVIO
DA ORDEM SOCIAL
O médico escreveu apenas dois textos sobre o Quilombo de Palmares, “A Troya Negra”
de 1904 e sua releitura “As sublevações de negros no Brasil anteriores ao século XIX –
Palmares”, que foi modificada até a sua morte em 1906, e publicada na obra póstuma
“Os Africanos no Brasil” (2010) de 1933, esse livro foi organizado por Homero Pires
– membro da Escola Nina Rodrigues. Ao observar a sua vasta obra, em que apenas sete
textos têm caráter histórico, e dois se dedicam a Palmares, somos levados a questionar:
por que Palmares é uma temática importante para Nina Rodrigues?
Quando escreveu esses textos, Nina Rodrigues já era um médico conhecido, com
ampla publicação nas revistas “Gazeta Médica da Bahia” - editada por membros da
Faculdade de Medicina da Bahia - e “Brazil Médico” - editada por profissionais da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. No entanto, Mariza Corrêa (2001, p. 106)
observa que não é possível reduzir os trabalhos dele sob a perspectiva da medicina,
sobretudo quando ele envereda na análise dos negros e mestiços. Ela afirma que a obra
é marcada igualmente pela criminologia, a antropologia e a psicologia.
Destacam-se nesses textos outros lugares de fala, o Instituto Arqueológico e Geográfi-
co Pernambucano (IAGP) e o IHGB. Nina era sócio efetivo do Instituto Geográfico
e Histórico da Bahia (IGHB) e sócio correspondente de outros institutos estaduais
que auxiliavam na produção da história nacional projetada pelo IHGB. Mesmo com
poucas publicações nas revistas dos institutos históricos, o perfil de seus textos volta-
dos para elas é muito distinto dos demais textos voltados para o público médico ou
criminologistas. Na tradição do IHGB acerca do conhecimento sobre a população
negra, vigorava uma visão evolucionista e determinista no que se refere ao poten-
cial civilizatório da raça. Essa mesma visão predominou no IAGP. Segundo Lilia M.
Schwarcz (1993, p. 116), no início do século XX, uma nova forma de entender a
história se destaca: “escrever a história nacional significava tomar parte de um debate
sobre os problemas do momento e das incertezas do futuro, e se inteirar dos avanços
científicos”, portanto predominou um discurso determinista e científico baseado nas
obras de Buckle, Darwin e Spencer.
O IHGB, desde sua fundação em 1838, faz parte de um projeto centralizador do Es-
tado que faz pensar a história da nação, principalmente, a partir da corte ou do Rio
de Janeiro (GUIMARÃES, 1988, p. 5-27). Por outro lado, o IAGP tem um projeto
marcado pelo seu regionalismo – prestigiando o Norte em oposição ao Sul - ou por
uma perspectiva local – centrada em Pernambuco. Isso não significa que esse projeto
descarte o do IHGB, pelo contrário dialoga com ele (SCHWARCZ, 1993, p.117-
124). Sobre a relação e ação de Nina Rodrigues nesses dois lugares de fala, é importante
observar dois pontos que demonstram a importância desses na operação historiográfica,
mas que também mostram a complexidade que é composição de um autor.

