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A questa [curiosamente, foi surgindo, foi ganhando | medida que escasseavam as alternativas de, | expulsos da terra. Portanto, entre nés, ela 6 a face esca- | moteada da questéo do trabalho, que se manifesta na | exclusdo soci Para mim, ndo existe a questio da reforma agraria, existe a questéo agréria. A reforma agréria é uma possi- ide de solucdo para a questao agréria. A questéo ‘agraria ¢ © problema e a reforma agraria é a solucao do problema. Hé diferentes modalidades de reforma agraria que poderiam ser respostas & questdo agraria. E preciso ver, primeiro, o que 6 a questo agréria no Brasil para depois ver quais sao as propostas de solucao que Ihe esto sendo oferecidas. Nao s6 as que o Estado bra: oferece, desde a ditadura militar, para a questao agré- ria. Mas, também, as respostas que os préprios trabalha- dores, quando organizados, imaginam que seriam as mais ‘adequadas para a questao. A questo agraria em nosso caso tem tudo a ver com @ fato de que a sociedade brasileira foi, até nao muito tempo atras, até cem anos atrés, uma sociedade escravis- fa. Até 1850, que 6 quando de fato se comeca a tomar iniciativas concretas para acabar com a escravidéo, 0 acesso @ terra era “livre”. Nao havia o atval regime de propriedade, que 6 um regime fechado, o da propriedade absoluta, que o regime envelheceu muito depressa, que ele contém muitas imperfeicées € insuficiéncias e, ao con- = trario de todo direito, nao se tornou produtor de justica (nem dos direitos dos grandes proprietérios), mas produtor de problemas e iniquidades. ‘A questo agréria comeca a se definir quando o Estado pressionado por alguns setores s e, sobretudo, pelas grandes poténcias da época, riam expandir mercados (coisa impossivel com a a escraviddo. Acabar com a escravidéo -ava, naque- la época, em que 0 governo estava nas maos dos grandes fazendeiros, criar um sério problema para a grande pro- priedade, para os préprios fazendeiros. A pergunta que os fazendeiros faziam, e com razGo, era: “quem vai trabalhar’ nas fazendas quando a escravidéo acabar?” O regime de propriedade que entao havia era o regime suspenso em 1822, poucos meses antes da . Apesar de suspenso, nao foi imediata- Jom fovor do primeira ccupante. As benfeitorasetos sobre im concedidas pertenciam de diel @ quem a fives feito ov era costume que ndo podiam recebertrras om sesmaria.os que nda fossam 13 mente substituido por um novo direito de propriedade. Na Prética ele continuaya funcionande, embora o governo Indo fizesse novas concessées sesmariais. Se o regime de sesmarias fosse plenamente restabelecido e continuasse em vigor apés © fim da escravidéo, que obviamente ‘estava préximo com a diminuigéo de nimero de escravos, 9 trabalhadores pobres e livremente as terras disponiveis e nao iriam trabalhar para 98 fazendeiros. Era necessério, portanto, criar um direito de propriedade que fosse, ao mesmo tempo, um obstaculo 20 livre acesso @ terra por parte da massa da populacéo Pobre, inclusive por parte dos ex-escravos, daqueles que viessem a ser libertados da escravidao. A formula encontrada foi a de aprovar uma nova lei de terras. Essa lei (Lei N° 601, de 1850) tornou-se 0 oposto da Lei de Colonizacto, aprovada nos Estados Unidos mais ‘ou menos na mesma época. Lé as terras da fronteira, as terras do Oeste, foram abertas a livre ocupacéo dos colonos, mediante supervisao e controle do governo. Essa foi a reforma agraria americana, que assegurou a trans- formacao do Oeste num dos grandes celeiros mundiais de alimentos, inicialmente com a agricultura familiar, No Brasil fez-se 0 contrério, Tratou-se de aprovar um regime de propriedade que impedisse o acesso & proprie- dade da terra a quem nao tivesse dinheiro para compré-la, mesmo que fosse terra publica ou terra devoluta. Para ‘obtera legitimacéo do direito & terra havida era necessério broncos, puros de sangue e calicos.O ecesso ds ve ifordtado cos hheroges e aos gontios, os negros, aos mouros, aos judeus. Os excraves