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Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa

Marcos Augusto de Albuquerque Ehrhardt Junior


Maria Cristina Paiva Santiago
ORGANIZADORES

Temas de direito civil-constitucional: da constitucionalização à humanização


VOLUME II
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
Marcos Augusto de Albuquerque Ehrhardt Junior
Maria Cristina Paiva Santiago
ORGANIZADORES

Temas de direito civil-constitucional: da constitucionalização à


humanização

Volume II

João Pessoa
Instituto de Pesquisa e Extensão Perspectivas e Desafios de Humanização do Direito Civil-
Constitucional – IDCC
2017
Comissão Editorial
Adriano Marteleto Godinho Gabriel Honorato de Carvalho
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa Jailton Macana de Araújo
Cinthia Caroline L. do Nascimento Juliana Fernandes Moreira
Filipe Lins dos Santos Maria Cristina Paiva Santiago

Conselho Cientifico
Adriano Marteleto Godinho Marcos Augusto de Albuquerque Ehrhardt Junior
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
Heloisa Helena Pinho Veloso Robson Antão de Medeiros
Henrique Ribeiro Cardoso Rodrigo Azevedo Toscano de Brito
Larissa Maria de Moraes Leal Wladimir Alcibiades Marinho Falcao Cunha

Catalogação na publicação
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB
Bibliotecária Vânia Maria Ramos da Silva - CRB 15/0243

T278 Temas de direito civil-constitucional: da constitucionalização à humanização,


volume II / Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa, Marcos Augusto
de Albuquerque Ehrhardt Junior, Maria Cristina Paiva Santiago, organizadores;
Instituto de Pesquisa e Extensão Perspectivas e Desafios de Humanização do
Direito Civil-Constitucional – João Pessoa: IDCC, 2017.
261 p.
Vários autores.
ISBN 978-85-92966-04-1

1. Direito Civil- Constitucional. 2. Direitos da Personalidade. 3. Contratos. 4.


Responsabilidade Civil. 6. Direito de Família. 7. Provas - Direito Processual Civil. I.
Feitosa, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer. II. Ehrhardt Junior, Marcos Augusto
de Albuquerque, III. Santiago, Maria Cristina Paiva. IV. IDCC. V. Título.

CDU – 347
SUMARIO

APRESENTAÇÃO................................................................................................................. 1

O USO REITERADO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO


DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL ................................................................................ 3

POR UM SISTEMA JURÍDICO QUE FUNCIONE: DISCUTINDO A


FUNCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL .................................................................... 17

LIBERDADE DE EXPRESSÃO VERSUS TUTELA DOS DIREITOS DA


PERSONALIDADE: A CONSTITUCIONALIDADE DA PUBLICAÇÃO DE
BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS ............................................................................... 37

ANÁLISE JURÍDICA DA PROTEÇÃO DA PESSOA “COM” DEFICIÊNCIA À LUZ DO


DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL HUMANIZADO .................................................. 55

CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DO CONSUMIDOR: CONDIÇÃO DE


HIPERVULNERABILIDADE DIANTE DA PRÁTICA ABUSIVA DA VENDA CASADA
COMO PRÉ- REQUISITO A APROVAÇÃO E LIBERAÇÃO DO PEDIDO DE CRÉDITO
BANCÁRIO ......................................................................................................................... 80

CONFLITOS JURÍDICOS DECORRENTES DOS CONTRATOS CELEBRADOS EM


SITES DE COMPRAS COLETIVAS .................................................................................. 99

DIREITO AO DESENVOLVIMENTO – A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE IMÓVEIS


COMO INSTRUMENTO DE EXPANSÃO DO CRÉDITO IMOBILIÁRIO .................. 115

O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO, RISCO E RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS


AMBIENTAIS: uma análise sobre as articulações entre a questão do risco e a teoria da
responsabilidade civil ......................................................................................................... 129

REFLEXÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL DO DESABAMENTO DE


PARTE DA CICLOVIA TIM MAIA À LUZ DO DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL:
RELATIVIZAÇÃO DO DIREITO E GARANTIA FUNDAMENTAL À VIDA ............ 148

I
A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO NA CIRURGIA PLÁSTICA .............. 169

A AFETIVIDADE COMO IMPULSORA DA FAMÍLIA MULTIESPÉCIE: NATUREZA


JURÍDICA E POSIÇÃO OCUPADA PELOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO .................. 192

O CONTRATO EXTRAPATRIMONIAL NA RELAÇÃO DE MATERNIDADE DE


SUBSTITUIÇÃO ............................................................................................................... 213

A NATUREZA JURÍDICA DAS UNIÕES PARALELAS ............................................... 226

SISTEMÁTICA DA DISTRIBUIÇÃO DA PROVA NO ATUAL CÓDIGO DE PROCESSO


CIVIL: NOVO DIREITO FUNDAMENTAL PROCESSUAL ......................................... 247

II
APRESENTAÇÃO

É com imensa alegria e satisfação que anunciamos a publicação de mais uma obra que nasce
da inquietude de seus idealizadores. Trata-se de um compêndio das pesquisas discutidas por ocasião
do evento intitulado “III Seminário de Humanização do Direito Civil-Constitucional:
hipervulnerabilidade, saúde e humanização do Direito Civil-Constitucional”, realizado no Centro de
Ciências Jurídicas da UFPB, em João Pessoa-PB, no período de 02 a 04 de março de 2016.
Este volume condensa os trabalhos que foram avaliados e organizados em grupos temáticos
pelos professores Maria Luíza Pereira Alencar Mayer Feitosa (UFPB); Marcos Ehrhardt Jr (UFAL) e
Maria Cristina Paiva Santiago (UNIPÊ). A obra, intitulada “Temas de Direito Civil-Constitucional:
da constitucionalização à humanização – Volume II”, resulta das reflexões, debates e pesquisas
apresentadas no Seminário do grupo de pesquisa Perspectivas e Desafios de Humanização do Direito
Civil-Constitucional, sediado pela UFPB e composto por pesquisadores de mais de dez instituições
universitárias brasileiras e estrangeiras, em formato de rede, constituída como Instituto de Pesquisa
(conferir www.institutodcc.org.br).
A ideia de base do GP mencionado é a certeza de que a coerência e a coesão do Direito
Privado brasileiro serão alcançadas a partir da renovação da dogmática de institutos clássicos do
Direito Civil, guiada pelos paradigmas dos direitos humanos. A proposta de humanização do direito
civil-constitucional permite o descortinar de um novo marco teórico-acadêmico que reconhece a
imprescindibilidade da tutela dos direitos sociais no campo do direito privado.
No que concerne à organização interna desta coletânea, optamos por iniciar com temas de
cunho mais genérico, como a discussão crítica do principio da dignidade da pessoa humana,
encontrada nos capítulos: “O uso reiterado do princípio da dignidade da pessoa humana no direito civil-
constitucional”; “Por um sistema jurídico que funcione: discutindo a funcionalização do direito civil;
“Liberdade de expressão versus tutela dos direitos da personalidade: a constitucionalidade da
publicação de biografias não autorizadas”; “Análise jurídica da proteção da pessoa “com” deficiência
à luz do direito civil constitucional humanizado”.
Na sequência, são colacionados textos contendo discussões temáticas sobre alguns institutos
clássicos de direito civil na perspectiva da humanização. Neste ponto, serão abordados temas como
contratos, proteção do consumidor e direto imobiliário, distribuídos nos seguintes ensaios:
“Constitucionalização do direito do consumidor: condição de hipervulnerabilidade diante da prática
abusiva da venda casada como pré- requisito a aprovação e liberação do pedido de crédito”;
“Conflitos jurídicos decorrentes dos contratos celebrados em sites de compras coletivas; “Direito ao

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desenvolvimento – a alienação fiduciária de imóveis como instrumento de expansão do crédito
imobiliário.
Na terceira seção são agrupados artigos que discorrem sobre a responsabilidade civil em
perspectiva humanizada. São eles: “O princípio da precaução, risco e responsabilidade civil por danos
ambientais: uma análise sobre as articulações entre a questão do risco e a teoria da responsabilidade
civil”; “Reflexões sobre a responsabilidade civil do desabamento de parte da ciclovia Tim Maia à luz
do direito civil-constitucional: relativização do direito e garantia fundamental à vida”; “A
responsabilidade civil do médico na cirurgia plástica”.
Na quarta seção estão os textos que abordam a temática do direito das famílias confrontando
os novos paradigmas que orientam esse ramo do direito privado à luz do direito civil-humanizado.
Encontram-se assim distribuídos: “A afetividade como impulsora da família multiespécie: natureza
jurídica e posição ocupada pelos animais de estimação”; “O contrato extrapatrimonial na relação de
maternidade de substituição”; “A natureza jurídica das uniões paralelas”. Por último, vem o artigo
intitulado “Sistemática da distribuição da prova no atual código de processo civil: novo direito
fundamental processual”, que aborda o atual direito processual civil brasileiro destacando seu caráter
de direito fundamental.
Apresentada esta sintética referência aos trabalhos aqui reunidos, resta aos organizadores
agradecer aos eminentes autores por tornar possível a obra, notadamente pela magnitude das
contribuições oferecidas e pela generosa disponibilidade de todos que fazem parte do IDCC por
imprimirem a habitual presteza e competência na organização e publicação dos livros digitais, assim
como pela luta em prol da consolidação do primado de um novo direito civil-constitucional
humanizado.

João Pessoa, 09 de dezembro de 2016.

Marcos Ehrhardt Jr
Maria Cristina Paiva Santiago
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
(organizadores)

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O USO REITERADO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA NO DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL
Eloisa Lopes Claudino1
Pedro Pontes de Azevêdo2

RESUMO: O presente trabalho visa expor inicialmente aspectos conceituais e históricos


acerca do direito civil-constitucional, além de fazer breve explanação acerca dos princípios
constitucionais que passaram a reger as relações privadas com o advento da Carta Magna de
1988, tendo um enfoque maior no princípio da dignidade da pessoa humana. Será exposto
também como esse princípio vem sendo utilizado de maneira desenfreada, mostrando essa
realidade através de uma abordagem prática, trazendo julgados de diversos tribunais para a
discussão.
Palavras chave: Direito Civil-Constitucional; Dignidade da Pessoa Humana; Constituição
Federal.

ABSTRACT: This study aims to initially expose conceptual and historical aspects about the
civil and constitutional right, and make brief explanation about the constitutional principles
that now govern private relations with the advent of the 1988 Constitution, with a greater
focus on the principle of dignity the human person. It will also be exposed as this principle
has been used in uncontrolled way, showing this reality through a practical approach,
bringing decisions of various courts for discussion.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo visa trazer uma explanação acerca da dignidade da pessoa humana,
iniciando com uma conceituação desse princípio, posteriormente um contexto histórico da
legislação brasileira, evidenciando a importância desse princípio, trazido com a Constituição
Federal de 1988, nas relações jurídico-privadas.

1
Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
2
Doutor pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Direito pela UFPB. Graduado em
Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ) e em Comunicação Social - habilitação em
Jornalismo, pela UFPB.

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Entender o contexto histórico de tal princípio é imprescindível para compreender a
sua importância O artigo em questão tem por objetivo ressaltar o status garantido ao princípio
da dignidade da pessoa humana desde a promulgação da Carta Magna. Além disso, visa
conscientizar os operadores do Direito a utilizarem tal preceito com mais cautela, fazendo
com que ele seja usado como fundamento em questões de compatível status jurídico. Muitas
vezes, alguns juristas se valem desse preceito para fundamentar situações que poderiam ser
resolvidas com dispositivos infraconstitucionais, causando uma verdadeira “hipertrofia” do
uso do princípio da dignidade da pessoa humana, e acarretando uma desvalorização do
mesmo.
Para demonstrar essa realidade, o trabalho trouxe situações das quais o uso da
dignidade da pessoa humana é aceitável e até aconselhável. Porém, o foco do artigo são
aquelas situações em que a utilização desse preceito é feita de forma desarrazoada, como em
alguns casos de ações de dano moral. O trabalho conta também com a presença de alguns
julgados para demonstrar como essa situação ocorre na prática.

2. DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL
2.1 Aspectos conceituais e históricos

A promulgação do texto constitucional de 1988 gerou influência em diversos ramos


do Direito infra-constitucional, em virtude da sua posição hierárquica superior. Um exemplo
disso se deu com a edição do Código Civil de 2002, que passou a valorizar em seu texto uma
série de princípios expressos e implícitos à Constituição Federal, como dignidade da pessoa
humana e direito à honra, fazendo com que houvesse uma constitucionalização do direito
privado. O direito civil-constitucional é o fenômeno que ocorreu quando os institutos do
direito privado passaram a ser interpretados a luz do direito constitucional, e interpretados
pelos princípios consagrados na Carta Magna. Com isso, matérias antes previstas apenas no
Direito Civil ganham previsão constitucional.
Entre os séculos XVII e XIX predominava o individualismo e a valorização das
liberdades individuais. O Estado de Direito nasce na revolução francesa, visando a garantia
dos direitos individuais. O direito privado visava garantir a ordem social sob o aspecto
individualista. Após a primeira guerra mundial, o Estado Social de Direito era marcado pelo

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intervencionismo econômico e a garantia de direitos fundamentais. Esse Estado de Bem Estar
Social impôs ao direito privado uma nova percepção, pautada na valorização do homem
como centro do direito, direito este que deveria ser justo, buscando a valorização da
dignidade da pessoa humana e os interesses coletivos.
Após o Estado de Bem Estar Social, nasceu o Estado Democrático de Direito, onde
houve a institucionalização da democracia, como ocorreu na república federativa do Brasil.
No século XIX, o liberalismo jurídico era pautado pelo poder emanado do povo, a
neutralidade das normas e a concepção do homem como sujeito abstrato. No que tange ao
direito privado, a esta época os negócios jurídicos eram pautados pelo pacta sunt servanda,
ou seja, a força obrigatória dos contratos, que fazia lei entre as partes, que eram livres para
contratar.
A chegada do século XX trouxe uma pressão social para garantir direitos dos
indivíduos, principalmente os de classes econômicas inferiores. O Código Civil então foi o
primeiro a ser modificado, com a finalidade de atender a evolução da sociedade.
No Brasil, a mais recente constituição foi promulgada após o período de ditadura
militar, momento em que o povo, durante vinte e cinco anos, foi privado de seus direitos e
garantias, além de haver casos de perseguições políticas e tortura. Após muita luta da
população com intuito de garantir seus direitos e exigir eleições diretas, culminou a
promulgação de uma constituição que fizesse a transição para um estado democrático de
Direito.
Segundo BARROSO, a Constituição passa a ser encarada como um sistema aberto
de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as ideias de
justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central (2001, p.
21).
Ainda, o mesmo estudioso afirma que o constitucionalismo moderno promove,
assim, uma volta aos valores, uma reaproximação entre ética e Direito. Para poderem
beneficiar-se do amplo instrumental do Direito, migrando da filosofia para o mundo jurídico,
esses valores compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar,
materializam-se em princípios, que passam a estar abrigados na Constituição, explícita ou
implicitamente. Alguns nela já se inscreviam de longa data, como a liberdade e a igualdade,
sem embargo da evolução de seus significados. Outros, conquanto clássicos, sofreram

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releituras e revelaram novas sutilezas, como a separação dos Poderes e o Estado democrático
de direito. Houve, ainda, princípios que se incorporaram mais recentemente ou, ao menos,
passaram a ter uma nova dimensão, como o da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade,
da solidariedade e da reserva de justiça (2001, p. 19-20).
A Constituição Brasileira de 1988 trouxe uma série de garantias, como direitos dos
trabalhadores. Além disso, seguiu a tendência mundial e passou a abordar temas antes
exclusivos ao Código Civil, como função social da propriedade. A carta deixou clara a
prevalência aos seus princípios, como a dignidade da pessoa humana, com a finalidade de
evitar abusos de poder. A nova constituição veio trazer como centro do Direito a pessoa
humana.
Essa nova tendência afeta diretamente o Direito Civil, que passa a não ter uma
interpretação isolada, mas em conjunto com o texto constitucional, respeitando os princípios
e mostrando coerência com a Lei Maior.

2.2 Análise comparativa entre direito civil anterior e posterior a Constituição Federal
de 1988

O código de 1916 versava apenas sobre aspectos relevantes a classe dominante. Com
isso, ser sujeito de direito significava ser “sujeito de patrimônio”, “sujeito de contrato” e
“sujeito de família”. A respeito desse fato, Judith Martins Costa afirma que: “O Código
traduz, no seu conteúdo liberal no que diz respeito às manifestações de autonomia
individuais, conservador no que concerne à questão social e às relações de família -, a
antinomia verificada no tecido social entre a burguesia mercantil em ascensão e o estamento
burocrático urbano, de um lado, e , por outro, o atraso o mais absolutamente rudimentar do
campo, onde as relações de produção beiravam o modelo feudal” (MARTINS-COSTA, op.
cit, p. 266).
O referido código possuía três pilares: a família, a propriedade e o contrato. A
família, no código de 1916 era transpessoal, hierarquizada e patriarcal. Havia a conservação
da indissolubilidade do casamento e regime de comunhão universal. O homem era a parte
superior da pirâmide familiar, como, por exemplo, segundo o artigo 240 do código civil de
1916, o casamento de menores de 21 anos dependia da aprovação dos pais, porém, caso
houvesse discordância, prevalecia a vontade do pai. Além disso, a mulher, no referido código,

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era considerada como relativamente incapaz. Com a chegada da constituição de 1988, foi
concedida a capacidade a mulher, além da garantia à igualdade entre homens e mulheres,
segundo o artigo 5º, inciso I da constituição federal, a permissão do divorcio, o
reconhecimento da união estável entre homem em mulher etc.
No que diz respeito à propriedade, o Código Civil de 1916, afirmava que o
proprietário ou inquilino de um prédio teria direito de impedir que o mau uso da propriedade
vizinha prejudicasse a segurança, o sossego e saúde dos que o habitam. O artigo 572 também
limitava o direito da propriedade, pois versava que o proprietário poderia construir o que
quisesse, respeitando o direito dos vizinhos e regulamentos administrativos. A constituição
federa de 1988, em seu artigo 5º, inciso XII, garantiu o direito a propriedade, dede que essa
possuísse uma função social, sendo esta rural, deve ser produtiva, e urbana, devendo obedecer
ao plano diretor da cidade, sob pena de desapropriação.
No que tange aos contratos, as partes poderiam estipular o conteúdos das cláusulas
contratuais, abrigadas pela autonomia da vontade e da força obrigatória do contrato, não
sendo levado em consideração o desequilíbrio da formação do contrato. Com o advento da
constituição de 1988, surgiu a função social do contrato, expressamente no Código Civil de
2002, em seu artigo 421, essa função social, segundo Luiz Renato, faz com que o contrato
“permita a manutenção das trocas econômicas proporcionando a “circulação de riquezas”
mediante uma “equação de utilidade e justiça nas relações contratuais”, fazendo com que seja
possível amenizar a relatividade e vinculatividade contratuais (FERREIRA DA SILVA, op.
cit., p. 137-138). No que tange a redução da relatividade, ou seja, a possibilidade de o contrato
atingir terceiros, pode-se dar como exemplo a cláusula e não concorrência. Já no que tange
ao pacta sunt servanda, há a relativização quando há a permissão da comutatividade de
prestações.

3 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO CÓDIGO CIVIL

Ante tudo o que foi exposto, percebe-se que alguns princípios foram valorizados a
no Código Civil Constitucionalizado. Podem ser citados como tais princípios o da boa fé,
que afirma que os negócios devem ser estabelecidos entre as partes pautados pela honestidade
e sinceridade de acordo com o local e o tempo, sem nenhuma intenção escondida. Ela deve

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ser pautada na proteção, onde cada uma das partes deve proteger a pessoa e o patrimônio; na
cooperação, devendo as partes se auxiliarem mutuamente; e informação, acerca dos efeitos e
defeitos do objeto do contrato. Além desse princípio, afirma o novo código civil, em seu
artigo 421, que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social
do contrato”, ou seja, o contrato deve ir além apenas das partes, exercendo sua função perante
a sociedade, sem prejudicar a terceiros.
O princípio norteador dos demais, intitulado como dignidade da pessoa humana, foi
valorizado pela constituição federal de 1988, e influenciou diretamente o código civil de
2002. Segundo os estóicos, a dignidade da pessoa humana é uma qualidade inerente ao ser
humano e que o distinguia dos demais. O pensador espanhol Francisco de Vitória defendeu
a existência desse princípio com a finalidade de garantir a libertação dos índios escravizados.
Immanuel Kant defendia que o homem é um fim em si mesmo, que não pode ser tratado
como coisa. Esse pensamento foi valorizado após da Segunda Guerra Mundial, onde puderam
ser vistas a consequência da coisificação humana. A partir desse fato histórico, a dignidade
da pessoa humana foi positivada em diversas constituições, como, por exemplo, a do Brasil
em 1988, e na Declaração Universal das Nações Unidas.
Devido a expansividade do princípio da dignidade da pessoa humana, percebe-se
grande dificuldade dos autores em conceitua-la, fazendo por vezes a partir de um conceito
negativo, ou seja, situações em que este princípio é mitigado. Segundo Sarlet, que parte do
pensamento Kantiano, entende-se por dignidade da pessoa humana “a qualidade intrínseca e
distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por
parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e
deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho
degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para
uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos
destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”
(SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 62).
A dignidade da pessoa humana opera no direito civil uma “repersonalização” do
mesmo, ou seja, nas palavras de Gustavo Tepedino (TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito
Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004) e também de Pietro Perlingieri ( PERLINGIERI, Pietro.

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Perfis do Direito Civil. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1997),
significa colocar a pessoa humana no centro das preocupações no Direito.
A dignidade da pessoa humana deve ser entendida de modo coexistencial, e não
individualista. Com isso, o direito privado vem deixando de lado suas concepções
individualistas e se preocupando com a dignidade da pessoa humana. Como mostram
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald: “A expressão Direito Civil Constitucional
quer apenas realçar a necessária releitura do Direito Civil, redefinindo as categoriais jurídicas
civilistas a partir dos fundamentos principiológicos constitucionais, da nova tábua axiológica
fundada na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), solidariedade social (art. 3º, III) e na
igualdade substancial (arts. 3º e 5º). Ou seja, a Constituição promoveu uma alteração interna,
modificando a estrutura, o conteúdo, das categoriais jurídicas civis e não apenas impondo
limites externos” (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil:
teoria geral. 6.ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 27).
Os direitos fundamentais, assim como a dignidade da pessoa humana, passam a
reger relações entre pessoas concretas, e não apenas entre o indivíduo e o Estado, como
ocorre no direito público.

4 SITUAÇÕES EM QUE HÁ A EFETIVA AFRONTA A DIGNIDADE DA


PESSOA HUMANA

Como já dito, a constituição de 1988 concedeu um status de valor supremo à


dignidade da pessoa humana, logo em seu artigo 1º, que versa que:
“Art.1º A República Federativa do Brasil, formada pela União Indissolúvel
dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III- A dignidade da pessoa humana;”

Como sendo valor único e individual que não pode ser sacrificado por interesses
coletivos, pois todo ser humano é sujeito de direitos que vão além das suas necessidades
físicas, como direito à moradia, política, religião etc.
Para resguardar esse supraprincípio, ele não pode ser utilizado de maneira
desarrazoada. É aceitável se valer do princípio da dignidade da pessoa humana em assuntos
constitucionais, no que tange a afrontas às hipóteses presentes na Constituição, e mais
especificamente em seu artigo 5º e incisos.

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O princípio da dignidade da pessoa humana serve como fundamento para os demais,
portanto, não é necessário usá-lo como argumento em algumas questões de Direito Civil,
como de danos morais, visto que esse instituto já foi abarcado pelo princípio, e está em
conformidade com ele. Trazer a tona a dignidade da pessoa humana só ajuda a desgastar seu
uso.
As hipóteses de aplicação desse princípio devem ser analisadas caso a caso, na
situação concreta, porém podem ser utilizadas balizas. Em decorrência do Direito Penal
resguardar institutos tão importantes, é válido o uso da dignidade como tal argumento.
Porém, em questões relativas a demora no atendimento de atendente de telemarketing de
alguma operadora telefônica, por exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana não
deve ser utilizado, em decorrência de já existirem meios infraconstitucionais para resolver
tal situação.

5 MOMENTOS EM QUE A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA É USADA DE


FORMA EQUIVOCADA

Se por um lado a dignidade da pessoa humana trouxe uma série de benefícios ao se


enquadrar no âmbito privado, por outro trouxe um grave problema: o abusivo uso por parte
dos operadores do direito desse princípio.
Como afirma Sarlet: “Convém, quanto a este ponto, tomar a sério a advertência de
(P. Haberle, Menschenwurdeals Grundlage..., p. 823), recomendando um uso não
inflacionário da dignidade e repudiando a utilização d dignidade de modo panfletário e como
fórmula vazia de conteúdo. Neste sentido, por mais que se possa afirmar que, em matéria de
dignidade e direitos fundamentais, seja melhor pecar pelo excesso, não há como
desconsiderar que o recurso exagerado e sem qualquer fundamentação racional à dignidade
– tal como vez por outra ocorre também entre nós – efetivamente pode acabar por contribuir
para a erosão da própria noção de dignidade como valor fundamentalíssimo da nossa ordem
jurídica.” (SARLET, Ingo Wolfgang. Ob. cit., pág. 102/103.).
O prestígio alcançado pelo princípio dos princípios pode ser abalado por seu uso ou
de maneira atécnica ou de forma desnecessária, quando há regra específica para resolução do
problema, como já foi explicitado.

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5.1 A QUESTÃO DO DANO MORAL

Após uma analise acerca das principais situações em que ocorre esse abuso,
contatou-se que os processos que tem como um dos pedidos compensação por dano moral
apareceu como um dos principais momentos em que se pode ver esse abuso.
Segundo Carlos Roberto Gonçalves: “Dano moral é o que atinge o ofendido como
pessoa, não lesando seu patrimônio. É lesão de bem que integra os direitos da personalidade,
como a honra, a dignidade, intimidade, a imagem, o bom nome, etc., como se infere dos art.
1º, III, e 5º, V e X, da Constituição Federal, e que acarreta ao lesado dor, sofrimento, tristeza,
vexame e humilhação” (GONCALVES, 2009, p.359).
Versa sobre o mesmo assunto Nehemias Domingos de Melo que afirma que: “dano
moral é toda agressão injusta aqueles bens imateriais, tanto de pessoa física quanto de pessoa
jurídica, insuscetível de quantificação pecuniária”. (MELO, 2004, p. 9).
Apesar de citar a Constituição Federal, não se justifica a utilização do princípio da
dignidade da pessoa humana como fundamento pelo fato de que existem normas
infraconstitucionais, como as presentes no direito civil, que estão em conformidade com tal
princípio, que dispensam o seu uso.
Nos casos em que há o efetivo dano moral, pode ser utilizado como argumento o
artigo 186 do código civil, que versa que “aquele que, por ação ou omissão voluntária,
negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente
moral, comete ato ilícito”.

5.2 JULGADOS DOS TRIBUNAIS

O primeiro caso diz respeito a ligações telefônicas, que importunavam o autor da ação.
Esse é um clássico caso do uso desarrazoado da dignidade da pessoa humana:

Ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. LIGAÇÕES


TELEFÔNICAS. ASSEDIO. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO
DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. DEVER DE INDENIZAR
CONFIGURADO. QUANTUM. As adversidades sofridas pela autora, a aflição e

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o desequilíbrio em seu bem-estar, fugiram à normalidade e se constituíram em
agressão à sua dignidade. Manutenção do montante indenizatório considerando os
aborrecimentos e os transtornos sofridos pela demandante, além do caráter
punitivo-compensatório da reparação. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. Verba
majorada para 20% do valor da condenação. APELAÇÃO PARCIALMENTE
PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70051964955, Décima Câmara Cível, Tribunal
de Justiça do RS, Relator: Túlio de Oliveira Martins, Julgado em 25/04/2013)”.

Outro caso versa sobre condômino inadimplente, que se valeu da dignidade da


pessoa humana, requerendo o parcelamento do débito junto ao condomínio. O pedido foi
julgado improcedente pelo Tribunal, e teve como voto do relator o seguinte:

“Quanto às alegações meritórias alegadas pela apelante, entendo serem


desprovidas de adminículo de juridicidade que possa sustentar a reforma
da r. sentença hostilizada. A apelante restringiu-se a insistir no
parcelamento dos débitos condominiais, o que simplesmente não pode ser
imposto pelo Julgador, se não for de interesse da parte autora-credora.
Embora possa ela lamentar as dificuldades financeiras enfrentadas, não
pode esquecer de que as taxas condominiais têm tratamento legal especial,
pelos simples fato de que a inadimplência contumaz prejudica toda uma
coletividade, o que não pode ser endossado pelo Poder Judiciário. Tal
proceder não afronta os princípios sociais norteadores da Carta
Constitucional de 1988, nem atinge o princípio da dignidade da pessoa
humana.”

Em outra situação que pode ser apontada como exemplo do exagerado uso da
dignidade da pessoa humana, encontra-se a questão da inserção do nome do autor da ação no
cadastro de inadimplentes:
“Ementa: CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. CONSUMIDOR.
RESPONSABILIDADECIVIL. INDENIZAÇÃO. INSERÇÃO
INDEVIDA EM CADASTRO DE INADIMPLENTES. PLANO DE
SAÚDE. LEI 9.656 /98. TEXTO CONSTITUCIONAL .
CONJUGAÇÃO.DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
IMPERATIVIDADE.DANO MORAL. CONFIGURAÇÃO. QUANTUM
INDENIZATÓRIO. REDUÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. A interpretação e
aplicabilidade da Lei 9.656 /98 devem ser conjugadas com o princípio
maior da dignidade da pessoa humana, bem como da garantia
constitucional da saúde, como direito de todos e dever do Estado. Além
disso há que se considerar a boa-fé nas relações contratuais, e sobrelevar a
função social do contrato. A configuração do dano moral está diretamente
relacionada ao gênero “violação a direito da personalidade”, como
expressão do princípio constitucional da “preservação
dadignidade da pessoa humana”, e do qual “ter direito ao bom nome” é
espécie. Comprovada por farta prova documental a inscrição indevida de

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consumidor em cadastro de inadimplentes, resta configurado
o dano moral e o dever de indenizar, dispensando-se a demonstração do
prejuízo. A fixação do dano moral em R$ 10.000,00 (dez mil reais) respeita
as balizas da prudência e moderação, levando-se em conta a capacidade
econômica da apelante, operadora de plano de saúde. É incabível, na
hipótese, a redução do quantum indenizatório, fixado em patamar razoável.
Recurso conhecido e desprovido”.

Ainda como exemplo para tal realidade, tem-se um julgado que trata da clonagem
de cartão de crédito:
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO
POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. CLONAGEM DE CARTÃO DE
CRÉDITO. PRELIMINAR DE FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL
AFASTADA. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. DANOS
MORAIS CONFIGURADOS. OFENSA À DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA. OCORRÊNCIA. QUANTUM COMPENSATÓRIO.
PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE.
VALOR ARBITRADO MANTIDO. REPETIÇÃO DO INDÉBITO EM
DOBRO. CABIMENTO. ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA. NÃO
VINCULAÇÃO AO VALOR INDICADO NA AÇÃO DE REPARAÇÃO
POR DANOS MORAIS. SENTENÇA MANTIDA.
1. O interesse processual é identificado pelo binômio
necessidade/adequação, ou seja, necessidade concreta da atividade
jurisdicional e adequação do provimento e do procedimento para a solução
do litígio.
2. Acobrança de valores decorrentes de compra fraudulenta com cartão de
crédito do cliente, não apurados pelo banco, apesar de informado, configura
danos morais passíveis de reparação pecuniária.
3.O arbitramento do valor indenizatório deve obedecer aos princípios da
razoabilidade e da proporcionalidade, de forma que a soma não seja tão
grande que provoque o enriquecimento da vítima, nem tão pequena que se
torne inexpressiva. Demonstrado que o valor fixado na sentença é justo e
adequado, deve ser mantido.
4.O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à declaração de
inexistência do débito, bem como à repetição do indébito, por valor igual
ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros
legais, salvo hipótese de engano justificável, nos termos do artigo 42,
parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor.
5.Quando a parte é vencedora em todos os pedidos formulados na inicial e
deixa apenas de receber o valor integral da indenização pelos danos morais
pleiteados, não há que se falar em sucumbência recíproca.
6.Nas ações em que se busca a reparação por dano moral, o juiz não fica
vinculado ao valor pretendido pela parte autora e, ainda que o quantitativo
fixado a esse título seja inferior ao pleiteado pela parte, não se pode

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concluir que houve da sucumbência.
7. Apelação conhecida, mas não provida. Unânime.

Utilizar a dignidade da pessoa humana como fundamento para pedidos


insignificantes como os mostrados nesse tópico desrespeitam o objetivo constitucional de dar
a esse princípio um merecido destaque. Tais atitudes ajudam a desacreditar esse princípio.
Há casos, porém, ainda em âmbito de responsabilidade civil, em que se pode analisar
a necessidade do uso desse princípio, para resguardar os direitos individuais do ser humano,
como, por exemplo, o julgado a seguir, que versa acerca de dano moral e estético:
“PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. PROVA DO
DANO E DO NEXO DE CAUSALIDADE. DANO MORAL. ABALO
DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. CONFIGURAÇÃO.
1. Configurado o dano, perda do tecido da ponta das asas do nariz, do olho
direito e da perna direita, que abalou a dignidade da autora, e o nexo de
causalidade, já que adquirido por infecção hospitalar, há de se imputar ao
ente público o dever de reparação/compensação, na forma do art. 37, § 6º,
daConstituição da República, presentes os pressupostos da
responsabilidade civil objetiva.
2. "O dano moral não está necessariamente vinculado a alguma reação
psíquica da vítima. Pode haver ofensa à dignidade da pessoa humana sem
dor, vexame, sofrimento, assim como pode haver dor, vexame e sofrimento
sem violação da dignidade. Dor, vexame, sofrimento e humilhação podem
ser consequências, e não causas. Assim como a febre é o efeito de uma
agressão orgânica, a reação psíquica da vítima só pode ser considerada
dano moral quando tiver por causa uma agressão à sua dignidade. (...) a
dignidade é o fundamento central dos direitos humanos, devendo ser
protegida e, quando violada, sujeita à devida reparação." (SERVIO
CAVALIERI FILHO, em Programa de Responsabilidade Civil, 9ª ed. São
Paulo: Atlas, 2010, Págs. 82/83). Precedentes deste TRF1. 3. Apelação
desprovida. Remessa tida como interposta também desprovida.”.

E outro exemplo é o seguinte julgado que versa acerca de direito à saúde e à vida:

“Ementa: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. PROCESSO


CIVIL. Direito à Saúde e à Vida. Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana. Preservação. DEVER DO ESTADO. Recurso de Agravo a que
se nega provimento. Decisão Unânime. 1 - Trata-se de Recurso de Agravo
em face de Decisão Terminativa proferida por esta Relatoria, na qual DEI
PROVIMENTO ao recurso de agravo de Instrumento tão somente para
determinar que a multa arbitrada não incidisse sob o patrimônio pessoal do
Secretário de Saúde do Estado, e sim sob as verbas atinentes ao patrimônio
do ente Estatal. 2 - Em suas razões, o Estado de Pernambuco sustentou, em

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síntese, que o pedido de desvinculação de marca específica em detrimento
das alternativas terapêuticas disponibilizadas pelo SUS não teria sido
apreciado por esse julgador. 3 - A necessidade do medicamento está
devidamente provada através do laudo médico trazido pelo recorrido às fls.
23/24. Afinal, é o médico a pessoa indicada para decidir que tipo de
tratamento que deve ser utilizado em cada caso. 4 - Ainda conforme o laudo
acima referido, o paciente é portador de Esquizofrenia Paranóide "com
baixíssima adesão aos psicofármacos orais e com intolerância ao uso de
antipsicóticos típicos por conta do desenvolvimento de sintomas
extrapiramidais." Está, portanto, comprovado o requisito de existência de
doença grave e sendo o medicamento, uma forma de garantir a vida do
Agravado, é caso sim da aplicação da Súmula 18 deste Tribunal: "Súmula
018. É dever do Estado-membro fornecer ao cidadão carente, sem ônus
para este, medicamento essencial ao tratamento de moléstia grave, ainda
que não previsto em lista oficial" 5 - Ademais, a Carta da República dispõe
em seu artigo 196 que "a saúde é um direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do
risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". Ora, da
leitura direta do texto constitucional citado.”.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme sobejamente demonstrado no presente texto, percebe-se a necessidade do


cuidado na aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana. Regimes totalitários,
constituições outorgadas, repressão e outras situações se caracterizam como formas de
mitigar direitos e garantias do ser humano, uma delas é a dignidade da pessoa humana. Com
muita luta a população conseguiu estabelecer por meio de seus representantes uma Carta
Magna preocupada em proteger essas garantias.
Valorizar essas questões citadas ao longo do trabalho é dever e obrigação de todo
cidadão, que é o principal interessado na garantia dos seus próprios direitos e de terceiros.
Garantir o status da dignidade da pessoa humana é essencial para sua aplicação, pois, se a
dignidade da pessoa humana for tudo, ela não será considerada nada.

REFERÊNCIAS:

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ISIDRO, Marielle dos Santos. Danos morais em justa causa não comprovada. João
Pessoa: s.n, 2006. 85p. Orientador: Silvia Márcia Nogueira Monografia (Graduação) -
UFPB/CCJ.
OLIVEIRA, José Carlos de. Estudos de direitos fundamentais. São Paulo: Cultura
Acadêmica, 2010. 403p.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 3.
ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. 359p.
BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada. O princípio da Dignidade da Pessoa Humana
e o novo Direito Civil: Breves reflexões. Disponível em
<http://www.uniflu.edu.br/arquivos/Revistas/Revista08/Artigos/WesleyLousada.pdf>
Acesso em 04/07/2016.
ALBA, Felipe Camilo Dall’. Os três pilares do Código Civil de 1916: a família, a
propriedade e o contrato. Disponível em <http://www.tex.pro.br/home/artigos/109-artigos-
set-2004/5147-os-tres-pilares-do-codigo-civil-de-1916-a-familia-a-propriedade-e-o-
contrato > Acesso em 04/07/2016.
CIELO, Patrícia Fortes Lopes Donzele. A Codificação do Direito Civil brasileiro: do
Código de 1916 ao Código de 2002. Disponível em <https://jus.com.br/artigos/25739/a-
codificacao-do-direito-civil-brasileiro-do-codigo-de-1916-ao-codigo-de-2002> Acesso em
04/07/2016.
FACHIN, Luiz Edson. PIANOVSKI, Carlos Eduardo. A DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA NO DIREITO CONTEMPORÂNEO: uma contribuição à crítica da raiz
dogmática do neopositivismo constitucionalista. Disponível em <http://www.anima-
opet.com.br/pdf/anima5-Conselheiros/Luiz-Edson-Fachin.pdf> Acesso em 04/07/2016.

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POR UM SISTEMA JURÍDICO QUE FUNCIONE: DISCUTINDO A
FUNCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL

Marcos Ehrhardt Jr1


Luiz Roberto Barros Farias2

RESUMO: O artigo propõe-se a demonstrar que a abordagem funcional pode adquirir várias
feições jurídicas diversas, a depender do caso concreto e do uso pretendido pelo intérprete.
Para tanto, afirma-se que a função social não pode ser entendida como um instituto dotado
de um único sentido, em oposição a outras finalidades inerentes ao sistema jurídico, pois um
conceito mais abarcante pode potencializar beneficamente sua aplicação. Em seguida, são
expostos alguns exemplos de como o elemento funcional pode assumir diferentes aspectos
no mundo jurídico: função como método; função como elemento do negócio jurídico; e
função como liberdade. Por fim, na parte conclusiva, são feitas algumas considerações
críticas sobre os assuntos abordados.
Palavras-chaves: Direito Civil - funcionalização – função social – liberdade

ABSTRACT: The article proposes to demonstrate that the functional approach can take
many different legal features, depending on the specific situation and the intended use by the
interpreter. To this end, we affirm that the social function cannot be regarded in one direction,
as opposed to other uses inherent to the legal system, for a more overarching concept can
positively enhance your application. Then, we show some examples of how the functional
element can assume different aspects in the legal context: function as a method; function as
the legal transaction element; and function as freedom. Finally, in conclusion, it is made some
critical observations on the discussed subjects.
Keywords: Civil Law – functionalization – social function – freedom

1
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Civil da UFAL.
E-mail: contato@marcosehrhardt.com.br.
2
Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Procurador do Município de
Arapiraca/AL. E-mail: lrbfarias@gmail.com

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1. UMA ANTIGA (DES)CONHECIDA

Já se escreveu e ainda se escreve bastante sobre a funcionalização dos institutos do


Direito Civil, principalmente sob o enfoque da função social dos contratos (BRANCO, 2009;
RENTERÍA, 2006; e TARTUCE, 2007), prevista no art. 421 do Código Civil, e da
propriedade (BARBOSA; LONGHI, 2013; e TEPEDINO, 2014), encartada no art. 5º, XXIII,
da Constituição. No entanto, constata-se que a doutrina brasileira muitas vezes apresenta
conflitos e discordâncias na abordagem do tema, prejudicando a consolidação de uma
dogmática adequada à resolução dos problemas para os quais a análise funcional do direito
se propõe.
Apesar de tal discussão existir desde a Constituição de 1988, e ter ganhado força
pela introdução do art. 421 do Código Civil de 2002 – que trata da função social dos contratos
– cumpre inicialmente esclarecer que a funcionalização das normas jurídicas não se limita ao
Direito Civil, sendo um problema enfrentado há muito pela Teoria Geral do Direito e pela
Filosofia do Direito.
Nesse sentido, Norberto Bobbio (2007) reuniu em obra específica diversos trabalhos
de sua autoria, nos quais expõe suas ideias sobre a funcionalização do direito, sob influência
da sociologia, bem como alerta que a mera análise da estrutura da norma pela Ciência do
Direito, desprendida de seus fins e efeitos no mundo real, não seria suficiente para explicar
e aperfeiçoar o mundo jurídico. Na lição do italiano (BOBBIO, 2007, p. 53), “aqueles que se
dedicaram à teoria geral do direito se preocuparam muito mais em saber ‘como o direito é
feito’ [análise estrutural] do que ‘pra que o direito serve’ [análise funcional]”. O autor faz
questão ainda de ressaltar, ao longo de toda a citada a obra, que os aspectos estruturais e
funcionais não são antagônicos, mas complementares, já que apenas traduzem uma forma
diversa de enxergar a norma jurídica, e possuem soluções para questões diferentes.
Ainda que o foco na questão estrutural tenha prevalecido ao longo do século
passado, principalmente por influência da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, mesmo no
ramo do Direito Civil é possível afirmar que o interesse pelos fins ou funções do direito já

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estava presente em várias obras doutrinárias do período. A doutrina alemã (ENNECCERUS;
KIPP; WOLFF, 1953), por exemplo, no início do século XX já demonstrava os
questionamentos existentes entre as visões estrutural e funcional do direito, ao expor a tensão
entre, de um lado, uma análise meramente positivista da norma, e, do outro, uma abordagem
preocupada com concretização dos seus fins, notadamente a justiça, independentemente das
regras postas. Nesse passo, entendia-se que seria papel da ética e da filosofia do direito
desenvolver a ideia da finalidade ou objetivo do direito em determinado local e época, em
razão de suas condicionantes culturais, econômicas, científicas e morais.
A doutrina brasileira também abordou o tema da funcionalização no começo do
último século, como se extrai das lições do ex-ministro do STF Eduardo Espínola (1977, p.
38-39), no sentido de ser o direito uma “função específica da sociedade humana”, que oferece
“os melhores meios de atingir os fins sociais” Aqui se verifica uma visão instrumental da
função, na constatação de que o direito seria um meio (função) à disposição da sociedade
para aperfeiçoar a convivência social.
Especificamente no âmbito dos negócios jurídicos, a mesma temática funcional
também foi identificada por civilistas europeus da década de 70 e 80, ao tratarem da
necessidade de se impor balizas à autonomia da vontade. Nesse sentido, o português Carlos
Alberto da Mota Pinto (1985) afirma que a liberdade contratual não pode ser exercida de
maneira livre e absoluta, sendo limitada pela cláusula geral da ordem pública, principalmente
em contratos de adesão. De forma semelhante, o francês Jacques Ghestin (1980) fala da
modalidade diretiva das ordens pública, econômica e social, como modo de influenciar o
conteúdo dos negócios jurídicos, no intuito de promover a justiça contratual e a maior
igualdade entre as partes.
Desse modo, percebe-se que a preocupação com o assunto é algo recorrente na
história da doutrina jurídica, ainda que de forma esparsa e assistemática – ora tratando a
função como fim, ora como instrumento – o que dificulta a fixação de um conceito
minimamente consensual do que seja função ou funcionalização do direito.
Retornando às lições de Bobbio (2007), ele explica que o desenvolvimento de uma
satisfatória teoria funcionalista do direito encontra problemas justamente por conta da
diversidade de definições que se atribuem aos conceitos de direito e de função, termos
largamente polissêmicos e controversos. Nessa linha, muitas teorias que atribuem funções

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diferentes ao direito não seriam propriamente contraditórias, mas apenas partiriam de bases
teóricas diversas. Por isso, pode-se falar que o direito tem função de garantir a segurança e a
paz, redistribuir recursos e de promover a justiça social, sem que esses fins sejam
excludentes. Em verdade, essas funções se complementariam e muitas vezes seriam
instrumentos para atingir umas às outras.
Dessa forma, a utilização descuidada de termos genéricos para designar a função ou
as funções do direito civil – tais como garantir a justiça, a igualdade, a solidariedade, por
exemplo – acaba por criar fórmulas vazias, sem um mínimo de conteúdo específico (HABA,
2002). Essa postura, ao invés de possibilitar soluções para o caso concreto, apenas permite
manipulação e distorção de normas como as que prescrevem a função social dos contratos e
da propriedade. Assim, percebe-se que a funcionalização dos institutos de direito civil nem
sempre é feita de forma adequada, uma vez que grande parte da doutrina equivocadamente
procura um conceito único e exclusivo de função.
Apresentado esse problema, o artigo propõe-se a demonstrar que a abordagem
funcional pode adquirir várias feições jurídicas diversas, a depender do caso concreto e do
uso pretendido pelo intérprete. Para tanto, inicia-se o desenvolvimento demonstrando que a
função social não pode ser entendida como um instituto dotado de um único sentido, em
oposição a outras finalidades inerentes ao sistema jurídico, pois um conceito mais abarcante
pode potencializar positivamente sua aplicação.
Em seguida, traremos alguns exemplos de como o elemento funcional pode assumir
diferentes aspectos no mundo jurídico: função como método, fazendo-se a necessária
correlação com a Metodologia do Direito Civil Constitucional; função como elemento do
negócio jurídico, com base no conceito de causa; e função como liberdade, momento em que
trataremos da tese de Carlos Eduardo Pianovski. Por fim, na parte conclusiva, faremos
algumas considerações críticas sobre os assuntos abordados.

2. A FUNÇÃO SOCIAL COMO MULTIPLICIDADE DE FUNÇÕES

Não há dúvidas de que, atualmente, praticamente todas as áreas do Direito Civil são
interpretadas e aplicadas sob o prisma da função social. No caso dos contratos e da

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propriedade há referências expressas na legislação constitucional e legal sobre a matéria 3.
Além disso, mesmo sem expressa previsão legal, a doutrina já reconhece a necessidade de
estudar a função de outros segmentos, o que corrobora as ideias expostas no tópico
introdutório, de que a funcionalização do direito não se condiciona à positivação.
Nesse sentido, Marcos Ehrhardt Jr. (2008) fala nas diversas funções da
responsabilidade civil, tais como compensatória, preventiva, punitiva e pedagógica. Já Rosa
Maria Nery (2008), de forma propositiva, incita a reflexão sobre a função social da família e
das sucessões. Tendo em vista que os mais variados institutos civilistas são hoje guiados pela
função social, revela-se patente a necessidade de traçar contornos seguros sobre a matéria.
Por causa da relevância que a funcionalização ganhou no Direito Civil brasileiro,
Flávio Tartuce (2007, p. 244), ao tratar do negócio jurídico, afirma que “o grande desafio da
atual geração de civilistas é preencher o conteúdo do que seja essa função social dos pactos”.
Tal desafio se torna ainda maior quando se percebe a quantidade de significados e sentidos
que o conceito de função pode adotar, a depender do instituto jurídico ou do caso concreto
analisado.
Uma das questões controvertidas é saber se a função é uma finalidade ou
instrumento para se atingir um fim. Gerson Luiz Carlos Branco (2009), por exemplo, defende
que função e finalidade não se confundem, sendo aquela meio para se chegar a esta. Em
sentido contrário, Flávio Tartuce (2007, p. 249) expõe tese em que “a ideia de função está
relacionada com o conceito de finalidade ou utilidade.”
Essa divergência encontra reflexo na própria legislação, uma vez que a função social
é retratada de diversas formas. Em relação aos contratos, o art. 421 do Código Civil expõe,
ao mesmo tempo, a função social como “limite” e “razão” da liberdade de contratar. Os arts.
184 e 186 da CF, ao tratar da propriedade rural, tratam do cumprimento da função social, o
que leva a crer que se está falando em uma finalidade. Da mesma forma, o art. 5º, XXIII, da
CF, prescreve que “a propriedade atenderá a sua função social”, sendo razoável também
concluir que esta atua como fim ou objetivo. Por fim, o art. 170 da CF estabelece a função
social como um princípio da ordem econômica, o que dá ensejo a diversas considerações, já
que o próprio conceito é controverso, havendo doutrina relevante que classifica os princípios

3
Sobre a função social da propriedade ver: arts. 5º, XXIII, 170, III, 182, §2º, e 184 da CF; sobre a função social
dos contratos ver o art. 421 do CC/2002.

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como normas finalísticas. Nesse sentido, Humberto Ávila (2005) entende que os princípios
que são normas imediatamente finalísticas, com pretensão de complementar a tomada de
decisão, sem apresentar solução específica, mas de contribuir para a decisão em conjunto
com outras razões.
Por conta dessa multiplicidade de usos que a função social adquire no nosso
ordenamento, é contraproducente fixar um conceito único e em oposição a outras funções
das normas jurídicas, uma vez que tal conduta exclusiva e seletiva não se coaduna com o
ambiente plural da sociedade que o direito pretende regular, como nos lembra o jusfilósofo
argentino Carlos Santiago Nino (2003).
Assim, exemplificando com a teoria do negócio jurídico, a função social só tem
sentido quando entendida em consonância com a função individual dos contratos, uma vez
que estes atendem imediatamente interesses pessoais (LÔBO, 2003). Tal conclusão é
reforçada porque a dignidade da pessoa humana – individualizada e personificada – é um dos
fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme art. 1º da CF. Logo, tratar a função
social como algo contrário à função individual dos institutos civilistas seria ir contra a própria
tendência contemporânea de “repersonalização” do Direito Civil (FACHIN; PIANOVSKI,
2008), no qual a pessoa humana passa a ser foco das relações, em detrimento de uma visão
meramente patrimonialista. Nesse passo, a função social tem como missão justamente
garantir a realização da dignidade da pessoa humana, conforme lição de Luiz Edson Fachin
e Carlos Eduardo Pianovski, ao tratar da propriedade:
“Se a história adverte ao estudioso e ao aplicador do direito que o discurso
pertinente a função social ainda não logrou êxito em promover, na plenitude
esperada, uma ‘repersonalização’ do direito de propriedade, mostrando-se
pertinente um repensar – sempre de sentido emancipatório – do conteúdo e do
fundamento dessa funcionalização, não se nega que, no movimento dialético que
conduz a historia, seria um equívoco negar a pertinência da função social da
propriedade para a busca da concretização da dignidade da pessoa no Direito
Civil.” (2008, p. 109)

Igualmente, a função social deve ser vista em concordância com as finalidades


individuais, ambientais, econômicas e culturais (BARBOSA; LONGHI, 2013) entre outras,
previstas na Constituição e que permeiam as relações privadas travadas entre os indivíduos.
Por isso, a função social é “expressão do reconhecimento da ‘multifuncionalidade’ típica dos
modelos jurídicos”, e “realiza simultaneamente todas as funções, em vários níveis [...]”
(BRANCO, 2009. p. 297).

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Visto que a funcionalização adquire diversas facetas, é possível concluir que não há
sentido em determinar abstratamente se a função social é uma finalidade em si mesmo ou
instrumento para outros fins. Isso porque há casos em que se impõe a função social no papel
de fim a ser atingido por meio de outros instrumentos, como é a hipótese do art. 186 da CF,
no qual se estabelece que a função social da propriedade agrícola é atingida por meio de
aproveitamento racional do imóvel, utilização adequada dos recursos naturais, preservação
do meio ambiente, entre outros. Por outro lado, quando se considera a função social como
um mecanismo para se concretizar a dignidade da pessoa humana ou a redução das
desigualdades, obviamente se emprega uma visão instrumental ao instituto, a serviço de
outros fins.
Ao contrário de configurar contradição conceitual, essa diversidade apenas reforça
a aludida “multifuncionalidade” da função social, como verdadeira agregadora de outras
funções instrumentais ou finalísticas. Justifica-se essa opção maleável porque o próprio
Direito Civil já não se satisfaz com construções imutáveis e rígidas.
No entanto, essa mutabilidade que se confere à função social não pode ser encarada
como carta branca para se fazer qualquer uso ou interpretação, uma vez que é justamente essa
incoerência que se pretende combater. É contra esse tipo de conduta que Gerson Luiz Carlos
Branco (2009), com base em Enzo Roppo, explica que a definição da função de determinado
instituto jurídico não deve ser feita arbitrariamente, conforme vontade do detentor do poder
em determinado momento histórico, como ocorreu nos regimes fascistas europeus. Nesse
sentido, é recomendável que os fins perseguidos estejam previstos na legislação, ainda que
implicitamente.
Seguindo esse raciocínio, quando o intérprete pretende funcionalizar determinado
instituto jurídico, não cabe a ele decidir arbitrariamente qual o conteúdo da função social,
sem observar os comandos fixados na Constituição e demais normas. Nesse sentido, quando
se decide sobre a função social dos direitos sobre imóveis urbanos, deve-se ter em mente que
“A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais
de ordenação da cidade expressas no plano diretor”, nos termos do art. 182, §2º, da CF.
Consequentemente, é necessário que a função social da propriedade seja exercida nos termos

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dos arts. 2º4 e 395 do Estatuto das Cidades – Lei Federal nº 10.257/2001, que tratam
justamente dos requisitos mínimos da política urbana prevista no plano diretor de cada
município.
No que diz respeito à função social dos contratos, prevista no art. 421 do Código
Civil, não há diretrizes tão claras e específicas, o que não significa que elas inexistem, mas
sim que se demanda maior esforço hermenêutico para encontrar essas respostas no
ordenamento. Dessa forma, parece cabível exigir que a função social da liberdade de
contratar seja exercida em respeito à cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais
do trabalho e livre iniciativa, encartados como fundamentos da República Brasileira (art. 1º,
CF). Do mesmo modo os negócios jurídicos devem se guiar pelos objetivos fundamentais da
república (art. 3º, CF), notadamente a construção de uma sociedade livre e solidária, redução
das desigualdades e promoção do bem de todos, sem discriminações de qualquer natureza.
Já no âmbito dos contratos de consumo, o Código do Consumidor oferece diretrizes mais
objetivas para concretização da função social, como os princípios das relações consumeristas
(art. 4º, CDC), direitos básicos do consumidor (art. 6º, CDC), rol exemplificativo de práticas
abusivas (art. 39, CDC) e de cláusulas absolutamente nulas (art. 51, CDC).
Vale frisar que a importância da delimitação mínima do conteúdo da função social
não significa maior controle e redução da autonomia privada, mas serve, ao contrário, para
evitar abusos e arbitrariedades contra a liberdade individual (BRANCO, 2009). Também é
importante ressaltar a relevância de que a legislação, ao positivar balizas e orientações de
cunho funcional, compreenda que mesmo dentro de uma única matéria – seja a teoria dos
direitos reais, do negocio jurídico ou da responsabilidade civil – existem uma complexidade
de situações e hipóteses jurídicas diversas, sendo necessário, muitas vezes, tratar
diferentemente cada uma (TARTUCE, 2007).
Demonstrada a complexidade e multiplicidade de sentidos que a função social pode
adquirir no ordenamento jurídico, passamos a exemplificar alguns desses casos específicos.

4
Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: (...)
5
Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de
ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos
quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as
diretrizes previstas no art. 2º desta Lei.

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3. FUNÇÃO COMO MÉTODO: A METODOLOGIA DO DIREITO CIVIL
CONSTITUCIONAL

É notório que o Direito Civil brasileiro passou por importantes inovações


legislativas, trazidas principalmente pela Constituição de 1988 e pelo Código Civil de 2002,
além de diplomas específicos como o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto das
Cidades.
Essas novidades exigiram dos juristas repensar a técnica – ou o método – de se
aplicar os institutos civilistas, o que deu origem ao que se convencionou chamar de
Metodologia do Direito Civil Constitucional (LÔBO, 2014). Nesse contexto, ganhou
relevância a funcionalização dos institutos civilistas como elemento metodológico útil a
atender aos novos anseios do direito privado, notadamente no que diz respeito à
concretização de princípios como o da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Rosa
Maria Nery, apesar de não afirma expressamente que a função social seja um método, parece
chegar a essa conclusão, ao constatar que ela não se trata nem de razão nem de limite do
negócio jurídico – como prescreve o art. 421 do CC/2002 – mas de “técnica que permite que
a exegese das leis e dos contratos não seja feita in abstracto, mas sim in concreto” (2008. p.
249).
Como já visto, o conceito de função pode se identificar com as finalidades da norma
ou representar um instrumento para atingir esses fins. Por isso, uma primeira relação a ser
feita entre função e metodologia, é que a funcionalização se aproxima da teleologia de
determinado instituto, permitindo relacioná-la com o método teleológico. Sobre o assunto,
vale transcrever a lição de Andreas J. Krell:
“Muitas vezes, o fim da norma assume uma função decisiva na definição do
significado de um dispositivo legal no caso concreto, uma vez que o Direito serve
para produzir soluções adequadas para certos problemas. Ao contrário dos outros
elementos metódicos, o teleológico não guarda relação direta com o texto legal,
mas perquire sobre algo externo, isto é, a orientação instrumental da norma, o que
atribui ao intérprete uma considerável liberdade na afirmação deste fim concreto e
das suas consequências para o caso. No centro de atenção aqui não estão questões
semânticas, a coerência do sistema ou as intenções do legislador, mas a
responsabilidade do intérprete pelo alcance de um resultado correto e/ou justo para
o caso concreto a ser decidido. (...) Assim, o elemento teleológico da interpretação
resguarda e aumenta a racionalidade da produção da decisão, uma vez que exige
um convencimento argumentativo sobre o juridicamente correto (MORLOK, 2012,
p. 202 ss.).” (2014, p. 306)

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Especificamente no ramo dos negócios jurídicos, Karl Larenz (1997), em sua já
clássica obra sobre metodologia jurídica, explica que os conceitos abstratamente positivados
não são suficientes para solucionar os casos concretos. Por isso, propõe que tais conceitos
sejam desenvolvidos com base na função que exercem no ordenamento. Essa função serviria,
inclusive, para determinar o conteúdo e a forma de determinado ato. O autor – ainda calcado
em uma visão mais tradicional – afirma que o negócio jurídico deve ser interpretado em
função da autonomia privada, por ser instrumento a serviço desta (LARENZ, 1997).
Além do método teleológico, a função social pode ser vista como elemento
metodológico de cunho sistemático, a fim de permitir que as normas sobre determinado
assunto sejam interpretadas em coerência com todo o ordenamento. Essa unidade sistêmica
que a funcionalização confere como método interpretativo é especialmente importante no
atual momento histórico, em que o Direito Civil se subdivide em inúmeros e novos campos
(como os direitos de privacidade no mundo virtual), para evitar contradições entre a
legislação própria de cada área (LEWICKI, 2014). A aplicação da função como elemento de
unidade do sistema também se coaduna com as afirmações feitas no tópico anterior, de que
não cabe ao aplicador do direito preencher o conteúdo da função social arbitrariamente, sem
observância das diretrizes constitucionais e legais que conformam o direito positivo pátrio.
Por fim, a função há muito desempenha importante papel metodológico na
experiência estrangeira. Isso ocorre porque a análise funcional permite que ordenamentos
com categorias dogmáticas diversas – o que impossibilitaria uma comparação meramente
estrutural ou normativa – sejam analisadas em razão da semelhança das funções que as
normas exercem abstratamente (CURY, 2014) ou nos casos concretos (SCHMIDT, 2009).
Logo, constata-se que a função permite a leitura mais profunda de um sistema jurídico
estrangeiro, uma vez que supera eventuais divergências dogmáticas e contribui para a troca
de soluções entre ordenamentos diversos. Além disso, a comparação com base em uma
análise funcional possibilita encontrar conjuntos normativos diferentes, mas que servem para
resolver os mesmos problemas, o que ajuda na verificação da eficiência de cada um.
Com base nessa exposição, a funcionalização revela-se como importante
instrumento metodológico para o Direito Civil, tanto no aspecto teleológico e sistemático,
como no Direito Comparado. Mas não é só, adiante mudaremos o foco para analisar a função
como elemento do próprio negócio jurídico.

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4. FUNÇÃO COMO RAZÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO: A CONTROVÉRSIA
SOBRE A CAUSA

Uma questão bastante antiga do Direito Civil é se a causa é ou não elemento do


negócio jurídico, notadamente quando não consta previsão legal expressa sobre o assunto.
No caso do direito civil francês, Jacques Ghestin (1980) explica que, mesmo antes da
positivação da matéria na França, a causa já era considerada elemento essencial ao negócio,
independentemente de disposição em lei. No caso do Brasil, a ausência de previsão da causa
nos Códigos de 1916 e 2002 pode ter dificultado o desenvolvimento do tema na doutrina
nacional, mas não impediu que relevantes autores reconhecessem a causa como elemento do
negócio jurídico. Assim, cumpre inicialmente expor o conceito de causa, para em seguida
demonstrar sua relação com a função.
Ainda com suporte no antigo Código Civil, Eduardo Espínola (1977) reconhece a
dificuldade da conceituação da causa, a qual seria a razão de ser extrínseca do negócio
jurídico, enquanto o motivo seria a razão de ser intrínseca. Assim, a causa seria o fim
perseguido, o qual necessariamente deve ser uma finalidade aceita pelo ordenamento, sob
pena de não ser o negócio recepcionado como categoria jurídica pelo direito. Por outro lado,
o autor reconhece a existência de negócios causais ou materiais e negócios abstratos ou
formais, subsistindo a segunda categoria mesmo que não se verifique a causa que os guiou.
Da mesma forma, Pontes de Miranda (1970) já identificava a causa como a função
do ato jurídico latu sensu, “traçando-lhe e precisando-lhe a eficácia” (1970, p. 78), e que esta
não se confunde com o seu motivo (razões internas do agente) nem com o seu fim, que seria
a junção de causa e motivo. Além disso, o autor explica que os negócios jurídicos em regra
são causais, sendo necessário que a lei indique expressamente os casos abstratos. Marcos
Bernardes de Mello, seguindo a orientação ponteana, conclui que a causa é “atribuição
jurídica do negócio, relacionada ao fim prático que se obtém como decorrência dele. (...) A
causa, em última análise, constitui a função do negócio jurídico” (2003, p. 145).
Da análise desses conceitos, percebe-se que, antes mesmo das previsões da função
social do contrato no Código Civil de 2002, já havia na doutrina pátria e estrangeira a
preocupação de que os negócios jurídicos deveriam possuir uma causa, razão ou função que

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se coadunasse com os ditames legais e morais (GHESTIN, 1980). Portanto, a utilização da
teoria da causa para explicar a funcionalização dos contratos é bastante útil para desmistificar
as acusações de que a função social viria para descaracterizar o negócio jurídico, por suposta
interferência na autonomia privada.
Nesse contexto, a doutrina brasileira contemporânea passou a refletir sobre a causa
à luz do art. 421 do CC/2002, que diz que a liberdade de contratar será exercida “em razão”
da função social, conforme lições de Pablo Renteria (2006) e Nelson Rosenvald (2007).
É importante também transcrever a lição de Maria Celina Bodin (2015), que expõe
a relevância da causa na interpretação dos negócios jurídicos, para verificação do
cumprimento de sua função social:
“A principal utilidade da análise do elemento causal é apontada, exatamente, no
serviço que presta como meio de recusa de proteção jurídica a negócios sem
justificativa ou sem significação social. Assim é que o negócio pode ter como
requisitos de validade apenas a declaração de vontade, o objeto e a forma (art. 104,
CC 2002); mas, a causa – ou a especificação da função que desempenha – é o
elemento que o define, que lhe é próprio e único, e que serve a diferenciá-lo de
qualquer outro negócio, típico ou atípico. É, portanto, também o elemento que lhe
dá – ou nega – juridicidade.”

Além disso, o estudo do elemento causal permite enxergar certos aspectos


específicos do negócio jurídico, pois “somente a identificação da causa pode determinar a
qualificação contratual, a invalidade ou ineficácia de certas relações jurídicas para as quais o
exame dos demais elementos mostra-se insuficiente.” (TEPEDINO, 2014)
A identificação da função como causa também permite resolver a questão sobre a
eficácia interna da função social do contrato. Não há dúvidas que a função social possui uma
eficácia externa às partes, mas ainda há debates sobre a existência de uma eficácia interna
que vincule e condicione os próprios contratantes (ROSENVALD, 2007). Assim, a
compreensão da função social como causa do contrato indica que as partes ficam vinculadas
a atuar de acordo com a razão jurídica que legitima determinado negócio jurídico.
No entanto, é preciso reconhecer que a designação da função social como causa
encontra resistência em parte da doutrina que entende equivocado apontá-la como razão da
liberdade de contratar, conforme dispõe o art. 421 do CC/2002. Nesse sentido é o já exposto
entendimento de Rosa Maria Nery (2008), que diz que a função não se trata nem de limite
nem de razão, mas de técnica interpretativa. Também contrários à tese, Lucas Abreu Barroso
e Andreza Soares da Cruz (2005) criticam a redação do art. 421, pois a liberdade de contratar

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seria exercida em razão ou proveito das próprias vontades das partes, e não da função social.
Em sentido semelhante, Flávio Tartuce (2007) entende que a função é apenas limite à
liberdade de contratar, ressaltando que há projeto de lei em trâmite no congresso – conhecido
com projeto Ricardo Fiuza – para retirar a expressão “em razão” do art. 421, uma vez que a
razão do contrato seria a própria autonomia privada.
Apesar das críticas, percebe-se mais uma vez como a função social pode cumprir
importante papel na interpretação dos negócios jurídicos, quando for encarada à luz da teoria
da causa, evitando que os contratos sejam desvirtuados para fins escusos ou ilícitos.

5. FUNÇÃO COMO LIBERDADE(S): A TESE DE CARLOS EDUARDO


PIANOVSKI

Interessante releitura da teoria funcional é feita por Carlos Eduardo Pianovski, que
procura conciliar a funcionalização com a autonomia privada ao tratar da função como
liberdade(s). É preciso ressaltar, inicialmente, que não pretendemos expor neste breve espaço
toda a complexidade da tese, mas apenas mostrar o resumo de algumas ideias que são
relevantes para o presente artigo, notadamente no que diz respeito à possibilidade de
funcionalizar o Direito Civil com diferentes objetivos. Feita essa ressalva, passamos a a
explorar a noção de função como liberdade(s).
O próprio autor reconhece que a forma de funcionalização dos institutos do Direito
Civil, durante o século XX, leva à conclusão de que a “função vem a limitar ou, mesmo,
condicionar a liberdade, de modo que uma perspectiva funcional seria a antítese de uma
compreensão fundada nessa mesma liberdade” (PIANOVSKI, 2009, p. 1.614). Por isso, na
tentativa de conciliar função e liberdade, ele apresenta uma concepção de função diferente
da tradicional postura sociológica, que a considera como uma prestação em favor de um todo,
pois “dado instituto jurídico pode realizar prestações/contributos (e, assim, realizar uma
função) para algo ou alguém (ou para atender às necessidades de algo ou de alguém) que não
precisa, necessariamente, ser o ‘todo social’.” (PIANOVSKI, 2009, p. 161)
O autor também tenta superar as noções de liberdade que tratam o indivíduo de
forma isolada e desconectado das relações intersubjetivas, e inverte a relação de que a

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liberdade seria exercida em função de algo, para concluir que são os institutos jurídicos que
devem funcionar em favor da liberdade (PIANOVSKI, 2009).
Por essa trilha, a aparente contradição entre função e liberdade seria superada
quando passamos a verificar qual o enfoque que se dá à análise funcional empreendida.
Inicialmente, é preciso questionar se estamos a investigar a função das condutas regidas pelo
Direito Civil ou a função do próprio Direito Civil (seus princípios, regras e institutos). Em
seguida, cumpre identificar qual o tipo de função analisada: é ela manifesta e apriorística
(sentido normativo teleológico), ou um “um sentido identificável na observação do
fenômeno, que propicia a sua constituição e manutenção.” (PIANOVSKI, 2009, p. 165)
Nesse passo, o autor entende que não seria cabível a abordagem funcional das
condutas individuais regidas pelo Direito Civil, já que essas condutas teriam como marca
principal justamente a ausência de qualquer fim ou telos imposto pela lei. Por outro lado,
uma funcionalização dos institutos civilistas seria possível – com base no sentido normativo
teleológico – para identificar um fim a priori do Direito Civil, que seria justamente a conduta
livre. Em outras palavras, caberia o Direito Civil a função de assegurar justamente a própria
autonomia da vontade (PIANOVSKI, 2009).
Avançando além do sentido normativo (dever-ser), também é cabível a análise
funcional do Direito Civil na observação do próprio fenômeno no caso concreto (como as
coisas são). Nesse sentido, não se procura o próprio fim do Direito Civil, mas se
“identifica[m] outros elementos funcionais explicativos desse Direito Civil Moderno”
(PIANOVSKI, 2009, p. 168). Sobre essa mudança de foco, Bobbio alerta que o jurista deve
ter cuidado para não “trocar o ser pelo dever-ser e de saltar, sem se dar conta, do problema
de qual seja a função do direito em uma dada situação para o problema de qual deva ser”
(2007, p. 107),
De todo modo, Carlos Eduardo Pianoviski (2009) não pretende colocar a liberdade
– ou as várias formas de liberdades – como função única ou última do Direito Civil, pois tal
conduta acabaria por retornar à rejeitada postura funcional sociológica, que entende que as
funções são sempre destinadas a um único todo. Assim, o autor fala do conceito de “liberdade
coexistencial”, que abarca o caráter plural da liberdade, e também se coaduna com as demais
funções exercidas pelo direito.

