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(5,0 pene late ae MODINHA & LUNDU O presente estudo de Bruno Kiefer sobre as duas, mais importantes raizes da mésica popular brasileira — a mo- dinha e o lundu — visa, antes de mais nada, por clareza num assunto que tem dado origem a muita confusdo em virtude da precariedade dos dados historicos. Pesquisas mais recentes per- mitem,agora, tragar com mais preciséo as respectivas linhas de evolugao. Vé- se que o Autor rastreou estas pesquisas e se documentou amplamente sobre tio discutido assunto. Além de reunir e elaborar os dados historicos disponiveis, Bruno Kiefer procurou dar alguma contribuigdo pes- soal, seja pela interpretagdo de fatos discutiveis, seja pela andlise musical de numerosas modinhas e lundus — inclu- indo material folclorico — seja pelo es- tudo sucinto da importancia dos alu- didos géneros na obra dos composito- tes que fizeram 0 Modernismo em mi- ‘sica. Na verdade, modinha e lundu trans- cenderam, h4 muito, as categorias de misica popular, semi-erudita ou erudi- ta, para constituirem aspectos essenci- ais do nosso modo de ser, aspectos as disfargados, mas nem por isto menos presentes em manifestagdes mu- sicais com os mais diversos nomes. O presente estudo, é evidente, néo Lites esgotar o assunto focalizado. esta razao o autor insi portuno, temas de oe es A MODINHA E 0 LUNDU duas raizes da misica popular brasileira Colecdo Luis Cosme Volume 9 OBRA COMPLETA DE BRUNO KIEFER (ENSAIO) 1. MUSICA ALEMA (1957) — 2. ed. revista e aumentada. 2. HISTORIA E SIGNIFICADO DAS FORMAS MUSICAIS (1968) ~ 4. ed. 3. ELEMENTOS DA LINGUAGEM MUSICAL (1969) — 4. ed. 4. HISTORIA DA MUSICA BRASILEIRA (1976) — 3. ed. (Dos primérdios até 1922 — 1). 5. A MODINHA E O LUNDU (1978) — 2. ed. (Hist6ria da misica brasileira — I). 6. MUSICA E DANCA POPULAR — SUA INFLUENCIA NA MUSICA ERUDITA — 2. ed. (1979) (Historia da misica brasileira — III). 7. VILLA-LOBOS E O MODERNISMO NA MUSICA BRASILEIRA (1981) 2. ed. (Histéria da misica brasileira — IV) 8. FRANCISCO MIGNONE — VIDA E OBRA (1983) (Histéria da misica brasileira — V). BRUNO KIEFER A MODINHA E 0 LUNDU duas raizes da misica popular brasileira segunda edigao $ EDITORA MOVIMENTO A jor Capa Mério RUhnelt RevisSo ~/’ Myrna Bier Appel y K74h Kiefer, Bruno A modinha e o lundu, duas raizes da musica po- pular brasileira. /Porto Alegre/Movimento, Univer- sidade Federal do Rio Grande do Sul/1977/ 50 p., 9p. de musica ilust. 21cm. (Cole¢ao Luis Cosme, v.9) 1. Masica brasileira - Historia. |. Ttulo. Il. Sé- rie. CDD — 780.981 CDU — 78(091)(81) eee Indices para o catélogo sistematico 1. Histéria — Masica brasileira 78(091)(81) 2. Masica brasileira — Historia 78(091)(81) ee Catalogago elaborada pela bibliotecdria Ursula Nicklas CRB-10/328. 1986 Direitos reservados & Editora Movimento Repoblica 130 — F. 24.51.78 Porto Alegre — RS — Brasil SUMARIO Preambulo /7 A Modinha / 9 O Lundu / 31 PREAMBULO E fascinante a riqueza da misica criada pelas camadas populares do Brasil ao longo da histéria. Extremamente diversificada em géneros e formas, variaveis em fungdo da multiplicidade de regides freqiientemente isoladas en- tre si, seu estudo requer 0 espago grafico de alguns volumes. As pesquisas histéricas no campo da misica popular encontraram, e ainda encontram, um obstdculo muito sério: a auséncia de documentos musi- cais do século XVIII. No tocante ao século XIX as coisas melhoram 4 medida que o tempo avanga. Por esta raz, o pesquisador tem de se valer de docu- mentos literdrios, freqiientemente narrativas de viagens de estrangeiros pelo Brasil, atos de governos, cartas, etc. E ai as coisas so, as vezes, tio precarias e confusas, que o musicélogo é obrigado a realizar verdadeiras contorgGes inte- lectuais para poder chegar a algum resultado sempre ameagado de ser provis6- tio. Ao tratarmos de um fendmeno como a misica popular brasileira, ocor- re-nos outro que merece um exame atento. As dimensdes continentais de nos- so Pais, possuindo vastas regides culturalmente isoladas e desconhecidas umas das outras, facilitam no homem da cidade — onde se pensa a nossa cultura e onde esto localizados os centros de difusao de informagées - a impressio de “uma identidade entre os centros urbanos ¢ o Brasil. A produgao cultural, a ni- vel popular ou a nivel erudito, das cidades passa a ser tida como brasileira com todas as letras maitsculas, generaliza¢do que nem sempre merece maior exame. Pensamos que, neste sentido, toda cautela é pouca; freqiientemente torna-se necessdria uma adjetivagdo restritiva a fim de aproximar mais 0 pen- samento da realidade que, muitas vezes, é antes regional ou meramente urba- na do que nacional. { £ ponto pacifico entre os musicélogos que a modinha ¢ o lundu so as raizes principais da musica popular brasileira. \Nao so as tinicas, pois j4 no Pe- riodo Colonial e, pelo que se conhece, mais ainda no século passado, para nao falar do atual, tem havido invasdes de dancas estrangeiras e caracteristicas me- a lédicas que, no decorrer do tempo, acabaram sendo nacionalizadas pelo povo e muitas vezes misturadas entre si. Iniciaremos 0 nosso estudo com a historia da modinha e do lundu. A biografia de ambos tem inicio no final do século XVIII. Ha, no entanto, algu mas rcferéncias histéricas a uma danga, de origem brasileira, anterior aos pri- meiros documentos que falam da modinha € do luindy.Trata-se da fofa, dan- ¢a que se tornou popular em alguns centros urbanos da Colénia no século XVIII. Embora nascida no Brasil, essa danga teve maior divulgagdo em Portu- gal, a ponto de ser considerada por diversos viajantes como sendo “a danga mais caracteristica de Portugal”. No Brasil, a fof nfo durou muito, nem as- sumiu maior importncia historica. Mais detalhes poderdo ser encontrados no liveo Miisica Popular de Indios, Negros e Mestigos de José Ramos Tinhorao (Zed. - 1975), excelente na interpretagdo dos documentos histéricos. EON a ; i 5 y FE Pg @ =| Batuque em Sio Paulo Do Atlas para a Viagem pelo los de Iconografia da Miisica n nal, Rio de Janeiro, 1974 a 1 ARAUJO, Mozart de. A Modinha e o Lundiu no Séoulo XVIII, Ricordi Brasileira. Séo Paulo, 1963, p. 19. Brasil (1817-1820) de Spix e Martius — Extraido de Trés Séeu- ‘9 Brasil, publicado pela Seglo de Misica da Biblioteca Nacio A MODINHA {a raat WModinha é diminutivo de moda {Mozart de Araijo, estudando a origem da modinha no tltimo quartel do século XVIII, explica: TA palavra moda to- mou, no Brasil, duas acepgGes distintas: a genérica, indicando, como em Por- tugal, qualquer tipo de cangfo, e a de moda caipira, ou moda de viola, canta- da a duas vozes em tercas, ainda hoje em plena vitalidade em Sao Paulo, Mi- nas e Goids”.7 As idéias sobre a origem da modinha tém sido confusas. Qual teria sido © pais em que nasceu: Portugal ou Brasil? Hoje, no eatanto, Hiante do peso das argumentagGes de Mozart de Aratijo, ndo se pode mais duvidar: a mo- dinha é de origem brasileira.fOu mais precisamente: na origem da modinha (como misica e como palavra) encontra-se, conforme o estado atual das pes- quisas, um brasileiro, o padre mulato, poeta, compositor, cantor € tocador de viola, Domingos Caldas Barbosa, que deixou o Brasil por volta de 1770, apa- recerdo noticias a seu respeito em Lisboa a partir de 1775. Se Caldas Barbosa foi o inventor da modinha ou se partiu, em suas composicdes, de um substrato pré-existente no Brasil, nao pode ser decidido em vista da auséncia de documentos.{Tudo indica que: “... no bojo da sua vio- Ja o nosso Caldas Barbosa levou para a metrépole portuguesa a primeira ma- nifestagdo da sensibilidade e do sentimento musical do povo brasileiro - o lundu e a modinha”.} Domingos Caldas Barbosa (Rio de Janeiro, 1740? - Lisboa, 1800) nas- ceu no Rio de Janeiro, filho de pai branco e mie preta. Estudou com os jesui- tas. J4 no colégio chamava a aten¢do com as suas poesias; sua veia satirica, que nio poupava pessoas gradas, acarretou-lhe, como punicao, a vida militar e © conseqiiente afastamento para a distante Colénia do Sacramento, onde per- maneceu até 1762. Voltando ao Rio, deu baixa. Ao redor de 1770 deixou o Brasil, rumo a Portugal, onde passaria a gozar da protecdo dos irmfos do vi- 2- ARAUWJO, Mozart de. A Modinha e 0 Lundu no Século XVIL, Ricordi Brasileira. Séo Paulo, 1963, p. 28. 3 Idem, p. 46. 1. Com isto teve acesso 4s altas rodas sociais, as quais imprenin s e lundus, cantados a0 som da viola. As Gat dificaram sua atividade de trovador. Sa. Como poeta Arcade adotou 0 nome de Lereno Selinuntino. Sua Viol de Lereno, coletanea de poesias em dois volumes, ble varias edigdes a patti, de 1798, ano em que apareceu, em Lisboa, 0 primeiro volume. Tambémn ng Bahia apareceu uma edigao do 12 volume (1813). A produgdo de Caldas Bay bosa alcangou enorme popularidade. ; Segundo Mozart de Araujo, devemos a0 poeta portugués Nicolau To. lentino de Almeida a primeira referéncia literdria sobre a modinha, datando esta de 1779. Nos versos que seguem, 0 poeta indica claramente a origem da modinha: ce-rei do Brasi nava com as suas modinha: cras que recebeu 14 nao mot Ja d’entre as verdes murteiras, Em suavissimos acentos Com segundas e primeiras, Sobem nas asas dos ventos As modinhas Brasileiras,* Embora 0 poeta nao cite a autoria das modinhas, pode-se concluir, no entanto, que se trata das modinhas de Caldas Barbosa, pois ha uma testemu- nha importante neste sentido: Antonio Ribeiro dos Santos, portugués Doutor em Canones que, freqiientando os saraus onde cantava Caldas Barbosa, pode falar de observacao direta. Diz a seu respeito Mozart de Aratijo: “Ribeiro dos Santos certamente nao imaginou que o seu depoimento iria valer... como um atestado Unico... de que a introdugdo da modinha em Lisboa se deveu ao bra- sileiro Domingos Caldas Barbosa”.