ado diam se ornarsesmeiros, como de resto nao podiam ser proprciorios de coisa ‘laura, Tudo que viesse a thes pertoncer,pertoncia de drsito « seus sonhores, Esa regrasusctou muitos discusses jrdicas, que revelam os muitos contro ses da esravidéo, Pola Lei de Terres, de 1850, @ posse «0 domino se fundlrom ‘num dlreito s8. Com isso, 0 Estado brasileiro, senhor de dominio de todos oo ‘erras, abriy mao desse dreitoeliterolmente fez dale dougao aos propratios porticuares. Manteve 0 apenas em alguns casos: em relagdo. co Subsolo, 6s teras de matinha as terras do alval Distto Feder, 14 que a pessoa pagasse por ela, Os efeitos sociais da lei ‘aparecem claramente na fala de um grande fazendeiro de café, que foi uma grande fi do Império eno comeco da Reptblica: da Silva Prado, de $é0 Paulo. Ele era de uma familia muito rica e culta, inclusive, Eles foram industriais, grandes acionistas € diretores de ferrovia, banqueiros. Prado dizia que acesso 4 terra, por parte dos pobres, dos trabalhadores, se faria mediante a poupanca, a vida sébria, aquela coisa de née gastar, de economizar e guardar. No fundo, a lei Pressupunha uma espécie de ética protestante dos tra- balhadores rurais, que assim poderiam economizar, de- senyolver uma disciplina interior baseada na poupanga e comprar ferras que os grandes fazendeiros tivessem em disponibilidade, Essa 6 a formula que a Lei de Terras consagra. Em 1854, foi feito © primeiro cadastramento de terras decor- rente dessa Lei, pois era preciso que os possuidores de terras havidas por qualquer titulo legitimassem os direitos territoriais obtides durante todo © periodo colonial ou entéo verificar quais terras eram de fato devolutas e podiam ser ‘edistribuidas pelo governo. Na verdade, o chamado Registro Paroqui até hoje a base de referéncia da cadeia dominial no Bra: Qualquer fitulo de propriedade territorial cuja cadeia do- minial chegue até o Registro Paroquial é um titulo perfeito, € um titulo que no esta sujeito a discussao. Todos os titulos, ‘uja cadeia deminial nao chegue a um ato original legal de transferéncia de terras do dor poblico para 0 dominio privado, sao titulos discutiveis. Hé no pais, certa- mente, um grande numero de titulos nessa condigéo, inclusive em reas urbanas, causa alias néo sé de nume- ros0s litigios judici fundidrios. ‘Amesma legislagéo que criou a mencionada dificulda- de de acesso a propriedade da terra ja previa a imigragéo 15 maciga de trabalhadores europeus que substituiriam os escravos que estariam faltando. Nao sé porque os escra- vos ertados, nao seriam suficientes para Suprir as novas necessidades da lavoura, sobretudo na Grea do café que estava em expansao. Mas, também, porque © escravos existentes eram os escravos que ja estavam trabalhando nas fazendas ¢ que, provavelmente, mesmo livres, delas nao sairiam. Porém, como ficariam as novas fazendas que estavam surgindo? Na mesma ocasido em que se aprovava a Lei de Terras, aprovava-se a lei que proibia, dai em diante, o trafico de escravos para © Brasil. Ficava, assim, criado o problema do suprimento de mao-de-obra para a grande lavoura. A saida era, entéo, promover a imigracao de trabalhadores estrangeiros, especialmente europeus de paises em que a expansdo capitalista estava promovende ampla expulso de trabalhadores da terra e criando excedentes populacio- nas. $6 que se os trabalhadores europeus chegassem aqui © encontrassem a terra disponivel para pessoas, como cles, brancas ¢ livres, néo teriam por que deixar de ter sua répria terra e trabalhar para os fazendeiros. E preciso lembrar que a escravidéo era, entre outras coisas, um modo de forcar a criagéo de uma massa compul- séria de trabalhadores onde nao houvesse pessoas em numero suficiente disp. para serem forcadas ao trabalho em terra alheia. Cessada a escravidao, era ne- cessdrio criar um mecanismo que tornasse o trabalho nas terras dos fazendeiros 0 Unico meio de sobreviver. O direito de propriedade da terra que se implanta no Brasil nesse momento, e em vigéncia até hoje, tem