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No primeiro ponto, a população negra aparece como uma preocupação dos dois ins-
titutos, principalmente no IAGP, pois esse faz parte de uma tradição de pensadores
que iniciaram a reflexão na década de 1870 sobre o negro na sociedade e sobre as
teorias do racismo cientifico, sendo Silvio Romero o principal deles. Vale salientar
que no livro “Os Africanos no Brasil”, Nina Rodrigues utilizou como epígrafe um
trecho da obra desse autor, no qual Romero fala da necessidade de serem feitos es-
tudos sobre os africanos e seus descendentes e sua contribuição no Brasil. É possível
entender esse ato de Nina como uma filiação a uma tradição e também como uma
maneira de se afirmar como homem indicado para pensar o negro. Para evitar uma
confusão, é preciso dizer que Nina Rodrigues não pode ser considerado um seguidor
de Silvio Romero, já que sempre procurou demonstrar que era o único capaz de fazer
uma obra científica sobre o assunto, destinando muitas críticas a Romero. Viveria
uma relação de amor e ódio unilateral com esse autor, pois as críticas e elogios sempre
seriam de Nina a Romero, nunca o contrário.
O segundo ponto destaca a subjetividade do autor – e a complexidade do indivíduo
- que possibilita dialogar e transitar em diversos lugares de produção e nem sempre se
limitando à perspectiva local, mas dialogando com outras perspectivas. Um exemplo
disso está no texto “A Troya Negra” publicado na Revista do IAGP (RIAGP), que re-
vela a respeitabilidade já conquistada na virada do século por Rodrigues como homem
de sciencia. Em 1904 Nina Rodrigues já era conhecido nacional e internacionalmente
tendo textos sobre medicina legal, etnologia e psicologia publicados na França e em
várias revistas e jornais do Brasil, principalmente: Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco,
Alagoas, São Paulo e Maranhão.
A publicação de seu texto contrariava as conclusões dos autores que tradicionalmente
publicavam na RIAGP e eram membros efetivos do IAGP, pois estes defendiam uma
perspectiva local da história de Palmares. Fazia parte das produções desse veículo afir-
mar que o “nortista” e “pernambucano” Bernardo Vieira de Mello foi o destruidor do
Quilombo de Palmares. Andressa Reis (2004, p.43-61) menciona as disputas de iden-
tidades locais que circundaram a historiografia de Palmares manifestadas nas produ-
ções das revistas do IHGB, do IAGP, do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo
(IHGSP) e do Instituto Arqueológico e Geográfico de Alagoas (IAGA). Enquanto a
produção dos institutos sediados no Rio de Janeiro e São Paulo afirmavam a importân-
cia do bandeirante paulista Domingos Jorge Velho como destruidor do Quilombo, o
IAGP e o IAGA afirmavam que o verdadeiro responsável pela destruição foi Bernardo
Vieira de Mello. Reis destaca também uma disputa entre o IAGP e o IAGA sobre a
identidade de Bernardo Vieira de Mello, o primeiro instituto afirmava que ele era per-
nambucano e o segundo tratava-o como alagoano, evidentemente essa disputa revela
a preocupação com as identidades locais que eram partes dos projetos dos institutos.
Na publicação do IAGP, Rodrigues confirma a versão do IHGB e do IHGSP de que o
bandeirante paulista Domingos Jorge Velho foi o destruidor do Quilombo.
Essa complexidade do sujeito/autor é agravada ao se observar que Rodrigues – um
autor periférico, por produzir da Bahia - também exerce influência sobre pensadores

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de instituições centrais, como o IHGB ou a Academia Brasileira de Letras. Um grande


exemplo disso é a influência de sua obra sobre Euclides da Cunha. É notório também
da importância da sua produção sobre o Quilombo o fato de seu texto “A Troya Ne-
gra” ser novamente publicado em 1912, desta vez na Revista do IHGB, que no mo-
mento estava sob a presidência de Rui Barbosa.
Havia uma característica que transpassava todos os trabalhos dos homens de sciencia
desse momento, sobretudo os integrantes dessa tradição do racismo científico ligados
aos institutos: a preocupação com a manutenção da ordem social. A obra de Nina
também é marcada pela tentativa da “garantia da ordem social”, sua perspectiva ra-
ciológica conduzia a explicação dos problemas físicos e sociais – epidemias, crimes,
alienação, charlatanismo, fetichismo etc. - dos negros e mulatos pela degeneração da
raça, que poderia ser evitada ou pelo menos deveria ser levada em consideração pela
política e pela lei (CORRÊA, 2005-2006, p.136).
Um exemplo da sua preocupação com a “garantia da ordem social” era o medo cons-
tante em ver acontecer no Brasil o que ocorreu no Haiti, que perpassa as suas obras e
é lembrado por ele às autoridades que o leem, utilizando o exemplo dessa república
como impossibilidade de organização do negro, mesmo os mais avançados, de alcan-
çar a civilização ariana e de se adequar totalmente à organização do branco (RODRI-
GUES, s.d., p.118,133).
Esse medo de um “novo Haiti” teria atravessado o período imperial, nos discursos da
elite escravista em debates sobre a abolição e o tráfico de escravos, e atingiu o início do
período republicano. Apenas a cinco anos do fim da escravidão, em 1883, Silvio Ro-
mero publica o texto “Joaquim Nabuco e a Emancipação dos Escravos”, nele defendia
a continuidade da escravidão, pois o negro era inferior, e portanto vencido na escala
etnográfica. Pelo fato do negro ser incapaz, não-civilizado, sem noção de liberdade, a
escravidão deveria continuar até ser superada economicamente pela implantação da
mão-de-obra livre do imigrante europeu. De acordo com Azevedo (2004, p. 60), a
grande preocupação de Romero era de que “o Brasil não é, não deve ser, o Haiti”.
Como Rodrigues era contemporâneo e leitor de Romero, e foi a ele que direcionou a
maior parte dos seus escritos sobre os negros, principalmente desenvolvendo críticas
sobre a pouca cientificidade e as conclusões de Romero. Dificilmente ele não conhe-
ceria esse texto. Fica a dúvida se foi através de Silvio Romero que o “medo do Haiti”
chegou ao médico maranhense. É também provável a influência do pai de Nina
Rodrigues na origem desse medo, sendo o Coronel Francisco Solano Rodrigues
senhor de engenho e proprietário de escravos. Contudo o nosso argumento é mais
abrangente, pois estamos mostrando que era um medo corrente nas elites brasileiras,
principalmente escravistas.
Para alguém, como Nina Rodrigues, que partilhava das ideias das teorias do “racismo
científico” e do “evolucionismo cultural”, o Brasil, a Bahia e Salvador não pareciam ter
afastado totalmente o perigo de uma revolta dos negros e mestiços, que continuavam
sendo a maioria pobre e não-proprietária. Esse medo em perder a ordem, medo do