> Eis um trecho: “Meu amigo. Tive finalmente de assistir 4 assembléia de F... (D. Leonor de Almeida, Marquesa de Alora) para que tantas vezes tinha sido convidado; que desatino nfo vi? Mas nfo direi tudo quanto vi; direi somente que canta tam mancebos e donzslas cantigas de amor to descompostas, que corei de pejo como se me achasse de repente em bordéis, ou com mulheres de mi fa- zenda. Antigamente ouviam e cantavam os meninos cantilenas guerreitas, 4° inspiravam dnimo e valor; (...). Hoje, pelo contrario, s6 se ouvem cantigas * morosas de suspiros, de requebros, de namoros refinados, de garridices. Itoé 4- Idem p. 39. * $+ Idem p. 39. 10 com que embalam as criangas; o que ensinam aos meninos; 0 que cantam os mMOogos, € O que trazem na boca donas e donzelas. Que grandes maximas de modéstia, de temperanga e de virtude se aprendem nestas cangdes! Esta praga € hoje geral depois que o Caldas come¢ou de por em uso os seus romances, e de versejar para as mulheres. Eu nao conhego um poeta mais prejudicial a e- ducago particular e publica do que este trovador de Vénus e Cupido; a tafu- laria do amor, a meiguice do Brasil, e em geral a moleza americana que em seus cantares somente respiram as impudéncias e liberdades do amor, e os a- Tes voluptuosos de Pafos e de Citara, e encantam com venenosos filtros a fan- tasia dos mogos ¢ 0 coracdo das Damas. Eu admiro a facilidade da sua veia, a Tiqueza das suas invengdes, a variedade dos motivos que toma para seus can- tos; e 0 pico e graca dos estribilhos e ritornelos com que os remata; mas de- testo ve seus assuntos e, mais ainda, a maneira com que os trata e com que os canta”. O leitor julgue por sua conta o “‘pejo como se me achasse de repente em bordéis” do ilustre Doutor em C4nones, através da leitura desta modinha de Caldas Barbosa: Recado Ora adeus, Senhora Ulina; Diga-me, como passou; Conte-me, teve saudades? Nao, nito; Nem de mim mais se lembrou: O amor antigo Jé lhe passou, Ea fé jurada? Tudo gorou. Diga, passou bem no Campo? Divertiu-se? passeou? Acaso the fiz eu falta? Nao, nio; 6 - Apud Theophilo Braga. Filinto Elysio e os Dissidentes da Arcadia. Citado por Mozart de Aratijo em A Modinha e o Lundu no Século XVIII, p. 39. ll 12 Nem de mim mais se lembrou: O amor antigo Jé the passou, Ea fé jurada? Tudo gorou. Era bom o seu Burrinho, Ou somente a pé andou? Lembrou quem the davao brago? Nao, nao; Nem de mim mais se lembrou: O amor antigo Ja the passou, Ea fé jurada? Tudo gorou. Houve muita Contradanga E com quem contradangou _Lembrou-lhe este seu parceiro? Nao, nao, Nem de mim mais se lembrou: O amor antigo Jé the passou, Ea fé jurada? Tudo gorou. Cantou algumas Modinhas? E que Modinhas cantou? . = Lembrow-the alguma das minbas? Nao, néo; Nem de mim mais se lembrou: O amor antigo Ja the passou, Ea fé jurada? Tudo gorou. Ha de dizer, que eu lembrava, E que por mim suspirou; Nao hd tal: bem a conhego: Nao, nao; Nem de mim mais se lembrou: O amor antigo Ja lhe passou, Ea fé jurada? Tudo gorou.? Notemos que na quinta estrofe o poeta se declara autor de modinhas. E existe ainda o testemunho importante de Lord Beckford, Embaixa- dor da Inglaterra em Portugal, comensal da Rainha D.Maria I, em 1787. Em seu Didrio encontram-se frases como estas: “... 0 stacato monétono da viola (guitar) acompanhado pelo murmirio ténue e suave de vozes femininas can- tando modinhas, formava, em conjunto, uma combina¢ao de sons estranha e nao desagradavel”. E mais adiante: “Isto constituiu incentivo para que galgas- semos varios langos de escada, até os seus aposentos, que estavam apinhados de sobrinhos, sobrinhas e primos, aglomerados em torno de duas jovens mui- to elegantes, as quais, acompanhadas pelo. seu mestre de canto, um frade bai- xo e quadrado, de olhos verdes, cantavam modinhas brasileiras. Aqueles que nunca ouviram este original género de misica, ignoram e permanecerao igno- rando as melodias mais fascinantes que jamais existiram, desde os tempos dos Sibaritas. Elas consistem em languidos e interrompidos compassos, como se, por excesso de enlevo, faltasse o fOlego e a alma anelasse unir-se a alma afim, do objeto amado. Com uma inocente despreocupacao, elas se insinuam no co- ragdo, antes de ele ter tempo de se resguardar contra a sua sedutora influén- cia; imaginais saborear leite, mas o veneno da voluptuosidade é que vai pene- trando nos recessos mais intimos do ser. Pelo menos assim sucede aqueles que sentem a forca desses sons harmoniosos; eu nao respondo pelos animais fleug- miticos do Norte, duros de ouvido”® Mozart de Araijg canclui destes documentos e de outros com toda a razdo: “Diaate de documentos tao claros, legitimados pela circunstancia de serem subscritos por quem testemunhou as primeiras apresentagdes da modi- 7 - BARBOSA, Domingos Caldas. Viola de Lereno. Vol. I. Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1944, p. 8. 8 - ARAUJO, Mozart de. Obra cit. p. 41. 13 nha, na Lisboa dos fins do século XVIII, creio no haver mais razdo para perdure a afirmagao quase undnime dos autores lusos, de que ela Seja guesa, e nao brasileira,...° (0 grifo é nosso). — José Ramos Tinhorao defende a tese de que: “... se a partir de 1775 Caldas Barbosa jd aparece cantando suas modinhas em Lisboa, tais cangGes 56 podiam constituir auténtica musica popular da colbnia...”'° (grifo nosso). 4. duz, entre outros, o argumento seguinte: “Ora, tanto na vida de estudante quanto na militar, ou ainda na de boémia a que se entregou durante mais de dez anos, apds sua volta ao Rio, em 1762, todos os contatos de Domingos Caldas Barbosa terdo sido com mesticos, negros, pandegos em geral ¢ tocado- res de viola, e nunca com mestres de misica eruditos (que, por sinal, por essa época praticamente nao existiam no Brasil)”."" Deixemos de lado os referidos contatos com mestigos, negros e pande- gos depois de ter abandonado a vida militar, por serem puramente hipotéticos. Quanto 4 nao existéncia de mestres de mUsica eruditos no Brasil Colonia, a argumentacao é falha conforme mostramos em extensos capitulos do primei- ro volume. Em particular, no tocante ao Rio de Janeiro, Ayres de Andrade traz o testemunho do navegador francés Bougainville que por l4 andou em 1767 e que relata: “Em uma sala bastante bonita pudemos ver as obras-pri- mas de Metastdsio, representadas por uma companhia de mulatos, e ouvir va- rios trechos dos grandes mestres da Itdlia, executados por uma orquestra regi- da por um padre corcunda em vestes sacerdotais” '@ (grifo nosso). Além do mais, é preciso nao perder de vista que a Sé do Rio de Janeiro foi criada em 1676 e que, como era costume no periodo colonial, funcionava junto a ela um mestre de capela e um conjunto maior ou menor de misicos ¢ cantores (em 1798 esse posto seria ocupado por José Mauricio Nunes Garcia). Em 1784 fundou-se no Rio de Janeiro a Irmandade de Sta. Cecilia, o que im- plica ter havido um ndmero suficiente de musicos para justificd-la. E mais ain- da, segundo Francisco Curt Lange: “Em 1767, sendo elevado a Tenente Ge- neral, Bohm foi enviado como Comandante de todas as tropas do Brasil a0 Rio de Janeiro, permanecendo no seu cargo até 1782. A grande obra organi- oe 9 - Idem p. 42. / 1 10 - TINHORAG, José Ramos. Pequena Histéria da Musica Popular. Editora V Petropolis, 1974, p. 12. 11 - dem p. 12. 12 - ANDRADE, Ayres de. Francisco Cecilia Meireles. Rio de Janeiro, ‘ozes Ltda. Manoel da Silva e Seu Tempo. Vol. 1. Colegdo Sala 1967, p. 63. 14 zadora que Bohm realizou no exército brasileiro ndo poderia ter deixado de lado a musica militar, sendo quase seguro que nao s6 repertério, mas tam- bém os toques militares, foram trazidos da Alemanha e usados nos respecti- vos regimentos”'?, J4 ressaltamos em outro capitulo a importancia das “mu- Sicas” militares no que se refere ao cultivo dos instrumentos, importa¢ao e es- tudo do respectivo repertério, etc. E, finalmente, é preciso acrescentar a estes fatos que, desde 1763, 0 Rio de Janeiro era Capital do Brasil o que, além das conseqiiéncias adminis- trativas e sociais, tinha, sem divida, repercussao sobre a vida musical. A respeito da produgdo musical de Caldas Barbosa em Lisboa, no dlti- mo quartel do século XVIII, temos, por um lado, os ja referidos documentos literarios e, por outro, de uns poucos anos para ca, os manuscritos das Modi- nhas do Brasil, examinados por Gerard Béhague e atribuidos por ele, com grande probabilidade de acerto, ao compositor brasileiro. Ambas as fontes impdem a conclusao de que as modinhas em questo sao verdadeiras drias de corte, que se distinguem das modinhas portuguesas contempordneas (criadas abundantemente por influéncia de Caldas Barbosa) por caracteristicas indubi- tavelmente brasileiras (sobretudo ritmicas). Mais detalhes serio examinados adiante. O que importa, no momento, é constatar que desconhecemos um possivel substrato brasileiro, isto é, um género de cangdo definido, criado e popularizado no Brasil, no qual Caldas Barbosa pudesse ter baseado a sua pro- dugo.