essencialmente essa finalidade: tornar o trabalho em terra alheia, em terra dos grandes proprietarios, o unico meio de sobrevivencia dos pobres. Trata-se, portanto, num pais que tem vastas ‘extens6es de terras subutilizadas em maos de proprietérios particulares, de criar um meio artificial de forcar quem Go tem terra a servir quem atem. $6 que, nos dias atuais, 16 com as modernas tecnologias, quem tem j@ néo precisa, do trabalho de quem nao tem ou, ao menos, nao precisa de toda forca de trabalho de quem nao tem. Isso tudo tinha aver como fato de que antes, no regime de sesmarias, 0 problema néo existia. $6 podia tornar-se senhor de terras quem fosse branco e livre e, ai corta época, cat6lico. Havia uma interdicéo racial e religiosa no acesso @ terra. Na base, esse acesso estava regulado por critérios baseados na relevancia da pureza de sangue e da pureza de fé. Dessas concepcdes derivava um direito que era 0 direito dos vencedores e dominadores de gentes de outras ragas e outros credos. Entao, 0 direito nao se configurava em relacdo a pessoas que tivessem, por exem- plo, como entao se dizia, macula de sangue, pessoas que Go eram brancas de quatro costades, cujos bisavés néo fossem, também eles, brancos ¢ puros de sangue. Todos sabemos que essas definigées rigidas tinham excecdes, estabelecidas de modo nem sempre juridicamente claros. E que s6 em meados do século XVIII 0 governo portugues baniu formalmente a distingdo racial come fator de di minagéo dos indios e seus descendentes no reconheci mento de alguns direitos. Mas em muitos lugares el persistiv pelo costume. Se essas interdicées desaparecessem, como de fato comecavam a desaparecer com a Independéncia e, de- pois, com a Lei de Terras, se acabasse a escravidao, as terras desocupadas do pais, que eram extensas, ficariam disponiveis para a livre ocupacéo de quem as quisesse ocupar e nelas trabalhar. Era preciso, pois, criar mecanis- ‘mos que gerassem arfificialmente, ao mesmo tempo, ex- cedentes populacionais de trabalhadores @ procura de trabalho e falta de terras para trabalhar num dos paises com maior disponibilidade de terras livres em todo o mundo, Eis ai 0 n6 da questio. © objetivo era criar “por meios falsos” uma massa real e verdadeira de “despossuidos” aw {para usar uma palavra que néo tem sentido em portu- gués), que nao fivesse nenhuma outra alternativa senéo trabalhar para os grandes proprietarios de terra. A Lei de Terras foi um artificio para criar um problema e, ao mesmo tempo, uma solugao social em beneficio exclusivo dos que finham e tém ferra e poder. Nessa época, porém, as elites, que eram ao mesmo tempo elites econémicas, politicas e ainda finham uma ampla compreensao dos intelectuai meios fi que criavam e manipulavam para exercer o poder. Em muitos sentidos, era uma elite competente e adm: ‘obviamente, de seus privilégios). Essa const ciéncia vinham provavelmente das relagées patriarc 9, entre a casa grande e a senz dade que nascia o sentido da responsabilidad. do senhor pelo seu escravo. E claro que a amt desdobrava na complicada combinacao de afeto e violén- cia, que fazia do mundo da fazenda um mundo organico e fechado, e obrigava 0 senhor & consciéncia e as obriga- ges de patri também em relacéo aos agregados, protegidos e cativos. ferras, ao criar legalmente, e ao confirmar de classe sobre as terras do pais, foi, na verdade, 0 primeiro paso importan- te no sentido de destruir esse mundo patriarcal, essas relacées e essas concepcées que tornavam radicalmente desiguais os semi-humanos (os semoventes, como entio se definia 0s escravos, pondo-os na mesma condigao dos animais de trabalho), os subhumanos (que eram 0s néo cativos e nao proprietérios, que sé tinham existéncia civil 18 através do senhor de escravos ¢ de terras, reduzidos & condigéo de agregados e protegidos) e os humanos (que eram os brancos, em relagao aos quais nao quer duvida quanto, por exemplo, a terem alma). No entanto, 0 fim do mundo patriarcal se deu por meio de uma agonia lenta e, a rigor, ainda