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caos no qual a origem ele entende estar no negro e mulato, possivelmente, o faz pensar
o espaço de Palmares como um risco à civilização. Porém o risco não estava apenas no
passado, era presente e poderia se repetir num futuro próximo. O medo da paisagem
da revolução haitiana sobrepõe a sua escrita sobre Palmares, e o Quilombo é uma “pai-
sagem do medo” (TUAN, 2005).
Utilizando o exemplo do Quilombo dos Palmares como impossibilidade de organi-
zação do negro, mesmo os mais avançados, de alcançar a civilização ariana e de se
adequar totalmente a organização do branco (RODRIGUES, s.d., p.118-133). Esse
medo em perder a ordem, é o medo do caos no qual a origem ele entende estar no
negro e mulato. É a partir do medo que forma uma tensão na elocução metafórica,
unindo o Haiti com a sua história de independência e revolta negra no final do século
XVIII ao Quilombo ocorrido no século XVII.
Palmares parece ser um problema que Nina deveria enfrentar para que sua tese fosse
comprovada. Para explicar a impossibilidade momentânea de algumas raças negras de
se civilizar, ele deveria explicar o Quilombo. Aparentemente na visão de alguns autores
estrangeiros do início do século XIX – Ferdinand Denis, Robert Southey e Thomas
Lindley - teriam explicado Palmares por uma visão que caracteriza a sua luta por um
sentimento liberal, versão repetida por alguns membros da sociedade brasileira desde
o último quartel do XIX (REIS, 2004). Portanto o reduto negro era, para alguns,
exemplo da possibilidade de organização aos moldes dos brancos. Opondo-se a isso,
Rodrigues afirma que “acima dessa idolatria incondicional pela liberdade que pode,
em sua cegueira sectária, confundir coisas distintas e descobrir intuitos liberais onde
houve apenas o instinto de salvação, paira o respeito pela cultura e civilização dos po-
vos” (RODRIGUES, 2010, p.85). O que foi ou viria a ser o maior exemplo de organi-
zação do negro na América Portuguesa, tornou-se um problema para Nina Rodrigues.
Mesmo com o conhecimento de poucas sublevações, “de algumas se tem feito gran-
diosas epopeias da raça negra”, dentre elas o destaque é dado a Palmares, a maior delas
(RODRIGUES, 1904, p.663). Nina Rodrigues denominou Palmares de Troya Negra.
Para entender essa espacialidade, é preciso observar essa comparação com a cidade da
Frígia que aparece na Ilíada de Homero. Primeiramente, o próprio autor referencia
a origem da comparação, “Troya Negra chamou Oliveira Martins a Palmares e uma
Ilíada a sua historia” (RODRIGUES, 1904, p.663). O autor português lançou esse
epíteto em 1876, em Lisboa, no livro “O Brasil e as colônias portuguesas”. Inferimos
que não é uma mera questão estética a denominação adotada por Nina Rodrigues.
Ambos partiam das mesmas premissas provenientes da raciologia, em que as raças hu-
manas eram diferentes e obedeciam a uma hierarquia biológica e civilizacional. A ideia
de Oliveira Martins obedecia a um pensamento que acreditava ser positiva a instala-
ção dos negros em quilombos no interior da América Portuguesa, pois se estes negros
voltassem à África retornariam ao nível de barbárie inicial (REIS, 2004). Observe que,
nesse caso, Palmares é um espaço intermediário entre o espaço totalmente civilizado
dos Estados brancos e o espaço bárbaro das demais raças, assim como Tróia, que estava