|Temos dois caminhos de interpretagdo dos fatos: ou Caldas Barbosa criou as suas modinhas a partir de um substrato pré-existente no Brasil(que seria desconhecido por nés) ou ele partiu de si mesmo fundindo, em suas mo- dinhas, elementos das arias de corte portuguesas com elementos brasileiros ainda difusos e nao cristalizados em géneros musicais especificos, Na op¢do por um ou outro desses caminhos é preciso nao perder de vis- ta que nao podemos retrojetar para o século XVIII as condigdes urbanas que haveriam de favorecer, posteriormente, em escala crescente, o surgimento da misica popular; mesmo no Rio daquele tempo, estas condigdes urbanas eram extremamente precdrias. E é de se pensar em que uma boa percentagem da populagdo era formada por escravos que constitufam um mundo 4 parte em relacdo 4 populagao branca, aspirando os mulatos, por outro lado, a se inte- grarem no mundo dos brancos, na medida do possivel. 13 - LANGE, Francisco Curt. A Organizagao Musical durante o Periodo Colonial Brasileiro. Separata do vol. IV das ACTAS do V Coléquio Internacional de Estudos Luso-Brasi- leiros. Coimbra, 1966, p. 22. 15 A modinha, que se divulgou nos saldes de Lisboa durante 0 dltimg quartel do século XVIII, é uma cangao essencialmente amorosa. Seus textos nao constituiam propriamente um género literario especifico. Diz a respeito Béhague: “Contrariando a opiniao de varios escritores, a modinha nao existia, na realidade, como forma literaria. O que os poetas autores de modinhas pre. tendiam era criar textos para peas musicais. (...). O proprio Caldas Barbosa caraterizou apenas uma de suas poesias como ‘modinha’ nos dois volumes da Viola de Lereno”\*. A historia da modinha do ponto de vista musical ficou enriquecida, re- centemente, pela revelagdo, em primeira mao, por Gerard Béhegue, de manus- critos cujo catalogo fora organizado pela diretora da Biblioteca da Ajuda (Lis- boa), Mariana Amélia Machado Santos. Trata-se de duas colegdes — MS 1595 e MS 1596 — respectivamente intituladas Modinhas e Modinhas do Brasil. A mais importante para a histéria da modinha brasileira é a segunda, “pois reve- la material até agora desconhecido ou, pelo menos, nao mencionado na litera- tura”, segundo Béhague. Prossegue 0 musicélogo: “A pagina de titulo indica Modinhas do Brasil sem nenhuma referéncia 4 autoria musical ou do texto. (...). O manuscrito contém trinta modinhas... Acredito fortemente que a grande maioria, se nao a colecdo toda pode ser atribuida a Domingos Caldas Barbosa” '®. Dois dos textos puderam ser identificados como sendo de auto- tia de Caldas Barbosa. A anilise dos textos que Béhague fez das Modinhas do Brasil permite destacar os seguintes aspectos: \Na maioria destas Modinhas Brasileiras encontram-se elementos que sugerem fortemente 0 estilo de Caldas Barbosa — o primeiro de sabor genui- namente brasileiro, segundo Manuel Bandeira. O poeta cultivava a linguagem mais tipicamente popular do Brasil, até mesmo abusando de metéforas, dos diminutivos to comuns no portugués brasileiro, inventando palavras de sabor tipicamente tropical ou usando palavras especificas de origem claramente afro -brasileira”'®, 7 No tocante a misica, o autor observa que todas as modinhas dessa cole- ¢4o sao “modinhas a duo”, com linhas melédicas em tergas ou sextas parale- 14 - Béhague, Gerard. Biblioteca da Ajuda (Lisbon) MSS 1595/1596: Two Eighteenth-Cen- tury Anonymous Collections of Modinhas. IN Anuario, Tulane University, vol. IV. p. 47. 15 - Idem p. 54. 16 - Idem p. 56. 16 las, sugerindo, no acompanhamento, a guitarra (viola). A maioria dos compas- sos é de 2/41 O aspecto que mais impressiona é a profusao de sincopes internas (se- micolcheia - colcheia - semi-colcheia) nas linhas melédicas e, freqiientemen- te, também no acompanhamento. Este fato levou Béhague a qualificar a cole- ¢a0 como sendo”... a tinica fonte revelando um cardter genuinamente brasilei- To, textual e musicalmente. Este cardter musical ndo se encontra, conforme sugestao de Mozart de Aratjo, num determinado estilo melédico que perma- nece andlogo ao das modinhas portuguesas, mas no seu impulso ritmico vital que caracteriza a maior parte da musica popular urbana do Brasil” '?. Béha- gue, naturalmente, refere-se aqui 4 musica popular do século XIX para ca. O autor conclui ainda que estas modinhas nao apresentam os tracos ritmicos ca- racteristicos da misica folclérica e popular encontrados no lundu, afirmacao que, a nosso ver, nao esta de todo correta. A anilise que pudemos fazer das Modinhas do Brasil r° 16, 17 18, le- vou-nos a conclusao de que, de fato, a construgdo melédica, deixando de lado seus ritmos, nao se distingue, de uma maneira geral, das modinhas portugue- sas contemporaneas; tampouco apresenta as caracteristicas gerais que consti- tuem a esséncia da modinha brasileira romantica. O que ha de mais brasileiro nessas modinhas — ¢ nisto concordamos com Béhague — é a profusao de sin- copes internas nas linhas melédicas. Na modinha r® 16, contudo, aparecem alguns elementos melédicos que fazem pensar em nossa misica folclorica, sobretudo na do Nordeste. Assim, por exemplo, aparece ai, logo no inicio, uma auténtica incursio pelo modo mixolidio (modo medieval que corresponde 4 escala de dé maior com o séti- mo grau abaixado), to comum na misica folclérica nordestina. O que mais aproxima as Modinhas do Brasil da futura modinha brasilei- ta, romantica, é a relativa freqiiéncia das cadéncias femininas. Aqui, porém, estas cadéncias tem a peculiaridade de serem realizadas, na maioria dos casos, nao por simples apojaturas superiores, mas sim por antecipagGes destas me- diante valores em semicolcheia. O efeito é quase o mesmo — com um qué a mais. Os esquemas harménicos sao pobres. Também no plano modulatério nao encontramos ainda as caracteristicas da futura modinha brasileira. E mes- mo a abundancia de sincopes intemas é atipica da modinha do século passado. 17 - Idem p. 68. 17 Por outro lado, é indubitavel que Caldas Barbosa pagou o tributo a0 bel canto. A abundancia de ornamentos melédicos 0 atesta, distanciando a sua produgdo de uma musica que pudesse ser chamada de popular. Além do mais, a profusdo de ornamentos melddicos desvirtua, fatalmente, a singeleza, trago essencial da modinha do século passado (embora nem sempre realizado em sua pureza). Também no tocante aos esquemas formais e ao tratamento musical dos versos, notamos uma diferenga com a modinha do século passado. O sucesso de Domingos Caldas Barbosa incitou numerosos autores por- tugueses a comporem modinhas. Como, na época, Portugal estava sob o do- minio do melodismo da Opera italiana, nao é de estranhar que: “Sob tais in- fluéncias a modinha comecou a perder sua simplicidade original, evidenciada por uma elaboracdo severa da linha melédica com uma ornamentagao tipica e superficial”. 18 De nossa parte, propomos a questo: tera havido, realmente, esta simplicidade original da modinha? E temos ainda a influéncia do melodismo de compositores famosos na época: Gluck, Mozart, etc. Destacamos aqui apenas um dos compositores portugueses de modinhas, por ele ter atuado largamente no Brasil: Marcos Portugal, que musicou inclu- sive poesias de Caldas Barbosa, tais como Raivas Gostosas, A Doce Uniao do Amor, ¢ outras. Mozart de Araijo conseguiu situar a composi¢ao dessas mo- dinhas entre 1785 e 1792. Certamente, a vinda da corte portuguesa muito contribuiu para a difu- so da modinha nos sales da nossa terra. E deu-se entéo um fato notavel: a modinha, originalmente misica de salao, irradiou-se rapidamente para as ca - madas populares. Se anteriormente 0 cravo € depois 0 piano tinha substituido a viola, entra agora em cena o violao que assumiria, junto com o instrumento de teclado, um papel importante nos acompanhamentos. Leiam-se, neste sen- tido, as Memorias de um Sargento de Miltcias, de Manuel Antonio de Almei- da, notavel pela descri¢do dos costumes na época de D. Joao VI. Embora digno de nota, 0 fato nfo é estranhavel. Em toda a hist6ria da misica européia observa-se um fluxo e refluxo de elementos musicais entre 0S aiveis popular e erudito. Sem pretender examinar 0 assunto, mencionamos a penas a dimensao vertical da musica (harmonia) que, inventada e desenvolvi- 18 - Idem p. 53. 10 Cépias de MS45q6 encentream-se ne Bibl. Nacienal-Rio 19 = Le he descanse ¢ nae he] s6—— des|—canse q nee he] sp . z i descanse gq! nad hel so des}—canse qi nad he! se Let —s fe Le fe le ah mee] bem 20 = x = — descanse qi nad he] so des|—canse qi nas he| 55 ce . a descense y raehe) se Saas des|—canse : nas he] se be te! mag cutpe ———— 7 ? =| 20 prea da em altas esferas eruditas, acabou por tornar-se rotina na musica popular. Exemplo notavel do que constatamos acima sdo as modinhas de Joa- quim Manoel, compositor popular carioca, descobertas por Mozart de Aratijo em 1966 na Biblioteca Nacional de Paris. A estranheza que 0 local da desco- berta possa causar, desapareceré quando se observa que as harmonizages das mesmas so devidas a Sigismund Neukomm 0 qual, depois de alguns anos de atividade entre nds, passou a residir em Paris (1821). Joaquim Manoel foi um mUsico popular que nada entendia de musica em seus aspectos tedricos. Tudo que fazia era orientado por um instinto mu- sical fora do comum. Disse a respeito dele o viajante francés Louis de Frey- cinet, hdspede do Rio de Janeiro em 1817 e 1820. “., quanto a execucdo, nada me pareceu mais espantoso do que 0 raro talento na guitarra de um outro mestigo do Rio de Janeiro, chamado Joa- quim Manoel. Sob os seus dedos o instrumento tinha um encanto inexprimi- vel, que nunca mais encontrei entre os nossos guitarristas europeus, OS mais notaveis. Esse mUsico é também o autor de varias ‘modinhas’, género de ro- mangas muito agradaveis, das quais M. Neucum (sic) publicou em Paris uma coleténea”.'9 Ao entusiasmo do estrangeiro Neukomm pela musica popular brasileira do inicio do século passado, corresponde o de outro estrangeito, também compositor famoso, Darius Milhaud, um século mais tarde, As modinhas de Joaquim Manoel talvez sejam as primeiras de origem popular no Brasil. As que pudemos examinar, enquadram-se sensivelmente nas caracteristicas gerais da modinha brasileira do século passado. Sdo modi- nhas para canto solista como convém a um género de cancao que é expresso do sentimento amoroso. O duo vocal desvirtua tanto a simplicidade, como o carater de intimidade. Aquilo que podemos chamar de sentimento modinhei- 10, tipico do modo de ser brasileiro - e que se realiza talvez menos por ele- mentos ritmicos do que melédico-harménicos - surge em Joaquim Manoel com forca impressionante. A independéncia do bel canto, no entanto, nao é total. 