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É o próprio autor que reconhece eventuais contradições e dificuldades na
conciliação da função com liberdade, o que não significa que tal missão deve ser ignorada:
“A enunciação pode, pois, se dar da seguinte forma: trata-se de uma dimensão
funcional dos institutos de base do Direito Civil centrada em uma compreensão
plural - e internamente dotada de potencial conflito entre perfis de liberdade - que
pode permitir afirmar que contrato, propriedade e família têm por função propiciar
ora a proteção, ora o exercício, ora o incremento de liberdades coexistenciais, tanto
do titular de um direito determinado quanto de terceiros que podem sofrer
conseqüências materiais advindas do exercício desse direito. (...) O norte
enunciado significa que tanto o contrato como a propriedade e a família têm
prestações a realizar em termos de liberdade em favor de indivíduos e de grupos de
indivíduos, ampliando o espaço de escolhas, incrementando opções de vida e
ofertando possibilidades concretas de exercício efetivo dessas escolhas.”
(PIANOVSKI, 2009, p. 229-230)

É preciso ressaltar que a liberdade que se sustenta não é a de abstratamente fazer


escolhas, mas de efetivamente colocar em prática as preferências e valores que o indivíduo
possui (PIANOVSKI, 2009). Essa consideração da liberdade com algo concreto e variável
a depender de cada situação obviamente proporciona conflitos, o que não leva à negação da
tese defendida, mas, ao contrário, só reforça o caráter plural e dinâmico que a liberdade
assume atualmente ((PIANOVSKI, 2009). Isso ocorrer porque ninguém é livre sozinho,
significando que a liberdade vem acompanhada da alteridade e “implica interseção de vidas
livres, o que importa a responsabilidade intersubjetiva recíproca pelas liberdades dos
indivíduos em relação.” (PIANOVSKI, 2009, p. 375).
Por outro lado, é preciso sublinhar a existência de forte crítica doutrinária contra a
ideia de função dos institutos civilistas, por ofensa à liberdade. Nessa direção, Rodolpho
Barreto Sampaio Junior (2009) sustenta que o discurso do novo Direito Civil brasileiro, com
base na solidariedade e função social, seria uma retórica sedutora que esconderia um
verdadeira postura controladora das relações privadas, retirando dos cidadãos as tradicionais
garantias que os institutos civilistas ofereceriam.
Apesar das posições contrárias – ou justamente por causa delas –, a tese de Carlos
Eduardo Pianovski tem a virtude de enfrentar diretamente a maior crítica que se faz à
funcionalização do Direito Civil, que é a restrição indevida da autonomia dos indivíduos, por
suposta interferência do Estado nas relações privadas, trazendo novas perspectivas e soluções
para esse dilema.

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6. O DIREITO CIVIL PRECISA FUNCIONAR

Ao longo do presente trabalho apresentamos os variados papéis que a


funcionalização assume no Direito Civil brasileiro, a fim de comprovar a ideia de
multifuncionalidade e demonstrar a inviabilidade de se alcançar um único conceito de função
do direito.
Ficou claro que a concepção de função como finalidade – ou instrumento para busca
de determinados fins – não é algo novo no direito, sendo uma preocupação recorrente da
Filosofia do Direito e do Direito Civil, como se vê da função como método de interpretação
ou como causa do negócio jurídico. Apesar de ser um assunto constante, há uma abordagem
equivocada do tema, já que muitas vezes a função é enquadrada como um conceito estático
e absoluto.
Ocorre que a maior virtude da análise funcional dos institutos jurídicos é justamente
permitir sua maior efetividade em cada caso, possibilitando sua adaptação a situações
concretas, sem que isso importe em descumprimento das regras positivadas. Tal
maleabilidade do Direito Civil se mostra bastante necessária em uma sociedade que muda
seus padrões sociais, econômicos e culturais com grande velocidade, permitindo que o direito
acompanhe tais alterações sem se tornar defasado ou incompatível com a realidade
(ENNECCERUS; KIPP; WOLFF, 1953)
É por isso que a funcionalização deve ser exercida de forma diversificada, a
depender da área do Direito Civil envolvida, pois é certo que a função social não incorpora
o mesmo conteúdo nos contratos, na propriedade, na responsabilidade civil ou na família.
Repetimos que essas variadas maneiras de funcionalizar o direito não quer dizer que o
intérprete pode fazer qualquer uso da função social, uma vez que deve se ater aos limites do
direito positivo. Nesse sentido é pertinente compreender que a funcionalização do Direito
Civil não nos autoriza a ignorar o ordenamento, e sim nos permite ressignificar as normas
postas, buscando interpretações mais adequadas à realidade, sem necessidade de se recorrer
diretamente a princípios constitucionais por mera conveniência (LEWICKI, 2014).
Possivelmente o maior cuidado na análise funcional diz respeito ao eventual conflito
com a liberdade, que tradicionalmente caracteriza as relações privadas. Tal contradição é
resolvida quando a funcionalização do Direito Civil é feita justamente em razão ou em favor

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da liberdade ou liberdades, já que esta adquire conteúdo variável a depender de cada
indivíduo e de cada situação. Essa postura certamente causa colisão de interesses e valores,
mas isso apenas atesta a pluralidade dos conceitos de função e de liberdade, exigindo a
conciliação dos mesmos em cada caso concreto. De qualquer forma, a função não pode se
sobrepor à autonomia privada a ponto de controlar todas as condutas dos particulares de
forma mecânica, principalmente quando não se verifica nenhum prejuízo para a coletividade,
já que os indivíduos são livres para tomar suas próprias decisões, ainda que aparentemente
possam ser pessoalmente desvantajosas (ÁLVAREZ, 2015).
Por tudo isso, a comunidade jurídica tem a missão de fazer o Direito Civil funcionar,
o que importa na correta identificação e delimitação das várias funções que os institutos
civilistas podem exercer. Essa tarefa exige do intérprete eleger como a função deve incidir
no caso concreto (na forma de método, por exemplo), bem como precisa observar os limites
do ordenamento quanto aos fins perseguidos, principalmente no que diz respeito à garantia
da liberdade que caracteriza as relações privadas.

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LIBERDADE DE EXPRESSÃO VERSUS TUTELA DOS
DIREITOS DA PERSONALIDADE: A CONSTITUCIONALIDADE
DA PUBLICAÇÃO DE BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS

Adriano Marteleto Godinho1


Emanoelle Maria Brasil de Vasconcelos2
Maria Luísa Gomes Mendes3

RESUMO: O presente artigo versa sobre a atual configuração das biografias não autorizadas
no Brasil, abordando desde os conceitos primários que embasam o tema, como o conflito entre
a liberdade de expressão e o direito à privacidade, até um estudo mais aprofundado acerca da
edição de obras biográficas não consentidas, suas consequências e casos emblemáticos,
abordando. Por fim, verificar-se-á o mérito da Ação direita de Inconstitucionalidade n. 4.815,
que trata da análise dos arts. 20 e 21 do Código Civil, e o teor do Projeto de Lei 393/11, que
visa à alteração deste derradeiro dispositivo legal.
Palavras-chave: biografias não autorizadas, liberdade de expressão, direito à imagem, direito
à privacidade.

ABSTRACT: The present article deals with the current configuration of the unauthorized
biographies in Brazil, approaching the elementary concepts that bases the matter, such as the
conflict between the freedom of speech and the right to privacy, up to a further study about the
unauthorized biographies, its consequences and emblematic cases. Finally, the substance of the
ADI n. 4815, which deals with the analysis of the articles 20 and 21 of the Civil Code, will be
checked, as well as the Bill 393/11, which aims to change this ultimate legal provision.
Keywords: unauthorized biographies, freedom of expression, image rights, right to privacy.

1. INTRODUÇÃO

1
Professor adjunto da Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade
de Lisboa. Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais.
2
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
3
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Advogada. Pós-graduanda em Direito
Constitucional na Faculdade Damásio. Pós-graduanda no preparatório para carreiras jurídicas pela
Fundação Escola Superior do Ministério Público.

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A publicação de biografias no Brasil, nomeadamente as que não contam com prévia
autorização da pessoa biografada ou de seus familiares, quando aquela for falecida, é um tema
controverso que desperta infindáveis discussões sobre o conflito entre os direitos à imagem e à
privacidade e a liberdade de expressão.
Primeiramente, no que diz respeito à base legal, tais direitos fundamentais possuem
fundamento na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que protege igualmente
os direitos à liberdade de expressão e informação, à intimidade e à vida privada, consagrando-
os em um mesmo patamar de observância e obrigatoriedade. No Código Civil brasileiro, por
outro lado, o seu art. 20 determina haver a necessidade da concessão da permissão de uma
pessoa quando da divulgação de imagens a seu respeito, o que aparenta, à partida, demonstrar
a prevalência do direito à intimidade em detrimento dos demais. Tal interpretação gera críticas
acerca da constitucionalidade do aludido dispositivo, que, consoante se verá, já é objeto do
Projeto de Lei 393/11, que almeja sua alteração, de modo a ampliar a liberdade de expressão,
informação e acesso à cultura.
Alcides Leopoldo e Silva Júnior (SILVA JÚNIOR, 2002, p. 89) considera pessoa
pública aquela que está ligada ou se dedica à vida pública, como por exemplo, artistas,
esportistas e políticos, cuja atuação dependa do reconhecimento das pessoas ou a elas seja
voltado, mesmo para lazer ou entretenimento. Precisamente por se tratarem de indivíduos
constantemente expostos, sua vida privada, assim como os textos biográficos que versem sobre
eles, tendem a atrair o interesse da população, seja por mera curiosidade ou pela necessidade
de se construir a própria história da humanidade, em virtude da amplitude, influência e
notoriedade atribuída às pessoas notórias.
Neste contexto, surge o grande impasse da proibição das publicações de biografias não
autorizadas, tendo em vista que podem limitar o autor da obra literária a nela fazer constar
apenas as informações com as quais o biografado consinta, proliferando-se as denominadas
biografias chapas-brancas, que pouco ou nada revelam sobre a verdadeira trajetória do
biografado, o que pode vir a comprometer, afinal, o amplo e mais autêntico exercício do direito
de informação.
O enfrentamento do tema exige a abordagem dos direitos constitucionais e da
personalidade que embasam a temática e a investigação dos casos mais polêmicos que a
envolvem.

2. DIREITO À PRIVACIDADE, À IMAGEM E À LIBERDADE DE EXPRESSÃO:


CONCEITOS E RAMIFICAÇÕES

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Preliminarmente à análise do mérito da temática proposta, são necessários
esclarecimentos inaugurais acerca dos direitos que fundamentam e dão suporte à discussão.
Tratar sobre a edição de biografias não autorizadas significa, essencialmente, colocar
em xeque a ponderação entre duas categorias de direitos. De um lado, figuram os direitos da
personalidade, assegurados entre os arts. 11 a 21 do Código Civil – nomeadamente os direitos
à imagem, à honra, à privacidade e à intimidade, que também encontram guarida no art. 5º, X
da Constituição Federal da Republica de 1988, que assim determina: “são invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização
pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”; de outro lado, apresentam-se as
liberdades de expressão e de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença, igualmente alicerçadas ao status de
direitos fundamentais.
Os direitos da personalidade são caracterizados como direitos inerentes ao ser humano
e essenciais à preservação da sua dignidade. Segundo Carlos Alberto Bittar (BITTAR, 1989, p.7),
tais direitos não existem por força de lei, mas antes correspondem às faculdades normalmente
exercidas pelo homem, relacionadas a atributos inerentes à condição humana. Entre os direitos
da personalidade figuram, exemplificativamente, os direitos à vida, à saúde, à integridade
psicofísica, ao nome, à honra, à imagem, à privacidade e à intimidade – estes dois últimos, a
propósito, concernentes ao direito que cada pessoa tem de resguardar para si certos aspectos de
sua vida, mantendo-os em uma esfera particular, inatingível e inviolável por terceiros. A este
respeito, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2005,
p. 188) definem:
O elemento fundamental do direito à intimidade, manifestação primordial do
direito a vida privada, é a exigibilidade de respeito ao isolamento de cada ser
humano, que não pretende que certos aspectos de sua vida cheguem ao
conhecimento de terceiros. Em outras palavras, é o direito de estar só.

A intimidade é um direito individualista, que diz respeito a informações da vida pessoal


do indivíduo, como seus hábitos e vícios, enquanto a vida privada envolve relações com
terceiros, e, consequentemente, contempla maior abrangência. Por isso mesmo, tais direitos
ocasionalmente colidem com a concepção da liberdade de expressão, especificamente no que
diz respeito à necessidade ou não de prévia autorização para a publicação de biografias não
autorizadas.

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Embora os direitos da personalidade, por sua notável relevância, sejam dignos de ampla
e cabal tutela, não se pode afirmar que sempre serão preservados em caso de conflito ou colisão
com outros direitos fundamentais, nomeadamente a liberdade de expressão; afinal, estes direitos
encontram-se no mesmo grau hierárquico e a solução imediata não passa pela eliminação prévia
e acrítica de qualquer deles. A depender do caso concreto, haverá um julgamento de valores
entre os direitos abordados, de modo a ponderar a forma de sua aplicabilidade, buscando-se
uma solução de equilíbrio, com base no princípio da dignidade da pessoa humana.
A solução ideal para as hipóteses de conflito seria conciliatória, prevalecendo ambos,
ainda que com parcial sacrifício de lado a lado. Todavia, em determinadas situações, a
prevalência de um princípio em detrimento de outro é inevitável, pois, embora a lógica da
ponderação consista na tentativa de conciliação dos interesses e valores envolvidos, tal feito
nem sempre se torna possível, devendo haver uma avaliação de acordo com determinados
critérios hierárquicos. Na prática, pois, os direitos fundamentais e da personalidade, ainda que
se intitulem como absolutos, podem ser relativizados em certos casos específicos.
No que diz respeito à liberdade de expressão, consiste no direito que as pessoas têm de
informar, de comunicar e de exteriorizar suas opiniões, donde também decorre o direito ao
acesso à informação, consoante dispõe o art. 5º, incisos IV, IX e XIV, da Constituição da
República de 1988:
Art. 5º, IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença;
XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da
fonte, quando necessário ao exercício profissional.

No mesmo sentido, o art. 220 e seus parágrafos, também expresso no texto


constitucional, assim determina:

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a


informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer
restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena
liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação
social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e
artística.

Sendo assim, resta claro que o texto constitucional arrola expressamente a liberdade de
pensamento e o acesso à informação entre o rol dos direitos e garantias fundamentais. José
Afonso da Silva (SILVA, 1989, p. 230), a propósito, salienta que

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o direito de informar, como aspecto da liberdade de manifestação do
pensamento, revela-se um direito individual, mas já contaminado de sentido
coletivo, em virtude das transformações dos meios de comunicação, de sorte
que a caracterização mais moderna do direito de comunicação, que
especialmente se concretiza pelos meios de comunicação social ou de massa,
envolve a transmutação do antigo direito de imprensa e de manifestação do
pensamento, por esses direitos, em direitos de feição coletiva.

A liberdade de expressão e a liberdade de informação participam diretamente na


orientação da opinião da sociedade democrática, fundamentando, inclusive, o exercício de
outros direitos fundamentais. Ambas tutelam o direito de externar ideias, opiniões, juízos de
valor e manifestação de pensamentos em geral, além se serem suportes vitais de um Estado
Democrático de Direito, em que toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão,
bem como de, sem interferências, procurar, receber e transmitir informações e ideias por
quaisquer meios, independentemente de fronteiras, consoante preconiza o art.19 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948.
Todavia, assim como os direitos da personalidade, o direito à liberdade de expressão
não é considerado absoluto, pois pode ser submetido a limites e responsabilidades, inclusive
mediante a apreciação do Poder Judiciário, que deverá justificar eventual necessidade de
intervenção restritiva desta liberdade em detrimento de interesses individuais.
Neste contexto, a tutela das biografias não autorizadas no Brasil encontra-se em meio
aos conflitos entre os aludidos direitos fundamentais, ora se sustentando na necessária tutela
dos direitos da personalidade, de modo a não apoiar a livre publicação de tais obras sem que
haja a prévia autorização do biografado, ora se pautando pela prevalência da liberdade de
expressão, com vistas a garantir a preservação do trabalho literário.

3. LIBERDADE DE EXPRESSÃO, DIGNIDADE HUMANA E A FORMAÇÃO DA


IDENTIDADE CULTURAL DE UM POVO

O apontado conflito entre direitos fundamentais tem gerado repercussões judiciais,


dentre as quais são dignas de nota os casos que envolvem a edição de biografias de celebridades
como Roberto Carlos, Garrincha, Noel Rosa, Guimarães Rosa, e mais recentemente, Virgulino
Ferreira da Silva, vulgarmente conhecido como Lampião. As referidas biografias visam a relatar
fatos verídicos sobre a vida dos biografados, de modo a inventariar suas trajetórias de vida – o
que, a depender do fato, pode se revelar como informação de ordem histórica, cultural e
artística.

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As pessoas notórias, cuja trajetória pessoal, profissional, artística ou política tenham
dimensões públicas, têm, de algum modo, reduzido o espectro de resguardo de suas vidas
privadas. Naturalmente, tais direitos não lhes são negados, mas sensivelmente mitigados em
face de suas trajetórias se tornarem de interesse público. Citados como exemplo, Roberto Carlos
é um famoso cantor e compositor brasileiro desde a década de 1960; Noel Rosa foi um dos
maiores e mais importantes artistas da musica popular brasileira; Guimarães Rosa, além de
médico e diplomata, foi um exímio escritor; Garrincha, um renomado atleta futebolístico
brasileiro; Lampião, um cangaceiro genuinamente brasileiro, que fez história por onde passou.
Indubitável a importância e contribuição dessas pessoas para a construção da história do país.
Neste domínio, surge o grande dilema enfrentado pelos biógrafos que consiste na
censura para a publicação das biografias não autorizadas. Alguns biografados e herdeiros
apenas permitem a publicação da obra se previamente submetida ao seu crivo, para que alterem
ou excluam os trechos que não acharem pertinentes. Esta censura prévia, todavia, pode ser tida
por inconstitucional, ao contrariar direitos fundamentais como a liberdade de expressão e de
informação. Neste embate, talvez a grande prejudicada seja, afinal, a história – a verdadeira
História, com “H” maiúsculo, como afirma Luiz Felipe Carneiro (CARNEIRO, 2013, p.118).
A preocupação com manipulação de informações e o debate acerca do direito de
liberdade de expressão recebeu destaque, na contemporaneidade, no século XX, após a
experiência de regimes totalitários, a exemplo do fascismo, do nazismo e do socialismo, na
antiga URSS.
Tanto no totalitarismo como no autoritarismo, os meios de comunicação de massa foram
usados para que a população legitimasse o governo, a exemplo do que Goebbels fez na
propaganda nazista, após idealizar a queima de livros que fossem considerados subversivos em
praça pública, ou da escandalosa manipulação fotográfica, na Rússia, no Governo de Stálin, em
que pessoas poderiam ser suprimidas das fotos, à medida que o líder político se
incompatibilizava com os seus “camaradas”, ou mesmo ser multiplicadas, como em uma
famosa foto de um discurso de Stálin.
A literatura do pós-Segunda Guerra Mundial é contundente na crítica aos regimes
autoritários às e restrições à liberdade de expressão, como, por exemplo, se vê do teor das obras
“Fahrenheit 451” (de Ray Bradbury, 1953), em que ter e ler livros são crime, cumprindo aos
bombeiros queimá-los, pois, segundo o governo, o conhecimento não traz felicidade, e “1984”
(de George Orwell, 1949), que alerta a humanidade não apenas para a manipulação de
informações por quem detém o poder (pois o protagonista, Winston Smith é funcionário do
Departamento de Documentação do Ministério da Verdade e seu papel é falsificar registros

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históricos, a fim de moldar o passado em função dos interesses do atual tirano), mas também
para a problemática da invasão da privacidade pelo “Big Brother”.
A história mostra que em momentos de exposições de ideais contrárias é que a liberdade
de expressão deve ser assegurada e defendida, pois é na divergência que algumas vozes correm
o perigo de serem silenciadas. Conforme assinalou George Orwell (ORWELL, 2007), “a
liberdade, se é que significa alguma coisa, significa o nosso direito de dizer às pessoas o que
não querem ouvir”. Trata-se, em essência, da mesma lógica encontrada na famosa máxima de
Voltaire: “detesto cada palavra que o senhor diz, mas defenderei até a morte seu direito de
dizê-las”.
Não é preciso ir longe para observar os riscos da restrição arbitrária da liberdade de
expressão: no passado relativamente recente da história brasileira, a ditadura militar (1964-
1985) deixou a marca da opressão sobre as liberdades fundamentais, através dos Atos
Institucionais, entre estes o mais voraz, o AI-5, além da utilização da tortura, homicídios e do
exílio como punição para quem ousasse manifestar opinião contrária à do governo.
Contudo não foram apenas as violações ao direito às liberdades que o regime ditatorial
legou à história. Os direitos à privacidade e à intimidade também foram devastados, pois,
naquele período, era comum que o Serviço Nacional de Informações anotasse dados sobre
cidadãos, principalmente os considerados “subversivos”, mantendo-as em cadastros estatais, os
quais as pessoas, em geral, não tinham acesso.
O direito à liberdade de expressão tem relação intrínseca com a democracia e o direito
de informar e ser informado, sendo essencial para a manutenção do Estado Democrático de
Direito. Mas não se pode desconsiderar a importância da proteção do direito à privacidade no
exercício da cidadania, enquanto projeção da dignidade da pessoa humana.
A problemática das biografias não autorizadas é, portanto, complexa, e tem foco na
discussão do conflito entre o direito à liberdade de expressão e o direito à privacidade; a
problemática passa, essencialmente, pela exigência ou dispensa da autorização do biografado
(ou dos seus familiares, no caso de biografias póstumas) para que a obra possa ser divulgada.
Emerge, neste contexto, o teor do art. 20 do Código Civil, enunciado nos seguintes
termos:
Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à
manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da
palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma
pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da
indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a
respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

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Em pese a boa intenção do legislador ao tutelar a honra e a imagem dos indivíduos, a
crítica que recai sobre o texto normativo toca à sua amplitude semântica, a provocar
interpretações exorbitantes, que não se coadunam com os preceitos constitucionais da liberdade
de informação e da livre manifestação do pensamento.
O fantasma da censura embasa os argumentos daqueles contrários à autorização prévia
para a comercialização das biografias: segundo entendem, o Estado não é responsável apenas
por se abster de praticar a censura, mas também por garantir o exercício da liberdade de
expressão, visto que o dissenso é pressuposto da democracia. Para estes, interpretar o art. 20 do
Código Civil de modo a exigir prévia autorização dos biografados é um forma de censura, não
a censura pública, imposta pelo poder estatal, mas uma censura privada, que condiciona a
publicação de obras biográficas aos interesses das pessoas nelas retratadas.
Lado outro, os que apoiam a autorização prévia para a edição de tais biografias afirmam
que não se trata de censura privada, eis que sempre se poderá submeter a questão ao crivo do
Poder Judiciário, a quem competirá decidir pela proibição da veiculação de determinada obra.
Tal proibição, se houver, se dará não pelo simples motivo de não haver prévia autorização, mas
por esta desrespeitar direitos inerentes à personalidade do individuo retratado.
Outra questão que provoca controvérsias é que, para os defensores das biografias não
autorizadas, a questão dos danos causados à privacidade, à imagem e à honra do biografado –
ou de seus familiares, o que caracteriza o denominado dano reflexo ou por ricochete –, poderia
ser resolvida pela via da responsabilidade civil. Contudo, há que se observar que a essência da
reparação é restaurar a situação ao seu estado anterior, na medida do possível. Quando ocorre
o dano moral, torna-se impossível restaurar o bem jurídico lesado – a dignidade em sim, em
última análise – ao estado anterior; por isso, estabeleceu-se legislativamente a incidência das
tutelas preventivas, de modo a evitar a consumação de danos à esfera da personalidade das
pessoas naturais. Uma vez publicada a obra literária, em havendo danos, já não caberá falar na
sua prevenção, mas apenas na eventual reparação – o que, no caso dos danos extrapatrimoniais,
pode se revelar como medida insuficiente para tutelar adequadamente os direitos da
personalidade.
Tem-se, de todo modo – sopesados os argumentos favoráveis e contrários à publicação
de biografias não autorizadas – que estas são consideradas um gênero textual e uma fonte de
produção literária histórica, pois destacam a importância de personalidades de grande
relevância social, artística e econômica, que participam ativamente da formação da identidade
cultural de um povo em dado tempo e lugar. Este, enfim, tem sido um argumento decisivo para

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pender a balança em prol da liberdade de expressão e da livre edição destas obras, mesmo que
não contem com a aprovação das pessoas nela retratadas.

4. CASOS EMBLEMÁTICOS DE BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS NO BRASIL


E A TÉCNICA DA PONDERAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE RESOLUÇÃO DE
CONFLITOS ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS

No Brasil, tem sido constante o debate judicial acerca do tema central destas linhas.
A obra “Noel Rosa: uma biografia”, dos autores João Máximo e Carlos Didier, foi alvo
de ações interpostas pelas sobrinhas do biografado, Irami Medeiros Rosa de Melo e Maria Alice
Joseph, que alegaram que a obra desrespeitava a memória do pai e do avô de Noel Rosa, que
cometeram suicídio, e que destacava a ebriedade constante do personagem principal. Assim, a
biografia, que foi lançada em 1990, não recebeu nova edição, e apenas pode ser encontrada em
sebos.
Outro caso de grande repercussão foi a biografia “Estrela solitária - um brasileiro
chamado Garrincha”, do autor Ruy Castro, que teve a sua comercialização proibida em 1995.
As autoras da ação, filhas do reconhecido gênio das pernas tortas, alegaram que a obra não
relatava o talento de Garrincha no futebol, mas violava sua intimidade, com relatos dos seus
vícios e casos amorosos. Apesar da proibição de sua comercialização durante onze meses, o
livro ganhou o Prêmio Jabuti em 1996 de Melhor Ensaio e Biografia. Na decisão judicial, em
segunda instância, o autor e a editora foram condenados a pagar indenização por danos
materiais às herdeiras, no importe de 5% sobre o valor de capa de cada livro comercializado.
O caso brasileiro mais emblemático, apesar de ter sido resolvido por meio de acordo
judicial, foi a obra “Roberto Carlos em Detalhes”, de autoria do jornalista Paulo César de
Araújo, lançado em 2006. Foi a partir desta ocorrência que a mídia começou a fazer referência
à “batalha das biografias”, e a dividir os posicionamentos em dois grandes blocos antagônicos:
os favoráveis às biografias não autorizadas, em defesa da liberdade de expressão, e seus
detratores, sob o argumento de ser necessário preservar os direitos da personalidade dos
biografados. No caso em apreço, o acordo firmado entre as partes pressupunha o fim da edição
da obra e a entrega dos exemplares remanescentes ao próprio cantor.
Quando se trata da biografia de uma pessoa notória, é realmente tênue a linha que separa
os fatos da vida privada dos de âmbito ou interesse público. Tomando-se por base o exemplo
de Roberto Carlos, não há como contar sua trajetória artística sem falar de sua vida privada,
pois o cantor, de certa forma, a exibiu ao público e a utilizou como inspiração para suas canções,

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visto que muitas delas fazem referência a relacionamentos amorosos e a seus familiares. Assim,
em alguns casos, é necessário conhecer fatos da vida privada do artista para compreender os
elementos históricos, sociais e culturais que ajudaram a compor sua obra.
Há, ainda, o caso da biografia “Sinfonia de Minas Gerais - A Vida e a Literatura de
Guimarães Rosa”, de autoria de Alaor Barbosa, retirado das livrarias, em 2008, em virtude de
decisão proferida nos autos de uma ação cível, ajuizada pela filha do escritor.
Um dos mais recentes e rumorosos casos foi o da biografia “Lampião – o Mata Sete”,
escrito por Pedro de Morais, que teve sua comercialização proibida, através de liminar, em
2011, pelo juiz da 7ª Vara Cível de Aracaju/SE. Nesta obra, o autor apresenta a versão de que
Virgulino Ferreira da Silva seria homossexual, a sua companheira Maria Bonita adúltera, e que
ambos se relacionavam com outro membro do bando, Luiz Pedro, além do fato de Lampião ser
possivelmente estéril por causa de um tiro que acertou a sua genitália, o que colocou em xeque
a paternidade da filha do casal, Expedita. Analisada a questão, à partida, é notória a violação
aos direitos da personalidade dos indivíduos retratados na biografia, que contempla relatando
acerca da sua sexualidade – fator decisivo para a fundamentação da decisão judicial que vetou
a divulgação da obra.
Todavia, em 2014, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Sergipe reformou a
decisão de primeiro grau, permitindo a comercialização da obra. O relator do caso, Cezário
Siqueira Neto, afirmou que o papel do Poder Judiciário é o de estabelecer a reparação de
possíveis danos, mas não de restringir a liberdade de expressão.
Para que se alcancem válidas conclusões em casos de tal sorte complexos, cumpre apelar
à aplicabilidade de um componente do princípio geral de proporcionalidade, a técnica da
ponderação. De acordo com ela, segundo Guilherme Soares (SOARES, 2005, p. 332),
uma restrição a um determinado direito fundamental é admitida quando
endereçada à satisfação de outro direito individual ou bem coletivo
constitucionalmente protegido, cujo peso ou importância revele-se
igual ou superior, à luz das circunstâncias concretas envolvidas.

Constatado um conflito entre direitos fundamentais, cuja incidência possa conduzir a


soluções díspares para um mesmo problema, o desfecho preferencial consistirá no respeito a
ambos os valores em colisão. Não sendo viável conservar a convivência harmônica dos direitos
em choque, caberá o apelo à sua hierarquização. Em outras palavras, a lógica da ponderação
sugere que, num primeiro momento, compete tentar conciliar os valores e interesses em causa,
sem que nenhum deles tenha de ceder; se tal não for possível, cumprirá sopesá-los, segundo
uma hierarquia que não pode deixar de considerar que:

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a) Qualquer solução, sobretudo em se tratando de direitos fundamentais e da
personalidade, deve ser pautada pelo respeito à dignidade da pessoa humana;
b) A escolha sobre qual dos valores deverá prevalecer será feita com base nas
circunstâncias do caso concreto;
c) O emprego da ponderação concretiza, como já se afirmou, uma noção de
proporcionalidade. Para que se dê o afastamento (no todo ou em parte) da incidência de um
direito em prol da eficácia de outro, é fundamental analisar se a importância da preservação do
direito prevalecente é suficiente para justificar a restrição do direito sucumbente.
A técnica da ponderação propõe, como medida inaugural, a incidência em conjunto de
valores que, à partida, se revelam colidentes. O fato de tais valores se dirigirem a direções
opostas não quer implicar, necessariamente, o completo afastamento de um e a absoluta
prevalência do outro.
Se, todavia, a harmonização entre os valores conflitantes se mostrar impossível,
cumprirá contrapesá-los para verificar, na sua densificação, qual deles merecerá resguardo.
Ainda que esta seja a solução a adotar, entretanto, a melhor saída implicará uma tentativa de
não se sacrificar por completo o valor sucumbente, a não ser que a sua anulação seja necessária
para a preservação do valor ao qual se conferirá primazia.
Assim quando há conflito entre direitos fundamentais, que pela ordem constitucional
brasileira estão no mesmo patamar hierárquico, se observa a importância do método eficaz para
o Estado juiz resolver a lide que lhe é posta. A ponderação traduz um método clássico, aplicado
na medida em que cada direito fundamental padeça da mínima restrição possível, na
salvaguarda do direito contraposto. Estas restrições devem ser estipuladas respeitando o
princípio da proporcionalidade, de forma que o juiz procure o ponto de equilíbrio entre os
interesses em conflito, sem negar ou deixar de assegurar nenhum dos direitos em lide, pois
apesar de não serem absolutos, são direitos fundamentais.
Importa salientar, mais, que no Brasil a interpretação dos preceitos constitucionais e
infraconstitucionais se orienta pelo princípio da unidade, de maneira a fazer com que os
dispositivos legais sejam interpretados como um todo, e não de forma isolada, sob o risco de
serem conduzidos a contradições insuperáveis.
Caberá, de todo modo, verificar as condições especiais de cada caso em concreto, a fim
de se verificar quais circunstâncias que compõem a trajetória de um indivíduo estão
efetivamente acobertadas pela inviolabilidade da vida privada e quais estão, lado outro, sujeitas
à exposição pública. Nos dizeres de Anderson Schreiber (SCHREIBER, 2015):

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Em alguns países, por exemplo, não se reconhece violação à privacidade ou à
honra na menção a dados que já constam de registros públicos (processos
judiciais, administrativos etc.), ou já foram divulgados pelo próprio
biografado em ocasiões públicas pretéritas, ou, ainda, foram legitimamente
obtidas em entrevistas com pessoas identificadas. De outro lado, a transcrição
em biografias não autorizadas de trechos de cartas particulares tem sido, em
muitos países, considerada violação à privacidade, por infração ao sigilo de
correspondência. O mesmo se tem entendido em relação ao uso de dados
constantes de prontuários médicos ou de procedimentos sigilosos, ou ainda de
informações relativas à intimidade sexual do biografado.

Bem delimitados os argumentos que sustentam a ampla permissão ou a completa


rejeição para a divulgação de biografias não consentidas, resta apurar de que modo o Supremo
Tribunal Federal decidiu a controvérsia.

5. A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.815

Em junho de 2012, a Associação Nacional dos Editores de Livro – ANEL – propôs uma
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), que tencionava obter a declaração da
inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 da Lei Federal n.
10.406/2002 (Código Civil brasileiro). A legitimidade ativa da ANEL foi justificada com o
disposto no art. 103, IX, da Constituição Federal/1988, sendo enquadrada na categoria de
entidade de classe de âmbito nacional, que tem interesse temático sobre a matéria, visto que as
restrições de publicação e comercialização das biografias não autorizadas prejudicam as
editoras literárias.
Em síntese, a Associação Nacional dos Editores de Livro argumentou, na petição inicial
da ADI 4.815, que as pessoas notórias gozam de esfera de vida privada mais restrita do que as
demais pessoas, que exigir a autorização antecedente do biografado ou de seus parentes
configuraria censura prévia privada, e que tal exigência não se coaduna com os direitos de
liberdade de expressão e informação assegurados pela Constituição da República.
A petição inicial foi instruída com um parecer doutrinário da lavra de Gustavo Tepedino,
que respondeu negativamente ao questionamento exposto no início do parecer, formulado nos
seguintes termos:
À luz do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, a publicação ou
veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais, de pessoas
públicas, ou pessoas envolvidas em acontecimentos de interesse público,
depende de autorização das pessoas biografadas o envolvidas de qualquer
forma na obra biográfica (ou de seus familiares, em caso de pessoas
falecidas)?

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O referido parecerista ainda afirma que caberá o direito ao ressarcimento de danos
causados ao biografado ou a seus descendentes (nos casos de biografados falecidos), mediante
a aplicação in concreto dos arts. 20 e 21 do Código Civil, apenas se houver abuso de direito no
exercício da liberdade de expressão ou o desvio da sua prática. Assim, danos eventualmente
causados por informações verídicas não seriam passíveis de responsabilização do biógrafo, que
estaria a agir, em casos tais, nos limites do exercício pleno da liberdade de expressão. Segundo
consta do parecer juntado aos autos,
A exigência de autorização do biografado ou de seus familiares (na hipótese
de pessoa falecida) prévia à publicação de biografia representa intolerável
violação às liberdades de informação, expressão e pensamento,
constitucionalmente tuteladas, a configurar, a partir de ponderação in
abstracto, censura privada, acarretando, inevitavelmente, a extinção do
gênero biografia. Por isso mesmo, tal interpretação dos arts. 20 e 21 do Código
Civil afigura-se inconstitucional, não podendo ser admitida.
As biografias revelam narrativas históricas descritas a partir de referências
subjetivas, isto é, do ponto de vista dos protagonistas dos fatos que integram
a história. Tais fatos, só por serem considerados históricos já revelam seu
interesse público, em favor da liberdade de informar e de ser informado,
essencial não somente como garantia individual, mas como preservação da
memória e identidade cultural da sociedade.

Importante destacar também o parecer do Ministério Público Federal, datado de 6 de


junho de 2013, no sentido de que o pedido principal fosse julgado procedente, ou seja, de que
deveria ser afastada qualquer interpretação dos arts. 20 e 21 do Código Civil que resulte na
exigência da autorização dos biografados para a publicação e veiculação das obras biográficas,
literárias ou audiovisuais.
O Artigo 19, associação civil sem fins lucrativos, em setembro de 2013, interpôs uma
petição com a pretensão de ser amicus curiae na ADI em apreço, pedido que foi admitido pela
relatora da ação, Ministra Carmem Lúcia. Esta associação foi fundada em 1986, em Londres, e
a partir do ano 2000 passou a participar de eventos e estabelecer representantes na América do
Sul. A sua nomenclatura é uma referencia ao art. 19 da Declaração Universal de Direitos
Humanos, pois o objetivo da associação é o de efetivar a proteção do direito à liberdade de
expressão e informação. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro também ingressou como
amicus curiae na ADI, juntando memorial pela procedência do pedido, assim como procedeu a
ABL, Associação Brasileira de Livros.
Na condição também de amicus curiae, a Associação Eduardo Banks, por outro lado,
que questionou a legitimidade ativa da ANEL para propositura da ação, além de defender a
autorização para publicação de biografias, evocando a plena constitucionalidade dos arts. 20 e
21 do Código Civil.

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A Advocacia Geral da União se pronunciou no sentido de pedir a improcedência do
pedido central formulado na ADI, ao destacar que o preceito fundamental da dignidade da
pessoa humana necessita da inviolabilidade da privacidade e da intimidade para ser plenamente
garantido, sendo árdua a tarefa de editar uma obra biográfica que não ingresse nos meandros da
vida privada do biografado, a quem cumpriria, com exclusividade, explorar seus próprios
direitos da personalidade.
Por fim, sopesados os argumentos lançados de lado a lado, proferiu o Supremo Tribunal
Federal sua decisão, assim ementada:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTS. 20 E 21 DA
LEI N. 10.406/2002 (CÓDIGO CIVIL). PRELIMINAR DE
ILEGITIMIDADE ATIVA REJEITADA. REQUISITOS LEGAIS
OBSERVADOS. MÉRITO: APARENTE CONFLITO ENTRE PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS: LIBERDADE DE EXPRESSÃO, DE
INFORMAÇÃO, ARTÍSTICA E CULTURAL, INDEPENDENTE DE
CENSURA OU AUTORIZAÇÃO PRÉVIA (ART. 5º INCS. IV, IX, XIV;
220, §§ 1º E 2º) E INVIOLABILIDADE DA INTIMIDADE, VIDA
PRIVADA, HONRA E IMAGEM DAS PESSOAS (ART. 5º, INC. X).
ADOÇÃO DE CRITÉRIO DA PONDERAÇÃO PARA INTERPRETAÇÃO
DE PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL. PROIBIÇÃO DE CENSURA
(ESTATAL OU PARTICULAR). GARANTIA CONSTITUCIONAL DE
INDENIZAÇÃO E DE DIREITO DE RESPOSTA. AÇÃO DIRETA
JULGADA PROCEDENTE PARA DAR INTERPRETAÇÃO CONFORME
À CONSTITUIÇÃO AOS ARTS. 20 E 21 DO CÓDIGO CIVIL, SEM
REDUÇÃO DE TEXTO.
1. A Associação Nacional dos Editores de Livros - Anel congrega a classe dos
editores, considerados, para fins estatutários, a pessoa natural ou jurídica à
qual se atribui o direito de reprodução de obra literária, artística ou científica,
podendo publicá-la e divulgá-la. A correlação entre o conteúdo da norma
impugnada e os objetivos da Autora preenche o requisito de pertinência
temática e a presença de seus associados em nove Estados da Federação
comprova sua representação nacional, nos termos da jurisprudência deste
Supremo Tribunal. Preliminar de ilegitimidade ativa rejeitada.
2. O objeto da presente ação restringe-se à interpretação dos arts. 20 e 21 do
Código Civil relativas à divulgação de escritos, à transmissão da palavra, à
produção, publicação, exposição ou utilização da imagem de pessoa
biografada.
3. A Constituição do Brasil proíbe qualquer censura. O exercício do direito à
liberdade de expressão não pode ser cerceada pelo Estado ou por particular.
4. O direito de informação, constitucionalmente garantido, contém a liberdade
de informar, de se informar e de ser informado. O primeiro refere-se à
formação da opinião pública, considerado cada qual dos cidadãos que pode
receber livremente dados sobre assuntos de interesse da coletividade e sobre
as pessoas cujas ações, público-estatais ou público-sociais, interferem em sua
esfera do acervo do direito de saber, de aprender sobre temas relacionados a
suas legítimas cogitações.
5. Biografia é história. A vida não se desenvolve apenas a partir da soleira da
porta de casa.
6. Autorização prévia para biografia constitui censura prévia particular. O
recolhimento de obras é censura judicial, a substituir a administrativa. O risco
é próprio do viver. Erros corrigem-se segundo o direito, não se coartando

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liberdades conquistadas. A reparação de danos e o direito de resposta devem
ser exercidos nos termos da lei.
7. A liberdade é constitucionalmente garantida, não se podendo anular por
outra norma constitucional (inc. IV do art. 60), menos ainda por norma de
hierarquia inferior (lei civil), ainda que sob o argumento de se estar a
resguardar e proteger outro direito constitucionalmente assegurado, qual seja,
o da inviolabilidade do direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem.
8. Para a coexistência das normas constitucionais dos incs. IV, IX e X do art.
5º, há de se acolher o balanceamento de direitos, conjugando-se o direito às
liberdades com a inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da
imagem da pessoa biografada e daqueles que pretendem elaborar as
biografias.
9. Ação direta julgada procedente para dar interpretação conforme à
Constituição aos arts. 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para, em
consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua
expressão, de criação artística, produção científica, declarar inexigível
autorização de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias
ou audiovisuais, sendo também desnecessária autorização de pessoas
retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas
falecidas ou ausentes).

Em seu voto, a relatora, Ministra Carmem Lúcia, pontuou, entre diversos outros
argumentos, os que se destacam a seguir:
O direito à liberdade de expressão – transcendendo o cogitar solitário e
mudo e permitindo a exposição do pensamento - permeia a história da
humanidade, pela circunstância mesma de ser a comunicação própria das
relações entre as pessoas e por ela não apenas se diz do bem, mas também se
critica, se denuncia, se conta e reconta o que há de vida e da vida, da própria
pessoa e do outro, fazendo-se a arte exprimindo-se o humano do bem e do
mau, da sombra e do claro. E forma-se pela expressão do que é, do que
se pensa ser, do que se quer seja, do que foi e do que se pensa possa ser a
história humana transmitida. Afinal, no princípio é o Verbo. Encarna-se a
vida no Verbo. E o verbo faz-se carne e torna-se vida.
O ser faz-se verbo.
Cada tempo tem sua história. Cada história, sua narrativa. Cada narrativa
constrói e reconstrói-se pelo relato do que foi não apenas uma pessoa, mas
uma comunidade. E assim se tem a expressão histórica do que pôde e o que
não pôde ser, do que foi para se imaginar o que poderia ter sido e, em especial,
o que poderá ser.
História faz-se pelo que se conta. Silêncio também é história. Mas apenas
quando relatada e de alguma forma dada a conhecimento de outrem. Pela
sua força de construção e desconstrução de relações sociais, políticas e até
mesmo econômicas, a expressão como direito é fruto de lutas permanentes
desde os primórdios da história.
(...)
O sistema constitucional brasileiro traz, pois, em norma taxativa, a proibição
de qualquer censura, valendo a vedação ao Estado e também a particulares.
Tem-se, assim, assentada a horizontalidade da principiologia
constitucional, aplicável a entes estatais ou a particulares.
Quer-se dizer: os princípios constitucionais relativos a direitos
fundamentais não obrigam apenas os entes e órgãos estatais. São de
acatamento impositivo e insuperável de todos os cidadãos em relação aos
demais. O exercício do direito à liberdade de expressão não pode ser cerceada

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pelo Estado nem pelo vizinho, salvo nos limites impostos pela legislação
legítima para garantir a igual liberdade do outro, não a ablação deste direito
para superposição do direito de um sobre o outro.
(...)
A coexistência das normas constitucionais dos incs.VI e IX do art. 5º requer,
para a superação do aparente conflito do que nelas se contém, se ponderar se
pode a pessoa assegurar-se inviolável em sua intimidade, privacidade, honra
e em sua imagem se não é livre para pensar e configurar a sua intimidade,
estabelecer o seu espaço de privacidade, formar o conceito moral e social
que lhe confere a honradez e cunhar imagem que lhe garanta o atributo
reconhecido que busca.
Para perfeito deslinde do caso em exame, há de se acolher o
balanceamento de direitos, conjugando-se o direito às liberdades com a
inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa
biografada e daqueles que pretendem elaborar as biografias.
(...)
Pelo exposto, julgo procedente a presente ação direta de
inconstitucionalidade para dar interpretação conforme à Constituição aos arts.
20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para,
a) em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de
pensamento e de sua expressão, de criação artística, produção científica,
declarar inexigível o consentimento de pessoa biografada relativamente a
obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo por igual desnecessária
autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus
familiares, em caso de pessoas falecidas);
b) reafirmar o direito à inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da
honra e da imagem da pessoa, nos termos do inc. X do art. 5º da Constituição
da República, cuja transgressão haverá de se reparar mediante indenização.

Decidida a questão pelo Supremo Tribunal Federal, estabeleceu-se o marco jurídico


fundamental para a análise do tema no país – o que, todavia, não sepulta a controvérsia. É fato,
contudo, que doravante as considerações a tecer sobre a matéria serão pautadas pelas balizas
fixadas na decisão em apreço, que, em nome da conservação e pleno exercício da liberdade
artística, de expressão e de informação, fez com que a densidade desta liberdade prevalecesse
sobre os interesses pessoais dos biografados ou de seus familiares.
Em acréscimo, tramita No Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 393/2011, que visa a
substituir o parágrafo único, do art. 20 do Código Civil, por dois parágrafos, com o objetivo de
garantir a liberdade de expressão e informação e o acesso à cultura. A proposta original de
alteração tem a seguinte redação:
§ 1º Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer
essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
§ 2° A mera ausência de autorização não impede a divulgação de imagens,
escritos e informações com finalidade biográfica de pessoa cuja trajetória
pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em
acontecimentos de interesse da coletividade.

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O referido Projeto, desde maio de 2014, foi aprovado no Plenário da Câmara de
Deputados, com uma emenda, e aguarda apreciação do Senado Federal. Se aprovado, consistirá
em mais um firme passo rumo à ampla permissão para a publicação de biografias não
autorizadas no país.

6. CONCLUSÃO

A temática abordada nas linhas até aqui tracejadas é complexa. Tanto os defensores das
biografias não autorizadas, em favor do direito à liberdade de expressão e informação, como os
patronos da necessidade de autorização prévia do biografado ou de seus familiares, que
tencionam proteger os direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, apresentam
argumentos juridicamente válidos para embasar seus posicionamentos.
A solução mais satisfatória passa pela linha da ponderação de valores, cujos padrões
podem ser estabelecidos pelo Poder Legislativo e pelo Judiciário. No primeiro caso, aguarda-
se posição definitiva sobre os rumos do Projeto de Lei n. 393/2011; no segundo, a decisão
proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da ADI n. 4.815 dita a tônica a prevalecer:
o prévio consentimento para a divulgação de biografias não autorizadas é dispensável, em
evidente reconhecimento do império do direito fundamental à livre expressão artística e do
pensamento.
De todo modo, releva ir além de se discutir a necessidade ou não de autorização prévia
para a publicação de tais biografias. É preciso investigar as consequências jurídicas de possível
extrapolação ou abuso do exercício do direito à liberdade de expressão, de modo a proteger o
ser humano, centro do ordenamento jurídico, de exposições vexatórias e desnecessárias de seus
mais nobres direitos.

REFERÊNCIAS

BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária,


1989.
CARNEIRO, Luiz Felipe. O terreno das biografias não autorizadas no Brasil. In:
SCHREIBER, Anderson (coord.). Direito e mídia. São Paulo: Atlas, 2013, p.118.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil, v.
3: responsabilidade civil. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

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ORWELL, George. Revolução dos bichos. In: A liberdade de Imprensa, prefácio proposto pelo
autor à primeira edição inglesa, de 1945. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SCHREIBER, Anderson. A questão da biografia: de quem é a razão? Disponível em:
http://carloslula.com/a-questao-da-biografia-de-quem-e-a-razao/. Acesso em 02/05/2015.
SCHREIBER, Anderson. Estabelecimento de parâmetros é solução para as biografias.
Disponível em:
http://professorflaviotartuce.blogspot.com.br/search?q=biografias+n%C3%A3o+autorizadas.
Acesso em 02/05/2015.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1989.
SILVA JUNIOR, Alcides Leopoldo e. A pessoa pública e o seu direito de imagem: políticos,
artistas, modelos, personagens históricos, pessoas notórias, criminosos célebres,
esportistas, socialites. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002.
SILVEIRA, Vinicius Loureiro da Mota. Ponderação e proporcionalidade no direito
brasileiro. Disponível em:
http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/pondera%C3%A7%C3%A3o-e-proporcionalidade-
no-direito-brasileiro. Acesso em 02/05/2015.
SOARES, Guilherme. Restrições aos direitos fundamentais: a ponderação é indispensável?
In: Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Joaquim Moreira da Silva Cunha. Coimbra: Ed.
Coimbra, 2005.

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ANÁLISE JURÍDICA DA PROTEÇÃO DA PESSOA “COM”
DEFICIÊNCIA À LUZ DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL
HUMANIZADO

Wendel Alves Sales Macêdo1

RESUMO: o trabalho analisa juridicamente a atual proteção da pessoa com deficiência


de acordo com o Direito Civil Constitucional Humanizado. O objetivo do trabalho
consiste em analisar a Teoria do Direito Civil Constitucional Humanizado e a legislação
internacional e nacional que protege a pessoa com deficiência no Estado Democrático de
Direito. A metodologia do trabalho está com base no método dedutivo e no método
histórico-comparativo, em que o trabalho apresenta um desenvolvimento histórico
comparativo quanto à proteção da pessoa com deficiência. As principais legislações
estudadas são: o Código Civil de 1916, a Constituição Federal de 1988, o Código Civil
de 2002, a Convenção da Pessoa com Deficiência e o Estatuto da Pessoa com Deficiência.
A problemática do trabalho consiste na seguinte pergunta: como é tratada a proteção da
pessoa com deficiência à luz do Direito Civil Constitucional Humanizado no Estado
Democrático de Direito? A justificativa do trabalho consiste na importância e relevância
de um estudo sobre a proteção da pessoa com deficiência em razão das modificações que
vem sofrendo nos últimos anos, esse estudo pretende uma inclusão e acessibilidade de
forma digna e justa da pessoa com deficiência na sociedade atual.

Palavras-chaves: Direito Civil Constitucional Humanizado; Inclusão, Acessibilidade e


Justiça social; Proteção Jurídica da Pessoa com Deficiência; Estado Democrático de
Direito.

ABSTRACT: work legally analyzes the current protection of people with disabilities in
accordance with the Constitutional Law Civil Humanized. The objective is to analyze the

1
Advogado, integrante do Projeto de Pesquisa AFROEDUCAÇÃO da UFPB, integrante do Projeto de
Pesquisa IDCC da UFPB, especialização em Direto Civil, Processo Civil, Direito Público na FAÍSA,
especialização em andamento em Direito Trabalho e Processo Trabalho na Damásio Educacional João
Pessoa-PB, mestrando em Direitos Humanos no PPGDH da UFPB.

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theory of Constitutional Civil Law Humanized and international and national legislation
to protect the disabled person in the democratic rule of law. The methodology of work is
based on the deductive method and the historical-comparative method, in which the work
presents a comparative historical development for the protection of people with
disabilities. The main laws are studied: the Civil Code of 1916, the Federal Constitution
of 1988, the Civil Code of 2002, the Convention People with Disabilities and the Statute
Person with Disabilities. The work of the problem is the following question: how the
protection of people with disabilities in the light of the Constitutional Civil Law
Humanized the democratic rule of law is treated? The justification of the work is the
importance and relevance of a study on the person's protection rightly deficiency of the
changes that has been suffering in recent years, this study intends an inclusion and
accessibility of dignified and fair for people with disability in society today.

Keywords: Constitutional Civil Law Humanized; Inclusion, accessibility and social


justice; Legal protection of person with Disabilities; Democratic state.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho trata de uma análise jurídica da atual proteção da pessoa com
deficiência em conformidade o Direito Civil Constitucional Humanizado. Nessa
concepção, a pessoa com deficiência, no Estado Democrático de Direito, goza de proteção
internacional e nacional.
O objetivo do presente trabalho consiste em analisar juridicamente a Teoria do
Direito Civil Constitucional Humanizado e os principais institutos jurídicos de proteção
da pessoa com deficiência, tais como: o Código Civil de 1916, a Constituição Federal, o
Código Civil de 2002, a Convenção da Pessoa com Deficiência e o Estatuto da Pessoa
com Deficiência.
A metodologia do trabalho está embasada no método dedutivo e histórico-
comparativo, tendo em vista que trata da Teoria Geral do Direito Civil Constitucional
Humanizado e estabelece uma análise histórico-comparativa do progresso da proteção da
pessoa com deficiência do século XX até a atualidade.
Em relação à problemática do trabalho, diante da exclusão e discriminação que a
pessoa com deficiência sofreu (e vem sofrendo) ao logo da história do Brasil, faz-se
necessário estudar a legislação protetiva dessa pessoa, diante disso, indagar-se: como é

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tratada a proteção da pessoa com deficiência à luz do Direito Civil Constitucional
Humanizado no Estado Democrático de Direito?
A justificativa do trabalho é que a proteção da pessoa com deficiência vem
sofrendo modificações ao longo do tempo para que haja uma humanização quanto à
proteção dessa pessoa no que tange a inclusão e acessibilidade de forma justa e digna dela
no Estado Democrático de Direito. Por essa razão, é interessante e relevante estudar a
atual proteção da pessoa com deficiência de acordo com a legislação nacional e
internacional.

2 DIREITO CIVIL CLÁSSICO E DIREITO CIVIL MODERNO

O Direito Civil Clássico pode ser conhecido por ser um “Direito Civil
Patrimonialista”, pois se preocupava mais em proteger o patrimônio, que a pessoa
humana, por exemplo, o escravo não era considerado como pessoa humana, mas sim
como uma “coisa” que poderia ser vendido, trocado, lesionado ou até mesmo “destruído”
(morto).
Com o decorrer da civilização de forma humanizada, diante de lutas pelo
reconhecimento dos Direitos Humanos, no decorrer do progresso dos Direitos
Humanos/Fundamentais à luz da dignidade da pessoa humana, o Direito Civil Moderno
é intitulado por ser “Direito Civil Constitucional Humanizado”, tendo em vista que se
preocupa em promover e proteger os Direitos Humanos, por exemplo, a pessoa com
deficiência não é mais absolutamente capaz, mas sim é uma pessoa planamente capaz.
Para Macêdo (2015, p. 135):
O Direito Civil Constitucional Humanizado é o Direito doutrinário
(entendimento de doutrinadores modernos) em que há uma relação
sistemática do Direito Humano que tem por objeto o estudo da
Declaração Universal dos Direitos Humanos (por exemplo), com o
Direito Constitucional que tem por objeto principal de estudo a
Constituição Federal 1988 com o Direito Civil que tem como objeto
principal de estudo o Código Civil de 2002. Por exemplo: o código civil
de 2002 deve ser interpretado à luz da Constituição Federal de 1988 e à
luz da Declaração Universal dos Direito Humanos.

Nessa concepção, em aspectos gerais, o Direito Civil Constitucional Humanizado


é um estudo em que há uma análise do Código Civil de 2002 em conformidade com a
Constituição Federal de 1988 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,
por exemplo.

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Em se tratando do Direito Civil Constitucional, para Tartuce (2016, p. 58 e 59)
O Direito Civil Constitucional, como uma mudança de postura,
representa uma atitude bem pensada, que tem contribuído para a
evolução do pensamento privado, para a evolução dos civilistas
contemporâneos e para um sadio diálogo entre os juristas das mais
diversas áreas. Essa inovação reside no fato de que há uma inversão da
forma de interação dos dois ramos do direito - o público e o privado -,
interpretando o Código Civil segundo a Constituição Federal em
substituição do que se costumava fazer, isto é, exatamente o inverso.

O Direito Civil Constitucional pode ser entendido como um estudo sistemático do


Código Civil de 2002 à luz da Constituição Federal de 1988, em que os princípios e as
regras fundamentais interferem na interpretação e na aplicação do mencionado Código
brasileiro.
Como será demonstrado pelo presente trabalho houve uma humanização do
ordenamento jurídico no que tange a proteção da pessoa com deficiência, pois o Código
Civil de 1916 tratava essas pessoas de forma excludente, já o Código Civil de 2002 está
caminhado para que haja uma inclusão da pessoa com deficiência diante de uma mudança
de paradigma social.

3 CÓDIGO CIVIL DE 1916

O Direito Civil Clássico pode ser compreendido com a análise do Código Civil
de 1916, Lei 3071, de 1 de janeiro de 1916, quando trata da Teorias da Incapacidades nos
artigos 5º, 12, 142, 446, 457, 1627 e 165. Os respectivos artigos descrevem o seguinte:

Art. 5. São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da


vida civil:
I. Os menores de dezesseis anos.
II. Os loucos de todo o gênero.
III. Os surdos-mudos, que não puderem exprimir a sua vontade.
IV. Os ausentes, declarados tais por ato do juiz.

Art. 12. Serão inscritos em registro publico:


I. Os nascimentos, casamentos e óbitos.
I - os nascimentos, casamentos, separações judiciais, divórcios e
óbitos. (Redação dada pela Lei nº 6.515, de 1977).
II. A emancipação por outorga do pai ou mãe, ou por sentença do juiz
(art. 9, Parágrafo único, n. 1).
III. A interdição dos loucos e dos pródigos. (Vide Decreto do
Poder Legislativo nº 3.725, de 1919).
IV. A sentença declaratória da ausência.

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Art. 142. Não podem ser admitidos como testemunhas:
I. Os loucos de todo o gênero.
II. Os cegos e surdos, quando a ciência do fato, que se quer provar,
dependa dos sentidos, que lhes faltam.
III. Os menores de dezesseis anos.
IV. O interessado no objeto do litígio, bem como o ascedente e o
descendente, ou o colateral, até o terceiro grau de alguma das partes,
por consangüinidade, ou afinidade.
V. Os cônjuges.

Art. 446. Estão sujeitos à curatela:


I. Os loucos de todo o gênero ( arts. 448, n. I, 450 e 457).
II. Os surdos-mudos, sem educação que os habilite a enunciar
precisamente a sua vontade (arts. 451 e 456).
III. Os pródigos (arts. 459 e 461).

O Art. 457 descreve que: “os loucos, sempre que parecer inconveniente conserva-
os em casa, ou o exigir o seu tratamento, serão também recolhidos em estabelecimento
adequado”.
Art. 1.627. São incapazes de testar:
I - Os menores de dezeseis anos.
II - Os loucos de todo o gênero.
III - Os que, ao testar, não estejam em seu perfeito juízo.
IV - Os surdos-mudos, que não puderem manifestar a sua vontade.

Art. 1.650. Não podem ser testemunhas em testamentos:


I. Os menores de dezeseis anos.
II. Os loucos de todo o genero.
III. Os surdos-mudos e os cegos.
IV. O herdeiro instituido, seus ascendentes e descendentes, irmãos e
conjuge.
V. Os legatarios.

Ao interpretar esses artigos é possível identificar que os absolutamente incapazes


na vigência do Código Civil de 1916 eram: os menores de 16 anos; os loucos de todo o
gênero; os surdos-mudos, que não puderem exprimir a sua vontade; os ausentes,
declarados tais por ato do juiz.
Nessa perspectiva, no caso de “loucos de todo o gênero” fica evidente que quando
o juiz determinasse uma sentença de interdição de um “louco”, este era excluído da vida
em sociedade, pois perdia a capacidade civil, se tornando, absolutamente incapaz. Dessa
forma, o “louco” atestado por um médico e reconhecido judicialmente não poderia
praticar atos da vida civil sem a representação do seu curador.
O critério adotado para determinar a capacidade civil do “louco de todo gênero”
no Código Civil de 1916 era o médico, em que o médico atentava a “loucura” e o juiz

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reconhecia judicialmente. Após isso, o “louco não importava o grau” não poderia praticar
atos patrimoniais nem existência sem a concordância do curador.
Complementa-se que quanto ao tratamento do “louco” no Código Civil de 1916:
a interdição do “louco” era inscrita em registro público, ele não poderia ser testemunha,
estavam sujeitos a curatela, recolhidos em estabelecimento adequado e era incapaz de
testar. Diante disso, pode-se constar que é uma “loucura” entender o Código Civil de 1916
no atual contexto jurídico vivenciado.

4 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A Constituição da República Federativa do Brasil denominada por Constituição


Cidadã valoriza a pessoa humana à luz da Dignidade da Pessoa Humana. Nessa
concepção, a Hermenêutica Constitucional contribui com a promoção, com a proteção,
com o respeito, com o diálogo e com a efetividade dos Direitos Humanos/Fundamentais
ao descrever que esses direitos devem ser efetivados da melhor maneira possível, de
acordo com o contexto social vivenciado, para que aconteça uma inclusão social.
O artigo 1º, III, da respectiva Constituição:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-
se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio
de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

A Constituição Federal de 1988 trata no artigo 1º dos Fundamentos da República


Federativa do Brasil, quais sejam: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana,
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, pluralismo político e ainda diz que o povo
é o titular do poder. Nesse sentido, ao interpretar os incisos dois e três do respectivo artigo,
é possível constatar que as pessoas com deficiência devem exercer a cidadania da melhor
maneira possível, pois são seres dotados de dignidade.
O artigo 2º da Constituição Federal descreve que: “são Poderes da União,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. O
presente artigo trata da divisão de funções em que, em regra: cabe ao poder legislativo

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criar leis que protejam e promoção o respeito às pessoas com deficiência; incumbe ao
poder executivo adotar políticas públicas que discipline a acessibilidade das pessoas com
deficiência; e compete ao poder judiciário efetivar os direitos humanos da pessoa com
deficiência por meio de sentença judicial.
O artigo 3º da CF/88 alude que:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O artigo 3º da Constituição Federal de 1988 trata dos Objetivos Fundamentais da


República Federativa do Brasil, sendo: a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária, que respeite e inclua as pessoas com deficiência; extirpar a pobreza e a
marginalização, bem como diminuir as desigualdade sociais e regionais das pessoas com
deficiência; promover o bem de todos, inclusive das pessoas com deficiência, não
podendo haver qualquer tipo de preconceito ou discriminação.
O artigo 4º da CF/88 menciona que:
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações
internacionais pelos seguintes princípios:
I - independência nacional;
II - prevalência dos direitos humanos;
III - autodeterminação dos povos;
IV - não-intervenção;
V - igualdade entre os Estados;
VI - defesa da paz;
VII - solução pacífica dos conflitos;
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;
IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
X - concessão de asilo político.
Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração
econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina,
visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

O artigo 4º da Constituição Cidadã trata dos Princípios das relações


internacionais, prevendo os seguintes: independência nacional; prevalência dos direitos
humanos, inclusive da pessoa com deficiência; autodeterminação dos povos; não
intervenção; igualdade entre os Estados; defesa a paz; resolução pacífica dos conflitos;

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repúdio ao terrorismo e ao racismo; cooperação entre os povos para o desenvolvimento
da humanidade; concessão de asilo político; e integração dos povos da América Latina.
O artigo 5º trata de igualdade material desenvolvimento que “todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade (...)”. Nesse sentido, as pessoas com deficiência devem ser
tratadas como iguais na medida da sua igualdade (igualdade material).
O artigo 7º, inciso XXXI, da CF/88 trata sobre a vedação a qualquer discriminação
em relação a salário e critério de admissão de trabalhador com deficiência.
O artigo 23, inciso II, da CF/88 dispõe que é de competência comum dos Entes
Federativos cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas com
deficiência.
O artigo 24, inciso XIV, da CF/88 alude que competência à União, aos Estados e
ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre a proteção e integração social das
pessoas com deficiência.
O artigo 37, inciso VIII, da CF/88 descreve que a lei brasileira tratará de um
percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas com deficiência, bem como
determinará o critério de admissibilidade.
O artigo 40, parágrafo 1º, da CF/88 determina que Lei Complementar tratará sobre
a aposentadoria do servidor públicos das pessoas com deficiência. A Lei que trata da
aposentadoria da pessoa com deficiência é a Lei Complementar 142, de 8 de maio de
2013.
O artigo 203, Incisos IV e V, da CF/88 descrevem sobre a assistência social, que
deve ser prestada aos necessitados, tendo por objetivos: habilitação e reabilitação das
pessoas com deficiência e garantia de um salário mínimo de beneficio mensal à pessoa
com deficiência.
O artigo 208, inciso III, da CF/88 trata sobre o dever do Estado com a educação
no atendimento educacional especializado as pessoas com deficiência. Nesse sentido, o
Estado deve promover a acessibilidade e nenhuma escola pode se recusar a aceitar aludo
com deficiência.
O artigo 227, parágrafo 2º, da CF/88 dispõe que a lei deve garanti o acesso
adequado as pessoas com deficiência. Nesse mesmo sentido está o artigo 244 da
Constituição Federal de 1988.

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5 CÓDIGO CIVIL DE 2002

O Código Civil de 2002, Lei 10406, de 10 de janeiro de 2002, alterado pela Lei
13.146 de 2015, trata da Teoria das Capacidades nos seguintes artigos:
Art. 1o Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.

Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com


vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos


da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos.

Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os


exercer: (Redação dada pela Lei nº 13.146, de
2015) (Vigência)
I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; (Redação dada
pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem
exprimir sua vontade; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de
2015) (Vigência)
IV - os pródigos.
Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por
legislação especial.

Em regra, toda a pessoa detém a capacidade de direitos e deveres na ordem civil.


A capacidade plena se dá ao completar 18 anos e se extingue com a morte. A capacidade
de direito ou de gozo se dá com o nascimento com vida e se extingue com a morte. A
capacidade de fato ou de exercício se dá com a possibilidade de exercer determinados
atos da vida civil.
À Luz do Direito Civil Constitucional Humanizado a personalidade civil inicia-
se com a concepção. Mas a capacidade civil de direito inicia-se com o nascimento com
vida. Por essa razão, deve haver uma interpretação do artigo 2º do Código Civil à luz da
Constitucional Federal de 1988.
Para Tartuce (2016, p. 83 e 84)
Os incapazes sempre estiveram tratados nos arts. 3.0 e 4.0 do CC/2002,
conforme tabela a seguir, que mostra a redação original da codificação
privada, até as mudanças inseridas pela Lei 13.146/2015:

Absolutamente incapazes (art. Relativamente incapazes (art.


3.0 do CC) 4.0 do CC
I - os menores de dezesseis I - os maiores de dezesseis e
anos; menores de dezoito anos;
II - os que, por enfermidade ou II - os ébrios habituais, os
deficiência mental, não tiverem viciados em tóxicos, e os que,

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o necessário discernimento para por deficiência mental, tenham o
a prática desses atos; discernimento reduzido;
III - os que, mesmo por causa III - os excepcionais, sem
transitória, não puderem desenvolvimento mental
exprimir sua vontade. completo;

Essa norma foi sancionada no dia 6 de julho de 2015, instituindo o


Estatuto da Pessoa com Deficiência. A lei foi publicada no dia 7 de
julho, e tem vigência 180 dias após sua publicação, em janeiro de 2016.
Em verdade, o Estatuto da Pessoa com Deficiência acaba por consolidar
ideias constantes na Convenção de Nova York, tratado internacional de
direitos humanos do qual o País é signatário e que entrou no sistema
jurídico com efeitos de Emenda à Constituição por força do art. 5.º, §
3.º, da CF/1988 e do Decreto 6.949/2009. O art. 3.º da Convenção
consagra como princípios a igualdade plena das pessoas com
deficiência e a sua inclusão com autonomia, recomendando o
dispositivo seguinte a revogação de todos os diplomas legais que tratam
as pessoas com deficiência de forma discriminatória.
O seu art. 114 do Estatuto da Pessoa com Deficiência altera
substancialmente os dispositivos, revogando todos os incisos do art. 3.º
e alterando os incisos II e III do art. 4.0 da codificação material.
Vejamos as redações atuais dos comandos:

Absolutamente incapazes (art. Relativamente incapazes (art. 4.0


3.0 do CC) do CC
Art. 3o São absolutamente Art. 4o São incapazes,
incapazes de exercer relativamente a certos atos ou à
pessoalmente os atos da vida maneira de os exercer:
civil os menores de 16 I - os maiores de dezesseis e
(dezesseis) anos. menores de dezoito anos;
I-(Revogado); II - os ébrios habituais e os
II - (Revogado); viciados em tóxico;
III - (Revogado). III - aqueles que, por causa
transitória ou permanente, não
puderem exprimir sua
vontade;

Como se percebe, em sua redação originária, o inciso I do art. 3.0


mencionava os menores de 16 anos, tidos como menores impúberes. O
seu inciso II expressava os que, por enfermidade ou deficiência mental,
não tivessem o necessário discernimento para a prática desses atos. Por
fim, no inciso III havia a previsão dos que, mesmo por causa transitória,
não pudessem exprimir sua vontade.
Com as mudanças, somente são absolutamente incapazes os menores
de 16 anos, não havendo mais maiores absolutamente incapazes.
Repise-se que o objetivo foi a plena inclusão da pessoa com algum tipo
de deficiência, tutelando a sua dignidade humana. Deixa-se de lado,
assim, a proteção de tais pessoas como vulneráveis, o que era retirado
do sistema anterior. Em outras palavras, a dignidade-liberdade substitui
a dignidade-vulnerabilidade.
Nesse contexto, todas as pessoas com deficiência que eram tratadas no
art. 3.º anterior passam a ser, em regra, plenamente capazes para o
Direito Civil. Eventualmente, podem ser tidas como relativamente

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incapazes, em algum enquadramento do art. 4.º do Código Civil,
também ora alterado.
Como se pode perceber, no último preceito não há mais a menção às
pessoas com deficiência no inciso II. Quanto ao termo excepcionais sem
desenvolvimento completo (art. 4.0, III), ele foi substituído pela antiga
expressão que se encontrava no anterior art. 3.0, III, ora revogado
("aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem
exprimir sua vontade"). Em suma, podemos dizer que houve uma
verdadeira revolução na teoria das incapacidades.