néo esta consumado. Quando Tancredo Neves morreu, todos ficaram sabendo da lia extensa e antiga, remanescente e descendente de seus escravos. Hé ainda hoje no Brasil muitas familias que honram seus compromissos sociais e morais com os antigos cativos e seus descendentes. O Mosteiro de Sao Bento de ‘So Paulo teve como empregados ¢ protegidos até ai por 1971 descendentes de antigos escravos,libertados em 1871, de uma mesma familia que © servia desde 1700. Um descendente desses escravos tornou-se professor universitario no Rio de Janeiro e faleceu ha poucos anos. A agonia desse mundo escravista e patriarcal prolon- gou-se até meados dos anos cinqenta, com suas relacdes de favor e dependéncia pessoal, sua violencia especifica, seus conflitos dissimulados e sua exploragao caracteristica. Até entéo as diferentes relacdes entre o homem e a terra, mediadas pelo monopélio de classe ido no século XIX, davam razoavelmente certo, mesmo com uma enor- me pobreza no campo. Uma pobreza, porém, curiosa, que ainda hoje desperta nostalgia nos antigos camponeses agora reduzides a uma miséria completamente diferente. Quase nao havia dinheiro nas relacdes de trabalho. A possibilidade de uso da propria terra do fazendeiro por parte do trabalhador para assegurar sua subsisténcia e a de sua familia e a possibilidade de moradia na propria fazenda criava uma pobreza peculiar. O trabalhador pro- duzia diretamente seus préprios meios de vida, nao pas- sava fome. © mundo pobre do caipira e do sertanejo era um mundo de fartura. ‘Mas, ao mesmo tempo, ele néo era um comprador, um consumidor de produtos oriundos de outros setores da Isso néo foi problema enquanto o Bra: exportava produtos agricolas, como café e acicar, e im- portava da Europa e dos Estados Unidos produtos indus- , @ partir do final do século passado, e a ébvia neces- sidade de mercados de consumo por parte da industria. A rigor, a necessidade de expansdo do mercado interno para «@ industria deveria ter colocado os industriais a favor da reforma agraria contra os grandes proprietérios de terra. ‘Mas, a burguesia industrial brasileira nunca foi politica- € os grandes comerciantes tornaram-se gran- des clientes politicos das oligarquias, as quais delegaram suas responsabilidades de mando e direcdo, reproduzindo (0s mesmos mecanismos politicos que incentivos, favores econémicos variados das proprias oligarquias de base rural. Entre nés, nunca se configurov como na Europa e, de cerlo modo, como nos Estados Unidos, um conflito histérico significative entre os indus- iais © 0s grandes proprietérios de terra que tornasse radidveis as reformas sociais e politicas, em especial a reforma agraria, que transformassem 0 pais num pais moderno. A nossa modernizagdo tem um estilo proprio: corre intensamente na érea econémica, inclusive no campo, sem significativas repercussées no émbito social 20 ¢, sobretudo, politico. Esse 6, ainda hoje, penso, 0 nosso impasse histérico. A partir dos anos cinqenta, aproximadamente, come- sa a haver uma espécie de revolugao tecnolégica no campo. O préprio governo comeca a estimular, através de financiamentos subsidiados do Banco do Brasil, dos bancos oficiais em geral e dos bancos particulares, a modemizacéo tecnolégica com a mecanizacao das grandes fazendas; comeca a estimular a substituigéo dos cafezais velhos e deficitarios de Sao Paulo, do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, por outros cultivos ou por pastagens. Foi o chama- do programa de erradicagao do café, que se completou no comeco dos anos sessenta. Tratava-se de cafezais antigos, de baixa produtividade e de cafés de ma q de e pouca aceitacao no mercado. A idéia era redi reas de plantio e promover a producao de cafés finos que tivessem boa cotacdo no mercado internacional. Com isso, comegava-se a expulsar, das fazendas de café, 0s colonos residentes. Terminava, assim, o regime de colonato que nascera com o fim do trafico de escravos e ave durara cerca de setenta anos. Na drea da cana-de- ‘actcar, no Nordeste, houve