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Revista Mídia e Cotidiano

Artigo Seção Temática


Volume 13, Número 1, abril de 2019
Submetido em: 07/01/2019
Aprovado em: 12/03/2019

A SAÚDE COMO AUTOREALIZAÇÃO: O IMAGINÁRIO NA FANPAGE


“MELHOR COM SAÚDE”1

HEALTH AS SELF-REALIZATION: THE IMAGINARY IN THE FANPAGE


“MELHOR COM SAÚDE” ("BETTER WITH HEALTH")

Denise Cristina Ayres GOMES2

Resumo
O artigo visa compreender os deslocamentos dos sentidos da saúde no discurso midiático
e suas implicações na sociedade pós-moderna, a partir da seção “foto” da fanpage
“Melhor com saúde”. Utilizamos a pesquisa documental e a abordagem da
socioantropologia do imaginário de Maffesoli, relacionando-as às noções de cultura
terapêutica e sociedade da performance. Verificamos que a seção associa a saúde à
autorrealização, imbricando-a a um código moral em que sucesso e felicidade são
imperativos. O indivíduo é convocado a se responsabilizar por seu próprio bem-estar e,
para tanto, deve consumir informação. O imaginário articulado na fanpage distingue, de
um lado, os indivíduos saudáveis, bem-sucedidos, proativos e resilientes; de outro,
aqueles de vontade fraca, doentes e sofredores. A saúde corresponde a um
empreendimento, portanto, resulta do eficaz gerenciamento de si.
Palavras-chave: cibercultura, imaginário, saúde, cultura terapêutica, autorrealização.

Abstract
This paper aims to understand the shifting health meanings of the media discourse and its
implications in postmodern society, from the “picture” section of the “Melhor com
Saúde” fan page. We employed a documentary research and the social anthropology
approach of Maffesoli’s imaginary, relating them to the ideas of therapeutic culture and
performance society. We found that the section associates health with self-realization,
imbricating it to a moral code in which success and happiness are imperatives. The
individual is summoned to take responsibility for his well-being and, thus, must consume
information. The imaginary articulated in the fan page distinguishes, on the one hand, the
1
Este artigo integra a pesquisa de pós-doutorado realizada em 2018, no programa de pós-graduação em
Mídia e Cotidiano na Universidade Federal Fluminense. O estudo foi financiado pela FAPEMA, SECTI e
Governo do Estado do Maranhão.
2
Professora Adjunta e membro do corpo permanente do mestrado em Comunicação da Universidade
Federal do Maranhão, campus Imperatriz. Pós-doutora em Mídia e Cotidiano e doutora em Comunicação
Social. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Imaginarium – Comunicação, Cultura, Imaginário e
Sociedade” (CNPq/Ufma). E-mail: dayres42@gmail.com

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healthy, thriving, proactive and resilient individuals; and on the other, those of weak will,
sick and sufferers. Health corresponds to an enterprise; therefore, it stems from the
effective self-management.
Keywords: cyberculture, imaginary, health, therapeutic culture, self-realization.

Introdução
A internet proporciona o acesso facilitado e abundante a informações sobre
saúde. Misturam-se na rede alertas, prescrições, diagnósticos, descobertas e conselhos
diversos que figuram como panaceias para as aflições cotidianas. A sociedade
hiperconectada convoca o indivíduo a se modular continuamente, reconfigurando os
modos de ser e estar no mundo. As práticas sociais emergentes da cultura digital
estimulam ideias, crenças, valores, mitos e rituais que transcendem a esfera racional e
preenchem a necessidade humana de dar sentido ao mundo.
Definida como “[...] um estado de completo bem-estar físico, mental e social
e não somente ausência de afecções e enfermidades [...]” (OMS, 1946, doc. não
paginado), a noção de saúde se amplia na ambiência digital, tornando-se objeto de
intervenção e modulação constante. A saturação do regime de verdade moderno e o
avanço tecnológico erigem um ambiente instável, emocional, intenso e centrado no
presente (MAFFESOLI, 2018).
A saúde como signo, converte-se em valor central na contemporaneidade,
objeto de culto e injunções. A sociedade de hiperconsumo cria uma “ambiência de
estimulação dos desejos” (LIPOVETSKY, 2017, p. 35), em que o bem-estar ultrapassa a
ausência de doenças e corresponde à busca constante do aperfeiçoamento corporal, a
evitação da dor, a maximização da performance, o prolongamento da vida e a satisfação
em todos os domínios.
O ambiente digital estimula a circulação de sentidos que irrigam o imaginário
sobre saúde e promovem mudanças nas práticas cotidianas. A fanpage da revista “Melhor
com saúde” difunde a crença de que é possível ser saudável consumindo-se artefatos e
serviços e, principalmente, informação. Estar atualizado nos dá a sensação de poder
enfrentar os riscos e as agruras da vida disseminados constantemente. Apresentando 8,5