O artigo 3º do Código Civil de 2002 trata que os menores de 16 anos são


absolutamente incapazes. Porém, esse artigo deve ser interpretado de outra forma, pois
os menores de 16 anos estão com a capacidade em progressão/desenvolvimento.
O artigo 4º do Código Civil de 2002 dispõe que são relativamente incapazes: os
maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; os ébrios habituais e os viciados em
tóxico; aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua
vontade; os pródigos. Nesse sentido, esses devem ser assistidos para realizar
“determinado” ato civil.
Observa-se que o artigo 5º do Código Civil de 2002 não foi alterado pela Lei 13.
146 de 2015, continuando tratando as conhecidas hipóteses de emancipação.

6 CONVENÇÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

A Convenção da Pessoa com Deficiência, Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009,


é um Tratado Internacional com status de Emenda Constitucional, conforme dispõe o
artigo 5º, parágrafo 3º, da Constituição Federal de 1988.
Quanto ao objetivo da Convenção, o artigo 1º descreve que:
Artigo 1
Propósito
O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o
exercício pleno e eqüitativo de todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o
respeito pela sua dignidade inerente.

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo


prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em
interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena
e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais
pessoas.

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O artigo 1º da Convenção trata do objetivo/propósito, qual seja, o de promover,
proteger e assegurar o exercício pleno dos Direitos Humanos da pessoa com deficiência,
bem como promover o respeito a sua dignidade.
Com relação às definições da Convenção, o artigo 2º apresenta que:
Artigo 2
Definições
Para os propósitos da presente Convenção:
“Comunicação” abrange as línguas, a visualização de textos, o braille,
a comunicação tátil, os caracteres ampliados, os dispositivos de
multimídia acessível, assim como a linguagem simples, escrita e oral,
os sistemas auditivos e os meios de voz digitalizada e os modos, meios
e formatos aumentativos e alternativos de comunicação, inclusive a
tecnologia da informação e comunicação acessíveis;
“Língua” abrange as línguas faladas e de sinais e outras formas de
comunicação não-falada;
“Discriminação por motivo de deficiência” significa qualquer
diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o
propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o
desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais
pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos
âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro.
Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de
adaptação razoável;
“Adaptação razoável” significa as modificações e os ajustes necessários
e adequados que não acarretem ônus desproporcional ou indevido,
quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que as pessoas com
deficiência possam gozar ou exercer, em igualdade de oportunidades
com as demais pessoas, todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais;
“Desenho universal” significa a concepção de produtos, ambientes,
programas e serviços a serem usados, na maior medida possível, por
todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou projeto específico.
O “desenho universal” não excluirá as ajudas técnicas para grupos
específicos de pessoas com deficiência, quando necessárias.

O artigo 2º trata dos conceitos legais de “comunicação”, “língua”, “discriminação


por motivo de deficiência”, “adaptação razoável” e “desenho universal”. Por essa razão é
interessante ler e interpretar esses conceitos de forma digna e humana.
Os principais princípios da Convenção são:
Artigo 3
Princípios gerais
Os princípios da presente Convenção são:
a) O respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive
a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas;
b) A não-discriminação;
c) A plena e efetiva participação e inclusão na sociedade;
d) O respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com
deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade;
e) A igualdade de oportunidades;

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f) A acessibilidade;
g) A igualdade entre o homem e a mulher;
h) O respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com
deficiência e pelo direito das crianças com deficiência de preservar sua
identidade.

O artigo 3º da Convenção trata sobre os princípios gerais dela, sendo os seguintes:


o respeito à dignidade, a autonomia, a liberdade de fazer as próprias escolhas e a
independência das pessoas; a não discriminação; a plena participação e inclusão na vida
em sociedade; o respeito à diferença e à aceitação das pessoas com deficiência; a
igualdade de oportunidade; a acessibilidade; a igualdade; o respeito pelo desenvolvimento
das capacidades e identidade.
Em relação à igualdade, o artigo 5º da Convenção alude que:
Artigo 5
Igualdade e não-discriminação
1.Os Estados Partes reconhecem que todas as pessoas são iguais perante
e sob a lei e que fazem jus, sem qualquer discriminação, a igual proteção
e igual benefício da lei.
2.Os Estados Partes proibirão qualquer discriminação baseada na
deficiência e garantirão às pessoas com deficiência igual e efetiva
proteção legal contra a discriminação por qualquer motivo.
3.A fim de promover a igualdade e eliminar a discriminação, os Estados
Partes adotarão todas as medidas apropriadas para garantir que a
adaptação razoável seja oferecida.
4.Nos termos da presente Convenção, as medidas específicas que forem
necessárias para acelerar ou alcançar a efetiva igualdade das pessoas
com deficiência não serão consideradas discriminatórias.

Todas as pessoas devem ser tratas de forma igual, essa igualdade é a substancial,
pois ela visa promover de forma proporcional e razoável o tratamento igualitário entre as
pessoas com medidas inclusivas. Portanto, não pode haver discriminação violadora de
Direitos Humanos, mas pode haver discriminação positiva (ações afirmativas).
Ao tratar do acesso à justiça o artigo 13 da Convenção desenvolve que:
Artigo 13
Acesso à justiça
1.Os Estados Partes assegurarão o efetivo acesso das pessoas com
deficiência à justiça, em igualdade de condições com as demais pessoas,
inclusive mediante a provisão de adaptações processuais adequadas à
idade, a fim de facilitar o efetivo papel das pessoas com deficiência
como participantes diretos ou indiretos, inclusive como testemunhas,
em todos os procedimentos jurídicos, tais como investigações e outras
etapas preliminares.
2.A fim de assegurar às pessoas com deficiência o efetivo acesso à
justiça, os Estados Partes promoverão a capacitação apropriada
daqueles que trabalham na área de administração da justiça, inclusive a
polícia e os funcionários do sistema penitenciário.

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O acesso à justiça é um direito humano de todos. Esse direito visa garantir outros
Direitos Humanos. Por essa razão, o Estado deve assegurar um adequado e adaptado
acesso à justiça das pessoas com deficiência. Nessa concepção, é necessário que o Estado
promova uma capacitação apropriação dos respectivos profissionais que vão trabalhar no
efetivo acesso à justiça das pessoas com deficiência.

7 ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICÊNCIA

O Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei 13.146, de 6 de julho de 2015,


apresenta no artigo 2º que:
Art. 2o Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem
impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou
sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode
obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de
condições com as demais pessoas.
§ 1o A avaliação da deficiência, quando necessária, será
biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e
interdisciplinar e considerará:
I - os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;
II - os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;
III - a limitação no desempenho de atividades; e
IV - a restrição de participação.
§ 2o O Poder Executivo criará instrumentos para avaliação da
deficiência.

O respectivo artigo trata do conceito legal de “pessoa com deficiência”. Esta é a


pessoa que detém impedimento de natureza física, metal, intelectual ou sensorial de longo
prazo, que pode dificultar a sua igualdade de condições com as demais pessoas. A
avaliação da pessoa com deficiência deve ser biopsicossocial e deve ser feito por uma
equipe multiprofissional e interdisciplinar. A mencionada avaliação deve observar: “os
impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo; os fatores socioambientais,
psicológicos e pessoais; a limitação no desempenho de atividade e a restrição de
participação”.
O artigo 4º e 5º do Estatuto da Pessoa com Deficiência desenvolve que:
Art. 4o Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de
oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie
de discriminação.
§ 1o Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de
distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o
propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento

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ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com
deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de
fornecimento de tecnologias assistivas.
§ 2o A pessoa com deficiência não está obrigada à fruição de benefícios
decorrentes de ação afirmativa.

Art. 5o A pessoa com deficiência será protegida de toda forma de


negligência, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade,
opressão e tratamento desumano ou degradante.
Parágrafo único. Para os fins da proteção mencionada no caput deste
artigo, são considerados especialmente vulneráveis a criança, o
adolescente, a mulher e o idoso, com deficiência.

A pessoa com deficiência detém o direito à igualdade material de oportunidades


com as demais pessoas. Isso significa que não pode haver exclusão nem discriminação
negativa com as pessoas com deficiência. Dessa forma, a pessoa com deficiência está
“protegida de negligencia, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade,
opressão e tratamento desumano ou degradante”.
O artigo 6º do Estatuto da Pessoa com Deficiência desenvolve o seguinte:
Art. 6o A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa,
inclusive para:
I - casar-se e constituir união estável;
II - exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso
a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;
IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização
compulsória;
V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e
VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como
adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais
pessoas.

Em relação aos direitos existenciais, a deficiência não afeta a capacidade civil da


pessoa de: casar-se; constituir união estável; desempenhar direitos sexuais e reprodutivos;
cumprir o direito de decidir o número de filhos e de ter acesso à educação familiar;
conservar sua fertilidade; praticar o direito à família e a convivência familiar e
comunitária; exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela, à adoção, entre outros;
O artigo 7º e 8º do Estatuto da Pessoa com Deficiência alude que:
Art. 7o É dever de todos comunicar à autoridade competente qualquer
forma de ameaça ou de violação aos direitos da pessoa com deficiência.
Parágrafo único. Se, no exercício de suas funções, os juízes e os
tribunais tiverem conhecimento de fatos que caracterizem as violações
previstas nesta Lei, devem remeter peças ao Ministério Público para as
providências cabíveis.

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Art. 8o É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa
com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à
vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à
alimentação, à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho,
à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao transporte, à
acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à
informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à
dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e
comunitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal, da
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu
Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu
bem-estar pessoal, social e econômico.

É uma obrigação individual e coletiva a comunicação à autoridade competente de


que está sendo realizada ameaça ou violação aos direitos da pessoa com deficiência. Toda
a pessoa, inclusive os juízes, que conhecer qualquer violação a direitos dessas pessoas
deve comunicar o Ministério Público para que este tome as medidas cabíveis.
É uma obrigação da coletividade - Estado, Sociedade e Família – em garantir com
prioridade os Direitos Humanos da pessoa com deficiência, tais como, direito à vida, à
saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à
educação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à
reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à
informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao
respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros.
O artigo 9º do Estatuto da Pessoa com Deficiência descreve que:
Art. 9o A pessoa com deficiência tem direito a receber atendimento
prioritário, sobretudo com a finalidade de:
I - proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
II - atendimento em todas as instituições e serviços de atendimento ao
público;
III - disponibilização de recursos, tanto humanos quanto tecnológicos,
que garantam atendimento em igualdade de condições com as demais
pessoas;
IV - disponibilização de pontos de parada, estações e terminais
acessíveis de transporte coletivo de passageiros e garantia de segurança
no embarque e no desembarque;
V - acesso a informações e disponibilização de recursos de
comunicação acessíveis;
VI - recebimento de restituição de imposto de renda;
VII - tramitação processual e procedimentos judiciais e administrativos
em que for parte ou interessada, em todos os atos e diligências.
§ 1o Os direitos previstos neste artigo são extensivos ao acompanhante
da pessoa com deficiência ou ao seu atendente pessoal, exceto quanto
ao disposto nos incisos VI e VII deste artigo.

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§ 2o Nos serviços de emergência públicos e privados, a prioridade
conferida por esta Lei é condicionada aos protocolos de atendimento
médico.

As pessoas com deficiência têm o direito em receber atendimento com prioridade,


por exemplo, em relação: à proteção e socorro; aos atendimentos; à disponibilização de
recursos; à disponibilização em relação ao transporte público coletivo; ao acesso à
informação; ao recebimento de restituição de imposto de renda; à tramitação processual
e procedimento judicial ou administrativo; entre outros.
Os artigos 84 e 85 do Estatuto da Pessoa com deficiência apresentam que:
Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício
de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais
pessoas.
§ 1o Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à
curatela, conforme a lei.
§ 2o É facultado à pessoa com deficiência a adoção de processo de
tomada de decisão apoiada.
§ 3o A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui
medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às
circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível.
§ 4o Os curadores são obrigados a prestar, anualmente, contas de sua
administração ao juiz, apresentando o balanço do respectivo ano.

Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos
de natureza patrimonial e negocial.
§ 1o A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à
sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao
trabalho e ao voto.
§ 2o A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da
sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os
interesses do curatelado.
§ 3o No caso de pessoa em situação de institucionalização, ao nomear
curador, o juiz deve dar preferência a pessoa que tenha vínculo de
natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado.

A pessoa com deficiência tem garantido o direito ao exercício de sua capacidade


legal em igualdade de condições com as demais pessoas. Nesse sentido, a pessoa com
deficiência é plenamente capaz para práticas certo atos da vida civil. Se necessário, é
possível o processo de tomada de decisão no caso da pessoa com deficiência. Em casos
excepcionais, é admissível a submissão a curatela. A curatela apenas disciplinará atos de
natureza patrimoniais e negociais, em que deve conter na sentença as razões e as
motivações da curatela. Logo, curatela não abrande direito existencial.

8 LEI DAS COTAS PARA TRABALHADORES COM DEFICIÊNCIA

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A Lei 8213, de 24 de julho de 1991 descreve no artigo 93 que:
Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada
a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus
cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de
deficiência, habilitadas, na seguinte proporção:

I - até 200 empregados...............................................2%;


II - de 201 a 500.........................................................3%;
III - de 501 a 1.000.....................................................4%;
IV - de 1.001 em diante..............................................5%.

Há uma política de empregabilidade para a pessoa com deficiência, pois a empresa


com mais 100 ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% a 5% de seus cargos
de pessoas com deficiência.

9 COTAS PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

O artigo 37, VII, da CF/88 descreve que: “a lei reservará percentual dos cargos e
empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua
admissão”.
O artigo 5º, parágrafo 2º, da Lei 8112, de 11 de dezembro de 1990 apresenta o
seguinte:
Art. 5o São requisitos básicos para investidura em cargo público:
I - a nacionalidade brasileira;
II - o gozo dos direitos políticos;
III - a quitação com as obrigações militares e eleitorais;
IV - o nível de escolaridade exigido para o exercício do cargo;
V - a idade mínima de dezoito anos;
VI - aptidão física e mental.
§ 1o As atribuições do cargo podem justificar a exigência de
outros requisitos estabelecidos em lei.

§ 2o Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de


se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas
atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras;
para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas
oferecidas no concurso.

A pessoa com deficiência detém ressalvada até 20 % das vagas oferecidas em


concurso público para o provimento de cargos cujas atribuições sejam compatíveis. Logo,
pessoa com deficiência pode fazer concurso público e ainda detém até 20 % das vagas
reservadas.

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10 ISENÇÃO TRIBUTÁRIA PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Em aspectos gerais, para fins de informação, a pessoa com deficiência detém


isenção de pagar IPI (Imposto sobre produtos industrializados), IOF (imposto sobre
operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários
incidências), ICMS (imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços) e
IPVA (imposto sobre a propriedade de veículos automotores).

11 NOVO CÓDIGO DE PROCESS CIVIL DE 2015

Com relação à necessidade de interprete ou tradutor, o artigo 162 do Código de


Processo Civil de 2015 - CPC/15 descreve que:
Art. 162. O juiz nomeará intérprete ou tradutor quando necessário para:
I - traduzir documento redigido em língua estrangeira;
II - verter para o português as declarações das partes e das testemunhas
que não conhecerem o idioma nacional;
III - realizar a interpretação simultânea dos depoimentos das partes e
testemunhas com deficiência auditiva que se comuniquem por meio da
Língua Brasileira de Sinais, ou equivalente, quando assim for
solicitado.

O juiz nomeará intérprete ou tradutor no caso de depoimento de parte ou de


testemunha com deficiência auditiva que se comunique por meio da Língua Brasileira de
Sinais – LIBRA.
O artigo 199 do Código de Processo Civil de 2015 apresenta que:
Art. 199. As unidades do Poder Judiciário assegurarão às pessoas com
deficiência acessibilidade aos seus sítios na rede mundial de
computadores, ao meio eletrônico de prática de atos judiciais, à
comunicação eletrônica dos atos processuais e à assinatura eletrônica.

É necessário no Estado Democrático de Direito a acessibilidade e a inclusão da


pessoa com deficiência, nesse sentido, as unidades do Poder Judiciário garantirão a
acessibilidade das pessoas com deficiência em sítios na rede mundial de computadores,
ao meio eletrônico de prática de ato judiciais, a comunicação eletrônica dos atos
processuais, as assinaturas eletrônicas, entre outras.
O artigo 447 do Código de Processo Civil informa que:
Art. 447. Podem depor como testemunhas todas as pessoas, exceto as
incapazes, impedidas ou suspeitas.

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§ 1o São incapazes:
I - o interdito por enfermidade ou deficiência mental;
II - o que, acometido por enfermidade ou retardamento mental, ao
tempo em que ocorreram os fatos, não podia discerni-los, ou, ao
tempo em que deve depor, não está habilitado a transmitir as
percepções;
III - o que tiver menos de 16 (dezesseis) anos;
IV - o cego e o surdo, quando a ciência do fato depender dos sentidos
que lhes faltam.

O artigo 447, parágrafo 1º, I, do Código Processo Civil menciona que o interdito
por enfermidade ou deficiente mental é incapaz, logo, não pode ser testemunha. Mas é
interessante ressalta que a pessoa com deficiência não é incapaz, conforme o Estatuto da
Pessoa com Deficiência.
De forma breve, o CPC/15 trata da interdição nos artigos 747 e seguintes. A
interdição poderá ser promovida: cônjuge, companheiro, parentes, tutores, representante
da entidade em que se encontra obrigado o interditando ou pelo Ministério Público. Por
fim, o CPC/15 permite a tomada de decisão e em caso excepcional a curatela. Observa-
se que a interdição não é mais aplicada com a vigência do Estatuto da Pessoa com
Deficiência.

12 REFLEXOS DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

O Estatuto da Pessoa com Deficiência é uma lei inclusiva, que garante a igualdade
material, justiça social, liberdade, fraternidade, dignidade da pessoa humana, entre outros.
Nesse sentido, o Estatuto da Pessoa com Deficiência combate a discriminação, a violação,
a violência e a exclusão das pessoas com deficiência.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência contribui para a quebra do paradigma de
que a pessoa com deficiência é doente, pois a deficiência deve ser vista como uma
característica ou qualidade, mas nunca como limitação ou doença.
Para José Fernando Simão (2015)1:

Quais são as consequências desta mudança legislativa?

I – Todas as pessoas que foram interditadas em razão de enfermidade


ou deficiência mental passam, com a entrada em vigor do Estatuto, a
serem consideradas plenamente capazes. Trata-se de lei de estado. Ser

1
SIMÃO, José Fernando. Estatuto da Pessoa com Deficiência causa perplexidade (Parte I), 2015.
Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-ago-06/jose-simao-estatuto-pessoa-deficiencia-causa-
perplexidade. Acesso em 30.07.2016

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capaz ou incapaz é parte do estado da pessoa natural. A lei de estado
tem eficácia imediata e o levantamento da interdição é desnecessário.
Ainda, não serão mais considerados incapazes, a partir da vigência da
lei, nenhuma pessoa enferma, nem deficiente mental, nem excepcional
(redação expressa do artigo 6º do Estatuto).
Imaginemos uma pessoa que tenha deficiência profunda. Tal pessoa,
em razão da deficiência, não consegue exprimir sua vontade. Esta
pessoa, hoje, passa por um processo de interdição e é reconhecida como
absolutamente incapaz. Seu representante legal (normalmente um dos
pais), na qualidade de curador a representa para os atos da vida civil.
Com a mudança trazida pelo Estatuto, tal pessoa, apesar da deficiência
profunda, passa a ser capaz.
E qual a consequência, para o direito da capacidade plena desta pessoa?
Responderemos em nossas conclusões.

II – Sendo o deficiente, o enfermo ou excepcional pessoa plenamente


capaz, não poderá ser representado nem assistido, ou seja, deverá
praticar pessoalmente os atos da vida civil. Mas há um problema
prático: apesar de o Estatuto ter considerado tal pessoa capaz, na vida
cotidiana tal pessoa não consegue exprimir sua vontade. Há pessoas que
por fatores físicos são incapazes de manifestar sua vontade, mas passam
a ser capazes por força da nova lei.
Assim indago: qual o efeito prático da mudança proposta pelo Estatuto?
Esse descompasso entre a realidade e a lei será catastrófico. Com a
vigência do Estatuto, tais pessoas ficam abandonadas à própria sorte,
pois não podem exprimir sua vontade e não poderão ser representadas,
pois são capazes por ficção legal. Como praticarão os atos da vida civil
se não conseguem fazê-lo pessoalmente? A situação imposta pelo
Estatuto às pessoas que necessitam de proteção é dramática. Trouxe,
nesse aspecto, o Estatuto alguma vantagem aos deficientes? A mim,
parece que nenhuma. Contudo, nas notas conclusiva, propomos uma
solução para a questão.

III – sendo o deficiente, o enfermo ou excepcional pessoa plenamente


capaz, terá uma outra desvantagem em termos jurídicos: a prescrição e
a decadência correrão contra ele. Atualmente, por força dos artigos 198,
I e 208 do CC, a prescrição e a decadência não correm contra os
absolutamente incapazes.
Isso significa que quando o absolutamente incapaz é credor não terá a
desvantagem de ver suas pretensões prescritas. Assim, se um menor
com 10 anos de idade é credor de aluguel, a prescrição fica impedida de
correr até que ele complete 16 anos. O tempo decorrido não prejudica
o absolutamente incapaz, mas apenas o favorece. Assim, se o mesmo
menor for devedor, o prazo prescricional transcorre normalmente, pois
isso o beneficia.
Como, com o Estatuto, os deficientes e excepcionais são capazes, a
prescrição correrá contra eles, prejudicando-os, portanto.
Trouxe, nesse aspecto, o Estatuto alguma vantagem aos deficientes? A
mim, parece que nenhuma.

IV – Sendo o deficiente, o enfermo ou excepcional pessoa plenamente


capaz, poderá celebrar negócios jurídicos sem qualquer restrição, pois
não se aplicam as invalidades previstas nos artigos 166, I e 171, I do
CC. Isso significa que hoje, se alguém com deficiência leve, mas com
déficit cognitivo, e considerado relativamente incapaz por sentença,

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assinar um contrato que lhe é desvantajoso (curso por correspondência
de inglês ofertado na porta do metrô) esse contrato é anulável, pois não
foi o incapaz assistido. Com a vigência do Estatuto esse contrato passa
a ser, em tese, válido, pois celebrado por pessoa capaz. Para sua
anulação, necessária será a prova dos vícios do consentimento (erro ou
dolo) o que por exigirá prova de maior complexidade e as dificuldades
desta ação são enormes.
Trouxe, nesse aspecto, o Estatuto alguma vantagem aos deficientes? A
mim, parece que nenhuma, pois deixou o deficiente a mercê de pessoas
sem escrúpulos e com maior dificuldade para invalidar negócios
jurídicos.

V – Sendo o deficiente, o enfermo ou excepcional pessoa plenamente


capaz, terá uma outra desvantagem em termos jurídicos: a quitação por
ele dada é válida e eficaz, afastando-se a incidência do artigo 310 do
CC.
Imaginemos uma pessoa, novamente, com deficiência leve e
relativamente incapaz que não tenha noção de dinheiro e valores. Sendo
credora, se ela der quitação, após a vigência do Estatuto, esta libera o
devedor. Imaginemos que tal pessoa, então, recebendo certa quantia em
dinheiro, e por não ter noção exata de dinheiro, entregue a quantia a um
desconhecido. Pela regra atual, o devedor pagou mal e pagará
novamente. Com o Estatuto em vigor, o credor é que suportará a perda
do dinheiro.
Trouxe, nesse aspecto, o Estatuto alguma vantagem aos deficientes? A
mim, parece que nenhuma.

VI – Sendo o deficiente, o enfermo ou excepcional pessoa plenamente


capaz, terá uma outra desvantagem em termos jurídicos: para receber
doação terá de exprimir sua vontade, o que, atualmente, não é
necessário em sendo absolutamente incapaz (art. 543 do CC).
Imaginemos um tio que quer doar bens imóveis a um sobrinho com
deficiência profunda para que a renda de tais bens garantam uma vida
digna ao sobrinho. Hoje, a doação se aperfeiçoa sem que o sobrinho
precise manifestar sua vontade (há uma presunção da vontade). Com o
Estatuto, essa pessoa, plenamente capaz, precisa aceitar a doação.
Como ela manifestará sua vontade se não consegue fazê-lo?
Trouxe, nesse aspecto, o Estatuto alguma vantagem aos deficientes? A
mim, parece que nenhuma.
Para não me alongar na questão, analiso mais um aspecto da mudança
que virá com o Estatuto.

VII – Sendo o deficiente, o enfermo ou excepcional pessoa plenamente


capaz, terá uma outra desvantagem em termos jurídicos: passará a
responder com seus próprios bens pelos danos que causar a terceiros,
afastando-se a responsabilidade subsidiária criada atualmente pelo
artigo 928 do CC. Pela sistemática do Código Civil, quem responde
precipuamente pelos danos causados pelos incapazes são seus
representantes legais (pais, tutores e curadores). Imaginemos uma
pessoa que, por problemas psicológicos, tem perda ou séria redução de
discernimento e, tendo acessos de fúria, gera graves danos a terceiros.
Tal pessoa, sendo interditada por força da doença será cuidada por seu
curador. Se causar danos, o patrimônio do curador responderá. O
incapaz só responde subsidiariamente. Com o Estatuto, a
responsabilidade será exclusiva da pessoa que causou o dano.

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No campo Direito Civil das Capacidades, considerar uma pessoa com deficiência
como incapaz pelo fato dela ser “deficiente” é uma discriminação e uma violação aos
Direitos Humanos.
No campo do Direito de família, a pessoa com deficiência pode casar, pode se
divorciar, pode ter a quantidade de filhos que quiser, pode amar, pode adotar, pode se
utilizar de técnicas de reprodução assistida, entre outros.
Em relação à realização de atos de natureza patrimonial ou negocial a pessoa com
deficiência pode contar com o auxilio de um curador. Mas em relação aos atos
existenciais, a pessoa com deficiência não precisa de curador.
Ao interpretar o artigo 928 do Código Civil à luz do Estatuto da Pessoa com
Deficiência e da Constituição Federal é interessante visualizar que a pessoa com
deficiência responde pelos seus próprios atos, portanto, é possível visualizar que não há
mais a responsabilidade subsidiária do artigo 928 do CC/02 da pessoa com deficiência.
Dado o exposto, é bom lembrar que o Estatuto da Pessoa com Deficiência revoga
a interdição, logo, é possível o processo de tomada de decisão ou curatela.

13 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como demonstrado no presente trabalho, o Direito Civil Clássico valorizava o


patrimônio e um exemplo disso é o Código Civil de 1916. Já o Direito Civil Moderno,
exemplificado pelo Código Civil de 2002, à luz da teoria do Direito Civil Constitucional
Humanizado valoriza a pessoa humana, pois são seres de direitos, deveres e dignidade.
O Código Civil de 1916 foi um código discriminatório e excludente, por exemplo,
eram absolutamente incapazes na vigência do Código Civil de 1916: os menores de 16
anos; os loucos de todo o gênero; os surdos-mudos, que não puderem exprimir a sua
vontade; os ausentes, declarados tais por ato do juiz.
A Constituição Federal de 1988 valoriza à dignidade da pessoa humana, à
inclusão, à acessibilidade, à igualdade, à liberdade, à fraternidade e à justiça social. Nesse
sentido, a Constituição Cidadã não admite discriminação, violação, violência e exclusão
da pessoa com deficiência no Estado Democrático de Direito.
O Código Civil de 2002, atualmente, foi alterado pelo Estatuto da Pessoa com
Deficiência e essa alteração legal regula que a pessoa com deficiência é plenamente capaz

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para praticar os atos de natureza existência, patrimonial e negocial, logo, a pessoa com
deficiência não é mais absolutamente incapaz como era previsto.
A Convenção da Pessoa com Deficiência promove, protege e assegura o pleno
exercício dos Direitos Humanos da pessoa com deficiência, nesse sentido, essa pessoa
tem dignidade humana, então, deve ser respeitada, protegida e incluída no Estado
Democrático de Direito.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência conceitua de forma legal o que vem a ser a
pessoa com deficiência da seguinte forma: “é a pessoa que detém impedimento de
natureza física, metal, intelectual ou sensorial de longo prazo, que pode dificultar a sua
igualdade de condições com as demais pessoas”. Esse Estatuto protege os direitos
existenciais da pessoa com deficiência, portanto, essa pessoa pode casar, formar união
estável; exercer direitos sexuais e reprodutivos; desempenhar o direito de decidir o
número de filhos e de ter acesso à educação familiar; conservar sua fertilidade; exercer o
direito à família e a convivência familiar e comunitária; praticar o direito à guarda, à
tutela, à curatela, à adoção, entre outros.
Há uma política de empregabilidade da pessoa com deficiência, tendo em vista
que em empresas de 100 ou mais empregados deve haver de 2 a 5 % empregados com
deficiência.
Quanto a cotas para concurso, a pessoa com deficiência detém o direito de até 20
% das vagas oferecidas em concurso público para o provimento de cargos cujas
atribuições sejam compatíveis.
Em âmbito tributário, a pessoa com deficiência detém direito à isenção de pagar
IPI (Imposto sobre produtos industrializados), IOF (imposto sobre operações de crédito,
câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários incidências), ICMS (imposto
sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços) e IPVA (imposto sobre a
propriedade de veículos automotores).
O novo CPC (CPC 2015) deve se adequar a Convenção da Pessoa com
Deficiência, pois esta detém status de Emenda Constitucional. O CPC disciplina matéria
processual e no que tange a pessoa com deficiência é possível a tomada de decisão e em
caso excepcional a curatela.
Dado o exposto, a pessoa com deficiência detém proteção jurídica em âmbito
internacional e nacional. Nesse sentido, é interessante e relevante estudar sobre a proteção
dessa pessoa à luz do Direito Civil Constitucional Humanizado, em razão das atuais
modificações realizadas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência como a plena

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capacidade da pessoa com deficiência e o respeito aos direitos existenciais, patrimoniais
e negociais dessa pessoa.

REFERÊNCIA

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988.


_______, Código Civil de 1916, Lei 3071, de 1 de janeiro de 1916.
_______, Código Civil de 2002, Lei 10406, de 10 de janeiro de 2002
_______, Código de Processo Civil de 2015, Lei
_______, Convenção da Pessoa com Deficiência, Decreto 6.949, de 25 de agosto de
2009
_______, Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei 13.146, de 6 de julho de 2015
_______, Lei 8112, de 11 de dezembro de 1990
_______, Lei 8213, de 24 de julho de 1991
_______, Lei Complementar 142, de 8 de maio de 2013
MACÊDO, Wendel Alves Sales Macêdo; OLIVEIRA, Eduardo Jorge Pereira de. A
ARBITRAGEM, A CONCILIAÇÃO, A MEDIAÇÃO E A NEGOCIAÇÃO COMO
FORMAS ALTERNATIVAS DE SOLUÇÕES DE CONFLITOS NO DIREITO
CIVIL CONSTITUCIONAL HUMANIZADO. IN. Temas de direito civil: da
constitucionalização à humanização / [recurso eletrônico] / Organizadores: Adriano
Marteleto Godinho [et al.] .João Pessoa: Editora da UFPB, 2015
SIMÃO, José Fernando. Estatuto da Pessoa com Deficiência causa perplexidade (Parte
I), 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-ago-06/jose-simao-estatuto-
pessoa-deficiencia-causa-perplexidade. Acesso em 30.07.2016
TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único I. 6. ed. rev., atual. e ampl. -
Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016.

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CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DO CONSUMIDOR:
CONDIÇÃO DE HIPERVULNERABILIDADE DIANTE DA PRÁTICA
ABUSIVA DA VENDA CASADA COMO PRÉ- REQUISITO A
APROVAÇÃO E LIBERAÇÃO DO PEDIDO DE CRÉDITO BANCÁRIO.

Fernanda Soares Braga1


Ilany Caroline da Silva Leandro2
Ivanna Pessôa Moura3

RESUMO: No âmbito do Direito Civil Constitucional, importante analisar a hipossuficiência


do consumidor diante a imposição abusiva da prática bancária, popularmente conhecida como
“ venda casada”, por se tratar de uma atividade empresarial praticada pelo fornecedor de
serviços bancários de maneira ilícita, uma vez que foge dos padrões legais desequilibrando a
relação de consumo entre cliente e instituição financeira. Utilizando-se de sua superioridade na
econômica ou técnica, o fornecedor passa a condicionar a liberação de um crédito, a aceitação
de outro serviço ou produto bancário, retirando a liberdade de escolha do consumidor,
características típicas do contrato de adesão, acentuando a sua vulnerabilidade. A pesquisa, na
sua abordagem, utiliza-se do método dedutivo, buscando averiguar o conceito da prática da
venda, considerada abusiva, na doutrina e na legislação, como também pretende identificar o
perfil jurisprudencial dos tribunais quanto a configuração da venda casada, citando e apreciando
casos judiciais polêmicos. Neste contexto, oportuniza-se uma discussão a respeito da
responsabilidade civil das instituições financeiras pela prática abusiva na oferta de produtos ou
serviços, enfatizando a necessidade de uma releitura do direito civil à luz da Constituição
Federal, levando-se em consideração que a autonomia privada não pode sobrepor o seu desejo
de lucrar em detrimento dos direitos básicos do consumidor, nem ao menos aproveitar-se do
seu estágio de hipervulnerabilidade no momento em que busca a liberação de um crédito
financeiro.

1
Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba na Área de concentração em Direito
Econômico - PPGCJ/UFPB. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande - UFCG,
Paraíba. E-mail: nanda83_braga@hotmail.com.
2
Docente dos cursos de formação e habilitação da Instituição Corpo de Bombeiros Militar da Paraíba. Mestranda
em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba na Área de concentração em Direito Econômico -
PPGCJ/UFPB. Graduada em Direito pela Faculdade Maurício de Nassau - João Pessoa, Paraíba. E-mail:
ynaica@yahoo.com.br.
3
Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. E-mail: ivannapessoa@hotmail.com

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Palavras-chave: Direito Constitucional. Consumidor Hipervulnerável. Prática Abusiva. Venda
Casada Responsabilidade Civil das instituições financeiras.

ABSTRACT: The aim of this paper is to analyze consumer hipossuficiência on the abusive
imposition of banking practice, popularly known as "tying" because it is a business activity
practiced by the banking provider unlawfully since shuns legal standards unbalancing the
consumer relationship between client and financial institution therefore uses its economic
superiority or technical conditioning the release of a credit acceptance of another service or
banking product, removing the consumer's freedom of choice, typical features of the accession
agreement, accentuating their vulnerability. The survey, in its approach, it uses the deductive
method seeking to ascertain the concept of the practice of selling regarded as unfair, in doctrine
and law, as also seeks to identify the jurisprudential profile of the courts and the configuration
of tying quoting and enjoying cases controversial court. In this context, gives opportunity is an
increasing discussion about the liability of financial institutions by abuse in the provision of
products or services, emphasizing the need for a review of civil law in the light of the
Constitution, taking into account that the private autonomy you can not override your desire to
profit at the expense of basic consumer rights, or at least take advantage of the consumer
hipervulnerabilidade stage when seeking the release of a financial credit.

Keywords: Consumer Hipervulnerável. Abusive practice. Tying Liability of financial


institutions.

1. INTRODUÇÃO

O artigo 4º do Código de Defesa do Consumidor garante que o Estado brasileiro, por


intermédio da Política Nacional das Relações de Consumo deve proteger o consumidor, que
passa a ser considerado um cidadão vulnerável na relação consumerista. O reconhecimento de
vulnerabilidade do consumidor, por parte do Código de Defesa do Consumidor, tem o propósito
de tornar possível a sua comparação ao fornecedor quanto aos seus direitos e deveres, de modo
que essa proteção seja efetiva e concreta, visando equilibrar os dois polos da relação de
consumo.
A vulnerabilidade do consumidor intensifica-se quando o mesmo se encontra diante
de formas de contratação massificada, configurada uma espécie de contrato com cláusulas já

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predispostas, típicas dos contratos bancários, oportunizando ao consumidor apenas a
possibilidade de aderir as cláusulas avençadas.
O Código de Defesa do Consumidor, deste modo, regula uma das formas mais
utilizadas, atualmente, nas contratações de massa: os contratos de adesão, disciplinando-os no
capítulo VI, art. 54.
Pois bem, partindo deste reconhecimento de vulnerabilidade expresso
constitucionalmente, o presente artigo preocupa-se em averiguar a incidência das práticas
abusivas, cometidas por partes dos bancos, que se aproveitam do uso indiscriminado da forma
contratual na modalidade adesão, anexando aos contratos firmados a venda casada de produtos
ou serviços condicionada a liberação de um financiamento bancário demonstrando que a técnica
de contratação acaba por ocasionar a falta de liberdade de escolha do consumidor elevando-o
ao estágio de hipervulnerável.

2. CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DO CONSUMIDOR

A Constituição Federal brasileira de 1988, Lei maior do Estado, consiste na origem da


codificação tutelar dos direitos dos consumidores no Brasil, garantindo sua existência e
efetividade, preocupando-se com os vulneráveis de nossa sociedade, anunciando o surgimento
do então Código de Defesa do Consumidor brasileiro no artigo 48 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, prevendo que “o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias
da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”.
Além de berço Constitucional, a defesa do consumidor consiste em missão do Estado
brasileiro, estando presente no capítulo relativo aos “direitos e deveres individuais e coletivos”
do texto Constitucional, consistindo em direito fundamental positivado na atual Constituição
Federal no Inciso XXXII, do art. 5º, notando-se claramente a preocupação do legislador em
promover a proteção ao consumidor.
Por estar incluso no rol dos direitos fundamentais, a defesa do indivíduo na condição
de consumidor consiste em cláusula pétrea, assim disposto no art. 60, § 4º, IV, CF/88, que
segundo o entendimento de (2009, p. 384), “trata-se de restrições impostas pelo poder
constituinte originário ao poder reformador”, não sendo então, objeto de deliberação. Já na
concepção de Sarlet (2004, p. 77) tal prerrogativa impede a “supressão e erosão dos preceitos
relativos aos direitos fundamentais pela ação do poder Constituinte derivado”.

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Portanto, há impossibilidade jurídica de proposta de emenda constitucional tendente a
abolir ou diminuir a eficácia da referida norma constitucional. Ciente de que a defesa do sujeito
consumidor está inserida no rol dos direitos fundamentais constitucionais, tratando-se então de
cláusula pétrea, não sendo objeto de deliberação, qualquer conflito que agrida o postulado da
primazia da Carta Magna viola pelo menos um princípio essencial, qual seja, o da Supremacia
da Constituição, comprometendo assim, a harmonia de todo o ordenamento jurídico brasileiro.
Sendo ainda, enfatizada pela Carta Magna como princípio da ordem econômica e
financeira, previsto no artigo 170, V, que ressalta a importância da defesa do consumidor nas
relações de cunho econômicas. Consiste em Direito abraçado pela Lei Maior, que garantiu a
existência e efetividade do direito do consumidor no Brasil, possuindo eficácia seja contra o
próprio Estado ou nas relações privadas.
Além do manto Constitucional, os consumidores brasileiros foram contemplados com
a Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990, que rege especificamente as relações de consumo,
que traz o consumidor como parte vulnerável e em algumas situações, hipervulnerável da
relação.
A fim de garantir o equilíbrio das relações, levando em consideração que o consumo
assume características peculiares, os agentes econômicos devem pautar suas atividades no
princípio da boa-fé1 com vistas a minorar as assimetrias com os consumidores, como também,
os padrões mercadológicos em desconformidade com tal princípio basilar.
Com a inclusão da atividade econômica na Carta Magna brasileira, o Estado assume o
compromisso de disciplinar a relação entre mercado e indivíduos, conferindo-a valor jurídico-
Constitucional, assumindo tarefas de limitação e organização econômicas, garantindo que os
interesses privados não afetem direitos fundamentais dos indivíduos, sobretudo, princípios já
consolidados na lex mater, dentre eles, a defesa do consumidor.
Assim, a Constituição Federal brasileira de 1988 é o respaldo legal fundamental e o
Código de Defesa do Consumidor, instrumento específico adequado para resguardar o
indivíduo-consumidor, como também, coibir os abusos do mercado de consumo, devendo ser

1 Quando expresso na Lei nº 8.078/1990, o princípio da boa-fé é garantidor daqueles outros princípios previstos
no art. 170 da Constituição Federal, a fim de viabilizar os ditames constitucionais da ordem econômica, visando à
proteção do consumidor e ao desenvolvimento econômico e tecnológico. Afirma Nunes (2011, p. 657) que “a boa-
fé não serve somente para a defesa do débil, mas sim como fundamento para orientar a interpretação garantidora
da ordem econômica, que, como vimos, tem na harmonia dos princípios constitucionais do art. 170 sua razão de
ser”. Para Vasconcelos e Brandão (2008, p. 10) “segundo a doutrina que orienta o Direito do Consumidor, o
fornecedor de qualquer produto ou serviço, deve agir sob o princípio da boa fé objetiva, mantendo conduta
contratual compatível nas relações com o consumidor vulnerável”.

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observadas pelos agentes econômicos nas contratações, a fim de harmonizar a relação que per
se já nasce desequilibrada.

3. DIÁLOGO DAS FONTES: CONVERSAÇÕES RECÍPROCAS ENTRE A


CONSTITUIÇÃO FEDERAL E O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

O ordenamento jurídico brasileiro colaciona inúmeras legislações, que por vezes


associam-se entre si para afirmar direitos e garantias. Assim, as leis não mais são aplicadas de
forma isolada umas das outras, antes existem conversações entre fontes legítimas plurais
pertencentes ao mesmo ordenamento jurídico, com escopo de assinalar o bom cumprimento do
direito de forma justa e eficiente, a fim de conferir ao Direito, interpretação sistemática e
coordenada.
Com o fito de proporcionar ao intérprete uma nova ferramenta hermenêutica para
solucionar problemas de conflito entre normas jurídicas (antinomias) no sentido de
interpretá-las de forma entrelaçadas 1, sempre em consonância com os preceitos
constitucionais, assim como, evitar conflitos de valores de princípios e normas, há a
possibilidade da coordenação entre leis no mesmo sistema jurídico na tentativa de se alcançar
soluções mais eficientes e justas.
Significa uma convivência harmônica entre as normas jurídicas, numa comunicação
sistêmica, a fim de alcançar uma solução célere e sólida na realidade social, denominando-se
diálogo das fontes, que segundo Marques, Benjamin e Miragem (2013, p. 36-37) significa
“permitir a aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas
convergentes”, que detém, segundo Tartuce (2012), tamanha funcionalidade, resultando em
legitimidade e consenso aos valores e princípios.

1
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça por intermédio do julgamento do Recurso Especial nº 1.037.759/RJ,
cotejou a Constituição Federal de 1988, o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 para
consolidar o referido precedente, senão vejamos: “DIREITO CIVIL E CONSUMIDOR. RECUSA DE CLÍNICA
CONVENIADA A PLANO DE SAÚDE EM REALIZAR EXAMES RADIOLÓGICOS. DANO MORAL.
EXISTÊNCIA. VÍTIMA MENOR. IRRELEVÂNCIA. OFENSA A DIREITO DA PERSONALIDADE.
- A recusa indevida à cobertura médica pleiteada pelo segurado é causa de danos morais, pois agrava a situação de
aflição psicológica e de angústia no espírito daquele. Precedentes
- As crianças, mesmo da mais tenra idade, fazem jus à proteção irrestrita dos direitos da personalidade, entre os
quais se inclui o direito à integridade mental, assegurada a indenização pelo dano moral decorrente de sua violação,
nos termos dos arts. 5º, X, in fine, da CF e 12, caput, do CC/02.
- Mesmo quando o prejuízo impingido ao menor decorre de uma relação de consumo, o CDC, em seu art. 6º, VI,
assegura a efetiva reparação do dano, sem fazer qualquer distinção quanto à condição do consumidor, notadamente
sua idade. Ao contrário, o art. 7º da Lei nº 8.078/90 fixa o chamado diálogo de fontes, segundo o qual sempre que
uma lei garantir algum direito para o consumidor, ela poderá se somar ao microssistema do CDC, incorporando-
se na tutela especial e tendo a mesma preferência no trato da relação de consumo; [...]”.

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Alerta Sozzo (2014) para a necessidade de associar as normativas compreendidas no
direito privado, nunca divergindo-as2, sendo o diálogo das fontes grande inovação do direito.
Logo, o diálogo entre fontes normativas visa fortalecer a estrutura jurídica, evitando conflitos
entre as normas jurídicas, numa interação harmoniosa entre elas, a fim de proporcionar um
coerente funcionamento da máquina jurídica.
Sabendo que nas relações de ordem consumeristas, prevalecem as disposições
expressas no CDC, a aproximação das normas por meio de diálogo das fontes consolida a
reafirmação de direitos, à exemplo do Princípio da boa-fé que possui previsão no art. 422 do
Código Civil brasileiro de 2002, assegurando proteção de forma geral e genérica de matéria
obrigacional, assim como no art. 51, IV do CDC, Lei especial de tutela dos direitos dos
consumidores, ora amparada pela CF/88, mandamento Constitucional que positivou a devida
tutela em seu artigo 5º, XXXII.
Nesse sentido, explica Marques, Benjamin e Miragem (2013, p. 68) que “[...], a
aplicação conjunta e coordenada das fontes tem como consequência a inexistência de lacunas,
onde o Direito do consumidor pode ser complementado por outras leis e princípios”. Nas
relações de cunho consumeristas, o diálogo das fontes jurídicas permite assegurar ao
consumidor, tutela especial e digna, conforme os valores e os princípios constitucionais de
proteção especial.
Porquanto, o método do diálogo das fontes visa esclarecer a lógica do manto especial
protetivo conferido ao sujeito consumidor à égide do CDC, possibilitando visão unitária e
coerente do Direito privado, tendo por base primordial a Constituição Federal, elevando a visão
do intérprete para a existência do conjunto sistemático de normas. Assim, explicam os autores
Marques, Benjamin e Miragem (2013, p. 68) que o método do diálogo das fontes “é muito útil
nos dias de hoje, de grande pluralismo de fontes e de incertezas em matéria de Teoria Geral do
Direito: assegura uma aplicação do conjunto de fontes a favor do consumidor”.
Logo, o método do diálogo das fontes é uma generosa ferramenta que possibilita um
olhar mais qualificado sobre o direito do consumidor, uma vez que correlaciona fontes jurídicas
na medida em que uma lei pode servir de base conceitual para outra, possibilitando a aplicação
coordenada entre as normas, a partir de conversações recíprocas entre os sistemas.

2
Afirma Sozzo (2014, p. 18) que “es necesario profundizar la tarea de deconstrucción de la dicotomía público
privado como tal y reconstruirla como una asociación, [...]” (texto original).

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4. A CONDIÇÃO DE VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR NAS
CONTRATAÇÕES

A Lei nº 8.078/1990, sistema específico de proteção e defesa do consumidor, que


busca o equilíbrio entre as partes3, possui como um de seus princípios básicos a
vulnerabilidade, expresso em seu art. 4º, inciso I. Assim, a legislação consumerista revela a
fragilidade do consumidor em relação ao fornecedor, que detém o monopólio das informações
de seus produtos ou serviços ofertados, assim como, grande poderio econômico, concorrendo
para acentuação das assimetrias nas relações com o consumidor. Tais situações são
explicadas por Filomeno (2007, p. 12) nas nuances econômicas e informacionais, quando diz
que:
Por vulnerabilidade, há de se entender a fragilidade dos consumidores, em face dos
fornecedores, quer no que diz respeito ao aspecto econômico e de poder aquisitivo,
quer no que diz respeito às chamadas informações disponibilizadas pelo próprio
fornecedor ou ainda técnica.

O CDC reconhece o consumidor como sujeito fragilizado da relação, carente de


proteção, definido por Nunes (2000, p. 106) como “parte fraca da relação jurídica de consumo”.
Tal condição, segundo Benjamin (2010, p. 259) consiste em “traço universal de todos os
consumidores”, justificando, inclusive a existência do Código de Defesa do Consumidor.
Por constituir relação desprovida de paridade, entendem Vasconcelos e Brandão
(2008, p. 5) que a vulnerabilidade do consumidor está diretamente ligada ao “estado de risco”
nas contratações. Consiste em condição desfavorável, que fragiliza ou enfraquece o sujeito de
direitos, causando desequilíbrio na relação de consumo. Para Braga Netto (2010, p. 47), a
relação desigual entre as partes fundamenta a criação do Código de Defesa do Consumidor,

3
Esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, por intermédio do julgamento do Recurso Especial n.º
476.428-SC: “Direito do Consumidor. Recurso especial. Conceito de consumidor. Critério subjetivo ou finalista.
Mitigação. Pessoa Jurídica. Excepcionalidade. Vulnerabilidade. Constatação na hipótese dos autos. Prática
abusiva. Oferta inadequada. Característica, quantidade e composição do produto. Equiparação (art. 29).
Decadência. Inexistência. Relação jurídica sob a premissa de tratos sucessivos. Renovação do compromisso. Vício
oculto.
- A relação jurídica qualificada por ser "de consumo" não se caracteriza pela presença de pessoa física ou jurídica
em seus pólos, mas pela presença de uma parte vulnerável de um lado (consumidor), e de um fornecedor, de outro.
- Mesmo nas relações entre pessoas jurídicas, se da análise da hipótese concreta decorrer inegável
vulnerabilidade entre a pessoa-jurídica consumidora e a fornecedora, deve-se aplicar o CDC na busca do
equilíbrio entre as partes. Ao consagrar o critério finalista para interpretação do conceito de consumidor, a
jurisprudência deste STJ também reconhece a necessidade de, em situações específicas, abrandar o rigor do critério
subjetivo do conceito de consumidor, para admitir a aplicabilidade do CDC nas relações entre fornecedores e
consumidores-empresários em que fique evidenciada a relação de consumo. [...]”.

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sendo “em razão dela que foi editado o CDC, que busca fazer retornar o equilíbrio a essa relação
frequentemente desigual entre consumidor e fornecedor”.
Ainda sobre as assimetrias existentes entre fornecedor e consumidor, para os autores
Brito e Torres (2013, p. 88), o CDC além de resguardar direitos “disciplina as relações entre
consumidores e fornecedores, estabelecendo as diretrizes sobre as quais essas relações estarão
assentadas, a fim de restabelecer o equilíbrio entre esses dois polos”.
Não obstante, de posse do produto ou serviço e tendo grande poderio econômico, os
fornecedores de bens e serviços abrem grande vantagem na relação, cujo consumidor, ora
submisso as suas imposições, resta vulnerável e carente de proteção legal. Sendo assim, o
princípio da vulnerabilidade atua como norteador das relações consumeristas, assegurando à
parte mais fragilizada, amparo legal protetivo.

5. DA CARACTERIZAÇÃO DE SITUAÇÕES DE HIPERVULNERABILIDADE

Como visto, a razão da existência do Código de Defesa do Consumidor é a


vulnerabilidade desse sujeito na relação de consumo perante o fornecedor de produtos e
serviços. Contudo, alguns consumidores possuem esta condição mais acentuada, sendo ainda
mais frágeis e debilitados nas contratações por estarem na situação de hipervulnerabilidade,
prevista no artigo 39, inciso IV do CDC4. Assim, a lei consumerista admite a existência de
certos grupos com maior vulnerabilidade na sociedade de consumo contemporânea.
Entendem os autores Marques, Benjamin e Miragem (2013) serem hipervulneráveis,
um grupo diferenciado de consumidores abrangendo os idosos, pessoas enfermas ou com
necessidades especiais, que requer maior atenção da lei protetiva nas relações. Pode-se incluir
neste rol os consumidores analfabetos, pois estes ficam totalmente alheios ao conteúdo da
avença, em virtude de suas limitações. Já o Ministro Luis Felipe Salomão quando no
julgamento do Recurso Especial nº 1.365.609/SP define hipervulnerabilidade como sendo a
“vulnerabilidade agravada ou potencializada”.
A condição de hipervulnerabilidade do consumidor tem sido utilizada como
fundamento de decisões judiciais, que reconhecem a situação acentuada da fragilidade do
consumidor em virtude de seu estado momentâneo ou permanente. É o caso do julgamento do

4
Estabelecendo situações gerais de hipervulnerabilidade, ao prever que “É vedado ao fornecedor de produtos ou
serviços, dentre outras práticas abusivas: [...]; IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo
em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços”;
(BRASIL, 1990).

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Recurso Especial nº 586.316/MG5 que reconhece a situação de hipervulnerabilidade dos
consumidores portadores de doença celíaca, frente ao descumprimento do dever de informar do
fornecedor.
Logo, a condição de hipervulnerabilidade está relacionada à situação acentuada da
fragilidade do consumidor em virtude de seu estado momentâneo ou permanente, requerendo
maior proteção legal, como também respeito por parte dos fornecedores de bens e serviços nas
relações de consumo, devendo a Lei nº 8.078/1990, servir de parâmetro nas relações.
Assim, a partir do desdobramento da situação de vulnerabilidade, o reconhecimento
legal das diferenças com o grupo de consumidores hipervulneráveis estabelece graus de
proteção diferenciados entre eles, na medida em que estes necessitam de amparo qualificado
pelas normas do CDC, como também, por outras fontes normativas.

6. O RECONHECIMENTO DA APLICABILIDADE DO CDC ÀS INSTITUIÇÕES


BANCÁRIAS E FINANCEIRAS

O conceito de fornecedor é apresentado pelo código de Defesa do Consumidor em


seu artigo 3º qualificando-o como “ toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional
ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção,

5
O STJ tem apresentado importantes decisões que destacam a proteção dos hipervulneráveis, reconhecendo e
tutelando os consumidores que encontram-se em situações distintas. Sobre a matéria, o Ministro Herman
Benjamin ressaltou a situação de hipervulnerabilidade do consumidor, ao proferir voto no REsp 586.316/MG.
Vejamos: “DIREITO DO CONSUMIDOR. ADMINISTRATIVO. NORMAS DE PROTEÇÃO E DEFESA DO
CONSUMIDOR. ORDEM PÚBLICA E INTERESSE SOCIAL. PRINCÍPIO DA VULNERABILIDADE DO
CONSUMIDOR. PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. PRINCÍPIO DA
CONFIANÇA. OBRIGAÇÃO DE SEGURANÇA. DIREITO À INFORMAÇÃO. DEVER POSITIVO DO
FORNECEDOR DE INFORMAR, ADEQUADA E CLARAMENTE, SOBRE RISCOS DE PRODUTOS E
SERVIÇOS. DISTINÇÃO ENTRE INFORMAÇÃO-CONTEÚDO E INFORMAÇÃO-ADVERTÊNCIA.
ROTULAGEM. PROTEÇÃO DE CONSUMIDORES HIPERVULNERÁVEIS. CAMPO DE APLICAÇÃO DA
LEI DO GLÚTEN (LEI 8.543/92 AB-ROGADA PELA LEI 10.674/2003) E EVENTUAL ANTINOMIA COM
O ART. 31 DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. MANDADO DE SEGURANÇA PREVENTIVO.
JUSTO RECEIO DA IMPETRANTE DE OFENSA À SUA LIVRE INICIATIVA E À COMERCIALIZAÇÃO
DE SEUS PRODUTOS. SANÇÕES ADMINISTRATIVAS POR DEIXAR DE ADVERTIR SOBRE OS RISCOS
DO GLÚTEN AOS DOENTES CELÍACOS. INEXISTÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO.
DENEGAÇÃO DA SEGURANÇA.
[...]; 18. Ao Estado Social importam não apenas os vulneráveis, mas sobretudo os hipervulneráveis , pois são esses
que, exatamente por serem minoritários e amiúde discriminados ou ignorados, mais sofrem com a massificação
do consumo e a "pasteurização" das diferenças que caracterizam e enriquecem a sociedade moderna.
19. Ser diferente ou minoria, por doença ou qualquer outra razão, não é ser menos consumidor, nem menos cidadão,
tampouco merecer direitos de segunda classe ou proteção apenas retórica do legislador.
20. O fornecedor tem o dever de informar que o produto ou serviço pode causar malefícios a um grupo de pessoas,
embora não seja prejudicial à generalidade da população, pois o que o ordenamento pretende resguardar não é
somente a vida de muitos, mas também a vida de poucos. [...];”.

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montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou
comercialização de produtos ou prestação de serviços.”.
Uma vez configurado legalmente a figura do Fornecedor como sendo aquele que
desenvolve atividade em suas mais variadas formas, inevitável foi a preocupação do legislador
em definir de maneira expressa, visando eximir qualquer espécie de dúvidas na aplicação da
norma protetiva, o conceito de “ serviços” pois também foi delegado ao fornecer a possibilidade
de prestá-los.
Fruto dessa precaução, surge o §2º do art. 3º do CDC definindo serviço como qualquer
atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza
bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter
trabalhista.
A redação do §2º do art. 3º do CDC, não obteve uma boa recepção , especificamente,
pelos bancos, que passaram a exigir que as “instituições financeiras fossem excluídas do
conceito de fornecedores de serviços, resultando na impetração de uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade – ADI nº2591 formulado pela Confederação Nacional das Instituições
Financeiras (CONSIF) alegando que o vício de inconstitucionalidade estaria na ofensa ao artigo
192 da Carta Magna, pois a regulação do Sistema Financeiro Nacional seria matéria de lei
complementar, e não do CDC, uma lei ordinária.
Dentre as alegações da Confederação Nacional do Sistema Financeiro, além da
necessidade de lei complementar para a criação de novas obrigações impostas aos bancos,
questionava se também se o cliente de instituição financeira poderia ser considerado
consumidor.
Após longos anos de controvérsias, Ação Direta de Inconstitucionalidade n.
2.591/DF, proposta pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro, em face do Presidente
da República e do Congresso Nacional, e que visava extirpar do artigo 3º, §2º da Lei n. 8.078/90
a expressão “inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária”, foi
finalmente julgada improcedente.
Segundo o posicionamento de Cesar Perluzo, o CDC não veio para regular as relações
entre as instituições do Sistema Financeiro Nacional e os clientes sob o ângulo estritamente
financeiro, mas sim para dispor sobre as relações de consumo entre bancos e clientes.
Tal entendimento posteriormente passou a ser sumulado com a edição da Súmula 297
do Superior Tribunal de Justiça-STJ ratificando a aplicação do Código de Defesa do
Consumidor as às instituições financeiras.

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Segundo o posicionamento Ministro Ruy Rosado de Aguiar em julgamento do
Recurso Especial nº 57.974/RS (94.386150)
[...] A instituição bancária, está submetido às disposições do Código de Defesa do
Consumidor, não porque ele seja fornecedor de um produto, mas porque presta um
serviço consumido pelo cliente, que é o consumidor final desses serviços, e seus
direitos devem ser igualmente protegidos como o de qualquer outro, especialmente
porque nas relações bancárias há difusa utilização de contratos de massa e o onde,
com mais evidência, surge desigualdade de forças e a vulnerabilidade do usuário .

Em suma, após longos períodos de discursão, não restam dúvidas que aplicação do
Código de Defesa do Consumidor- CDC a instituição financeira representa um passo valoroso
rumo a manutenção aos direitos do consumidor, tendo em vista a crescente lucratividade dos
estabelecimentos bancários e a situação de vulnerabilidade de seus clientes – usuários.

7. BREVES REFLEXÕES A RESPEITO DA VULNERABILIDADE DO


CONSUMIDOR DIANTE A IMPOSIÇÃO DA ACEITAÇÃO DA OFERTA DA VENDA
CASADA COMO REQUISITO PARA APROVAÇÃO DA LIBERAÇÃO DE UM
CRÉDITO.

Após calorosos debates quanto a aplicação do Código de Defesa do Consumidor-CDC,


visando estabelecer uma relação de equilíbrio entre os contratantes e os contratados,
objetivando coibir abusos garantindo os direitos dos menos favorecidos na relação de consumo
e as instituições financeiras, ainda é possível identificarmos a prática comerciais consideradas
abusivas, por partes das instituições financeiras, que, continuam a estipular cláusulas abusivas
em seus contratos bancários, ferindo a súmula 297 do STJ, conhecida como ADI dos bancos.
As cláusulas abusivas revelam-se, sobretudo na ocasião contratual, pois é no momento
que se firma o contrato com o consumidor, que os entes financeiros e bancários, desrespeitando
o CDC, transferem encargos inerentes as suas próprias atividades ao contratante de seus
serviços. Assim, é inevitável a assimetria de forças, sobretudo nas posições contratuais, que
desequilibra a relação de consumo.
O desequilíbrio nas relações de consumo entre clientes e bancos pode ser analisada
pelos dados mensais emitidos pelo Banco Central (BC) em 2016 que de acordo com a sua

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central de atendimento ao Consumidor, foram registradas 2.792 reclamações, envolvendo a
oferta ou prestação de serviços6.
Na verdade, o crescente índice de reclamações dos consumidores, envolvendo a má
prestação de serviços, não é algo surpreendedor, segundo Fundação Procon (Órgão de Defesa
e Proteção do Consumidor) as instituições financeiras vêm liderando o ranking de reclamações,
perdendo apenas para as empresas de telecomunicações.
Dentre as principais reclamações do consumidor, pioneiramente, encontram -se as
cobranças das taxas consideradas indevidas na celebração dos contratos de financiamentos.
O consumidor na ânsia da obtenção de um crédito torna-se mais vulnerável a adesão
de propostas de serviços, tipicamente conhecidas como “Venda Casada’’ que seria o ato de
condicionar a compra de um produto ou serviço à aquisição de outro, sem necessidade técnica
para isso. Em comum, todas essas situações inibem a liberdade de escolha do consumidor. Por
isso, a venda casada é considerada um crime contra a ordem econômica e contra as relações de
consumo.
Para um melhor entendimento da situação de vulnerabilidade do consumidor frente às
práticas consideradas abusivas, percebe-se que o Código de Defesa do Consumidor - CDC
demonstrou atenção especial quanto a prática proibida, popularmente conhecida no mercado
financeiro como venda casada., traduzindo em seu o artigo 39, I, do Código de Defesa do
Consumidor in “ É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas
abusivas: I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro
produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos”
A explicação de tal preceito é feita por (Magela. 2008 p. 74) “Quer-se evitar que o
consumidor, para ter acesso ao produto ou serviço que efetivamente deseja, tenha de arcar com
o ônus de adquirir outro, não de sua eleição, mas imposto pelo fornecedor como condição à
usufruirão do desejado”
Em continuidade ao tema, a proibição da prática da venda casada também é tipificada
em âmbito penal através da 8137/1990, onde o sujeito ativo deste crime é o fornecedor ou o
prestador de serviços, conceito esse trazido pelo Estatuto Consumerista em seu artigo 3º, o qual
condiciona à venda de um produto a aquisição de outro.

6
Procon orienta consumidores sobre venda casada, disponível em:
http://proconcastelo.es.gov.br/site/Noticia.aspx?id=78 < Acesso em: 28 de setembro de 2016.

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O referido dispositivo penal trata seu art. 5º, incisos II e III, a constituição de crime a
prática de a subordinar a venda de bem ou a utilização de serviço à aquisição de outro bem, ou
ao uso de determinado serviço; além de sujeitar a venda de bem ou a utilização de serviço à
aquisição de quantidade arbitrariamente determinada; com pena de detenção de 2 (dois) a 5
(cinco) anos, ou multa.
Nos tempos atuais, com as constantes modificações e facilidades junto ao mercado, é
indiscutível que o consumo é uma realidade cotidiana, pois com razão já disse Almeida (2009,
p. 1) “é verdadeira a afirmação de que todos nós somos consumidores”. Com o aquecimento do
mercado econômico em uma sociedade movida pelo consumismo, destaca-se que um grande
número de pessoas que recorre aos financiamentos ou empréstimos para adquirir o bem
desejado, ficando a mercê de aceitar qualquer oferta de serviços, mesmo que não almejada no
momento.
A apelação abusiva dos bancos no oferecimento de serviços acontece nas mais
variadas modalidades de empréstimos, sendo viável, neste momento, destacar a obtenção de
empréstimos, na modalidade consignado em folha de pagamento do cliente, onde banco
indiretamente condiciona a aprovação do pedido de empréstimo, desde que seja feita na
modalidade cartão de crédito. Acontece que, preliminarmente, a intenção do consumidor era
adquirir empréstimo consignado e não um cartão de crédito.
Essa conexão de serviços, acarreta ao consumidor ter que suportar todos os encargos
de taxas juros, saldo devedor, número e valor das parcelas, eventuais taxas administrativas e
impostos incidentes. De fato, a maneira de se ofertar o crédito pelo banco acaba por tornar a
dívida infindável. Ainda se não bastasse, o empréstimo consignado não deve ser condicionado
à aceitação de cartão de crédito, sob pena de incidência da proibida "venda casada”.
Segundo os ensinamentos (Marques 2013 p. 763) “A prática de venda casada não pode
ser tolerada, ‘mesmo se há uma benesse para o consumidor incluída nesta prática abusiva, pois
apenas os limites quantitativos é que podem ser valorados como justificados ou com justa
causa” De fato, não se configuraria um benefício ao consumidor arcar com todas as taxas
alusivas ao uso de um cartão de crédito, se o mesmo não foi solicitado, e sim imposto ao
consumidor.
O consumidor tem o direito à informação adequada e clara e clara sobre o produto ou
serviço que se pretende consumir, não obstante, existe uma categoria de consumidor que vem
sendo bastante prejudicada, por não sabe lidar com as artimanhas das instituições financeiras
utilizadas na hora da liberação crédito consignado, é o idoso, que se encontram notadamente

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fragilizados nas relações contratuais, de maneira geral, em virtude de limitações financeiras,
sociais e principalmente decorrente da idade, o que dificulta ainda mais a leitura e compreensão
das cláusulas preestabelecidas na avença contratual e da necessidade de se adquirir mais um
serviço.
A prática abusiva denominada como venda casada, apesar de toda a fiscalização por
parte dos órgãos de defesa do Consumidor (Procon), ainda insiste em ser algo rotineiro no
mundo comercial bancário.
Vejamos o caso da condenação da Caixa Econômica Federal (CEF) por Dano Moral
Coletivo. Após apuração de relatos e analise de documentação restou comprovado, de acordo
com a denúncia formulada pelo Ministério Público Federal (MPF) que a referida instituição
financeira exigia dos mutuários a abertura da conta corrente na instituição financeira para o
pagamento das parcelas do crédito, ora financiado, para que o mesmo fosse descontado por
meio do débito automático, além de impor aos mutuários a contratação do seguro de crédito
interno.
Ora, o fato do consumidor ter adquirido o empréstimo numa instituição financeira não
lhe obriga a pagar as parcelas do débito, restritivamente, no banco financiador, sob pena de ter
o seu crédito vetado, tal exigência retira do consumidor qualquer liberdade de escolha, não
restando dúvida que o fato da Caixa Econômica Federal condicionar a concessão do empréstimo
da linha de crédito a abertura de uma conta corrente caracteriza-se a prática de venda casada,
mesmo que de forma velada.
Judicialmente, eventuais repressões as práticas comerciais abusivas que prestigiam a
vulnerabilidade do consumidor frente à prática de venda casada, merecem um destaque
especial, como é o caso da decisão do Superior Tribunal de Justiça - STJ, apreciando ação de
revisão de contrato de mutuo, pedindo a substituição do reajuste pela TR (Taxa Referencial)
pelo INPC, a aplicação correta dos valores do seguro habitacional e o direito de escolher o
seguro habitacional que melhor lhes conviesse.
Na verdade, apesar de o seguro habitacional ser obrigatório por lei no Sistema
Financeiro de Habitação (SFH), o mutuário não é obrigado a adquirir esse seguro da mesma
entidade que financia o imóvel ou da seguradora por ela indicada, entendimento que acabou
concretizado com a edição da súmula 473 do STJ.
Quando questionados quanto à manutenção da prática da venda casada, os bancos
apelam para o discurso que ao ser oferecido tal serviço, continua sendo livre e espontânea a
vontade de aceitar ou recusar o serviço por parte do consumidor, que as condições ajustadas na

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hora de se obter um crédito financiado fazem parte do espirito de livre negociação entre as
partes, que deve ser respeitado e cumprido em face do princípio "pacta sunt servanda”.
Não obstante, o fato de o consumidor consentir com o ato abusivo ao adquirir o produto
não tem o condão de suprir a sua abusividade. A autonomia privada não pode ser mais
considerada como um dogma para as relações civis, principalmente com o advento da releitura
do Direito Civil à luz da Constituição. Conforme lição de Gustavo Tepedino, essa mudança de
entendimento representa a incorporação de valores não-patrimoniais, principalmente a
dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da sua personalidade, direitos sociais e a
justiça distributiva, objetivos pelos quais os agentes econômicos também devem cooperar para
a sua consecução.
Como se não bastassem os exemplos citados acima, ainda subsistem por parte das
instituições financeiras, em casos de financiamentos para a compra de um automóvel ou
motocicleta a vinculação da liberação do crédito condicionado a aceitação de um seguro de
vida.
É, sobretudo, o momento oportuno de se oferecer “a casadinha de serviços”, e porque
não, vinculá-lo a aprovação do financiamento. Neste momento, o consumidor encontra-se
vulnerável ao oferecimento de qualquer oferta, que além de apresentar-se como imposição a
aprovação do seu pedido de crédito, também serve para amenizar os danos sofridos, em caso
de uso imprudente ou indevido do bem financiado.
Continuando no discursão da problemática, salutar citar o posicionamento da 3º Turma
Recursal do Tribunal de Justiça de Justiça do Distrito Federal - DF, que aprecia em fase de
Recurso Inominado pedido de anulação de negócio Jurídico realizado entre cliente e banco.
Trata-se da realização de um empréstimo consignado que foi condicionado a contratação de um
seguro, que segundo o entendimento do poder judiciário houve falha na prestação do serviço
bancário, configurando a responsabilidade objetiva por vício na prestação de serviço bancário
devendo a prestadora de serviços responder pelos danos que causar ao consumidor, uma vez
que ausência de esclarecimento ao consumidor quanto a verdadeira necessidade da aquisição
do seguro.
Nestes termos, a referida turma recursal constata a vulnerabilidade do consumidor
diante da prática da “venda casada", ao estabelecer que é vedado ao fornecedor "condicionar o
fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como,
sem justa causa, a limites quantitativos.