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entre a civilização grega e a Ásia, sendo frequentemente pensada como bárbara pela
cultura histórica do século XIX e início do XX.
Nina Rodrigues adota essa concepção inicial sobre Palmares como espaço interme-
diário, no entanto, ele a transforma em algo mais complexo, quando estabelece hie-
rarquias raciais internas aos negros, distinguindo diversas raças dentro dessas escalas
hierárquicas de evolução – chamitas africanos, negros bantos, negros sudaneses e ne-
gros insulani. Tornando ainda mais complexo, as raças subdividem-se em povos “que
entre eles existem graus, há uma escala hierárquica de cultura e aperfeiçoamento” e
sofrem “diante da necessidade de, ou civilizar-se de pronto, ou capitular na luta e
concorrência que lhes movem os povos brancos, a incapacidade ou a morosidade de
progredir, por parte dos negros, se tornam equivalentes na prática” (RODRIGUES,
2010, p.290). Tornando assim os negros e mulatos naturalmente inferiores aos bran-
cos, uma vez que é impossível “conceder, pois, aos negros como em geral aos povos
fracos e retardatários, lazeres e delongas para uma aquisição muito lenta e remota da
sua emancipação social” (RODRIGUES, 2010, p.290). Mas também, entendendo-os
como inferiores e superiores entre si:

[...] se comparam os povos Bantos aos Sudaneses, tem-se a impressão de que,


através de toda a culta e sanguinária barbaria dos últimos, povos há no Sudão que
atingiram a uma fase de organização, grandeza e cultura que nem foi excedida,
nem talvez atingida pelos Bantos (RODRIGUES, 2010, p.297).

Na sua concepção, existia a raça hegemônica e superior como sua base e seu eixo, no
caso brasileiro a raça branca ariana.

4. TROYA NEGRA, UM
ESTADO AFRICANO BANTO
Voltando à Troya Negra de Nina Rodrigues, diferentemente de Oliveira Martins e dos
demais autores que se dedicaram a compreender Palmares, ele procura explica a organi-
zação social na composição racial do quilombo. Ocorre que, devido à complexidade de
sua visão raciológica, a compreensão do Quilombo como espaço intermediário acima
citado, é confuso e talvez subvertido. Palmares é compreendido como um espaço da
raça banto, não só porque ele identifica que em Pernambuco e na circunvizinhança o
tráfico de escravo importou mais negros de origem banto, mas principalmente porque
ele identificou nos relatos dos viajantes características culturais desse povo. Reconhe-
cer os bantos como hegemônicos não é a questão, o que se coloca como problemática
para se compreender a racionalidade que ele investe na reinvenção de Palmares, é per-
ceber o que Nina Rodrigues pensa por bantos dentro dessa visão do racismo científico.
Esse grupo da África Meridional é entendido como inferior aos demais negros, carac-
terizados por uma “pobreza mítica”, que, segundo Rodrigues, está “perfeitamente re-
conhecida e demonstrada” e lhes possibilitou adotar uma “caricatura da religião cató-