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milhões de seguidores, a página é sintoma da ambiência impulsionada pela circulação de
bens simbólicos.
O estudo possui caráter qualitativo e parte da noção de imaginário
(MAFFESOLI, 2016, 2017, 2018) relacionando-a às noções de cultura terapêutica
(FUREDI, 2004) e sociedade da performance (EHRENBERG, 2010). O objetivo é
investigar os deslocamentos dos sentidos da saúde na rede, a fim de compreendermos o
modelo cultural vigente em nossa sociedade.
Utilizamos a pesquisa documental e selecionamos inicialmente 200 postagens
da seção “Foto” da Fanpage “Melhor com saúde” entre os dias 11 de julho e 23 de outubro
de 2018. Entre os vários temas dos posts, escolhemos as frases que contêm palavras
relacionadas ao âmbito da saúde, totalizando treze postagens. As publicações revelam a
saúde como um constructo simbólico associado à autorrealização. Ser saudável
corresponde a um empreendimento; é preciso investir, perseverar, ser diligente, proativo
e manter-se informado.

O ambiente digital e o imaginário pós-moderno


As intensas mudanças sociais, econômicas e tecnológicas, ocorridas a partir
da segunda metade do século XX, fragmentaram o regime de verdade moderno. Fundada
na crença de uma razão dominadora da natureza, a modernidade se satura frente ao
advento da internet. A lógica da rede delineia um novo modo de estar no mundo que
denominamos pós-modernidade, em que se entrecruzam a “sinergia do arcaico e o
desenvolvimento tecnológico” (MAFFESOLI, 2018, p. 135). Em outras palavras, a
cibercultura potencializa o sentimento primordial de estar junto, operando a lógica
baseada nas emoções em que os sujeitos interagem a partir de identificações sucessivas;
trata-se do “indivíduo se metamorfoseando em uma pessoa plural” (MAFFESOLI, 2018,
p. 84).
A cibercultura, isto é, as práticas sociais emergentes do ambiente digital,
tornou possível a circulação de informações de forma capilarizada, escapando aos
modelos tradicionais hierarquizados, distintivos, racionais e utilitários. Trata-se de novas
formas de sociabilidade que modificam os processos de subjetivação e a própria

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percepção da realidade, outrora eminentemente calcada nos fatos. Como pontuou Davis
(2015, p. 20) “[...] são as tecnologias da informação e comunicação que mais moldam e
formatam a fonte de todos os brilhos místicos: o eu humano”.
A cibercultura possibilita a simbiose entre indivíduo e tecnologia, tornando
indistintos o real e o virtual. Cria-se uma atmosfera que convoca à imaginação, à
transcendência e às emoções. A rede proporciona a troca constante e a emergência de um
eu extensível e em permanente conformação. “A experiência desenvolvida
progressivamente no interior da cultura digital revela, na verdade, o surgimento de uma
sensibilidade, inaugurando uma sinergia original entre a mente e os sentidos, entre o agir
racional e o pensamento mágico”. (SUSCA, 2017, p. 5).
A pós-modernidade se constitui em um ambiente de vertigem, povoado de
imagens que modulam continuamente a maneira como interagimos no mundo. Nesta
sociedade fragmentada, o imaginário é o substrato que possibilita a relativa unicidade do
grupo social ou, nas palavras de Maffesoli (2016, p.13), uma “‘infraestrutura espiritual’
garantindo os fundamentos e a fundação de toda a vida em sociedade”. O dispositivo
midiático é vetor dessa transcendência, enfocando revelações capazes de criar impacto no
leitor, mitigar suas inquietações, convocando-o para além do real imediato.
O imaginário é a realidade simbolizada, portanto, comporta não apenas a
esfera racional, mas está eivado de desejos, aspirações, valores e crenças. O imaginário é
narrativa, cristalização de sentidos partilhados no social, mentalidade que se instaura por
algum tempo para, depois, ser substituída. A mídia, como dispositivo estruturante da
sociedade contemporânea, torna-se o principal estimulador de imaginários ou, como
denomina Silva (2017, p. 30), uma tecnologia do imaginário.

Na era da produção total de bens simbólicos, as tecnologias do


imaginário buscam suplantar essa fase espontânea, não poluente, da
produção imaginária e impor uma etapa de geração induzida. O
imaginário tende a deixar de ser processo para tornar-se instrumento,
dispositivo, ferramenta, aparelho, técnica.

O dinamismo do ambiente digital proporciona a rápida circulação de


informações que disputam a economia da atenção e, por isso, precisam causar impacto

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imediato. O turbilhão de imagens que circulam na rede compõe narrativas capazes de
alimentar desejos, valores, necessidades e a imaginação. A internet, portanto, é instância
motriz, tecnologia que fomenta o imaginário, atuando precipuamente através da sedução
e adesão voluntária, a exemplo da fanpage “Melhor com saúde”.