uma coisa mais ou menos parecida. Ali nao houve uma mudanca tecnolégica signi- ficativa, mas houve a expulséo dos moradores das fazen- das como uma forma de recuperar as terras que os trabalhadores usavam para produzir seus préprios alimen- 40s. Os proprietarios passaram a dar um destino diretamente rentével, a essas terras. Surgem, entao, os chamados “‘clandestinos”, os béias-frias de la, 0s moradores de ponta de rua, os expulsos das fazendas de cana. Pouco tempo depois, nos anos sessenta, na Amazénia, comeca a expul- sGo de posseiros ¢ seringueiros, que ganha grande inten- sidade e violéncia nos anos setenta e oitenta e vem até hoje. Por diferentes razées e causas, no Brasil inteiro, os Ultimos cinqenta anes tém sido anos de mudancas na 2 economia agricola, nos setores mais importantes, que levam ao aparecimento, em escala macica, do que pod: mos chamar de proletério agricola, o trabalhador que néo reside na propriedade de quem ocasionalmente ~ 0 fazendeiro ~ compra a sua forca de trabalho em troca de salério, (© que acontece, entéo? Com a modernizagéo tecno- logica vem simultaneamente a modernizagao das relacées de trabalho. Com a aprovagao do Estatuto do Trabalhador Rural em 1962, 0s vinculos de trabalho passam a ser contratuais € néo mais vinculos de dependéncia pessoal de favor. Com essa mudanca, a mesma legislacao fundi ria, 0 mesmo direito de propriedade que criava excedentes populacionais pobres absorvides pela grande proprieda- de, passa a criar excedentes populacionais que ndo sao absorvidos por ninguém. Comeca a surgir ai, efetivamente, «a cara de excedente populacional dessa massa de popu- lagdo, os excluidos. Ela surge nas favelas, surge nas cha- madas beiras de rua das cidades do interior, surge nos aglomerados urbanos de péssimas condicoes de vida, invasées, corticos, etc. Surgem até aglomeracoes urbanas de migrantes temporrios, como os corticos préximos & favela do Jaguaré, em Sao Paulo. E uma favela enorme cujos habitantes, em parte, vem do Nordeste por seis meses cada ano para trabalhar na cidade, ganhar algum dinheiro, voltar para casa e sustentar a familia. Muitas vezes, os homens fazem ‘essa migracdo temporaria & ica unicamente para nao ser uma boca a mais na casa de origem. Surge, assim, um enorme problema nacional que 6 0 problema dos excedentes populacionais, a popu- lacéo sobrante, os excluidos, para os quais nao existe lugar estavel de trabalho e vida, que do absorvidos pela eco- nomia marginal e precariamente. No século XIX, quando 0s politicos e grandes proprie- térios de terra e de escravos perceberam que era neces- sério acabar com a escravidao e mudar as relacées de trabalho, perceberam, também, que era necessério mudar © direito de propriedade. Era necessério fazer 0 inverso de uma reforma agréria. Nos anos sessenta, deste século, quando a revolucao tecnolégica impés mudancas radicais nas relagées de trabalho, os proprietarios de terra rejeita- ram a necessidade de fazer mudangas correspondentes e adaptativas no direito de propriedade. Recusaram-se a fazer a necesséria reforma agréria. Selaram, porisso, o destino do pais e de todos nés, condenando-nos & modernizagao inconclusa, a um desenvolvimento econémico excludente a um modelo politico de democracia precéria e néo participativa, A esquerda tradicional, leninista, dizia, e por incrivel que pareca ainda diz, que esse desenraizamento do tra- balhador rural é, na verdade, progressista, um bem, porque ctia © operdrio e, assim, abre caminho para transformar 0 camponés em cidadao. E rotula de populistas os que se afligem com a enorme miséria e a enorme degradacao moral que atinge macicamente as vitimas desse proceso. S6 que esses leninistas de manual, que, de modo geral no conhecem suficientemente o pais em que vivem, que ndo leram Marx nem Lenin, néo sabiam, e pelo visto confinuam nao sabendo, que o mundo mudou enorme- mente desde os tempos de Marx e Lenin e desde 0 tempo. das primeiras revolucées socialistas. Hoje 0 mercado de trabalho é muito restrito