19 - ARAUJO, Mozart de. Sigismund Neukomm. IN: Revista Brasileira de Cultura, n° 1. Conselho Federal de Cultura. Rio, 1969, p. 69. 21 aay re, aS a SSS 22 A andlise a que submetemos algumas dezenas de modinhas brasileiras do século passado permitiu-nos observar um conflito entre a heranga européia (arias de corte cultivadas em Portugal no século XVIII; 6pera italiana do sécu- lo XIX) e a vontade de expresso musical, em termos romanticos, do nosso modo de sentir as coisas do amor. Concordamos plenamente com Mario de Andrade quando diz: “Por tudo isso a gente percebe o quanto a nossa Modi- nha de salo se ajeitava 4 melédica européia e se nacionalizava nela e apesar dela”20, O estudo comparativo permite-nos formar a imagem daquilo que seria a esséncia musical da modinha brasileira urbana, esséncia musical de um modo de ser especificamente nosso em termos de sentimento amoroso. Claro, essa esséncia nem sempre se realiza de um modo puro. Muitas vezes apenas é pos- sivel vislumbré-la no matagal de oramentos do bel canto ou de outras remi- niscéncias operisticas. Eis alguns aspectos da modinha. 20 - ANDRADE, Mario de. Modinhas Imperiais. Sao Paulo, 1964. Livraria Martins Editora, p.7. 23 Do ponto de vista d i a tonalidade, os mod: i dem-se aproximadamente. ee Cortespon. Predominam os esi i juemas f es quemas formais AABB e AABB-refrdo. A misica . : posta para uma quadra, com ou sem refrdo, de tal modo : versos 1 e 2 corresponde a parte melédi ; = oa. Pi ica A € aos versos 3 e 4 a parte me. ; No estribilho acelera-se, as vezes, 0 andamento. Ha outros esquemas ‘ormais ainda, alguns mais sofisticados, com introd 6s-lidi | > . lugdo I] it ae go e pds-lidio instru. _ Os planos de modulagao caraterizam-se, no modo menor, pela quase au- séncia do tom da dominante (que seria mais afirmativo, mais luminoso), pre- valecendo as modulagées I-IV; L-rel.- IV; LIV - rel. (mais sombrias). No mo- 7 maior as modulagdes para 0 tom da dominante sio um pouco mais fre- | qiientes; so muito comuns as do tipo I-IV; I-VI, sem aparecimento do tom da dominante. Nao sao raras as substituigdes de tons por seus hom6nimos. Quanto aos compassos, predominam os quaternarios (ou bindrios), se- guindo os terndrios; as vezes se encontram mudan¢as de compasso de binario para ternario. Entre as caracteristicas mais marcantes situa-se o freqiiente uso de ca- déncias femininas com apojatura expressiva superior, simples, sem notas repe- mesmo fragmentos me- _ tidas, nos finais de frases, membros de frases, incisos e nores. Como variante podem-se considerar as apojaturas superiores brandas. © Os fragmentos melédicos sao geralmente curtos, separados por pausas. Predominam as Jinhas melédicas descendentes (nossa tristeza! ). O inicio des- sas linhas é atingido, com muita freqiéncia, por saltos ascendentes aprecidveis ou por poucas notas harpejadas ascendentes (verdadeiros suspiros). Estas caracteristicas mel6dico-harménicas (mais importantes do que as mitmicas), cuja significa¢ao é facil de imaginar, conferem 4 modinha singeleza, intimismo, dogu1a, saudade. Modinha: uma seqiiéncia de suspiros amorosos. . O delicado sentimento que s¢ expressa na modinha esta longe da grandilo- quéncia das arias de Opera italianas e de seu carater extrovertido ¢ enfatico. Voltamos, porém, 2 insistir em que, mesmo considerando apenas © me thor da produgao modinheira do século passado, nem sempre a sua esséncia - realizada de um modo puro. Freqientemente a sombra do bel canto, a seus ormamentos yazios e seu gosto pelas acrobacias vocais, prejudicam 7 : i 3 e o intimismo. E nio so poucos os casos em que OS empréstimo® ea ‘talianas tumultuam © nosso modo de sentir. Alids, perigos? & geleza rias de Operas i 24 neste sentido foi Rellini, cujas melodias suaves e melancdlicas encontraram a- qui, por afinidade, modinheiros submissos. Ayres de Andrade, descrevendo a temporada lirica do Rio em 1845 afirma: “Rossini cede a Donizetti e Bellini a primazia que vinha ostentando nas temporadas. O resultado foi que Bellini, com a melancélica suavidade de suas melodias, tio condizente com a sensibi- lidade do brasileiro, passou a influenciar os trovadores do Pais, a tal ponto que no repertério da modinha brasileira nao sfo raras aquelas que parecem provir diretamente das dperas de Bellini2" ”. Encarando a enxurrada de modinhas do século passado, cabe perguntar com Mario de Andrade: “O que foi essa pandemia como valor musical? ” Sua tesposta é incisiva: “O maior mistifério de elementos desconexos. Influéncias de toda casta, vagos apelos raciais, algumas coisas boas, um poder de ruins e péssimas, plagios, adaptagGes, invengdes adoraveis, apenas conjugadas num i- deal comum: a dogura”. 22 Examine-se, por exemplo, A Hora que nao te Vejo de Candido Inacio da Silva (Rio, 1800 - Rio, 1838), considerado por Manoel de Aratijo Porto Alegre como “um dos mais distintos compositores nossos”2°, para encontrar af elementos bem caracteristicos da modinha, porém parcialmente prejudica- dos pela influéncia operistica. Candido Indcio foi discipulo de José Mauricio, cantava no coro da Capela Real e atuava, mais tarde, como tenor, violinista e compositor de modinhas, valsas, hinos e pegas para orquestra. Fora disto, sa- be-se bem pouco a respeito de sua vida. Ou entio este outro exemplo: Que Noites Eu Passo, recolhido por Ma- tio de Andrade que encontrou, nesta modinha, forte manifestagdo popular. Adhemar da Nobrega, em data mais recente, atribuiu a sua musica a AJ. S. Arvelos que, junto com seu irmao Janudrio e seu pai Janudrio da Silva Arve- los, formava um trio de musicistas cariocas que alcangaram, em meados do sé- culo passado, notoriedade. Embora nem todas as caracteristicas apontadas an- teriormente estejam presentes nessa modinha, nem por isto as saudades cho- radas pelo poeta sio menos expressivas. Indmeros sfo os compositores de modinhas no século passado: erudi- tos, semi-eruditos, populares, compondo e cantando ao som do violdo ou do 21- ANDRADE, Ayres de. Obra cit., vol. IL, p. 8. 22- ANDRADE, Mario de. Obra cit., p. 5. 23 - ANDRADE, Ayres de. Obra cit., vol. II. p- 227. 25 piano, nas ruas € 10s saldes, no Rio de Janeiro, na Bahia, no Recife Paulo e outras cidades pelo Pais afora. Pensamos que valeria o esfor em Sa quisa no sentido de selecionar exemplos Tepresentativos e de ublcg.® Pes. forma de antologia, ampliando assim a colegdo publicada por ‘los drade mas hoje esgotada. S6 alguns nomes de modinheiros da Bahia: Domingos da Rocha surunga; Padre Pinto da Silveira Teles; José de Sousa Aragio; José Brno” reia, Xisto Bahia e outros. ‘Or O mulato Xisto Bahia (Salvador, 1841 - Caxambu, 1894) 6, *m dy da, a figura maxima desse conjunto. Sua atividade situa-se na segunda me _ do século passado. “Sobre todos esses criadores ia pairar, no entanto, a fu, de um compositor completo, cuja ago, estendendo-se da Bahia ao Rio de iE neiro, e cuja criago, aliando o popular as parcerias com intelectuais como Arthur Azevedo, resumiria toda a trajetria da modinha do plano erudito ag violdo do povo. Tratava-se do ator, cantor e violonista Xisto Bahia”24_ EGut lherme de Melo, baiano, autor da primeira Histéria da Musica no Brasil, fala com entusiasmo do compositor: “Porém, o que mais nos deve causar admira. ¢Go em Xisto Bahia era a pujanca de seu estro musical sem conhecer uma sb nota de misica!””25. E acrescenta: “Pela andlise do Quis debalde Varrer-te da Memoria, verdadeira epopéia de seu sentimento lirico, vé-se com que delica- deza ele percorria todas as gradagdes do sentimento melddico... Nao haverd de certo no mundo artista nenhum que desdenhe assinar 0 seu Quis Debalde, uma vez que no género ele em nada é inferior aos seus similares”. 26 No Rio de Janeiro do século passado os compositores de modinhas for mam legiao: José Mauricio Nunes Garcia (Beijo a Mao que me Condena, ain- da pouco brasileira); Francisco Manoel da Silva; M.S. de Soiza Queiroz; M. Pi- menta Chaves; Francisco da Luz Pinto; G.F. da Trindade; Carlos Gomes (710 Longe de Mim Distante, etc.) Henrique Alves de Mesquita; e muitos outros. A modinha continua sendo cultivada no século XX, em termos popul: Tes e eruditos. Como exemplo do primeiro caso citamos Catulo da Paixdo Cearense 0 qual, segundo Tinhorao, “‘passava a oferecer a modinha popular como um espeticulo curioso ante o piiblico das grandes familias dos bains Ne eee scmaema 24- TINHORAO, José Ramos. Obra cit., p. 20. 