Cibercultura e saúde
A saúde erige-se como um dos pilares da sociedade hedonista pós-moderna.
A perda dos valores normativos e esquemas explicativos que conferiam sentido ao mundo
evidencia a condição transitória da existência e a “coação de conservar a vida desnuda
incondicionalmente sadia”. (HAN, 2017, p.45). Ressurge a potência vitalista, desejo
ardente de fruir todas as coisas de modo intenso e imediato. A saúde deixa de ser objeto
de intervenção pontual para se modular continuamente. Ser saudável depende, portanto,
de intervenção técnica, além de vigilância, cuidado e empenho individuais.
A rede digital promove o acesso facilitado e abundante a informações. A
multiplicidade das questões relacionadas à saúde traduz o caráter pervasivo que o tema
alcança na pós-modernidade (GOMES, 2019). Como aponta Le Breton (2016), a saúde
mobiliza o social, tornando-se a nova religião, resultante de aspirações íntimas, discursos
e investimentos coletivos. Ser saudável equivale a um imperativo categórico, código
indicativo da eficaz gestão de si.
Os sentidos partilhados no ambiente digital modulam a experiência
contemporânea da saúde, transformando-a sobretudo em uma experiência estética, um
sentir comum. Ser saudável não é a expressão monolítica da ausência de doenças, mas
expande-se para a noção de “melhor-ser”, potência vitalista de fruição da existência.
“Vida comum na qual, no ritmo dos trabalhos e dos dias, o qualitativo encontra um lugar
primordial. Qualidade de vida. Expressão um pouco genérica, mas que define bem o
espírito do tempo”. (MAFFESOLI, 2017, p. 4). Trata-se de um constructo simbólico
modulado precipuamente no ambiente digital, onde as práticas sociais extrapolam o
domínio da razão e criam uma atmosfera transcendente, convidativa e emocional em que
tudo parece ser possível.

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A cultura digital provoca deslocamentos na noção de saúde que se torna, cada
vez mais simbólica, instável, atrelada aos humores do mercado, reapropriada e
compartilhada continuamente pelos atores sociais. Ser ou sentir-se saudável concerne não
apenas à esfera individual, mas adquire dimensão coletiva devido à partilha na rede
(GOMES, 2019). Se os cuidados com a saúde eram objeto da tutela médica até a
modernidade, no século XXI, o dispositivo midiático ocupa lugar privilegiado na
circulação de informações, reconfigurando o imaginário sobre saúde.
A internet propicia a emergência da sociedade de hiperconsumo
(LIPOVETSKY, 2017), marcada pela exacerbação do consumo que se traduz em diversos
tipos de serviços, bens e informação relacionados à saúde. O saber médico se evidencia
em todas as áreas da vida, legitimando a necessidade de não apenas curar doenças, mas
preveni-las, intervir no comportamento e otimizar a qualidade de vida.

[...] O Homo consumericus está cada vez mais voltado para o Homo
sanitas: consultas, medicamentos, análises, tratamentos, todos esses
consumos dão lugar a um processo de aceleração que não parece ter
fim. Paralelamente, os espíritos são invadidos todos os dias um pouco
mais pelos cuidados com a saúde, os conselhos de prevenção, as
informações médicas: não se consomem mais apenas medicamentos,
mas também transmissões, artigos de imprensa para o grande público,
páginas da Web [...]”. (LIPOVETSKY, 2017, p. 53)

A cibercultura transforma as relações entre os saberes tradicionais. O


ambiente digital desmantela a hierarquia do conhecimento, justapondo senso comum e
informação especializada, pesquisa científica e práticas caseiras, pensamento científico e
transcendência sincrética, além de aconselhamentos de toda ordem. Institui-se um novo
regime de discurso em que o conhecimento científico tende a perder o protagonismo,
convivendo com outras ordens de saberes. “[...] em virtude dos seus atributos de
acessibilidade, instantaneidade e fugacidade, a Internet é uma vitrine ideal para esse tipo
de consumo que, por vezes, encontra amparo nas inclinações sensacionalistas das mídias
que dispensam a boa prática da checagem dos fatos”. (VASCONCELOS-SILVA;
CASTIEL, 2017, p. 306).

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A sociedade imagética pós-moderna provoca transformações nos binômios
verdadeiro e falso; autêntico e artificial; real e virtual. Surge uma nova sensibilidade em
que nos leva a “desprezar toda ‘explicação profunda’ e a preferir a ‘superficialidade
empolgante’”. (FLUSSER, 2008, p. 56). O dispositivo midiático, como tecnologia do
imaginário, torna-se o grande catalizador de narrativas e práticas relacionadas à saúde.

Cultura terapêutica, autorrealização e performance


A internet potencializa a circulação de discursos psicologizantes para além do
domínio científico e que se incorporam ao cotidiano. A chamada cultura terapêutica
(FUREDI, 2004) torna centrais a emoção e a subjetividade como elementos explicativos
para todos os domínios da vida. O vocabulário e a compreensão de estados mentais
atípicos passam a ser associados a situações cotidianas, desencadeando novos valores e
práticas.

A cultura terapêutica fornece um roteiro por meio do qual os déficits


emocionais "entram no vernáculo cultural" e se tornam disponíveis para
"a construção da realidade cotidiana". Desde o nascimento até o
casamento e a criação dos filhos, passando pelo luto, a experiência das
pessoas é interpretada por meio do ethos terapêutico. (FUREDI, 2004,
p.12).

