Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo
O artigo visa compreender os deslocamentos dos sentidos da saúde no discurso midiático
e suas implicações na sociedade pós-moderna, a partir da seção “foto” da fanpage
“Melhor com saúde”. Utilizamos a pesquisa documental e a abordagem da
socioantropologia do imaginário de Maffesoli, relacionando-as às noções de cultura
terapêutica e sociedade da performance. Verificamos que a seção associa a saúde à
autorrealização, imbricando-a a um código moral em que sucesso e felicidade são
imperativos. O indivíduo é convocado a se responsabilizar por seu próprio bem-estar e,
para tanto, deve consumir informação. O imaginário articulado na fanpage distingue, de
um lado, os indivíduos saudáveis, bem-sucedidos, proativos e resilientes; de outro,
aqueles de vontade fraca, doentes e sofredores. A saúde corresponde a um
empreendimento, portanto, resulta do eficaz gerenciamento de si.
Palavras-chave: cibercultura, imaginário, saúde, cultura terapêutica, autorrealização.
Abstract
This paper aims to understand the shifting health meanings of the media discourse and its
implications in postmodern society, from the “picture” section of the “Melhor com
Saúde” fan page. We employed a documentary research and the social anthropology
approach of Maffesoli’s imaginary, relating them to the ideas of therapeutic culture and
performance society. We found that the section associates health with self-realization,
imbricating it to a moral code in which success and happiness are imperatives. The
individual is summoned to take responsibility for his well-being and, thus, must consume
information. The imaginary articulated in the fan page distinguishes, on the one hand, the
1
Este artigo integra a pesquisa de pós-doutorado realizada em 2018, no programa de pós-graduação em
Mídia e Cotidiano na Universidade Federal Fluminense. O estudo foi financiado pela FAPEMA, SECTI e
Governo do Estado do Maranhão.
2
Professora Adjunta e membro do corpo permanente do mestrado em Comunicação da Universidade
Federal do Maranhão, campus Imperatriz. Pós-doutora em Mídia e Cotidiano e doutora em Comunicação
Social. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Imaginarium – Comunicação, Cultura, Imaginário e
Sociedade” (CNPq/Ufma). E-mail: dayres42@gmail.com
Introdução
A internet proporciona o acesso facilitado e abundante a informações sobre
saúde. Misturam-se na rede alertas, prescrições, diagnósticos, descobertas e conselhos
diversos que figuram como panaceias para as aflições cotidianas. A sociedade
hiperconectada convoca o indivíduo a se modular continuamente, reconfigurando os
modos de ser e estar no mundo. As práticas sociais emergentes da cultura digital
estimulam ideias, crenças, valores, mitos e rituais que transcendem a esfera racional e
preenchem a necessidade humana de dar sentido ao mundo.
Definida como “[...] um estado de completo bem-estar físico, mental e social
e não somente ausência de afecções e enfermidades [...]” (OMS, 1946, doc. não
paginado), a noção de saúde se amplia na ambiência digital, tornando-se objeto de
intervenção e modulação constante. A saturação do regime de verdade moderno e o
avanço tecnológico erigem um ambiente instável, emocional, intenso e centrado no
presente (MAFFESOLI, 2018).
A saúde como signo, converte-se em valor central na contemporaneidade,
objeto de culto e injunções. A sociedade de hiperconsumo cria uma “ambiência de
estimulação dos desejos” (LIPOVETSKY, 2017, p. 35), em que o bem-estar ultrapassa a
ausência de doenças e corresponde à busca constante do aperfeiçoamento corporal, a
evitação da dor, a maximização da performance, o prolongamento da vida e a satisfação
em todos os domínios.
O ambiente digital estimula a circulação de sentidos que irrigam o imaginário
sobre saúde e promovem mudanças nas práticas cotidianas. A fanpage da revista “Melhor
com saúde” difunde a crença de que é possível ser saudável consumindo-se artefatos e
serviços e, principalmente, informação. Estar atualizado nos dá a sensação de poder
enfrentar os riscos e as agruras da vida disseminados constantemente. Apresentando 8,5
Cibercultura e saúde
A saúde erige-se como um dos pilares da sociedade hedonista pós-moderna.
A perda dos valores normativos e esquemas explicativos que conferiam sentido ao mundo
evidencia a condição transitória da existência e a “coação de conservar a vida desnuda
incondicionalmente sadia”. (HAN, 2017, p.45). Ressurge a potência vitalista, desejo
ardente de fruir todas as coisas de modo intenso e imediato. A saúde deixa de ser objeto
de intervenção pontual para se modular continuamente. Ser saudável depende, portanto,
de intervenção técnica, além de vigilância, cuidado e empenho individuais.