25- MELO, Guilherme 2. ed. p. 229, 26 - Idem p. 229. 26 Mario de Ay, : “9, 1947: de. A Miisica no Brasil. Imprensa Nacional. Rio de Janel" 1 oe do Rio de Janeiro, apresentando-se com seu violio, vestido de casaca”“". De resto, Catulo é considerado melhor poeta do que misico... Do terreno da misica erudita trazemos aqui apenas alguns exemplos de realizagdes puras do que pensamos ser a esséncia da modinha romantica bra- sileira. So intimeras as modinhas, vocais e instrumentais, compostas no sécu- lo XX por autores eruditos. A escolha dos exemplos nio teve nenhuma inten- Gao classificatéria do ponto de vista estético; visamos apenas ilustrar. Barroso Neto (Rio de Janeiro, 1881 - Rio de Janeiro, 1941). Diz dele Vasco Mariz: ”... foi virtuose do piano, professor disputado (Instituto Nacio- nal de Musica), mas ndo o posso considerar grande compositor” “8. Nao obs- tante, sua Cangao da Felicidade, bastante conhecida, é uma expresso feliz do espirito modinheiro. Jaime Ovale (Belém do Para, 1894 - Rio de Janeiro, 1955). Na mocida- de foi seresteiro e tocador de violdo. Sua vida profissional foi dedicada a De- legacia do Tesouro Brasileiro, primeiro em Londres, depois em Nova lorque. Sua obra musical é pouco extensa. Tornou-se famoso quase exclusivamente devido a uma pequena cangdo (voz e piano) sobre poesia de Manuel Bandei- ta: Azuléo. Esta pequena jéia, no entanto, ndo deve desviar a ateng4o de ou- tra cangdo, um verdadeiro achado, que é a sua Modinha (op. 5). Encontramos nela, realizado por intui¢ao artistica, o que nenhuma anilise estatistica dos elementos constitutivos das modinhas do século passado poderia nos dar (em- bora nao desprezemos tal recurso): a esséncia pura e romantica da modinha brasileira. Lorenzo Femandez deu-nos uma verdadeira modinha instrumental em sua pega para piano intitulada Moda (da 2° Suite Brasileira), bem melhor, neste sentido, do que-sua Velha Modinha (da 1° Sutte Brasileira). Villa-Lobos compés com seu Lundu da Marquesa dos Santos antes uma bela modinha do que um lundu. Sua Modinha merece bem este nome na pat- te vocal (Seresta n° 5). Deixamos de lado as modinhas que se encontram nas Bachianas, por serem demasiadamente conhecidas. De Francisco Mignone citamos, como exemplo, Dentro da Noite, pata canto e piano, com versos de Manuel Bandeira, um primor de modinha. E ainda uma vista de olhos sobre a modinha folclorica. A andlise dos numerosos exemplos publicados no 1° volume de melodias folcléricas, intitu- 27- TINHORAO, José Ramos. Obra cit. p. 28. 28-MARIZ, Vasco. A Cangao Brasileira. Ministério da Educagdo ¢ Cultura — Servicgo de Documentagao. Rio de Janeiro, 1959, p. 51. 27 Ts F Modinhe fotctércea™ SSS eS ee Que sorte que sina cru-et do men rare Vi- ver se-pa- 7. Sa Tarde dum onjo fi- st! Quimpertac he-Leya Da verde con. = SS pina Sea flor purpu-ri-na Tem calice de fel? 2.-Tarde, hem tarde, 3: Tarde, bem tarde, 0 wdat que the $63; Por eta a chamar: Eafonte, se sabe, Ninguim respondia, ——Cheranda née dig, —__Mt_pas-_e-chorars—— Mecani Hreuive FolcLorice de Discotece Puletica en _ —— ee Melodias Registradas por Meios Nao-Mecénico: jr co pac Publica Municipal de Sao Paulo ( 1946), mee a minio do compasso 3/4. Deve-se isto 4 influéncia da valsa. Diz Mario ae drade: “Esta moda ja vai passando, e com efeito, embora ainda aa pelos modinheiros populares mais simples, mais inconscientes do rin da vida, sfo raras as modinhas-valsas novas. A discografia nacional comprova ja sintomaticamente esse desaparecimento da modinha-valsa”.29 Como nas melodias urbanas, encontramos também aqui um largo pre- dominio das cadéncias com apojaturas expressivas Superiores ou alguma va- riante que da, praticamente, o mesmo efeito. Predominam também as linhas melédicas descendentes e os tipicos saltos ou harpejos ascendentes. Em maté- ria de modos, sobrepuja o menor. Interessante é que, ao contrario da modi- nha urbana, os fragmentos melédicos curtos so mais raros. Mais um exem- plo de modinha folclérica: Casinha Pequenina, conhecida por todo o mundo. Nao podemos deixar de encerrar este breve capitulo sobre a modinha sem citar estas palavras incisivas de Mozart de Araijo: “Dizem que a modi- nha morreu. Ela ndo morreu porque jé nao é mais uma cangdo, mas um esta- do de alma. Ela esta na propria esséncia emotiva da nacionalidade”.° J4 0 Caldas Barbosa sabia disso: Ah nhanha venha escutar Amor puro e verdadeiro, Com preguigosa dogura Que é Amor de Brasileiro. Gentes, como isto Cia é temperado, Que sempre o favor Me sabe a salgado: Nos Id no Brasil A nossa ternura —=eeee 29- ANDRADE, Mario de. IN Melodias Registradas por Meios Néo-Mecdnicos, Arquivo Folelérico da Discoteca Municipal. Sao Paulo, 1946, vol. I, p. 47. 30 - ARAUIO, Mozart de. A Modinha e 0 Lundu no Século XVI, p. 49. 29 A agticar nos sabe, Tem muita dogura, Oh | se tem! tem. Tem um mel mui saboroso E bem bom, é bem gostoso.”" 31 - BARBOSA, Domi : A Domingos Caldas. Viola de Lereno. vol. I, p- 33. 30 secant tbo O LUNDU As idéias sobre a origem do lundu tém sido as mais confusas Ppossiveis, gssemnelhando-se a situagdo 4 da modinha. Gragas as pesquisas de Mozart de Arasjo, porém, uma série de equivocos puderam ser desfeitos, situando-se ho- je o inicio da biografia do lundu em bases mais precisas. A historia apresenta diversas variantes da palavra lundu: lundum, landu, Jondu, londum, landum. : Infelizmente n@o ha documentos musicais que ajudem a esclarecer a pré-historia do lundu, seja como danga, seja como cangdo; também aqui o pesquisador é obrigado a valer-se de documentos literdrios, tais como relatos de viajantes estrangeiros, cartas, atos de governos, etc. E ponto pacifico, hoje, que o lundu descende diretamente do batuque dos negros. A palavra batuque, segundo José Ramos Tinhorao, tem sido apli- cada tradicionalmente e “‘com sentido genérico a todos os ritmos produzidos aq” 1 Abase de percussio”. JA nos referimos, no primeiro volume’ 4 resisténcia oposta pelas autori- dades colonizadoras e pela igreja as dangas dos negros. Diante do insucesso dessas medidas repressivas — é bom levar em conta, também, que sempre no- vos contingentes de negros vinham ao Brasil — a metrépole acabou se conven- cendo de que seria de melhor alvitre contemporizar a fim de evitar males maiores. J4 estamos, nesta altura, no tltimo quartel do século XVIII. Com efeito, ha um documento importante para elucidar os fatos. Tra- tase da Carta de 10/6/1780, dirigida por D.José da Cunha Gra Athayde e Mello, Conde de Pavolide, ex-administrador de Pernambuco e, na época, resi- dente em Lisboa, a0 Governo portugués, por solicitago deste, fundada em denincias vindas da Colonia. O Conde, ao prestar as informag6es solicitadas sobre fatos de seu conhecimento, faz af a mais antiga referéncia ao lundu no a 1 - TINHORAO, José Ramos. Miisica Popular de Indios, Negros : Ltda. Petropolis, 1975, 2. ed. p. 129. . KIEFER, Bruno, Histéria da Miisica Brasileira. Porto Alegre, Movimento, ¢ Mesticos. Editora Vozes 1976. 31 Brasil, ou mais precisamente, distingue entre as dangas africanas dos outras dangas, estas visivelmente influenciadas pelas primeiras, mas wise radas com dangas européias. “Os pretos divididés em nacdes ¢ fe hi ‘ mentos proprios de cada uma, dangam e fazem voltas como arlequins a0 tros dangam com diversos movimentos do corpo, que, ainda que nao stam, ntes, so como OS fandangos em Castela, e fofas de Portugal, : dum dos brancos ¢ pardos daquele pais...”.? Em consequéncia dessas informagoes, 0 Governo da metrépole daixo um Aviso a0 Governador de Pernambuco informando: “...que Sua Mejestade ordenava que ndo permitisse as dangas supersticiosas ¢ gentilicas; enquanto jy ainda que pouco inocentes, podiam ser toleradas, com o fim de este menor mal, outros males maiores”. Tinhorao conclui daf, com toda razao, que “‘a partir de entio, o crité. rio das autoridades seria 0 de fazer substituir as ‘dangas supersticiosas e genty. licas’ por aquelas que (...) prometessem uma sintese com a milsica e danga trazidas da Europa pelas camadas mais baixas do povo colonizador”.‘ Claro, esta sintese nao iria comegar a partir do referido Aviso; teve inicio, certamen- te, em periodo anterior, a0 longo do século XVIII, nos principais centros ur. banos da Coldnia. Quanto 4 danga européia que mais se destacou como elemento de fu- sio, afirma Tinhorio: “... 6 de admitir-se que, de todos os géneros de dangas européias, ia ser mesmo na danga do fandango que os negros do Brasil acaba- riam encontrando — tal como ja havia acontecido com os negros da metropo- le — os maiores pontos de contato para um novo capitulo no proceso de = culturagao”.5 Na realidade, foi apenas a coreografia do fandango (cujo compasso 3/4, na época, entrava em conflito com o 2/4 dos negros) que se superpos a danga dos negros. Informagées mais detalhadas a este respeito encontram-se nas famosas Cartas Chilenas do poeta Tomas Anténio Gonzaga. Estas come¢a! lar pouco depois dos acontecimentos que acabamos de referir, Conde de Pavolide, transom VIII. Ricordi Bs ae ae mais indect + Olu. dos pretos, evitar-se, com ram a cifcu- ow seja, em 2 - Trechos da Carta de D. José da Cunha Gra Athayde ¢ Mello, tos por Mozart de Araiijo IN: A Modinha e o Lundu no Século X) Sao Paulo, 1963, p. 55. 3 - Transcrito por José Ramos Tinhorao na obra cit., p- 130. 