A cultura terapêutica surge no século XIX e disseminando-se nas diversas


instituições sociais, mas somente no século seguinte é amplamente difundida através do
movimento humanista de Abraham Maslow e Carl Rogers. Os psicólogos relacionaram a
saúde à autorrealização provocando mudanças no modo de pensar o “eu”, isto é, a partir
de um modelo neoliberal de sucesso. (ILLOUZ, 2011).
Rogers concebia as pessoas como portadoras de uma tendência natural para
serem boas e saudáveis, sendo motivadas para desenvolver todo o seu potencial, isto é,
lutar pela autorrealização. O psicólogo Maslow obteve grande sucesso difundindo a ideia
de que “o medo do sucesso que impede a pessoa de aspirar à grandeza e à
autorrealização”. (ILLOUZ, 2011, p. 67). Definiu-se, assim, uma nova categoria de
indivíduos; aqueles que não se enquadram no ideal de autorrealização passaram a ser

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considerados doentes. Como observa a autora, as narrativas de autoajuda convergem para
as narrativas de sofrimento e são acionadas por estas:

Quando se postula um ideal de saúde indefinido e em interminável


expansão, todo e qualquer comportamento pode ser rotulado,
inversamente de “patológico”, “doentio”, “neurótico” ou, em termos
mais simples “inadaptado” ou “disfuncional”, ou ainda, em linhas mais
gerais, “não autorrealizado”. (ILLOUZ, 2011, p. 71).

Os meios de comunicação propagam e sustentam o ideário da autorrealização,


estimulando a oferta de uma gama de produtos e serviços e, principalmente informação,
para o consumo. A sociedade fragmentada, instável e competitiva, em que as instituições
perderam o protagonismo, possibilita que a internet se torne lócus privilegiado para
articular e difundir o credo terapêutico e da autorrealização.
É preciso motivar o indivíduo a enfrentar de modo resiliente as situações
adversas e, mais do que isso, fazê-lo reconhecer-se como pessoa que precisa de ajuda. A
difusão do ethos terapêutico implica uma “pedagogia das emoções”, em que o sujeito
deve buscar o autogerenciamento em todas as áreas da vida, inclusive a esfera emocional.
Conforme observou Ehrenberg (2010), a sociedade contemporânea cultua a performance
e é marcada pela responsabilização. O sujeito deve ser empreendedor de si mesmo,
assumindo o dever para com a carreira, o sucesso e a existência.
O empreendedorismo se estende na esfera social e confere tom de justiça e
igualdade a todos, visto que as oportunidades existem, bastam a competência e o empenho
individuais para garantir o sucesso. A profusão de aconselhamentos difundidos nos meios
de comunicação visa otimizar o desempenho, convocando o sujeito a ultrapassar os
próprios limites e buscar a melhor versão idealizada de si mesmo em todas as áreas da
vida (AUBERT, 2007). Paradoxalmente, coexiste a necessidade de se regrar o presente e
evitar riscos futuros, responsabilizando os sujeitos pelos cuidados com a vida e a saúde.

O indivíduo, autônomo e responsável pela condução da própria vida,


arca com o ônus de se equilibrar frente às demandas. Os ideais de saúde
e beleza se mesclam em um conjunto de práticas que proporcionam
bem-estar físico e mental. (GOMES, 2018, p. 499).

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A fanpage “Melhor com Saúde” é repositório e estimulador de crenças,
valores, mitos, rituais e aspirações. A atmosfera permeável e fluída, em que circulam os
sentidos, modula continuamente a esfera social e a maneira como nos sentimos. A noção
de saúde, portanto, integra o ambiente instável, efêmero, conflituoso e dinâmico
propiciado pela cultura digital.

A fanpage “Melhor com Saúde”


A fanpage da revista “Melhor com saúde”3 estava classificada no Facebook
na categoria “beleza e saúde” e, recentemente, passou a integrar a área “interesse”. Trata-
se da maior comunidade brasileira que utiliza a palavra “saúde” no título, com mais 8,5
milhões de seguidores no Facebook. A página é resultado do projeto empresarial
MContigo, sediado em Salamanca na Espanha.
A fanpage remete ao site homônimo4 e foi reformulada no final de 2018, com
alterações no layout, seções, expediente e informações sobre os objetivos. O site afirma
que está disponível em 23 idiomas e é lido em mais de 60 países. De acordo com o texto,
“Melhor com Saúde” trata dos seguintes temas: “doenças e tratamentos, bem-estar,
remédios naturais, dietas e receitas, psicologia, relacionamentos, maternidade e estilo de
vida”. E esclarece:

Tudo é desenvolvido por uma equipe de jornalistas especializados em


saúde que usam como base pesquisas científicas, descobertas
farmacêuticas, e as últimas informações relevantes em cada campo de
atuação.”5

A fanpage realiza postagens diárias a cada uma hora. Os posts são publicados
em forma de vídeos, textos que evocam a linguagem jornalística6 e ilustrações com
aconselhamentos que se encontram na seção “Foto”. Este artigo integra uma pesquisa

3
https://www.facebook.com/melhorcomsaude/
4
https://melhorcomsaude.com.br
5
Melhor com Saúde [ s.d.]. Disponível em: <https://melhorcomsaude.com.br/quem-somos/>. Acesso em:
01 dez. 2018.
6
A fanpage publica uma chamada com parte do texto que se assemelha a uma matéria jornalística, embora
careça de citações diretas e fontes seguras. O texto completo se encontra no site homônimo.

