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44.

E Riobaldo encontra seu Medo-Demo ao


atravessar o deserto

E Riobaldo acha sua missão, liderar o bando na nova


tentativa de travessia do Liso do Sussuarão, o
terrível deserto que antes, ainda sob a liderança de
Zé Bebelo, tentaram atravessar. E tudo deu errado.
Tiveram que voltar do meio para trás, carregando
muitas mortes e desespero. Mas Riobaldo agora faz
diferente, com menos preparo e bagagens que
antes. O grupo, agora mais leve, vai mais fácil. 

E com grupos esparsos, distantes uns dos outros,


mas alcançáveis pela vista ou pelos gritos, vão
localizando algum alimento e água pelo caminho. E
seguem adiante. 

E Diadorim diz a Riobaldo, com amor e ainda


durante a travessia que, quando tudo acabar lhe
contará um segredo. Mas Riobaldo, longe de si, não
entende verdadeiramente o que Diadorim quer
dizer. 
- “Riobaldo, escuta: vamos na estreitez deste
passo...” – ele disse; e de medo não tremia, que era
de amor – hoje sei. 
- “... Riobaldo, o cumprir de nossa vingança vem
perto... Daí, quando tudo estiver repago e refeito,
um segredo, uma coisa, vou contar a você...” 
Ele disse, com o amor no fato das palavras. Eu ouvi.
Ouvi, mas mentido. Eu estava longe de mim e dele.
Do que Diadorim mais me disse, desentendi
metade.

Riobaldo tenta se justifica considerando que


precisava estar atento a coisas mais graves. E
encontra um homem demo. 

Ah, quase que eu estava cogitando nisso, quando o


homem rosnou. Quem ele era, digo, em qualidade:
um, troncudo, pardaz, genista, filho não sei de que
terra. Assim, casta de gente?

Era um louco desajustado, de quem ele até sabia o


nome: Treciziano.

Impaciente, ele grita e xinga alguma coisa, com


intuito de ofensa.

Eu queria tolerar, primeiro: porque o demo não era


homem para mandar em mim e me pôr em raiva.
Aí, era só eu forçar calma, tenteador; depois, com
palavras de energia boa, eu acautelava evitando a
jerimbamba, e daí repreendia esse Treciziano,
revoltoso, próprio por autoridade minha, mas sem
pau nem pedra.
Mas Riobaldo vê o vislumbre da cólera no rosto do
homem. Diz que ele era o Demo. E o louco tenta
esfaqueá-lo, mas atinge as tralhas que Riobaldo
levava na cintura. Riobaldo, num átimo, o degola
com seu punhal. Morto ele cai.

Ah-oh! Aoh, mas ninguém não vê o demônio


morto... O defunto, que estava ali, era mesmo o do
Treciziano! A morte dele deu certo. E era, segundo
tinha de ser? E tinha de ser, por tanto que o demo
não existe! 

Riobaldo se sente mal.

Um frio profundíssimo me tremeu. Sofri os pavores


disso – da mão da gente ser capaz de ato sem o
pensamento ter tempo.

Os companheiros de bando o elogiam. Sua fama


com a pontaria já era conhecida. Mas agora ele
matou na faca.

Na primeira vez que o bando tentou atravessar o


deserto e teve que voltar, quase mortos, houve
também uma morte semelhante. Encontraram o que
parecia um macaco, mataram e comeram,
desesperados de fome. E descobriram não ser um
macaco, mas um homem perdido e louco,
desfigurado.
Agora, quase a terminar a travessia encontram
outro homem quase não homem, o homem demo. E
também o matam.

O deserto desfigura o que de humano há em nós?

Esse segundo morto é denominado por Riobaldo de


demo. Demo é anagrama de medo. É só trocar as
letras de lugar. Riobaldo discute todo o tempo neste
livro se o diabo existe ou não. E busca também todo
o tempo se livrar de seu medo e ser valente como
Diadorim. O medo é o demo de Riobaldo. E é muito
sugestivo que essa morte ocorra justo no fim da
travessia do deserto, justo na hora que Diadorim lhe
diz que, terminada a vingança, vai lhe contar um
segredo. 

É Riobaldo matando seu Demo-Medo. É Riobaldo


não escutando o que Diadorim lhe diz. É Riobaldo
que não pode ver o que está diante de si.

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