4- TINHORAG, José Ramos. Obra cit., p. 130. 5 - Idem p. 130. 32 1787. A excelente interpretacdo desses textos, feit, ae ‘a por Ti Ke isica FOU Jar de Indios, Negros e Mesticos, Por Tinhordo em sua oO Ha Permite tirar as Seguintes conclusdes: } — na época em foco, o lundu é uma adatacao da Coreografia do f: dango a0 batuque dos negros, tealizada por brancos; tanto o ritmo an smbigadas permanecem africanos; 2 — havia uma certa confusao entre os termos batuque e lundu nos til. timos vinte anos do século XVIII; 3 — 0 aparecimento do lundu nfo eliminou o batuque em sua forma primitiva. A fim de fornecer aos leitores mais detalhes, transcrevemos um trecho da 11% Carta de Tomas Antonio Gonzaga: Fingindo a moga que levanta a saia e voando na ponta dos dedinhos, prega no machacaz, de quem mais gosta, a lasciva embigada, abrindo os bragos. Entdo 0 machacaz, mexendo a bunda, pondo uma mao na testa, outra na ilharga, ou dando alguns estalos com o's dedos, seguindo das violas 0 compasso, the diz — “eu pago, eu pago” — e, de repente, sobre a torpe michela atira o salto. O danga venturosa | Tu entravas nas humildes choupanas, onde as negras, aonde as vis mulatas, apertando por baixo do bandutho a larga cinta, te honravam cos marotos e brejeiros, batendo sobre o chao o pé descalgo. Agora ja consegues ter entrada” nas casas mais honestas e palacios! AA! tu, famoso chefe, das exemplo, debaixo dos teus tetos, com a moga que furtou ao senhor o teu Ribério ! 33 4 batucas sobre a sala Tu também j da formosa comadre, quando o pede santo Entrudo.& a borracha fungao do te trecho: Tinhorao interpreta como segue €s' 1 iso nessa descri¢do que os elemen. “Tomas Antonio Gonzaga é tao preciso : u tos brancos e negros da danga sé tornam evidentes. A impressdo de vo nq ponta dos dedos revelava a contribuigao negra, representada pelo verdadeito deslizar ao ritmo da musica, o que era conseguido on um movimento imper. ceptivel das plantas dos pés, sem ergué-los do cho, mas Cupane de fazer a. vangar 0 corpo do dangarino tremelicando, como se eativesse sobre patins, Esse movimento da danga era rematado pela umbigada igualmente negra. Cu. riosamente, a essa investida da moga, efetuada rigorosamente dentro de uma tradic¢go de danga de roda afro-brasileira, o machacaz — que a descricio do poeta indica ser um servidor branco do palacio — responde com outra umbi- gada, mas acompanhada de movimentos claramente do fandango. A mio na testa e a outra no quadril é a posi¢do classica de dangas espanholas (...) ¢ os . estalos com os dedos nada mais constitufam do que uma imitagao de casta- nholas”.” Lembremo-nos de que, na descrigao do poeta, o instrumento emprega- do na danga do lundu era a viola. Confirmando o que dissemos a respeito da importancia dos centros ur- banos na fusao de elementos europeus com elementos negros — as referéncias anteriores sdo relativas a Olinda, Recife e Vila Rica — temos outro testemu- nho, agora relativo a Salvador. Também nesse centro costumava ser dangado o lundu, conforme atesta Lindley (negociante inglés, preso em Salvador por contrabando de 1802@ 1803). Na descrigfo de um banquete diz: “Durante e apés o repasto, bebem excepcional quantidade de vinho; e quando tudo se eleva a um ‘tom’ fora do comum, entram em cena 0 violdo ou o violino, e comega a cantoria, que logo cede © passo a atraente danga dos negros. Emprego esse termo como 0 qv? mais se coaduna ao divertimento em questo, misto de danga da Africa e fa dango da Espanha e Portugal”. ® rt 6- Idem p. 132, 7-Wdem p. 132. 8- Idem p. 134, 34 Embora Lindley nao chame essa danga de lun cartes Chilenas permite oe a sua identidade. At ge, o mesmo autor ainda diz: 2 minueto e as dancas Populares so conhecj dos € praticados nos circulos mais elevados; mas esta € a danga nacional: . das as classes, quando poem de lado o formalismo, a Teserva €, posso nad centar, @ decéncia, entregam-se ao interesse e ao enlevo que ela excita”,? E é no diario de Lindley que se encontra a Primeira referéncia a “um coro improvisado” participando da danga do lundu. E bom lembrar, no en- tanto, que nessa época Caldas Barbosa ja tinha morrido, tornando-se dificil explicar a origem do lundu—cangao a partir da interven¢ao do coro no lundu —danga. Alguns anos mais tarde, von Martius descreveria uma cena semelhante, também na Bahia, usando, porém, a palavra lundum. Do exposto decorre que, j4 no final do século XVIII, o lundu-danga iniciara a sua ascen¢do a classe dominante, percorrendo o caminho inverso do que haveria de seguir, um pouco mais tarde, a modinha. Retomaremos, mais adiante, o fio da histéria do lundu-danga. Na altura em que estamos, impGe-se um salto que nos levard ao lundu-cangéo, o qual a- parece, sem antecedentes diretos conhecidos, em Portugal em fins do século XVIII. E, como no caso da modinha, a histéria do lundu-cangao inicia-se com 0 brasileiro Domingos Caldas Barbosa. Primeiro, algumas referéncias aos lundus introduzidos por Caldas Bar- bosa, devidas ao poeta Nicolau Tolentino de Almeida. Em mais de uma opor- tunidade ele refere-se ao lundu (-cango). Eis um exemplo: du, a comparacao com as estando a sua Popularida- Em bandolim marchetado, Os ligeiros dedos prontos, Loiro Peralta adamado, Foi depois tocar por pontos O doce Londum chorado.'° Se percorrermos os dois volumes da Viola de Lereno, de Domingos Cal- 4s Barbosa, encontraremos ao todo seis lundus, contidos todos no segundo ee 9- Idem p. 135, lo. icordi i ARAUIO, Mozart de. A modinha eo Lundu no Século XVII. Ricordi Brasileira. Sio Paulo, 1963, p. 21, 35 além disso, tivermos a paciéncia de ler todas as Poesiag G ou iaié) 56 » Vey thanha (0 mesmo que nhanha ou iaié) s6 ocorre em Temog tiga Dogura de Amor, certamente ner? dog I volume. Se, wra 7 que a pala’ ; seis lundus e mais uma vez na can 5 do entre o amor brasileiro e o amor de}; Ue g ta faz at a comparagao entre o amor © i eke vera conclu que o amor 4 brasileira 6 muito mais gostoso; Ortugal), Quando a gente tem nhanha Que Ihe seja bem fiel, E como no reino dizem Caiu a sopa no mel."" Juntando a isto o fato de que no Lundum em Louvor de uma Brasileira Adotiva Caldas Barbosa chama a uma “linda Brasileira” de nhanhé, Pode-se concluir dar que, ao contrario de outras cantigas nas quais as mulheres aten- dem pelos nomes de Marilia, Anarda, Nerina, etc., nos lundus Caldas Barbosa pensa especificamente em jovens brasileiras — as nhanhds. Por outro lado, em dois dos seis lundus, e somente at, ocorre a palavra moleque (negrinho escravo) usada pelo poeta para referir-se a si mesmo. S6 estes dois aspectos bastariam, a nosso ver, para vincular os lundus de Caldas Barbosa 4 origem afro-brasileira deste género de cangio, pois usa ter- mos do linguajar dos escravos brasileiros e dos brancos em relagao aos escra- vos. E que esta origem é concebida como danga — e nao como cangio — de- corre de outros versos do Lundum em Louvor de uma Brasileira Adotiva (ci- tados mais abaixo). i Além disto, é de se pensar na influéncia dos escravos sobre os costumes — no caso, relagdes amorosas — dos brasileiros. Certamente nem tudo pode ser debitado na conta do clima tropical e/ou na lonjura das autoridades coir bidoras. Caldas Barbosa ensaia, a nosso ver, uma explicagdo quando compare © amor dos civilizados com o dos brasileiros que, certamente por influéncia de povos mais primitivos, mais préximos da natureza (escravos — Natureza) tinham condigdes, por serem menos inibidos, de sentir a dogura do amor 0 Poeta diz claramente: a 11 - BARBOSA, Domi 50S 1944, vol. I. mas 36 " 10 Caldas. Viola de Lereno. Imprensa Nacional. Rio 6¢ 1" FE tem mais. No Lundum em Louvor de uma Brasileira Adoti ese a uma brasileira que, provavelmente por acaso, tiva 0 autor fe : > Vein , « o “‘meigo lundum gostoso”: ‘eio dancar, as mar- gens do TejO, Os respeitos ca do Reino Déo a Amor muita nobreza, Porém tiram-lhe a dogura Que the deu a Natureza, ‘2 Seo Lundum bem conhecera Quem o havia cd dangar; De gosto mesmo morrera Sem poder nunca chegar. Airum rum Vence fandangos e gigas A chulice do Lundum. Visivelmente, 0 poeta lamenta nesses versos que 14 ninguém conhece a dana do lundu e, ao mesmo tempo, declara a sua superioridade sobre as dan- cas da Peninsula: o fandango e a giga. Prossegue: Quem me havia de dizer Mas a coisa é verdadeira; Que Lisboa produziu Uma linda Brasileira. Ai beleza As outras so pela patria Esta pela Natureza. Tomara que visse a gente Como nhanhd danga aqui; Talvez que o seu coragao Tivesse mestre dali. Ai companheiro Nao serd ou sim sera —— 12+ Tae m p. 33. 37 Q jeitinho é Brasileiro. Uns olhos assim voltados Cabega inclinada assim, Os passinhos assim dados Que vém entender com mim. Aiafeto Lundum entendeu com eu A gente esti bem quieto. Um lavar em seco a roupa Um saltinho cai nao cai; O coragao Brasileiro A seus pés caindo vai. Chorando a saudade do tempo em que vivia no Brasi rasil. continua cantando: * Caldas Barbos Este Lundum me da vida Quando o vejo assim dan¢ar; Mas temo se continua Que Lundum me ha de matar. Ai lembranga Amor me trouxe o Lundum Para meter-me na danga. '3 Resumindo, podemos ti , ti i . dus de Caldas Barbosa: rar as seguintes conclusdes da anilise dos lun- 1— 2 3 2 5 as ~ ee faa ind € originariamente uma danga brasileira; Sen culada ao mundo dos negros escravos brasileiros; Agee ‘oe do lundu brasileiro. : Provadamente o lundu i : ode-se aventar a hipétese de que, sendo com Caldas Barbosa o tenha t ‘a danga derivada do batuque ¢ nascida no Brasil, de vé-lo dangado em Portugal ne em lundu-cancdo pela impossibilidade ceu, © — para matar saudades do pais em que 1 Levando em : Tar nas . Consideragao a andli = Modinhas do Brasit, atta dos textos, talvez seja possivel seP* h — por Béhague a Caldas Barbosa, a5" “Tem p. 51. 