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mais ampla que investiga os sentidos da saúde na Fanpage. O presente estudo enfoca a
referida seção, em que elegemos aleatoriamente o dia 23 de outubro de 2018 e
selecionamos as duzentas postagens anteriores da seção “Foto”, chegando-se até o dia 11
de julho de 2018.
Entre os vários temas dos posts, escolhemos as frases que contêm palavras
relacionadas ao âmbito da saúde. O corpus é composto por treze posts em que aparecem
as seguintes palavras: “saudável”, “estar bem”, “ferida”, “loucura”, “estresse”,
“estressar”, “doer”, “cura”, “sofremos”, “imune”, “sofrimento” e “fazer mal”. O estudo
possui caráter qualitativo e utiliza a técnica da pesquisa documental para selecionar os
posts da fanpage, e a abordagem da socioantropologia do imaginário de Maffesoli (2016,
2017, 2018), compreendendo que os sentidos partilhados na fanpage impulsionam
valores, crenças e comportamentos e configuram o imaginário social. Como marco
teórico, a investigação evidencia a noção de cultura terapêutica (FUREDI, 2004), que
dissemina a crença de que a subjetividade e a emoção são recursos explicativos para todos
os domínios da existência. Utiliza-se ainda a noção de sociedade da performance
(EHRENBERG, 2010), que compreende uma “empresarização” dos comportamentos,
incitando à autorresponsabilização e implicação contínuas do indivíduo nos resultados de
sua própria vida.

A saúde como autorrealização: o imaginário na fanpage “Melhor com saúde”


As postagens da seção “foto” constam de ilustrações com dizeres
motivacionais. A página oferece aconselhamentos para enfrentar situações cotidianas
adversas, características de uma época em que o sujeito é responsabilizado pela condução
de sua própria vida. Face ao enfraquecimento das instituições, cabe ao indivíduo gerenciar
suas emoções e comportamentos e alcançar o sucesso.
Dentre os posts, a palavra “saudável” aparece em dois deles: “É saudável e
necessário não saber nada de quem decidiu se retirar da sua vida” e “um relacionamento
saudável é aquele em que as pessoas se ajudam mutuamente para corrigir seus erros e se
tornarem melhores, superando obstáculos juntos”.

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Figura 17

Figura 28

A pós-modernidade, ambiente marcadamente emocional e presenteísta


(MAFFESOLI, 2018), é caracterizada por laços sociais que tendem a ser fortuitos e
instáveis. Cabe, portanto, o aconselhamento que ensina a nos preservar diante do
sofrimento. Quanto à primeira figura, não saber nada sobre a alteridade que se retira,

7
É saudável e necessário não saber nada de quem decidiu se retirar da sua vida. Melhor com saúde. 23
jul. 2018. Disponível em:
<https://www.facebook.com/melhorcomsaude/photos/a.162771920578984/868317223357780/?type=3&t
heate>. Acesso em 28 out. 2018.
8
Um relacionamento saudável é aquele em que as pessoas se ajudam mutuamente para corrigir seus erros
e se tornarem melhores, superando obstáculos juntos. Melhor com Saúde, 30 set. 2018. Disponível em:
<https://www.facebook.com/melhorcomsaude/photos/a.162771920578984/923911824464986/?type=3&t
heate> Acesso em 28 out. 2018.

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acarreta um centramento em si mesmo diante da vida que precisa seguir. O sofrimento
deve ser evitado; a informação poderia ocasionar a dor.
O post estrutura uma questão cotidiana como problema a ser enfrentado da
ordem da saúde. Denega-se a alteridade para se manter saudável. O aconselhamento
propõe uma solução genérica, sem qualquer fundamento, induzindo as pessoas a se
absterem de buscar a informação sobre o outro e assim, avaliar suas próprias condutas. O
exemplo demonstra como a cultura terapêutica se disseminou no tecido social e “se
estende de sistemas complexos de pensamentos até atos corriqueiros da vida cotidiana”.
(ILLOUZ, 2011, p. 71).
A figura número 2 também oferece conselhos sobre relacionamentos. Em
tempos de amor líquido (BAUMAN, 2004), em que os vínculos são frágeis e efêmeros, o
site ensina a perseverar. O que tradicionalmente era tratado como pertencente ao domínio
privado, passa a ser discutido na arena pública, atuando sobre os modos de ser. A
intimidade se desatrela do indivíduo interiorizado, psicologizado, característico da
modernidade, passando a ser encenada na rede.
Os posts “Estar bem consigo mesmo é melhor do que estar bem com todos”
(“Melhor com Saúde”. 19 jul. 2018) e “Quando você for imune às opiniões de atos dos
demais, deixará de ser vítima de um sofrimento desnecessário. Lembre-se de que ninguém
pode lhe fazer mal se você não deixar” ((“Melhor com Saúde”. 27 ago. 2018) também
remetem à autonomia individual. Em ambos, procura-se evitar o sofrimento, impondo o
compromisso egóico como forma de bem-estar.
Os aconselhamentos subjugam a alteridade aos princípios individuais, uma
vez que o sujeito deve buscar respostas em si mesmo. A pessoa se torna vítima quando se
atrela à opinião alheia, enquanto o indivíduo “imune” é capaz de sair da condição reativa
do sofrimento. A fortaleza reside no “eu” que se sobrepõe aos demais. “Enquadrada em
uma peculiar moldura psicologista, a necessidade de “amar a si mesmo” jamais pareceu
tão premente.” (FREIRE FILHO, 2011, p. 718).