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Ainda quanto aos julgados citados, a legislação brasileira em seu o artigo 52 e incisos
do CDC, reforça o direito à informação ao consumidor, determinando a explicitação das
condições a serem contratadas para que a escolha do consumidor seja a mais racional possível.
E, por fim, sendo o consumidor considerado parte hipossuficiente na relação de
consumo e, seguindo o princípio da vulnerabilidade, torna-se inaceitável qualquer tentativa por
parte das instituições financeiras a utilização das técnicas de negociação, que venha influenciar
o cliente a aceitar a vinculação de serviços extras ao seu pedido de liberação de crédito.

8- CONCLUSÃO

A pesquisa se absteve em analisar a prática comercial abusiva denominada de venda


casada, em desfavor do consumidor, á luz dos princípios do direito civil constitucional,
utilizando-se da técnica do diálogo das fontes para harmonizar a aplicação concomitante dos
dois diplomas legais, tendo em vista que, a proteção do consumidor está respaldada na
Constituição Federal de 1988, devendo ser observado os princípios que regulam as relações de
consumo de maneira conexa com toda a ordem jurídica.
Utilizando-se da interpretação doutrinária e legal no tocante a configuração das
práticas abusivas do mercado, em especial , a venda casada, reproduzida na pesquisa como o
ato de condicionar a compra de um produto ou serviço à aquisição de outro, sem necessidade
técnica para isso, visualiza-se na reiteração dessa prática , a violação dos princípios da boa-fé
e da equidade, causando desequilíbrio na relação consumerista, onerando excessivamente o
consumidor, enfatizando o abuso do direito cometido pelo fornecedor no exercício de sua
atividade comercial. Pois o Código de Defesa do Consumidor, em nenhum momento, exclui a
principiologia dos contratos de direito civil.
Na sequência, menciona-se o atual desdobramento da situação de vulnerabilidade do
consumidor, reconhecendo na relação bancária, uma acentuada fragilidade desse sujeito, que se
encontra, diretamente ligada ao “estado de risco” nas contratações, passando a elevá-lo a estado
de hipervulnerabilidade.
Uma vez reconhecida a situação de hipervulnerabilidade do consumidor perante as
relações bancárias, segue-se ao texto, um breve discursão quanto ao reconhecimento da
aplicabilidade do CDC às instituições bancárias e financeiras, fazendo-se uso da citação do
entendimento da súmula de números 297 do Superior Tribunal de Justiça- STJ.

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E ainda, sob o foco do discursão central, a título de aprimoramento do tema, os
principais casos de condenação as instituições financeiras pela prática abusiva da venda casada,
passam a ser citados, a exemplo da condenação da Caixa Econômica Federal (CEF) por Dano
Moral Coletivo devido a exigência direcionados aos mutuários a abertura da conta corrente na
instituição financeira para o pagamento das parcelas do crédito.
Dando prosseguimento a análise da citação dos julgados, a decisão do Superior
Tribunal de Justiça - STJ, apreciando ação de revisão de contrato de mutuo cumulado com o
pedido do direito de escolher o seguro habitacional, respeitando a liberdade de contratação do
consumidor, é destacada pela pesquisa, tomando como base a súmula 473 do STJ.
E por fim, a pesquisa conclui que apesar de não haver discrepâncias de entendimento
quanto definição e análise da denominada venda casada, uma vez que a doutrina e
jurisprudência se utilizam dos mesmos critérios conceituais, ainda persiste no mercado
financeiros, em especial nas práticas bancárias, a reiteração da conduta desleal do fornecedor
de produtos e serviço.
De fato, a imposição da aceitação da oferta da venda casada como requisito
condicionante para aprovação ou liberação de outro serviço, inicialmente não pretendia pelo
consumidor caracteriza um abuso comercial, que retira a liberdade de escolha do consumidor
acentuando a sua vulnerabilidade.
Após análise das principais decisões proferidas pelo Poder Judiciário, no tocante a
prática abusiva, em questão, reflexões a respeito da vulnerabilidade do consumidor, diante a
imposição da aceitação da oferta da venda casada como requisito condicionante para aprovação
da liberação de um crédito.

REFERÊNCIAS

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CONFLITOS JURÍDICOS DECORRENTES DOS CONTRATOS
CELEBRADOS EM SITES DE COMPRAS COLETIVAS

André Augusto Lins da Costa Almeida1


Mônica Oliveira da Silva2

RESUMO: Este artigo apresenta as dificuldades enfrentadas pela era digital,


especialmente no tocante aos sites de compras coletivas e aos desafios que esse negócio
impõem ao mundo jurídico em razão de sua forma de celebração e da sua acelerada
popularização, ensejando a proteção jurídica dos hipervulneráveis.
Palavras-chave: comércio eletrônico; compras coletivas; Direito Eletrônico; Marco Civil
da Internet.

ABSTRACT: This article presents the difficulties faced by the digital age, particularly
with regard to collective shopping sites and the challenges that business imposes on the
legal world because of their way of celebration and its rapid popularization, allowing for
the legal and social protection of hypervulnerable.
Keywords: e-commerce; collective purchase; Electronic Law; Civil rights framework for
the internet.

1- INTRODUÇÃO
Com a proposta de descontos de até 90% no preço dos produtos, os sites de
compras coletivas ganham a cada dia mais espaço no mercado. O objetivo é atrair o maior
número de pessoas possível para que empresas dos mais diferentes segmentos possam
divulgar suas marcas e produtos e aquecer suas vendas. A ânsia de adquirir o produto bem
abaixo do preço de mercado leva milhares de internautas a compras por impulso e na
maioria das vezes sem o conhecimento dos seus direitos, na total ignorância das
conseqüências desses contratos.
Diante desse contexto, o artigo será dividido em três etapas: na primeira
analisaremos o comportamento desses contratos eletrônicos antes do Marco Civil, na
segunda esclareceremos como funciona o procedimento das compras realizadas em grupo

1
Especialista em Direito e servidor público do Ministério Público do Estado da Paraíba.
2
Advogada.

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através de sites de compras coletivas e na terceira o que mudou após a publicação da Lei:
12.965/14, conhecida popularmente como “Marco Civil”.

2 CONTRATOS ELETRÔNICOS, ESSA DENOMINAÇÃO É ADEQUADA?


É pacífico que na doutrina majoritária que o contrato é uma declaração de vontade
destinada a produzir efeitos jurídicos. Porém em se tratando de contratos realizados por
meio da internet, encontramos certa divergência doutrinária. Ocorre que o comércio
eletrônico mais parece um espaço onde se realizam negócios jurídicos, podendo gerar
contrato de compra e venda, de prestação de serviços, de cessão de uso, entre outros.
Portanto, o fato de serem realizados por meio eletrônico não lhes retiram as características
que lhe dão nome e classificação.
Os contratos são realizados por meio eletrônico, mas não perdem a sua natureza
jurídica de contratos, seja qual for o motivo de sua celebração. Os realizados através de
sites de compras coletivas são contratos de compra e venda, por excelência, antes de
qualquer outra denominação e serão alcançados por toda proteção dada pela legislação
constitucional e infraconstitucional.
Patrícia Peck enfatiza que:
“A análise dos contratos eletrônicos tem a ver, num primeiro momento, com o
próprio entendimento jurídico da validade dos documentos eletrônicos. Aonde, de todas
as relações digitais atuais, que vão desde uma transferência bancária até uma compra num
site de e-commerce, se passa pela existência de uma tecnologia capaz de produzir uma
forma segura de transmissão, via internet, dos documentos e registros que representam
um determinado negócio jurídico” [3].
Para Erica Aoki “contrato eletrônico nada mais é do que aquele firmado no espaço
cibernético, e não difere de qualquer outro contrato. Ele apenas é firmado em um meio
que não foi previsto quando a legislação contratual tradicional se desenvolveu” [4].
Segundo Guilherme Magalhães Martins:
“A distinção entre os contratos eletrônicos e os tradicionais está no meio utilizado
para a manifestação da vontade e na instrumentalidade do contrato- o que assegura aos
contratos eletrônicos características peculiares- definimos como contratos eletrônicos os
acordos entre duas ou mais pessoas para, entre si, constituírem, modificarem ou
extinguirem um vínculo jurídico, de natureza patrimonial, expressando suas respectivas
declarações de vontade por computadores interligados entre si” [5].

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Além da problemática com relação à denominação “contrato eletrônico”, há ainda
outra questão a ser tratada que é o lapso temporal em que esses contratos são realizados.
É preciso definir se a declaração de vontade do contratante é feita em tempo real ou não.
Trata-se de contratos entre presentes?
A contratação on line, em tempo real, é classificada como entre presentes, mas
quando há um retardo entre a manifestação do aceitante e o conhecimento da oferta por
parte de quem a faz, estamos diante de contrato entre ausentes.
Estaríamos enfrentando uma nova crise dos contratos? O fato é que, o negócio via
internet, desde que comprovadas a proposta e a aceitação, em princípio, existe e é
plenamente válido.

3 DESAFIOS DECORRENTES DOS CONTRATOS ELETRÔNICOS

Durante o período da Revolução industrial o mundo viveu uma forte mudança na


concepção dos contratos. Era um momento de transição onde ficava para trás uma
economia frágil e escassa, porém de relações bastante personalizadas enquanto que as
indústrias ganhavam espaço com suas produções em série. Nesse momento, uma nova
relação entre produtores e consumidores se formou: uma relação despersonalizada. As
indústrias não sabiam exatamente para quem estavam fabricando seus produtos e vendiam
sem conhecer seus compradores, uma vez que a produção em massa impossibilitava o
estreitamento dessas relações. Nesse contexto, houve um chamamento fundamental do
princípio da boa fé objetiva, que viabilizava essas relações e de certa forma trazia uma
personalização, pois independente para quem se vendia era necessário atingir as
expectativas e os anseios do contratante.
Não há mais como questionarmos que, definitivamente entramos em um novo
momento de comercialização- a era dos negócios digitais- e com ela um grande desafio
para o mundo jurídico: os problemas derivados das relações que nascem através desses
negócios. Com a popularização do comércio virtual não existem mais fronteiras entre o
consumidor e os produtores/fornecedores e se no período da Revolução Industrial
vivíamos uma despersonalização, atualmente enfrentamos desafios ainda maiores: a
desterritorialização e a desmaterialização dos contratos. Poderíamos nos arriscar em falar
que estamos vivendo o momento da 3ª Revolução Industrial, o período pós-moderno,
onde aquele que não possui uma conta de e-mail ou um cartão de crédito parece não existir
para a sociedade.

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Como se não bastassem esses desafios para a sociedade, ainda temos que enfrentar
uma desconfiança permanente nesses negócios realizados via internet. O princípio da boa
fé objetiva parece ter “caducado”, pois não existe entre as pessoas a presunção de boa fé,
mas a incredulidade na honestidade, confiança e lealdade. E diante desses conflitos de
sentimentos se faz presente o desconforto de contratar tendo que prever todas as
possibilidades de falhas decorrentes dessas relações, bem como todo possível amparo
legal diante de alguma imprevisão.
Mas como falar de possibilidades de discussão de contrato em se tratando de
negócios realizados através da internet? Se a aceitação do contrato está a um “clic” do
mouse, sem qualquer oportunidade de discutir as condições e muito menos realizar
qualquer tipo de alteração? Impossível. Resta ao consumidor se contentar com aquelas
condições e, no surgimento de eventual problema, buscar amparo na nossa legislação que
nem sempre se mostra adequada às situações decorrentes dos contratos eletrônicos.
Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002 se criou uma grande expectativa
acerca dessa nova concepção contratual, todavia não houve mudanças significativas, uma
vez que o modelo contratual se generalizou para todos os contratos privados brasileiros,
segundo Claudia Lima Marques, que ainda fala sobre o fato dos contratos independentes
de quem esteja celebrando, seja entre dois iguais, dois empresários, dois diferentes
tenham o mesmo modelo, resultando dessa generalização uma acentuada desconstrução
[1].
Ao discorrer sobre os desafios surgidos com o nascimento do comércio via
internet, o mestre Silvio Venosa pontuou que uma das maiores dificuldades será mensurar
a real intenção de contratar, cuja tarefa não caberá a uma norma específica, mas a técnicos
em informática, que na sua maioria trabalham para empresas que se encontram do lado
oposto ao dos consumidores [2].
O ciberespaço é tão movimentado quanto o nosso espaço físico, cheio de relações
sociais e comerciais, acordos e desacordos e até atos delituosos. Os crimes são
inumeráveis, podendo ir de extorsão, estelionato, passando por todo tipo de fraude, indo
até uma invasão internacional de privacidade entre Estados. Práticas antigas com novas
roupagens, assessoradas pelo tecnologia e protegidas pelo anonimato.
De acordo com SCHINEIER (2001, p.255), por maior que seja a impressão de
segurança transmitida pelos softwares, as pessoas, usuárias dos serviços ofertados,
constitui a parte mais frágil desta relação. De nada adianta investir em mecanismos mais
seguros se o fator humano for ignorado.

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Com o advento do Marco Civil, o maior desafio vislumbrado é como estabelecer
regras no tocante à utilização do ciberespaço, sem inibir os avanços econômicos, bem
como, tolher a liberdade de expressão. O alto fluxo de informações, sem qualquer critério
seletivo, faz da internet um deus e ao mesmo tempo o demônio, atuando como principal
agente de transformações nas relações, seja no âmbito social, cultural, econômico e
político.

4 O PROCEDIMENTO DA COMPRA COLETIVA À LUZ DOS PRINCÍPIOS DO


NOVO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
O atual Código Civil é norteado por três princípios basilares de acordo com o
professor Miguel Reale, quais sejam: a sociabilidade, a operabilidade e a eticidade. A
começar pela operabilidade, o escopo desse princípio é que o código seja operável, ou
seja, de fácil manuseio, onde o cidadão comum, ao ter o contato com a redação dos artigos
possa interpretar sem a necessidade de um “tradutor jurídico”, possa compreender com
facilidade, um exemplo de operabilidade do Código é a diferenciação entre prescrição e
decadência. Os artigos 205 e 206 falam sobre prazos prescricionais e aquelas são as
situações em que ocorrerá prescrição. Nos demais casos, teremos prazos decadenciais.
Essa foi uma maneira de facilitar, de tornar operável dois institutos difíceis de diferenciar
como a prescrição e a decadência. No que diz respeito ao princípio da eticidade, é
necessário que as relações se estabeleçam de maneira ética, proba, de modo que seja
afastado todo indício de má fé, desonestidade, em especial no que se refere à formação
dos contratos, onde deverá haver a presença da boa fé objetiva. E por fim, o princípio da
sociabilidade, onde o Código Civil demonstra uma preocupação notória com a função
social dos contratos. Afinal, o que significa na vida prática do cidadão, a função social?
Trata-se de assunto muito mais objetivo do que teórico. É impossível tratar de
sociabilidade sem falar sobre obrigações. Vivemos cercados de obrigações oriundas de
contratos firmados no nosso cotidiano, contratos tais que passam despercebidos mais que
não deixam de gerar deveres por todos os lados.
No que tange o comércio eletrônico, em especial o mercado de compra coletiva,
esse contrato é muito mais latente e muito menos materializado. E talvez, esse seja o
principal fato de a maior parte dos consumidores nem desconfiarem que na compra de
uma promoção em sítios dessa natureza celebrou o mais clássico de todos os contratos,
aquele em que há obrigações e direitos recíprocos, contrato este em que deve ser exercido
sob a ótica da função social dos contratos e da boa fé objetiva, com todos os seus deveres

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anexos, ou seja, deveres que vão além da compra e venda de um produto, mas que alcança
tudo aquilo que tange a essa compra e venda, um dever lateral, que talvez nem esteja
expresso, mas que deve ser cumprido em função da boa fé objetiva, que, inclusive, deve
ser exercida antes, durante e após a realização do contrato.
O dever central de um contrato de compra coletiva se resume em: aquele que
vende entregar um “cupom”, enquanto que aquele que compra realizar o pagamento.
Todavia, esse contrato gera outra série de obrigações secundárias, ou deveres anexos. A
garantia da prestação do serviço/produto adquirido, a prestação de informações claras e
verdadeiras acerca da aquisição, o serviço de pós venda, a fidelidade a oferta anunciada,
regras de atendimento diferenciadas para o cliente que vai ao estabelecimento e o cliente
que compra a oferta, dias específicos para a utilização, entre outros acontecimentos que
não estão legalmente amparados, mas que esboçam certa discriminação com o
consumidor que adquiriu a oferta, motivado pelo desconto.
Ora, não é necessária muita pesquisa para encontrar uma enxurrada de
reclamações advindas de consumidores que participaram de compras coletivas e seus
relatos que mais parecem frustrantes desabafos do que propriamente registros. Essas
reclamações representam um termômetro que mensura o comportamento desses contratos
celebrados diariamente, movimentando milhões de reais e lesando uma série de
consumidores que, além de desconhecerem seus direitos mal sabem a quem procurar para
reclamá-los.

5 DESAFIOS DAS COMPRAS COLETIVAS

Vimos no tópico anterior acerca dos principais desafios enfrentado pelo contratos
eletronicos. No que se refere aos contratos de compra coletiva, além de todos os
supracitados podemos acrescentar ainda outros, inerentes aos contratos de compras
coletivas. Vamos salientar alguns deles e discorrer sobre os pincipais pontos nevráugicos
nessas relações:
- Sites que induzem o consumidor em erro ao divulgar imagens extremamente
convidativas de estabelecimentos dos mais diversos segmentos, pratos apetitosos,
tratamentos de beleza milagrosos, quando na realidade nao passam de imagens
ilustrativas, o que anda na margem da porpaganda enganosa, fazendo o cliente consumir
pelo impulso do visual, mas causando posteriormente momento de extrema frustração
para o consumidor de boa- fé;

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- A ausência na clareza nas informações no que se refere às campanhas, uma vez
que a oferta é anunciada em destaque carnavalesco, em contrapartida a regulamentação
da campanha, asssuntos referentes à prazo, tempo para consumo, detalhes sobre o
estabelecimento ofertante aparecem de forma abreviada, em letrinhas bastante tímidas;
- Falando em limitação estabelecida para uso, aqui podemos levantar um problema
que abarrotaram os sites de reclamações nas festas de fim de ano. Como falar em prazo
para uso de um cupom de tratamento de beleza na fluencia das festas natalinas, sendo que
a venda foi maior do que a capacidade de atendimento em alguns estabelecimento e as
clientes adquiriram seus cupons para usufruirem neste período, inviabilizando o
atendimeto de todos que compraram cupons. Resultado: imensa insatisfação dos
consumidores, incapacidade para atendimento de todos e o maior absurdo; alguns cupons
chegaram a expirar ( os cupons possuem prazo para utilização), ou seja, além de não
conseguirem a satisfação no atendimento ainda perderam o investimento na aquisição do
cupom;
-Outro problema é o cronômetro ativado no momento que começa a vigorar a
oferta. O consumidor, certamente impulsionado pela contagem regressiva para o
encerramento da campanha, poderá realizar uma compra por impulso, adquirir um pacote
de viagem, por exemplo, atraído pelo preço e tempo de encerramento da promoção, sem
preocupar-se com os documentos exigidos para o ingresso no local do destino, podendo
acarretar prejuízo irreparável se não conseguir o visto de entrada para determinado país
ou outro documento exigido.
- Adentrando na questão do prazo para o aproveitamento do cupom, sob pena de
expiração, invalidação daquele cupom, sem arriscarmos adentrar na esfera penal, mas
nesta hipótese, não estaríamos diante de uma situação de enriquecimento sem causa? Ora,
caro leitor, o cliente pagou, houve ali uma despesa com aquela aquisição e esta não
ocorreu. Na maior parte das situações não há sequer o reembolso da despesa, mesmo o
cliente não utilizando o produto ou serviço pela perda do prazo para sua utilização.

6 MOMENTO DE NOVA CRISE DOS CONTRATOS

Trazendo consigo uma inegável influência sobre as relações sociais, a internet


deve, desde já, ser objeto de estudos mais intenso por parte dos juristas, onde a legislação
deve acompanhar esse acelerado crescimento, quase que desenfreado. Enfrentamos sérios
problemas no tocante a desmaterialização, despersonalização e desterritorialização em

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grau bem mais acentuado do que em outros momentos históricos. Imagine um lugar (se é
que podemos assim chamar) onde não existe a menor certeza da identidade das partes
contratantes. Um lugar onde os milhares de quilômetros de distância entre as pessoas são
reduzidos a “bytes” que conectam pessoas simultaneamente. Um lugar onde os infratores
não deixam digitais e a mais eficiente de todas as perícias teria dificuldades para
desvendá-los. Um lugar sem papéis timbrados, assinaturas ou reconhecimento de firma,
contratos celebrados sem testemunhas, sem qualquer vestígio palpável. Pois é, este é o
cenário desenhado em volta dos contratos celebrados pelo espaço cibernético.
Nem mesmo o mais visionário de todos os homens imaginou um lugar assim. Não
se imaginava a capacidade de produzir tamanha tecnologia em um espaço inesgotável, do
ponto de vista de exploração econômica e até criar comportamentos e vocábulos
específicos para esse novo espaço. É devido a essa velocidade absurda que se desenvolve
esse mercado que a ciência jurídica se vê na responsabilidade de proporcionar a tão
almejada segurança jurídica que seus consumidores necessitam.
Observemos as palavras de Silvio Alexandre comentando sobre acerca desse
momento:
“O ciberespaço é algo amplo e bastante complexo, ele cristaliza a rede atual de
linhas de comunicação e bancos de dados num pseudocosmos colorido, uma ‘alucinação
consensual’, através da qual pessoas e informações circulam como se fossem a mesma
coisa. O ciberespaço é a pátria e a terra natal da era da informação- o lugar onde os
cidadãos do futuro estão destinados a habitar, sem a real necessidade de se identificar”
[6].

7 MARCO CIVIL E OS REFLEXOS DESSA LEGISLAÇÃO NOS CONTRATOS


ELETRÔNICOS

Impende ressaltar a atenção que foi dispensada pelo Poder Legislativo no


desenvolvimento da regulamentação de Lei para balizar as atividades no ciberespaço.
Cerca de 26 propostas distintas foram apresentadas sobre o tema. Também contou com a
participação da sociedade, que registrou muitos comentários repudiando à iniciativa de
regulamentação com a alegação de que o Marco Civil tolheria a liberdade de expressão e
violaria a privacidade. No entanto, coube aos defensores da criação da Legislação levantar
a bandeira da segurança para quem utiliza o ciberespaço ao ponto que assegura os direitos
fundamentais elencados na nossa Constituição.

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Com o surgimento da Lei 12.965/14, criou-se uma expectativa de proteção para
os usuários da rede, em especial, para aqueles que a utilizam para a celebração de
negócios. Mas ao analisarmos o fato de que o projeto levou mais de três anos para ser
apreciado e transformado em Lei, bem como o momento de tensão no qual foi aprovado,
podemos desconfiar do cunho político por trás de sua vigência. O fato é que, o projeto só
ganhou força após a descoberta de práticas de espionagem usadas pelo governo americano
no Brasil e em outros países. Coincidência ou não, a princípio, numa análise rasa,
podemos identificar que a proteção ao consumidor foi o último fator motivacional para a
publicação da Lei (se é que houve essa preocupação em algum momento).

7.1 PRINCÍPIOS QUE REGEM A LEI 12.965/14

No que se refere aos princípios que norteiam o Marco Civil da internet, podemos
nos arriscar afirmando que eles possuem forte influência constitucional e que o ponto alto
seria a garantia da proteção da privacidade e informações pessoais dos usuários. A
liberdade de expressão é outro fator com inspiração nos direitos fundamentais elencados
na Constituição. Esses pontos, podemos encontrar no primeiro capítulo da referida Lei,
mais especificamente em seu art. 3o, senão, vejamos:
Art. 3o - A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes
princípios:
I - garantia da liberdade de expressão, comunicação e
manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal;
II - proteção da privacidade;
III - proteção dos dados pessoais, na forma da lei;
IV - preservação e garantia da neutralidade de rede;
V - preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da
rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões
internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas;
VI - responsabilização dos agentes de acordo com suas
atividades, nos termos da lei;
VII - preservação da natureza participativa da rede;
VIII - liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet,
desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos
nesta Lei.

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Os três princípios norteadores podem ser destacados. Dentre entre eles estão:
liberdade de expressão; Privacidade e Neutralidade da rede.
A liberdade de expressão consiste basicamente em garantir que todos os usuários
da rede tenham igualdade em seu direito de difundir informações. Para que isso fosse
proporcionado, os conteúdos publicados só poderão ser retirados com autorização do
autor ou com ordem judicial o ponto que os provedores não poderão ser responsabilizados
pelas publicações de seus usuários.
No tocante à privacidade, tal princípio tem como escopo garantir que provedores
e sites não venham utilizar dados do usuário com fins comerciais, mas têm obrigação de
guardar seus dados por pelo menos seis meses. Tal princípio também submete as
empresas estrangeiras à legislação brasileira, ainda que as suas bases de dados estejam
fora do país.
Por fim, o princípio da neutralidade da rede visa estabelecer certa proteção ao
consumidor de serviços de internet, pois impedem que provedores venham cobrar valores
diferentes dos usuário tendo como parâmetro o que acessam. Isso quer dizer que a
empresa não pode vender pacotes de serviços mais barato para quem utiliza apenas redes
sociais, cobrando outro preço para aqueles que precisam da internet para desenvolver suas
atividades profissionais, por exemplo.
De pronto, podemos analisar que, o consumidor que celebra negócio jurídico
através da internet continuou, de certa forma, sem a proteção legislativa, pois tais
princípio em nada visa amparar a parte hipossuficiente da relação, limitando-se a proteger
os direitos fundamentais, de forma mais genérica e isonômica.
No capítulo 2 da Lei em comento ficou estampado os direitos e
deveres dos usuários, sendo fortemente irrigado, novamente, pela
Constituição Federal. No início, já fala sobre o exercício da
cidadania, afirmando que o acesso à internet é essencial ao seu
exercício. Vejamos:
Art. 7o O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania,
e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:
I - inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação;
II - inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela
internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei;

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III - inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas
armazenadas, salvo por ordem judicial;
IV - não suspensão da conexão à internet, salvo por débito
diretamente decorrente de sua utilização;
V - manutenção da qualidade contratada da conexão à internet;
VI - informações claras e completas constantes dos contratos de
prestação de serviços, com detalhamento sobre o regime de
proteção aos registros de conexão e aos registros de acesso a
aplicações de internet, bem como sobre práticas de gerenciamento
da rede que possam afetar sua qualidade;
VII - não fornecimento a terceiros de seus dados pessoais,
inclusive registros de conexão, e de acesso a aplicações de
internet, salvo mediante consentimento livre, expresso e
informado ou nas hipóteses previstas em lei;
VIII - informações claras e completas sobre coleta, uso,
armazenamento, tratamento e proteção de seus dados pessoais,
que somente poderão ser utilizados para finalidades que:
a) justifiquem sua coleta;
b) não sejam vedadas pela legislação; e
c) estejam especificadas nos contratos de prestação de serviços ou
em termos de uso de aplicações de internet;
IX - consentimento expresso sobre coleta, uso, armazenamento e
tratamento de dados pessoais, que deverá ocorrer de forma
destacada das demais cláusulas contratuais;
X - exclusão definitiva dos dados pessoais que tiver fornecido a
determinada aplicação de internet, a seu requerimento, ao término
da relação entre as partes, ressalvadas as hipóteses de guarda
obrigatória de registros previstas nesta Lei;
XI - publicidade e clareza de eventuais políticas de uso dos
provedores de conexão à internet e de aplicações de internet;
XII - acessibilidade, consideradas as características físico-
motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais do
usuário, nos termos da lei; e

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XIII - aplicação das normas de proteção e defesa do consumidor
nas relações de consumo realizadas na internet.
Em se tratado do Direito à privacidade e à liberdade de expressão, entendemos
que são condições imprescindíveis ao exercício da cidadania, que no nosso contexto atual,
engloba o acesso à internet. Logo, as cláusulas que contrapõem essas garantias, nos
contratos eletrônicos, tornam-se nulas de pleno direito. Mas como falar em compra
coletiva, por exemplo, e garantir o a privacidade plena? Percebemos, de início, que pelo
menos no tocante à esse tipo de relação consumerista, pouco ou quase nada a nova Lei
contribuiu.

7.2 A REPERCUSSÃO DO MARCO CIVIL NOS CONTRATOS CELEBRADOS


PELA INTERNET

Ao analisarmos o Marco Civil podemos ter a sensação de que a norma não cuida
especificamente de contratos eletrônicos (no sentido estrito), mas abrange outras
operações decorrentes do comércio eletrônico, como por exemplo, questões que se
referem à privacidade e a vedação do uso de bancos de dados para fins comerciais.
Todavia, como se trata de norma pioneira no assunto, suas regras e princípios serão
responsáveis por nortear todo assunto correlacionado.
Além de ser fortemente influenciado por normas constitucionais, o Marco Civil
também reforça a aplicação das normas de defesa do consumidor nas relações
consolidadas através da internet, desde que se apresentem como relação de consumo.
Podemos enxergar isso no art. 7º, inc. XIII, da referida Lei.
A Lei ainda contemplou a importância de sua interpretação, em especial, na
preservação de usos e costumes, ao prever que não sejam ignorados os seus
fundamentos, princípios e escopo na sua aplicação. Essa contemplação encontra-se no
art. 6 º, da referida Lei.
Impende ressaltar que, para cuidar especificamente do comércio eletrônico, o
Decreto n. 7.962/13 será mais adequado, pois trata de forma bem direcionada sobre a
contratação no comércio eletrônico, bem como, é responsável pela regulamentação do
Código de Defesa do Consumidor (CDC). Já no art. 1º, o decreto dispõe acerca da
necessidade de informações claras sobre o produto, o serviço, o fornecedor, o
atendimento facilitado ao consumidor e o respeito ao exercício do direito ao
arrependimento. O mesmo Decreto, no art. 2º disciplina que os sites comerciais devem

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destacar, de modo que seja de fácil visualização, o seu nome empresarial e o número
do CNPJ, bem como o endereço físico e eletrônico. Mas falando especificamente sobre
compras coletivas, as empresas que promovem as promoções (os sites de compras),
não atendem esses requisitos mínimos, em sua maioria. Os sites convencionais de
comercialização de produtos já vêm praticando as exigências, por exemplo, o “mercado
livre.”
Visando garantir um atendimento facilitado ao consumidor, os arts. 4º e 6º do
Decreto n. 7.962/2013, preveem que o fornecedor deverá: confirmar o recebimento da
aceitação da oferta, apresentar serviço capaz de atender em meio eletrônico para que o
consumidor tenha acesso facilitado à empresa anunciante. Por conseguinte, o art. 5º
assegura o direito de arrependimento do consumidor, uma vez que o fornecedor tem a
obrigação de informar, de forma clara, meios pelos quais este direito pode ser exercido.
Podemos perceber que o Decreto 7.962/13 dispende um tratamento mais
específico do que o Marco civil, no que tange à proteção ao consumidor. Isso porque
o Marco Civil não trata especificamente de relações consumeristas, mas o
comportamento dos internautas, não necessariamente nas relações de consumo. Cuidou
o Decreto também de estabelecer o comportamento adequado nas relações de consumo
construídas na rede.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atualmente, as compras coletivas desaceleraram e a corrida por preços baixas


nessa modalidade sofre uma brusca queda. Arriscamos em afirmar que, muito
provavelmente, o negócio teve sua época, mas talvez o acelerado crescimento combinado
como ausência de preparo no atendimento da demanda formaram uma tônica devastadora
para o seu decréscimo. As pessoas viram uma oportunidade de ganhar dinheiro, passaram
a abrir sites de compras sem estabelecer determinados critérios, formaram parcerias com
empresas que não conheciam, vendiam de qualquer jeito e todo esse afã veio por
desembocar em uma relevante queda na modalidade.
Os remanescentes ainda praticam a oferta de compra coletiva, mas em breve
análise, podemos perceber que a ausência de legislação provocou certa insegurança para
consumidores e também para investidores, fazendo o mercado sofrer queda brusca na
procura desse serviço. Dentre muitas experiências frustradas e enxurradas de reclamações
em espaço adequado para seus registros, poucas empresas prevaleceram.

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No tocante aos contratos coletivos, podemos entender que a nossa legislação, bem
como o nosso ordenamento jurídico ainda é muito limitado, embora, o contrato eletrônico
não seja uma modalidade nova de contrato, mas um contrato como qualquer outro. A
novidade se limita a forma de celebração que se dá por meio da internet e, por essa razão,
cabe a aplicação da legislação vigente, em especial as normas que regulam os contratos
de forma geral.
Ora, se a espécie de contrato em análise preenche todos os pré requisitos
aplicáveis aos contratos tradicionais, observando com mais cautela a questão da
segurança, onde entendemos que ainda estamos desamparados legislativamente, uma vez
que o ambiente virtual proporciona muita vulnerabilidade ao consumidor.
Embora se trate de negociação eletrônica, é importante mencionar que deve-se
manter os princípio que fundamentam a existência do contrato, qual seja a liberdade das
formas e a boa-fé objetiva, estampados no art. 422, do Código Civil. Logo, o primeiro
princípio define que o contrato pode vir a ser pactuado de qualquer forma, desde que não
seja ilícito ou vedado por lei. Já o princípio da boa-fé visa que as partes devem seguir
desde a proposta até sua execução, buscando garantir a lisura do negócio jurídico. O
princípio da boa-fé objetiva talvez em nenhum outro momento tenha tido tamanho valor.
Várias medidas já são cogitadas pelos operadores do direito que atuam na área de
segurança eletrônica entre elas estão a necessidade de todos os sites manterem um serviço
de atendimento ao consumidor (SAC) 24h, a proibição aos sites de ofertarem produtos e
serviços que excedam a capacidade do estabelecimento e a concessão de certificados aos
sites que atuarem segundo normas éticas e morais, mas tudo isso ainda passeia pelas
intermináveis discussões em Congressos jurídicos e muito pouco se encontra na prática.
Sabemos que todos os sistemas apresentam grau maior ou menor de segurança, mas a
forma de proteção contra a instabilidade só o futuro nos apontará o caminho.
Mesmo que a atual legislação seja limitado e precária com relação aos contratos
eletrônicos, estes são providos de validade e de obrigatoriedade jurídica, uma vez que a
novidade está apenas no modo da celebração, mas a natureza jurídica mantém a sua
essência.
Assim, entendemos que tudo aquilo que a lei não preveja forma específica, bem
como não proíba, poderá ser firmado eletronicamente. A legislação aplicável, portanto,
será principalmente as leis no que concerne aos contratos em geral, seguido dos princípios
previstos no Código Civil, tendo como ponto alto o Código de Defesa do Consumidor,

Página 112 de 261


uma vez que, mesmo após o Marco Civil, especialmente nas relações de consumo, ainda
encontramos carência de legislação que atenda a demanda.
O princípio da boa fé objetiva talvez em nenhum outro momento tenha tido
tamanho valor. Várias medidas já são cogitadas pelos operadores do direito que atuam na
área de segurança eletrônica entre elas estão a necessidade de todos os sites manterem um
serviço de atendimento ao consumidor (SAC) 24h, a proibição aos sites de ofertarem
produtos e serviços que excedam a capacidade do estabelecimento e a concessão de
certificados aos sites que atuarem segundo normas éticas e morais, mas tudo isso ainda
passeia pelas intermináveis discussões em Congressos jurídicos e muito pouco se
encontra na prática. Sabemos que todos os sistemas apresentam grau maior ou menor de
segurança, mas a forma de proteção contra a instabilidade só o futuro nos apontará o
caminho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1]CLAUDIA LIMA MARQUES. Artigo: PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR NO


COMÉRCIO ELETRÔNICO E A CHAMADA NOVA CRISE DO CONTRATO: POR
UM DIREITO DO CONSUMIDOR APROFUNDADO.
[2] TOFLLER Alvim apud LUCCA, Newton de et al., Op. Cit., p. 24
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Contratos. 9. ed.
GAGLIANO, PABLO STOLZA; FILHO, RODOLFO PAMPLONA. Direito dos
Contratos. 7. Ed.
FRANCO, VERA HELENA DE MELLO. Contratos direito civil e empresarial. 1.ed.
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[3] PECK, Patrícia apud PANICHI, R. A. G. Meios de prova nos contratos eletrônicos
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[4] AOKI, Erica apud LUCCA, Newton de et al., Op. Cit., p. 24
[5] MARTINS, Guilherme Magalhães. Responsabilidade Civil por Acidente de Consumo
na Internet. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 360
[6]ALEXANDRE, Silvio. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4ª Ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2008

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09/09/2016

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DIREITO AO DESENVOLVIMENTO – A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA
DE IMÓVEIS COMO INSTRUMENTO DE EXPANSÃO DO CRÉDITO
IMOBILIÁRIO
Henrique Ribeiro Cardoso1
Pedro Ernesto Celestino Pascoal Sanjuan2

RESUMO: O crédito imobiliário no Brasil, concedido majoritariamente pela Caixa Econômica


Federal – CEF, cuja garantia era a hipoteca, há muito apresentava claros sinais de esgotamento,
sobretudo diante da dificuldade do agente financeiro em recuperar a garantia contratual e
recompor o capital mutuado nos casos de inadimplemento dos adquirentes. As execuções
judiciais das hipotecas duravam anos e muitas vezes décadas. Essa garantia de difícil e
dispendiosa retomada, afastou os bancos privados dessa modalidade de crédito, e,
consequentemente impactou nas taxas de juros aplicadas e refreou por muito anos a expansão
imobiliária no país, cuja principal consequência foi a baixa ofertada de imóveis novos no
mercado. Nesse diapasão, a intensa observação da experiência de outros países demonstrou que
o crescimento habitacional estava indissociavelmente ligado à existência de garantias efetivas
de retorno dos recursos aplicados, autonomia na contratação das operações e um mercado de
crédito imobiliário capaz de captar recursos de longo prazo, principalmente junto a grandes
investidores. Diante desse cenário, Alienação Fiduciária de Imóveis, regulada pela Lei nº
9.514/1997, foi concebida para provocar o recrudescimento do mercado imobiliário brasileiro,
notadamente, em face da instituição da garantia fiduciária do imóvel, com o procedimento
extrajudicial imensamente mais célere e eficaz para retomada da garantia pelo agente
financiador, na hipótese de inadimplemento do devedor. Esse diploma também foi concebido
com o objetivo de robustecer o sistema financeiro imobiliário pátrio e proporcionar a expansão

1
Pesquisador em Estágio Pós-Doutoral no Programa de Pós-Graduação em Democracia e Direitos Humanos da
Universidade de Coimbra (IGC/FDUC) e no Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade
Federal da Paraíba (PPGCJ/UFPB). Doutor e Mestre em Direito, Estado e Cidadania (UGF/Rio; Especialista em
Direito Constitucional Processual (FAPESE/UFS); Professor do Programa de Pós-Graduação da Universidade
Federal de Sergipe (Mestrado/PRODIR/UFS); Professor de Programa de Pós-Graduação da Universidade
Tiradentes (Mestrado/PPGD/UNIT). Promotor de Justiça Curador da Fazenda Pública em Sergipe (MPSE);
Diretor do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Patrimônio Público e da Ordem Tributária; Coordenador de
Ensino da Escola Superior do Ministério Público (ESMP/SE).
2
Mestrando em Direitos Humanos no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Tiradentes
(PPGD/UNIT). Pós-Graduado em Direito Imobiliário pela Universidade Anhanguera. Graduado em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO). Graduado em Ciências Econômicas pela Universidade
Tiradentes (UNIT). Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da Ordem dos Advogados do Brasil – seccional
Sergipe.

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do crédito imobiliário no Brasil, atraindo bancos privados para essa modalidade de crédito,
oferecendo para os mutuários menores taxas de juros e oportunizando à aquisição da casa
própria. Nesse sentido, adota-se nesse trabalho o pragmatismo de Richard Posner,
consubstanciado na análise econômica do instituto da alienação fiduciária de imóveis, com o
objetivo de se aferir se a Lei nº 9.514/1997 atingiu o objetivo que se propôs e sua eficiência e
impactos na sociedade.

Palavras-chave: Análise Econômica do Direito; Alienação Fiduciária de Imóveis; Crédito


Imobiliário.

ABSTRACT: The real estate credit in Brazil, granted mainly by Caixa Econômica Federal -
CEF, whose guarantee was the mortgage, has long had clear signs of exhaustion, especially
given the difficulty of the financial agent to recover the contractual warranty and recover the
loan capital in the case of default of purchasers. Judicial executions of mortgages lasted for
years and often decades. This guarantee difficult and costly recovery, pushed private banks this
type of credit, and consequently impacted on applied interest rates and curbed for many years
the housing boom in the country, whose main consequence was the low offered new properties
on the market. In this vein, the intense observation of the experience of other countries showed
that housing growth was inextricably linked to the existence of effective guarantees of return
on invested funds, autonomy in the contracting of the operations and a mortgage market able to
attract long-term funds, especially with major investors. In this scenario, Property Fiduciary
Alienation, regulated by Law No. 9,514 / 1997, is designed to cause the rise in the Brazilian
real estate market, especially in the face of the Property fiduciary guarantee institution, with the
extrajudicial procedure immensely faster and more effective to resumption of guarantee by the
financial agent in the event of default of the debtor. This degree is also designed with the
objective to strengthen the housing finance system parental rights and provide expansion of real
estate credit in Brazil, attracting private banks for this type of credit, providing for lower interest
rates borrowers and providing opportunities for home ownership. In this sense, it is adopted in
this work pragmatism of Richard Posner, embodied in the economic analysis of the chattel real
estate institute, in order to assess whether the Law No. 9.514 / 1997 reached the goal proposed
and their efficiency and impact in society.
Key-Words: Economic Analysis of Law; Fiduciary Real Estate sale; Mortgage Loans.

I INTRODUÇÃO

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A Alienação Fiduciária de Imóveis, regulada pela Lei nº 9.514/1997, proporcionou,
sem sobra de dúvidas, o recrudescimento do mercado imobiliário brasileiro, notadamente, em
face da instituição da garantia fiduciária do imóvel, com o procedimento extrajudicial
imensamente mais célere e eficaz para retomada da garantia pelo agente financiador na hipótese
de inadimplemento do devedor (extinção anormal), robustecendo o sistema financeiro
imobiliário pátrio com a consequente expansão do crédito para aquisição de mais e mais
imóveis, retroalimentando a cadeia produtiva envolvida.
A análise desse dispositivo legal, permite aferir a repercussão econômica da norma,
que no caso em tela, se mostra extremamente positiva, sobretudo diante do recrudescimento e
a expansão do crédito imobiliário.
Dessa forma, a análise da experiência de outros países mostrava claramente que o
crescimento habitacional estava intimamente ligado à existência de garantias efetivas de retorno
dos recursos aplicados, autonomia na contratação das operações e um mercado de crédito
imobiliário capaz de captar recursos de longo prazo, principalmente junto a grandes
investidores, o que, de fato também ocorreu no nosso país.
A Lei nº 9.514 de 20 de novembro de 1997, representa, sem sombra de dúvidas, um
fabuloso marco no sistema de garantias imobiliárias tradicionais brasileira, que,
majoritariamente tinha com lastro a hipoteca.
A hipoteca, como instituto garantidor do sistema de garantias imobiliárias, vinha, ao
logo das décadas anteriores, mormente em face das sucessivas crises econômicas, claudicando,
desencorajando os investidores a direcionar as suas aplicações para o setor da construção civil
imobiliária, com a consequente redução da oferta de crédito para aquisição de imóveis.
Esse desencorajamento, decorria, notadamente, dos incomensuráveis e dispendiosos
périplos na tentativa de recomposição do capital mutuado por esses investidores, na esfera
judicial, haja vista que o processo de execução arrastava-se por anos, muitas vezes, tornando
inócua a garantia constituída, seja pelo custo da retomada, seja pela depreciação da própria
garantia ao longo dos anos.
Nessa quadra, a Súmula nº 308 do Superior Tribunal de Justiça fulminou o instituto da
hipoteca ao determinar que “a hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro,
anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os
adquirentes do imóvel”.
Dessa forma, o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI) foi criado pela Lei nº 9.514, de
20 de novembro de 1997, segundo modelo delineado a partir dos mais modernos mercados de

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financiamento imobiliário, inclusive latino-americanos, inspirados no modelo norte-americano,
tendo por princípio a integração das operações imobiliárias com o mercado de capitais,
viabilizando o mercado secundário de títulos imobiliários.
Assim, decorridos mais de 15 anos de vigência da lei, é facilmente perceptível o efeito
prático dessa nova modalidade de garantia, notadamente pela grande oferta de financiamento
imobiliário pelas mais diversas instituições financeiras do país, que, com a nova garantia atraiu
sobremaneira o capital financeiro, propiciando o recrudescimento do setor da construção civil
privada.
Por fim, a Associação Brasileira das Empresas de Crédito Imobiliário e Poupança
(ABECIP)3, elaborou alentado estudo, demonstrando esse recrudescimento, asseverando que
em 1997, antes da promulgação da Lei nº 9.514, 35.000 (trinta e cinco mil) imóveis foram
financiados, em cotejo com mais de 538.000 (quinhentos e trinta e oito mil) financiadas em
2014, o que denota, de forma indubitável, o grande impulso que essa lei proporcionou à
economia e ao país como um todo, demonstrando a repercussão econômica da norma jurídica.

2 A ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO

A Análise Econômica do Direito ou Direito e Economia, tem como objeto de estudo o


exame da adequação de determinada norma jurídica e as suas consequências e impactos na
sociedade quando da sua efetiva aplicação.
Segundo Galdino (2005, p. 240), o percussor desse modo de pensar o direito foi o
jurista e filósofo de língua inglesa, Jeremy Bentham, contudo, seu surgimento como escola
ocorreu em 1958 quando foi criada a publicação Journal of Law and Economics da
Universidade de Chicago, e 1973, com o lançamento do livro Law and Economics de Richard
Posner.
Para Posner (1998, p. 27), o Direito e a Economia surgiu com Guido Calabresi e
Ronaldo Coase, e preleciona:
El nuevo derecho y economía surgió com el primer artículo de Guido
Calabresi sobre los dãnos y con el artículo de Ronald Coase sobre es
costo social. Éstos fueron los primeros intentos modernos por, aplicar
sistematicamente el análisis económico a áreas del derecho que no

3
Associação Brasileira das Empresas de Crédito Imobiliário e Poupança (ABECIP), foi constituída no I Encontro
Nacional das Empresas de Crédito Imobiliário e Poupança, realizado no Club Nacional, em São Paulo, de 17 a 19
de agosto de 1967, como um sociedade civil de direito privado, sem fins lucrativos, representante do setor
financeiro de crédito imobiliário, congregando as instituições integrantes do SFH, do Sistema Brasileiro de
Poupança e Empréstimo (SBPE) e, a partir de 1997, também do Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI).

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regulan expresamente relaciones económicas. Podemos encontrar
indicios anteriores de un enfoque económico para los problemas del
derecho de accidentes y de perjuicios discutidos por Calabresi y Coase,
especialmente em la obra de Pigou, que sirvieron para el análisis de
Coase; pero esse trabajo había influido poco en el pensamiento legal.

Com efeito, a Law and Economics, que inicialmente contou com a contribuição de
Richard Posner, Gary Becker e Henry Manne, vem evoluindo em ritmo acelerado, sobretudo
nas universidades norte-americanas e europeias, e, num ritmo menos acelerado nas
universidades latino-americanas.
Para Barbosa (2014, p. 48), “como definição do que seja o Direito e a Economia, temos
que esta é a utilização do arsenal analítico e empírico da ciência econômica, em especial da
microeconomia e da economia do bem-estar social, para se tentar entender, explicar e prever as
implicações fáticas do ordenamento jurídico”.
Richard Posner, desenvolveu o pragmatismo e a sua forma particular de enxergar o
Direito, analisando os problemas postos de forma prática em flagrante oposição às formas
idealistas eurocêntricas, razão pela qual, o pragmatismo de Posner recebeu inúmeras
denominações, tais como: praticalismo, consequencialismo e eficientismo.
O pragmatismo sistematizado por Posner, claramente influenciado pelo pragmatismo
filosófico, embora não automaticamente incorporado, proporcionou a aplicação do instrumental
analítico da Economia aos diversos ramos do Direito, cujo método ficou conhecido como
Análise Econômica do Direito, cujas premissas estão assentadas na ideia de escassez de
recursos e que as pessoas são maximizadoras de riqueza e fazem escolhas com o fito de
promover a melhor alocação dos recursos escassos.
Quanto à incorporação automática do pragmatismo filosófico, Posner (2010, p. 38)
afirmou:
Encontrei pouca coisa no pragmatismo americano clássico ou nas
versões ortodoxas ou não ortodoxas da filosofia pragmática moderna
que o direito possa usar. Mas o tom pragmático, a cultura pragmática
que Tocqueville descreveu, deu ensejo a um pragmatismo diferente –
que eu chamo de “pragmatismo cotidiano” – que tem muito a contribuir
com o direito.

Dessa forma, a Economia como uma ciência social, plenamente aplicável ao


desenvolvimento, revela-se um instrumento eficaz na elaboração das normas jurídicas e nas
escolhas públicas, sobretudo ao analisar a eficiência e o impacto das políticas públicas na
sociedade, de modo que, a maximização da eficiência da norma, sem se descurar dos aspectos
morais que precisam ser sopesados, torna-se sinônimo de justiça.

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Nessa quadra, a ausência de uma acurada análise econômica na norma, pode não se
prestar ao desiderato proposto, como pode trazer resultados negativos, desequilíbrios na
economia e na sociedade, haja vista que as normas impactam diretamente no comportamento
dos agentes econômicos. É exatamente o que prelecionam Segundo Zylbersztajn e Sztajn (2005,
p. 3):
O Direito, por sua vez, ao estabelecer regras de conduta que modelam
as relações entre as pessoas, deverá levar em conta os impactos
econômicos que delas derivarão, os efeitos sobre a distribuição ou
alocação dos recursos e incentivos que influenciam o comportamento
dos agentes econômicos privados. Assim, o Direito influencia e é
influenciado pelo Economia, e as Organizações influenciam e são
influenciadas pelo ambiente institucional. A análise normativa encontra
a análise positiva, com reflexos relevantes na metodologia de pesquisa
nessa interface.

Pérsio Arida (2005, p. 63), classifica as normas em três vertentes, sendo a primeira
como distorção4, a segunda corretiva5 e a terceira fundante6.
Analisando a Lei nº 9.514/1997, e reconhecendo-a como uma norma jurídica
economicamente eficiente, esta promoveu uma expansão do crédito imobiliário de 35.000
(trinta e cinco mil) imóveis financiados antes da sua promulgação, para mais de 538.000
(quinhentos e trinta e oito mil) imóveis financiados em 2014.
Ademais, o robusto sistema de garantia trazido pela norma em análise, além de
proporcionar uma expansão do crédito imobiliário, sobretudo com a entrada de bancos privados
nesse segmento, até então dominado pela Caixa Econômica Federal, proporcionou também uma
substancial redução nas taxas de juros para essa modalidade de crédito e ainda, fomentou a
política de habitação, oportunizando que famílias adquirissem o seu imóvel residencial,
elevando a autoestima dessas famílias.
Nessa quadra, uma norma jurídica economicamente eficiente desencadeia um círculo
virtuoso na sociedade, no caso específico da Lei nº 9.514/1997, ao oportunizar a aquisição da
casa própria às famílias que consumiam parte considerável das suas rendas com alugueis,
promoveu também uma queda nos preços dos alugueis médios em determinadas localidades.

4
A primeira vertente da pesquisa em Economia busca mostrar como normas editadas com o objetivo de impor
valores terminam muitas vezes por distorcer o equilíbrio de mercado. O pressuposto é que o equilíbrio de mercado,
na ausência da norma, tenha as propriedades do ótimo de Pareto. O impacto da norma, julgado do ponto de vista
da geração de riqueza, é negativo.
5
A segunda vertente de pesquisa em Economia examina situações nas quais há falha ou anomalia de mercado e,
portanto, o equilíbrio não é Pareto-ótimo. A pesquisa concentra-se, então, na determinação da norma capaz de
corrigir a distorção observada.
6
A terceira vertente se volta para a norma como o regramento a partir do qual contratos e mercados são
estruturados, sob as óticas contratualista e comparativa.

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Por fim, impende destacar que, atendidos todos os requisitos previstos na Lei nº
9.514/1997, os contratos de alienação fiduciária de bem imóvel em garantia, deverão seguir o
seu regular e escorreito curso normal, devendo o Judiciário ser cauteloso em qualquer
intervenção que possa atrasar ou obstar as retomadas das garantias pelos agentes financeiros
daqueles mutuários inadimplentes, em sentido contrário, uma desarrazoada intervenção judicial
poderá, inibir a oferta de crédito com a consequente retração da atividade imobiliária.

3 A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA E O ALCANCE DA LEI Nº 9.514/97

O instituto da fidúcia tem origem no Direito Romano oriundo da antiga fidúcia cum
amico, baseado no contrato de confiança que possibilitava o acautelamento de bens no intuito
de evitar riscos e proteger o devedor fiduciante de circunstância aleatórias, que poderiam
ocasionar o perdimento de bens, ou seja, consistia numa venda provisória ou fictícia, lastreada
na convenção da qual uma das partes, ao receber de outra a propriedade de um bem, obrigava-
se a restituí-lo assim que alcançado determinado objetivo estipulado em um pacto adjeto,
denominado pactum fiduciae.
Para o conspícuo doutrinador Melhim Chalhub (2006, p. 38), em obra homônima, a
alienação fiduciária pode ser definida da seguinte forma:
Negócio jurídico inominado pelo qual uma pessoa o (fiduciante)
transmite a propriedade de uma coisa ou a titularidade de um direito a
outra (fiduciário), que se obriga a dar-lhe determinada destinação e,
cumprido esse encargo, retransmitir a coisa ou direito ao fiduciante ou
a um beneficiário indicado no pacto fiduciário.

Nessa senda, importante colacionar a lição de Orlando Gomes apud Dantzger (2007,
p. 28):
Considerando na perspectiva das limitações do poder do adquirente da
propriedade, o negócio fiduciário explica-se à luz de três principais
construções teóricas: A primeira serve-se de um pacto obrigacional
agregado à transferência da propriedade, que se destina a neutralizar o
efeito real da transmissão, condicionando-o ao fim especial para o qual
ela se realiza. As raízes dessa explicação encontram-se no direito
romano. A segunda teoria, de inspiração alemã, recorre à condição
resolutiva para justificar a limitação, no tempo e no conteúdo, do direito
real do fiduciário. Sustentam seus adeptos que ele adquire uma
propriedade temporária, para fim determinado. A terceira teoria
dissocia o direito fiduciário, assinalando que, nas relações externas, é
de propriedade, e nas relações internas, de crédito, figurando ele em
certos casos, como um mandatário [...].

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Nessa quadra, convém destacar a conceituação do eminente doutrinador Pedro Elias
Avvad (2012, p. 283):
A alienação fiduciária em garantia de imóveis, regulada pela Lei nº
9.514, de 20 de novembro de 1997, é o negócio jurídico pelo qual o
devedor, fiduciante, com a finalidade de garantir o cumprimento da
obrigação, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da
propriedade resolúvel e a posse indireta de coisa imóvel, permanecendo
o fiduciante com a posse direta”.

Assim, esse é exatamente o alcance dos negócios jurídicos celebrados sob égide da Lei
nº 9.514/1997, haja vista que, por força do registro do contrato de alienação fiduciária, o credor
fiduciário adquire o imóvel, para fins de garantia, sob a condição resolutiva e, de outra banda,
o devedor fiduciante torna-se titular do direito de aquisição sob a condição suspensiva, de forma
que, desdobra-se a posse do imóvel, ficando o devedor fiduciante com a posse direta do imóvel
e o credor fiduciário com a posse indireta.
Com efeito, a Alienação Fiduciária de Imóvel constitui um direito real de garantia,
restando clara essa sua função de garantia conforme definido em Lei, a alienação fiduciária é
um direito acessório em relação ao crédito ou à obrigação à qual se vinculou para constituição
da garantia.
Nesse sentido, preleciona Melhim Chalhub (2012, p. 4);
A alienação fiduciária difere da hipoteca, do penhor e da anticrese,
porque enquanto nestas o devedor grava o bem, mas o conserva em seu
patrimônio, na propriedade fiduciária em garantia do devedor (ou o
terceiro prestador da garantia) transmite a propriedade do bem ao
credor, em caráter fiduciário, demitindo-se do seu direito de
propriedade.

Dessa forma, o devedor fica investido de um direito expectativo, que corresponde ao


direito aquisitivo da propriedade que alienara em garantia, recuperando-a automaticamente uma
vez recuperada a condição resolutiva.
Nesse espeque é claríssimo o escólio do doutrinador Melhin Namem Chalhub (2012,
p. 8), ao asseverar que “a condição suspensiva que a doutrina majoritariamente, identifica na
posição do devedor fiduciante deve ser tomada na acepção de condicio iuris, que opera
independentemente da vontade das partes e é, por definição, suspensiva, no sentido de que,
antes da sua verificação, ou não há contrato, ou o mesmo não é eficaz.”
Por outro lado, o credor fiduciário é titular da propriedade resolúvel, nessa condição,
quedando-se inadimplente o devedor fiduciante, poderá o credor, resolver o contrato,

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consolidando a propriedade do imóvel em seu favor, mediante procedimento extrajudicial
próprio previsto na lei sob exame.
Assim, resta evidente que os direitos do credor e devedor, apresentam-se opostos e ao
mesmo tempo complementares, haja vista que o acontecimento que aniquila o direito de um,
consolidará, invariavelmente, o de outro.

4 DA CONSTITUCIONALIDADE DA LEI Nº 9.514/97

Conforme mencionado alhures, a Lei nº 9.514/97, promoveu uma verdadeira


revolução no sistema de garantias nas operações de crédito no mercado brasileiro, fomentando
o mercado imobiliário, alongando os prazos para pagamento e reduzindo a taxa de juros,
sobretudo pela possibilidade de retomada da garantia extrajudicialmente, em caso de
inadimplemento do devedor fiduciante.
Essa possibilidade de retomada do bem extrajudicialmente, ensejou uma série de
demandas nos tribunais pátrios, por parte dos devedores, suscitando a inconstitucionalidade da
referida Lei, alegando, sobretudo, ofensa ao direito de propriedade.
Pois bem, ao contrário do que sustentaram, a Lei nº 9.514/97 não vai de encontro ao
direito de propriedade. Ao revés, assegura-o, consolidando-a nas mãos do Credor Fiduciário
em detrimento ao devedor, que apesar de lhe haver sido dada a oportunidade de purgar a mora,
quedou-se inerte.
Ainda, é cediço que o legislador infraconstitucional apenas se limitou a regulamentar
o procedimento destinado à expropriação de bem imóvel dado em garantia de alienação
fiduciária, oportunizando ao devedor efetuar a purgar da mora, assegurando-lhe o contraditório
e a ampla defesa.
Assim, a Lei nº 9.514/97 não ofende nenhum princípio constitucional, sendo esse o
entendimento remansoso dos tribunais pátrios.

5 DA CONSTITUIÇÃO E DA NATUREZA JURÍDICA

O contrato de alienação fiduciária é um contrato acessório, de garantia, e que também


é um contrato típico, formal, oneroso, unilateral e cumutativo.
O contrato que institui a alienação fiduciária de bem imóvel é um contrato de garantia,
haja vista que este contrato não tem como objeto a transferência do domínio pleno e irreversível

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do bem ao credor fiduciário, mas, visa garantir o cumprimento integral da obrigação principal
em face de uma eventual inadimplência do devedor fiduciante.
Marcelo Terra (1998, P. 23), ratifica a natureza jurídica de direito real de garantia e
complementa nos seguintes termos:
A alienação fiduciária atenua, em muitos casos, as dificuldades normais
encontradas nos tradicionais instrumentos de garantia, oferecendo
maior rigor e eficiência na segurança do crédito, principalmente devido
ao crescente abalo, pelo Poder Judiciário, ao prestígio da hipoteca como
fomentador da garantia do crédito.

A teor do parágrafo 1º do artigo 22 da lei nº 9.514/1997, a alienação fiduciária poderá


ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no
Sistema Financeiro Imobiliário, podendo ter como objeto, além da propriedade plena: a) bens
enfitêuticos, hipótese em que será exigível o pagamento do laudêmio, se houver a consolidação
do domínio útil no fiduciário; b) o direito de uso especial para fins de moradia; c) o direito real
de uso, desde que suscetível de alienação; d) a propriedade superficiária.
Como bem observa o preclaro doutrinador Melhim Namem Chalhub (2012, p. 04):
O contrato de alienação fiduciária pode ter como objeto quaisquer bens
imóveis, sejam terrenos, com um sem acessões, o domínio útil de imóveis ou
a propriedade superficiária, bem como o direito de uso especial para fins de
moradia e o direito real de uso, desde que suscetível de alienação; a
propriedade fiduciária sobre o direito real de uso e sobre a propriedade
superficiária tem duração limitada ao prazo da respectiva concessão (Art. 22
da Lei nª 9.514/1997, § 1º, incisos I a IV, com a redação dada pela Lei nº
11.481/2007)7.

Contudo, não obstante o contrato de alienação fiduciária ter como objeto quaisquer
bens imóveis, na prática comercial, tem sido aplicado com maior frequência, como garantia de
pagamento do preço de imóveis nas incorporações imobiliárias.
Ademais, considerando a alienação fiduciária regulada por essa lei tem escopo de
garantia, conforme mencionado alhures, é plenamente possível, que o objeto do contrato de
alienação fiduciária possa ser também, acrescentando aos demais anteriormente mencionados,
o imóvel construído ou imóvel em construção.
Nessa quadra, é forçoso mencionar o comentário do insigne doutrinador Pedro Elias
Avvad (2012, p. 286), a saber “destacam-se, entretanto, os bens cuja propriedade não foi
inteiramente adquirida, tais como: (a) promessa de compra e venda quitada e registrada; (b)

7
Como exceção, o imóvel clausulado com inalienabilidade não poderá ser objeto da alienação fiduciária.

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aquisição por usucapião pendente de conclusão do processo; (c) aquisição por desapropriação
pendente de registro da decisão; e, finalmente, (d) imóvel resultante de loteamento irregular”.
É cediço que o art. 108 do Código Civil, é claro ao assevera que os contratos
constitutivos ou translativos de direitos reais sobre bens imóveis de valor superior a trinta
salários-mínimos devem respeitar a forma de escritura pública.
Todavia, o art. 38 da Lei nº 9.514/1997, assegura que todos os atos e contratos referidos
nessa lei ou resultantes da sua aplicação, poderão ser celebrados por escritura pública ou por
instrumento particular com efeitos de escritura pública, mesmo aqueles que visem à
constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis.
Dessa forma, filiamo-nos a corrente de que o instrumento particular é adequado para
transmissão da propriedade imobiliária com pacto adjeto de alienação fiduciária, representando
significativo avanço na desburocratização da prática comercial, fomentadora da circulação de
riqueza na sociedade8.
Para Luiz Antônio Scavone Júnior (2012, p. 411):
Trata-se de inovação louvável da lei, dispensando a escritura pública
nesse caso particular, rompendo com a tradição de nosso direito de
exigir a escritura pública nos negócios imobiliários, tradição essa que
já havia sido rompida nos contratos vinculados ao Sistema Financeiro
de Habitação.
Nesse toar, constitui-se a propriedade fiduciária de coisa móvel mediante registro, no
competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título, desdobrando-se a posse,
tornando o devedor fiduciante possuidor direto e o credor fiduciário, o possuidor indireto da
coisa móvel (art. 23 caput e parágrafo único).

6 CONCLUSÃO

A Alienação Fiduciária de Imóveis, regulada pela Lei nº 9.514/1997, proporcionou,


sem sobra de dúvidas, o recrudescimento do mercado imobiliário brasileiro, notadamente, em
face da instituição da garantia fiduciária do imóvel, com o procedimento extrajudicial
imensamente mais célere e eficaz para retomada da garantia pelo agente financiador na hipótese
de inadimplemento do devedor (extinção anormal), robustecendo o sistema financeiro

8
Embora a lei dispense a escritura pública, tal situação é uma faculdade, nada obstando que se utilize do
instrumento público, se assim às partes aprouver.

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imobiliário pátrio com a consequente expansão do crédito para aquisição de mais e mais
imóveis, retroalimentando a cadeia produtiva envolvida com um efeito multiplicador na
economia sem precedentes e incomensurável.
Nesse diapasão, a intensa observação da experiência de outros países ratificou o que
também aconteceu no Brasil, qual seja, que o crescimento habitacional está indissociavelmente
ligado à existência de garantias efetivas de retorno dos recursos aplicados, autonomia na
contratação das operações e um mercado de crédito imobiliário capaz de captar recursos de
longo prazo, principalmente junto a grandes investidores.
Assim, decorridos mais de 19 (dezenove) anos de vigência da lei, é facilmente
perceptível o efeito prático dessa nova modalidade de garantia, notadamente pela grande oferta
de financiamento imobiliário pelas mais diversas instituições financeiras do país, que, com a
nova garantia atraiu sobremaneira o capital financeiro, propiciando o recrudescimento do setor
da construção civil privada.
Conforme mencionado na parte introdutória do presente trabalho, a Associação
Brasileira das Empresas de Crédito Imobiliário e Poupança (ABECIP), elaborou alentado
estudo, demonstrando esse recrudescimento, asseverando que antes da promulgação da Lei nº
9.514/1997, 35.000 (trinta e cinco mil) imóveis foram financiados, em cotejo com mais de
538.000 (quinhentos e trinta e oito mil) financiadas em 2014, o que denota, de forma
indubitável, o grande impulso que essa lei proporcionou à economia e ao país como um todo.
Com efeito, a Lei nº 9.514/1997, pode e deve ser reconhecida não só como uma norma
jurídica economicamente eficiente, como também socialmente eficiente, ao proporcionar uma
expansão do crédito imobiliário, sobretudo com a entrada de bancos privados nesse segmento,
até então dominado pela Caixa Econômica Federal, e ainda, uma substancial redução nas taxas
de juros para essa modalidade de crédito, fomentando a política nacional de habitação,
oportunizando que famílias adquirissem o seu imóvel residencial, elevando a autoestima dessas
famílias, notadamente, pelo fato da aquisição da casa própria é um vetusto sonho de grande
parte da população brasileira.
Ainda, impende destacar que, atendidos todos os requisitos previstos na Lei nº
9.514/1997, os ciclos de formação, execução e extinção normal e anormal do contrato de
alienação fiduciária de bem imóvel em garantia, deverão seguir o seu regular e escorreito curso
normal, devendo o Judiciário ser cauteloso em qualquer intervenção que possa atrasar ou obstar
as retomadas das garantias pelos agentes financeiros daqueles mutuários inadimplentes, em
sentido contrário, uma desarrazoada intervenção judicial poderá, inibir a oferta de crédito com
a consequente retração da atividade imobiliária.

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Por fim, a Lei nº 9.514/1997, representou um “divisor de águas” na concessão do
crédito imobiliário no Brasil, oportunizando o acesso de milhões de brasileiros à tão sonhada
casa própria, retroalimentando a cadeia produtiva envolvida com um efeito multiplicador na
economia sem precedentes e incomensurável, gerando emprego, renda e impostos, ou seja,
gerando riqueza para o país e para os brasileiros.

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Página 128 de 261


O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO, RISCO E RESPONSABILIDADE
CIVIL POR DANOS AMBIENTAIS: uma análise sobre as
articulações entre a questão do risco e a teoria da responsabilidade
civil
Maria Creusa de A. Borges1
Suelen Tavares Gil2

RESUMO: Este trabalho visa a revisar a evolução doutrinário sobre o princípio da


precaução, o qual objetiva à prevenção do dano ambiental antes mesmo da comprovação
científica de risco ambiental, e que implica em consequências jurídicas, tais como a
responsabilização de empreendedores – podendo o Estado ter esse papel – pela possível
criação de riscos que possam afetar a fauna e a flora, além da saúde da população. Nesse
sentido, serão apresentadas decisões do Supremo Tribunal Federal e do Supremo Tribunal
de Justiça como forma de visualização da aplicação prática do princípio na atualidade.
Para tanto, será feita uma revisão bibliográfica que fundamentará as premissas do estudo,
que limita-se a uma visão do Direito Civil-Constitucional sobre o uso da precaução nas
matérias ambientais, estritamente no que tange à responsabilização civil do Estado e de
particulares, tendo em vista a legislação infraconstitucional, a Constituição e marcos
globais da soft law ambiental. Além deste ponto, será abordada a visão de Beck, que
discutirá a importância da preservação ambiental na sociedade de risco.Quanto à pesquisa
jurisprudencial, a partir da seleção de casos nos bancos de dados do STF e do STJ, dos
últimos dez e cinco anos, respectivamente, para introduzir, ao longo das discussões
apresentadas, os posicionamentos dos tribunais a respeito da aplicação do princípio. Ao
final, serão apresentados algumas considerações finais acerca do estudo, que concluirá
pela importância da precuação frente aos riscos de dano ambiental, cada vez mais nocivos
e imprevisíveis.

Palavras-chave: Precaução; Risco; Dano; Responsabilização; Meio Ambiente.

ABSTRACT : This work's aim consists on reviwing the doctrine development


concerning the precautional principle, wich adresses to the prevention of the environment

1
Professora Permaente do Programa de Pós Graduação em Ciências Jurídicas e do Departamento de direito
Privado da Univesidade Federal da Paraíba.
2
Graduanda no 5º período do curso de Direito da Univesidade Federal da Paraíba.