A rede digital promove o acesso facilitado e abundante a informações. A
multiplicidade das questões relacionadas à saúde traduz o caráter pervasivo que o tema
alcança na pós-modernidade (GOMES, 2019). Como aponta Le Breton (2016), a saúde
mobiliza o social, tornando-se a nova religião, resultante de aspirações íntimas, discursos
e investimentos coletivos. Ser saudável equivale a um imperativo categórico, código
indicativo da eficaz gestão de si.
Os sentidos partilhados no ambiente digital modulam a experiência
contemporânea da saúde, transformando-a sobretudo em uma experiência estética, um
sentir comum. Ser saudável não é a expressão monolítica da ausência de doenças, mas
expande-se para a noção de “melhor-ser”, potência vitalista de fruição da existência.
“Vida comum na qual, no ritmo dos trabalhos e dos dias, o qualitativo encontra um lugar
primordial. Qualidade de vida. Expressão um pouco genérica, mas que define bem o
espírito do tempo”. (MAFFESOLI, 2017, p. 4). Trata-se de um constructo simbólico
modulado precipuamente no ambiente digital, onde as práticas sociais extrapolam o
domínio da razão e criam uma atmosfera transcendente, convidativa e emocional em que
tudo parece ser possível.
[...] O Homo consumericus está cada vez mais voltado para o Homo
sanitas: consultas, medicamentos, análises, tratamentos, todos esses
consumos dão lugar a um processo de aceleração que não parece ter
fim. Paralelamente, os espíritos são invadidos todos os dias um pouco
mais pelos cuidados com a saúde, os conselhos de prevenção, as
informações médicas: não se consomem mais apenas medicamentos,
mas também transmissões, artigos de imprensa para o grande público,
páginas da Web [...]”. (LIPOVETSKY, 2017, p. 53)
A fanpage realiza postagens diárias a cada uma hora. Os posts são publicados
em forma de vídeos, textos que evocam a linguagem jornalística6 e ilustrações com
aconselhamentos que se encontram na seção “Foto”. Este artigo integra uma pesquisa
3
https://www.facebook.com/melhorcomsaude/
4
https://melhorcomsaude.com.br
5
Melhor com Saúde [ s.d.]. Disponível em: <https://melhorcomsaude.com.br/quem-somos/>. Acesso em:
01 dez. 2018.
6
A fanpage publica uma chamada com parte do texto que se assemelha a uma matéria jornalística, embora
careça de citações diretas e fontes seguras. O texto completo se encontra no site homônimo.
Figura 28
7
É saudável e necessário não saber nada de quem decidiu se retirar da sua vida. Melhor com saúde. 23
jul. 2018. Disponível em:
<https://www.facebook.com/melhorcomsaude/photos/a.162771920578984/868317223357780/?type=3&t
heate>. Acesso em 28 out. 2018.
8
Um relacionamento saudável é aquele em que as pessoas se ajudam mutuamente para corrigir seus erros
e se tornarem melhores, superando obstáculos juntos. Melhor com Saúde, 30 set. 2018. Disponível em:
<https://www.facebook.com/melhorcomsaude/photos/a.162771920578984/923911824464986/?type=3&t
heate> Acesso em 28 out. 2018.
Figura 410
9
Estar bem consigo mesmo é melhor do que estar bem com todos. Melhor com Saúde. 19 jul.2018.
Disponível em:
<https://www.facebook.com/melhorcomsaude/photos/a.162771920578984/868316566691179/?type=3&t
heate>. Acesso em 28 out. 2018.
10
Quando você for imune às opiniões de atos dos demais, deixará de ser vítima de um sofrimento
desnecessário. Lembre-se de que ninguém pode lhe fazer mal se você não deixar. Melhor com Saúde. 27
ago. 2018. Disponível em:
<https://www.facebook.com/melhorcomsaude/photos/a.162771920578984/891697794353056/?type=3&t
heate>. Acesso em 28 out. 2018.
A foto com os dizeres “A vida só nos dá uma faísca de loucura. Não devemos
perdê-la” (“Melhor com Saúde”. 15 ago. 2018) remete à breve oportunidade da existência
que, mesmo não possuindo sentido em si mesma, está aí, apresenta-se a nós e deve ser
aproveitada. A loucura é a oportunidade de ousar, romper com as regras para instituir
algo; a autotransformação. O culto da performance incita à ação. O governo de si é
correlato à figura do empreendedor, aquele que assume os riscos e depende de sua própria
vontade e iniciativa. O empreendedorismo é reificado como símbolo da proatividade,
responsabilização pelos resultados, eficácia e superação constantes.