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Figura 39

Figura 410

A publicação “Estou onde estou porque nunca me cansei de sonhar, e porque


cada ferida não foi mais do que uma razão para ser mais forte” (“Melhor com Saúde”. 30
ago. 2018) aponta para uma atitude projetiva como forma de ultrapassar a dura realidade
que se apresenta. As feridas, ou seja, as dores físicas ou emocionais, parecem ter um

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Estar bem consigo mesmo é melhor do que estar bem com todos. Melhor com Saúde. 19 jul.2018.
Disponível em:
<https://www.facebook.com/melhorcomsaude/photos/a.162771920578984/868316566691179/?type=3&t
heate>. Acesso em 28 out. 2018.
10
Quando você for imune às opiniões de atos dos demais, deixará de ser vítima de um sofrimento
desnecessário. Lembre-se de que ninguém pode lhe fazer mal se você não deixar. Melhor com Saúde. 27
ago. 2018. Disponível em:
<https://www.facebook.com/melhorcomsaude/photos/a.162771920578984/891697794353056/?type=3&t
heate>. Acesso em 28 out. 2018.

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propósito; são a oportunidade para a transformação, tornando o sujeito mais apto a superar
novos desafios. A sabedoria, portanto, reside em não se acomodar diante da realidade e
aproveitar os infortúnios para o desenvolvimento pessoal.
O sofrimento resulta da inércia do indivíduo em manter-se fraco, por isso,
deve-se ter autodeterminação para superá-lo. O aconselhamento delega ao sujeito a
responsabilidade sobre suas dores, tratando-se apenas de uma questão de escolha. Assim,
como explica Illouz (2011, p. 68), as narrativas de sofrimento e de autoajuda se
entrecruzam:

Mas, é esta, sem dúvida, uma das características mais notáveis da


cultura terapêutica, ao mesmo tempo que ela pôs a saúde e a
autorrealização no centro de uma narrativa do eu, também transformou
uma ampla variedade de comportamentos em sinais e sintomas de um
eu “neurótico”, “doentio” e “derrotista”.

A foto com os dizeres “A vida só nos dá uma faísca de loucura. Não devemos
perdê-la” (“Melhor com Saúde”. 15 ago. 2018) remete à breve oportunidade da existência
que, mesmo não possuindo sentido em si mesma, está aí, apresenta-se a nós e deve ser
aproveitada. A loucura é a oportunidade de ousar, romper com as regras para instituir
algo; a autotransformação. O culto da performance incita à ação. O governo de si é
correlato à figura do empreendedor, aquele que assume os riscos e depende de sua própria
vontade e iniciativa. O empreendedorismo é reificado como símbolo da proatividade,
responsabilização pelos resultados, eficácia e superação constantes.
Três postagens citam a palavra “estresse”, embora duas delas repitam os
dizeres e somente modifiquem a ilustração: “Não chore pelo passado, ele se foi; não se
estresse pelo futuro, ele ainda não chegou; viva e aproveite o presente” (a citação se
encontra em dois posts). (“Melhor com Saúde”. 18 ago. 2018; 25 ago. 2018). A outra
publicação afirma “A vida é muito curta para se estressar com aquelas pessoas que nem
sequer merecem ser um problema na sua vida”. (“Melhor com Saúde”. 19 set. 2018).

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Figura 511

Figura 612

Os textos remetem ao presenteísmo característico da pós-modernidade


(MAFFESOLI, 2018) e à evitação do mal, o estresse, cujo sentido é ampliado de uma
condição patológica para um evento cotidiano. O imaginário da autorrealização implica
eliminar os obstáculos impeditivos ao desenvolvimento do potencial do indivíduo, como

11
Não chore pelo passado, ele se foi; não se estresse pelo futuro, ele ainda não chegou; viva e aproveite o
presente. Melhor com Saúde. 25 ago. 2018. Disponível em:
<https://www.facebook.com/melhorcomsaude/photos/a.162771920578984/891697404353095/?type=3&t
heater>. Acesso em 28 out. 2018.
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A vida é muito curta para se estressar com aquelas pessoas que nem sequer merecem ser um problema
na sua vida. Melhor com Saúde. 19 set. 2018.
<https://www.facebook.com/melhorcomsaude/photos/a.162771920578984/918894608300041/?type=3&t
heat.>.Acesso em 28 out 2018.