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harm before the cientific proof of the environmental risk, and implies on juridic
consequences, such as the responsabilization of the enterpreneurs – includind, perhaps,
the State – for the possible creaton os risks wich can affect Fauna and Flora, in addition
to the population's health. By this means, some judgments of Supremo Tribunal Federal
and Supremo Tribunal de Justiça will be presented in order to observe the practical
application of the principel nowadays. For that, a literature review will be maid, and it
will justify this study's premisses, wich is limited to a a [Direito Civil-constitucional]
perspective about the use of precautional principle in environmetal themes. Beyond,
Beck's view, that will discuss the importance of environment preservation on the risk
society. Regardinfg the jurisprudence research, starting from the selection of cases on the
databases of STF and STJ, during the last ten and five years, respectively, for introducing,
throughout the discussions, the tribunals positioning about the principle's application. In
the end, some final notes concerning the study will be presented, what will accomplish
on the importance of precaution towards environmental risks, increasingly harmful and
unpredictable.
Keywords: Precaution; Risk; Harm; Responsabilization; Environment.

1 INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, a mundo tem voltado sua atenção para os sinais de danos
irreparáveis no meio ambiente, como por exemplo o chamado “buraco” na camada de
ozônio, as mudanças climáticas, a extinção de algumas espécies, além do agravamento da
saúde de populações mais diretamente expostas à poluição. Assim, o agravamento das
condições de vida no planeta e das pressões internacionais sofridas pelos Estados
poluidores, a pauta da proteção ambiental tomou proporções mais amplas e, então, os
ordenamentos jurídicos internos tiveram que se adaptar às novas demandas de atores não
estatais preocupados com a degradação do meio ambiente.
Aos poucos a pauta ambiental virou matéria de políticas públicas e de legislações
protetivas. No caso brasileiro, a Constituição dedica uma parte especial para tratar do
tema e prevê, ainda, o direito fundamental a um meio ambiente equilibrado. No âmbito
infralegal, além das leis propriamente ditas, há uma série de tratados com tema ambiental,
especialmente na esfera da América Latina, os quais são recepcionados com caráter
infraconstitucional. Ainda, é possível que leis estaduais ou municipais, desde que apenas
complementem lei federal, regulem algumas questões sobre a preservação ambiental. Isto

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faz-se interessante quando tem-se em vista a vasta extensão do território brasileiro e de
alguns estados da Federação, o que implica na diversidade de formas de exploração da
economia, que podem, cada qual com suas peculiaridades, atingir o meio ambiente,
incluindo o meio ambiente cultural e o laboral.
A atenção dada pelos atores estatais, nesse sentido, gerou a necessidade de
produção de mais pesquisas na área, que cada vez mais passaram a trabalhar com dados
probabilísticos, na tentativa de prevenir os danos ambientais. Os resultados dessas
pesquisas, que por vezes são de grandes proporções, guiam as metas dos Governos para
a redução da poluição e do desmatamento, que atingem todos os estados brasileiros, e são
úteis ao fornecimento de dados que auxiliem os juízes do julgamento sobre a
responsabilidade de poluidores.
O paradigma da responsabilização pelo dano ambiental, no entanto, foi
flexibilizado diante de uma questão pedagógica, no sentido que a punição para grandes
empreendedores pode ser suportável, diante dos lucros de determinadas obras que afetam
gravemente ao meio ambiente podem gerar. Além disso, é evidente que o
desenvolvimento tecnológico aplicado para a geração de lucros caminha a passos mais
largos do que os estudos acerca dos impactos ambientais de grandes empreendimentos.
Por isso, as decisões apoiadas puramente em pesquisas conclusivas sobre a geração riscos
ao meio ambiente tornam-se menos viáveis.
Diante do problema, foi desenvolvido o princípio da precaução, que prima pela
prevenção de medidas que indiquem a geração de riscos ambientaias, ainda que não haja
certeza científica sobre a real existência da possibilidade de dano. Essa nova perspectiva
traz implicações contundentes no trato do Judiciário frente aos interesses envolvidos em
ações que de alguma forma interfiram no meio ambiente.
Para apresentar as novas discussões que permeiam o uso da precaução, será feita
uma breve exposição sobre a evolução da responsabilidade civil por danos ambientais no
Brasil, contexto no qual será inserida a aplicação do princípio precaucional, já absorvido
pela ordem constitucional. Em segundo lugar, busca-se verificar, ainda, o entendimento
do STF e do STJ acerca da adequada aplicação do princípio, de forma que será possível
atentar para a importância devida ao princípio da precaução na proteção do meio ambiente
e da saúde da população brasileira.

2- INFLUÊNCIAS NORMATIVAS DA ATUAL RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL


POR DANOS AMBIENTAIS

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2.1- PRINCIPAIS MARCOS INTERNACIONAIS DO DESENVOLVIMENTO DA
RESPONSABILIZAÇÃO POR DANOS AMBIENTAIS
O Direito Internacional Ambiental engloba temas de outros campos tradicionais
do Direito, como o Direito Constitucional, o Direito Civil, o Direito Administrativo, o
Direito Econômico e o Direito Internacional, além dos Direitos Humanos e insere novos
elementos, sob uma visão de cuidado com o Meio Ambiento, de forma a orientar e regular
as ações humanas que interferem nesse campo (GRANZIERA, 2015; ANTUNES, 2014).
A centralidade conferida às matérias ambientais surgiu de forma mais evidente
após o movimento mundial de industrialização, que gerou graves problemas de poluição,
e foi acentuada com as tragédias ecológicas advindas da Segunda Guerra Mundial, como
os desastres nucleares, os vazamentos de óleo ao mar e a mudança na produção industrial,
que induziu ao aumento do consumo e do descarte (KISS, 2007). Diante das incertezas
quanto ao alcance dos danos ambientais, foi lançada entre as discussões internacionais a
pauta do cuidado com o Meio Ambiente.
Nesse interim, a importância da preservação ambiental foi amplamente
reconhecida pela Declaração de Estocolmo, apontada como marco inicial do Direito
Internacional do Meio Ambiente (CRETELLA NETO, 2012). Elaborado em 1972 na
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, o documento – embora
não apresente cunho normativo e, portanto, não tenha sido recepcionado pelos Estados
como tratado – fez-se relevante na conscientização sobre a escassez de recursos e na
necessidade de cooperação entre os Estados no sentido de visualizar a preservação
ambiental como forma de garantia a uma vida digna a todos.
Outra perspectiva pertinente trazida pela declaração foi a concepção do dever do
Estado de, além de indenizar as vítimas de poluição e outros danos ambientais, promover
a educação ambiental, de forma a formar uma opinião pública sólida que guie as ações de
indivíduos, comunidades, empresas e instituições, que também têm responsabilidades
para com a preservação ambiental. Isto posto, é possível afirmar que a Declaração de
Estocolmo já indicava a perspectiva da responsabilização de agentes privados sob a
fiscalização estatal.
Dentre os 27 princípios da Declaração, o princípio 17 trata da necessidade de
efetivação de normas jurídicas internas que disponham sobre a atuação de instituições
nacionais de planejamento e administração do uso de recursos ambientais. No Brasil,
como aponta Granziera (2015), enfrenta-se o desafio da capacitação dos órgãos e
entidades do Sistema Nacional do Meio Ambiente e o controle do exercício das

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competências administrativas, uma forma de envolver os entes da Administração na tarefa
da preservação ambiental.
Após a Declaração de Estocolmo, que, ainda, reconheceu o direito humano ao
meio ambiente, outras catástrofes ambientais ocorreram, como o acidente nuclear de
Chernobyl, em 1982, além da percepção do agravamento da diminuição da camada de
ozônio. Nesse diapasão, foram elaborados legislações nacionais e tratados internacionais
direcionados à prevenção de novos acidentes ambientais (GANZIERRA, 2015), até que
em 1992 ocorreu no Brasil a Conferência do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, na qual foi elaborada a Declaração do Rio e foi construída a Agenda
21.
A Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, embora
passível de críticas fundamentadas no argumento de que não impede as práticas nocivas
ao meio ambiente, mas as institucionaliza à medida que as regula , é apontada como outro
marco importante no desenvolvimento do Direito Ambiental pois conseguiu reafirmar
alguns princípios já postos na Declaração de Estocolmo e introduzir novos temas, como
o desenvolvimento sustentável, a questão dos povos indígenas e comunidades locais, a
avaliação de impacto ambiental, a limitação à soberania estatal, a responsabilidade e a
precaução (GRANZIERA, 2015).
No que diz respeito à responsabilidade, esta foi reforçada em relação à perpetração
de danos ambientais pelos Estados, incluindo as consequências danosas ocorridas fora
de seus territórios, mas por eles provocados. Dessa maneira, ficou evidenciada a intenção
de diminuir as diferenças entre Estados desenvolvidos e em desenvolvimento, estes
últimos frequentemente mais prejudicados pelos desequilíbrios ambientais.
Outro ponto de destaque é o Princípio 15, que traz uma perspectiva inovadora
sobre a prevenção de danos ambientais, porque não admite a falta de certeza científica
sobre os riscos como justificativa para a não tomada de medidas economicamente viáveis
que impeçam a degradação ambiental. Acerca desse princípio, será desenvolvido
posteriormente um tópico especial.
Por sua vez, a Agenda 21 consistiu em um programa de proteção ambiental para
o século XXI, com 40 capítulos e 15 tópicos, discorrendo sobre dimensões
socioeconômicas envolvidas na preservação ambiental, sobre a conservação e
gerenciamento de recursos naturais, além do fortalecimento de grupos específicos, como
atores não governamentais, a juventude, as mulheres e de formas de implementação das
metas estabelecidas (KISS, 2007).

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No Brasil, a Agenda 21 inspirou a construção de 21 Agendas locais, divididas
entre Estados e Distrito Federal, União e Municípios, que deveriam traçar metas para a
realização dos objetivos da Agenda 21. Contudo, o plano foi infrutífero, pois não se tratou
da criação de normas, e assim a evolução do projeto dependeu de acordos políticos. Além
disso, não foram elaborados os orçamentos consistentes para tal, o que resultou no
definitivo fracasso das Agendas (GRANZIERA, 2015).
Embora os planos de preservação ambiental não surtam os efeitos desejados no
Brasil, especialmente pela falta de vontade política e do sobejo dos interesses
econômicos, não pode-se afirmar que as agendas globais e locais não têm utilidade. Uma
vez que têm caráter pedagógico, as declarações e convenções repercutem nos âmbitos
internos por meio das políticas internacionais que geram benefícios aos Estados que
demonstram compromisso com as matérias ambientais. Além disso, é visível que hoje a
participação cidadã nos processos de formulação de normas e de decisão é mais acessível
e, dessa forma, o Estado pode sofrer pressões externas a sua própria organização
legislativa. Não por acaso, a Constituição de 1988 foi formulada num cenário de grande
movimentação popular. Nesses termos, cabe ressaltar a importância dos marcos
internacionais no planejamento brasileiro na atenção à reparação de – e à prevenção dos
– danos ambientais.

2.2 SINAIS DA RESPONSABILIZAÇÃO POR DANOS AMBIENTAIS NA


CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Influenciada pela atenção dedicada às pautas de preservação ambiental nos


cenários internacional e nacional, a Constituição de 1988 – que reconhece uma ampla
gama de direitos e garantias individuais, sociais e coletivos – dedica ao meio ambiente
um capítulo próprio e faz-lhe referência ao longo de sua extensão, estabelecendo o dever
dos entes federativos em proteger o meio ambiente e combater quaisquer tipos de
poluição.
Posto isso, deve restar claro que o objetivo deste tópico é indicar algumas
disposições constitucionais que embasam a responsabilização civil pelos danos
ambientais, tanto do Estado quando dos particulares, de forma a proteger o Meio
Ambiente. Isso porque, conforme a hierarquia das normas, nenhum outro dispositivo
normativo pode ir de encontro com os preceitos constitucionais, dentre eles, o princípio
da dignidade humana, apontado como ponto importante na quebra do paradigma do

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Direito Privado em separado ao Direito Constitucional.
Especialmente, o artigo 225 na Constituição evidencia a importância dada à
temática ambiental pelo legislador constituinte, na medida em que estabelece o direito a
um ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental de todos e
compartilha o dever de proteção com a coletividade. Alguns autores, inclusive, enxergam
esse artigo como uma espécie de extensão do artigo 5º, que trata sobre direitos e garantias
fundamentais (ANTUNES, 2014). O meio ambiente, nesses termos, é entendido como
essencial à sadia qualidade de vida, tratando-se de clara inspiração na Declaração de
Estocolmo, como põe Beltrão (2014).
Mais além, pode-se afirmar que a proteção dos bens ambientais está intimamente
ligada ao princípio constitucional da dignidade humana (FIORILLO, 2014), e arrisca-se
a afirmar que a sadia qualidade de vida acentua a ligação com o princípio, um dos
fundamentos da República e instrumento discursivo importante na afirmação dos direitos
humanos (MCCRUDDEN, 2008)
No mesmo artigo, o meio ambiente ecologicamente equilibrado é tido como bem
de uso comum do povo, o que sinaliza uma inovação na concepção dos tipos de bens,
ultrapassando a clássica divisão entre bens públicos e privados, indicando que a União –
muito embora o artigo 20 da Constituição elenque seus bens, dentre os quais a maioria
tem cunho de direito ambiental – não tem a propriedade sobre o meio ambiente, mas tem
a competência de gerenciá-los, como entende Fiorillo (2014).
Quanto à competência para a proteção ambiental, esta é dividida entre União,
Estados, Distrito Federal e, por vezes, Municípios. Contudo, é questão problemática no
ordenamento jurídico a divisão infraconstitucional das responsabilidades dos entes
federativos ou políticos, que por vezes diverge do disposto constitucionalmente. Na
realidade, o próprio texto constitucional traz incoerências, como aponta Antunes (2014),
que cita que, por exemplo, reconhece-se uma competência para legislar sobre minas e
outra para o meio ambiente. O autor, ainda, indica que o Supremo Tribunal Federal, em
frente ao silêncio e incongruências constitucionais, como também da ausência de norma
infraconstitucional que complemente a Constituição, tem decidido pela centralização da
competência para a União, o que retira dos outros entes certas responsabilidades. Assim,
a vagueza quando à distribuição de competência ambientais apresenta-se como um
desafio ao Judiciário. Na prática, tais discussões alongam o tempo de duração de
processos, o que pode significar a continuação de riscos ambientais, e, no mais, a falta de
definição clara sobre a responsabilidade de preservação ambiental torna incerta a

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responsabilização do Estado por eventuais danos ambientais por ele perpetrados ou não
impedidos.
Contudo, são previstos meios de participação cidadã na preservação ambiental.
Nesse sentido, a proposta de ação popular que vise à anulação de ato lesivo ao meio
ambiente, perpetrado por entidade de que o Estado faça parte, é garantida como direito
fundamental pelo artigo 5º, inciso LXXIII da Constituição. Tal remédio constitucional,
além do inquérito civil, devem ser promovidos pelo Ministério Público quando tratarem,
entre outras causas, da proteção do meio ambiente, como estabelece o artigo 129.
No que tange às ações privadas, cabe ressaltar que a defesa do meio ambiente é
tida como princípio geral da atividade econômica, estabelecendo o artigo 170, inciso VI,
que sobre alteração pela Emenda Constitucional nº 42, de 2003, que deve ser dedicado
tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus
processos de elaboração e prestação.
No artigo 225, inciso IV, fica posta a responsabilidade do Poder Público a exigir
o estudo prévio de impacto ambiental para a instalação de obra ou atividade
potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente.
Essas últimas orientações constitucionais, em conjunto com os incisos V e VII do
artigo 225 – os quais tratam, respectivamente, do dever que tem o Poder Público em
controlar a produção, comercialização e emprego de técnicas e substâncias que gerem
risco à vida, à qualidade de vida e o meio ambiente, e sobre o dever de proteção à fauna
e à flora, além da proibição de práticas que coloquem em risco sua função ecológica,
provoquem a extinção de espécies ou submetam animais a crueldade –, evidenciam a
incorporação dos princípios ambientais da precaução e da prevenção, como já atentou
Beltrão (2014) – embora alguns autores, como Fiorillo (2014), entendam que apenas o
princípio da prevenção é presente no texto constitucional, ao passo que princípio da
precaução seria condicionando à existência daquele outro – que sustentam a tomada de
medidas, ou o impedimento destas, antes da perpetração do dano, ou seja, diante do risco
de dano.
Assim, é válido apresentar mecanismos de garantia do meio ambiente
ecologicamente equilibrado no direito infraconstitucional. Contudo, em vista do foco do
presente trabalho, tal análise será restrita às normas de Direito Civil, de forma que se
observe o surgimento de um novo paradigma no Direito Civil-Constitucional do que tange
à superação da mera responsabilização pelo dano, através da aplicação do princípio
precaucional.

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3PANORAMA ATUAL DA RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL POR DANO
AMBIENTAL
3.1 RESPONSABILIZAÇÃO DOS PARTICULARES

Dentro da clássica divisão entre Direito Público e Direito Privado, é por este que
as relações entre particulares são reguladas, implicando no pressuposto da liberdade que
têm as partes para regularem a relação que elas próprias instituem, entre outras
características do Direito Privado. O principal e mais antigo ramo do Direito Privado é o
Direito Civil, que tem como princípio essencial a autonomia da vontade das partes, hoje
é tratado pela doutrina mais vanguardista como um microssistema compreendido
Tradicionalmente, no Direito Civil brasileiro, é adotada a teoria da
responsabilidade subjetiva, que requer, para que nasça a obrigação de indenizar, o nexo
entre o dano e a conduta. Contudo, como apontam Rosenvald, Farias e Braga (2015),
houve uma mudança de perspectiva no Direito Civil, que outrora buscava censurar o
ofensor pela prática de ato reprovável, agora procura um responsável para um dano
perpetrado.
Tal divisão é percebida em alguns dispositivos do Código Civil. A regra geral,
portanto, é que se aplique a teoria da responsabilização subjetiva. Entretanto, em algumas
situações, previstas no parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, é aplicada a teoria
da responsabilidade objetiva, em que há a reparação independentemente de culpa. Um
desses casos se dá quando a responsabilização objetiva é prevista em lei, tal como ocorre
com o dano ambiental.
A matéria ambiental, por sua vez, é regulada pela Lei nº 6.938 de 1981, que
instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente. O parágrafo primeiro do artigo 14 da Lei
é claro no que diz respeito à responsabilização objetiva do perpetrador do dano ambiental,
sendo obrigado a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros
afetados. Ainda, o dispositivo confere aos Ministérios Públicos dos Estados e da União a
legitimidade para proporem ação de responsabilidade civil e criminal pelos danos
causados ao meio ambiente.
Entretanto, como aponta Alvim, o Direito hoje é atravessado por uma mudança de
perspectiva no que tange à responsabilidade civil, que passa a visar à valorização da
pessoa humana e de sua dignidade, que implica na superação do fundamento da culpa e
passa a buscar um responsável pela indenização. Assim, o risco surge como nexo de

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imputação, o que gerou o desenvolvimento de algumas teorias acerca da
responsabilização pelo risco.
Essas teorias, como a teoria do risco integral do risco perigo, risco administrativo,
risco criado, bem trabalhadas por Tartuce (2015), contudo, inda não abordam a questão
precaucional, especialmente porque ainda não são centradas na noção de prevenção, mas
de responsabilização. Portanto, ainda não será possível estabelecer, no presente trabalho,
qual teoria do risco adotada pelo Direito Civil abarcaria a nova proposta ensejada pela
precaução.

4 RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DO ESTADO

A responsabilidade do Estado pode ser derivada das ações do Executivo,


Legislativo e Jucidiário. Contudo, é a função administrativa que abarca a tarefa precípua
da realização dos interesses públicos, sendo que a Administração Pública, em sentido
objetivo, compreende o fomento, a polícia administrativa e o serviço público, além da
intervenção e da regulação, segundo alguns autores, como aponta Di Pietro (2014). São
essas ações, que envolvem a alguma inferência no meio ambiente, tais como obras
públicas, que serão matéria de estudo no presente tópico,
Antes disso, contudo, deve ser feita uma importante distinção esclarecida por
Justen Filho, sobre a responsabilidade administraiva e a responsabilidade civil do Estado:
enquanto a primeira trata, segundo o autor, da “submissão da organização estatal ao dever
jurídico-político de prestar informações e contas por suas ações e omissões e de corrigir
as imperfeições verificadas em sua conduta” (2006, p. 227). De outro forma, a
responsabilidade civil do Estado, em suma, consiste no dever estatal de reparar os danos
provocados contra terceiros.
No que diz respeito à responsabilidade civil do Estado, tem-se que tanto a teoria
da responsabilidade objetiva, quando a da responsabilidade subjetiva, podem ser
aplicadas no caso brasileiro. A primeira incidirá em casos de conduta comissiva do
Estado, ou seja, quando algum ente público causa diretamente o dano. Para a aplicação
da segunda, deve ser identificado o elemento subjetivo, sendo este a omissão estatal
(BELTRÃO, 2014).
Dessa maneira , pode-se resumir que, no que diz respeito à responsabilização por
dano ambiental, aplica-se a teoria da responsabilidade objetiva, na qual deverá haver a
prova da inexistência do dano e do nexo causal. A fuga à regra existiria, portanto, no caso

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de conduta omissiva do Estado, em que deve haver o elemento subjetivo da culpa,
ensejando a aplicação da teoria da responsabilidade subjetiva.
Entretanto, Tartuce (2011) pondera que a classificação entre atos omissivos e
comissivos do Estado não reflete a realidade social brasileira e que mais acertado seria
estabelecer sempre a responsabilidade objetiva do Estado, que não requer a exigência do
elemento culpa. Ainda, o autor sinaliza para o fato de que a responsabilidade objetiva do
Estado geralmente é abrandada com base nos artigos 944 e 945 do Código Civil, que
tratam sobre a mensuração do dano para fins de indenização. Para tanto, Tartuce
demonstra, por meio da análise jurisprudencial, que o artigo 945, o qual introduz a figura
da culpa concorrente da vítima, é frequentemente usado para a diminuição do quantum
indenizatório devido pelo perpetrador do dano – in casu, o Estado.
No que tange à classificação em atos comissivos ou omissivos, Justen Filho
(2006) explica que há duas hipóteses para o dano derivado da omissão, o ilícito omissivo
impróprio, que ocorre nos casos em que uma norma prevê dever de atuação positiva do
Estado, em que o agente público omite conduta obrigatória, e o ilícito omissivo impróprio,
em que a lei, lato sensu, proíbe certo resultado danoso, que acaba por consumar-se devido
à ausência de ações que o impedisse. Nesse último caso, para que haja a
responsabilização, é necessário provar que houve a falta de diligência esperada do
exercício da função estatal, bem como se foram tomadas providências necessárias para o
impedimento do dano. A respeito, o autor infere que tal concepção a respeito da ação
ilícita omissiva imprópria “conduz à responsabilização civil do Estado em questões de
fiscalização institucional e permanente, sempre que o exercício ordinário das
competências de acompanhamento dos fatos permitisse interferir a probabilidade de
resultado danoso a terceiro” (JUSTEN FILHO, 2006, p. 235).
No contexto da realidade brasileira, frequentemente, a responsabilização civil do
Estado por dano ambiental se dá em decorrência da realização de obra pública. Ocorre
que, como esclarece Carvalho Filho (2015), muitas vezes o Estado comete a execução da
obra a um ente privado, o que significa que é estabelecido um contrato administrativo.
Sendo assim, não trata-se da responsabilização extracontratual ou civil e, portanto, a
responsabilização cairá exclusivamente sobre o empreiteiro privado, subsidiarimente, em
alguns casos ou, ainda, a responsabilização será solidária. Nesse cenário pode surgir a
resonsabilização civil por omissão estatl, posto que deve haver fiscalização sobre as ações
privadas para que os interesses públicos sejam respeitados.
Nos casos em que a obra é executada diretamente pelo Estado, resta claro que a

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rsponsabilidade será objetiva. A respeito, Di Pietro (2014) assinala que não há consenso
doutrinário acerca das situações em que o Estado seria responsabilizado em vista da
criação de dano. A teoria do risco é apontada para tal, embora sobre esta pesem
divergências doutrinárias. Em suma, a aplicação de tal teoria resulta sempre na ampliação
da responsabilidade civil estatal, que passa a reparar danos causados por situações
imprevistas, como desastres nucleares. Contudo, pouco se depreende do Direito
Administrativo a respeito da responsabilização em vista de riscos ambientals criados ou
não impedidos pelo Estado.

5 TEORIA DO RISCO DE BECK

Em Beck (1997), a questão do risco é construída e intensificada pelo


desenvolvimento mesmo da sociedade industrial moderna, onde seus efeitos de
destruição, suas consequências são potencialmente ampliados em virtude do avanço
tecnológico. Nesse contexto, a questão da probabilidade, da incerteza ganham
centralidade no âmbito da teoria da responsabilidade. A partir da perspectiva da
modernização reflexiva, as questões ecológica ganham destaque e não se resumem à
preocupação com o ambiente, como se este fosse externo à ação humana, pois o ambiente
não se encontra dissociado da vida social humana, esta o reordena.
Nesse âmbito, trabalhar a noção de risco é fundamental e, mais ainda, articular
risco, questão ecológica e responsabilidade civil, na perspectiva da sociedade de risco, ou
seja, a questão ecológica ser tratada como um problema de risco. É preciso o
reconhecimento da imprevisibilidade das ameaças. Assim, cálculos de probabilidade
ganham ênfase no contexto da sociedade de risco. A origem dos riscos decorre do
desenvolvimento industrial além dos limites do seguro, cuja extensão assume amplitude,
sendo necessário repensar a responsabilidade na seara ambiental, pois os riscos são
infinitamente reprodutíveis, ao nível local e global. Dessa forma, é necessário
problematizar não no sentido do que não deve ser feito, mas não o que se deve evitar.
Como afirma Beck, questões de risco “são a forma pela qual a lógica
instrumentalmente racional do controle e da ordem é conduzida em virtude do seu próprio
dinamismo ad absurdum” (BECK, 1997, p. 21). Assim, como o risco decorre do
desenvolvimento e dinamismo da sociedade moderna, emerge um conflito no interior da
modernidade sobre as bases da racionalidade e o autoconceito da sociedade industrial. O
lado imprevisível e os efeitos secundários da demanda por controle conduzem ao reino

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da incerteza, da ambivalência. Assim, como se associam precaução, risco e
responsabilidade por dano ambiental (ou questões ecológicas). Questão que exige o
repensar de categorias sociojurídicas, como é a questão da responsabilidade civil
articulada à seara ambiental no contexto de retorno da incerteza e da falta de controle.

6 DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO: CONCEITO E APLICAÇÃO

A partir de 1992, data da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e


Desenvolvimento, o princípio da precaução, antes já aplicado no Direito Alemão, tronou-
se matéria digna de atenção em todo o globo na medida em que propôs uma atitude mais
prematura de proteção ao meio ambiente, qual seja a tomada de medidas quando houver
ameaça de danos graves ou irreversíveis, ainda que não exista certeza científica absoluta.
O princípio da precaução não tem definição unívoca (PLATIAU, 2004), sendo
por vezes confundido com o – ou mesmo entendido como complementar ao – princípio
da prevenção. A diferença mais frequentemente apontada entre ambos, contudo, é que o
último admite o risco não comprovado para que medidas protetivas sejam tomadas . Desse
modo, de acordo com o princípio precaucional, nenhuma ação pode ser executada se a
respeito dela existe algum risco de dano, ainda que não comprovado pela ciência. Por
isso, resta sobre o possível pertetrador do dano comprovar que sua ação não gerará riscos
ao meio ambiente, conforme coloca Wolfrum (2004 p.18): “o princípio da precaução
impõe, sobre aqueles que desejam empreender uma ação, o ônus da prova de que ela não
prejudicará o ambiente”.
Partindo-se da premissa de que a garantia de um meio ambiente ecologicamente
equilibrado é uma forma de respeito à dignidade humana (CARVALHO, 2011) deve-se
entender, como mais condizente com os preceitos constitucionais, o uso do princípio no
sentido da máxima proteção aos direitos fundamentais. Tal é o entendimento adotado por
vários autores, embora haja divergência em sua aplicação diante da falta de evidências
científicas que comprovem danos à saúde e ao meio ambiente.
Quanto a este ponto, Elli Louka entende que, frequentemente, o principio da
precaução é barrado pela falta de certeza científica, alegada por governantes para a
procrastinação de medidas protetivas do meio ambiente (1999). Nesse sentido, foi julgado
em junho de 2016 o Recurso Extraordinário nº 6271891, em que, por maioria dos votos,

1 A transcrição dos votos ainda não havia sido publicada até a metade do mês de setembro de 2016.
Os dados são retirados de notícia divulgada no portal do Supremo Tribunal Federal na internet.

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o princípio da precaução não foi respeitado, usando-se a falta de certeza científica como
justificativa para tal.
A questão é, segundo a autora, controversa porque o princípio justifica a tomada
de ações quando não há certeza absoluta sobre os riscos, posto que a construção de
empreendimentos social e economicamente importantes pode ser impedida ou
interrompida, o que poderia gerar um certo atraso no desenvolvimento, na hipóteses de
que futuramente haja comprovação da não existência de nocividade da matéria em
questão (1999).
Hugh Lacey resume bem as críticas apontadas contra o princípio da precaução,
indicando alguns posicionamentos que o têm como impedimento ao desenvolvimento dos
países, além de ser algo “anti-ciência”. A respeito, o autor compreende que tais alegações
podem indicar uma concepção fortemente capitalista e desligada com os reais valores
pertinentes à realização de direitos fundamentais (2004, p. 375). Outra acusação rebatida
por Lecey é de que haveria uma ilegítima intromissão da ética no campo científico, o que
impediria o amplo desenvolvimento técnico-científico. Argumenta o autor que, na
verdade, o princípio reforça os valores científicos da autonomia, objetividade e
neutralidade (2004).
É valido ressaltar que, mesmo entre os defensores da aplicação da precaução, há
ponderações sobre as situações em que o princípio seria viável, excluindo-se, portanto, o
uso radical do princípio, pelo qual uma ação que interfira no meio ambiente poderia ser
impedida diante de qualquer suposição de risco de dano ambiental. . Uma posição
intermediária sugere que o princípio deve ser aplicado quando, ao tempo da tomada da
decisão, exista hipótese de risco de dano, cientificamente plausível e admitida na
comunidade científica (SILVA).
No tocante à probabilidade de risco ambiental, em situações em que não há
certeza na comunidade científica, Clóvis Silveira (2014) critica a ideia de que os riscos
comprovados têm ocorrência mais provável, revelando que, na verdade, os riscos em
potencial geralmente guardam probabilidade mais elevada de concretização, podendo
causar danos mais graves justamente porque são imprevisíveis. Como exemplo, o
vazamento de material radioativo em Fukushima, no ano de 2011, provocado pelo
impacto de um tsunami, gerou discussão acerca da evitabilidade ou não do acidente. A
Comissão de Investigação Independente instaurada para analisar o caso concluiu que as
causas do acidente eram, na verdade, previsíveis, uma vez que tal região do Japão era
suscetível a terremotos. Dessa forma, restou claro que não houve preocupação com o risco

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de desastre natural na construção da usina.
Sob outra perspectiva, há quem questione as formas de produção das verdades
científicas, que podem ser manipuladas ou não apresentadas em sua inteireza a quem
legisla sobre matéria de proteção ambiental ou a quem aplica as normas. Como põem
Hermitte e David, “a avaliação de riscos num contexto de incerteza é uma questão política
e jurídica e não tão somente uma problemática de método e de ontologia cientifica” (2004,
p. 95), sugerindo que a contestação de dados seja sempre feita, de forma que os dados
técnicos verdadeiros possam ser utilizados em decisões legislativas e judiciais conforme
os padrões democráticos. De forma similar, Bim alerta para a intervenção estatal na
avaliação do risco e critica a visão reduzida com a qual alguns juristas tendem a encarar
a matéria:
Quando a questão é judicializada, um maior número de operadores do direito
entra em ação. Criados em um mundo (ilusório, frisa-se) de certeza e segurança
jurídicas, os juristas tendem a ver as questões na base do tudo ou do nada,
dificultando, desse modo, a visão das nuanças científicas e a do espaço político-
administrativo de decisão estatal. Diante deste enfoque, qualquer divergência
científica cumulada com o princípio da precaução tende a potencializar a
intervenção judicial na política pública de avaliação de risco (BIM,2004, p. 36).

Para a superação desse “tudo ou nada”, Silva (2004) propõe que a aplicação do
princípio da precaução está ligado à proporcionalidade, à proteção ambiental e à
determinação de escalas de risco, devendo haver um exame comparativo nas ações do
poder público. Assim, “os atores políticos devem avaliar as consequências potenciais da
falta de uma determinada ação sobre o meio ambiente e a saúde humana” (p. 90), ainda
que não exista prova científica concernente à ação sobre o meio ambiente.
Na prática, contudo, cabe ao Judiciário aceitar ou não os dados apresentados pela
comunidade científica. Como exlica Bim (2014), os pareceres técnicos e os estudos
ambientais não têm força vinculante nas decisões, cabendo aos juízes ponderar entre outra
implicações de possíveis empreendimentos. Contudo, é evidente que a aplicação do
princípio pode ser prejudicada em vista de tal margem de escolha, como ocorreu no
supracitado caso do STF.
De outra forma, contudo, o Supremo Tribunal, em outros casos, aplicou
corretamente o princípio precaucional, de acordo com o Princípio 15 da Declaração do
Rio, como na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 101, em que foi
todo tempo reiterado a importância da precaução, reconhecido como princípio
constitucional, em que foi proibida a importação de pneus usados, com base no artigo 225
da Constituição.

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Ainda, outro posicionamento adotado pelo STJ é peculiar, pois não determina a
não realização de obra, tampouco seu desfazimento após ocorrido o dano. O Agravo
Regimental no recurso Especial nº 1322363 foi interposto por empresa de telefonia contra
decisão que determinava a desativação de Estação Radio-Base com base no princípio da
precaução. Isto é, o princípio não foi aplicado par impedir a instalação da Estação, mas
para a sua desativação, mesmo antes de qualquer dano se tornasse conhecido no processo,
ou diante de alguma pesquisa conclusiva a respeito da nocividade provocada pela Estação.
Tem-se, assim, a construção de um novo entendimento, não apontado nesses termos pelos
autores, mas adaptado, pelo STJ, à realidade da morosidade da Justiça no país.
Por sua vez, o STF analisou o Recurso Especial nº 1437979, de 2015, interposto
por uma companhia de energia contra decisão do Tribunal Regional Federal da 5º Região.
Ficou decidida a condenação da companhia na forma da não construção de uma linha de
transmissão que apresentaria riscos à saúde da população, conforme laudo acostado pelo
Ministério Público Federal. É interessante ressaltar o objetivo precípuo do princípio
precaucional, que é impedir que medidas possivelmente nocivas sejam tomadas. Assim,
a decisão, que não conhece o Recurso Especial, reitera a aplicação da precaução de
maneira mais afiam ao entendimento dos autores.
Assim, resta clara a importância da aplicação do princípio da precaução nos
casos em que há considerável risco de dano ao meio ambiente e à saúde da população,
uma vez que é imprescindível que os danos ambientais sejam evitados, posto que a
reversão de seus efeitos pode levar décadas, o que prejudica gravemente o
desenvolvimento sustentável do país e interfere diretamente no nível de desenvolvimento
humano.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A novidade introduzida pelo princípio da precaução – incorporado ao Direito


Brasileiro em decorrência dos apelos ambientais em todo o mundo – na consecução do
objetivo da preservação ambiental significa, par além da introdução da ideia de risco na
consideração dos danos materiais, revela uma nova perspectiva a respeito da
responsabilização dos potenciais poluidores, que é a adequação ao preceito civil do dever
de não provocar o dano ao direito constitucionalizado a um meio ambiente equilibrado.
Sob a ótica do Direito Civil-Constitucional, não mais importa exclusivamente a
reparação do dano, mas sim a atenção dada ao indivíduo, exposto a riscos ambientais que

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poderiam ser evitados. Nesse sentido, a precaução surge como alternativa pedagógica e,
de certa maneira, repreensiva a ações que, embora a ciência não comprove, podem
apresentar riscos séries e irreversíveis ao meio ambiente.
Entretanto, como pode ser percebido a partir da apresentação de casos do STF e
do STJ, a recepção ao princípio acontece gradualmente no ordenamento jurídico
brasileiro, seja pelo recente desenvolvimento doutrinário a respeito do tema ou, ainda,
pelos interesses político-econômicos que frequentemente apresentam-se como obstáculo
à preservação do meio ambiente.
Retornando à ideia de risco, sendo um país em desenvolvimento social e
econômico, o Brasil é alvo importante das consequências devastadoras da degradação do
meio ambiente, que afeta cada vez mais diretamente o equilíbrio dos ricos ecossistemas
do país, afastando quaisquer condições de vida digna de grande parcela da população
brasileira, que tem que enfrentar, cotidianamente, os efeitos da poluição, do
desmatamento, da estiagem, entre outros problemas que interferem gravemente no
desenvolvimento humano brasileiro.
Portanto, ao invés de perceber-se a precaução como uma nova espécie de
normativa que agrava a situação do empreendedor de risco perante o Judiciário, o
princípio deve ser aplicado antes da perpetração do dano, pois é evidente que o Direito já
apresenta mecanismos punitivos contra os poluidores. Portanto, no que tange à atuação
dos tribunais, espera-se que o princípio seja aplicado na realização do impedimento dos
possíveis danos, sem que o argumento da total incerteza científica, de maneira que a
“punição” dirigida a tais empreendedores será a interrupção de seus planos de intervenção
no meio ambiente.
Mais além, é importante que o princípio precaucional seja incorporado, de fato, à
cultura jurídica brasileira, o que significa que, para além da atenção devida pelos
tribunais, a precaução deve se tornar motivo de políticas públicas, em vista dos frequentes
desastres ambientais ocorridos no Brasil e dos interesses econômicos que permeiam e
corrompes as discussões acerca da busca pelo equilíbrio ambiental.

REFERÊNCIAS

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REFLEXÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL DO
DESABAMENTO DE PARTE DA CICLOVIA TIM MAIA À LUZ DO
DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL: RELATIVIZAÇÃO DO
DIREITO E GARANTIA FUNDAMENTAL À VIDA

Ilany Caroline da Silva Leandro1


Fernanda Soares Braga 2
Ivanna Pessôa Moura3

RESUMO: A Constituição Federal brasileira de 1988 respalda o direito à vida como garantia
fundamental, insculpido como cláusula pétrea. Logo, cabe ao Estado assegurar tal garantia aos
seus tutelados. Nesse sentido, o presente estudo visa abordar a relativização do direito
fundamental à vida, assim como delinear reflexões acerca da responsabilidade civil na ocasião
do desabamento da ciclovia Tim Maia na Cidade do Rio de Janeiro. Para tanto, busca-se, através
de uma análise fundamentada no Direito Civil-Constitucional, explorar o instituto da
responsabilidade civil, principalmente no que tange à responsabilidade do Estado e da
empreiteira, que resultaram na relativização da garantia Constitucional à vida. Esta pesquisa,
após investigação dogmática, doutrinária e jurisprudencial, também buscará discutir a opinião
doutrinária que vincula a Administração Pública e a empresa contratada, sustentando uma
posição sobre o tema. A partir disso, será traçado um panorama, que envolve a
Responsabilidade Civil com o caso da ciclovia e suas repercussões para o agente responsável
pela reparação de danos às famílias das vítimas. Para o desenvolvimento do presente trabalho,
prediz-se o método de abordagem dedutivo, partindo-se da garantia fundamental do direito à
vida disposta na Constituição Federal de 1988, premissa maior, para análise específica do
desabamento da Ciclovia Tim Maia à luz do Código Civil brasileiro, delineando, assim, o
percurso do geral para o particular, como elemento norteador de pesquisa. Além disso, busca-
se, como técnica de pesquisa, a utilização de fontes bibliográficas, entendimentos legais e
doutrinários, enquanto documentação indireta.

1
Docente dos cursos de formação e habilitação da Instituição Corpo de Bombeiros Militar da Paraíba. Mestranda
em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba na Área de concentração em Direito Econômico -
PPGCJ/UFPB. Graduada em Direito pela Faculdade Maurício de Nassau - João Pessoa, Paraíba. E-mail:
ynaica@yahoo.com.br
2
Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba na Área de concentração em Direito
Econômico - PPGCJ/UFPB. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande - UFCG,
Paraíba. E-mail: nanda83_braga@hotmail.com
3
Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. E-mail: ivannapessoa@hotmail.com

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Palavras-chave: Direito Constitucional à vida. Ciclovia Tim Maia. Relativização.
Responsabilidade Civil. Administração Pública.

ABSTRACT: The Brazilian Federal Constitution of 1988 supports the right to life as a
fundamental guarantee, described as entrenchment clause. Therefore, the State must ensure that
such a guarantee to their wards. In this sense, the present study aims to address the relativity of
the fundamental right to life, as well as outline reflections on liability at the time of the collapse
of the bike path Tim Maia in the city of Rio de Janeiro. Therefore, we seek, through an analysis
based on the Civil and Constitutional Law, explore the liability institute, especially with regard
to the responsibility of the state and the contractor, which resulted in the relativization of the
Constitutional guarantee to life. This research, after extensive dogmatic, doctrinal and
jurisprudential investigation also seek to discuss the doctrinal opinion that links public
administration and the contractor, holding a position on the subject. From this it will be traced
a panorama, which involves civil liability with the case the bike path and its impact on the agent
responsible for the repair of damages to the families of victims. For the development of this
work, it is foretold the deductive method of approach, starting from the fundamental guarantee
of the right to life arranged in the Federal Constitution of 1988, major premise, to collapse the
specific analysis of Lane Tim Maia in the light of the Civil Code Brazilian, delineating thereby
a general route for the particular as a guiding element of research. In addition, it seeks to, as a
research technique, the use of library resources, legal and doctrinal understandings, as indirect
documentation.

Keywords: Constitutional Right to life. Bike lane Tim Maia. Relativization. Civil
responsability. Public administration.

1. INTRODUÇÃO

Visando a integração dos bairros de Leblon e São Conrado, assim como maior
mobilidade para os ciclistas, foi inaugurada em 17 de janeiro de 2016, na cidade do Rio de
Janeiro, a ciclovia Tim Maia1, contendo 3,9 (três vírgula nove) quilômetros de extensão,

1
“Ciclovia Tim Maia: é só chegar e pedalar!”. Disponível em: <http://www.cidadeolimpica.com.br/ciclovia-da-
niemeyer-e-so-chegar-e-pedalar>. Acesso em: 19 de ago. 2016.

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acompanhando o trajeto da Avenida Niemeyer, na orla marítima carioca2. Apesar de ter custado
aos cofres públicos cerca de quarenta e cinco milhões de reais, lamentavelmente, no dia 21 de
abril do mesmo ano, foi noticiada a queda de um trecho (de mais de vinte metros) da referida
ciclovia, que vitimou fatalmente dois homens que passavam por aquele local.
Logo, pretende-se traçar os reflexos decorrentes do desabamento da referida ciclovia,
sob a égide da Constituição Federal – CF/88, a partir da garantia do direito fundamental à vida,
assim como, à luz do Código Civil brasileiro – CC/02, por meio dos ensinamentos do instituto
da responsabilidade civil — partindo da análise de cabimento das excludentes de
responsabilidade e responsabilização objetiva e subjetiva do Estado e da empresa contratada,
conforme prevê o descrito diploma legal.
Sabendo que o mar encontrava-se revolto no dia do sinistro, refletiremos sobre as
excludentes de responsabilidade por caso fortuito ou força maior e sua aplicação no caso em
questão. Seria a força da natureza responsável pelo ocorrido ou podemos afastar totalmente essa
hipótese?
Apontados indícios de falhas na estrutura da ciclovia mediante laudo preliminar da
perícia do Instituto de Criminalística Carlos Éboli, sobretudo na indevida fixação da ciclovia às
pilastras de sustentação, delinearemos a possibilidade de responsabilização das empresas
contratadas pelo Poder Público (pelas falhas na projeção ou execução do projeto), como
também a possível responsabilidade do Estado, dono da obra.
Com o cerceamento da vida das duas pessoas, intenta-se discutir se o Estado, enquanto
guardião de seus tutelados, assegurou o direito fundamental à vida quando na estruturação da
Ciclovia ou se tal garantia foi relativizada. Além disso, discute-se sobre o ente responsável pela
ocorrência do dano para que, assim, sobrevenha a devida reparação na esfera cível, às famílias
das vítimas e ao erário público, sob os fundamentos da Constituição Federal, assim como, do
Código Civil brasileiro de 2002.

2. GARANTIA À VIDA: DIREITO FUNDAMENTAL À LUZ DA CONSTITUIÇÃO


FEDERAL

Os direitos fundamentais consistem em categoria jurídica crucial para afirmação da


dignidade humana, sendo essencial para consolidação do Estado Constitucional Democrático

2
“Ciclovia Tim Maia, quatro meses após a inauguração, caiu ao ser atingida por onda”. Disponível em:
<http://www.praquempedala.com.br/blog/ciclovia-tim-maia-quatro-meses-apos-a-inauguracao-caiu-ao-ser-
atingida-por-onda/>. Acesso em: 24 ago. 2016.

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de Direito. Para Cunha Júnior (2009, p. 598) os direitos fundamentais “integram a essência do
Estado constitucional, conquanto funcionam como base da Constituição”. Assim, tais direitos
exercem importante função de legitimação do poder Estatal, como também, obrigação para com
seus tutelados. Insculpido na CF/88, o direito fundamental à vida, disposto no rol do art. 5º,
consiste em cláusula pétrea3.
Dentre as peculiaridades dos direitos fundamentais, enquanto institutos basilares do
ordenamento jurídico-constitucional, Figueiredo (2013, p. 189) destaca a peculiaridade,
definida como “impossibilidade de desrespeito por atos infraconstitucionais ou de autoridades
públicas”, seguida da efetividade, que consiste na devida atuação do Poder Público com vistas
a garantir o exercício dos direitos fundamentais.
Sendo direito legítimo de defender a existência digna ressalvada de qualquer violação,
o direito à vida consiste em condição sine qua non para o exercício dos demais direitos4.
Respaldado pela Constituição, entende Cunha Júnior (2009, p. 658) que, tal direito fundamental
basilar, consiste no “mais fundamental de todos os direitos”.
Assim, cabe ao Estado assegurar o direito de continuar vivo, assim como, de ter vida
digna em sua existência. Para Moraes (2005, p. 30) “o direito à vida é o mais fundamental de
todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais
direitos”.
Logo, a proteção da vida precede qualquer outro direito, uma vez que caso não seja
devidamente assegurado, prejudicará a efetivação dos demais. Consiste em dever do Estado
proporcionar tal garantia aos seus tutelados, a fim de fundamentar a fruição dos demais direitos.
Quando o Garantidor Estatal porta-se alheio com as demandas que constituem alto risco social,

3
As cláusulas pétreas Constitucionais, dispostas no artigo 60, § 4º, são barreiras que resguardam a forma federativa
de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias
individuais. Segundo o entendimento de Novelino (2009, p. 384), “trata-se de restrições impostas pelo poder
constituinte originário ao poder reformador”, não sendo então, objeto de deliberação. Portanto, aponta Sarlet
(2004, p. 77) para a impossibilidade jurídica de proposta de emenda constitucional tendente a abolir ou diminuir a
eficácia da referida norma constitucional, “impedindo a supressão e erosão dos preceitos relativos aos direitos
fundamentais pela ação do poder Constituinte derivado”.
4
Nesse sentido, afirma Bittar (2008, p. 71) que consiste em “direito que se reveste, em sua plenitude, de todas as
características gerais dos direitos da personalidade, devendo-se enfatizar o aspecto da indisponibilidade, uma vez
que se caracteriza, nesse campo, um direito à vida e não um direito sobre a vida. Constitui-se direito de caráter
negativo, impondo-se pelo respeito que a todos os componentes da coletividade se exige. Com isso, tem-se presente
a ineficácia de qualquer declaração de vontade do titular que importe em cerceamento a esse direito, eis que se não
pode ceifar a vida humana, por si, ou por outrem, mesmo sob consentimento, porque se entende, universalmente,
que o homem não vive apenas para si, mas para cumprir missão própria da sociedade. Cabe-lhe, assim, perseguir
o seu aperfeiçoamento pessoal, mas também contribuir para o progresso geral da coletividade, objetivos esses
alcançáveis ante o pressuposto da vida”.

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tendentes a ruir ou restringir os direitos e garantias fundamentais, concorre para a relativização
do direito à vida de seus tutelados.

3. CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL: DA RESPONSABILIDADE


CIVIL À ÉGIDE DO DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL

Pode-se perceber a ocorrência gradativa da constitucionalização do Direito Civil,


quando na abordagem dos institutos desse Direito pelas lentes da Constituição, alcançando
uniformidade hermenêutica, em que as relações civis absorvem os princípios constitucionais.
Nesse sentido, ressalta Lôbo (1999) que a constitucionalização consiste em processo de
evidência do plano constitucional, elevando os princípios fundamentais do direito civil.
Com essa constitucionalização, retirou-se o foco do patrimônio – tendo em vista o
cunho patrimonialista do Direito Civil - realocando-o para a pessoa humana, ocorrendo, assim,
a despatrimonialização e a repersonalização. É válido notar que se busca o lado social,
afastando-se do individualismo, como elucida Bonavides (2011).
Dessa forma, utilizando-se dos princípios constitucionais - como o da dignidade da
pessoa humana e o da solidariedade -, nas relações civis, desloca-se de uma visão focada no
patrimônio para um panorama que vise atender as necessidades das pessoas humanas, aplicando
o Direito Civil para o benefício da sociedade (importa-se agora com o “ser” e não o “ter” da
antiga visão liberal).
Podemos aplicar todo o exposto em um dos institutos do Direito Civil, tomando-o
como exemplo a Responsabilidade Civil. Antes utilizado apenas com o intuito econômico e
patrimonialista, tutelando o direito de propriedade, trouxe, com o advento da
constitucionalização do Direito Civil, a justiça distributiva, a dignidade da pessoa humana e a
solidariedade social como destaque de sua aplicação.

3.1. DA RESPONSABILIDADE CIVIL À LUZ DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE


2002

A responsabilidade civil consiste, na concepção de Monteiro (1991) em um dos temas


de maior relevância no Direito Civil, sendo considerado como parte central. Tal fato pode ser
demonstrado pela sua evolução histórica, pois o instituto da responsabilidade civil caminhou
juntamente com o progresso da sociedade como um todo. Sendo assim, o referido instituto foi

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sendo desenvolvido aos poucos por meio da doutrina (construção de teorias, como a teoria do
risco) e da jurisprudência, buscando atender as necessidades que beiram o cotidiano atual.
Então, poderíamos afirmar que, quando um indivíduo, por ação ou omissão, ocasiona
dano ilícito, violando norma jurídica preexistente, sujeita-se às consequências dos seus atos –
ou seja, é obrigado a reparar o dano causado a outrem. Cavalieri Filho (2012, p. 13) ensina que
o “anseio de obrigar o agente, causador do dano, a repará-lo inspira-se no mais elementar
sentimento de justiça”. Assim, o objetivo precípuo da ordem jurídica consiste em proteger o
lícito e reprimir o ilícito.
Há vasto arcabouço doutrinário que estabelece os componentes basilares para a
responsabilidade civil. Nesse sentido, Gagliano e Pamplona Filho (2015) destacam três: a
conduta, o dano e o nexo de causalidade. É válido ressaltar que os citados autores não
enquadram a culpa como aspecto essencial, mas como um elemento que, porventura, possa
surgir.
A conduta seria justamente o comportamento ativo ou a atuação omissiva que causa
dano; a regra geral é que essa conduta seja ilícita5. Já o dano seria a lesão ao objeto jurídico
protegido, que é gerado pela conduta humana. Com a despatrimonialização do Direito Civil, o
indivíduo passou a ser o centro do sistema jurídico, como bem destacou Fachin (2001). Fato
que traz para a responsabilidade civil uma nova faceta: a reparabilidade do dano patrimonial e
também do moral – que obteve grande sustentáculo com a doutrina, influenciando a
jurisprudência e alcançando mudanças profundas no Direito Civil brasileiro.
É válido destacar os fundamentos para a caracterização do dano, isto é, os requisitos
do dano indenizável, trazidos por Gagliano e Pamplona Filho (2015) quando ressalta que a
violação de um interesse jurídico patrimonial ou extrapatrimonial de uma pessoa física ou
jurídica, a certeza do dano e a subsistência do dano. Por fim, não se pode olvidar do terceiro
requisito da responsabilidade civil: o nexo de causalidade.
Para que o agente tenha a obrigação de reparar o dano, é necessário que exista um elo
etiológico entre o dano e a conduta do indivíduo. Porquanto, estando presentes a conduta, o
dano e o nexo de causalidade, há o dever de indenizar por parte do agente causador da conduta,
configurando, dessa forma, a responsabilidade civil.

5
Gagliano e Pamplona Filho (2015, p.78) destacam que "pode haver responsabilidade civil sem necessariamente
haver antijuridicidade, ainda que excepcionalmente, por força de norma legal". Seria o caso, por exemplo, da
indenização por expropriação.

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4. REFLEXÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL NA QUEDA DA CICLOVIA
TIM MAIA

Para a consolidação do instituto da responsabilidade civil, faz-se mister a presença de


uma conduta, um dano e um nexo de causalidade entre eles. No caso a ser analisado na presente
pesquisa, há uma conduta: a queda da ciclovia pela omissão do Estado e pela falha na execução
e planejamento da obra, amplamente enfatizada nos meios de comunição, resultando na morte
de duas pessoas. Sendo assim, o dano resta claro: a vida, bem mais precioso protegido pela lex
mater, foi atingido e findado.
Ainda sobre o dano, é válido examinar se há enquadramento nos aspectos - já
esclarecidos anteriormente – do dano indenizável. A ocorrência da morte viola um interesse
jurídico extrapatrimonial de uma pessoa (o bem jurídico tutelado é a vida); o dano foi certo,
pois as mortes efetivamente ocorreram. Como o dano patrimonial ainda não foi reparado, a
responsabilidade civil se mantém.
E, para saber se há um liame entre esses dois requisitos, podemos nos perguntar: o
dano teria ocorrido sem a conduta? Ou seja, as mortes teriam ocorrido se a obra tivesse sido
perfeitamente executada ou se o Estado tivesse fiscalizado-a e consertado os erros?
Obviamente, a resposta é não. Naturalmente, os ciclistas que transitavam no momento do
sinistro, confiavam plenamente na estrutura da ciclovia.
É claramente visível a existência do instituto da responsabilidade civil nesta ocasião,
não sendo, assim, o intuito deste trabalho busca analisar tal questão. É imprescindível refletir
sobre outro questionamento advindo desse fato: qual o agente responsável pela ocorrência da
queda? Conforme debatido, há a ocorrência de um dano e uma conduta e que entre eles há nexo
da causalidade. Contudo, quem praticou essa conduta? A própria natureza? O Estado? A
empreiteira contratada? É a resposta a essa quesito que iremos tratar a partir de agora.

4.1. NÃO CABIMENTO DA CAUSA DE EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE


CIVIL POR CASO FORTUITO E FORÇA MAIOR

Há situações que não ensejam reparação pecuniária por estarem de encontro com
algum dos elementos ou pressupostos gerais da responsabilidade civil, configurando, assim,
excludentes de responsabilidade. Disciplina o art. 393 do CC/02 sobre o caso fortuito e a força
maior, estabelecendo que o devedor não se responsabiliza pelos prejuízos ocasionados nas duas

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situações – salvo se houver expressamente se encarregado por eles. Todavia, grandes
controvérsias circundam o referido instituto pelo fato de alguns doutrinadores o considerarem
como sinônimos, enquanto outros o enxergarem com diferenças.
Em análise a tais pressupostos, Rodrigues (2002) traz o caso fortuito como
impedimento relacionado à pessoa do devedor ou com a sua empresa e a força maior como
acontecimento externo. Outros doutrinadores possuem visão diferenciada, como Azevedo
(2001) que considera o caso fortuito como um acontecimento advindo da natureza e força maior
como advindo da atuação humana (credor ou terceiro). Já para Tartuce (2014), o caso fortuito
seria um evento totalmente imprevisível e a força maior um evento previsível, mas inevitável.
Este também é o entendimento de Gagliano e Pamplona Filho (2015), que traz como exemplo
de força maior um terremoto, que pode ser previsto pelos cientistas.
No caso em questão, adotando a posição doutrinária dos referidos autores, como
também de Tartuce (2014), houve uma conduta, caracterizada pelo rompimento da ciclovia
(queda) que ocasionou um dano (morte). Tal dano teria ocorrido sem a queda da ciclovia,
impulsionada pelas ondas do mar? Não. Então, temos um liame entre ambos (nexo de
causalidade). Contudo, o desabamento de parte da ciclovia pelas ondas do mar, que é um evento
da natureza, torna o fato previsível?
Considerando que o ambiente externo da ciclovia é a orla marítima, seria
imprescindível, para a construção da obra, a realização de um estudo que levasse em conta os
fatores que circundam a estrutura. Sendo assim, a ação das ondas do mar é previsível. Passa-se,
desse modo, ao próximo questionamento: o fato foi inevitável? Absolutamente não. As ondas,
conforme pode-se depreender da observação do local, eram constantemente fortes.
Logo, as ondas eram assíduas, ou seja, esperadas, uma vez que a ciclovia foi projetada
à beira mar. Para consolidar a discutida interpretação, faz-se mister destacar a Apelação Cível
nº 70000352617 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul6, alicerçando entendimento de
que a responsabilidade do ente Estatal ocorre quando provada que a omissão ou falha de serviço,
tenham concorrido para o acontecimento do evento. Porquanto, através dessa simples análise,
pode-se entender que a junção da previsibilidade e evitabilidade não consolida a noção de força

6
“Responsabilidade civil. Município. Queda de árvore. Vendaval. Força maior. Exclusão de nexo de causalidade.
A Constituição Federal, em seu art. 37, parágrafo 6º prevê apenas a responsabilidade objetiva do Estado pelos
danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, não o responsabilizando, no entanto, por fatos
provocados por condutas de terceiros ou decorrentes de fenômenos da natureza. A responsabilidade, neste caso,
somente ocorreria quando provado que, por omissão ou falha de serviço, tenha concorrido para o evento, o que
incorreu na espécie que se aponta. Sentença confirmada” (RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça. Ap. Cível
nº 70000352617. Quinta Câmara Cível. Rel. Des. Clarindo Favaretto Julgado em: 01 jun. 2000).

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maior. A partir disso, prosseguimos neste estudo para compreender melhor as classificações da
responsabilidade civil.

5. CICLOVIA TIM MAIA: DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO À


LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

A Constituição Federal, norma fundamentadora do nosso sistema, determina em seu


art. 37, § 6º, que "as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de
serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a
terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa" 7.
O atual Código Civil traz entendimento semelhante em seu art. 43 8, embora, tenha incluído
apenas pessoas jurídicas de direito público – o que gera críticas por parte da doutrina9, tendo
em vista não estar em total consonância com a Carta Magna.
Assim, tendo como respaldo as previsões contidas na CF/88, como também no CC/02,
compreende-se que foi estabelecido expressamente a responsabilidade objetiva do Estado e a
ação regressiva em caso de responsabilidade subjetiva contra os indivíduos responsáveis.
De forma acertada, Cavalieri Filho (2012) partindo da análise do art. 37, § 6º, CF,
considera a teoria do risco administrativo como a adotada no nosso ordenamento jurídico, pois

7
Para a existência da responsabilidade objetiva restam necessários três elementos: o dano, a conduta e o nexo. A
noção de culpa é considerada um dos pontos mais complexos e controversos, devido a abstração que a envolve.
Sendo assim, entende Dias (1979), um dos precursores do estudo da responsabilidade civil, a culpa como falta de
diligência quando na observância da norma de conduta. Já Glagliano e Pamplona Filho (2015) chegam à conclusão
que a culpa (em sentido amplo) decorre da inobservância de um dever de conduta, predisposto pelo ordenamento
jurídico, com vista à manutenção da paz social. Para os autores, sendo a violação proposital, o agente atuou com
dolo. Caso decorra de negligência, imprudência ou imperícia, a sua atuação é apenas culposa, em sentido estrito.
Logo, a culpa lato sensu seria composta da violação de um dever de cuidado, da previsibilidade e da voluntariedade
do comportamento do agente. A responsabilidade objetiva incide quando prevista expressamente na lei ou quando
a atividade desenvolvida pelo agente implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem, conforme se
depreende do parágrafo único do art. 927 do CC/02. O entendimento mais concreto relacionado ao final do
mencionado dispositivo é o enunciado 38 da Jornada de Direito Civil: "a responsabilidade fundada no risco da
atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do novo Código Civil, configura-se
quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do
que aos demais membros da coletividade". Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-
cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-de-direito-civil/jornadas-de-direito-civil-enunciados-
aprovados>. Acesso em: 19 ago. 2016.
8
Trata o artigo 43 do Código Civil brasileiro que “as pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente
responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo
contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo” (BRASIL, 2002).
9
Nesse sentido, afirmam Alves e Delgado (2002, p. 44) que “a atual redação do art. 43 restringe a Lei Maior, pois
não menciona as prestadoras de serviços públicos, e só se refere às pessoas jurídicas de direito público interno,
excluindo, aparentemente as pessoas jurídicas de direito público externo”. Por não poder limitar a norma
fundamental, o dispositivo do CC já nasce sem aplicação, razão pela qual o Deputado Ricardo Fiuza propôs,
através do PL 6.960 de 2002, a sua alteração, a fim de adequá-lo à Constituição Federal.

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a responsabilidade objetiva do Estado ocorre em face da relação de causa e efeito entre a atuação
do agente público e o dano. O referido autor, baseando-se na jurisprudência10, ressalta que o
mínimo necessário para determinar a responsabilidade do Estado é que o cargo, a função ou a
atividade administrativa tenham sido a oportunidade para a prática do ato ilícito. Tal
entendimento também é adotado por Meirelles (2009).
Assim, basta que tenha ocorrido alguma contribuição da relação estatal (valer-se da
qualidade de agente público) para que a responsabilidade do Estado se concretize — mesmo
que tenha sido fora do cargo/função/atividade.
Seguindo a corrente do risco administrativo, o Supremo Tribunal Federal na ocasião
do julgamento do Agravo de Instrumento - AI 73468911, entendeu pela configuração de
responsabilidade civil objetiva do poder público, quando sua omissão resultar em lesão aos
direitos de seus tutelados, “desde que presentes os pressupostos primários que lhe determinam
a obrigação de indenizar os prejuízos que os seus agentes, nessa condição, hajam causado a
terceiros”.
Com base nesta teoria, não se analisa a culpa da Administração Pública (ou de seus
agentes), bastando que a vítima demonstre o fato danoso e injusto ocasionado pela ação ou
omissão do Poder Público, como destacou Meirelles (2009). Isso se deve ao fato da atividade
pública gerar riscos para os administrados e acarretar em possíveis danos aos membros da
sociedade.

10
A partir do entendimento do Ministro Moreira Alves quando no julgamento do Recurso Extraordinário nº
130.764/PR, "a responsabilidade do Estado, embora objetiva por força do disposto no art. 107 da Emenda
Constitucional nº 1/69 (e, atualmente, no § 6º do art. 37 da Carta Magna), não dispensa, obviamente, o requisito,
também objetivo, do nexo de causalidade entre a ação ou omissão atribuída a seus agentes e o dano causado a
terceiros.". Já o Ministro Thompson Flores por intermédio do Recurso Extraordinário nº 68.107/SP, entendeu que
"a responsabilidade objetiva, insculpida no art. 194 e seu parágrafo da Constituição Federal de 1946, cujo texto
foi repetido pelas Cartas de 1967 e 1969, arts. 105 e 107, respectivamente, não importa no reconhecimento do
risco integral, mas temperado".
11
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – INOCORRÊNCIA DE CONTRADIÇÃO, OBSCURIDADE OU
OMISSÃO – PRETENDIDO REEXAME DA CAUSA – CARÁTER INFRINGENTE – INADMISSIBILIDADE
– RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO PODER PÚBLICO – 0ELEMENTOS ESTRUTURAIS –
TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO – FATO DANOSO (MORTE) PARA O OFENDIDO (MENOR
IMPÚBERE) RESULTANTE DE TRATAMENTO MÉDICO INADEQUADO EM HOSPITAL PÚBLICO –
PRESTAÇÃO DEFICIENTE, PELO DISTRITO FEDERAL, DO DIREITO FUNDAMENTAL A SAÚDE,
INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REJEITADOS. - Os elementos
que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem
(a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o “eventus damni” e o comportamento positivo (ação) ou
negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva imputável a agente do Poder
Público que tenha, nessa específica condição, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da
licitude, ou não, do comportamento funcional e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal.
Precedentes. A omissão do Poder Público, quando lesiva aos direitos de qualquer pessoa, induz à responsabilidade
civil objetiva do Estado, desde que presentes os pressupostos primários que lhe determinam a obrigação de
indenizar os prejuízos que os seus agentes, nessa condição, hajam causado a terceiros. Doutrina. Precedentes
(grifos nossos).

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Questiona-se se, no caso em discussão (desabamento da ciclovia Tim Maia), houve
responsabilidade do Estado. Para responder tal indagação, é preciso analisar, precipuamente, o
citado art. 37, CF de forma mais específica. Em análise a tais pressupostos, o Ministro Celso
de Mello, no julgado acima exposto, delineia quatro elementos que estruturam a
responsabilidade civil, os quais passaremos a elucidar melhor, fazendo um contraponto com o
caso da ciclovia discutido nesta pesquisa.
O primeiro elemento trazido pelo AI 734689, ora esposado, é a alteridade do dano,
em que é necessário que haja ofensa a algum bem jurídico para que se caracterize a
responsabilidade estatal. Caso o sinistro em estudo resultasse sem vítimas, não haveria
alteridade, não ensejando reparação cível. Ou seja, o que se discute nesse item é se houve dano,
sendo assim, a resposta resta clara.
Já o segundo aspecto elencado pelo referido precedente trata-se da causalidade
material entre o eventus damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do
agente público. No caso em tela, ocorreram danos com a morte das duas vítimas, havendo um
comportamento omissivo do Estado – em virtude da ausência de fiscalização no decorrer e na
entrega na obra.
Ademais, poderíamos acrescentar, ainda, comportamento comissivo da administração
pública em escolher a empresa, que se mostrou incompetente para a execução de uma obra desta
magnitude. Dessa forma, depreende-se que há uma relação do dano com o Estado pelo simples
fato deste ser o dono da obra – e também da sua atitude omissiva e comissiva. Sabendo da
grande divergência e complexidade do tema, trataremos, mais detalhadamente, dessa discussão
no próximo tópico.
O terceiro elemento abordado pela mencionada decisão, refere-se à oficialidade da
atividade causal e lesiva imputável ao agente do Poder Público. Nesse item, trazemos a conduta
do agente público, tendo em vista que o Estado age por meio deste. Independente da licitude do
comportamento funcional, basta que tenha agido de modo comissivo ou omissivo.
Ressalta-se que, o Estado como “dono da obra”, é o responsável por ela, pois de acordo
com Meirelles (2009, p. 662) "desde que a Administração defere ou possibilita ao seu servidor
a realização de certa atividade administrativa [...], assume o risco de sua execução e responde
civilmente pelos danos que esse agente venha a causar injustamente a terceiros". O citado autor
ainda afirma que, embora a obra seja um fato administrativo, deriva sempre de um ato
administrativo que vai ordenar a sua execução. No caso da execução por um construtor, a
responsabilidade originária se concentra na Administração, dona da obra.

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O último aspecto a ser analisado na discutida jurisprudência é a presença ou não de
alguma causa de excludente de responsabilidade. Podemos destacar que não se enquadra
nenhuma das causas de excludentes resguardadas no atual Código Civil brasileiro (estado de
necessidade, legítima defesa, exercício regular de direito e estrito cumprimento do dever legal,
caso fortuito e força maior, culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro), principalmente em
relação ao caso fortuito e a força maior, como já foi analisado anteriormente.

5.1. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO POR OMISSÃO

Os contratos administrativos possuem sempre como uma das partes a Administração


Pública, que se posiciona hierarquicamente superior à outra parte. Desse modo, são
estabelecidas, nos contratos, cláusulas exorbitantes12, que seriam ilícitas se pertencentes a um
negócio comum. Uma dessas cláusulas é a fiscalização. Se o Poder Público relaciona-se com
alguém, firmando um compromisso que, precipuamente, deveria ter sido assumido por ele, tem
o dever de fiscalizar a execução da atividade.
Então, quando o Estado é omisso e não realiza a devida fiscalização, torna-se
suscetível à responsabilidade objetiva, corrente defendida por Meirelles (2009), quando afirma
que a norma é a mesma para a conduta e a omissão do Poder Público, bastando que seja
demonstrado que o prejuízo teve um nexo de causa e efeito com o ato comissivo/omissivo13.
Cavalieri Filho (2012) ressalta que há necessidade de se fazer uma diferenciação entre
a omissão genérica e a omissão específica. Esta última se dá quando o Estado possui um especial
fim de agir, exercendo a condição de garante e por sua omissão cria uma situação propícia para
a ocorrência do evento em ocasião que tinha o dever de agir para impedi-lo; dá ensejo à
responsabilidade objetiva. Já a omissão genérica ocorre quando o Poder Público tem apenas o
dever legal de agir – não se exige uma atuação específica – e por causa da sua omissão concorre
para o resultado; aplica-se, neste caso, a responsabilidade subjetiva. Assim, a omissão Estatal
concorreu para a ocorrência do desabamento da ciclovia e consequente óbito de duas vítimas.

12
De acordo com Carvalho Filho (2014, p. 193), as cláusulas exorbitantes "são as prerrogativas especiais
conferidas à Administração na relação do contrato administrativo em virtude de sua posição de supremacia em
relação à parte contratada".
13
Com vistas a ratificar tal entendimento, afirma Araújo (2011) que o Estado responde pelas ações e omissões dos
agentes públicos em geral, podendo a omissão vir a ser causa eficiente do dano. A Constituição Federal de 1988
ratificou entendimento sobre a responsabilidade objetiva, tanto nos atos comissivos como nos omissivos.