104
lica dos colonos” (RODRIGUES, 2010, p.97, 247). Essa interpretação é corroborada
pela documentação que demonstra “a existência, em Palmares, da capela e das imagens
católicas encontradas na sua capital Macacos e da igreja mencionada no Diário de Bla-
er não consente dúvida a este respeito, pois foi sempre absoluta a incompatibilidade
dos cultos católico e muçulmano”. (RODRIGUES, 2010, p.96) Aqui ele compreende
a impossibilidade de serem sudaneses os palmarinos. Sobre os palmarinos, ele afirma
que eram “negros fetichistas os que ali se congregaram, ou pelo menos os que deram
organização e governo a Palmares” (RODRIGUES, 2010, p.96). O antropólogo Ka-
bengele Munanga (2009, p.21), reconhecido especialista em negritude e na bibliogra-
fia sobre os africanos e seus descendentes no Brasil, percebeu que “Nina lança a ideia
da incapacidade psíquica das ditas raças inferiores para assimilar as elevadas abstrações
do monoteísmo”. Isso significa que para Rodrigues mesmo quando ocorre uma supos-
ta adoção do catolicismo, há a persistência do fetichismo africano como expressão do
sentimento religioso do negro e mestiço.
Segundo Nina Rodrigues (2010, p.101), a organização de Palmares era condizente
com a capacidade intelectual do povo banto: “podemos inferir que eram as tradições
da organização política e guerreira dos povos bantos a que os títulos dos seus gene-
rais e chefes repetiam de modo claro em Palmares”. Essa organização atingiu as áreas
política, econômica, cultural e social. É importante percebermos que as conclusões
dele sobre o fato de Palmares ser construída por bantos, baseiam-se principalmente
em elementos linguísticos e na localização do Quilombo – Serra da Barriga, na capi-
tania de Pernambuco. As conclusões sobre as organizações das comunidades africanas
é fruto do diálogo com a obra do coronel A. B. Ellis, o que Munanga (2009, p.25)
observou como “ignorância elementar” confiar tanto num trabalho realizado por um
agente colonial em situação de violência. Por último, para caracterizar o espaço como
característico da capacidade intelectual da raça negra ou banto, ele notoriamente parte
da teoria raciológica, da qual já falamos.
Podemos notar que ele entende Palmares como um Estado africano, pelo menos é as-
sim que ele apresenta nas partes iniciais dos dois textos, pois como “em geral nas cida-
des africanas”, a organização das “cidades de Palmares deviam ser verdadeiros agrupa-
mentos de pequenas vilas, quarteirões ou distritos, em que raças, povos ou famílias di-
versas, regidas por leis e costumes diferentes, muitas vezes se associam ou confederam”
(RODRIGUES, 2010, p.84). Ainda na mesma página, ele continua afirmando: “que
em liberdade os negros de Palmares se organizaram em um estado em tudo equivalente
aos que atualmente se encontram por toda a África ainda inculta”. No entendimento
dele, a “tendência geral dos Negros é a se constituírem em pequenos grupos, tribos
ou estados em que uma parcela variável de autoridade e poder cabe a cada chefe ou
potentado” (RODRIGUES, 2010, p.84).
Procurando afastar a “capacidade do negro” de se organizar socialmente da disposição
social da civilização branca, ele contrapõe-se às conclusões da obra de Rocha Pita que
foi publicada em 1727, a ideia de que Palmares foi uma “república rústica, mas bem
ordenada a seu modo” (PITA, 1724, p.474). Afirmou que o termo república só po-