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o lamento em relação ao passado, o futuro gerador de estresse e até pessoas indignas de
figurar na vida do sujeito e que podem se tornar um fator estressor.
A abordagem sobre a virtualidade do passado e do futuro convoca os
indivíduos à responsabilização constante para evitar o risco de perder-se na apatia e deixar
de fruir o presente. A sociedade hedonista pós-moderna exige a performatividade do
indivíduo na cena social, buscando a intensidade do momento vivido.
O presenteísmo remete ao aspecto trágico da existência (NIETZSCHE, 2007),
à admissão do caráter absurdo próprio da existência humana que, apesar dos esforços, não
compreendemos. Nada mais possui sentido permanente, previsível, e o futuro significa o
adiamento ingrato porque pode não acontecer. O projeto moderno não logrou suas
promessas. Resta-nos o impulso para procurar satisfazer a sensação constante de falta,
incompletude. O agora intensifica o viver.
A publicação “Sofremos muito pelo que nos falta e desfrutamos pouco o
muito que temos” (“Melhor com Saúde”. 21 ago. 2018) alude ao imaginário hedonista
pós-moderno. Não aceitamos a falta de algo e buscamos a satisfação dos desejos de modo
irrefreável, principalmente através do consumo de artefatos e bens simbólicos. A própria
individualidade passa a se constituir por meio do consumo, tornando-se efêmera e fluída.
(BAUMAN, 2004). A promessa de satisfação do desejo, constantemente reiterada nos
meios de comunicação, nunca é satisfeita. O sujeito tem a percepção ilusória de ser
autônomo, mas não controla o próprio destino e decisões.
O hedonismo torna o sofrimento insuportável. As dores do corpo e da alma
são encenadas no espaço midiático de modo reiterado, desencadeando uma profusão de
informações a serem consumidas. Estas carregam a promessa de acabar com o sofrimento
e estabelecer um estado ideal de bem-estar.
A saúde, portanto, não se trata de um estado “natural”, mas construído
socialmente através de discursos, valores e práticas que se traduzem no consumo de
artefatos e bens simbólicos. Assim, a forma corporal parece ter se tornado o último reduto
da soberania pessoal. “O corpo não é uma coleção de órgãos e funções ordenados segundo
as leis da anatomia e da fisiologia, mas, primeiramente, uma estrutura simbólica”. (LE

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BRETON, 2013, p. 60). O sofrimento causado pela falta, aludido no post, integra o ideário
da satisfação em todas as áreas da vida difundido na pós-modernidade.
A postagem “O perdão chega quando as lembranças deixam de doer”
(“Melhor com Saúde”. 19 set. 2018) preconiza a libertação do passado através da
aceitação. O perdão, ato tradicionalmente associado à religião, tornou-se bastante
difundido na cultura motivacional como pressuposto para se alcançar a autorrealização.
A pessoa próspera é aquela que não tem mágoa ou amarras no passado, pois estes
impedem de alcançar o que se deseja. A dor cessa quando os infortúnios decorridos são
ressignificados, isto é, aceitos, e a pessoa liberada para viver o presente.
A ultrapassagem do sofrimento é indispensável em uma sociedade de
performance. O apego ao passado é descabido porque tende a imobilizar, tornando o
indivíduo inadaptado às demandas cotidianas. É de responsabilidade do sujeito
ressignificar e evitar o sofrimento, buscando respostas em si mesmo.

É elevando-se à incandescência de si mesmo que o indivíduo tenta dar


uma resposta ao sentido de sua vida, onde não existe mais nenhum
sistema pronto, como se fosse o único caminho para alcançá-lo. Era
para ser ele mesmo seu próprio criador e o artesão de sua vida eterna.
(AUBERT, 2006, p. 351).

O post “O tempo não cura nada. Ele apenas nos acostuma à ideia de que
algumas coisas estão mudando e é preciso aceitá-las” (“Melhor com Saúde”. 27 ago.
2018) remete ao dito popular de que o tempo cura tudo. A passagem do tempo torna as
coisas habituais. A resiliência, postulada pela cultura motivacional, é a ideia subjacente à
aceitação, a exemplo do post anterior. Ser flexível em tempos instáveis é condição para o
bem-estar e a autorrealização. O indivíduo, que não se adapta, é ultrapassado pelas
circunstâncias e põe em risco a própria saúde.
A pergunta proposta pelo historiador, no capítulo sobre resiliência, ilustra a
questão: “Como viver numa era de perplexidade, quando as narrativas antigas
desmoronaram e não surgiu nenhuma nova para substituí-las?”. (HARARI, 2018, p. 317).
O autor completa: “O mais importante de tudo será a habilidade para lidar com mudanças,
aprender coisas novas e preservar seu equilíbrio mental em situação que não lhe são