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Assim, resta provar a culpa do Município do Rio de Janeiro. Brevi manu é
imprescindível analisar a questão por meio da noção de culpa e seus três elementos: imperícia,
negligência e imprudência. Nesse sentido, Gonçalves (2012, p. 47) aduz que:
Se, da comparação entre a conduta do agente causador do dano e o comportamento de
um homem médio, fixado como padrão (que seria normal), resultar que o dano derivou
de uma imprudência, imperícia ou negligência do primeiro – nos quais não incorreria
o homem-padrão, criado in abstracto pelo julgador – caracteriza-se a culpa.

Devemos dar destaque à negligência por estar intrinsecamente relacionada com a


queda da ciclovia Tim Maia. A negligência é a ausência de observância do dever de cuidado, a
partir da omissão. O Poder Público, como já foi visto, possui o dever de fiscalização, pois a
obra é pública. Sendo assim, é notório que se houvesse sido realizado o devido procedimento
fiscalizatório pelo ente estatal, a causa que gerou o acidente seria notada e consertada, evitando
a ocorrência do dano.
Logo, constata-se a ocorrência de responsabilidade objetiva do Poder Público
resultante de sua omissão. Além disso, consoante se depreende do exposto, é existente a
responsabilidade civil subjetiva do Município do Rio de Janeiro pela queda da ciclovia. Está
provada, assim, que, em ambos os casos, a Administração seria responsabilizada.

5.2. DA RESPONSABILIDADE SUBJETIVA DA EMPREITEIRA

Para a melhor compreensão se há responsabilidade civil na situação apresentada, é


imprescindível traçar caminhos pelo Direito Administrativo e, assim, entender melhor sobre a
relação existente entre o Município do Rio de Janeiro e a empresa que executou a obra.
Depreende-se do entendimento de Meirelles (2009, p. 188), que o contrato
administrativo trata-se do "ajuste que a Administração Pública, agindo nessa qualidade, firma
com particular ou outra entidade administrativa para a consecução de objetivos de interesse
público, nas condições estabelecidas pela própria Administração". O citado autor ainda faz a
seguinte classificação dos contratos administrativos: contrato de obra pública; contrato de
serviço; contrato de trabalhos artísticos; contrato de fornecimento; contrato de concessão;
contrato de gerenciamento.
Ademais, Melo (2010) traz obra pública como a construção, reparação, edificação ou
ampliação de um bem imóvel pertencente ou incorporado ao domínio público. Logo, essas
obras podem ser realizadas diretamente pelo Poder Público ou por entidades auxiliares, o que
consistiria na execução direta. Podem também ser executadas de forma indireta, através de

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particulares, com base na Lei 8.666 de 21 de junho de 1993, que regulamenta o art. 37, inciso
XXI, da Constituição Federal, e institui normas para licitações e contratos da Administração
Pública.
O disposto no art. 6o da Lei 8.666/9314 traz à tona a empreitada como modalidade de
execução indireta. É este tipo de contrato que passamos a desenvolver na presente pesquisa por
estar intrinsecamente relacionado com o Município do Rio de Janeiro e à construção da ciclovia.
A partir dos ensinamentos de Di Pietro (2014), podemos falar de empreitada quando a
Administração Pública incumbe a um terceiro a função de realizar uma determinada obra ou
serviço, mediante pagamento, cabendo ao particular a assunção do risco inerente ao negócio. A
referida autora ainda destaca algumas peculiaridades do referido instituto: a remuneração é paga
pelo poder público; a responsabilidade é objetiva do Estado, porque ele é o gestor; produz
efeitos bilaterais entre poder público e empreiteira; o empreiteiro atua como particular, sem
qualquer prerrogativa pública.
No caso em tela, estamos nos referindo às empreiteiras Concremat Engenharia e
Geotecnica S/A e Concrejato Serviços Técnicos de Engenharia S/A, responsáveis pela
execução da obra da ciclovia Tim Maia, por meio de processo licitatório. Com relação à
responsabilidade desses particulares no tombamento da ciclovia, é importante elucidar que:

Se a pessoa contratada para obra ou serviço causar dano a terceiros, por força de
conduta culposa e exclusiva de um de seus agentes, sua responsabilidade civil será a
que prevê o Código Civil, ou seja, a responsabilidade subjetiva. Não se lhe poderá
atribuir a responsabilidade objetiva para o fim de sujeitá-la ao art. 37, § 6º, da
Constituição (CARVALHO FILHO, 2006, p. 152).

Como já foi visto, a culpa em sentido estrito se manifesta por meio da negligência,
imprudência e imperícia. Esta última merece destaque no caso concreto ora analisado, tendo
em vista que a culpa, neste caso, decorre da ausência de habilidade ou aptidão específica em
relação a uma determinada atividade técnica ou científica. Foram apontados no laudo preliminar

14
Para devido entendimento, destaque-se o inciso VIII e suas alíneas: “Execução indireta - a que o órgão ou
entidade contrata com terceiros sob qualquer dos seguintes regimes: a) empreitada por preço global - quando se
contrata a execução da obra ou do serviço por preço certo e total; b) empreitada por preço unitário - quando se
contrata a execução da obra ou do serviço por preço certo de unidades determinadas; e) empreitada
integral - quando se contrata um empreendimento em sua integralidade, compreendendo todas as etapas das obras,
serviços e instalações necessárias, sob inteira responsabilidade da contratada até a sua entrega ao contratante em
condições de entrada em operação, atendidos os requisitos técnicos e legais para sua utilização em condições de
segurança estrutural e operacional e com as características adequadas às finalidades para que foi contratada”
(BRASIL, 1993).

Página 161 de 261


da perícia do Instituto Carlos Éboli15, indícios de falhas na estrutura da ciclovia mediante,
sobretudo na indevida fixação da ciclovia às pilastras de sustentação.
Isso demonstra claramente, falta de planejamento em relação ao ambiente externo da
obra e à própria segurança da ciclovia, o que foi considerado como um erro primário. O
consórcio fez a previsão da ação das ondas sobre os pilares que sustentam as plataformas, mas
não sobre elas. Em suma, resta predominante a existência da culpa do consórcio
Contemat/Concrejat, ensejando a responsabilidade civil.
Nesse entendimento, Di Pietro (2014) ressalta uma peculiaridade da empreitada: é
existente tanto no Direito Administrativo – através da Lei nº 8.666/93 como já foi visto até
então – quanto no Direito Civil – arts. 610 a 626 do Código Civil. Contudo, há apenas uma
diferenciação entre os dois institutos: a empreitada, no Direito Administrativo, se submete a um
regime jurídico diferenciado, com as características próprias dos contratos administrativos (o
que inclui as cláusulas exorbitantes).
A partir disso, trazemos à tona a questão da perfeição, solidez e segurança da obra,
como descrito no art. 618 do CC/02. Conforme Ferreira (2002, p. 27), "a obra perfeita é aquela
que, construída de acordo com o projeto, não apresenta defeitos ou vícios, aparentes, ocultos
ou funcionais. A obra sólida é aquela que não apresenta perigo de ruína em seu conjunto ou das
partes que a compõem". É perceptível que a ciclovia Tim Maia, entregue pelo consórcio
Contemat/Concrejato não estava em perfeito estado, tendo em vista que a plataforma não era
fixada nos pilares, ficando apenas apoiada.
De acordo com o perito da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Liun Tsun Yaei, havia
várias hipóteses que poderiam ter consertado tal defeito e evitado que o desastre ocorresse:
"fazer a amarração do tabuleiro no pilar que o sustenta, fazer um anteparo para conter a força
das ondas, fazer uma construção única ou qualquer outra alternativa"16. Obviamente, a obra não
era sólida, tendo, lamentavelmente, a convicção disso por meio da ocorrência da queda da
ciclovia.
Entende-se, portanto, que a empreiteira deve ser responsabilizada pela sua negligência
e por ter entregue a obra imperfeita e sem solidez. Comprova-se, assim, a responsabilidade
subjetiva do consórcio. Porquanto, ambas as partes – Administração Pública e o Consórcio
Contemat/Concrejato – possuem responsabilidade sobre o evento que ocorreu.

15
A partir das notícias circuladas no Estadão do Rio de Janeiro. “Perícia conclui que projeto de ciclovia ignorou
efeito de ondas”. Disponível em: <http://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,pericia-conclui-que-projeto-
de-ciclovia-ignorou-efeito-das-ondas,10000049081>. Acesso em: 19 de ago. 2016.
16
Ibidem.

Página 162 de 261


5.3. CONFLUÊNCIAS DAS RESPONSABILIDADES: PODER PÚBLICO VERSUS
EMPREITEIRA

Consoante inferimos de todo o exposto, foi comprovada a responsabilidade tanto da


Administração Pública quanto do Consórcio Contemat/Concrejato. Passamos agora a discutir
sobre o limite desta responsabilidade entre os dois agentes: seria solidária, subsidiária,
originária, objetiva, subjetiva?
Nesse sentido, Cavalieri Filho (2012) mostra que, se a obra é pública e será executada
por particulares, não há isenção da responsabilidade da Administração. Se constitui
competência desta a realização da obra e, mesmo assim, acometeu a um terceiro, não fica imune
dos atos praticados pelo contratado. O agente que executa a obra é Estatal, sendo assim, o Poder
Público deve responder pelo dano que possa ser causado pelos particulares, de forma solidária.
Busca-se, assim, afastar a visão protecionista do Estado, substituindo-a pela efetiva
reparação dos danos ocasionados por particulares na execução da obra, mesmo que
indiretamente. Ainda em análise a tais pressupostos, decidiu o Relator Newton Janke do
Tribunal de Justiça de Santa Catarina que em eventos resultantes de obras públicas, respondem
solidariamente o dono da obra e o empreiteiro contratado17. Logo, na construção de obras
públicas confiadas a empreiteiros particulares, se os danos causados a terceiros resultam da obra
em si mesma, responde o Poder Público e o executor da obra.
Já Meirelles (2009) destaca duas situações: quando os danos são oriundos só do fato
da obra, a responsabilidade é exclusivamente do Poder Público que determinou a realização
através de empreiteiros (responsabilidade objetiva); entretanto, se o dano é praticado por culpa
do empreiteiro (negligência, imperícia, imprudência) na execução da obra, a responsabilidade,
originariamente, é do Poder Público (dono da obra), que tem direito de regresso contra o
particular. Também há entendimento neste sentido, como podemos depreender a partir do
seguinte julgado:
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. OBRA PÚBLICA
CONFIADA À EMPRESA PRIVADA. DANOS CAUSADOS A TERCEIROS.
INADEQUAÇÃO DA EXECUÇÃO DO PROJETO. DEMONSTRAÇÃO.
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO MUNICÍPIO E DO EMPREITEIRO. O

17
“RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE CIRCULAÇÃO. EXECUÇÃO DE OBRAS EM VIA
PÚBLICA DE INTENSO TRÁFEGO. QUEDA EM BURACO RESULTANTE DE TRABALHOS DE
ESCAVAÇÃO. EVENTO PROVOCADO POR COMPLETA FALTA DE SINALIZAÇÃO E POR MANOBRA
IMPERITA DA MOTORISTA. CONCORRÊNCIA DE CULPAS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO
MUNICÍPIO E DA EMPREITEIRA CONTRATADA. DANOS MATERIAIS E MORAIS COMPROVADOS”
(SANTA CATARINA, Tribunal de Justiça. Apelação Cível - AC 99036 SC 2006.009903-6. Primeira Câmara de
Direito Público. Relator: Newton Janke. Julgado em: 17 mai. 2007).

Página 163 de 261


dano causado ao particular em razão de obra pública enseja tanto a responsabilidade
do Ente Público como a do empreiteiro, a depender da situação: a) se o dano exsurgir
do só fato da obra, responderá unicamente o Ente Público, objetivamente; b) se o
prejuízo decorrer da falha ou falta do serviço, responderá o Estado, com base na
responsabilidade subjetiva; e c) se a lesão resultar de conduta culposa (negligência,
imprudência ou imperícia) do empreiteiro na execução dos trabalhos, este responderá
em solidariedade com a Administração Pública (RIO GRANDE DO SUL, Tribunal
de Justiça. Apelação Cível - AC 70040655912 RS. Décima Câmara Cível. Relator
Paulo Roberto Lessa Franz. Julgado em: 29 set. 2011).

Outro pensamento que merece ser avaliado é o de Mello (2010), que defende a
responsabilidade subjetiva do Estado em casos de omissão: se o serviço não funcionou, se
funcionou tardiamente, ou ineficientemente. De acordo com o referido autor, se o Estado não
agiu, não pode ser o autor do dano, não cabendo responsabilizá-lo – ao menos se ele tiver a
obrigação de impedir o dano, ou seja, caso ele tenha descumprido dever legal que lhe era
imputado para evitar a ocorrência de evento lesivo. Segundo ainda o citado autor, "é necessário
que o Estado haja incorrido em ilicitude, por não ter acorrido para impedir o dano ou por haver
sido insuficiente neste mister, em razão de comportamento inferior ao padrão legal exigível"
(2010, p. 1.013).
Em contrapartida, entende o STJ por ocasião do Recurso Especial nº 106.48518 que o
Estado é responsável pelos atos da empreiteira na execução de obras públicas. Outrossim,
ressalta-se o entendimento do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ao entender inafastável a
responsabilidade do Estado quando o dano causado ao administrado decorre de obra pública,
compreendendo que “o ente federado, que ordena a execução da obra pública, não poderá se
eximir de responsabilidade, pelo simples fato de esta estar sendo executada por um
particular”19.
Por fim, trazemos mais uma posição adotada, dessa vez por Carvalho Filho (2006), em
seu artigo intitulado "Responsabilidade civil das Pessoas de Direito Privado Prestadoras de
Serviços Públicos", ressaltando três possibilidades: quando há conduta culposa e exclusiva de
um dos agentes contratados para executar a obra pública, a responsabilidade da Administração

18
“É jure et de jure a presunção de culpa do Estado por atos da empreiteira que para ele executa obra pública, por
isso mesmo é que se deve ver nos próprios atos ilícitos praticados pelo preposto a prova suficiente da culpa do
preponente”.
19
“AÇÃO INDENIZATÓRIA. DANO DECORRENTE DE EXECUÇÃO DE OBRA
PÚBLICA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA ESTATAL. LEGITIMIDADE PASSIVA. NEXO DE
CAUSALIDADE COMPROVADO. PROCEDÊNCIA PARCIAL MANTIDA. 1. Preliminar de ilegitimidade
passiva que se afasta, pois se o dano causado ao administrado decorre de obra pública, inafastável
a responsabilidade objetiva do ente público. 2. O ente federado, que ordena a execução da obra pública, não poderá
se eximir de responsabilidade, pelo simples fato de esta estar sendo executada por um particular. 3. Dano e nexo
de causalidade comprovados através de prova documental. Dever de indenizar pelos prejuízos materiais causados.
4. Recurso conhecido e improvido” (RIO DE JANEIRO, Tribunal de Justiça. Apelação APL
01178904020098190001. Quarta Câmara Cível. Relator Antônio Iloizio Barros Bastos. Julgado em: 13 ago. 2014).

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Pública será subjetiva (mas se o terceiro contratado não tiver condições de reparar totalmente o
dano, o Poder Público irá atuar subsidiariamente, protegendo a vítima); se há culpa concorrente
do executor da obra e do próprio Estado (negligência na fiscalização), a responsabilidade é
solidária; se o dano decorrer só do fato da obra ou do serviço contratado, aplicar-se-á a
responsabilidade objetiva.

6. CONCLUSÃO

A partir da ruptura da ciclovia Tim Maia na cidade do Rio de Janeiro, que resultou na
morte de duas pessoas, este presente estudo delineou debates sobre o cabimento da
responsabilidade civil e suas nuances, assim como suas excludentes. Logo, foi descartada a
hipótese de se aplicar ao presente caso, as excludentes de responsabilidade, especialmente no
que concerne ao caso fortuito e a força maior.
Desse modo, traçadas as questões mais pertinentes que envolvem os aspectos da
responsabilidade Civil, foi identificada conduta omissiva do Estado, ensejando a devida
reparação. Além disso, verificou-se a caracterização da responsabilidade objetiva do Estado,
sob à égide da Constituição Federal de 1988, assim como, a responsabilidade subjetiva da
empreiteira responsável pela estruturação da ciclovia, delineando os elementos da culpa,
notadamente vinculada com a imperícia.
Nesse sentido, constata-se que a Administração possui responsabilidade pela obra,
pois é a dona dela, tendo a incumbência de zelar por ela como um todo (em relação a execução
ou, quando não o faz, por meio da escolha da empresa contratada e da fiscalização dos seus
atos). É importante levar em conta a empresa que executou a obra, tendo em vista que, por mais
que o Poder Público tenha que supervisionar e fazer uma boa escolha do ente privado, este
sinalizou possuir conhecimentos específicos para o trabalho, entendendo a complexa tarefa da
construção e a grande responsabilidade que envolve a execução de uma obra ou a prestação de
qualquer serviço.
Embora a vida humana seja bem de maior proteção dentre todos os demais direitos
garantidos constitucionalmente, constata-se que a omissão Estatal na condução da obra da
Ciclovia Tim Maia concorreu para o desabamento de um de seus trechos e consequente
vitimização de dois transeuntes que passavam no local no momento do sinistro.
Logo, enquanto garantidor da segurança de seus tutelados, a conduta omissiva Estatal,
além de caracterizar a responsabilidade civil objetiva, concorreu com o perecimento da vida

Página 165 de 261


das vítimas do incidente, caracterizando assim, relativização do direito primordial à vida,
resguardado pela Constitucional Federal de 1988, insculpido como cláusula pétrea.
Assim, as famílias das vítimas no desastre ocorrido na cidade do Rio de Janeiro com a
ruptura da ciclovia Tim Maia devem demandar o Município do Rio de Janeiro, originariamente.
O referido Município pode, posteriormente, ingressar com uma ação regressiva contra o
Consórcio Contemat/Concrejato.

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A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO NA CIRURGIA
PLÁSTICA

Jéssyca Fontenele Macêdo1


Robson Antão de Medeiros2

RESUMO Erros médicos provenientes de cirurgias plásticas foram incorporados ao ramo da


responsabilidade civil, e vem a cada dia ganhando mais destaque na área jurídica, devido o
crescimento exorbitante de realização de cirurgias, especialmente as chamadas cirurgias
estéticas, por conta do estimulo da mídia e da sociedade para que haja a busca por uma beleza
que atenda os padrões estabelecidos e que pessoas atinjam formas perfeitas. O presente estudo
tem como objetivo a análise da responsabilidade civil na atividade médica, especificamente a
questão da cirurgia plástica, abordando a cirurgia reparadora e estética, questionando sobre
como enseja a responsabilidade em cada uma delas, tendo em vista a aplicação da obrigação de
meio e de resultado. Para tanto, aplicou-se a metodologia bibliográfica, parcialmente
exploratória e qualitativa, sendo assim, a melhor forma de se contribuir para a problematização
do tema aqui apresentado.
Palavras - chave: Responsabilidade Civil Médico. Cirurgia Plástica Reparadora. Cirurgia
Plástica Estética. Obrigação de Meio. Obrigação de Resultado.

ABSTRACT. Medical errors from plastic surgery were incorporated into the branch of civil
responsibility, and comes every day gaining more prominence in the legal field because the
exorbitant growth of surgeries, especially the so-called cosmetic surgeries by media stimulus
bill and society so there is the search for beauty that meets established standards and that people
achieve perfect forms. This study aims at the analysis of liability in medical activity, specifically
the issue of plastic surgery, addressing restorative and cosmetic surgery, questioning how
entails the responsibility for each of them, with a view to implementing the means and
obligation result. Therefore, we applied the methodology literature, partly exploratory and
qualitative, so the best way to contribute to the theme of questioning presented here.

1
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba
2
Professor dos Cursos de Graduação e de Pós-graduação em Ciências Jurídicas, da Universidade Federal da
Paraíba.

Página 169 de 261


Keywords: Medical Liability. Reconstructive Plastic Surgery. Aesthetic Plastic Surgery. Half
obligation. Result obligation.

1. INTRODUÇÃO

O presente estudo aborda a responsabilidade civil do médico3, restringindo-se a


especialidade da cirurgia plástica, discutindo a obrigação de meio e de resultado nas cirurgias
plásticas tanto reparadoras como estéticas. Vários são os motivos que conduzem a importância
da devida questão.
A Constituição Federal de 1988, no seu art. 5°, X, aborda a estética como um direito
personalíssimo e vislumbra como bem jurídico da pessoa humana, o direito a imagem. Assim,
observa-se uma nova postura em relação às questões das cirurgias estéticas, deixando estas de
serem vistas como um simples ato de vaidade e abrangendo uma dimensão maior, que envolve
a vontade de estar bem com si mesmo e de maior aceitação social.
As facilidades do mundo moderno, e consequentemente o maior nível de informação
e acessibilidade, fazem que as cirurgias plásticas, tanto estéticas como as reparadoras, sejam
cada vez mais procuradas por pessoas que buscam melhorar a aparência ou resolver questões
de saúde físicas e psíquicas.
O aumento do número de médicos no mercado de trabalho é outro fator que contribui,
significativamente, para o maior número de cirurgias realizadas, e, proporcionalmente, ao
aumento do número de ações levadas a apreciação do Judiciário com as devidas reclamações
dos pacientes.
Devido à popularização das cirurgias plásticas muitos são os casos que cotidianamente
aparecem de danos estéticos e morais decorrentes de tais cirurgias aos pacientes, e diante de
tais situações, cabe-nos analisar como o judiciário vem se posicionando acerca da
responsabilidade dos profissionais da medicina com relação aos danos advindos da sua conduta.
A questão é que não existe lei ou resolução que proíba qualquer médico de realizar
procedimento cirúrgico, não precisando este obter especialização em cirurgia, ou seja, a cirurgia
estética pode ser realizada por dermatologistas ou até mesmo por ortopedistas.

3
Este estudo fez parte na monografia de Trabalho de Conclusão de Curso de Direito da Universidade Federal da
Paraíba, em fevereiro de 2015.

Página 170 de 261


A cirurgia plástica embelezadora proporciona boas vantagens financeiras ao médico,
devido não estar submetida aos planos de saúde, nem aos convênios médicos. Assim, vários
são os profissionais que ingressam no ramo cirúrgico sem a devida especialização que o caso
requer e sem pensar nas responsabilidades que podem incidir ao realizar tal procedimento.
Entretanto, os erros médicos não tem conseguido afastar as pessoas da realização dos
procedimentos cirúrgicos, prova disso é que no Brasil, os números de cirurgias plásticas
realizadas aumentam a cada ano, assim, sendo considerado um dos países que mais realiza
cirurgias plásticas no mundo, segundo site de notícias
http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2014/07 (2014).
O médico é profissional liberal e de acordo com o Código de Defesa do Consumidor -
CDC responde, em regra, de forma subjetiva, tendo obrigação de meio. Porém, no caso da
cirurgia plástica o médico responde de forma objetiva, tendo obrigação de resultado.
A responsabilização do médico relaciona-se com a obrigação assumida, assim merece
questionamento sobre a aferição da responsabilidade do médico nas cirurgias plásticas estéticas,
uma vez que a maior parte da doutrina e jurisprudência considera nelas que a obrigação do
médico é de resultado.
Assim, na obrigação de resultado para auferir a responsabilidade vislumbra a conduta
médica, pois deve o médico cumprir seu dever de informação e orientação dos pacientes, e se
comprometer com o resultado estabelecido.
O estudo teve como objetivo analisar, através dos posicionamentos doutrinários e
jurisprudenciais, a responsabilização do médico cirurgião plástico, no tocante a sua relação com
o paciente, o cumprimento ético da sua conduta, a responsabilização subjetiva como
profissional liberal, e observar o quanto à diferença da natureza da obrigação enseja na devida
aferição da responsabilização. Para tanto, aplicou-se a metodologia bibliográfica, exploratória
e qualitativa, sendo assim, a melhor forma de se contribuir para a problematização do tema aqui
apresentado.

2. RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO

Atualmente, a questão da responsabilidade civil do médico ganha importância. Entre


os motivos, encontra-se a mudança na relação médico-paciente que, a maioria das vezes, não
se caracteriza mais como uma relação que tem por base a confiança no médico da família como
acontecia nos tempos de outrora, em que danos médicos considerados como inevitáveis, de
acordo com Kfouri Neto (2003).

Página 171 de 261


Assim, nos dias atuais, com base numa visão consumerista os sujeitos da relação são,
conforme o CDC, o fornecedor de serviço (médico) e o usuário (paciente), que a partir do
diálogo constroem uma relação horizontal, onde o médico presta o dever de informação,
esclarecendo dúvidas quanto o tratamento.
Essa mudança na relação médico-paciente ocorre em virtude da exigência
constitucional que todos possuam acesso à saúde e a informação, e também, da ramificação do
conhecimento médico em diversas especializações, segundo site
http://www.rbmfc.org.br/rbmfc/article/viewFile/192/143 (2014).
Outro motivo que contribui para aumento das demandas provenientes de erros médicos
no Judiciário, buscando a devida responsabilização do profissional surge em virtude do
mercado de trabalho que absorve cada vez mais novos médicos, devido à facilitação do acesso
ao ensino superior através o número de faculdades que se multiplicam, tanto é assim que nos
últimos catorze anos o número de faculdades de medicina existentes no Brasil dobrou, chegando
a superar o número de faculdades existentes nos Estados Unidos; formam-se mais de 16 mil
médicos anualmente no Brasil; e no Estado da Paraíba as escolas médicas são três públicas e
quatro particulares, segundo portal do Conselho Federal de Medicina – CFM
http://portal.cfm.org.br (2014).
Também, questiona-se a qualidade dos novos cursos, pois como realidade do Estado
Paraibano, citam-se as escolas de medicina existentes na cidade de Cajazeiras, pela constante
dificuldade de estrutura hospitalar necessária para o desenvolvimento das atividades
acadêmico-profissional que garantem o aprendizado dos futuros médicos que ingressarão no
mercado de trabalho, segundo site de noticias http://www.exatasnews.com.br (2014).
Por sua vez, questiona-se tanto o curso de medicina na instituição pública ou privado,
realmente, tem condições de preparar esse profissional para atuar na área da cirurgia plástica?

2.1 NATUREZA DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO CONTRATUAL OU


EXTRACONTRATUAL.

A responsabilidade extracontratual consiste no cumprimento do dever geral e a


contratual advém de um negócio estabelecido entre as partes, podendo ser verbal ou escrito.
No tocante a natureza da responsabilidade civil no exercício da medicina há discussões
doutrinárias sobre a sua classificação como contratual ou extracontratual. Hoje, a doutrina
majoritária filia-se ao entendimento que da relação estabelecida entre médico e paciente enseja

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responsabilidade contratual, e que somente em alguns casos incide a responsabilidade
extracontratual.
Sobre essa classificação da responsabilidade civil do médico diz Aguiar Dias (1979):
“Ora, a natureza contratual da responsabilidade médica não nos parece objeto de dúvida. [...]
Acreditamos, pois, que a responsabilidade do médico é contratual, não obstante a sua colocação
no capítulo dos atos ilícitos”.
Também, nessa perspectiva, afirma Maria Helena Diniz (2009): “Realmente nítido é o
caráter contratual do exercício da medicina, pois apenas excepcionalmente terá natureza
delitual, quando o médico cometer um ilícito penal ou violar normas regulamentares da
profissão”.
Quando o paciente procura o médico e concorda com seus serviços, surge o contrato
entre ambos que finaliza com o fim do tratamento. Ao médico cabe agir de acordo com a técnica
e tomando os cuidados necessários para a melhor recuperação do paciente, assim, o médico não
está obrigado com a cura, sendo, em regra, a obrigação contratual assumida apenas de obrigação
de meio, e sua responsabilização só ocorrerá mediante prova do comportamento culposo através
da desconsideração contratual (art. 14,§ 4° do CDC).
A obrigação do médico em alguns casos pode ser de resultado, como por exemplo, na
cirurgia estética que mais adiante será tratada.

2.2 DEVERES DO MÉDICO E O CÓDIGO DE ÉTICA

O Código de Ética disciplina direitos e deveres da atividade médica, zelando pelo


cumprimento profissional e o cuidado com o paciente. Segundo Stoco (2009) os erros médicos
podem ser indenizáveis devido à violação de deveres estabelecido do Código de Ética, que
podem ser:
I – a violação da lei ou do regulamento e o abuso de poder;
II – a prática de experiências médicas com técnicas não aceitas;
III – deixar de informar e aconselhar adequadamente o paciente;
IV – o erro grosseiro no diagnóstico, como causa do insucesso no procedimento
médico;
V – a quebra do sigilo médico;
VI – exorbitar dos limites estabelecidos no contrato;
VII – a violação do consentimento do paciente;
VIII – omitir ou negar socorro em caso de iminente perigo de vida ou de urgência.

É vetado ao médico, de acordo com o art. 31, do Código de Ética (Res. 1931/2009),
segundo portal http://www.portalmedico.org.br (2014): “Desrespeitar o direito do paciente ou

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de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou
terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”.
Desse modo, antes da realização de qualquer procedimento o médico deve explica-lo
ao paciente, ou caso de impossibilidade do último, a seus familiares, buscando o consentimento
ou não, dessa maneira, respeitando a autonomia da vontade do paciente e a capacidade de
consentir. O consentimento informado perde sua obrigatoriedade em casos de emergência.
Além da responsabilidade civil e penal, ao médico enseja também a responsabilidade
ético-profissional que é punida pelo Conselho de Medicina com base no Código de Ética
Médica, Regulamentos, Pareceres, Resoluções Normativas e Leis Processuais, buscando
através de processo administrativo comprovação da infração médica, para a aplicação devida
da punição que pode ser advertência profissional, em aviso reservado; advertência profissional,
em aviso reservado; censura confidencial, em aviso reservado; censura pública, em publicação
oficial; suspensão do exercício profissional, até 30 (trinta) dias; cassação do exercício
profissional, conforme o art. 17 do Decreto nº. 44.045/58.

2.3. PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA

Os pressupostos da responsabilidade ensejam desde a culpa, o nexo causal e o dano.


A culpa médica é, justamente, o conjunto de danos provenientes do exercício da atividade
médica, devendo ser indenizáveis mediante comprovação da culpa ou dolo, ou seja, a
responsabilidade é subjetiva, fundamentando-se na má intenção ou na culpa stricto sensu,
devido negligência, imperícia ou imprudência do profissional no cumprimento dos seus deveres
profissionais, sendo obrigação de meio, conforme dispõe o art. 951, do Código Civil – CC
(BRASIL, 2014):

Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização
devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência,
imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe
lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.

Dessa maneira, a culpa em stricto sensu pode ser identificada caso comprove que o
médico agiu com: a) Negligência é quando o médico age com falta de diligência, ou seja, sem
o devido cuidado e atenção deixando de observar seus deveres e obrigações, sendo, de acordo
com Genival Veloso França (1994), uma conduta sempre relacionada com omissão de
comportamentos. Como exemplo, pode-se citar o retardamento na intervenção cirúrgica, troca
de prontuário e exames de paciente, esquecimento de objeto dentro do corpo do paciente.

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A Imprudência é quando o médico age sem precaução, caracterizando-se como culpa
comissiva. Exemplos, o caso de aplicação de anestesia simultânea, remoção de pacientes sem
equipamentos necessários, segundo Kfouri Neto (2003). Por fim, a Imperícia que é deficiência
de preparo, desconhecimento da conduta, falta de habilidade técnica.
Alguns casos são exceções, ensejando a responsabilidade objetiva, por ser obrigação
de resultado, com fundamento no risco do serviço prestado, por ex. responsabilização por danos
de cirurgia estética, segundo Kfouri Neto (idem).
Kfouri Neto (ibidem) sobre obrigação de meio e de resultado e o ônus da prova:
o encargo assumido pelo médico configura obrigação de meios – e só por exceção
constituirá obrigação de resultado. O desdobramento, quanto ao ônus da prova é que
nessa última, ao paciente/ vítima incumbirá apenas demonstrar o resultado não foi
alcançado – e ao médico competirá a prova de um fato que o exima da
responsabilidade. Quanto à primeira, a vítima deverá fazer prova de que o médico não
agiu com o grau de diligência razoável e houve descumprimento culposo.

No que se refere á comprovação da culpa médica, os principais meios de prova que


podem ser utilizados são: depoimento pessoal do médico, testemunhas, inspeção judicial,
documentos, perícia, segundo Kfouri Neto (idem, ibidem). No caso da verificação da culpa do
médico, críticas doutrinárias são feitas em relação ao uso da prova pericial alegando a quebra
de imparcialidade em virtude do corporativismo da classe, de acordo com Gonçalves (1957).
Para facilitar a avaliação da culpa médica pelos magistrados, Teresa Ancona Lopez de
Magalhães (1984) apresenta as seguintes sugestões:

1. quando se tratar de lesão que teve origem em diagnóstico errado, só será imputada
responsabilidade ao médico que tiver cometido erro grosseiro;
2. o clínico geral deve ser tratado com maior benevolência que o especialista;
3. a questão do consentimento do paciente em cirurgia onde há risco de mutilação e
de vida é essencial;
4. o mesmo assentimento se exige no caso de tratamento que deixa seqüelas. E age
com culpa grave o médico que submete o cliente a tratamento perigoso, sem antes
certificar-se da imperiosidade de seu uso;
5. dever-se-á observar se o médico não praticou cirurgia desnecessária;
6. não se deve olvidar que o médico pode até mesmo mutilar o paciente, se um bem
superior – a própria vida do enfermo – o exigir;
7. outro dado importante é que o médico sempre trabalha com uma margem de risco,
inerente ao seu ofício, circunstância que deverá ser preliminarmente avaliada e levada
em consideração;
8. nas intervenções médicas sem finalidade terapêutica ou curativa imediata, como
cirurgia plástica, a responsabilidade por dano deverá ser avaliada com muito maior
rigor.

No tocante a aferição da culpabilidade do médico, afirma Kfouri Neto (op.cit.): “Não


é preciso que a culpa do médico seja grave: basta que seja certa. A gravidade da culpa, agora,
repercutirá na quantificação da indenização”.

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Assim, demonstra o art. 944, parágrafo único, CC (op. cit.): “A indenização mede-se
pela extensão do dano. Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade
da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização”.
Desse modo, toda vez que existir dano terá indenização, mas esta será estabelecida
pelo juiz que poderá reduzi-la mediante proporção entre gravidade do dano e culpa médica.
No tocante ao nexo de causalidade faz-se necessário chegar à responsabilização de um
agente por um ato danoso cometido, estabelecendo uma ponte que liga a ação ou omissão do
agente ao dano. Caso esta não seja demonstrada improcedente é a reparação pleiteada pela
vítima, segundo Kfouri Neto (op.cit.). Na responsabilidade civil do médico, o nexo causal nem
sempre é claro, haja vista a pluralidade de causas que antecedem o dano, de acordo com
Costales (1987). Assim, o nexo causal é o liame entre a conduta e o dano. Não existe dever de
reparação sem a presença do nexo causal, pois, como mais adiante serão abordadas, as
excludentes de responsabilidade vão evidenciar justamente o rompimento do nexo causal, ou
seja, a quebra de ligação entre a conduta e o dano, dessa maneira afastando a indenização do
agente.
O dano é um dos pressupostos da responsabilidade civil, talvez possa dizer que seja o
principal, uma vez que é através dele, quando real e efetivo, que constitui o dever de indenizar,
sendo insuficiente apenas o comportamento culposo do individuo.
Os danos médicos podem ser: materiais, morais e estéticos. Na responsabilização do
médico, os danos materiais ou patrimoniais surgem em virtude dos danos corporais, ou seja,
aqueles que atingem o corpo ou à saúde do paciente.
O dano material é composto do dano emergente e do lucro cessante. Assim, no caso
do dano médico quando material, o dano emergente é visualizado mediante a ofensa a
integridade física do paciente, e a devida reparação ocorre com despesas do tratamento, tais
como, medicamentos, internação, com intenção de que o lesado volte ao status quo ante. Já a
parte correspondente ao lucro cessante é aquela que o lesado deixou de ganhar devido o dano
que lhe foi causado, por exemplo, o dinheiro que ganharia trabalhando se não tivesse em
tratamento.
Os danos morais correspondem à lesão dos bens personalíssimos causando a dor,
sofrimento, vergonha, humilhação, e estes devem ser compensados mediante indenização,
assim satisfazendo vítima para diminuir o desejo de vingança e cumprindo a finalidade
punitivo-pedagógica do instituto da responsabilidade civil.

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Como o dano moral, o dano estético também representa ofensa a um dano da
personalidade. No caso do dano estético, a ofensa resulta na lesão à imagem, que é um direito
assegurado no art. 5°, V, da Constituição Federal do Brasil, (BRASIL, 2014): “é assegurado o
direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral e à
imagem”.
Muitos doutrinadores, como José de Aguiar Dias (1979) e Teresa Ancona Lopez de
Magalhães (2004), criticam a cumulatividade do dano estético com o dano moral, tratando tal
como um bis in idem, devido acreditar que o dano estético constitui categoria de dano moral.
Porém, o Superior Tribunal de Justiça - STJ vem se posicionando de forma diferente,
permitindo a cumulação.
Kfouri Neto (op.cit.) conceitua dano estético como “lesão à beleza física, à harmonia
das formas externas de alguém”. Ainda, orienta que deve haver ponderação para mensurar o
dano estético uma vez que é relativo o conceito de beleza, caracterizando tal dano é a
modificação sofrida deixando aparência mais feia.
No judiciário brasileiro, a parte legítima para ingressar ação correspondente a dano
estético é a própria vítima do evento danoso, não podendo buscar a reparação um parente seu.
O magistrado medirá a compensação do dano estético de acordo com sua extensão, a
localização, a possibilidade ou não de remoção e as características da vítima, no que se refere
ao sexo, idade, profissão, de acordo com Kfouri Neto (idem).
Caso seja possível à remoção do dano estético, a sua compensação irá corresponder
aos gastos da cirurgia corretiva, sendo também imputada ao agente do ato danoso reparação por
danos morais a vítima referentes ao sofrimento que causou a mesma, segundo Melo (2008).

2.4. LIQUIDAÇÃO DE DANOS MÉDICOS

A liquidação dos danos consiste na determinação de uma quantia em dinheiro que deve
ser paga pelo agente para a compensação pelos danos sofridos pela vítima.
Para liquidação de danos patrimoniais o Código Civil estabeleceu nos artigos 948, 949
e 950 seu cumprimento.
Assim, quando o ato médico causar a morte de outrem, a reparação ocorrerá nos
moldes do art. 948 do CC, compreendendo quantia suficiente que cumpra despesas de
tratamento, funeral, luto da família, bem como os alimentos para os dependentes da vítima.
A reparação do ofendido no caso de ato médico que provoca lesões ou ofensa a saúde
compreende despesas do tratamento e lucros cessantes, conforme dispõe o art. 949 e pela

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Súmula 562, do Supremo Tribunal Federal - STF. Ainda, de acordo com art. 950 do CC, se a
lesão causar prejuízo na realização da atividade laborativa é devido pensão corresponde com a
atividade que deixou de ser exercida.
Na liquidação dos danos morais para fixar a indenização deve-se apreciar: a gravidade
da lesão ao patrimônio moral ou extrapatrimonial; as condições econômicas do ofensor, no caso
o médico ou o estabelecimento de saúde; o grau de negligência, imprudência ou imperícia da
ação ou omissão médica, a fim de que a indenização sirva como fator pedagógico, de molde a
coibir novos procedimentos culposos por parte do causador do dano.

2.5 RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROFISSIONAL LIBERAL

O art. 3° do CDC menciona à responsabilidade do profissional liberal, consiste em


uma exceção do CDC e Fábio Ulhoa Coelho (2009) conceitua profissional liberal da seguinte
maneira:
Considera-se profissional liberal o prestador autônomo (elemento econômico) de
serviços especializados, para cuja execução exige a lei formação superior e sujeição à
fiscalização pelo órgão de classe (elemento institucional). A lei imputa-lhe
responsabilidade civil aquiliana pelos danos que causar aos contratantes de seus
serviços.

De acordo com o art. 14, §4°, CDC, os profissionais liberais são responsabilizados
somente mediante comprovação de culpa pelo defeito ou vício do serviço prestado, isso pode
ser justificado devido exercerem atividade baseada nos conhecimentos aprofundados para
garantia do sustento próprio, não se caracterizando como uma atividade empresarial. Nota-se
que essa justificativa foi apresentada pelo legislador através do art. 966, parágrafo único do CC,
segundo Coelho (idem).
Justifica-se a responsabilidade subjetiva para o profissional liberal devido à prestação
de serviço ser estabelecida através da confiança do cliente no seu serviço, sendo assim a
atividade realizada é intuitu personae. Por ser responsabilidade subjetiva, a obrigação é de
meio, ou seja, o profissional liberal tem o dever de usar do seu conhecimento, sua atenção,
experiência e habilidade para tenta atingir o resultado desejado. Então, o profissional liberal
não pode garantir a total possibilidade de se alcançar o resultado, mas pode trabalhar mediante
da probabilidade de consegui-lo.
Porém, há críticas doutrinárias e jurisprudenciais sobre a responsabilidade subjetiva
do profissional liberal, que defendem que dependendo da natureza da atividade ou da obrigação
de resultado assumida por meio do contrato, a responsabilização do mesmo também pode ser

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classificada como objetiva, de acordo com site http://ambitojuridico.com.br/site (2014), é o
caso do médico quando realiza cirurgia estética, pois a jurisprudência majoritária atribui
responsabilidade objetiva, alegando que foi estabelecido um contrato de prestação de serviço
que deve ser cumprido.
De acordo com Conselho Federal de Medicina - CFM, o médico pode ingressar no
ramo da cirurgia plástica com outra especialidade, por exemplo, cirurgia geral, dermatologia,
estando apto para realizar o procedimento cirúrgico, não necessitando ter a especialização em
cirurgia plástica. É possível, ainda, em virtude da lei brasileira permitir que a formatura em
medicina seja suficiente para que o profissional possa atuar em qualquer ato médico e cirúrgico.
Tal posicionamento não é defendido pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica -
SBCP. Nessa perspectiva, afirma o ex-presidente do SBCP José Horácio Aboudib, de acordo
com o site http://gazetaonline.globo.com (2014): "Segundo o Conselho Regional de Medicina
de São Paulo, 97% dos médicos com processos relacionados à cirurgia plástica não são
cirurgiões plásticos. Mas a má fama recai sobre quem é cirurgião plástico". Assim, a SBCP
recomenda ao paciente que para sua segurança, antes de realizar uma cirurgia plástica deve
escolher um cirurgião de sua confiança e que membro da Sociedade Brasileira de Cirurgias
Plásticas, pois os membros que compõe o referido órgão estão treinados para realizar qualquer
tipo de cirurgia, devido ser obrigatório se especializar com tempo mínimo de três anos em
cirurgia plástica, e possuem uma postura profissional condizente com o código de ética, de
acordo com o site http://www2.cirurgiaplastica.org.br (2014).

3. RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO NA CIRURGIA PLÁSTICA

A Cirurgia Plástica é uma especialidade médica busca de estabelecer ou restabelecer formas e


funções orgânicas. Deste tipo de profissional com essa especialidade médica se exige além do
cumprimento de princípios éticos da profissão, a susceptibilidade de ver com precisão a necessidade de
cada paciente e seus limites variando de caso a caso o procedimento a ser efetuado.

3.1. CIRURGIA PLÁSTICA A ESTÉTICA E A REPARADORA

A cirurgia plástica é utilizada desde antiguidade para contornar deformidades, porém


só começou ganhar mais popularidade com a descoberta da anestesia que facilitou o
procedimento cirúrgico, deixando-o menos complicado, uma vez que é realizado sem a dor.

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Mesmo diante das facilidades do procedimento, a cirurgia plástica por muito tempo
sofreu duras críticas, principalmente a cirurgia estética, ou também chamada de cirurgia de
embelezamento, porque a sociedade considerava os procedimentos cirúrgicos como perigosos,
ou seja, arriscar á vida e á saúde em busca de uma boa aparência era considerado um grande
risco.
Após a Primeira Guerra Mundial devido aos grandes números de vítimas mutiladas e
deformadas, a cirurgia plástica se tornou uma especialidade na área médica, ganhado maior
visibilidade e credibilidade das pessoas. Assim, a cirurgia foi se tornando um procedimento
comum com o crescimento da sua utilização a cada dia, sendo desenvolvida não apenas a
cirurgia reconstrutiva (reparadora), como também outra espécie de cirurgia plástica, a chamada
cirurgia estética ou embelezadora, segundo Rosário (2004)
As cirurgias plásticas são reparadoras quando possuem caráter corretivo, buscando
corrigir as deformidades provocadas por lesões, defeitos congênitos ou adquiridos. Já a cirurgia
embelezadora ocorre em pessoas sadias que visam com a cirurgia plástica para aperfeiçoar,
melhorar sua aparência lhe proporcionando um conforto estético por se sentir psiquicamente
melhor, segundo Melo (op.cit.).
No Brasil, conforme pesquisa Data Folha, no período de setembro de 2007 a agosto de
2008, 73% das cirurgias realizadas são estéticas, e apenas 27% são reparadoras. Ainda de
acordo com essa pesquisa, as cirurgias reparadoras são realizadas, em sua maioria, devido
tumores, 43%; acidentes urbanos, 13%; defeitos congênitos, 12%, segundo site
http://www2.cirurgiaplastica.org.br (op.cit.).
De acordo com a International Society of Aesthetic Plastic Surgery - ISAP, em 2013,
mais de 23 milhões de cirurgias plásticas foram realizados no mundo. Pela primeira vez, o
Brasil supera os Estados Unidos, ocupando a primeira posição no ranking mundial com o maior
número de procedimentos cirúrgicos, realizando 12,9% dos procedimentos cirúrgicos, enquanto
os Estados Unidos ficam em segundo lugar com 12,5% (idem).
Ainda com dados apresentados pela SBCP, em 2013, o público feminino é quem mais
procura procedimentos estéticos no mundo, totalizando em 20 milhões, sendo assim
responsáveis por 87,2 % do total de procedimentos realizados. As cirurgias mais procuradas
são: o aumento dos seios, com 1.773.584 procedimentos realizados; a Lipoaspiração, com o
número de 1.614.031 procedimentos realizados; a Cirurgia Blefaroplastia/pálpebra, com
1.379.263 procedimentos feitos. Enquanto o público masculino fica com mais de 3 milhões de
procedimentos estéticos, totalizando em 12,8 % dos procedimentos realizados no mundo. As

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principais cirurgias realizadas em homens foram: rinoplastia, redução de mama para
Ginecomastia, Blefaroplastia, lipoaspiração e otoplastia (ibidem).
É notável o grande crescimento da utilização de cirurgias plásticas em todo o mundo,
principalmente as estéticas. Assim, devido essa popularização da realização de cirurgias
aumentou consideravelmente os erros médicos provenientes das mesmas, e consequentemente
o número de demandas levadas ao judiciário.
Ao longo dos anos, o posicionamento mais rígido dos tribunais em relação aos erros
médicos proveniente de cirurgias plásticas estéticas ocorre devido à popularização de tal
procedimento ser historicamente recente, e que até curto tempo sofria grandes críticas, sendo
consideradas como intervenções desnecessárias em corpos saudáveis e realizadas somente por
excesso de vaidade.
Dessa maneira, afirma Fábio Uhoa Coelho (2009):
É necessário desfazer a enorme distância entre a plástica corretiva e a estética que a
retórica jurídica estabeleceu. Não há fundamentos para tratar as duas hipóteses como
diversas. Deve-se o distanciamento como resquícios do preconceito que cercou, no
início, a cirurgia plástica de objetivos meramente estéticos.

Tal realidade está mudando, uma vez que cirurgia plástica é também realizada por uma
questão de saúde. Nessa perspectiva, afirma Kfouri Neto (op.cit.):

Hodiernamente, não há dúvida que a cirurgia plástica integra-se normalmente ao


universo do tratamento médico e não deve ser considerada uma “cirurgia de luxo” ou
mero capricho de quem a ela se submete. Dificilmente um paciente busca a cirurgia
estética com absoluta leviandade e sem a real necessidade, ao menos de ordem
psíquica.

O atual posicionamento está de acordo com o conceito de saúde apresentado pela


Organização Mundial de Saúde - OMS, que é: “o estado de completo bem-estar físico, mental
e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”, de acordo com o site
http://www.alternativamedicina.com (2015).
O direito a imagem e a estética, eleva-se a direitos personalíssimos, garantidos pela
Constituição Federal. E tem grande importância, principalmente, na sociedade contemporânea,
pois a imagem de uma pessoa é a sua representação no mundo, e influência diretamente nas
relações afetivas, sociais e laborais. Por isso, uma imagem que não agrada a si mesmo ou que
não atende os padrões estabelecidos socialmente pode acarretar prejuízos emocionais e
comportamentais, em decorrência de baixa auto-estima, segundo Martins (2011).

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Atualmente, uma das razões que levam os pacientes a realizar uma cirurgia estética é
a grande influência que a mídia exerce sobre as pessoas, indicando padrões estéticos a serem
seguidos, assim, estabelecendo um perfil do belo, que se torna o desejo de quem nele quer
enquadrar-se, e a cirurgia estética é a maneira mais fácil e rápida de fazer que esse desejo seja
realidade.
A vontade de obter formas perfeitas faz que as pessoas que ingressam no procedimento
cirúrgico não reflitam sobre as consequências físicas e psicológicas que podem surgir no caso
de complicações cirúrgicas, pois ao procurarem o cirurgião na busca incessante de satisfazerem
as expectativas, coloca-o na qualidade de “semi-Deus” capaz de realizar verdadeiros
“milagres”.
Importante ressaltar, que a ciência médica não é uma ciência exata para garantir
resultados precisos, então o médico tem o dever ético de prestar de todo o seu conhecimento e
atenção ao realizar procedimentos cirúrgicos, cabendo-lhe analisar bem o quadro clínico de
cada paciente e principalmente estar atento no pós-operatório, pois, geralmente, daí vem as
possíveis consequências desastrosas, em vez de soluções dos problemas do paciente, segundo
Loureiro (2002).
Sobre a questão aqui analisada, leciona Fernanda Gonçalves Galhego Martins (2011):
A influência dos mais variados padrões culturais e sociais; os conflitos entre os
desejos e as necessidades dos pacientes; as mudanças ocorridas na relação médico-
paciente – que conferiram ao utente maior participação, como sujeito livre e não
simples objeto da terapia a ser empregada – e as possibilidades apresentadas pela
evolução tecnológica reclamam não somente equilíbrio e ponderação, mas,
principalmente, prudência num tempo que se reivindica a gestão do próprio corpo e
em que as fronteiras entre a doença e saúde revelam-se hábeis.

Ao decidir realizar uma cirurgia, o paciente e o médico devem dialogar, esclarecendo


pontos importantes sobre o resultado desejado pelo paciente e o procedimento cirúrgico que
será realizado. Dessa conversa, o médico deve ter atenção no que lhe é pedido, pois é importante
para garantia da satisfação do paciente ao final do procedimento cirúrgico, segundo Martins
(idem).

3.2. A CIRURGIA PLÁSTICA: OBRIGAÇÃO DE MEIO OU DE RESULTADO?

A doutrina classifica a cirurgia plástica em cirurgia estética e reparadora. A cirurgia


reparadora tem a finalidade de remoção de deformidades congênitas ou adquiridas, garantindo
ao paciente uma vida saudável. Nesse tipo de procedimento cirúrgico o médico assume a

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obrigação de meio, ou seja, deve agir de acordo com a sua conduta ética, com toda a atenção e
aplicando todo seu conhecimento em prol do melhor resultado possível.
No que se refere à cirurgia reparadora, não há nenhuma dúvida quanto à obrigação que
enseja sobre o médico no caso de possíveis erros. O mesmo não acontece quando se trata da
cirurgia estética, se apresentando como tema polêmico, que divide a doutrina e a jurisprudência
em duas correntes.
A corrente majoritária, defende que a cirurgia estética é utilizada para fins de melhorar
a aparência, ocorre em pessoas sadias. Nesse tipo de cirurgia o médico responde por obrigação
de resultado, pois possui obrigação de cumprir com o estabelecido contratualmente.
Observa-se, que como posicionamento do Supremo Tribunal de Justiça – STJ (2015):
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE
CIVIL. NULIDADE DOS ACÓRDÃOS PROFERIDOS EM SEDE DE
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NÃO CONFIGURADA. CIRURGIA
PLÁSTICA ESTÉTICA. OBRIGAÇÃO DE RESULTADO. DANO
COMPROVADO. PRESUNÇÃO DE CULPA DO MÉDICO NÃO AFASTADA.
PRECEDENTES.
1. Não há falar em nulidade de acórdão exarado em sede de embargos de declaração
que, nos estreitos limites em que proposta a controvérsia, assevera inexistente omissão
do aresto embargado, acerca da especificação da modalidade culposa imputada ao
demandado, porquanto assentado na tese de que presumida a culpa do cirurgião
plástico em decorrência do insucesso de cirurgia plástica meramente estética.
2. A obrigação assumida pelo médico, normalmente, é obrigação de meios, posto que
objeto do contrato estabelecido com o paciente não é a cura assegurada, mas sim o
compromisso do profissional no sentido de um prestação de cuidados precisos e em
consonância com a ciência médica na busca pela cura.
3. Apesar de abalizada doutrina em sentido contrário, este Superior Tribunal de Justiça
tem entendido que a situação é distinta, todavia, quando o médico se compromete com
o paciente a alcançar um determinado resultado, o que ocorre no caso da cirurgia
plástica meramente estética. Nesta hipótese, segundo o entendimento nesta Corte
Superior, o que se tem é uma obrigação de resultados e não de meios.

De acordo com o julgado acima, verifica-se que a justificativa para ensejar a obrigação
de resultado do médico pela cirurgia de embelezamento ocorre em virtude do contrato
estabelecido entre as partes que assegura ao paciente a melhoria da sua aparência, pois ninguém
se submete a riscos em uma cirurgia e dispor de altos gastos para ficar com a mesma aparência
ou pior, pois o paciente quer a garantia do resultado esperado, segundo Cavalieri Filho (2012).
Dessa forma, em cirurgia com fins estéticos a culpa do médico é presumida. Sendo
assim, para excluir sua responsabilidade, necessário é fazer o uso das excludentes na tentativa
de romper o nexo causal existente entre o ato cirúrgico e o dano, como exemplo, caso fortuito
e culpa exclusiva da vítima.
Ainda no que se refere à cirurgia estética como obrigação de resultado, afirma Caio
Mário Pereira (1995):

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Com a cirurgia estética, o cliente tem em vista corrigir uma imperfeição ou melhorar
aparência. Ele não é um doente, que procura tratamento, e o médico não se engaja na
sua cura. O profissional está empenhado em proporcionar-lhe o resultado pretendido,
e se não tem condições de consegui-lo não deve efetuar a intervenção. Em
consequência recrudesce o dever de informação bem como a obrigação de vigilância,
cumprido, mesmo ao médico recusar seu serviço, se os riscos da cirurgia são
desproporcionais às vantagens previsíveis.
Referida corrente afirma que quem procura a cirurgia estética não se encontra com á
saúde debilitada e que por isso concerne à obrigação de resultado ao médico. O referido
posicionamento é o admitido no Tribunal de Justiça da Paraíba - TJPB (2015):

CIVIL E CONSUMERISTA. Ônus da Prova. Inversão. Agravo Retido. Art. 523, § 1,


do CPC. Descumprimento. Não conhecimento. AÇÃO DE RESSARCIMENTO POR
DANOS III MORAL E MATERIAL. Procedência do pedido. Cirurgia Plástica. Erro.
Responsabilidade objetiva do médico. Inteligência do art. 14, caput, do Código de
Defesa do Consumidor. Conduta e dano evidenciados. Nexo causal existente.
Ausência de excludente de ilicitude. Dano moral configurado. Dever de indenizar.
Quantum indenizatório proporcional ao infortúnio experimentado. Dano material
comprovado. Indenização devida. Desprovimento do apelo [...]

[...] É que a questão da responsabilidade civil por erro decorrente de cirurgia plástica
meramente embelezadora não caracteriza obrigação de meio, mas de resultado.

Na cirurgia reparadora o médico assume obrigação de meio, seguindo a regra para os


profissionais liberais, que está disposta no art. 14, §4°, do CDC, enquanto na cirurgia estética
o cirurgião assume a obrigação de resultado.
Sobre essa questão, Sérgio Cavalieri Filho (op.cit.) menciona:

E como se justifica essa obrigação de resultado do médico em face da


responsabilidade subjetiva estabelecida no Código do Consumidor para os
profissionais liberais? A indagação só cria embaraço para aqueles que entendem que
a obrigação de resultado gera sempre responsabilidade objetiva. Entendo, todavia, que
a obrigação de resultado em alguns casos apenas inverte o ônus da prova quanto à
culpa; a responsabilidade continua sendo subjetiva, mas com culpa presumida. O
Código do Consumidor não criou para os profissionais liberais nenhum regime
especial, privilegiado, limitando-se a afirmar que a apuração de sua responsabilidade
continuaria a ser feia de acordo com o sistema tradicional, baseado na culpa. Logo,
continuam a ser-lhes aplicáveis as regras da responsabilidade subjetiva com culpa
provada nos casos em que assumem obrigação de meio; e as regras da
responsabilidade subjetiva com culpa presumida nos casos em que assumem
obrigação de resultado.

Dessa forma, a responsabilidade é subjetiva, mas com culpa presumida e inverte-se o


ônus probatório de acordo com o art. 6° do CDC.
A segunda corrente, da qual comungo com o posicionamento, apesar de minoritária, e
pouco utilizada pela jurisprudência pátria, é defendida pelos ministros Ruy Rosado de Aguiar
Junior e Carlos Alberto Menezes. A mesma admite que a obrigação assumida pelo médico que
realiza cirurgia estética é de meio, com responsabilidade subjetiva, nos moldes da regra geral

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do art. 14, §4° do CDC. Dessa maneira, sendo a verificação da culpa fundamental para
responsabilização do cirurgião estético.
Nesse sentido, apresenta Zélia Mascaranhas (2012):
Com o advento da Lei nº 8.078/1990, os profissionais liberais, art. 14, § 4º, submetem-
se à regra da teoria subjetiva na obrigação de reparar os danos. Não se acolhe, no
nosso direito consumerista, a tese do risco profissional para os médicos. A
responsabilidade médica é suportada pelos médicos diante de falhas no exercício da
medicina.

Com isso, a responsabilidade do médico cirurgião estético ocorre mediante a verificação


da culpa pelo ato danoso. Quando a conduta médica está conforme padrões legais, não há que
se falar em conduta culposa, porque inexiste nexo causal. Assim, caso o paciente queira
demonstrar o contrário, deve provar a culpa do médico mediante ato que violou os padrões
éticos de conduta, de acordo com Rosário (2004, p 87).
A cirurgia estética apresenta os mesmos riscos que os demais procedimentos cirúrgicos,
não precisando o cirurgião que a realize responder por uma obrigação de resultado, devendo
apenas prestar com o máximo de diligência, e aplicar todo o seu conhecimento em busca de um
resultado satisfatório para o cliente.
Leciona Aguiar Jr. (2000) no que se refere aos riscos presentes na cirurgia estética:
A ciência médica, embora possa estabelecer padrões gerais altamente confiáveis para
os procedimentos que recomenda, não consegue controla-los de forma absoluta. Em
casos correspondentes a certas margens estatísticas, manifestar-se-ão especificidade
que fogem ao controle da medicina. Cada organismo reage diferentemente à agressão
da cirurgia, e influi enormemente nos resultados da plástica e o estado psíquico do
paciente. Este quadro encontra-se em todas as especialidades médicas, inclusive na
medicina de embelezamento. Em suma, as intervenções cirúrgicas de razões
meramente estéticas expõe o paciente a riscos, tanto qualquer outra.

Também, todos os tipos cirurgias plásticas se enquadram em uma só especialidade da


medicina, sendo uma atividade exercida por um profissional liberal, e por isto a esse incube a
obrigação de meio e responsabilização subjetiva.
Kfouri Neto (op.cit.) apresenta:
Embora os estudiosos se inclinem em enquadrar a cirurgia plástica com a finalidade
preponderantemente estética no figurino das obrigações de meios, os Tribunais se
mostram refratários à evolução doutrinária. Afirma-se, por exemplo, que para outros
médicos o resultado pode ser uma incógnita; para os cirurgiões plásticos, nas
intervenções embelezadoras, deverá ser uma certeza. Chega-se mesmo a reconhecer a
existência de responsabilidade sem culpa – ou objetiva – do cirurgião plástico o que
é um equívoco.

A primeira corrente defende que a obrigação de resultado do médico na cirurgia estética


surge em virtude da natureza contratual da obrigação assumida pelo médico.

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Entretanto, de acordo com a segunda corrente, observa-se que a obrigação do médico
não advém do contrato e sim da natureza da atividade exercida. Nesse sentido, afirma Fábio
Ulhoa Coelho (op.cit.):
Quero insistir que o tipo de obrigação do médico (obrigação de meio) decorre da
natureza de sua atividade, e não do contrato com o paciente: em matéria de
responsabilidade civil, o negócio jurídico eventualmente existente entre credor e
devedor da indenização é, como visto, circunstancial.

Para essa corrente, quem se submete a uma cirurgia plástica quer melhorar sua aparência
e consequentemente aumentar sua auto-estima, ou seja, deseja melhorar seu estado de saúde.
Dessa maneira, compreende-se que a cirurgia plástica, seja ela reparadora ou estética, é fator
de saúde, de acordo com Coelho (idem).
Como todo profissional liberal, o cirurgião plástico é um prestador de serviços, de
acordo com art. 14, § 4°, conforme acima mencionado. Assim, devido à natureza da atividade
que exerce sobre ele enseja a responsabilidade subjetiva e a obrigação de meio, não se
admitindo falar sobre teoria do risco da atividade exercida por profissional liberal.
Sobre esta tese Aguiar Jr., descrito no site www.ruyrosado.com.br que:
O acerto está, no, com os que atribuem ao cirurgião estético uma obrigação de meios,
embora se diga que os cirurgiões plásticos prometam corrigir, sem o que ninguém se
submeteria, sendo são, a uma intervenção cirúrgica, pelo que assumiriam eles a
obrigação de alcançar o resultado prometido, a verdade é que a álea está presente em
toda intervenção cirúrgica, e imprevisíveis as reações de cada organismo à agressão
de ato cirúrgico. Pode acontecer que algum cirurgião plástico, ou muitos deles
assegurem a obtenção de um certo resultado, mas isso não define a natureza da
obrigação, não altera a sua categoria jurídica, que continua sendo sempre a obrigação
de prestar um serviço que traz consigo o risco. É bem verdade que se pode examinar
com maior rigor o elemento culpa, pois mais facilmente se constata a imprudência na
conduta do cirurgião que se aventura à prática da cirurgia estética, que tinha chances
reais, tanto que ocorrente de fracasso. A falta de uma informação precisa sobre o risco
e a não-obtenção de consentimento plenamente esclarecido conduzirão eventualmente
à responsabilidade do cirurgião, mas por descumprimento culposo da obrigação de
meios.

Sobre o contrato do médico com o paciente, independente do tipo de cirurgia, reparadora


ou estética, é importante o cumprimento dos padrões éticos que devem ser seguidos, bem como
o dever de prestar informação sobre o procedimento que será utilizado e dá obtenção do
consentimento do paciente, podendo ser responsabilizado por descumprimento contratual. A
tentativa do médico será usar de todo o seu conhecimento e cuidados com o paciente,
principalmente na análise clinica e no pós- operatório, buscando de todos os meios o bom
resultado para garantir a satisfação do paciente.

Página 186 de 261


O Conselho Federal de Medicina - CFM, esclarecendo a obrigação que deve ser exigida
do médico, através da Resolução CFM n° 1.621, de 16 de maio de 2001, de acordo com o portal
http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2001/1621_2001.htm que dispõe:

Art. 1º - A Cirurgia Plástica é especialidade única, indivisível e como tal deve ser
exercida por médicos devidamente qualificados, utilizando técnicas habituais
reconhecidas cientificamente.
Art. 2º - O tratamento pela Cirurgia Plástica constitui ato médico cuja finalidade é
trazer benefício à saúde do paciente, seja física, psicológica ou social.
Art. 3º - Na Cirurgia Plástica, como em qualquer especialidade médica, não se pode
prometer resultados ou garantir o sucesso do tratamento, devendo o médico informar
ao paciente, de forma clara, os benefícios e riscos do procedimento.
Art. 4º - O objetivo do ato médico na Cirurgia Plástica como em toda a prática médica
constitui obrigação de meio e não de fim ou resultado.

Assim, apesar de parte da jurisprudência pátria firmar posicionamento no sentido da


responsabilização do cirurgião estético a obrigação de resultado, percebe-se diante dos
argumentos estabelecidos ao logo do trabalho que tal entendimento é “confuso” e ocorre em
virtude do preconceito ainda existente com esse procedimento cirúrgico, o reduzindo a uma
questão apenas de embelezamento. Portanto, fica claro que a realização de cirurgia plástica
envolve não só aspectos estéticos, como também fatores psicológicos e sociais, sendo assim, a
obrigação do cirurgião é de meio, devendo apenas estar em conformidade com os padrões éticos
da profissão.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Responsabilidade civil consiste no dever que o agente do ato danoso de reparar


aquele que teve seus direitos violados. Dessa forma, tal instituto visa garantir a volta do estado
quo ante do bem lesionado, mas quando isso não é possível, estipula-se um valor para amenizar
a lesão sofrida pela vítima. Esse instituto apresenta não apenas a natureza reparadora, como
também serve como sanção apresentando, assim natureza a punitiva e pedagógica.
Na responsabilidade civil do médico, a relação do médico paciente é contratual, assim,
o médico tem a obrigação de agir diante dos padrões éticos e com diligência máxima em prol
de resultado satisfatório do paciente, através de anuência do mesmo depois de esclarecimentos
no que se refere ao tratamento. Caso seja comprovado que determinado erro ocorra em virtude
da falta de comprometimento ético e profissional o médico deverá ser responsabilizado, pois
sendo um profissional liberal, e desse modo, é um prestador de serviço, está submetido às regras

Página 187 de 261


do CDC, que estatui no art. 12, § 4°, CDC que a responsabilização é mediante a averiguação de
culpa.
Dessa maneira, o médico deve buscar de todas as maneiras o melhor resultado
possível, pois sua responsabilidade segundo o CDC é condizente com a natureza da atividade
de profissional liberal. A cirurgia plástica é uma especialidade médica, e como as demais
especialidades, o médico não deve assumir obrigação diferente.
A obrigação de meio, como já mencionado no estudo é aquela que o médico tem o
dever de fazer tudo dentro de sua possibilidade para atingir um resultado satisfatório; Já a
obrigação de resultado consiste naquela que o médico terá que atender aos pedidos do paciente.
Estabeleceu-se a distinção entre cirurgia estética e reparadora. A cirurgia reparadora tem o
objetivo da cura, ensejando obrigação de meio.
No tocante a cirurgia estética, a discussão na doutrina e na jurisprudência pátria refere-
se se na atribuição da responsabilidade ao médico enseja obrigação de meio ou de resultado.
Cabe-se mencionar que a cirurgia estética não se limita mais apenas ao embelezamento, mas
também compreende a função de melhor relacionar-se consigo e com os outros.
A imagem, na sociedade atual, é de fundamental importância, sendo consagrada pela
Constituição de 1988 com direito fundamental. Dessa forma, se determinado padrão
estabelecido socialmente é tido como belo, as pessoas podem nele se adequarem em busca de
melhorar a autoestima e as suas relações afetivas, sociais e ate mesmo laborais.
A cura não se limita apenas ao físico, mas também ao emocional e social. Dessa
maneira, errônea é a posição que defende a obrigação do cirurgião estético ser de resultado,
diferente das demais cirurgias plásticas. No que se referem aos riscos provenientes da cirurgia
estética, estes são os mesmos da cirurgia reparadora, não cabendo serem alegados para
diferenciar a obrigação atribuída ao cirurgião estético.
Acredita-se que a obrigação do médico é de meio para atribuição de sua
responsabilidade, apesar da jurisprudência majoritária se posicionar como sendo de resultado,
assim, considera-se que tal posicionamento é fruto do preconceito ainda existente em relação à
cirurgia estética que a restringe apenas ao aspecto de embelezamento.

REFERÊNCIAS

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Código Civil, com acréscimos doutrinários e jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2003, p. 22.

Página 191 de 261


A AFETIVIDADE COMO IMPULSORA DA FAMÍLIA
MULTIESPÉCIE: NATUREZA JURÍDICA E POSIÇÃO OCUPADA
PELOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO

Larissa Maria Lacerda Santana1


Maria Cristina Paiva Santiago2
Larissa Maria Rocha Rodrigues Alves3

RESUMO: A ideia central deste trabalho é realizar um estudo sobre as implicações jurídicas
advindas da forte relação afetiva travada entre as pessoas e seus animais de estimação, tendo
em vista a crescente e disseminada consideração desses últimos como membros efetivos das
famílias brasileiras. Em que pese o status jurídico dos animais no ordenamento pátrio seja de
objeto de direito, eis que é atribuído como bem semovente conforme o Código Civil de 2002,
a íntima afetividade entre eles e seus tutores reclama uma revisão reflexiva de tal consideração.
De acordo com a evolução de teorias filosóficas que explanam a possível consideração dos
animais como sujeitos jurídicos, atrelada à constitucionalização do Direito Ambiental no Brasil,
o estudo realizado vislumbra o alicerce da transformação de pensamento social destinado a
animais não humanos. Em paralelo, analisa o caráter multifacetário das entidades familiares,
que nos dias atuais não são mais influenciadas pelos arcaicos ditames da sociedade ou por
imposições estatais, situação que permite a proposta de consideração jurídica de famílias
multiespécie.
Palavras-chave: Famílias multiespécie. Animais de estimação. Afetividade.

ABSTRACT. The central idea of this article is to conduct a study on the legal implications
arising from the strong emotional relationship developed between people and their pets,
regarding the increasing and widespread consideration of the latter as effective members of
Brazilian families. Although their current national legal status is of objects of law, for they are
assigned as self moving assets on the Civil legislation of 2002, the intimate affection between

1
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
2
Doutoranda em Direito Econômico pelo programa do Curso de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas pela
Universidade Federal da Paraíba. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes
(UCAM). Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Professora efetiva dos Cursos de graduação
e pós-graduação em Direito do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ). Professora do Curso de
Especialização da Escola Superior da Advocacia, Seccional Paraíba (ESA). Advogada.
3
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.