Três postagens citam a palavra “estresse”, embora duas delas repitam os
dizeres e somente modifiquem a ilustração: “Não chore pelo passado, ele se foi; não se
estresse pelo futuro, ele ainda não chegou; viva e aproveite o presente” (a citação se
encontra em dois posts). (“Melhor com Saúde”. 18 ago. 2018; 25 ago. 2018). A outra
publicação afirma “A vida é muito curta para se estressar com aquelas pessoas que nem
sequer merecem ser um problema na sua vida”. (“Melhor com Saúde”. 19 set. 2018).
Figura 612
11
Não chore pelo passado, ele se foi; não se estresse pelo futuro, ele ainda não chegou; viva e aproveite o
presente. Melhor com Saúde. 25 ago. 2018. Disponível em:
<https://www.facebook.com/melhorcomsaude/photos/a.162771920578984/891697404353095/?type=3&t
heater>. Acesso em 28 out. 2018.
12
A vida é muito curta para se estressar com aquelas pessoas que nem sequer merecem ser um problema
na sua vida. Melhor com Saúde. 19 set. 2018.
<https://www.facebook.com/melhorcomsaude/photos/a.162771920578984/918894608300041/?type=3&t
heat.>.Acesso em 28 out 2018.
O post “O tempo não cura nada. Ele apenas nos acostuma à ideia de que
algumas coisas estão mudando e é preciso aceitá-las” (“Melhor com Saúde”. 27 ago.
2018) remete ao dito popular de que o tempo cura tudo. A passagem do tempo torna as
coisas habituais. A resiliência, postulada pela cultura motivacional, é a ideia subjacente à
aceitação, a exemplo do post anterior. Ser flexível em tempos instáveis é condição para o
bem-estar e a autorrealização. O indivíduo, que não se adapta, é ultrapassado pelas
circunstâncias e põe em risco a própria saúde.
A pergunta proposta pelo historiador, no capítulo sobre resiliência, ilustra a
questão: “Como viver numa era de perplexidade, quando as narrativas antigas
desmoronaram e não surgiu nenhuma nova para substituí-las?”. (HARARI, 2018, p. 317).
O autor completa: “O mais importante de tudo será a habilidade para lidar com mudanças,
aprender coisas novas e preservar seu equilíbrio mental em situação que não lhe são
Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro:
Zahar, 2004.
DAVIS, Eric. Techgnosis: myth, magic and mysticism in the age of information. Berkeley:
North Atlantic Books, 2015.
GOMES, Denise Cristina Ayres. É melhor prevenir do que remediar: a doença imaginária no
jornalismo. Interface (Botucatu) , Botucatu, v. 22, n. 65, p. 493-503, abril de 2018. Disponível
em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
32832018000200493&lng=en&nrm=iso>. acesso em 12 mar. 2019. Epub 20 de julho de 2017.
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0948.
GOMES, Denise Cristina Ayres. Health in the Social Network: An Exploratory Study of the Fan
Page “Melhor com Saúde” (“Better with Health”). In. : PEREIRA NETO, André ; FLYNN,
Mathew B. The internet and health in Brazil : challenges and trends. Cham : Springer, 2019, p.
163-178.
HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. São Paulo: Cia das Letras, 2018.
ILLOUZ, Eva. O amor nos tempos do capitalismo. Rio de Janeiro : Zahar, 2011.
MAFFESOLI, Michel. L’imaginaire comme force invisible. Imago, [S.l.], v. 5, n. 8, p. 6-14, dez.
2016. Doi: 10.7413/22818138071. Disponível em:
<http://cab.unime.it/journals/index.php/IMAGO/article/view/1360/1078>. Acesso em: 12 nov.
2018.
______. Ecosofia: sabedoria da casa comum. Famecos. Porto Alegre (RS), v. 24, n. 1, p. 1-12,
jan/abr 2017. Doi:10.15448/1980-3729.2017.1.24007. Disponível em:
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/24007/14999>.
Acesso em: 12 nov. 2018.
______. Être postmoderne. Paris: Editions du Cerf, 2018.
Não chore pelo passado, ele se foi; não se estresse pelo futuro, ele ainda não chegou; viva e
aproveite o presente. Melhor com saúde. 18 ago. 2018. Disponível em:
<https://www.facebook.com/melhorcomsaude/photos/a.162771920578984/891696317686537/?
type=3&theater>. Acesso em 28 out. 2018.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Cia das Letras, 2007.