e seletivo para 0 volume das massas excedentes de populacao que estao sendo criadas, sobretudo nos paises subdesenvolvides, como 0 nosso. Na verdade, essa producao de excedentes populacionais cria uma miséria profundamente desumanizadora, que néo politiza nem anima a possibilidade da revolugéo soci Antes, a freia. Quem estuda problemas sociais como 0 dos. linchamentos, que venho estudando, que sdo formas pa- tolégicas de vida social e de aplicacao da justica, formas izacdo e da cidadania, observa que elas surgem especialmente associadas aos aglomerados hu- manos formados pelos desenraizados, expulsos, excluidos. provisério. E que foi transformado em definitive. Na medida em que os mecanismos de exclusdo econdmica por ele gerados para forcar um tipo especifico de reinclu- so do trabalhador na economia agrério-exportadora de entao (4 ndo sao compensados por novos mecanismos & padrées de reinclusao econémica, a insisténcia num direi- fo fundiario obsolete transforma-se em fonte permanente de exclusdo social Para mim, a questao agréria tem duas caras: primeiro, ruim. Ela é a fonte bésica dos grandes problemas sociais do Brasil. Quando penso em problema penso na deterioracéo das condicées de vida, nao sé na deterioracéo material, mas também na deterioracao moral que a acompanha. Nao pode haver cidadéo, nao pode haver civilizagéo, numa sociedade que tem uma massa tao grande de gente sem nenhuma oportunidade de se inserir na Unica via que nela ha para gestar e sustentar a cidadania, que é 0 mercado de trabalho. $6 quando voce esté no mercado é que vocé pode ser cidadao, vocé pode ter direitos, etc. Fora disso, vocé nao existe, vocé nao & ninguém. Tratar a cidadania como coisa abstrata, como mera palavra, ja é, em si mesmo, um ato de omisso em relacdo a ela. Cidadao excluido de relagées sociais con- cretas mediadas pela igualdade e pelo direito nao é cidadao nem aqui nem em lugar nenhum. Mas, de outro lado, penso que ha uma contrapartida dessa miséria, que é parte da questao agraria; uma contra partida dessa dinamica errada, que € a de continuar produzindo excedentes populacionais quando © pais nao tem mais condigoes de absorvé-los. O que, por sua vez, revelou uma elite ociosa, especulativa e nao raro corrupta ou corruptora. Uma elite que se revelou incompetente para administrar corretamente a riqueza que Ihe chegou &s maos em decorréncia do monopélio da terra ¢ da ‘exploracdo e miséria de muitos. Ela nao foi capaz de criar alternativas sociais de reincorporacao desses excedentes populacionais. Pensou apenas em seus privlegios econo ificos. Uma elite que restaura continuamente neconismos de poder pessoal, apoiadosna violéncia legal extralegal. Voe8 tem alguma duvida sobre isso? Leia o ue 0s jornais costumam publicar sobre a chamada Repo- Lica de Alagoas. Cinco familias mandam em todo um estado, mandam na vide, na consciéncia das pessoas, fozem 0 que bem entendem, manipulam a policia © as inatituigoes. E trabalhadores alagoanos sdo encontrados domo escravos nas plantagées de cana-de-acuear do Mato Grosso do Sul. © caso do assassino de Chico Mendes 6 outra eviden- a desse quadro fenebroso de irresponscbilidade. O ‘ello consegue fugir de uma priso do Estado © depois Kinda adquire terra de posseiro na esperanca © quase Seguranca de ter a terra legifimada pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonizacéo e Reforma Agraria). Isso parece ‘Gnedeta. No entanto, é apenas expresso da flacidez das snatituig6es e da irresponsabilidade das elites que delas se beneficiam. Aselites, no Brasil, ndo séo capazes de perceber a crise social que elas préprias eriam, no minimo por omisséo. E hao abrem caminho para sua solugdo. Mandam sem fer Gm mandato verdadeiramente legitimo, pois ne geral nao expressam a vontade coletiva, apenas a coletiva omissao- ‘ate porque © sistema eleitoral brasileiro continua sendo ‘um cistema viciado tendencioso, que funciona com vrecanismos populisas, patemalistas, corporativos, absok tamente tudo que 6 negagao da politica. Mecanismos