38 deiras modinhas dos lundus os quais, ae dos na coletanea. A anilise assim n diferengas entre os dois géneros, emb. i a julgar pelos extos, encont ‘am-se i los t Ncontr: Orientada talvez, Consiga apontar su. : ‘ jem al. . Nada melhor para caraterizar, de um modo geral, de Caldas Barbosa — e também a danca a que se refer empregado por ele mesmo: chulice. Para Tinhorio. de moleza brasileira; acrescentariamos ainda um; Observe-se a linguagem chula com que o poeta (-danga): » OS textos dos lundus em — do que o termo » €ssa palavra tem o sentido a Conotacdo lascivo-jocosa, descreve a chulice do lundu Nhanha faz um pé de banco Com seus quindins, seus popés, Tinha langado os seus lagos Aperta assim mais os nos. Oh ! dogura As lobedas de nhanha Apertam minha ternura.'4 Empregaremos, daqui por diante, as palavras chulo e chulice no sentido apontado, quando tratarmos do lundu. Os lundus chorados por Caldas Barbosa ao som da viola suscitaram 0 interesse de compositores portugueses por este género de cangdo. Algumas pecas de autores lusitanos encontram-se no Jornal de Modinhas, editado pe- los franceses Milcent e Marchal em Lisboa e que teve publicagao regular de 1792 a 1795. Mozart de Aratjo reproduziu duas em sua obra A Modinha eo Lundu no Século XVII, com misica de autoria de José de Mesquita. Com- postas para duo vocal, nenhuma das duas apresenta, no entanto, qualquer Vestigio de influéncia da misica brasileira. Como no caso da modinha, a vinda da corte portuguesa ao Brasil deve tet contribuido para a difusio do lundu—cangao nos saldes brasileiros. Um indicio neste sentido é 0 fato de Sigismund Neukomm (vivendo no Rio de 1816 a 1821) ter composto um Capricho para Piano Forte, sobre um Lundu Brasileiro intitulado O Amor Brasileiro. A pega foi descoberta por Mozart de Araijo na Biblioteca do Conservatorio de Paris em 1951. Tendo em vista a oo M4. 4 Idem P53, 39 go de Caldas Barbosa, € licito estabelecer um, a Vj cura de Amor deste autor, pois diz ay: neu. popularidade da produc lagdo com a cantiga Do, Cuidei que o gosto de Amor Sempre o mesmo gosto fosse, Mas um Amor Brasileiro Eu nao sei porque é mais doce. ‘A misica esta perdida, mas “quem podera afirmar que a melodia de lundu do padre modinheiro nao se} la utili: Se eS ,ja aquela utilizada por Neukomm no sey Capricho JOHANN M. RU ' lied, Gauss (1802-1858) — Danse Lundu. Da obra Malerische Reis?" 15 - ARAGHO, ii ARAL Morar de, Sigismund Neukomm. Revista Brasileira de Cultura. tura n° 1. Rio de Janeiro, 1969, p. 68. 40 in Bros Conselh? Antes de prosseguirmos na histéria do lundu—cangao, impoe-se citar um aspecto desta histéria realgado por Oneyda Alvarenga: “O Lundu foi a primeira forma de misica negra que a sociedade brasileira aceitou e por ele o negro deu 4 nossa musica algumas carateristicas importantes dela, como a sis- tematizacao da sincope e o emprego da sétima abaixada”,1® O lundu-cangao de Caldas Barbosa, misto de elementos de origem afro- brasileira e de elementos da dria de corte cultivada em Portugal, conquistou os sales aristocraticos da metropole; chegando ao Brasil, invadiu todas as ca- madas sociais, espalhou-se pelo Pais, adquirindo feigdes mais brasileiras. Fol- clorizou-se inclusive. Entre os mais antigos lundus-cang6es conhecidos, figura um de Jodo Francisco Leal, simplesmente intitulado Lundum n° 11, constando de uma colegdo de modinhas impressas na Europa em 1830. Segundo Baptista Siquei- 1a, que reproduziu esse lundu, o autor nao passava de um “curioso em misi- ca”. Relata o musicdlogo que, em virtude dos primeiros versos desse lundu: Menina vocé que tem? Que comigo s’enfadou apareceu em 1833 o anuncio de outro lundu, de autor anénimo, onde se lé: “lundum com a misica vi-se embora enfadinho” o que revela um legitimo es- Pirito de gozago, bem de acordo com a chulice do género. Alids, também Bernardo José de Queiroz (autor da misica incidental para o drama lirico O Juramento dos Nunes, estreado em 1813 no Real Tea- tro de S. Joao) aderiu a essa gozago com Foi-se Embora Enfadinho — Lun- dum Brasileiro. "7 . Também no caso do Lundum n° 11, o autor da letra fala de si em ter- mos de negrinho (0 que lembra moleque em Caldas Barbosa). Carateristico da linha melédica é 0 constante uso de sincopes internas; as cadéncias diferem bastante daquelas que descrevemos na modinha, a no ser uma ou outra exce- ¢4o. Tampouco predominam as linhas melédicas descendentes. Ha uma seme- lhanga com a modinha no uso constante de fragmentos melédicos curtos. E, além disto uma certa moleza em tudo ... 16 - ALVARENGA, Oneyda. Miisica Popular Brasileira, Ed. Globo. Porto Alegre, 1950, p- 150. 17 - SIQUEIRA, Baptista. Lundum x Lundu. Universidade Federal do Rio de Janeiro — Es- cola de Misica. Rio de Janeiro, 1970, p. 50. 41 O acompanhamento a0 piano nao apresenta sincopes, mas é matcado pelas semicolcheias pontuadas. As modulagdes seguem © esquema I — re}, _ IV — I; 0 estribilho salta para 0 homénimo do tom principal (mi m para mj M), para depois modular somente para o IV grau. O esquema formal é A. ABB. refrao. - 7 Outro lundu do inicio do século passado é Eu ndo Gosto de outro 4. mor, do baiano Pe. Teles (ndo conseguimos precisar a data). A parte vocal ¢ muito operistica e nao apresenta nada de tipicamente nosso. No acompanha- mento ocorrem, de vez em quando, algumas sincopes; o texto fala em sinhd ¢ iaid, 0 que é sintomatico. No século passado nao era rara a confusao entre modinha e lundu. Ji na colecdo examinada por B.Siqueira temos uma evidéncia neste sentido no n° 12 que, embora intitulado Lundum, é antes uma modinha, por sinal bem fraca. Examinando-se os textos de lundus do século passado, constata-se que 0 carater jocoso é uma constante e a chulice freqiiente. Em boa parte ocor- tem termos usados pelos escravos ou pelos brancos em relagdo aos escravos, segundo tradi¢ao iniciada por Caldas Barbosa. Num dos extremos da chulice encontramos os lundus que eram cantados “em voz baixa, do repertério e inéditos dos trovadores de profissao”. 18 Nesse terreno, relata B.Siqueira, “tornaram-se inexcediveis os de Laurindo Rabelo, pelos trocadilhos, chistes e sentido equivoco das palavras”. '® Laurindo Rabelo morreu em 1864. Vai qui uma amostra: Eu tenho uma bengala Da maior estimagao. E feita da melhor cana E temo melhor castio. A minha caseira Toda inteira se repela Quando trés vezes ai'dia Nao dou bengaladas nela. ° eee 18- Idem p. 129. 19- Idem p. 129. 20- Idem p. 129. a2 Quem pretende analisar lundus-cangdes do século passado, evidente- mente tem de recorrer a misicas impressas ou eventuais manuscritos, pois gravagoes ndo havia. Como no caso da modinha, a procura daquilo que seria a esséncia do lundu-can¢ao, do ponto de vista musical, torna-se dificil pelas de- formagoes sofridas por este género de cangdo na sua adaptagao ao gosto euro- peu dos sal6es aristocraticos. Veja-se, por exemplo, o lundu Ld no Largo da Sé de Candido Inacio da Silva com versos de Manuel de Aratijo Porto Alegre. A linha melodica deste lundu, que é de 1837, segundo informagao de Baptis- ta Siqueira, parece de inspiragdo mozartiana, a despeito de suas sincopes; 0 a- companhamento sincopado é 0 que mais lembra o Brasil. Felizmente, porém, restaram numerosos lundus bem mais brasileiros. A procura de tracos essenciais do lundu-cancdo — nem sempre presen- tes em sua totalidade e estado de pureza, como no caso da modinha — con- duz, em termos gerais, ao que segue. O compasso dominante é 0 2/4. Como exce¢ao, citamos Conselhos as Mogas, com misica de Rafael Coelho Machado em 6/8. Esse lundu, alias, te- ve grande popularidade. Predomina francamente 0 modo maior. O fraseado, em regra, obedece a tradicional quadratura. Hd um discreto predominio de linhas melédicas des- cendentes (bem menos acentuado do que na modinha). A ocorréncia de frag- mentos meldédicos curtos, entre pausas, emparelha a de fragmentos maiores, mais impetuosos. As cadéncias de frases; membros de frases, incisos e fragmentos meno- res, sdo as mais variadas, nao se encontrando alguma formula predominante como na modinha. No tocante as modulagées, ha lundus em que nao aparece © tom da dominante, sendo este substituido pelos graus 1V ou VI ou por am- bos; mas ndo ha nenhuma constancia neste sentido. O aspecto que melhor carateriza o lundu-cangao na parte melodica é a quase onipresenca da sincope interna (semicolcheia-colcheia-semicolcheia). Os esquemas formais sio os mais variados, desde o AABB-refrao até a composigdo continua; as vezes ha, as vezes nao, introdugdo instrumental. Os textos sao formados, na maioria, por quadras com refrao, predomi- nando o redondilho maior. Nos acompanhamentos é freqiiente, embora nfo sistematica, a ocor- téncia de sincopes. Nao pudemos encontrar nenhuma formula tipica af. 43 fio da historia do lundu-danga. Conforme Ja vim, mos O - Retome! ulo XIX, tinha entrado francamente nas ca . 