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deria descrever Palmares como “acepção lata de Estado, jamais como justificação da
forma de governo por eles adoptada” (RODRIGUES, 1904, p.650). Acreditamos que
era inimaginável para ele naquele momento histórico conceber ao negro um nível de
civilização que a tão pouco tempo o Brasil havia conquistado, assim também como era
inimaginável que Pita quisesse dar um caráter de governo republicano ao Quilombo,
mas possivelmente a condição de res publica. Para Nina, o correto é compreender Pal-
mares como uma “monarquia eletiva”, pois cada vez “que aparece um chefe de maior
prestígio e felicidade na guerra ou no mando, esses pequenos estados se subordinam
a um governo central despótico que se pode considerar eletivo neste sentido de tocar
sempre ao que dá provas de maior valor ou astúcia” (RODRIGUES, 2010, p.85). Esse
tipo de organização, segundo ele, já havia ocorrido na história dos povos negros.
Em seus textos expõe determinados aspectos ou indícios de uma nova cultura e uma
nova organização em Palmares, que não se limitaria como africana ou de tradição
banta e que contradiria a sua proposição, porém ele ignora esses indícios confirmando
sua tese. Ele apresenta que na “cultura e polícia não consta que Palmares fosse além
da ordem estabelecida na direção da defesa interna e externa de onde procederam os
Zambis, os seus magnatas, auxiliares, mestres de campos e juízes, seus conselhos e as-
sembleias” (RODRIGUES, 2010, p.101). Uma organização política no mínimo pró-
xima da organização colonial, da qual os escravos fugidos e os homens livres tiveram
contato, independentemente de ser na África ou na América Portuguesa. Assim tam-
bém, ao descrever a economia, tornou-se impossível para ele conceber Palmares sem
aspectos que fugissem às culturas de povos isolados da cultura colonial: “não consta na
ordem industrial tivesse passado da aplicação agrícola e comercial, estritamente neces-
sária à manutenção do pequeno estado” (RODRIGUES, 2010, p.101). Essa aparente
contradição é submetida à racionalidade racialista2 que permeia o seu trabalho e o leva
a lançar mão da ideia de capacidade intelectual da raça negra e mestiça, para lidar com
essa aparente contradição, como ele mesmo fala sobre essas organizações: “tudo isto
em nada excede a capacidade dos povos bantos. Antes se pode afirmar que francamen-
te voltaram eles à barbaria africana” (RODRIGUES, 2010, p.101).
Ao entender o Quilombo de Palmares como um espaço banto, ele também está de-
finindo-o como um espaço inferior racialmente. Essa inferioridade se aplica a uma
hierarquia que está além da branco-superior em oposição ao negro-inferior. Ela diz
respeito à existência de hierarquias raciais e evolutivas entre as diversas raças negras.
No pensamento de Rodrigues, a luta e a sublevação palmarina, que é antes de tudo
a luta e a sublevação de um grupo banto, é resultado da inadequação dessas raças ao
espaço da civilização branca ocidental.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Quilombo dos Palmares foi o espaço compreendido pelas culturas historiográficas
das últimas décadas como parte da cultura nacional. Porém, aproximadamente um
século antes, quando Rodrigues se deparou com os relatos da organização de Palmares,

106
percebeu aquilo como um símbolo da inferioridade que não se adequou à civilização.
Troya Negra não teria, nesse caso, o significado “positivo” que foi colocado por Olivei-
ra Martins como um espaço intermediário entre a barbárie e a civilização. O reduto
dos negros foi um entrave, um inimigo do avanço civilizacional da nação brasileira. A
proximidade com a história da civilização grega não traz a Palmares uma visão positiva
do autor, ele nega a proximidade do Quilombo a uma herança da civilização. Exemplo
disso é uma crítica negativa feita aos historiadores entusiastas de Palmares que com-
param a atitude dos palmarinos de raptar as mulheres nos engenhos e fazendas com o
feito histórico do roubo das Sabinas, “para firmar, para os Negros, neste traço acidental
de fortuita parecença com os dominadores do mundo antigo, novo título de admira-
ção” (RODRIGUES, 2010, p. 82). Vejamos a sua louvação à destruição de Palmares:

A todos os respeitos menos discutível é o serviço relevante prestado pelas armas


portuguesas e coloniais, destruindo de uma vez a maior das ameaças à civilização
do futuro povo brasileiro, nesse novo Haiti, refratário ao progresso e inacessível à
civilização, que Palmares vitorioso teria plantado no coração do Brasil (RODRI-
GUES, 1904, p.652).

A Troya Negra de Nina Rodrigues é, antes de tudo, um inimigo da civilização, uma


paisagem do medo, um espaço construído pela racionalidade raciológica de inferio-
ridade do negro banto, um espaço que ameaçava a ordem social. Palmares lembrava
que o Brasil poderia ser um Haiti. Talvez seja pelo medo dessa lembrança que o termo
Troya Negra só apareça duas vezes nos seus textos: no início, ou melhor, no título e
quando é datada a derrota de Palmares, ou seja, no final - “Em 1695 estava pois, des-
truída a Troya Negra” (RODRIGUES, 2010, p.94. RODRIGUES, 1904, p.663).

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NOTAS
1 O termo “raciologia” que utilizamos aqui é como sinônimo de “racismo cien-
tífico” que é um campo muito mais complexo e que engloba várias modelos teóricos,
como: poligenismo ou monogenismo.
2 Racialista é também sinônimo de raciológica e de racialismo científico.

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