arcai- os do dofinicao da representacio politica, modernizados Se fachada pela riqueza anormalmente concentrada 's moderns de comunicacao de massa. pelos m« ‘Além disso, as elites esta sobrerrepresentadas no igdes politicas, Os estados atrasados, ntelismo politied € pela politica do dominados pelo favor, estao mais representados do que os estados mais 27 modems, onde predominam os eleitores que votam como. cidadéos. Hé cerca de 180 representantes dos chamados istas na Camara dos Deputados, © que corresponde a mais de um tergo dos votos. Mas, demograficamente, as. elites néo séo um tergo da populacdo. Portanto, estéo usurpando 0 lugar de alguém, alguém que néo esta la corretamente representado, estéo ocupando cerlamente © lugar dos pobres e dos que trabalham. Sao destituidos do sentido da responsabilidade social ¢ coletiva, pois, islam em causa prépria, em defesa de ivilégios, como se vé frequentemente no istico. Nao cuidam dos problemas sociais da populacéo, nao percebem que estao em perigo. Toda @ populacde sofre, mas elas estéo em perigo, esto cor- rendo um risco real JST- Eu gostaria que vocé desenvolvesse mais a questéo da terra come problema politico. José de Souza Martins — Esse 6 outro lado da questao. Sendo a contrapartida de elites incapazes, mas oportunis- tas, as esquerdas tém uma historia de lidar com muitas das questdes politicas nacionais, como a aludida questéo da modemizagéo e a da igualdade na representacdo politica dos estados e no voto de cada eleitor. Nossas esquerdas sao fragmentadas, ideologicamente fré- geis, quase sempre sem solidez doutrinaria. Muitos de seus ‘adeptos se dizem marxistas endo conhecem Marx senéo por meio de textos de vulgarizadores que simplificam, deformam ¢ dogmatizam. Se considerarmos que um de nossos mais importantes partidos de esquerda chegou a ter a figura do “filésofo oficial”, a quem cabia decidir 0 que era verdadeiro ‘@ 0 que era falso para os membros do partido, uma espé de censor e inguisidor, podemos ter uma idéia das grandes limitagées de uma praxis politica fundada num conhecimen- 40 preciirio e policial Criou-se em muitos grupos de esquerda um verdadeiro horror ao conhecimento das teorias, @ reflexao tesrica, ao 28 continuo confronto entre teoria e pratica, a reviséo critica da teoria e da pratica. E assim se generalizou, nos partidos € faccdes, a curiosa concepgao de que ideologia de es- querda nao é ideologia e de que a pratica e a vida estao erradas, a ideologia é que é correta. Sem contar, eviden- temente, aqueles grupos chegados fardiamente & esquerda, oriundos dos movimentos sociais, e que fazem a apologia da (sua) pratica particular contra toda intervengao teorica que possa resgatar a dimensdo propriamente de praxis, dessas agées e desses atos fragmentarios e dispersos. A fragmentacao e 0 corporativismo de nossas esquerdas, no meu modo de ver, vém justamente das fragilidades gera- das por essa espécie de esquizofrenia politica que separa teoria e pratica, Fragilidades que se expressam no espi de seita, no dogmatismo e no fundamentalismo, ingre- ientes muito similares aos das seitas do neopentecosta- lismo de mercado em franca exploséo nos dias atvais. Se a esquerdas de nosso pais se dispusessem a um minimo de tolerancia reciproca e democratica e fivessem melhor ‘compreensao do momento brasileiro, nés nao estariamos diante da esdroxula situacéo politica atual em que o governo, ori da esquerda e pela esquerda abando- nado, é obrigade a dispender u estaria negociando solugdes concretas e democraticas, sadas, para seus problemas sociais. Do mesmo modo que o governo, no que se refere & questao agréria, sao incapazes de compreender o cardter suprapartidario de alguns grandes problemas nacionais. Es6 essa compreensao jd constituiria uma atitude de esquer- da, Isto é, sdo incapazes de compreender que alguns desses problemas jamais serdo resolvides sem aliancas acima dos partidos, entre as classes sociais e os grupos de interesse. A questéo agraria 6 um desses problemas, provavelmente