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19/03/2020 Sabedoria Perene: Gnose Cristã

Gnose Cristã
Esta publicação é uma tradução de um curto texto de Frithjof Schuon, intitulado "Christian
Gnosis", publicado no Sophia - The Journal of Traditional Studies, Vol. 8, Nº. 1 em 2002 e
reeditado no livro “The Essencial Sophia”.

***

O Cristianismo é “Deus fez-Se o que somos, por forma a nos fazer o que Ele é” (St. Ireneu);
é o Céu tornado terra para que a terra se possa tornar Céu.

Cristo recorda no mundo exterior e histórico o que se passou, desde o início dos tempos, no
mundo interior da alma. No homem, o Espírito Puro torna-se ego, por forma a que o ego se
possa tornar Espírito Puro; o Espírito ou Intelecto (Intellectus, não  mens  ou  ratio) torna-
se  ego,  incarnando-Se na mente na forma de intelecção, ou verdade, e o  ego  torna-se
Espírito ou Intelecto, unindo-se a ele.

O Cristianismo é, assim, uma doutrina de união ou a doutrina da união: o Princípio une-se


com a manifestação, por forma a que a manifestação se possa unir com o Princípio;
resultando daqui o simbolismo do amor e a predominância do caminho “bhaktic”. Deus
tornou-se homem “devido ao seu grande amor” (St. Ireneu), e o homem deve unir-se a Deus
igualmente através do “amor”, seja qual for o significado – volitivo, emotivo ou intelectual
– que se lhe atribua. “Deus é Amor”: Deus – como Trindade – é União e deseja União.

E qual é o conteúdo do Espírito ou, dito noutras palavras, qual é a mensagem de Cristo?
Pois a mensagem de Cristo é, no nosso microcosmos, o eterno conteúdo do Intelecto. Esta
mensagem ou o seu conteúdo é: ama Deus com todas as tuas faculdades e, em função deste
amor, ama o teu vizinho como te amas a ti; isto é: une-te – porque “amar” significa
essencialmente “união” – com o Intelecto e, em resultado (ou como condição) dessa união,
abandona todo o egocentrismo e discerne o Intelecto, O Espírito, o Ser Divino, em todas as
coisas. “Saibam que todas as vezes que fizeram isso a um destes meus irmãos, foi a Mim
que o fizeram.”

Esta mensagem – ou esta verdade inata – do Espírito prefigura a cruz, porque também aí
existem duas dimensões, uma “vertical” e outra “horizontal”, nomeadamente o amor a
Deus e o amor ao outro, ou União com o Espírito e união com o ambiente que nos rodeia,
entendido como a manifestação do Espírito. De um ponto de vista algo diferente, estas
duas dimensões são representadas respectivamente por Conhecimento e Amor: “conhece-
se” Deus e “ama-se” o outro, ou ainda: amamos Deus conhecendo-O e amamos o outro
amando-o.

Mas a mensagem mais profunda de Cristo, ou a verdade conatural com o Intelecto, é a de


que a manifestação não é mais do que o Princípio; esta é a mensagem do Princípio para a
manifestação.

Na prática, a grande questão é saber como é que nos podemos unir com o Logos ou o
Intelecto. O principal meio é a “oração” [ver post  Sobre a Oração (...)], cuja quinta-
essência é objectivamente o Nome de Deus e subjectivamente a concentração, logo a
obrigação de invocar Deus com fervor. Mas esta “oração”, esta união de todo o ser com o
seu princípio ou origem divina, continuará ilusória sem a união com a totalidade, o “outro”
universal, ao qual pertencemos como um fragmento; a cisão entre o homem e Deus não
pode ser abolida sem a cisão entre o “eu” e o “outro” ser também abolida; não podemos
reconhecer que Deus está em nós sem ver que Ele está também nos outros e de que forma
Ele está neles. A Manifestação deverá unir-se com o Princípio e – no plano da manifestação
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e em função desta união “vertical” – a parte deverá unir-se com o todo.

Interiormente, se desejarmos compreender que a alma inteligente é “essencialmente” –


não na sua acidentalidade – Intelecto ou Espírito, devemos igualmente compreender que
o ego, incluindo o corpo, é “essencialmente” a manifestação do Intelecto ou o Ser [sobre o
"Ser" ver nota de rodapé no post Tradição e Modernidade]. Se desejarmos compreender que
“o mundo é falso,  Brahma  é verdade”, devemos igualmente compreender que “todas as
coisas são Ātmā.” Este é o significado mais profundo de amor ao próximo.

O sofrimento de Cristo é o sofrimento do Intelecto no seio das paixões. A coroa de espinhos


é o individualismo, ou “orgulho”; a cruz é o esquecimento ou a rejeição do Espírito e, com
ele, da Verdade. A Virgem é a alma em submissão ao Espírito e unida a ele.

A própria forma dos ensinamentos de Cristo é explicada pelo facto de Cristo dirigir a sua
mensagem a todos os homens, do primeiro ao último; Ele não poderia dar à sua mensagem
um modo de expressão que fosse ininteligível para algumas inteligências, e ineficiente ou
mesmo prejudicial para alguns. Shankara pôde ensinar gnose pura porque não se dirigia a
todos, podendo-o fazer porque na tradição Hindu já existia e incluía a priori vias espirituais
adaptadas a inteligências modestas e temperamentos passionais. Mas Cristo, como
fundador de um universo espiritual e social, tinha a necessidade de se dirigir a todos.

Se é errado censurar Cristo por não ter ensinado explicitamente gnose pura – o que na
realidade ensinou pela sua própria vinda e pela sua pessoa, gestos e milagres – é
igualmente errado negar o significado gnóstico da sua mensagem e, assim, negar a
contemplativos intelectivos – os quais se centram na verdade metafísica e pura
contemplação, ou na pura e directa Inteligência – todo o direito a existirem e a lhes
oferecer uma via espiritual em conformidade com a sua natureza e vocação. Isto é
contrário à parábola dos talentos e ao ditado “em casa de meu Pai existem muitas
moradas”.

A totalidade do Cristianismo é expressa na doutrina da Trindade, e esta representa


essencialmente uma perspectiva de união; ela revela uma união in divinis: Deus prefigura
na Sua própria natureza as relações entre Ele e o mundo, relações que apenas são
“externas” de uma forma ilusória.

“A Luz brilha na escuridão e a escuridão não o compreende”: a verdade destas palavras foi
manifestada – e ainda é manifestada – no Cristianismo, pela incompreensão e rejeição da
gnose. E isto explica, em parte, o destino do mundo Ocidental.
por Miguel Conceição 

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