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these animals and their tutors calls for a reflective review of such contemplation. According to
the analysis of the evolution of philosophical theories that expound the possible consideration
of animals as legal subjects, combined to the constitutionalisation of environmental law in
Brazil, the study envisions the groundwork of the transformation of social thought concerning
non-human animals. Concurrently, it analyzes the multifaceted character of family entities,
which nowadays are no longer influenced by the archaic dictates of society or state constraints,
a situation that allows the prospect of legal consideration of multi-especies families.
Keywords: Multi-especies Families. Pets. Affectivity.

1- INTRODUÇÃO

A evolução da sociedade se constrói a partir do desenvolvimento e das modificações


advindas das relações entre humanos e seus pares, bem como entre esses e a natureza. Desde o
princípio dos tempos, as pessoas formam uma complexa ligação com os mais diversos seres
habitantes da Terra, eis que a própria vivência humana condiciona os indivíduos à vida em
comunidade, estabelecendo funções, personalidades individuais, desenvolvimento próprio e
coletivo, mútuo auxílio, hierarquias de poder e multifacetários relacionamentos.
Destarte, a organização do grupo familiar é realizada a partir do instinto humano de
relacionar-se com seus semelhantes, a fim da construção de uma vida compartilhada com
pessoas de estima, com as quais os desafios e as conquistas são divididas. Certamente, a solidão
e o isolamento não constituem solos férteis ao desenvolvimento da personalidade intrínseca de
cada ser, vez que seu intelecto e seus sentimentos formam o dorso individual que, posto em
conjunto com outros, é capaz de criar o antes nunca imaginado, mover o inerte, formar,
modificar e extinguir pensamentos que ditam os contornos da sociedade.
A estrutura da família sofreu as mais variadas mudanças ao longo dos tempos, tomando
sua forma de acordo com a transformação das relações e dos padrões de vida em sociedade. A
família, cada vez mais despida de padrões a serem seguidos, independente de crenças religiosas
ou imposições estatais, tende a modelar-se como instrumento capaz de fornecer o âmbito mais
propício à felicidade de cada um de seus membros. O Direito deve estar sempre atento às mais
variadas mudanças da sociedade, posto que é ciência que está para servir à população, conforme
suas disposições, necessidades, anseios e desejos.
O Direito das Famílias, pois, é ramo jurídico dos mais mutantes, vez que tem a difícil
função de tutelar as multifacetárias relações afetivas desenvolvidas no complexo da família. É
da necessidade de convivência harmoniosa e consonante do Direito com a realidade que surgem

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as transformações de conceitos, princípios e regras regentes de cada instituto e, no caso ora em
estudo, da família brasileira.
A pesquisa fornece um estudo sobre a essência jurídica dos animais, de modo que o
leitor se familiarize com o tema, partindo do entendimento inicial que proporciona o alicerce
sob o qual o trabalho será desenvolvido, seguido da breve análise da relação histórica entre
humanos e animais, passando pela abordagem das teorias concernentes ao Direito Ambiental
constitucionalizado.
Depois, aborda o cenário d a família pós-moderna, à luz da constitucionalização do
Direito Privado, haja vista a elevação dos princípios de Direito das Famílias ao patamar
constitucional transformar os antigos moldes tradicionalmente arraigados no ordenamento
jurídico, desembocando na atual importância destinada ao afeto, base de formação de todas as
famílias, nas suas múltiplas variedades.
A justificativa para o estudo é a consideração da importância e a pretensão prática do
entendimento sobre o assunto pelo operador do direito, buscando apresentar novos conceitos,
teorias e diretrizes alternativas que podem transformar antigas visões no ramo jurídico. A partir
da análise de situações sociais e orientações jurídicas presentes tanto no Brasil quanto
internacionalmente, realizamos um estudo interdisciplinar entre o Direito das Famílias e Direito
Ambiental e Animal, através do método da pesquisa bibliográfica e documental, mediante a
coleta de informações encontradas em livros, artigos científicos, jornais e revistas atualizadas
no tema.

2 NATUREZA JURÍDICA DOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO

Entender a natureza jurídica de um instituto significa saber sua essência para o direito,
aonde ele se enquadra dentro do ordenamento jurídico e o que ele representa. É como se fosse
uma coordenada geográfica que, no caso deste trabalho, apontará qual a situação dos animais
no direito brasileiro, estudo que será indispensável para a compreensão do que se desenvolverá
ao longo da pesquisa.

2.1 A HISTÓRICA RELAÇÃO TRAVADA ENTRE ANIMAIS HUMANOS E NÃO


HUMANOS

Desde os primórdios da humanidade, é notável que os seres humanos sempre mantiveram algum
tipo de relação com outros seres vivos que os circundavam, a saber, as plantas e os animais. De

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acordo com o que leciona Martha Nussbaum (2013, p. 400), os seres humanos compartilham
diversas características, tanto divergentes, quanto comuns com outras criaturas terráqueas,
sendo estas últimas uma fonte de simpatia e interesse moral, que acabam por proporcionar
relacionamentos baseados na receptividade e interesse por fazer aquilo que faz bem ao outro.
Por outro lado, de forma negativa, importa destacar que tal convergência acarreta também
relações de manipulação, indiferença e crueldade.
Tal contato sofreu diversas variações ao longo do tempo, o que nos leva a crer que
antes do desenvolvimento da Filosofia os seres humanos, por serem caçadores coletores e, desse
modo, travarem uma relação de antagonismo com os demais animais, atrelavam sua
sobrevivência na busca de qualquer tipo de alimento, no modelo de sociedade nômade e ágrafa
(ENGELS, 1984, p. 34-35).
Contudo, à medida que as sociedades nômades desenvolveram a agricultura e, com
ela, vislumbravam a possibilidade de firmarem-se em determinado espaço por maiores períodos
de tempo, passaram a estreitar os laços de dominação com a fauna desses lugares. Esse domínio
do homem sobre o animal substituiu a relação antes antagônica e levou à domesticação, que em
conjunto com as técnicas de agricultura culminaram na atividade pecuária. Essa relação de
dominação é condicionada, pois, ao controle que o humano exerce sobre a vida de indivíduos
não humanos, deixando de observá-los como presas ou predadores, mas agora como frutos a
serem cultivados, geridos e, por fim, colhidos. Essa submissão modelou o fenômeno do
especismo, adiante explanado, o qual reduzira o animal à qualidade de propriedade (SANTOS,
2014, p. 14).
A visão meramente superficial que o homem tinha a respeito dos animais passou por
um processo de tremenda mudança na antiguidade, com o surgimento dos primeiros estudos
filosóficos, em especial, na Grécia Antiga, gênese do pensamento ocidental. Pitágoras
(LOURENÇO, 2008, p. 53) acreditava que o homem é espécie animal, partindo do princípio de
que os animais não humanos podiam habitar almas de ancestrais humanos, e que, portanto, a
relação travada entre eles refletiria na alma de um ancestral, seja ela qual fosse.
Aristóteles (2014, p. 12-20) defendia a supremacia do homem sobre a natureza e as
demais espécies em decorrência da falta de racionalidade nos animais, que apesar de possuírem
percepção, são desprovidos de razão. Os animais não tinham interesse próprio, sendo
perfeitamente natural a sua subjugação e serventia ao ser humano, seu superior, conforme seu
melhor benefício. Esse papel de dominação do ser humano sobre o animal foi também
verificado com o surgimento das religiões de base teológico-judaica, como podemos verificar

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na Bíblia Sagrada, em Gêneses 9:2-3, a divindade judaico-cristã autoriza que os seres humanos
se alimentem e, portanto, matem os demais animais.
Com o início da filosofia moderna, René Descartes manteve a visão de que animais
não são seres conscientes, pois não possuem alma e assim equipar-se-iam a máquinas feitas por
Deus. Os animais não foram por ele considerados seres sencientes, pois seriam incapazes de
sentir dor, prazer, medo, etc. Nesse sentido, explica Gary L. Francione (2000, p. 41), em análise
feita a partir de Descartes, comparando o animal a um relógio:
[…] It is as senseless to talk about our moral obligations to animals, machines created
by God, as it is to talk about our moral obligations to clocks, machines created by
humans. We can have moral obligations that concern the clock, but any such
obligations are really owed to other humans and not to the clock itself. 1

Desse modo, era percebido que o ser humano em nada se obriga moralmente para com
os animais, ideia essa também compartilhada pelo filósofo alemão Immanuel Kant, que apesar
de discordar com Descartes no sentido de que os animais são sim seres sencientes 2 e podem
sofrer, defendia que eles não são seres racionais nem conscientes, o que o levava a crer que os
animais são apenas os meios para as finalidades humanas (FRANCIONE, 2000, p. 42).
Faz-se oportuno, neste contexto, conceituar o especismo, para que fique clarividente a
mudança de pensamento ocorrida com a brilhante obra de Charles Darwin, "A Origem das
Espécies”. Segundo Samory Pereira Santos (2014, p. 19), especismo “[…] é definido como uma
forma arbitrária de tratamento discriminatório entre indivíduos, utilizando-se como critério a
espécie deles, com indiferença por seus interesses e sofrimento”.
O evolucionismo, pois, trouxe a ideia de que os humanos e os animais não mais se
diferenciam em gênero, mas sim em grau. Essa aproximação chocou-se com o que versa o
especismo, pois este sempre foi baseado na errônea concepção de que humanos são seres de
origem e natureza distinta de qualquer outro animal.
A ordem jurídica hierarquiza a sociedade pelo domínio antropocêntrico. O debate que
engloba a formação de um Estado socioambiental de Direito é de singular importância, posto
que significa que a norma constitucional deve refletir a transição para o compromisso com
valores não percebidos anteriormente pela sociedade, conforme uma perspectiva ética (SILVA,

1
É tão sem sentido falar sobre nossa obrigação moral para com os animais, máquinas criadas por Deus, como
também é falar da obrigação moral para com os relógios, máquinas criadas por humanos. Nós temos obrigações
morais que envolvem os relógios, mas essas obrigações são, na verdade, devidas aos humanos e não ao relógio em
si. (Tradução nossa)
2
A ideia de senciência fora introduzida por Peter Singer, que explica ser, em linhas breves , a capacidade de sentir
dor/prazer (SINGER, 2002, p. 15).

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2009). A formação do “Estado socioambiental” eclodiu com a constitucionalização da proteção
ao meio ambiente sadio, o que refletiu no que se difunde hoje como a disciplina do Direito
Animal, muito debatida entre os jusambientalistas modernos.

2.2 POSSÍVEL CONSIDERAÇÃO DOS ANIMAIS COMO SUJEITOS DE DIREITO

Em que pese exista um consenso público - influenciado pelo liberalismo político-


econômico e no conceito liberal de justiça, também refletido no âmbito jurídico até então - de
que os animais são propriedade humana, sendo objetos de direito, há, à parte disso, teorias de
direito ambiental e animal que visam transferir essa consideração, ainda restrita ao campo da
filosofia do direito, para a seara da dogmática jurídica (SANTANA, 2008, p. 116).
Nos dias atuais, é fácil a percepção da preocupação mundial com o meio ambiente3
sadio e adequado para as gerações presentes e futuras. Não mais se discute o interesse do Direito
em proteger os ecossistemas e a biodiversidade ali encontrada. Segundo Herman Benjamin
(2010, p. 77-150), só em meados da década de 70, os sistemas constitucionais passaram a
reconhecer a importância de destinar ao meio uma tutela mais abrangente.
Tal constitucionalização é fenômeno de forte tendência internacional, eis que coincide
com a consolidação do Direito Ambiental no panorama jurídico de diversas nações, como se
percebe nas novas Constituições de países europeus que se libertavam de regimes ditatoriais, 4
dada pela influência da Declaração de Estolcomo de 1972 (BENJAMIN, 2010, p. 81-84). Essa
nova jornada permite propor e edificar uma nova ordem pública, capaz de atribuir a
responsabilidade ambiental a todos os habitantes da Terra.
É necessário o entendimento do que consiste a expressão “sujeitos de direitos”. Hans
Kelsen (1999, p. 90) - quando discorre sobre a admissão de um dever jurídico sem um direito
reflexo que lhe corresponda - leciona que no caso de normas jurídicas que prescrevem uma
determinada conduta dos indivíduos em face de certos animais, sob cominação de uma pena,
estes são deveres que subsistem perante a comunidade jurídica interessada nesses animais.
Entretanto, mesmo assim não são admitidos direitos reflexos dos animais em face dos quais
estes deveres imediatamente subsistem. Assim, faz cair por terra o argumento de que os animais
protegidos não são sujeitos de direitos reflexos porque não são pessoas.

3
Nas palavras de José Afonso da Silva (2011, p. 20), meio ambiente é a “interação do conjunto de elementos
naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”.
4
A saber, os exemplos da Grécia (1975), art. 24; Portugal (1976), art. 66; Espanha (1978), art. 45; dispositivos
constitucionais estes que tratam da tutela jurídica destinada ao meio ambiente.

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Nesse contexto, Kelsen ainda afirma não ser essencial que se sustente uma pretensão
à conduta devida para a configuração do direito reflexo, isto é, também não condiz o argumento
de que os animais não são sujeitos de direitos por simplesmente não sustentarem ou fazerem
valer uma pretensão correspondente ao dever. Isso se deve ao fato de que a pretensão só existe
quando o não cumprimento desse dever pode se fazer valer através de ação judicial, o que
fugiria da situação jurídica de mero direito reflexo. Ademais, arremata o brilhante jurista que
“Apenas quando um indivíduo é juridicamente obrigado a uma determinada conduta em face
de um outro tem este, perante aquele, um "direito" a esta conduta” (KELSEN, 1999, p. 90-91).
Logo, de acordo com os ensinamentos de Kelsen, quando trazidos para a esfera dos
animais, concluímos que: quando os humanos são juridicamente obrigados a respeitar as regras
que viabilizam a proposta de um meio ambiente sadio e não condizente com a crueldade
direcionada à fauna (conduta), esta mesma fauna tem, perante os humanos, um direito a essa
conduta. Visto dessa maneira, podemos sim configurar os animais como sujeitos de direitos,
ainda que reflexos de um dever humano.
Sobre o tema, em análise da dicotomia entre direito objetivo e direito subjetivo, Tércio
Ferraz Jr. (2008, p. 121-122) parte do princípio que, primeiramente: a expressão "direito
subjetivo” significa que a situação jurídica é considerada a partir da perspectiva de um sujeito
a quem ela favorece. Depois, tem-se que esta situação favorável surge, geralmente, em face de
normas que restrinjam o comportamento de outros. Daí a usual correlação supramencionada
entre direito de um e dever de outro, assim como a liberdade de um ser configura-se na restrição
da liberdade de seu semelhante.
Desse modo, há situações típicas, as quais configuram que o titular do direito subjetivo
é também aquele que dispõe da faculdade de fazer valer o seu direito, sendo possível a
identificação de autonomia privada. Em contrapartida, nas situações atípicas, o titular do direito
e da faculdade de fazê-lo valer não coincidem.
Tércio Ferraz Jr (2008, p. 122) expõe o exemplo das fundações para demonstrar que
nem sempre o sujeito é uma pessoa, ressaltando que nesses casos a autonomia privada dá lugar
a uma função social, posto que o direito não é exercido em proveito próprio, mas em prol da
comunidade. Em concepção mais tradicional, sujeito de direito (ou sujeito jurídico) consiste no
ser humano concreto ou, pelo menos, conjuntos de seres humanos. A ideia nos faz perceber a
ligação com o conceito de pessoa, que se deu pela personificação do homem, surgida como
antítese cristã à distinção antiga entre cidadãos e escravos.

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Francisco Amaral (2003, p. 138-139) leciona que sujeitos de direito são o elemento
subjetivo das relações jurídicas, sendo titular de direitos e deveres. Tal aptidão de participar de
relações jurídicas decorre de uma qualidade inerente ao ser humano, a chamada personalidade
jurídica. Pessoa5, pois, é homem ou entidade dotado de personalidade. Essa é a visão naturalista,
para a qual todos os indivíduos gozam de personalidade, eis que este é ser dotado de vontade,
liberdade e razão. Noutro viés, para a concepção formal, a personalidade é atribuição ou
investidura do direito. Desse modo, pessoa e ser humano não se confundem, visto que o último
não seria tão somente o ser humano dotado de razão, mas simplesmente o sujeito de direito
criado pelo direito objetivo, em visão positivista.
Desse modo, Amaral entende que os animais não são sujeitos de direito, mas sim
possíveis objetos de direito. A partir do art. 225, VII, da CF/88 e da Declaração Universal de
Direitos Humanos, o direito os protege a fim de garantir-lhes a sua função ecológica, evitar a
extinção de espécies e defendê-los da crueldade humana (AMARAL, 2003, p. 138-139).
Esse seria o entendimento cômodo e clássico da doutrina, que vislumbra a proteção
dos animais apenas visando o interesse dos homens, a qual se concretiza na política
conservadora, preservacionista ou utilitária relacionada à defesa da fauna como bem ambiental.
A punição da crueldade “desnecessária” seria, pois, em favor dos bons costumes e do próprio
benefício espiritual humano, posto que os animais não são suscetíveis a valor ou ética (LEVAI,
2004, p. 127). A disposição dos animais sob a ótica da ética e do valor que esses seres
representam para a sociedade e, consequentemente, para o direito, serviu como complexo objeto
de estudo para filósofos e pesquisadores desde o século XVIII.

2.3 POSIÇÃO JURÍDICA DOS ANIMAIS NO ORDENAMENTO

Tradicionalmente, os animais são considerados coisas para o direito brasileiro, eis que
são disciplinados pelo Direito Civil, no que concerne à parte que estuda as coisas, os Direitos
Reais. Na definição de Clóvis Beviláqua (2003, p. 38), o Direito das Coisas “[…] é complexo
de normas reguladoras das relações jurídicas referentes às coisas susceptíveis de apropriação
pelo homem. Tais coisas são, ordinariamente, do mundo físico, porque sobre elas é que é
possível exercer o poder de domínio".

5
Na linguagem coloquial, pessoa significa ser humano. Contudo, faz-se necessária a construção de uma conotação
jurídica de pessoa, como sendo o ser com personalidade jurídica, aptidão para a titularidade de direitos e deveres.
(AMARAL, 2003, p.139).

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Ao distinguir os direitos reais dos direitos pessoais, Carlos Roberto Gonçalves (2014,
p. 26) leciona que "o vocábulo reais deriva de res, rei, que significa coisa. Segundo a concepção
clássica, o direito real consiste no poder jurídico, direto e imediato, do titular sobre a coisa,
com exclusividade e contra todos”. Assim, os animais são vislumbrados legalmente como
objetos de direito, úteis ao ser humano por ser sua propriedade.
Richad A. Epstein (2002, p. 10), quando discorre sobre o papel dos animais na
sociedade e sua possível ascensão ao status legal de sujeitos jurídicos, explica que a relação
entre as civilizações antigas e os animais era uma questão de sobrevivência, pois esses animais
serviam para o trabalho no campo, bem como para alimentação, proteção e companhia. A
proteção legal que estes recebiam se dava ao valor que eles gozavam por sua validade para os
homens que os possuíam. Assim, imaginar uma sociedade antiga que atribuísse direitos aos
animais perante os humanos pelo simples fato de serem seres sensíveis é vislumbrar uma
sociedade que colocaria em risco o provimento de sua família pelo bem estar de brutas, se
sensíveis, criaturas.
A resposta não é legal, mas sim moral, ética e filosófica. Laerte Levai (2004, p. 135),
em lúcida crítica à fórmula acadêmica que atribui ao Direito a realização da justiça indica que,
muitas vezes, o ordenamento legal não nos aponta o caminho mais justo, pois as leis são falhas
ao configurarem-se antropocêntricas - uma vez que surgem de acordo com as circunstâncias
históricas e os múltiplos interesses políticos envolvidos, muitas vezes em descompasso com o
princípio da moralidade6, que deveria servir-lhes de norte.

3 A AFETIVIDADE E A CONSIDERAÇÃO DA FAMÍLIA MULTIESPÉCIE

O vocábulo família é de tamanha abrangência e amplitude que para cada um de nós


aporta um significado diferente. Para muitos, família quer dizer o grupo formado entre pai, mãe
e sua prole; para outros significa dois pais ou duas mães e seus filhos adotivos ou de reprodução
assistida; já para outros, quer dizer o tio de criação, sua esposa e seus primos, que, por forte
laço afetivo mutuado durante suas vidas, consideram seus verdadeiros pais e irmãos.

6
Sobre isso, comenta o nobre jurista paraibano Flamarion Tavares Leite, ao diferenciar a moral do direito conforme
os ensinamentos de Kant, que “[…] o primeiro e verdadeiro critério de distinção entre moral e direito é o motivo
(móbil) por que a legislação é obedecida. Temos, assim, o motivo absoluto do dever pelo dever no caso da
legislação moral - que não pode ser senão interna - e um motivo empírico no caso da legislação jurídica (que é,
portanto, externa). […] Importante assinalar que no plano jurídico há legalidade, isto é, a conformidade da ação
com a lei, ainda que o móbil seja patológico. […] Por sua vez, o plano ético requer a moralidade, sendo a simples
conformidade com a lei insuficiente […]” (LEITE, 2011. p. 132-134).

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Nessa linha de pensamento, verificamos que, com a evolução da sociedade, passaram
a viger novos valores que impulsionaram o rompimento desse clássico e arraigado modelo de
família. O afeto passa a ser a mola propulsora do núcleo familiar, que agora é descentralizado,
democrático, igualitário e despatrimonializado. Com o avanço tecnológico, científico e cultural,
esse sistema jurídico-social arraigado sede lugar à família contemporânea, plural,
multifacetária, que permite moldar-se de acordo com a influência da nova sociedade que se
forma, guiada pela solidariedade social e entre seus membros (FARIAS; ROSENVALD, 2016,
p. 35-36).
Portanto, a família na sociedade moderna tem o dever de proporcionar ao indivíduo
todas as condições para progredir enquanto ser humano, de modo a atingir a vislumbrada
realização existencial. Daí a ideia do caráter instrumental da família: é o meio de promoção da
pessoa humana, não a finalidade almejada. Não é mais uma célula social fundamental,
institucionalizada: é núcleo de desenvolvimento da personalidade humana (FARIAS;
ROSENVALD, 2016, p. 37).
Toda essa transformação de pensamento se deu pela formação da visão civil-
constitucional da família7, posto que a eficácia dos direitos fundamentais também se faz
presente nas relações de família, impulsionada pelo princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana8. Pela brilhante perspectiva de Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona sobre esse
princípio - norteador de todo o ordenamento jurídico pátrio9 - , podemos entender sua forte
influência nas mudanças comentadas alhures:
[…] por se tratar de cláusula geral, de natureza principiológica, a sua definição é
missão das mais árduas, muito embora arrisquemo-nos em dizer que a noção jurídica
de dignidade traduz um valor fundamental de respeito à existência humana, segundo
as suas possibilidades e expectativas, patrimoniais e afetivas, indispensáveis à sua
realização pessoal e à busca da felicidade.
Mais do que garantir a simples sobrevivência, esse princípio assegura o direito de se
viver plenamente, sem quaisquer intervenções espúrias - estatais ou particulares - na
realização desta finalidade (GAGLIANO; FILHO, 2012, p. 67).

7
Expressão utilizada por Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2016, p. 39).
8
Acrescentam que tal eficácia é horizontal, pois traduz a incidência dos direitos e garantias fundamentais nas
relações de família, ou seja, de Direito Privado (GAGLIANO; FILHO, 2014, p. 57-58).
9
Maria Berenice Dias (2013, p. 48) afirma que “Trata-se do princípio fundante do Estado Democrático de Direito,
sendo afirmado já no primeiro artigo da Constituição Federal”. Ademais, Rodrigo da Cunha Pereira (2004, p. 68)
acrescenta que é “[…] macroprincípio sob o qual irradiam e estão contidos outros princípios e valores essenciais
como a liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade, alteridade e solidariedade. São, portanto uma coleção
de princípios éticos”.

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Assim, é possível afirmar que a Constituição Federal nos proporcionou um novo modo
de ver o direito (DIAS, 2013, p. 42), e, como bem ponderam Cristiano Chaves e Nelson
Rosenvald (2016, p. 40), a Lex Fundamentallis determinou uma nova navegação aos juristas,
tendo como bússola norteadora a dignidade da pessoa humana. Assim, a família do novo
milênio tem seu alicerce na segurança constitucional, posto que é igualitária, democrática e
plural, eis que são protegidos todo e qualquer centro de vivência afetivo calcado em laços de
solidariedade.
O que fica evidenciado é que essa nova entidade familiar, assegurada pela Carta Magna
como base da sociedade e digna de especial proteção do Estado (art. 226, caput)10, tornou-se,
na sua mais simplória definição, um antro de afeto. Esse afeto é elemento essencial de todo e
qualquer núcleo familiar, pois está presente em qualquer relação conjugal ou parental.
Segundo Liane Thomé (2010, p. 45), “[…] a definição de dignidade para cada pessoa
guarda íntima relação com o seu querer, com seu desejo de reconhecimento individual, com seu
devido valor pessoal”. Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana se fundamenta no
reconhecimento de seu valor intrínseco, para que reste assegurado o desenvolvimento e o
exercício de seus direitos individuais em família. Esse núcleo de afeto constitui-se, pois, à luz
dos princípios da solidariedade, pluralidade familiar, isonomia, liberdade e autonomia de
vontade (THOMÉ, 2010, p. 43-44).
Dito isso, é possível associar a relação travada entre as pessoas humanas e seus animais
de estimação com o princípio que visa garantir a dignidade inerente a cada indivíduo. Conforme
estudo realizado por Calmon de Oliveira (2006, p. 26), as pessoas cada vez mais percebem seus
cães de estimação como “gente". Nesse cenário, impende trazer à baila a lição de Ingo
Wolfgang Sarlet (2011, p. 78), quando comenta sobre a não concretização da dignidade
humana:
O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela
integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma
existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim,
onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos
fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá
espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não
passar de mero objeto de arbítrio e injustiças.

10
Art. 226. “ A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Constituição Federal.

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Logo, ao ser humano deve ser garantido o direito de conviver com seu animal de
estimação, vez que sua autonomia e liberdade devem prevalecer para a constituição de uma
família instrumentalizada em proporcionar-lhe o locus de desenvolvimento da sua
personalidade, protegidas suas relações afetivas para que restem asseguradas sua dignidade e
felicidade.

3.1 DEMANDAS ENVOLVENDO ANIMAIS DE COMPANHIA E A


REVOLUÇÃO DO JUDICIÁRIO
Com a facilitação da dissolução do casamento - princípio fundamental calcado no texto
originário da Constituição de 1988 - e posterior Emenda Constitucional 66/1011, a
autodeterminação afetiva passou a ser a peça chave que sustenta, ou não, a união das pessoas
(FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 117). Isso significa que a legislação brasileira evoluiu no
sentido de extinguir os principais entraves do processo de dissolução conjugal, o que evita
desgastes emocionais e patrimoniais das partes envolvidas.
Ora, se a base fundante do Direito das Famílias é o afeto, resta ao Estado aceitar a
deliberação das partes interessadas quando este chega ao seu fim, independentemente de lapso
temporal ou perquirição de causas (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 118).
Dessa forma, observamos um crescimento significativo do número de separações
judiciais e divórcios nos tempos recentes. Segundo dados do IBGE (2014, p. 50), foram
realizados 341.181 assentamentos de divórcios no período, o qual revela a gradual mudança de
comportamento da sociedade brasileira, que passou a tratar isso com maior naturalidade.
Com essa volatilização da conjugalidade, o judiciário deparou-se com o aumento de
processos judiciais de divórcio e dissolução de união estável. Uma vez iniciados tais
procedimentos, a questão da guarda dos filhos menores dos ex-cônjuges e ex-companheiros é
levantada, muitas vezes não acordada entre eles antes da intervenção judicial. Se não há
consenso, a justiça deve determinar com qual progenitor ficará a guarda, ou se ela será
compartilhada (CHAVES, 2015).
No entanto, acontece que o planejamento familiar moderno conferiu tamanha
liberdade ao casal para decidir sobre sua eventual prole que muitos deles optam por
simplesmente não tê-la. Essa ideia de não ter filhos faz parte da mudança de valores e
expectativas sociais dos últimos tempos, o que torna atraente a opção de ter um animal de

11
A EC 66/10 alterou a redação originária do § 6º do art. 226, que versa “O casamento civil pode ser dissolvido
pelo divórcio”. Assim, suprimiu do texto anterior a separação judicial prévia e a exigência de prazos para conseguir
findar o casamento via divórcio. Constituição Federal.

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estimação ao invés de uma criança em casa, visto que um novo humano demanda outro patamar
de dispêndios e responsabilidades, ocasionando a sensação de perda de liberdade, além do medo
de não lograr estabilidade financeira ou profissional (BEMPARANA, 2009). Prova disso é a
estatística que comprova maior número de cães do que crianças nos lares brasileiros, conforme
supramencionado.
Desse modo, ações envolvendo a custódia de animais de companhia no seio das
dissoluções conjugais tornam-se cada vez mais recorrentes, abarrotando as varas de família
competentes Brasil afora. Essa realidade aponta o desafio que o operador do direito deve lidar
ao tratar de tema ainda não tutelado por regulamentação pertinente, uma vez que não se sabe
ao certo qual a legislação aplicável: seria a de Direito das Famílias, no que concerne a guarda
de filhos?; seria a de propriedade (já que os animais são semoventes)?; seria regime híbrido,
abarcando um pouco de cada? Diante da lacuna normativa, socorremo-nos à jurisprudência, eis
que atualmente o arbítrio é do magistrado12.

3.2 DEMANDAS ENVOLVENDO ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO

Interessante caso que ilustra a situação ora em comento surgiu em sede de apelação à
decisão da 5a Vara de Família do Fórum Regional do Meier, que bateu as portas da 22a Câmara
Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e trata da disputa da companhia do cão Dully. A
decisão de primeira instância ocorreu na demanda de dissolução de união estável c/c partilha
de bens e conferiu à apelada a posse do referido animal por ter comprovado ser sua legítima
proprietária (BRASIL, Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 2015).
Contudo, o apelante não se conformou com a decisão proferida em primeira instância
no que se refere à posse do cachorro, muito embora concordasse com a partilha de outros bens
propostos na inicial. A custódia de animais de estimação envolve maiores complicações que a
partilha de outros bens, eis que o forte relacionamento afetivo compartilhado por ambas as
partes e o tão querido pet acarreta profundo pesar àquele que possivelmente não obtiver sua
posse (ou “guarda”), situação essa que se assemelha aos conflitos relacionados à guarda de
crianças (CHAVES, 2015, p. 15-16).

12
Nesse sentido, importa a colocação de Fredie Didier Jr.: "Atualmente, reconhece-se a necessidade de uma
posição muito mais ativa do juiz, cumprindo-lhe compreender as particularidades do caso concreto e encontrar, na
norma geral e abstrata, uma solução que esteja em conformidade com as disposições e normas constitucionais,
mormente com os direitos fundamentais.”(DIDIER JR, 2013. p. 110).

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Sendo assim, o recorrente invocou em suas razões todas as alegações que o fariam
verdadeiro proprietário de Dully: que o adquiriu para si e sempre cuidou do mesmo, inclusive
com custas veterinárias e vacinação. Alegou também que o fato dos recibos anexados aos autos
estarem em nome da apelada não a conferia a propriedade do cachorro, uma vez que foram
emitidos em seu nome por liberalidade do apelante.
Pois bem. Logo de início, o Des. Marcelo Lima Buhatem (relator do processo que foi
mencionado) reconheceu o tema em questão como desafiador. Isso se justifica pelo fato de não
estar ainda normatizado pelo legislador, bem como por demandar que o operador do direito
revisite dogmas e conceitos clássicos do Direito Civil.
O julgador destacou, pois, a necessidade de enfrentar o tema com serenidade e sem
preconceitos, uma vez que, sob o contexto sócio-jurídico estabelecido pós Lex Fundamentalis
de 1988, a dignidade da pessoa humana é postulado que se espraia por todas as relações
jurídicas, inclusive a da posse, guarda ou eventual direito de desfrutar da companhia do pet que
antes era do casal.
Os negativos efeitos psicológicos sofridos pelo parceiro que não mantém contato com
o animal de companhia (nem mesmo com visitas frequentes e regulares) em razão da dissolução
da sociedade conjugal, devem ser considerados. Segundo pesquisas realizadas no Brasil nos
últimos 25 anos, o ato de cuidar amorosamente dos pets proporciona em seus tutores um
aumento significativo de neurotransmissores e hormônios responsáveis pela sensação de bem-
estar (CADORE, 2013). Isso faz com que o rompimento abrupto da relação entre eles se torne
verdadeiro pesadelo para quem perde a guarda, sem falar nos imensuráveis danos causados ao
próprio animal13.
Logo, pelo princípio da dignidade da pessoa humana - que busca salvaguardar um
ambiente familiar propício à felicidade e realização plena das pessoas -, a relação travada entre
ambos tutores e seu pet deve ser, ao máximo, preservada.
Nesse panorama, o magistrado do julgado em comento ressaltou o papel singular de
Dully à entidade conjugal que outrora formava uma família, considerando o manifesto
sofrimento causado ao apelante pelo impedimento de continuar na companhia de seu amado
cachorro. Portanto, não parece ser razoável e coerente com os novos ditames do Direito das

13
Cães que estão acostumados a conviverem com humanos acabam se habituando a suas rotinas, então uma vez
abruptamente quebrada essa relação, os animais acabam sofrendo bastante. No livro Dogs behaving badly, (cães
mal comportados - tradução nossa), o diretor de comportamento da Tufts University School of Veterinary Medicine,
dos Estados Unidos, afirma que “depois da perda de alguém querido, normalmente os cães apresentam sinais de
depressão humana, incluindo distúrbios alimentares”. (FERNANDES, 2010).

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Famílias pós-moderno que o animal seja tratado como mera res a ser partilhada juntamente com
os outros bens, posto que ficaria sob a posse de um ou outro parceiro, sem qualquer contato
com a outra parte (CHAVES, 2015, p. 16).
Por fim, a decisão final do referido caso foi favorável à parte autora, que conseguiu
juntar ao processo os documentos que comprovavam ser ela a responsável pelos cuidados de
Dully, os quais o apelante falhou em contestar. Todavia, o julgador entendeu que não poderia
deixar de considerar a relevância desse animal para a parte vencida, o que o fez propor uma
solução que abarcasse, na medida do possível, os interesses de ambos ex-consortes.
Assim, mesmo sem previsão legal que orientasse a decisão da justiça, o relator
entendeu tratar-se de “homenagem ao princípio que veda o non liquet14, a proibir que se deixe
de entregar a jurisdição por obscuridade da demanda ou norma que lhe discipline”. Apesar da
falta de previsão legal, o julgador deve propor solução à lide, conferindo uma harmonização
daquilo que entende pertinente às partes.
Sendo assim, a decisão foi fortemente sensibilizada pela relação que o apelante
mantinha com seu cachorro (já de idade avançada) e acabou concedendo a ele o direito de estar
na companhia de Dully, ainda que se tenha reconhecido que a propriedade do animal é da
apelada. Dessa forma, o magistrado concedeu ao apelante a possibilidade de ficar com o
cachorro em finais de semana alternados, por sua posse provisória, atendendo também ao
melhor interesse do animal15.
Nessa oportunidade, impende analisarmos que o tribunal esteve atento à dignidade das
pessoas em conflito. Dessa forma, conforme os ensinamentos de Ingo Wolfgang Sarlet (2011,
p. 284), parte-se da premissa de que todas as pessoas são iguais em dignidade, embora não se
portem de modo igualmente digno, existindo, portanto, um dever de respeito recíproco da
dignidade alheia. Logo, quando deparamo-nos com a hipótese de conflito direto entre as
dignidades de pessoas diversas, impõe-se o estabelecimento de uma concordância prática (ou
harmonização), pela ponderação, conforme os ditames da doutrina de Robert Alexy, dos bens

14
Segundo Fredie Didier Jr., “A definição do papel dos tribunais no sistema jurídico deve partir dessa premissa:
todo problema que lhe for submetido ao Tribunal precisa ser resolvido, necessariamente. É dizer: ainda que a
situação concreta não esteja prevista expressamente na legislação, caberá ao magistrado dar uma resposta ao
problema […]”. (DIDIER JR, 2013, p. 111).
15
“Analogamente ao melhor interesse da criança, o melhor interesse do pet é um conceito jurídico indeterminado,
que deverá ser materializado pelo juiz na análise dos elementos do caso concreto, sempre em busca do bem-estar
do animal em causa. Entretanto, pode-se indicar, ainda que genericamente, alguns vetores para a sua concretização,
como: condições de vida; frequência que a pessoa irá interagir com o animal, presença de outros animais ou
crianças no lar, e a afeição dirigida ao animal”. (CHAVES, 2015, p. 21).

Página 206 de 261


em rota conflitiva, neste caso, do mesmo bem (dignidade) concretamente atribuído a dois ou
mais titulares.
Continua, pois, nessa linha de pensamento:
Em se admitindo – na esteira de Alexy – que mesmo a dignidade comporta diversos
níveis de realização e, portanto, uma certa graduação e relativização, desde que não
importe em sacrifício da dignidade, seria possível reconhecer também que a própria
dignidade da pessoa, como norma jurídica fundamental, possui um núcleo essencial
e, portanto, apenas este (na hipótese de necessária harmonização da dignidade de
diversas pessoas), por via de consequência, será intangível (SARLET, 2011, p. 301).

Desse modo, temos que esse núcleo essencial da dignidade da pessoa humana, que
deve permanecer intacto quando em conflito com a dignidade de outrem, configura-se na
harmonização dos direitos de ambos os tutores de lograrem a manutenção do convívio com seu
animal de estimação, em claro paralelo ao direito de convívio com os filhos humanos após a
dissolução conjugal - materializado no direito de visitas ou na guarda compartilhada. Essa
situação se deve ao fato de os tutores serem acometidos de grande angústia se forem
bruscamente afastados de seus entes. O tribunal deve tutelar o direito do parceiro que não tem
a guarda de visitar regularmente seu animal de companhia (EITHNE; AKERS, 2011, p. 230).
Entendem de modo diverso, porém, Adisson Leal e Vitor dos Santos (2015, p. 168-
177), que fornecem forte crítica à decisão supracitada. Para os aludidos juristas, a tendência que
se verifica com o precedente judicial em análise é de humanização dos animais de estimação, o
que não condiz com a realidade jurídica do ordenamento posto à interpretação, nem tampouco
dos princípios civis, constitucionais e gerais do direito. A consolidação desses animais como
verdadeiros membros da entidade familiar não poderia ser feita pelo fato da sua natureza
jurídica ser idêntica a dos outros animais (não domesticados), isto é, natureza de “coisa”, apesar
da forte afeição a eles destinada.
Em que pese a importância de tal posição ao Direito das Famílias, não podemos nos
restringir à regulamentação vigente destinada aos animais de estimação (de bens semoventes),
uma vez que o seu melhor interesse16, seu valor inestimável e a ligação emocional e amorosa
de seus tutores para com eles são pontos de argumentação favoráveis a sua consideração como
sujeitos de direito, como propõe a melhor doutrina já analisada.
Nessa linha de pensamento, outros julgados continuaram a atribuir aos animais
elementos de Direito das Famílias: é o exemplo do recente caso da Segunda Vara de Família e

16
Tamanha relevância se dá ao melhor interesse do animal que Eithne e Akers (2011, p. 231) defendem, inclusive,
a prevalência dos seus interesses quando conflitantes com o de um dos proprietários. Ou seja, se não for possível
ao tribunal harmonizar os interesses das partes e do animal, privilegia-se o melhor interesse do pet, posto que o
humano tem mais condições de sair de situação adversa e conseguir solução de ajuda própria.

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Sucessões de Jacareí, do Estado de São Paulo, que estabeleceu a guarda alternada de um cão
entre ex-cônjuges, então partes de processo de dissolução conjugal, fixando que o animal ficará
uma semana na casa de cada um, sucessivamente (IBDFAM, 2016).
Em rica fundamentação, o juiz Fernando Henrique Pinto reconheceu que os animais
são sujeitos de direito nas ações relacionadas às desagregações familiares. Pela menção de
estudos científicos diversos sobre o comportamento de animais e as leis referentes ao tema,
mostrou que diante da realidade científica, normativa e jurisprudencial, o cão não pode ser
produto de alienação judicial para que a renda de sua venda seja divida entre os ex parceiros,
uma vez que ele não é uma “coisa”. Defendeu ainda que a sentença deve considerar critérios
éticos por tratar-se de ser vivo, bem como reafirmou o cabimento da analogia com a guarda de
humano incapaz.
Essa visão inovadora da jurisprudência configura-se como dominante, uma vez que
influencia outras decisões a tratarem do tema de forma semelhante, posto que o processo
jurisdicional também é forma de criação de norma jurídica. Sobre isso, reputamos os
ensinamentos de Fredie Didier Jr. (2013, p. 112-113):

A criatividade jurisdicional revela-se em duas dimensões: cria-se a regra jurídica do


caso concreto (extraível da conclusão da decisão) e a regra jurídica que servirá como
modelo normativo para a solução de casos futuros semelhantes àquele (que se extrai
da fundamentação da decisão). […] O processo jurisdicional, como espécie de
processo, é também um meio de produção de norma jurídica. [...] O processo
jurisdicional também serve como modo de produção da norma jurídica geral
construída a partir do exame de um caso concreto, que serve como padrão decisório
para a solução de casos futuros semelhantes.

Seguindo o pensamento aqui proposto, conforme Marianna Chaves (2015, p. 20), o


papel que os pets passaram a desempenhar na família pós-moderna, agregado ao consenso
doutrinário e social que defende a existência de um sistema legal (em qualquer sociedade, mas
especialmente as do mundo ocidental) que se constrói no sentido de salvaguardar o bem-estar
de animais não humanos, enseja a formação do cenário atual ora em análise. Se a família é a
base da sociedade e o animal passou a ter uma nova função dentro de seu seio, é natural que
busquemos uma tutela mais adequada à essa desafiante realidade.

4 CONCLUSÃO

A estrutura patriarcal e hierarquizada da família, presa aos tradicionais ditames


religiosos e sociais, cedeu lugar a uma formação familiar independente da intervenção estatal,

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liberta de qualquer contorno social congelado aos padrões de vida antes defendidos. A família
eudemonista, constituída (ou dissolvida) a partir do simples desejo de seus integrantes e calcada
no alicerce fundamental do afeto, consagrou-se como locus de desenvolvimento da
personalidade e realização existencial de cada um deles, tomando como norte a busca da
concretização da felicidade no ambiente familiar.
O Direito das Famílias contemporâneo encontra-se engajado na proteção do bem-estar
e na defesa dos interesses dos sujeitos de direitos que integram as famílias brasileiras, a fim de
acompanhar as mudanças nas mais diversificadas formas de relacionamento desenvolvidas
nesse núcleo de afeto e de respeito à dignidade da pessoa humana.
Nesse cenário, o estudo aqui trabalhado buscou analisar as conseqüências jurídicas
advindas do fortíssimo estreitamento afetivo travado entre pessoas humanas e seus animais de
estimação, tendo em vista que eles foram efetivamente inseridos nas entidades familiares
mundo afora, inclusive no Brasil, nação que guarda imensa estima pelos pets, como
demonstrado via coleta de dados apresentados alhures.
A constitucionalização do Direito Privado proporcionou a valorização cada vez maior
dos princípios da afetividade, da instrumentalidade e da pluralidade das famílias, possibilitando
a transformação do estatuto fático de “filho” - atribuído aos animais de estimação - para um
estatuto jurídico que salvaguarde o direito concernente a seus “pais” de conviverem em sua
presença, de modo a preservar o importante vínculo de afinidade entre eles compartilhado.
Direito não é ciência exata e estática, assim, não pode se escusar de tutelar e proteger
um amor tão bonito e sincero como o encontrado entre os animais de estimação e seus “pais”
humanos. Não há mais espaço para um conhecimento apartado do mundo concreto, com
padrões já formados e contornados por um ordenamento cada vez mais fadado à ineficácia. O
fascinante estudo das relações de afeto, proporcionado pelo Direito das Famílias, comunga-se
com a beleza da ligação amorosa entre a natureza e a humanidade, fazendo das ciências jurídicas
uma via de concretização da felicidade e do bem estar dos que dela necessitam.

REFERÊNCIAS

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O CONTRATO EXTRAPATRIMONIAL NA RELAÇÃO DE
MATERNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO

Eliama Oliveira de Souza1


Maria Caroline Santiago Galiza2
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa3

RESUMO: A medicina avançou, e juntamente com ela tornou-se possível o avanço de


técnicas de reprodução assistida, dentre elas, a maternidade de substituição, conhecida
aqui no Brasil por “barriga de aluguel”. E dessa forma, mulheres e homens que possuem
problemas de infertilidade e esterilidade tiveram suas esperanças renovadas no que tange
a perspectiva de ter filho(as), uma vez que foi possível a utilização desse método de
reprodução para obter o tão sonhado desejo de ser pai e mãe. Contudo, os avanços
tecnológicos deste método de reprodução não foram acompanhados pelo mundo jurídico,
inclusive no que tange ao reconhecimento do contrato extrapatrimonial existente na
relação da maternidade de substituição no ordenamento jurídico brasileiro, e dessa
maneira diversos questionamentos e conflitos étnico-jurídicos foram surgindo, diante da
ausência do reconhecimento contratual e legislativo referente a esta técnica de reprodução
humana. Logo, busca-se verificar a existência de limites na relação da maternidade de
substituição na possibilidade de aceitação, pelo nosso ordenamento jurídico, dos contratos
existenciais relacionados a maternidade de substituição, através da construção e
definição de alguns conceitos conflituosos em relação a este tema, para que se possa
efetivar e tutelar, de forma legal, os limites jurídicos e éticos da prática da maternidade
de substituição, baseados em princípios bioéticos e nos princípios fundamentais,
principalmente o da dignidade da pessoa humana.
Palavras- Chaves: maternidade de substituição; conflitos étnico-jurídicos; contrato
extrapatrimonial; tutela jurídica; dignidade da pessoa humana.

1
Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba - Campus de Santa Rita (UFPB). E-mail:
eliama.oliveira@gmail.com
2
Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba - Campus de Santa Rita (UFPB). E-mail:
mariacarolsantiago1@gmail.com
3
Orientadora. Professora Adjunta do Curso de Direito da Universidade Federal da Paraíba. Doutora em
Direitos Humanos e Desenvolvimento pela UFPB; Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB; Associada
ao Instituto Brasileiro de Direito Civil; e primeira vice-presidente do Instituto: Perspectivas e Desafios de
Humanização do Direito Civil-Constitucional.

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ABSTRACT: The medicine has advanced, and with it became possible to advance
assisted reproductive techniques, among them, surrogate motherhood, known in Brazil as
"surrogacy". And so women and men who have problems of infertility and sterility had
their hopes renewed regarding the prospect of having a child (as), since the use of this
method of reproduction was possible for the dream desire to be father and mother.
However, the technological advances of this method of reproduction were not
accompanied by the legal world, including those related to the recognition of existing off-
balance sheet contract in respect of surrogacy in the Brazilian legal system, and thus many
questions, ethnical and legal disputes have arisen, in the absence of contractual
recognition and legislation regarding this technique of human reproduction. Therefore,
we seek to verify the existence of limits in respect of surrogacy in the possibility of
acceptance by our legal system, the existential contracts related to surrogate motherhood,
through the construction and definition of some conflicting concepts regarding this
subject, so you can carry and protect, legally, the legal and ethical boundaries of the
practice of surrogacy, based on bioethical principles and fundamental principles,
especially the dignity of the human person.
Keywords: surrogate motherhood; ethnic-legal disputes; extrapatrimonial contract; legal
protection; dignity of human person.

1 NOTAS INTRODUTÓRIAS

Em 1978 surge o primeiro bebê de proveta do mundo, chamado Louise Loy


Brown. Passado dez anos, ocorreu o nascimento do primeiro bebê de proveta no Brasil
(AMORIM, 2006, p. 2), a partir de então, diversas crianças nasceram das técnicas de
reprodução assistida, inclusive através do método da maternidade de substituição.
Todavia, na medida que se intensificava o uso deste método de procriação, diante da
ausência de lei específica no Brasil, demandas judiciais se originaram diante de casos
controversos, motivando a exposição de opiniões em jurisprudências e pareceres, à
exemplo do que segue abaixo:
PARECER Nº 82/2010, PROC. Nº 2009/104323, proferido pelo
Desembargador Antônio Carlos Munhoz Soares:

REGISTRO CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS - Assento de nascimento -


Filha gerada mediante fertilização in vitro e posterior inseminação, artificial,
com implantação do embrião em mulher distinta daquela que forneceu o

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material genético - Pretensão de reconhecimento da paternidade pelos
fornecedores dos materiais genéticos (óvulo e espermatozoide) - Cedente do
óvulo impossibilitada de gestar, em razão de alterações anatômicas - "Cedente
do útero", por sua vez, que o fez com a exclusiva finalidade de permitir o
desenvolvimento do embrião e o posterior nascimento da criança, sem intenção
de assumir a maternidade - Confirmação, pelo médico responsável, da origem
dos materiais genéticos e, portanto, da paternidade biológica em favor dos
recorridos - Indicação da presença dos requisitos previstos na Re solução nº
1.358888/1992 do Conselho Federal de Medicina, em razão das declarações
apresentadas pelos interessados antes da fertilização e inseminação artificiais
- Assento de nascimento já lavrado, por determinação do MM. Juiz Corregedor
Permanente, com consignação da paternidade reconhecida em favor dos
genitores biológicos - Recurso não provido. (SOARES, 2010)

Desde então, a sociedade vem verificando diversas descobertas, principalmente


no que tange à maternidade de substituição. De maneira clássica, quando os casais não
possuíam fertilidade para almejarem uma maternidade e paternidade, os mesmos
buscavam o meio da adoção para satisfazerem esse desejo. Todavia, com o avanço em
relação à biotecnologia, no que diz respeito a Reprodução Assistida, foi possível que
casais inférteis ou estéreis conseguissem alcançar a aspiração de possuir(em) filho(as)
oriundos do próprio patrimônio genético.
Os avanços científicos e tecnológicos da medicina tornou viável e de extrema
importância o uso de técnicas de reprodução humana assistida, inclusive a da maternidade
de substituição, tendo em vista que foi possível a sua utilização por diversos casais que
não podiam ter filho(as) por problemas relacionado a infertilidade. É o que explícita a
Juíza de Direito da 2° Vara de Família da Ilha do Governador, Maria Cunha de Souza
(2010, v.13, pag. 349), em seu artigo publicado na revista da EMRJ, pelo qual
conseguimos comprovar, através de dados estatísticos levantados pela OMS, a
importância do método da maternidade de substituição, quando relacionado ao número
de casais que possuem problemas de infertilidade:
Um dado estatístico, a saber, que realça a importância da descoberta destas
técnicas de reprodução assistida e da necessidade de sua regulamentação legal
é que, segundo a Organização Mundial da Saúde, entre 8% e 15% dos casais
têm algum problema de infertilidade, que, com o emprego de algum dos
procedimentos de procriação artificial, poderá ser sanado, possibilitando a
desejada gravidez. (CUNHA, 2010)

Segundo Jorge Duarte (2008, v. 2, p. 324): “numa noção ampla, a maternidade


de substituição consiste num fenômeno de gestação para outrem”, já que uma mulher
(receptora) doa o útero de forma temporal para o embrião se desenvolver e posteriormente
o bebê nascer, e dessa forma, quando nascer, seja entregue pela mãe receptora para o pai
e mãe doadores do material genético. Segundo a magistrada Maria Cunha de Souza (2010,

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v.13, pag. 349), citada no parágrafo anterior, de uma maneira mais ampla, podemos
conceituar a maternidade de substituição como sendo:1
A gestação de substituição acontece quando há a fertilização in vitro e a mulher
doadora do material genético possui algum problema que faz com que seu
útero não seja apto a gerar o embrião. Assim, o embrião se desenvolverá no
útero de uma “mãe hospedeira”. O caso é daqueles que mais podem gerar
conflito e, embora o CC não tenha regulamentado a hipótese, também não a
proíbe. Tanto assim, que há algum tempo foi amplamente noticiado o caso de
uma avó que gerou o seu neto porque a filha não tinha condições de fazer a
gestação do embrião em seu ventre. É classificada como técnica extracorpórea,
posto que o primeiro passo é a fertilização in vitro, com a posterior implantação
do embrião no útero da hospedeira, podendo ser homóloga ou heteróloga.
Neste estudo, será considerada sempre a homóloga, ou seja, com material
fecundante do casal.

Com o referido avanço, intensificou o número de casais com problemas de


esterilidade ou infertilidade que buscam a maternidade de substituição como um meio
para que pudessem ter filho(as). Ocorre, porém, que o ordenamento jurídico pátrio não
acompanhou esse avanço-técnico científico que proporcionou o método da maternidade
por substituição, tendo em vista que este método não está previsto em lei específica e
ainda não é reconhecido o contrato extrapatrimonial no nosso Ordenamento Jurídico
referente a esta relação pactual, o que ocasiona diversos problemas. Dentre estes
problemas, analisaremos os principais problemas jurídicos a serem questionados e
compreendidos, no que se refere ao reconhecimento do contrato de maternidade de
substituição como contrato extrapatrimonial no direito civil brasileiro e quais benefícios
que a aceitação contratual nesta relação traria para os contratantes.

2. O NÃO RECONHECIMENTO DO CONTRATO EXTRAPATRIMONIAL NA


LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E SEUS IMPACTOS:

Mesmo diante da existência da resolução n° 1.957 de 2010 do Conselho Federal


de Medicina (CRM), a ausência do reconhecimento jurídico do contrato extrapatrimonial
na relação da maternidade de substituição, juntamente com a falta de uma lei específica
relacionada a este temática, ocasiona diversos problemas étnico-jurídicos, já que esta
resolução não possui força de lei, tendo dessa forma, uma maneira ineficaz de resolução

1
SOUZA, MARISE CUNHA. As Técnicas de Reprodução Assistida. A barriga de Aluguel. A definição
da Maternidade e da Paternidade. Bioética. Revista da EMERJ, v. 3. N° 50, 2010. REVISTA EMERJ
TJRJ. Disponível em:
<http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista50/Revista50_348.pdf>. Acesso em: 29
de agosto de 2016.

Página 216 de 261


de conflitos que envolvam este método de técnica de reprodução assistida, pois a
resolução é desprovida de coerção e estabelece apenas alguns limites relacionados ao
acesso e ao uso da prática da maternidade de substituição, conforme exposto abaixo:2

A Resolução nº. 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina – norma máxima


da classe médica que rege esta prática – em seu capítulo VIII dispõe a respeito
da gestação de substituição (doação temporária de útero) –,estabelece as
restrições à liberdade do uso da técnica de maternidade de substituição.
Entretanto, a Resolução mostra-se precária, por constituir-se em uma norma
infralegal, sem qualquer poder de coerção.

O não reconhecimento do contrato extrapatrimonial na legislação brasileira que


regulamente a relação da maternidade de substituição, juntamente com todos os
problemas ético-jurídicos decorrentes desta relação, nos leva a questionar e problematizar
a existência de uma insegurança em relação à definição de certos aspectos jurídicos e
resolução de conflitos decorrentes desta relação, até porque existem muitas controvérsias
referentes a este método de reprodução humana.
Não existe nesta relação uma resposta jurídica que venha a tutelar conflito no
campo jurídico, baseados em princípios bioéticos e nos direitos fundamentais da pessoa
humana, o que torna um vínculo de insegurança, tendo em vista que não está bem definida
e regulamentada em um contrato, ao passo que esta relação é bastante necessária para
quem deseja ter filho(as) e não pode ter.
Problemas relacionados à dúvida de quem realmente possui a maternidade e
paternidade na relação de maternidade de substituição, quais são os limites, sejam
objetivos e subjetivos, na relação de maternidade de substituição, quais penas aplicáveis
no descumprimento contratual nesta relação, são alguns dos exemplos de
questionamentos e conflitos jurídicos que podem surgir como consequência dessa
relação.
Por vezes, as mulheres e homens doadores do material genético que não
receberam o seu filho da mãe gestacional, como combinado anteriormente com a mãe
genitora e/ou pai genitor, tiveram que ingressar com demanda no Poder Judiciário Pátrio,
por algum conflito ocasionado na relação de maternidade de substituição e não obtiveram
êxito - já que muitas vezes surgem dúvidas entre os próprios juristas sobre quem é

2
AMORIM, Caroline Sebastiany. Aspectos jurídicos da maternidade de substituição no direito
brasileiro. TCC PUC-RS, 2006. Disponível em
<http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2 /trabalhos 2006
_1/caroline_amorim.pdf>. Acesso em 29 de agosto de 2016.

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realmente a mãe biológica: se é a que doou o útero e foi responsável pela formação da
criança ou a mulher que emprestou sua barriga por aproximadamente quarenta semanas
para que a criança nascesse.
Consequências como a mencionada acima, constituí um dano irreparável, uma vez
que o casal que contratou a mãe de substituição não terá o tão sonhado filho(a) que
planejou e se envolveu afetivamente mesmo ainda durante o período da concepção. Dessa
forma, podemos dizer que a ausência de reconhecimento contratual e legislativa acaba
por afastar as esperanças de quem tanto deseja ter a maternidade ou paternidade de uma
criança.
A própria doutrina remete possíveis ocorrências de conflitos, que são: o conflito
positivo e o negativo na relação de maternidade de substituição. Em relação aos conflitos
positivos, ocorre quando acedente do útero e a idealizadora na relação de maternidade de
substituição desejam possuir a maternidade da criança que será gerada nesta relação. Já
em relação aos conflitos negativos, tanto a mulher idealizadora, quanto a gestacional,
negam a filiação da criança gerada, o que é provável acontecer caso a criança fruto desta
relação nasça com alguma deficiência, por exemplo.
Em perspectiva história e clássica, o ordenamento jurídico se baseava na ideia de
mater semper certa est que significa dizer que a mãe é sempre certa, tendo em vista que
a mãe era aquela que gerava pelo parto a criança. Porém, em uma perspectiva pautada
pela constituição, sabemos que o nosso Código Civil vigente, admite que a genitora não
é apenas aquela que gera a criança, mas aquela que têm a sócio afetividade pela criança.3
Dessa forma, deve ser identificado no contratual entre a mãe substituta e a mãe
legal, é o que bem diz Maria Helena Diniz (2011, p. 659) que se deve indicar “[...] quem
será a mãe legal: a doadora do óvulo, a encomendante ou a que gestou a criança; [e deve
haver] obrigação de entregar da criança após o parto, à mãe legalmente habilitada, sob
pena de prisão e de pagar uma indenização.” Ademais, a falta de êxito nesses casos ocorre
devido à falta de uma Lei que preencha lacunas que indiquem quem realmente é a mãe e
que valide o contrato existente nesta relação. É o que diz a magistrada Maria Cunha de
Souza (2010, v.13, pag. 349):3

3
A verdade sociológica da filiação se constrói, revelando-se não apenas na descendência, mas no
comportamento de quem expende cuidados, carinho e tratamento, quem em público, quer na intimidade do
lar, com afeto verdadeiramente paternal, construindo vínculo que extrapola o laço biológico, compondo a
base da paternidade.

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Na prática, pode-se resumir a situação ao fato de duas mulheres
proporcionarem o nascimento de uma criança. Obviamente, alguns problemas
quanto ao estabelecimento da filiação poderão surgir exatamente em razão da
ausência de norma legal a respeito. Assim, ao fim da gestação, aquela mulher
que por nove meses carregou em seu ventre filho que sabe ser de outrem, pode
recusar-se a entregar o bebê, uma vez que o registro de nascimento será feito
no nome da hospedeira e que o hospital fornece a declaração de nascido vivo
com os dados da parturiente. Nesse caso, os pais biológicos terão que ajuizar
uma ação para reverter essa situação. O que deverá decidir o juiz? Mãe é aquela
que doou o óvulo para fecundação ou a que gerou o embrião? Seria possível,
quanto à paternidade, aplicar-se o que dispõe o art. 1.597 do CC em seus
incisos III e V?

Em casos como este, em que o casal que ingressa com uma Ação para reconhecer
a filiação do filho gerado pela mãe de substituição e não têm esse reconhecimento, temos
uma decisão jurídica que não promove e não preserva a dignidade humana, ápice da
Constituição Federal e do nosso ordenamento jurídico. Além desse problema, diversos
outros problemas podem surgir com o decorrer da relação jurídica, como: a problemática
de o filho for rejeitado por ambas as genitoras (conflitos negativos).

3 O CONTRATO EXTRAPATRIMONIAL

De maneira inicial, pode-se falar da teoria da eficácia imediata ou direta no que


tange os direitos fundamentais em suas relações privadas e refere-se à ocorrência dos
mandamentos constitucionais no que diz respeito às garantias e direitos fundamentais nas
ligações entre os familiares, associando-os assim de maneira direta e imediata no que
tange esses preceitos. Logo, chega-se a conclusão que não é preciso outra atividade, seja
ela jurisdicional ou legislativa, para que possua validade diante dos particulares.
Nesse sentido Luís Roberto Barroso (1996, p. 260):

[…] em uma perspectiva de avanço social, devem-se esgotar todas as


potencialidades interpretativas do Texto Constitucional, o que inclui a
aplicação direta das normas constitucionais no limite máximo do possível, sem
condicioná-las ao legislador infraconstitucional.

Quando se fala dos contratos existenciais ou extrapatrimoniais, seus interesses dizem


respeito à personalidade e a dignidade de pelo menos uma das partes do contrato, são
considerados de primeira ordem, tornam-se o motivo de existir do contrato, sendo
relevante utilizar a teoria que seja mais protetiva. Dessa maneira, a teoria da eficácia de
maneira matizada no que diz respeito os direitos fundamentais nas ligações entre
privados, retrata ser mais adequada para nortear as questões subjetivas no que tange o

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âmbito extrapatrimonial nos contratos existenciais. Já no que diz respeito a autonomia
privada, refere-se ao poder que os particulares detêm para elaborar normas jurídicas de
cunho particular para que assim normatizar circunstâncias que se relacionem entre si.
Ademais, esse poder não é absoluto, é necessário que esteja conforme a Lei, ou seja, todo
o Ordenamento Jurídico.
A partir disso, Wilson Steinmetz (2004, p. 295-296) fala acerca do tema:
Quanto à forma (o modo, o “como”) e ao alcance (a extensão, a medida), a
vinculação dos particulares a direitos fundamentais – sobretudo a direitos
fundamentais individuais – se materializa como eficácia imediata “matizada”
(“modulada” ou “graduada”) por estruturas de ponderação (ordenadas no
princípio da proporcionalidade e seus elementos) que, no caso concreto,
tomam em consideração os direitos e/ou princípios fundamentais em colisão e
as circunstâncias relevantes. Ademais, nos casos concretos para os quais há
regulação (concretização) legislativa específica suficiente e conforme a
Constituição e aos direitos fundamentais, o Poder Judiciário, em virtude dos
princípios democráticos e da separação de poderes, não deve, de plano e sem
a apresentação de razões jurídico-constitucionais de peso (ônus de
argumentação), afastar-se da solução legislativa, isto é, o Poder Judiciário não
deve sobrepor-se, de imediato e sem satisfazer um ônus de argumentação
constitucional racional e objetiva, às ponderações do Poder legislativo
concretizadas em regulações específicas de direito privado.

A autonomia privada possui limitação pelos princípios constitucionais, pelo


princípio da solidariedade, pela dignidade da pessoa humana, pelos direitos fundamentais,
pela função social, pelo aparato protecional no que tange o direito da personalidade. Com
isso, há outra limitação pelo aparato protecional no que tange o direito da personalidade.
Com isso, há outra limitação relevante a autonomia privada que diz respeito a questão da
aplicabilidade da teoria da eficácia imediata ou direta dos direitos fundamentais no que
tange as ligações privadas, logo os contratos não podem ter cláusulas que venha a ferir os
direitos fundamentais.
Por isso Fernando Noronha (1994, p. 115) explicita o conceito de autonomia
privada:
[…] pode-se dizer que autonomia privada consiste na liberdade de as pessoas
regularem através de contratos, ou mesmo de negócios jurídicos unilaterais,
quando possíveis, os seus interesses, em especial quanto à produção e à
distribuição de bens e serviços. Na lição de Larenz e mais concretamente, “é a
possibilidade, oferecida e assegurada aos particulares, de regularem suas
relações mútuas dentro de determinados limites por meio de negócios
jurídicos, em especial mediante contratos.

4 OS BENEFÍCIOS DO CONTRATO EXTRAPATRIMONIAL QUE REGULE A


RELAÇÃO DA MATERNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO

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Entendemos que a relação da maternidade de substituição é de natureza
contratual, uma vez que há acordo de vontades entre a mãe e ou pai idealizadores com a
mãe gestacional. Só que este tipo de contrato tem suas particularidades, uma vez que
envolve um objeto não patrimonial, mas sim pessoa. E por mais, que dessa relação, não
se trate especificamente de uma pessoa e sim da figura do nascituro, já que o nosso Código
Civil não adota a teoria da Concepção, há uma proteção jurídica no Código Civil vigente
em relação aos direitos do nascituro, quando diz no Artigo 2°, do CC, que “A lei põe a
salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.
Diante de tal proteção atribuída pelo Código Civil ao nascituro, consideramos
válida a relação da maternidade de substituição posto em uma relação de contrato
extrapatrimonial, pautadas em limites bioéticos e no princípio da dignidade da pessoa
humana, uma vez que dilemas de quem realmente será a mãe e/ou pai biológico, como
resolver uma situação em que nem a mãe e/ou pai idealizadores, juntamente com a mãe
gestacional não reconhece o filho, porque ele possui alguma deficiência, poderão ser
tutelados por cláusulas contratuais, juntamente com penalidades em caso de
descumprimento dessas cláusulas.
Além dessas vantagens, que garante uma maior eficiência e tutela jurídica nessa
relação, serão combinados os detalhes da relação, como: qual o momento ideal de a
criança ser entregue para a mãe e pai idealizadores, quando a mãe gestacional realizará o
procedimento de fertilização in vitro, quando e como será realizado o pagamento para a
mãe gestacional pelo serviço prestado, quem arcará com as custas dos tratamentos médico
gestacionais e do parto (caso sejam particulares), enfim, diversos conflitos que podem se
desenvolver durante esta relação.
Por mais que existam disposições no sentido contrário a este tipo de contrato
com argumentos de que não se pode existir juridicamente esta relação, pautada na ideia
de que a vida é um bem inalienável, ou seja, que não se pode vender a prestação dessa
relação contratual não é meramente patrimonial e não se baseia na venda da criança em
si, mas na está pautada na ideia da ajuda em que a mãe gestacional presta para a mãe e
pai que almejam muito ter a paternidade e maternidade de uma criança, mas não podem
ter devido algum problema relacionado a infertilidade.
Além disso, a ausência de um contrato que regule esta relação incentiva pode ser um
dos incentivadores da clandestinidade, e consequentemente falta segurança jurídica, pois
a maternidade de substituição acaba sendo realizada a margem da existência de uma
regulamentação contratual e legislativa.

Página 221 de 261


A falta de segurança jurídica é uma questão bastante a ser discutida, já que
quando não há um contrato específico para se tratar de uma determinada questão, fica
bastante dificultoso para que esse contrato consiga cumprir sua real função, logo o que
existe é uma falta de regulamentação não apenas contratual, mas também normativa para
tratar acerca dos dilemas que são trazidos acerca desse tema considerado tão polêmico.
Fica evidente que é necessária uma lei específica para que seja regulamentada a
questão da Reprodução Assistida, já que o Código Civil de 2002 não permite e nem faz a
regulamentação acerca desse tema, somente ratifica a lacuna que existe e busca resolver
em relação ao aspecto paternidade. Como essa técnica gera bastante dubiedade no que
tange à sociedade, então, devido a esse dilema, é preciso que o legislador se posicione
urgente para que seja regulamentado o tema supracitado.
Essa nova lei que deve ser regulamentada deve explorar acerca das inúmeras
técnicas de Reprodução Assistida, sendo preciso uma lei rigorosa para que posteriormente
a sociedade não venha a sofrer com problemáticas jurídicas e éticas devido a essa questão.
Ademais, é necessário que a procriação assistida seja consentida de maneira expressa
pelos cônjuges ou companheiros, dessa forma, o consentimento informado é
imprescindível para a fertilização, sendo primordial que os cônjuges ou companheiros
autorizem os métodos que serão utilizados, assim como seus resultados.
Vale salientar que a Reprodução Artificial só poderá ser autorizada unicamente e de
maneira exclusiva quando se tratar de casos específicos de infertilidade e quando os
tratamentos que são possíveis para a reprodução de maneira natural for tentada de todas
as maneiras possíveis.
Mesmo existindo uma menção no Código Civil de 2002 no tema supracitado, é
notório a omissão da norma no que se refere à indispensabilidade de uma lei específica
para que seja regulamentado esses casos específicos.
A legislação brasileira é omissa também no estado de filiação quando se trata da
Maternidade Substitutiva, sendo preciso uma legislação especial para que possa resolver
todas as problemáticas que envolvem esse tema.
Logo, é importante ressaltar a importância de uma legislação específica para tratar de
todas as questões que rodeiam a Reprodução Assistida, para assim buscar solucionar
todos os litígios que podem vir a surgir.