o maior deles. Portanto, tanto quanto a Neles néo nasce o cidadao. A expulsao do campo nao cria 9 cidaddo. O esmoleiro nao 6 um cidadao. A pessoa que Vive marginalmente em relacéo as oportunidades econd- micas tem escassa e limitada possi cidada. Eevidente, como jé disse, que o desenraizamento © trabalhador dos vinculos de dependéncia pessoal em relagio ao fazendeiro; liberta-o nao s6 de uma certa ser déo material, mas também da servidao ideolégica que nele nega 6 individuo, o sujeito de contrato e igualdade, como ega nele e para ele a cidadania. E disso que falam tais ledricos’. Mas, nao conseguem ver nem entender a contra- partida dramatica desse processo, « exclusdo integrativa marginal que anula em grande parte a aludida libertacao. CO nivel de desenvolvimento industrial do pais, quando «as expulses comecaram, ndo foi suficiente para absorver esses excedentes populacionais. Depois, como estamos vendo agora, a industria é compelida a se modernizar para se tornar competitiva ne mercado internacional e mesmo no mercado interno em face da concorréncia dos produtos estrangeiros. Portanto, esse setor nao absorve mao-de-obra de baixa qualificacao, como a de origem rural. Ele absorve méo-de-obra de alta qualificacdo profissional, que leva, Gs vezes, uma gerade inteira para ser formada, que exige muita e boa escolaridade. Nao é esse, de modo geral, © caso dessas populagées excedentes, que, no maximo, poderd se tornar profissionalmente adequada a economia Fnoderna daqui a duas geragées, para os filhos ov para os netos dos atuais excedentes. Isso se houver uma p conseqiéente nesse sentido, que também nao ha. O Estado brasileiro e suas muitas ramificagdes née tem efetivamen- te uma politica de integracdo digna dos excluidos, que vé ‘além da mera e precaria integracao econémica da cha- mada economia invisivel Eisso que constivia questa agréria no Brasil.A questo. agréria nao esI6 apenas em sua causa na concentragao 24 fundiaria; ela esta também em suas consequénci urbanas, E uma questao agréria porque hé no pais uma tlta e, sobretudo, irracional concentracao da propriedade da terra, inutilmente, nas méos de uma populagae muito diminuta de grandes proprietarios. Esses proprietarios Usam suas ferras, quando as usam de modo economica- mente correto, estimulados pelo Estado, através do em- prego de tecnologia sofisticada, de altos financiamentos cubsidiados, etc. Alem disso, no geral, essa gente desco- briu que a terra & reserva de valor e pode ser utilizada como meio de especulagae. A propriedade da terra, em nosso pais, tende a ser especulativa, seja.na.mao-do.rico, Seia na mao do pobre, quando a consegue. Isso nao depende das pessoas. A escassez relativa da terra é que for com que ela possa ser facilmente instrumento de especulagio. Em nosso caso, tem sido, até mesmo, um facio de vida das elites, no Ultimo século e meio. As elites, ‘Gs pessoas ricas do pais, em parte vive dessa espécie de fributo que a sociedade inteira ¢ obrigada a pagar a elas para ferem acesso a terra ou mesmo aos frutos da terra, Ero que os classicos da economia chamavam de renda da terra. As nossas elites tendem a ser mais renfistas do que produtivas, 0 que é bem diferente das elites que © capita- mo eriou nos paises desenvolvidos. (O nosso problema agrario esta ai: uma drea enorme de terra subutilizada ou néo utilizada, em boa parte fempregada de modo impréprio ou especulativo, sobretu- do como reserva de valor. Ao mesmo tempo, uma grande massa humana vitimada e penalizada pelos mecanismos de exclusdo que expus antes, 0s mesmos instaurados no século XIX, e que agora a excluem do acesso a terra e, 00 jnesmo tempo, nao estao articulades com novos meca- hismos de reabsorgéo dos excluides. Essencialmente, as grandes transformacées sociais pelas quais © pais tem possado desde que a escravidéo entrou em declinio © Pessou, revelaram que © direito de propriedade gerado pela Lei de Terras, de 1850, era um direito historicamente 25

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