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familiares”. (p. 323). A resiliência é um requisito fundamental na pós-modernidade. A
aceitação se desatrela da atividade religiosa e passa a ser associada à gestão eficaz de si
mesmo.
Por fim, a publicação “Vamos rir de tudo, porque a tristeza não se cura com
mais tristeza” (“Melhor com Saúde”. 26 jul. 2018) relaciona-se ao sentido trágico da vida
(NIETZSCHE, 2007). A tristeza é ineficaz em uma existência que não tem sentido,
portanto, cabe rir da própria condição humana. A modernidade postulava a perfeição, a
ordem e imutabilidade das coisas, o que resultava na negação da vida em suas incorreções
e inconstâncias, causando a renúncia aos prazeres mundanos.
Como afirmava Nietzsche (2007), a vida não possui fundamento, e o sentido
advém da capacidade simbólica de o homem interpretar as coisas. O ser humano age,
portanto, mitologicamente para explicar a existência. O riso é opção afirmativa, vontade
de potência porque reifica a vida e é capaz de redimir o sofrimento. O homem deve se
voltar para o corpo, experimentar a alegria do viver, valorizar a vida, a força e a saúde.
O riso, de acordo com o filósofo alemão, exprime potência, força criativa que
habita o ser humano. Como criador, o homem deve tomar a existência como fato,
necessidade, a vida como ela é. O trágico consiste em aceitar incondicionalmente o caráter
sofredor e absurdo próprio da existência humana. A cura da tristeza pode vir,
paradoxalmente, através da alegria expressa pelo riso. De acordo com Maffesoli (2018),
o sentido trágico da existência retorna na pós-modernidade, impulsionado pela intensa
conexão das redes.
Neste ambiente emocional, as postagens evidenciam a necessidade de se
disponibilizar informação de forma abundante e circunstancial para consumo imediato,
sem que haja um sentido linear e coerente entre o que é publicado, chegando-se até à
repetição de duas postagens. A fanpage veicula aconselhamentos, atingindo milhões de
seguidores. O biopoder, antes restrito ao consultório e à palavra do especialista, passa a
ocupar lugar privilegiado nos meios de comunicação. Os posts revelam a saúde
relacionada a uma pedagogia das emoções, em que o sujeito deve se autonomizar, gerir o
que sente e fazer frente aos desafios cotidianos.

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Considerações finais
O imaginário da saúde se constitui na teatralização da vida cotidiana
ritualizada nas postagens. Em uma sociedade instável, em que os esquemas explicativos
da realidade perdem o apelo legitimador e universalizante, a saúde se torna um valor
central. O dispositivo midiático é o grande catalizador do imaginário sobre o tema. A
fanpage “Melhor com saúde” veicula informações, sob a forma de aconselhamentos, que
modulam o bem-estar da sociedade. Estimulam-se desejos, reafirmam-se padrões e
mitigam-se as dores.
As publicações revelam a saúde, não como estado natural do ser humano, mas
um constructo simbólico associado à autorrealização. Ter saúde é estar motivado para
enfrentar as situações adversas do cotidiano, superar o sofrimento e, mais do que isso,
responsabilizar-se pelo próprio bem-estar. O imaginário na fanpage distingue, de um lado,
indivíduos saudáveis, bem-sucedidos, proativos e resilientes; de outro, aqueles de vontade
fraca, doentes e sofredores.
A sociedade hedonista pós-moderna não suporta a dor e o sofrimento, fatores
que põem em risco a saúde e impedem o sujeito de alcançar a autorrealização. A
sociedade da performance (EHRENBERG, 2010) incita o sujeito a agir e requer a sua
implicação nos resultados. As postagens mostram que o sofrimento pode ser evitado
através da tomada de decisão ou deve ser considerado a oportunidade para o indivíduo se
transformar, portanto, depende da vigilância e do empenho constantes rumo à superação
dos males. A saúde está imbricada a um código moral em que sucesso e felicidade são
imperativos.
As postagens ampliam os estados relacionados originalmente à saúde para
questões do cotidiano, através de aconselhamentos que visam a modular o estado mental
do indivíduo. A cultura terapêutica (FUREDI, 2004) enleia-se ao credo da
autorrealização. As frases resvalam para o senso comum, embora tenham ecos nos
discursos psicologizantes que se imbricam ao ideário do empreendedorismo e,
consequentemente, ao culto da performance. Ser saudável corresponde a um

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empreendimento; é preciso investir, perseverar, ser diligente, proativo e manter-se
informado. A saúde resulta do eficaz gerenciamento de si.
Diante da realidade turbulenta, instável e competitiva, as postagens assumem
o caráter pedagógico de orientar o indivíduo a administrar as emoções e buscar respostas
em si mesmo. É preciso centrar-se no presente, livrar-se do passado e buscar a constante
ultrapassagem de si (AUBERT, 2006) como forma de dar sentido à tragicidade da
existência.
O ambiente digital catalisa o imaginário sobre saúde, potencializando uma
teia de crenças, valores e práticas que se disseminam e proporcionam certa unidade ao
corpo social. A fanpage é uma tecnologia do imaginário que seduz o indivíduo,
convocando-o para além do real imediato. O dinamismo da página “Melhor com saúde”,
que se traduz pelo grande número de postagens, seguidores e interações, indica a
disposição dos usuários em consumir informação em busca do aprimoramento pessoal.
Em uma sociedade vertiginosa, é preciso encontrar sentido, um fôlego, para novamente
mergulhar nas intricadas tramas do cotidiano.

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