08, est icio do sec danga, no inl S88 dog ‘a IS. ‘ Oran cumentos da década de 1820 atestam que, por essa época, lund m outro contexto nos principais Centros uy| - arecer € b danga comega a api . . . anos, Ramos Tinhorao ofereceu u: Trata-se dos entremezes. José ma boa Conceitua. “{ntroduzido 0 teatro no Brasil pelos moldes portugueses, era Costume alar nos intervalos das representagGes de tragédias, dramas, farsas € co m musica e danga a que se dava o nome de en. gao: interc médias pequenos quadros co! tremez”. Ja no tempo de D. Joao VI eram vistas ai as mais diversas dangas, desde © minueto de corte até o lundu, passando por outras dangas tradicionais oo. mo o fandango ou 0 miudinho, este uma adatagao brasileira do minueto. Ngo ser dificil imaginar o escandalo provocado pela danga do lundu em pessoas preocupadas com a pureza dos costumes... A titulo de ilustragao vai aqui a descri¢do de um lundu-danga, devida ao bardo Sant-Ana Nery em seu livro Le Fole-Lore Brésilien ( Paris, 1889): “No comego os dangarinos estao todos sentados ou de pé. Um casal se levanta e comega a festa. Quase ndo se mexem no inicio; estalam os dedos fa zendo castanholas, levantam ou abrem os bragos em curva, balangam-se mo- lemente. Pouco a pouco o cavalheiro se anima: evolui 4 volta da dama como se fosse abragar. Esta, fria, no liga para as suas investidas; ele redobra de ar- dor, ela conserva a sua soberana indiferenga. Entao, ei-los face a face, os olhos nos olhos, quase hipnotizados pelo desejo. Ela bamboleia, ela avanga; seus movimentos tormam-se mais sacudidos, e ela tremelica numa vertigem de paixdo, enquanto a viola suspira ¢ os assistentes, entusiasmados, batem pal- mas. Depois ela para, ofegante, cansada. Seu par prossegue em sua evolugao Por um momento; e, em seguida, vai provocar outra dangarina, que sai da fir la, eo lundu recomega febril e sensual. O lundu tem encantos que viram 3 cabegas mais assentadas”. 22 Nao cabe aqui determo-nos no estudo do papel decisivo desempentado Peto Tundu-danga — € logo mais também, de acréscimo, pelo lundu-can¢a°~ Benese do teatro de revista brasileiro. Falamos aqui em lundu-canga0. pois ee 21 TINHORAO, José Ramos. Obra cit. p. 139. 22- Idem p. 140. , 44 acabaram sendo enriquecidos com letras que, “envolvendo as relagdes entre negros e brancos, on fronizando a situagao oe escra- vos em versos inspirados na algaravia da fala dos africanos...”*~, tornaram-se expresso desinibida das camadas populares. / i Na segunda metade do século XIX a importincia do lundu-danga vai declinando aos poucos. Por um lado, funde-se com a polca que, importada da Franga (segundo B.Siqueira, precisamente em outubro de 1844), acabou to- mando conta do carioca. Surgiu desta fusdo a polca-lundu, hibrido sem con- digdes de iniciar um novo capitulo na histéria da misica popular brasileira (Nazareth, por exemplo, intitula assim apenas duas pecas para piano: Vocé bem Sabe, de 1878, e Cuyubinha, de 1893). Por outro lado, o lundu-danga desembocou, junto com elementos de outras dangas, no maxixe, “por algum tempo expoente da nossa danga urbana””*, conforme Renato Almeida. Nao obstante, em manifestagdes esporadicas e circunscritas, o lundu-danga mante- ve-se século XX a dentro. Ainda um breve comentario relativo ao lundu-para-instrumento-solista. Pelo que conseguimos apurar, esta forma de lundu nao foi muito cultivada no século passado. Um exemplo é dado pelo Lundum para piano, de autor an6- nimo, publicado por Mario de Andrade em sua ja referida colegdo de modi- nhas. O autor de Macunaima encontrou essa pega na Lyra Moderna, colegio de modinhas e “d’hum grande Lundum para piano-forte”, editado no Rio de Janeiro, provavelmente antes de 1848. O baixo de Alberti confere a essa peca a graga de “um Andante legitimamente europeu, muito evocando Mozart” no dizer de Mario de Andrade.?° O que hé nela de lundu, nao obstante, é, de vez em quando, um discreto sincopado na linha melddica. Outro exemplo, bem mais brasileiro, é 0 Lundu Carateristico de Joa- quim Anténio da Silva Calado (Rio, 1848 — Rio, 1880), notavel flautista e compositor popular. A pega, que tem uma ambiéncia seresteira, 6 uma autén- tica jdia. Foi composta para flauta e piano. Sua gravacdo integra o album Mu- sica Imperial, editado pela Sociedade Cultural e Artistica Uirapuru, em 1968. os entremezes 23 - TINHORAO, José Ramos. Pequena Histéria da Miisica Popular. Edit Petropolis, 1974, p. 48. mm cabemenee 4. ALMEIDA, Renato. Historia da Musica Brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro, 1942, p. 189. 2s. ODE, Mario de. Modinhas Imperiais. Sao Paulo, 1964. Livraria Martins Editora, Ann 7 F. Briguier & Comp. Editores. 45 Ta Pid ved + ree 3.-Mulata tevantaa saie, Ho 0s padres qestam de mocas Dinheiro custa qanher. Gaste mais do que ningudmr, Nao pretendemos, aqui, fazer um levantamento dos compositores que, no século passado, cultivavam o género lundu-cangao. Serd uma tarefa para o futuro a publicagdo de uma antologia que teria por finalidade fortalecer, en- tre nds, a memoria cultural. A titulo de exemplo alguns nomes do Rio de Janeiro: Janudrio da Silva Arvelos (pai); Henrique Alves de Mesquita (1838 — 1906) (Os Beijos de Fra- de; etc.); Francisco Manoel da Silva (1795 — 1865) (A Marrequinha); Fran- cisco de S4 Noronha (1820 — 1881) (Conselhos és Mocas); Elias Alvares Lo- bo (1834 — 1901) (Cha Preto, Sinha? }; além dos citados anteriormente e nu- merosos outros. 47 Na Bahia destaca-se Xisto Bahia (A Mulata; laid, Vocé Quer Morrer? etc.), compositor popular injustamente esquecido. _ O Modernismo na Masica Brasileira (erudita) nao podia deixar de ir cn busca do velho lundu, captar-lhe a esséncia, transfigurando-o em obras de ar. te. Numericamente ocorre, no entanto, bem menos do que a modinha. Nesse contexto temos o Lundu, para piano, de Camargo Guarnieri, editado em 1947; o Lundu que integra as 9 Dangas Brasileiras de A. Theodoro Nogueira (editadas em 1973); Os Lundus da Marquesa (piano) de Francisco Braga; Lundu para canto e piano de Dinord de Carvalho; 0 Lundu em Forma de Rondo (piano) de Francisco Mignone; ¢ outros. Examinando-se os numerosos lundus folcléricos cujas melodias se en- contram no 1° volume publicado sob o titulo Melodias Registradas por Meios Nao-Mecanicos pelo Arquivo Folclérico da Discoteca Publica Municipal de Sado Paulo (1946), percebe-se logo um trago comum: a freqiiéncia das notas rebatidas que chega a ser uma constante melddica nesses lundus. Em compen- sa¢do sdo relativamente escassas as melodias com sincopes internas. Se voltar- mos ao exame dos lundus urbanos, veremos que at também aparecem as no- tas rebatidas, mas no a ponto de se poder falar em constante melddica. Pode ser que, na migragdo do lundu-cangao das cidades para a zona rural, outros e- lementos tenham se imiscurdo ou reforgado nele algum trago tipico dos reci- tativos dos negros. Absolutamente comuns 4s duas categorias de lundus sao 0 compasso 2/4, 0 cardter jocoso — puxando mais para a chulice no lundu ur- bano — e uma boa freqiiéncia de termos alusivos aos escravos ou destes em telagdo aos brancos. Nao nos foi possivel apontar como constante melédica 0 sétimo grav abaixaco (escala de dé maior com si bemol ou modo mixolidio no sistema medieval) nos lundus folcléricos, embora compareca. A predomindncia do modo maior é menos acentuada do que nos lundus urbanos, pois nos folclé- ricos ha uma certa incidéncia de modos medievais. (aa) wy OO SSS SSS oo Lundu foletérics ot s Nae geste de perdu- quese Porque ndeseumin-gau Porta SSS guesaé ne coryenha: Bata- tinha, Boca- thau. Quem quisé casd comige — ho oc com sehen, Mec&nicos'- Arquive Folctsrico da Discoteca Pablica Maxverpat) $.Pauto, quo, T ‘ Ta Lund fetetirics deqn SSeeies aS Ta-piriatindata-pa-ia Que fayes no cacu-nd Eu vim aged cother goria—ba que minha mit me pte di-u- nx} De Sel ader. Recoths do pet GomargeGuarniati ———EESE————— 49 mre nn ee RO. walls dire “AR enelinnt ennc a seen ee eee Este livro fol impresso por Edigtes Renescencs pers: Editors Movimento em agosto de 1986. 104 176 Este trabalho de Bruno Kiefer de- vera, necessariamente, suscitar uma teavaliacdo critica dos autores neoclas- sicos do grupo mineiro, sobretudo To- mas Anténio Gonzaga e Caldas Barbo- sa. Infelizmente Viola de Lereno esta esgotado desde 1944. Livro rarissimo, passou despercebido para a maioria dos nossos historiadores e criticos lite- rarios e até mesmo musicais. Agora, com 0 novo enfoque de Bruno Kiefer, © escritor-musico-compositor Caldas Barbosa, para citar apenas um, apare- ce historicamente valorizado e dimen- sionado. Antes, se considerava Caldas Barbo- sa apenas do ponto de vista literario, sem 0 devido suporte musical. Isto fa- zia com que a visdo do seu valor per- manecesse distorcido, ja que se avalia- va uma obra pela metade. Igualmente autores como Tomas A. Gonzaga, com suas Cartas Chilenas e Manuel Antonio de Almeida com As Memérias de um Sargento de Milicias aparecem valori- zados em aspectos até agora relegados a um plano totalmente secundario. A analise de Bruno. Kiefer integra a modinha e o lundu na vida quotidiana do nosso povo e projeta luz sobre um assunto controverso de nossa vida cul- tural. Myrna Mariza Bier Appel O presente estudo de_Bruno Kiefer sobre as duas mais Pee en AMC oR CMe ue cs brasileira — a modinha e o lundu eR Ld mais nada, por clareza num assunto que tem dado origem™a muita confusao em virtude da precariedade dos dados Pi corstae Ages bles Poem Te CUM Oe COO Te POCO OREM StS LEC Cat Te LeU Coa COLO COLES estas pesquisas~e se documentou PTE une Cee COM LALIT _ es ENS PISMO LLCO CE Oa Ey EDITORA MOVIMENTO 18879 Modinha ¢ 0 Lundu, A

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