5 CONCLUSÕES

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Durante todo artigo houve a intenção de fazer o estudo e compreensão para que a
sociedade jurídica pudesse se empenhar mais no que tange os aspectos da personalidade
e dignidade da pessoa humana, além do entendimento acerca da maternidade assistida.
Inicialmente, fala-se de como acontece a maternidade assistida e retrata sua relevância
para os pais ou mães que são inférteis ou estéreis, mostrando assim uma nova
oportunidade para realizar os sonhos da maternidade ou paternidade.
A ausência de uma Lei que regulamente acerca da questão da reprodução assistida,
faz com que essa relação jurídica se torne vulnerável, já que a "barriga de aluguel" pode
muito bem não entregar a criança, justamente por não ter uma regulamentação que trate
sobre isso e que atribua sanções para quem não cumpre acerca do contrato firmado, logo
gera uma insegurança jurídica.
Ademais, adentrou-se acerca da teoria da eficácia imediata ou direta, como meio
para exercer uma função de prestar atribuição no que tange a proteção estatal. Logo, a
teoria da eficácia de maneira matizada em relação aos direitos fundamentais nas relações
ou ligações privadas, mostrando ser mais pertinente no que tange as situações subjetivas
a partir do interesse extrapatrimonial referente aos contratos existenciais.
No que se refere a autonomia privada, foi relevante expor que diz respeito ao poder
exercido pelos particulares para que as normas jurídicas sejam elaboradas com o intuito
de assim normatizar situações que se correlacionem, não sendo um poder absoluto. Houve
uma distinção entre os contratos de lucro e os contratos existenciais, nota-se que nos
contratos de lucro se almeja um lucro e nos contratos existenciais não possui o intuito do
lucro.Foi constatado que nos contratos existenciais há uma vulnerabilidade no que tange
uma das partes do contrato em razão do interesse extrapatrimonial ser mais importante do
que o interesse patrimonial no que tange a prestação do objeto, logo sendo demonstrado
ser possível acontecer circunstâncias jurídicas que os interesses extrapatrimoniais
possuem maior relevância do que os patrimoniais.
Assim, com a relevância do interesse extrapatrimonial encima do interesse
patrimonial, é preciso que a sociedade jurídica consiga ter um olhar diferenciado no que
tange os contratos que não são puramente patrimoniais, em que pelo menos uma das
partes referente ao contrato não possui a intenção de lucro, chegando-se a conclusão de
uma conjuntura subjetiva e existencial, sendo necessários meios normativos diferentes
daqueles que tratam apenas dos interesses patrimoniais.

Página 223 de 261


Por fim, é preciso salientar a relevância para venha a existir uma regulamentação
tanto contratual quanto normativa acerca da Reprodução Assistida, sendo necessário de
maneira urgente uma legislação especial que verse acerca de todos os litígios e questões
do tema supracitado.

REFERÊNCIAS:

PINHEIRO. Jorge Duarte. Mãe portadora – A problemática da maternidade de


substituição. Estudo de Direito da Bioética, Vol. II, Portugal: Editora Almeida, janeiro
de 2008.
SOUZA, MARISE CUNHA. As Técnicas de Reprodução Assistida. A barriga de
Aluguel. A definição da Maternidade e da Paternidade. Bioética. Revista da EMERJ, v.
3. N° 50, 2010. REVISTA EMERJ TJRJ. Disponível em:
<http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista50/Revista50_348.pdf>
. Acesso em: 29 de agosto de 2016.
MARTINS, F. A.; ROCHA, J. C. B.; MONTEIRO, B. A. G.; SANTOS, L. F. F.;
MARTINS, M. R.; QUEIROZ, N. M. B. Maternidade de substituição no ordenamento
jurídico brasileiro e no direito comparado. Portal Âmbito Jurídico. Disponível em:
<http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=660
7&revista_caderno=6>. Acesso em: 29 de agosto de 2016.
CORRÊA, M. C. D. V.; COSTA, C. Reprodução Assistida: Conceito e Linguagem.
Portal Ghente.org. Disponível em: <http://www.ghente.org/temas/reproducao/>. Acesso
em 29 de agosto de 2016.
ALENCAR, ISADORA CALDAS NUNES. A gestação por substituição à luz do
ordenamento jurídico brasileiro. Revistas Unifacs. Disponível em:
<http://www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/viewFile/2452/1798>. Acesso em
29 de agosto de 2016.
SOARES, ANTONIO CARLOS MUNHOZ. CGJ profere decisão sobre Reprodução
Assistida. Jus Brasil, São Paulo, 2010. Disponível em: <http://arpen-
sp.jusbrasil.com.br/noticias/2199440/cgj-sp-profere-decisao-sobre-reproducao-assistida-
processo-n-2009-104323>. Acesso em 29 de agosto de 2016.
AMORIM, Caroline Sebastiany. Aspectos jurídicos da maternidade de substituição
no direito brasileiro. TCC PUC-RS, 2006. Disponível em:

Página 224 de 261


<http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2006_1/c
aroline_amorim.pdf>. Acesso em 29 de agosto de 2016.
BIZELLI, RAFAEL FERREIRA. Contratos Existenciais: Contextualização, Conceito e
Interesses Extrapatrimoniais. Revista Brasileira de Direito Civil. Disponível em:
<https://www.ibdcivil.org.br/image/data/revista/volume6/ibdcivil_volume_6_doutrina_
004_000.pdf>. Acesso em 30 de agosto de 2016.
FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao novo código civil: do direito de família; do
direito pessoal; das relações de parentesco, v.18. 1. ed. Coordenador Sálvio de
Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.25.
BARBOZA, Heloisa Helena. Reprodução assistida e o novo Código Civil, In: SÁ, Maria
de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito e o novo
Código Civil de 2002. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 226.
Brasil. CÓDIGO CIVIL, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

Página 225 de 261


A NATUREZA JURÍDICA DAS UNIÕES PARALELAS

Lana Maria Pinheiro Furtado1


Caroline Sátiro de Holanda2

RESUMO: O presente artigo pretendeu analisar a natureza jurídica das uniões simultâneas.
Para tanto, fez-se um desenvolvimento histórico, com fins a determinar os elementos
caracterizadores das relações familiares. Posteriormente, analisou-se o papel da monogamia e
do dever de fidelidade na ordem jurídica brasileira. Por fim, perquirimos a natureza jurídica das
diversas possibilidades de uniões simultâneas. Como método de abordagem utilizou-se a
dialética. Já a técnica de coleta de dados foi a pesquisa bibliográfica, com análise de julgados,
de livros e artigos, impressos ou eletrônicos. O estudo revelou que o tema é ainda muito
polêmico, posto que relaciona-se com os valores morais da sociedade brasileira, há muito
sedimentados, inclusive juridicamente, tais como a fidelidade e a monogamia.
Palavras-chave: monogamia; famílias paralelas; natureza jurídica.

ABSTRACT: This article aims to analyze the legal nature of simultaneous relationships.
Therefore, there was made a historical development, with the purpose to determine the
characteristic elements of family relationships. Subsequently, it was analyzed the role of the
monogamy and the duty of fidelity in the Brazilian legal system. Finally, it was explored the
legal nature of the various possibilities of unions. As a method of approach it was used the
dialectic. As data collection technique it was used a bibliographical research, with analysis of
judged, books and articles, printed and electronics. The study revealed that the theme is still
controversial, since it relates to the moral values of Brazilian society, which is very settled,
including legal terms, such as fidelity and monogamy.
Keywords: monogamy; parallel families; legal nature.

1
Professora do curso de Direito Sociedade Educativa e Cultural Amélia Ltda (Secal). Advogada (OAB/PR).
Presidente da Comissão da Criança e Adolescente da OAB/PR. Graduada em Direito pela Faculdade 7 de
Setembro (Fa7). Especialista em Gestão e Liderança Avançada de Pessoas, também pela Faculdade 7 de
Setembro (Fa7).
2
Doutoranda em Direito Civil, pela Universidade de Coimbra. Mestra em Direito Constitucional, pela
Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora da
graduação em Direito da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas (FACISA).

Página 226 de 261


1 INTRODUÇÃO
No Brasil, a instituição jurídica “família” passou por profundas mudanças,
especialmente, no que se refere aos significados diversos que podem ser atribuídos a tal
significante, forçando, inclusive, a pluralização do termo, de “família” para “famílias”. O
Direito, enquanto acontecimento sociocultural, procurou adequar-se às transformações sociais,
com a finalidade de atender às reinvindicações por inclusão e justiça. Desse modo, a
Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226 alargou o conceito de “família”, para incluir,
de forma expressa, entidades familiares que, até então, não recebiam nenhuma proteção
jurídica1.
O reconhecimento jurídico das uniões paralelas permanece, contudo, um tema bastante
polêmico, posto que, para muitos doutrinadores, a monogamia seria um princípio sobre o qual
pauta-se o Direito de Família brasileiro. O objetivo do presente artigo consiste, exatamente, em
analisar a natureza jurídica das uniões simultâneas. Para tanto, fez-se um desenvolvimento
histórico, com fins a determinar os elementos caracterizadores das relações familiares.
Posteriormente, analisou-se o papel da monogamia e do dever de fidelidade na ordem jurídica
brasileira. Por fim, perquirimos a natureza jurídica das diversas possibilidades de uniões
simultâneas. O método de abordagem foi o dialético. Como técnica de coleta de dados, utilizou-
se a pesquisa bibliográfica, com análise de julgados, de livros e artigos, impressos ou
eletrônicos.

2. OS ELEMENTOS CARACTERIZADORES DAS RELAÇÕES FAMILIARES: DA


FAMÍLIA-INSTITUIÇÃO PARA A FAMÍLIA-FUNÇÃO
Inicialmente, é importante considerar que a família não é um fato natural, devendo ser
entendida, sobretudo, como um fenômeno sociocultural2. No Brasil, a organização social é,
ainda hoje, marcada pelo patriarcalismo, o que teve origem na colonização portuguesa. No

1
Hoje, especialmente, após o julgamento conjunto da Arguição de Descumprimento Fundamental nº 132 e da
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu a união
homoafetiva como entidade familiar, é praticamente consenso, entre a doutrina familiarista, que o citado art. 226
constitui uma cláusula aberta, devendo ser interpretado de forma a incluir, sob seu manto de proteção, as diversas
modalidades de família que existem no âmbito social.
2
A família não é apenas um fato natural, mas também e, principalmente, um fato social, que está alicerçado em
outros fatores, tais como a evolução cultural, econômica, social e, por que não, política. Assim, os aspectos
biológicos não são suficientes para conceituar a família, como salienta Baptista Villela (1979), em seu trabalho
“Desbiologização da Paternidade”.

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período colonial brasileiro3, a união familiar ocorria em torno do pai, que garantia a subsistência
do grupo e era havido como superior no seio familiar. O homem era o chefe e o provedor da
família. Já a mulher não tinha voz nem poder de mando, estando sempre subordinada ao marido.
A condição feminina estava associada sempre à de mãe, boa mulher e dona de casa. Logo, havia
um forte controle da sexualidade, dos corpos e da autonomia femininos. O trabalho exercido
pela mulher era essencialmente o doméstico e gratuito, enquanto que o trabalho masculino era
exercido fora de casa, com prestígio social e político. Neste sistema, havia (e ainda há) uma
nítida separação sexual entre os espaços público e o privado. O espaço público era um espaço
essencialmente masculino, enquanto o espaço privado era um espaço feminino. Assim, os
rumos políticos do país estavam nas mãos dos homens.
A família era reconhecida apenas como aquela constituída pelo casamento e pelos
laços de consanguinidade. Acreditava-se que somente a família matrimonial apresentava os
caracteres da moralidade e da estabilidade. As uniões livres, apesar de sempre terem existido,
eram consideradas ilegítimas e inferiores e, por isso, não encontravam amparo legal. Essa falta
de reconhecimento jurídico criava e ratificava a ilegitimidade das uniões extramatrimoniais.
Assim, o casamento demarcava a legitimidade da família.
No início do século XX, com as transformações na vida rural, com o fim da escravidão
e com a urbanização, a família patriarcal rural brasileira foi lentamente substituída pela família
nuclear urbana sem, no entanto, deixar de lado sua matriz patriarcal, como bem salientado por
Maria do Socorro Ferreira Osterne (2001, p. 69). Essa forma nuclear de família era reduzida ao
pai, à mãe e aos filhos, mas ainda existia uma demarcação sexual de papéis. A mulher era
valorizada pela sua submissão e fidelidade ao marido, enquanto os filhos deviam obediência ao
pai – chefe de família.
Foi sob a égide de uma sociedade patriarcal e androcêntrica, que foi aprovado o
primeiro Código Civil brasileiro, datado de 1916. A família do Código de 1916 era uma

3
O modelo patriarcal de família coadunava-se com a economia de base agrária, latifundiária e escravocrata do
Brasil Colonial. Gilberto Freyre aponta como característica do regime patriarcal brasileiro “o homem fazer da
mulher uma característica tão diferente dele quanto possível” (FREYRE, 1977, p. 93). O mesmo autor (FREYRE,
1977) indica no âmbito deste regime, um padrão duplo de moralidade: os homens tinham todas as oportunidades
de iniciativa, de ação social, de contatos diversos, ao passo que as mulheres se limitavam ao serviço e às artes
domésticas, sendo o seu contato restrito aos filhos, parentes, serviçais e ao padre.

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instituição homogênea, na medida em que o único modelo aceito era a família matrimonial,
monogâmica, heterossexual e com finalidade reprodutiva4. O casamento era indissolúvel5.
O intuito do Estado era proteger esta específica entidade familiar, independentemente
dos interesses de seus membros, pois acreditava-se que este tipo de família era o que formaria
uma sociedade ideal. Aqui, a família tinha uma função institucional. Diz-se, por isso, que o
casamento – o único modelo de família possível – era uma instituição, à qual os cônjuges
aderem, submetendo-se às regras legais. Daí o termo família-instituição.
Não existindo uma multiplicidade de famílias asseguradas e protegidas legalmente, a
lei impregnava de desvalor e imoralidade todos os demais arranjos familiares que não se
enquadravam naquela moldura familiar.
Na segunda metade do século XX, a família tradicional brasileira passou por intensas
transformações. A revolução sexual, a descoberta da pílula anticoncepcional6, as concentrações
urbanas, a inserção das mulheres no mercado de trabalho (contribuindo para a emancipação
econômica feminina), a diminuição do número de casamentos, o aumento da idade dos nubentes

4
O CC/1916 também estabeleceu nítidas diferenças entre homens e mulheres. Tal discrepância ocorreu porque o
Direito, como fato sociocultural, representou a sociedade que o deu origem e, ao fazê-lo, também foi responsável
por ratificar e legitimar uma ideologia dominante, no caso, a patriarcal. Supostamente racional, neutro e objetivo,
o CC/1916 ratificou e recriou os papéis masculinos e femininos. É evidente a consagração da ideologia patriarcal
pelo Código Civil brasileiro de 1916, citando, como exemplo, os seguintes aspectos: a) eleição do casamento como
o único modelo de família cabível; b) casamento como uma instituição monogâmica, entre pessoas de sexos
diferentes, com finalidade reprodutiva (art. 229); c) a indissolubilidade matrimonial (redação original do art. 315);
d) existência da figura do chefe de família na pessoa do marido, sendo a mulher uma mera colaboradora do mesmo
(art. 233); e) o pátrio poder (hoje denominado de poder familiar) como poder do pai, a ser exercido com a
colaboração da mulher (art. 380); f) possibilidade de o marido requerer a anulação do casamento, no prazo de dez
dias a contar da celebração, acaso descobrisse que a mulher já não era mais virgem ao casar (redação original do
art. 178, §1º e do art. 219, inciso IV). Obviamente, o mesmo direito não cabia às mulheres, cujo exercício da
sexualidade só era considerado legítimo se atrelado ao casamento; g) estabelecimento de direitos e deveres
matrimoniais diferentes em razão do sexo (art. 233 e seguintes); h) desigualdade entre os filhos matrimoniais e
extramatrimoniais, sendo estes últimos considerados ilegítimos (art. 229, art.332, art. 337 e seguintes); i)
obrigatoriedade de inclusão do sobrenome do marido ao nome da mulher sem que a recíproca fosse verdadeira; j)
o casamento tornava a mulher relativamente incapaz, só podendo exercer os atos da vida civil mediante autorização
do marido (redação original do art. 6º). Diga-se o mesmo em relação à vida profissional, de modo que a mulher só
poderia exercer uma profissão quando o marido a autorizasse (redação original do art. 233, IV). Observe que as
diferenças legais entre os sexos estabeleciam relações de poder e subordinação sobre o gênero feminino. De acordo
com este diploma legal, o papel do homem era o de provedor, enquanto o da mulher estava adstrito às tarefas
domésticas. Ao traçar tamanhas diferenças entre os sexos, o Código Civil de 1916 contribuiu para formatação da
identidade subjetiva do que é ser homem e do que é ser mulher. O discurso jurídico presente na lei foi também
responsável conformar as identidades subjetivas.
5
No Brasil, o casamento ficou indissolúvel, pelo divórcio, até o ano de 1977, o que caracteriza a forte influência
do Direito Canônico. É que a doutrina canônica opunha-se ao divórcio, considerando-o um instituto contrário à
própria índole da família e ao interesse dos filhos. O matrimônio era concebido como sacramento, com vínculo
indissolúvel. O divórcio só era discutido em relação aos cônjuges infiéis, quando o casamento não se revestia de
caráter sagrado (WALD, 2004).
6
Ressalte-se a importância da pílula anticoncepcional para a emancipação econômica das mulheres, pois
possibilitou o sexo sem a procriação. Com o controle da procriação, a mulher passou a ter maiores chances de
trabalhar fora do lar.

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e das rupturas matrimoniais, a diminuição do número de filhos, o aumento do número de uniões
livres7 e das uniões homoafetivas, a visibilidade dos movimentos feministas e da causa LGBTT
(lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e transexuais), o aumento do números de mães solteiras
e a descoberta da procriação artificial8, são todos fatores que contribuíram para uma mudança
na concepção dos papéis sexuais e, com isso, da própria família9.
Após intensas mudanças sociais, chegou-se ao fim de Século XX, com a família
completamente transformada. O modelo matrimonial e nuclear de família passou a conviver ao
lado de outras modalidades familiares. As separações, os divórcios, as uniões livres tornaram-
se cada vez mais comuns. Sem falar nas chamadas famílias recompostas ou famílias-mosaico,
quando pessoas separadas ou divorciadas refazem suas vidas afetivas ao lado de outras também
separadas ou divorciadas. Essa recomposição familiar, ao lado da adoção e da procriação
artificial – sobretudo heteróloga – indica que a parentalidade é, sobretudo, o exercício de uma
função, sem relação necessária com o vínculo consanguíneo10.
Hoje, os vínculos formais e biológicos deixaram de ser os elementos caracterizadores
das relações familiares, cedendo espaço para o afeto. Existem pais e mães biológicos que não
necessariamente exercem essa função, assim como existem pais e mães que exercem tais

7
Apesar de não possuírem proteção jurídica, as uniões livres sempre existiram. Esses consórcios, atualmente
conhecidas como “uniões estáveis”, eram considerados ilegítimos e inferiores, por não encontrarem amparo legal.
É interessante anotar que, mesmo após a legalização do divórcio, o número de uniões estáveis continuou crescente
e ainda o é até hoje. Tal fato indica que a formação da união estável não deriva da impossibilidade de casar, mas
sim de um ato de escolha deliberada.
8
Para Marlene Tamanini, o desenvolvimento tecnológico é um ponto fundamental em relação às novas formas de
tratar e constituir família, e “pode-se mesmo dizer que há uma decolagem histórico-temporal entre os avanços
científicos e as formas de organização social em famílias estruturadas na consanguinidade e na autoridade parental”
(TAMANINI, 2004, p. 101). Para a autora (TAMANINI, 2004), a reprodução assistida está no centro das
preocupações sobre a família e as novas formas de parentela.
9
Ressalte-se que a inserção da mulher no mercado de trabalho constituiu um dos principais motivos de
reconfiguração das relações familiares. Como bem salientam Andolfi, Angelo, Menghi e Nicolo-Corigliano, “a
mudança nas funções de um membro do sistema acarreta mudança simultânea nas funções complementares dos
outros e caracteriza tanto o processo de crescimento do indivíduo como a reorganização contínua do sistema
familiar através de seu ciclo de vida” (ANDOLFI ET. AL., 1984, p. 19). Elisabete Dória Bilac leciona que “as
mudanças na organização da família estão se dando, fundamentalmente, a partir das mudanças na condição
feminina, que terminou por afetar, também, os papéis masculinos” (BILAC, 2003, p. 36). Neste mesmo sentido,
vale trazer as lições de Simone de Beauvoir: “A evolução econômica da condição feminina está modificando
profundamente a instituição do casamento: este vem-se tornando uma união livremente consentida por duas
individualidades autônomas; as obrigações dos cônjuges são recíprocas e pessoais; o adultério é para as duas partes
uma denúncia do contrato; o divórcio pode ser obtido por uma ou outra das partes em idênticas condições. A
mulher não se acha mais confinada na sua função reprodutora: esta perdeu em grande parte seu caráter de servidão
natural, apresenta-se como um encargo voluntariamente assumido [...]” (BEAUVOIR, 1980, p. 165).
10
Para o Lacan (1990), o lugar do pai, da mãe e dos filhos não está necessariamente relacionado aos fatores
biológicos. “Tanto é assim, uma questão de lugar, que um indivíduo pode ocupar o lugar de pai sem que seja o pai
biológico. Exatamente por ser uma questão de lugar, de função, que é possível, no Direito, que se faça e que exista
o instituto da adoção” (LACAN, 1990, p. 13). Realmente, a função do pai ou da mãe não é apenas uma função
natural, mas, sobretudo, social.

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funções, sem qualquer vínculo consanguíneo com os filhos (como no caso da adoção e das
relações entre madrastas, padrastos com seus respectivos enteados). Lídia Levy de Alvarenga
(1999, p. 165) lembra que “a ligação emocional entre pais e filhos não decorre diretamente da
concepção e do nascimento, mas da atenção diária às necessidades físicas e afetivas da criança”.
Não existe mais a família dita “normal”, que permeia o imaginário do senso comum,
ditada por padrões patriarcalistas. Em uma família “diferente”, os membros podem possuir mais
autonomia, individualidade e, consequentemente, mais felicidade. Assim, fala-se em, hoje, não
mais em família-instituição, mas em família-função: família como um espaço para
desenvolvimento da personalidade de seus membros; família como instrumento de realização
pessoal. Fala-se também família eudemonista, com finalidade de enfatizar que a família é o
espaço de realização pessoal e da felicidade11.
Nesta senda, hoje, os elementos caracterizadores da família são: o afeto, a comunhão
de vida com intuito de constituição familiar e a visibilidade pública da relação afetiva. Os
vínculos jurídicos formais, a consanguinidade e a orientação sexual já não mais constituem
características das famílias contemporâneas. Assim sendo, Moacir César Pena Júnior expõe:
Para nós, a família é a união afetiva de pelo menos duas pessoas, ligadas pelo
parentesco ou não, vivendo sob o mesmo teto ou não, onde cada uma desempenha
uma função, não importando a sua orientação sexual, tenham ou não prole, e que
busquem a felicidade por intermédio da comunhão de interesses pessoais, espirituais
e patrimoniais – mantendo esse vínculo, apoiado na solidariedade, na fraternidade, no
respeito mútuo, na lealdade, na sensualidade, na afeição e no amor (PENA JÚNIOR,
2008).

No mesmo sentido, Maria Berenice Dias leciona:


Agora o que identifica a família não é nem a celebração do casamento, nem a diferença
de sexo do par ou o envolvimento de caráter sexual. O elemento distintivo da família,
que a coloca sob o manto da juridicidade, é a identificação de um vínculo afetivo a
unir as pessoas, gerando comprometimento mútuo, solidariedade, identidade de
projetos de vida e propósitos comuns. Enfim, busca da felicidade, a supremacia do
amor e a vitória da solidariedade ensejaram o reconhecimento do afeto como único
modo eficaz de definição da família e de preservação da vida (DIAS, 2016a, on line).

No âmbito jurídico, boa parte de tais transformações sociais foram assimiladas pela
Constituição Federal de 1988, que trouxe um capítulo especial sobre a família. O caput do artigo
226 reconhece a “família” como a base da sociedade e, portanto, merecedora de especial
proteção do Estado. A Carta Magna, contudo, não elegeu um tipo de “família” específico para
conferir esta especial proteção. Ainda que os parágrafos do artigo 226 façam referência expressa

11
Um dos fundamentos utilizados pelo Supremo Tribunal Federal para reconhecer as uniões homoafetivas foi
justamente o direito à felicidade, mediante o agrupamento familiar (ADI nº 4277, 2012, on line).

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apenas ao casamento, à união estável12 e à família monoparental13, como espécies de entidades
familiares, o entendimento doutrinário majoritário14 considera que este rol é meramente
exemplificativo e que o referido dispositivo deve ser interpretado como uma cláusula de
inclusão e não de exclusão15.
Cabe salientar que não há hierarquia entre as entidades familiares. Não há que se falar
em prevalência do matrimônio em detrimento das demais entidades familiares16, pois o que vem
caracterizando a família contemporânea não é apenas o vínculo jurídico, mas sobretudo o
afetivo. Ao reconhecer expressamente o casamento, a união estável e a família monoparental
como modelos de família, a constituição consagrou o princípio17 da pluralidade familiar,
atendendo, com isso, às transformações sociais.
Outro fator relevante acerca da Constituição de 1988 diz respeito à facilitação do
divórcio, o qual veio a ser simplificado, ainda mais, pela Emenda Constitucional nº 66/ 201018.

12
Até a Constituição de 1988, considerava-se a união estável, antes conhecida como concubinato, a negação da
família. Não se observava que os mesmos atributos afetivos do casamento também pertenciam à união estável.
José Sebastião de Oliveira (2002, p. 142) reconhece que a felicidade e o amor presente na união estável não são
menores nem menos intensos do que os existentes no casamento. Segundo Caio Mário da Silva Pereira, “o
constituinte de 1988 passou a considerar as uniões extraconjugais como realidade jurídica, e não apenas como um
fato social” (Pereira, 2004, p. 524). Arnoldo Wald (2004, p. 228) que o conhecimento da união estável foi
amplamente louvável. Com essa inovação, acabaram-se as designações discriminatórias e estigmatizantes que
antes existiam nas uniões livres. Consagra-se, com isso, a liberdade de escolha do modelo familiar que melhor
atenda aos interesses das pessoas.
13
Eduardo de Oliveira Leite (2003, p. 24) ressalta que a monoparentalidade não é um fenômeno novo no ocidente,
posto que sempre existiram os viúvos e as viúvas, as mães solteiras, separadas ou abandonadas. Sendo que, nos
dias atuais, a monoparentalidade representa mais um modelo de família derivado da vontade pessoal e não de uma
imposição circunstancial, como outrora. O reconhecimento e a proteção da monoparentalidade, pela Constituição
Federal de 1988, resguardou essa modalidade de família que sempre esteve marginalizada. Tal proteção jurídica
constitui uma grande passo para coibir os preconceitos ainda existentes em relação aos grupos familiares não
tradicionais.
14
Neste sentido, vale conferir o artigo de Paulo Luiz Netto Lôbo (1999) intitulado “Entidades familiares
constitucionalizadas para além do numerus clausus”.
15
Este foi o entendimento adorado pelo Supremo Tribunal Federal (ADI nº 4277, 2012, on line).para reconhecer
juridicamente as uniões homossexuais, denominadas por uniões homoafetivas, como uma modalidade de família.
16
No julgamento da Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 4277 (2012, on line), o Supremo Tribunal Federal
admitiu expressamente que não há hierarquia entre as entidades familiares e que os termos “família” e “entidade
familiar” constituem expressões sinônimas.
17
Neste ponto, vale distinguir os princípios das regras. Princípios são espécies de normas que caracterizam-se pelo
elevado grau de abstração, enquanto as regras apresentam sua abstração mais reduzida (CANOTILHO, 2000). No
caso de conflito, os princípios podem ser harmonizados conforme seu peso e seu valor em relação a outros
princípios, havendo um sacrifício provisório de um em benefício de outro. Já a colisão entre regras é resolvida
através de exclusão – sistemas de antinomias.
18
A redação original do §3º, do art. 226, da CF/88 estipulava requisitos formais e temporais para a realização do
divórcio. O divórcio só era admitido ou após prévia separação de fato, pelo período de dois anos, ou após um ano
da decisão judicial que concedia a separação de corpos ou do transito em julgado da sentença de separação judicial.
Tratava-se do denominado sistema dualista de dissolução da sociedade conjugal e do vínculo matrimonial.
Posicionando-se contra as exigências constitucionais originárias para o ajuizamento do divórcio, Paulo Luiz Netto
Lôbo pondera que “o fim do casamento não é fruto da irreflexão, mas epílogo do desgaste continuado ou do erro
de escolha do cônjuge, de nada servindo prolongar esse sofrimento por imposição do Estado” (LÔBO, 2010, on
line).

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Atualmente, o divórcio constitui um direito potestativo – direito da personalidade – da pessoa
casada, que pode ser exercido independentemente de prazos ou de outros requisitos. Esta
facilitação do divórcio é consequência da percepção de que “forçar”, através do Direito, duas
pessoas a permanecerem unidas, além de inócuo, impõe sofrimentos desnecessários aos
envolvidos (cônjuges e filhos). Simbolicamente, o Estado reconheceu, uma vez mais, o afeto
como elemento caracterizador das relações familiares, não havendo motivos para a manutenção
formal de um casamento falido.
Tendo em conta a facilitação do divórcio e o reconhecido constitucional do princípio
da pluralidade familiar, fala-se em princípio da liberdade para o planejamento familiar e em
princípio da não-intervenção estatal. Estes princípios visam a consagrar a autonomia das
pessoas para escolher o modelo de família que melhor atenda aos seus interesses pessoais. Aliás,
ao consagrar o direito ao planejamento familiar, a Carta Magna confere a mais ampla liberdade
às pessoas. Os únicos limites impostos ao planejamento familiar são: o princípio da
paternidade/parentalidade responsável e o princípio da dignidade humana. Enfim, o exercício
da liberdade nas relações familiares é amplo, não podendo o Estado interferir,
injustificadamente, nas escolhas pessoais.

3. A MONOGAMIA E O DEVER DE FIDELIDADE: UMA ANÁLISE FEMINISTA


Não há como negar que a ordem jurídica brasileira resguarda a monogamia.
Primeiramente, porque a bigamia e a poligamia são proibidas, constituindo inclusive crime,
tipificado pelo artigo 235, do Código Penal brasileiro. Depois, porque, na seara civil, a
existência de um casamento válido constitui um impedimento matrimonial, nos termos do artigo
1.521, inciso VI.
Paralelamente à proibição da bigamia, a monogamia também pode ser vislumbrada na
imposição do dever de fidelidade entre os cônjuges (art. 1.566, I, CC/2002) e do dever de
lealdade entre os companheiros (art. 1.724, CC/2002). A preservação da monogamia e da
fidelidade também pode ser encontrada em outras passagens legais, por exemplo: a)
necessidade de separação de fato para fins de caracterização da união estável; e b) vedação de
doação ou estipulação testamentária em favor do concubino do doador/testador casado.
Isto faz da monogamia um princípio jurídico? Carlos Eduardo Pianovski (2016, p. 6,
on line) entende que a monogamia não constitui um princípio do Direito de Família, “mas, sim,
uma regra restrita à proibição de múltiplas relações matrimonializadas – e, portanto,
constituídas sob a chancela prévia do Estado. Não cabe ao Estado realizar um juízo prévio e

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geral de reprovabilidade contra formações conjugais plurais não constituídas sob sua égide, e
que se constroem no âmbito dos fatos”. Para o autor (PIANOVSKI, 2016, on line), a
monogamia constitui um mero dado histórico de natureza estrutural. A imposição do dever de
fidelidade, na prática, jamais foi capaz de coibir as infidelidades, mormente por parte dos
homens. Desse modo, a monogamia mais parece uma recomendação estatal do que um princípio
jurídico.
Neste ponto, cabe fazer uma análise feminista da monogamia e do dever de fidelidade.
A monogamia e o dever de fidelidade estão intimamente relacionados e sempre fizeram parte
do principal modelo ocidental de família, o qual, ainda hoje, é a matrimonial, heterossexual e
com finalidade reprodutiva, cuja herança remonta à família patriarcal romana.
Friedrich Engels (1982) traça a relação entre o matrimônio, fidelidade feminina e a
transmissão de herança. Engels (1982, p. 70) dispõe que a família matrimonial e monogâmica
“foi a primeira forma de família que não se baseava em condições naturais, mas econômicas, e
concretamente no triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva (...)”.
O autor argumenta que a monogamia teria nascido da concentração de riquezas nas mãos de
um só homem e do desejo que transmitir essas riquezas, mediante heranças, aos filhos legítimos
(ENGELS, 1982, p. 82). Para tanto, a fidelidade da mulher era indispensável. E assim, ainda
segundo Engels (1982, p. 70), a monogamia teria propiciado a dominação de um sexo pelo
outro, mais precisamente do masculino sobre o feminino, na medida em que sujeitava as
mulheres à procriação e à fidelidade.
O dever de fidelidade surgiu, portanto, para assegurar que o filho da mulher casada
fosse de seu marido. Enquanto a maternidade sempre é tida como certa, já que é a mulher quem
engravida e dá à luz19, a paternidade é incerta. Carole Pateman (1993) aponta que a maternidade
é um fato natural e social, enquanto a paternidade constitui um mero fato social, uma invenção
humana. Assim, a lei criou um sistema de presunção legal de paternidade, segundo o qual o
filho da mulher casada presume-se de seu marido. Para assegurar a eficácia desta presunção
jurídica, a infidelidade feminina precisaria ser rigidamente proibida e controlada, mormente
quando o patrimônio familiar e o direito sucessório estivessem em jogo.
Expostas a origem e a finalidade da monogamia e do dever de fidelidade, é fácil
perceber o motivo pelo qual a infidelidade sexual masculina sempre foi tolerada. Ora, a
infidelidade masculina não prejudica a herança dos filhos matrimoniais, posto que o homem

19
Cabe anotar que, hodiernamente, ante as técnicas de reprodução assistida e a possibilidade de utilizar o útero
alheio para procriar já não é possível considerar que a maternidade é sempre certa.

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não corre o risco de imputar uma filiação extramatrimonial a sua mulher. Essa diferenciação
justificou e, ao mesmo tempo, ratificou padrões sexuais diferentes entre homens e mulheres.
Neste sentido, cabe colacionar uma passagem da obra de Direito de Família, da jurista Maria
Helena Diniz, edição do ano de 2004:
É preciso salientar que sob o prisma psicológico e social o adultério da mulher é mais
grave que o do marido, uma vez que ela pode engravidar de suas relações sexuais
extramatrimoniais, introduzindo prole alheia dentro da família ante a presunção da
concepção de filho na constância do casamento prevista no art. 1.597, do Código
Civil, transmitindo ao marido o encargo de alimentar o fruto de seus amores. (...) Já
em relação ao adultério do marido, os filhos que tiver com sua amante ficarão sob os
cuidados desta e não da esposa, e, além disso, pode ocorrer que a infidelidade do
homem seja um desejo momentâneo ou mero capricho, sem afetar o amor que sente
pela sua mulher (DINIZ, 2004, p. 126-127).

O pensamento de Maria Helena Diniz representa uma violência às mulheres, no plano


das ideias (violência simbólica). Constitui um modo de domesticação das mulheres e de sua
sexualidade, legitimando e naturalizando os padrões sexuais díspares entre os sexos.
Enquanto os homens têm ampla liberdade sexual, a mulher tem sua sexualidade
fortemente controlada, inclusive pelo Direito. Rolf Madaleno (2011, on line) noticia que
somente as mulheres eram punidas pelas práticas do crime de adultério, enquanto que o
adultério masculino só era punido se fosse praticado com mulher casada, sofrendo o homem a
punição não por ser adúltero, mas por ser cúmplice do adultério da mulher casada. Ainda hoje,
a chamada tese da “legítima defesa da honra”, apesar de contrariar explicitamente os direitos
das mulheres, é utilizada na prática forense brasileira para fins absolutórios ou para diminuição
da pena do homicida que mata a esposa infiel20.
O exercício da sexualidade feminina, mesmo hodiernamente, só é respeitado e
considerado legítimo (pela sociedade) em um relacionamento monogâmico heterossexual,
motivo pelo qual a infidelidade da mulher e o lesbianismo possuem grande repúdio social.
Enquanto isso, a infidelidade masculina consta com grande aceitação social. Em sociedades
com resquícios patriarcais como a brasileira, os corpos femininos são considerados os
responsáveis pela honra masculina e pelos destinos da família. Assim, o dever de fidelidade
constitui, essencialmente, um dever feminino.
Mesmo que o Código Civil determine que o dever de fidelidade seja obedecido por
ambos os cônjuges, a realidade social denota que esta obrigação é, na verdade, uma forma de
controle apenas do comportamento sexual das mulheres e não dos homens. Neste sentido, a

20
Neste sentido, ver os ensaios de: Daliane Mayellen Toigo (2010); e Silvia Pimentel, Valéria Pandjiarjian e
Juliana Belloque (2012, on line).

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monogamia sempre beneficiou os homens21. É bem verdade que tal desigualdade não fora
criada pelo Direito, mas também não foi eliminada por ele. A neutralidade jurídica, neste caso,
encontra-se em favor dos homens e contra as mulheres.

4. O CÓDIGO CIVIL DE 2002 E O TRATAMENTO LEGAL DAS UNIÕES


SIMULTÂNEAS
O §3º, do artigo 226, da Constituição Federal consagrou, como entidade familiar, a
união estável entre o homem e a mulher. Regulamentando o dispositivo constitucional, o artigo
1.723, do Código Civil conceituou a união estável, in verbis:
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a
mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com
o objetivo de constituição de família.
§1º. A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521;
não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar
separada de fato ou judicialmente.
§2º. As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união
estável.

Nos termos do citado art. 1.723, os elementos caracterizadores da união estável são: a
publicidade, a estabilidade (união contínua e duradoura), o objetivo de constituição de família
e o desimpedimento matrimonial (com a possibilidade de pessoas separadas – judicialmente ou
de fato – constituírem união estável). Neste ponto, cabe chamar atenção para o elemento
“publicidade”. Foi visto que a família, hoje, constitui um espaço para realização pessoal de seus
membros. Essa finalidade da família não se coaduna com a clandestinidade. Logo, a publicidade
e a comunhão de vida (soma dos elementos da estabilidade e do objetivo de constituição de
família) constituem os principais elementos caracterizadores das diversas entidades familiares.
Verifica-se, portanto, que homens e mulheres, separados judicialmente ou de fato,
podem formar uma união estável. No entanto, a norma é bastante clara: para a formação da
união estável, faz-se necessária, dentre outros requisitos, a separação. Desse modo, a relação

21
Atualmente, existe uma forte discussão no movimento feminista sobre o fim da monogamia. Se por um lado, o
fim da monogamia poderia trazer mais liberdade sexual para as mulheres; por outro, poderia configurar uma carta
de alforria para homens, com a manutenção da repressão sexual feminina. É que em sociedades marcadas pelo
machismo, o padrão sexual diferenciado para os gêneros é subjetivado por homens e mulheres. Desde cedo, as
mulheres aprendem que são mais objeto do que sujeito do ato sexual, devendo servir aos deleites masculinos. O
patriarcalismo constrói as mulheres, ao redor da máxima: encontrar o príncipe encantado. O problema da espera
pelo príncipe encantado é que, além dele não existir, ela impõe às mulheres o dever de ser uma “princesa” (bela,
magra, passiva, educada etc.). Ao passo em que, desde cedo, os homens aprendem a associar o masculino à
virilidade e à potência sexual. O patriarcalismo não prepara os homens para serem os príncipes encantados das
mulheres. Note-se, aqui, a discrepância entre os padrões sexuais atribuídos a cada um dos gêneros. Neste sentido,
o fim da monogamia não constitui garantia de liberdade sexual das mulheres, tendo em vista a existência, a
naturalização e a subjetivação de uma ordem sexual machista e sexista. Somente com o empoderamento econômico
e pessoal, as mulheres poderiam tornar-se autônomas e, com isso, exercer a sexualidade livremente.

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afetiva adulterina entre homens e mulheres que não estão separados – judicialmente ou de fato
– não configura união estável, mas sim concubinato, nos termos do artigo 1.72722. O
concubinato constitui, portanto, a relação não eventual entre e o homem e a mulher,
absolutamente, impedidos de casar por motivo de parentesco ou de vínculo – casamento.
Hodiernamente, tem-se duas situações distintas: a união estável, entidade familiar,
expressamente reconhecida constitucionalmente e conceituada pelo artigo 1.723 do Código
Civil; e o concubinato, relação prevista pelo artigo 1.727, do mesmo diploma legal. Assim,
união formada entre homens e mulheres não separados, mesmo quando preenche os demais
requisitos caracterizadores da união estável, ou seja, publicidade, continuidade, durabilidade e
com o objetivo de constituição de família, estaria enquadrada no conceito de concubinato, nos
termos do Código Civil.
No caso de um dos concubinos ser casado, a lei é expressa ao dispor que esse tipo de
relação constitui um “concubinato”. Em se tratando de duas ou mais uniões de fato paralelas, o
Código Civil nada dispõe, mas a doutrina, majoritariamente, entende que não é possível a
configuração de uniões estáveis simultâneas, tendo em vista que a lei impôs o dever de
fidelidade/ “lealdade” para os companheiros. Então, por uma interpretação lógica e sistemática
do Código Civil, o entendimento que prevalece é o de que não é possível a caracterização de
uniões estáveis paralelas.
Agora, resta indagar: o concubinato poderia ser considerado uma entidade familiar,
diversa da união estável, para fins de proteção jurídica?
As chamadas uniões simultâneas ou paralelas referem-se à “pluralidade sincrônica de
núcleos diversos que possuem, entretanto, um membro em comum” (PIANOVSKI, 2016, p. 1,
on line). Tal sincronia pode em diversas situações, em que cada uma delas demanda soluções
jurídicas distintas. É o que se passa a estudar.

4.1. RELACIONAMENTOS NÃO EVENTUAIS ADULTERINOS, COM


PUBLICIDADE ABSOLUTA
Nestas circunstâncias, tem-se dois relacionamentos afetivos paralelos: um casamento
e um “concubinato” ou uma união estável e um concubinato (duas uniões estáveis paralelas?).
A união extraconjugal/extraconvivencial possui todos os elementos caracterizadores de uma

22
Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.

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entidade familiar, quais sejam: afetividade, estabilidade, comunhão de vida com objetivo de
constituição familiar e publicidade absoluta.
Chama-se atenção para o fato de que a publicidade, nesta circunstância, é absoluta, no
sentido de que todas as partes envolvidas (os cônjuges ou companheiros e o/a “concubino/a”)
estão cientes do relacionamento extraconjugal/extraconvivencial, bem como aceitam tal
circunstância.
Tem-se, aqui, um acordo expresso ou tácito de aceitação da infidelidade, tendo em
vista que o cônjuge ou o companheiro “traído” não só sabe como aceita a relação “adulterina”
de seu consorte23. De igual forma, o concubino sabe e aceita a relação matrimonial/convivencial
de seu consorte. Nestas circunstâncias, tem-se verdadeiras famílias paralelas convivendo
publicamente. A imposição legal do dever de fidelidade foi de pouca serventia prática e as
partes envolvidas afetivamente abriram mão de atender a tal obrigação.
Tendo em vista a publicidade de ambas a uniões paralelas e a peculiaridade da ciência
das uniões por todas as pessoas, não vislumbramos oposição para o reconhecimento jurídica da
união extramatrimonial/ extraconvivencial como entidade familiar. Neste caso, todos os
requisitos exigidos para a formação de uma entidade familiar foram atendidos, quais sejam:
convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de
família.
Quanto à questão da infidelidade, cabe indagar: compete ao Estado impor a fidelidade
e punir a infidelidade, quando as próprias partes dela abrem mão? Além disso, o que significaria
essa “infidelidade”, mormente quando todos os envolvidos na situação são adultos autônomos
e estão cientes de seus atos e de suas consequências? Ser fiel é ser exclusivo? Somos infiéis
quando amamos mais de um filho? Mais de um amigo?
Muito sabiamente, André Comte-Sponville apresenta o que vem a ser a fidelidade:
Fidelidade é amor fiel, o uso comum não se engana a esse respeito, ou só se engana
enganando-se sobre o amor (se o limitar, erroneamente, apenas às relações do casal).
Não que todo amor seja fiel (é por isso que a fidelidade não se reduz ao amor); mas
toda fidelidade é amante, sempre (fidelidade no ódio não é fidelidade, mas rancor ou

23
É bem verdade que, em muitas das vezes, a “aceitação” da infidelidade, por parte da mulher traída, pode ocorrer
em razão da subjetivação violenta de valores patriarcais, tais como: a passividade e a docilidade atribuídos ao
feminino; a virilidade e a impulsividade sexual atribuídos ao masculino. A dependência econômica do
marido/companheiro também pode ser um dos fatores de "aceitação" da traição do marido/companheiro. Tal
dependência também é explicada em razão do patriarcalismo, dada a divisão sexual entre os espaços público e
privado e dada a diferença salarial entre homens e mulheres. Neste sentido, a aceitação da traição pode decorrer
de uma opressão simbólica do próprio patriarcalismo, que é naturalizado e subjetivado, por todos os agentes
sociais. Por outro lado, em algumas situações – geralmente, quando há hierarquia entre as partes envolvidas –, o
próprio casal pode, autonomamente, acordar uma relação livre, aberta a relacionamentos extraconjugais, por parte
de ambos.

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perseguição), e boa por isso, amável por isso. Fidelidade, pois, à fidelidade – e aos
diferentes graus de fidelidade (COMTE-SPONVILLE, 2004, p. 31).

Competiria à sociedade e ao Estado realizar um julgamento moral acerca das escolhas


alheias? Ora, o não reconhecimento da existência dos vínculos familiares concomitantes não os
fazem desaparecer. Nestas situações, as famílias paralelas, mesmo sendo alvo de repúdio social,
permaneceriam existindo. Há de ser ressaltado, ainda, que tais situações estão em crescimento
e não mais constituem fatos isolados, o que pode ser comprovado pelo aumento de casos
analisados pelo Poder Judiciário brasileiro.
Defendendo a possibilidade de reconhecimento jurídico das uniões paralelas, Maria
Berenice Dias leciona:
No entanto, descabe realizar um juízo prévio e geral de reprovabilidade contra
formações conjugais plurais não constituídas sob sua égide. Isso não significa, porém,
que alguém que constitua famílias simultâneas, por meio de múltiplas conjugalidades,
esteja, de antemão, alheio a qualquer eficácia jurídica. Principalmente, quando a
pluralidade é pública e ostensiva, e mesmo assim ambas as famílias se mantêm
íntegras, a simultaneidade não é desleal. Quem assim age afronta à ética e infringe o
princípio da boa-fé ao ignorar a existência dos deveres familiares perante ambas as
famílias (DIAS, 2007, p. 49).

Negar efeitos jurídicos relativos ao Direito de Família a tais relações, ao argumento de


que não constituem entidades familiares, mas mero concubinato, em razão da infração ao dever
de fidelidade, atenta contra os valores constitucionais de solidariedade e de proteção das
diversas modalidades de família. Neste sentido, Carmem Lucia S. Ramos comenta:
Quando, na dimensão jurídica da legalidade escrita, negava-se quaisquer efeitos ao
concubinato, invocando a ilicitude ou imoralidade da situação de fato, rejeitando, por
exemplo, o pleito da concubina de haver sua parcela dos bens adquiridos com a sua
colaboração e esforço, ou o direito do filho do desquitado de ser por ele reconhecido,
porque reputado adulterino, na verdade operava-se uma forma de exclusão, recusando
proteção aos atores envolvidos naquela relação, o que não se compatibiliza com a
solidariedade social e assistência social que são merecedores (RAMOS, 2000, p.49).

Como visto, são relações de afeto, estabelecidas objetivo de comunhão de vida, as


quais possuem visibilidade e reconhecimento público. As famílias paralelas, certamente,
repercutem no mundo jurídico uma vez que os companheiros convivem publicamente, por
vezes têm filhos, constroem patrimônio em comum, devendo a ordem jurídica outorgar-lhes
efeitos. Não é em vão que os companheiros se unem, sendo necessário que o Direito reconheça
tais vínculos como entidades familiares, para fins de proteção. Assim, não se pode excluir a
possibilidade de configuração de efeitos jurídicos positivos e específicos mesmo quanto à
família paralela, desde que ela se revista de determinados requisitos e de certa estabilidade
(PESSOA, 1997).

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4.2. RELACIONAMENTOS NÃO EVENTUAIS ADULTERINOS, COM
PUBLICIDADE RELATIVA
Nestes casos, a relação “adulterina” possui todos os demais requisitos da união estável,
sendo que o cônjuge ou o companheiro traído não tem ciência da traição, embora a relação
paralela seja revestida de publicidade e de reconhecimento social. Esta situação, é bastante
comum nos casos em que o cônjuge/companheiro infiel – geralmente o homem – mantem uma
família extraconjugal/extraconvivencial em outra cidade.
Aqui, o “concubino” do traidor pode estar ou não de boa-fé. Estará de boa-fé o
“concubino” que não sabia que o seu parceiro mantinha um matrimônio ou uma união estável
com outrem, pois, se o soubesse, não teria mantido tal união. De outra banda, o concubino
cúmplice da traição estará de má-fé, se souber da existência do casamento ou união estável de
seu parceiro. Tem-se, aqui, o verdadeiro concubinato adulterino, que pode ser classificado da
seguinte forma: concubinato adulterino puro ou de boa-fé e concubinato adulterino impuro ou
de má-fé (DIAS, 2016, on line). “A diferença centra-se exclusivamente no fato de a mulher ter
ou não ciência de que o parceiro se mantém no estado de casado ou tem outra relação
concomitante” (DIAS, 2016, on line).
Nos casos de boa-fé (concubinato adulterino puro), é possível a configuração de uma
união estável putativa, em analogia à figura do casamento putativo24. Neste caso, a união
adulterina deve ser reconhecida como entidade familiar e o concubino estará resguardado pelo
Direito de Família, passando a sujeitar-se ao regime legal de bens e a ter direitos a alimentos,
direitos sucessórios e previdenciários25.
A questão mais polêmica a ser enfrentada ocorre quando o concubino do traidor
encontra-se ciente da traição. Esta situação é bastante delicada por dois motivos: primeiro,
porque a monogamia ainda constitui um valor apreciado pela sociedade brasileira; e segundo,
em razão de uma questão sociocultural, pois, na maioria das vezes, são os homens quem traem,
o que, como visto, tem uma explicação histórica. Explicamos: em sociedades machistas – como
ainda é a brasileira – a infidelidade masculina sempre foi muito bem tolerada pela sociedade.

24
O casamento putativo constitui a circunstância em que o matrimônio é, de boa-fé, contraído com infração aos
impedimentos matrimoniais. Assim, mesmo nulo, o casamento produzirá efeitos, posto que os cônjuges se
encontravam de boa-fé. Neste sentido, segue o dispositivo: “Art. 1.561. Embora anulável ou mesmo nulo, se
contraído de boa-fé por ambos os cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os
efeitos até o dia da sentença anulatória”.
25
Neste sentido: Álvaro Villaça Azevedo (2002), Rodrigo da Cunha Pereira (2004), Francisco José Cahali (1996),
Flávio Tartuce (2007) e José Fernando Simão (2007).

Página 240 de 261


Nestas circunstâncias, como é comum, o comportamento da concubina, e não do homem infiel,
é que é julgado e condenado. O foco dos debates morais recai, quase sempre, sobre o
comportamento feminino. A amante vira, assim, alvo fácil de repúdio social, por todos, homens
e mulheres. A “culpada”, a “vigarista” não só deve como merece pagar uma penalidade por ter
sido cúmplice de traição. Sendo assim, a sociedade escracha a concubina e absolve o homem
infiel, quem (coitado!), caiu indefeso nas “garras” da mulher ardilosa e mau-caráter. O homem
é colocado na situação (confortável), de quem não tem domínio sobre os próprios instintos.
Portanto, resta justificada a traição masculina e condenada a atitude da “amante”, quem deveria
ter se abstido dos atos de “sedução” e ter respeitado o casamento alheio. Por outro lado, quando
é a mulher quem pratica a infidelidade, sob a ignorância do marido ou companheiro, é a sua
atitude – e não a do amante – que torna-se alvo de repúdio social.
Se, em uma perspectiva sociológica, a situação da amante é complicada, dado o
machismo das relações sociais; na perspectiva jurídica, a situação dela também não é fácil.
Como dito, o sistema jurídico foi pautado na monogamia e no dever de fidelidade. Em uma
análise eminentemente técnica e literal do Direito, esta situação não encontraria amparo legal
para ser enquadrada como entidade familiar. Neste caso, a relação afetiva
extraconjugal/extravivencial não passaria de uma mera sociedade de fato, motivo pelo qual os
concubinos teriam seus conflitos resolvidos mediante o Direito das Obrigações, sem qualquer
direito a alimentos ou às verbas previdenciárias26. Seria justo, entretanto, tal solução?
Para Maria Berenice Dias (2016, on line), vedar efeitos jurídico ao concubinato
adulterino de má-fé tem por intuito punir a “amante”, quem “sabedora da existência da outra
relação, ainda assim mantém o vínculo afetivo”. Para a autora, nesta situação, encontram-se
presentes todos os requisitos legais para o reconhecimento da união como entidade familiar,
motivo pelo qual merece tutela jurídica. O requisito de ordem subjetiva (má-fé ou boa-fé) da
“amante” só seria perquirido por parte desta, o que deixaria o varão ileso, “beneficiado
justamente aquele que infringiu o princípio da monogamia” (DIAS, 2016, on line).
Por seu turno, Marianna Chaves (2008, p. 53) entende que perquirir a boa-fé e a má-
fé da “concubina” para fins de reconhecimento da relação adulterina como entidade familiar
constitui tarefa complexa e pode levar a um subjetivismo exacerbado. Para a autora (CHAVES,
2008, p. 53), a fronteira entra a boa e a má-fé é tênue e o preconceito contra a amante deve ser
combatido.

26
Neste sentido ver: Laura de Toledo Ponzoni (2016, on line).

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Este último caso, não tem solução fácil. Qualquer solução confirma a ordem simbólica
patriarcal e representa uma violência simbólica contra a mulher (esposa/companheiro ou
amante). Por um lado, o reconhecimento da relação adulterina como entidade familiar é
prejudicial para a mulher vítima da infidelidade que, além de magoada pela traição, ainda teria
de compartilhar alguns direitos (como por exemplo, a pensão previdenciária) com a concubina,
cúmplice da traição. Por outro, o não reconhecimento da união prejudicaria a concubina, que
sofreria todas os escárnios sociais e jurídicos. Em qualquer solução, o homem sai incólume.
Sendo assim, não haverá solução sem repercussão direta na vida e nas emoções das mulheres
envolvidas. De qualquer forma, à primeira vista, parece-nos que deixar a “amante” em
desamparo – mormente, quando existia muito tempo de relacionamento, com intuito de
constituição familiar, com comunhão de vida etc. – não constitui a melhor solução, posto que
contraria o princípio da solidariedade familiar.

4.3. RELACIONAMENTO NÃO EVENTUAL ADULTERINO, SEM PUBLICIDADE


ALGUMA
Neste caso, a união extraconjugal/extraconvivencial, embora revestida de afeto e de
estabilidade, é mantida em sigilo, o que nos leva a concluir que não configura uma relação
estabelecida com intuito de constituição de família, posto que, como dito, a realização pessoal,
promovida pela família, não se coaduna com a clandestinidade. Logo, tais relacionamentos não
devem ser reconhecidos como entidades familiares.
Ora, estamos diante de relações amorosas clandestinas. Tais circunstâncias, embora
repletas de afeto, não parecem ter por finalidade a constituição familiar. Ninguém constitui uma
família para mantê-la reclusa à clandestinidade. A ostentação das afeições familiares constitui
elemento caracterizador de qualquer tipo de vínculo familiar, pois não existem felicidade e
realização pessoal na surdina. Sendo assim, os “casos”, as “traições” extraconjugais, quando
sigilosos e realizados em clandestinidade, ainda que não eventuais, não configuram entidade
familiar.

5 CONCLUSÃO
Após as análises e considerações anteriormente apresentadas, consideramos que as
famílias paralelas, configuradas pela convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida
com o objetivo de constituição de família, ou seja, atendendo os requisitos da afetividade, da
publicidade e da durabilidade que são comuns a todas as demais famílias, não pode ficar de fora

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da proteção constitucional, devendo ser consideradas espécies de entidades familiares. Ora,
como dito, o artigo 226, da Constituição Federal não é taxativo e o intuito da Lei Maior é
proteger e não excluir do seu âmbito de proteção as entidades que preenchem os requisitos
caracterizadores de uma família.
Como visto, a questão mais polêmica a ser enfrentada ocorre nos casos de concubinato
adulterino constituído de má-fé, quando o concubino do traidor encontra-se ciente da traição.
Não podemos negar, entretanto, que, efetivamente, este caso não está sujeito à estrita proteção
jurídica, posto que não possui guarida legal. Muito pelo contrário, a seguir pela literalidade do
Direito infraconstitucional, o concubinato adulterino é repudiado pela ordem jurídica. Por outro
lado, também não podemos deixar de anotar que deixar a “amante” em desamparo afronta o
princípio da solidariedade familiar e, com isso, ratifica o repúdio social contra a mulher que é
cúmplice de traição, sem qualquer julgamento sobre a conduta do homem. Tais circunstância
merecem ser apreciadas, com as devidas cautelas, ante às minúcias do caso concreto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SISTEMÁTICA DA DISTRIBUIÇÃO DA PROVA NO ATUAL CÓDIGO
DE PROCESSO CIVIL: NOVO DIREITO FUNDAMENTAL
PROCESSUAL
Jailton Macena de Araújo1
Jaianny Saionara Macena de Araújo2

RESUMO: A ciência processual moderna deve preocupar-se em prover as técnicas adequadas


à efetiva tutela do direito material, através de procedimento que garanta a realização dos
princípios instrumentais. No cenário atual, em que se sublima a doutrina do
neoconstitucionalismo, o Direito não pode mais ser visto de maneira isolada, ignorando os
aspectos de cunho social, mas deve ser encarado como parte integrante de um complexo
ordenamento social, propendendo, especialmente no viés processual, à realização da dignidade
da pessoa humana e demais valores constitucionais. Nessa linha de raciocínio, a garantia de
uma adequada instrução probatória é um imperativo, dever do Estado-Juiz, cabendo ao julgador
estimular a atividade probatória como meio de alcançar os objetivos do processo. Em certas
situações, a decisão será baseada no ônus da prova, regra que não somente para a decisão do
juiz, mas com escopo de que as partes produzam as provas dos fatos, ao impulso de seu
interesse, para convencer o magistrado. Daí a importância da alteração trazida pelo novo
Código de Processo Civil, que introduz a possibilidade de aplicação da teoria da distribuição
dinâmica do ônus da prova, atribuindo o encargo àquele que tem mais facilidade na produção
da prova. Nesse contexto, a adequada distribuição da carga probatória constitui elemento
essencial à concretização do direito de acesso à justiça e à isonomia, proporcionando a ascensão
à ordem jurídica justa, adequado à garantia da eficácia, no processo, dos direitos fundamentais
processuais, mediante atuação judicial.
Palavras-chave: Direito Processual Civil; ônus da prova; direito fundamental; Direito Civil
Constitucional.

1. INTRODUÇÃO
A prova, na seara do Direito Processual Civil, tem diversas acepções. Inicialmente, a
prova é concebida no sentido de fonte de algum fato. Como o próprio nome já indica, fonte de

1
Doutor e Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professor Adjunto do curso
de Direito da UFPB. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
2
Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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uma prova é a origem de onde esta brota. Logo, fontes de prova podem ser coisas, pessoas,
fenômenos, entre outros. Além disso, também se entende o termo prova como meio de prova,
ou seja, a técnica de se extrair a prova de sua fonte e transplantá-la ao processo a fim de
proporcionar ao juiz o conhecimento da verdade dos fatos trazidos à sua apreciação pelas partes
processuais e sobre a qual alicerçará seu convencimento. Por fim, a prova como resultado, em
seu sentido subjetivo, se traduz na convicção do julgador formada a partir das provas produzidas
no curso do processo.
Nesse prumo, impende ressalvar que a verdade dos fatos que se busca alcançar com
toda a produção probatória não refletirá a mais pura tradução da verdade real, pois é muito
difícil a integral e irretorquível reprodução dos fatos pretéritos. O que ocorre é uma
representação parcial dos fatos, através da qual se chegará à mais próxima probabilidade do que
aconteceu, de modo a se verificar o que possivelmente ocorreu ou quais foram ou são
provavelmente os fatos.

2. ÔNUS DA PROVA DENTRO DO NOVO DIREITO PROCESSUAL CIVIL


O ônus da prova constitui uma regra processual que não atribui o dever de provar o
fato, mas sim o encargo a uma das partes pela falta de prova daquele fato que lhe competia.
Possui duas funções primordiais dentro do processo, quais sejam, estimular as partes a
provarem as alegações que fizerem, bem como auxiliar ao magistrado que, deparando-se com
a incerteza, e de acordo com as particularidades do caso concreto e a aptidão das partes, possa
imputar o encargo de apresentar determinada prova a uma delas, a qual, potencialmente, tem
mais facilidade de produzi-la, onerando-a com uma sentença desfavorável caso não se
desvencilhe a contento do encargo que lhe fora imputado.
Esse instituto resolve a controvérsia nos casos em que os elementos probatórios
constantes nos autos não convencem ao juiz, o que o leva a julgar em desfavor daquele a quem
incumbia o ônus da prova e não o cumpriu satisfatoriamente.

3. A NOVEL DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA


Em regra, a distribuição do ônus da prova se dá nos seguintes termos: compete ao autor
a prova dos fatos constitutivos de seu direito, e ao réu a incumbência de demonstrar a existência
de fatos modificativos, extintivos e impeditivos do direito do autor.
O entendimento clássico apregoa que as regras de distribuição dos encargos
probatórios são objetivas e fixas, repartidas de forma imutável, até mesmo pelo legislador.

Página 248 de 261


Contudo, esse sistema de ônus estático foi ultrapassado com a expressa consagração do sistema
de ônus dinâmico no novel Digesto de Ritos Civil, que apresenta a possibilidade de o juiz
modificar, conforme as peculiaridades do caso concreto e a aptidão das partes, a distribuição
do encargo de comprovar determinado fato, de modo a fazer recai-lo aquela que tem mais
facilidade na produção probatória, apesar de inicialmente não estar onerada.
A regra dinâmica de distribuição do ônus da prova, acolhida pelo atual CPC,
notadamente em seu art. 373, consolida-se no ordenamento jurídico brasileiro, mediante
positivação expressa, em prol de uma maior efetividade do processo, que é um dos estandartes
da perspectiva constitucional da atual tendência do Direito Processual Civil. Tais regras de
distribuição do ônus da prova não devem ser interpretadas como limitadores dos poderes
instrutórios do juiz. Ao contrário, propicia uma atuação ativa do magistrado no âmbito da
instrução processual, com o escopo de corrigir eventuais desequilíbrios na produção probatória
vislumbrados caso a caso, para, com isso, proferir decisões mais justas e igualitárias.
Não importa a posição da parte, se autor ou réu; também não interessa a espécie do
fato, se constitutivo, impeditivo, modificativo, ou extintivo; o importante é que o juiz valore,
caso a caso, qual das partes dispõe das melhores condições de suportar o ônus da prova e
imponha o encargo de provar os fatos àquela que possa produzir a prova com mais facilidade e
menos inconvenientes, mesmo que os fatos objetos de prova tenham sido alegados pela parte
contrária. Com efeito, se a parte a qual o juiz impôs o ônus da prova não produzi-la ou a fizer
de forma não satisfatória, as regras do ônus da prova sobre ela recairão, em razão de não ter
cumprido com o encargo determinado judicialmente.
É indubitável que ao juiz é dado uma maior discricionariedade na avaliação da
distribuição das regras deste ônus, porém, há de se ter em mente o escopo de se gerar uma maior
colaboração das partes com o órgão jurisdicional, como corolário direto dos princípios da
cooperação, da flexibilização procedimental, da boa-fé e da solidariedade.
Se, ao analisar a lide, o juiz identificar que inicialmente o ônus da prova recai sobre a
parte mais desprovida, de algum modo, de condições de suportá-lo, durante o trâmite
processual, respeitando o contraditório e a ampla defesa, ele deverá modificar a distribuição do
ônus da prova em benefício da outra parte que se revelara tecnicamente vulnerável ou até
mesmo, em algumas hipóteses, economicamente hipossuficiente.
Obviamente, toda atuação do magistrado deve ser pautada pelos princípios processuais
basilares, com legalidade, motivação, equidade, devido processo legal, contraditório, ampla
defesa, cooperação, adequação, flexibilização e efetividade. O juiz poderá modificar a regra

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geral para ajustá-la ao caso concreto, amenizando, na maior medida do possível, as
desigualdades das partes, sempre com o fito na prestação da tutela jurisdicional adequada e com
base em uma cognição mais próxima possível da verdade dos fatos.
Como se vê da transcrição do artigo em comento:
Art. 373. O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito
do autor.
§ 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à
impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput
ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o
ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em
que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
§ 2º A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a
desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.
§ 3º A distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por convenção das
partes, salvo quando:
I - recair sobre direito indisponível da parte;
II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.
§ 4º A convenção de que trata o § 3º pode ser celebrada antes ou durante o processo.

Depreende-se do dispositivo acima transcrito, notadamente dos comandos insculpidos


incisivos I e II, que a regra geral continua sendo a tradicional distribuição estática do ônus da
prova, cabendo ao autor a comprovação dos fatos constitutivos de seu direito e ao réu, por sua
vez, a prova de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito aduzido pelo autor. No
entanto, o atual CPC avançou ao positivar expressamente nos parágrafos do referido artigo a
dinamização do ônus da prova, possibilitando a modificação pelo juiz do encargo probatório,
imputando-o à parte que possua mais conhecimentos técnicos, científicos ou informações
específicas, ou a quem tenha maior facilidade de demonstrá-la.
Tendo em conta o modelo constitucional do nosso ordenamento jurídico atual, que visa,
acima de tudo, a viabilizar o acesso à justiça em sua acepção mais ampla, e seguindo nos trilhos
de todo o manancial axiológico derivado da Constituição Federal conjugado com as novas
normas processuais emanadas do Novo CPC – dentre as quais se destacam o relevante princípio
da cooperação e a interessante flexibilização procedimental –, denota-se que a inovação do ônus
dinâmico tem a função primordial de assegurar o direito a quem realmente o titule, conferindo
uma maior paridade instrumental entre os sujeitos, independentemente do polo processual
ocupado ou da natureza do fato a ser provado.
As maiores críticas ao novo critério dinâmico de distribuição do ônus da prova são em
relação à exacerbação do poder do juiz na condução da instrução processual, com risco de
decisões abusivas e arbitrarias, bem como na temeridade de ocorrência da prova diabólica,

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mediante determinação judicial para que uma das partes apresente prova impossível ou
excessivamente difícil de ser produzida.
O atual Código de Ritos Civis, de fortes matizes constitucionais, como dito
anteriormente, tem os direitos e garantias fundamentais reiterados em diversos dispositivos,
sendo que ao princípio da cooperação, presente em seu art. 6º, recebeu destaque. Portanto, deve
o magistrado agir como agente colaborador do processo, inclusive como participante ativo do
contraditório, bem como reconhecer também o direito das partes de participar e influenciar na
construção das decisões judiciais que as envolve, conforme seu art. 10.
Desse modo, na atual conjuntura das normas processuais civis, inconcebível se torna
uma atuação inerte e apática do juiz, o qual deve ser perspicaz na condução da instrução
processual e ter como meta, sobretudo, o atendimento da finalidade social do processo. Caso
haja eventual equívoco ou arbitrariedade nas decisões judiciais, há uma gama de recursos
disponíveis que possibilitam a insurgência de qualquer das partes na busca do reestabelecimento
de seus direitos eventualmente violados.
Quanto à prova diabólica, destaca-se que o parágrafo 1º do art. 373, acima citado, faculta
à parte encarregada de provar a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
Logo, o legislador, a fim de evitar a incumbência da produção de provas impossíveis,
dificílimas ou excessivamente onerosas, reforçou a necessidade de observância e respeito ao
contraditório para que a parte eventualmente prejudicada possa se manifestar em sentido
contrário à decisão judicial que modulou a distribuição dos encargos probatórios causando-lhe
prejuízos.
4. COMPARATIVO ENTRE AS PROVAS TESTEMUNHAL E PERICIAL NO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973 E O DE 2015
4.1 PROVA TESTEMUNHAL
No Código de Processo Civil de 1973, verificava-se que, apesar da redação do seu art.
416, as partes não faziam perguntas diretamente à testemunha, cabendo-lhes somente requerer
ao juiz as perguntas que entendiam necessárias, o que era realizado primeiramente pela parte
que a arrolou e posteriormente pela parte contrária. Os questionamentos que o magistrado
considerava impertinentes eram por ele indeferidas.
Assim sendo, trata-se de novidade muito importante no Código Processual de 2015, ao
consagrar o princípio da cooperação na prática processual, evitando desperdício de tempo por
parte de todos os sujeitos processuais e focando na resolução do mérito da questão. Assim
sendo, interessante alteração, segundo o artigo 459 do Código vigente, é que as perguntas sejam

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formuladas pelas partes diretamente à testemunha, começando pela que a arrolou, não
admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com as questões
de fato objeto da atividade probatória ou importarem repetição de outra já respondida.
Além disso, o art. 455 do atual Código Processual aduz que “cabe ao advogado da parte
informar ou intimar a testemunha por ele arrolada do dia, da hora e do local da audiência
designada, dispensando-se a intimação do juízo”. O parágrafo primeiro do mesmo dispositivo
ainda acrescenta que essa intimação deverá ser realizada por carta - com Aviso de Recebimento
-, cumprindo ao advogado juntar aos autos, com antecedência de pelo menos três dias da data
da audiência, cópia da correspondência de intimação e do comprovante de recebimento. Por
fim, poderá a parte ainda comprometer-se a levar a testemunha arrolada independentemente de
intimação, tal como ocorre no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, presumindo-se, entretanto,
caso a testemunha não compareça, que a parte desistiu de sua inquirição.
Observa-se, diante disso, que o Novo Código buscou prestigiar a celeridade e a boa-fé
processuais, assim como, novamente, a cooperação dos sujeitos processuais, que se tornam
responsáveis por levar as testemunhas arroladas à audiência de instrução, evitando-se o recurso
à burocracia estatal.

4.2. PROVA PERICIAL

Tratada nos artigos 464 a 480 do Novo Código, a prova pericial é aquela que conta com
um especialista em determinada área técnica para esclarecer certo fato que interessa à demanda.
Sobre este tema, destacam-se quatro novidades: produção de prova técnica simplificada;
apresentação de currículo do perito; perícia consensual e requisitos do laudo pericial.
O artigo 464, §2º, do Código de Processo Civil vigente, dispõe expressamente que “de
ofício ou a requerimento das partes, o juiz poderá, em substituição à perícia, determinar a
produção de prova técnica simplificada, quando o ponto controvertido for de menor
complexidade.”. Nessa situação, a denominada “prova técnica simplificada” consistirá tão
somente na inquirição de especialista na área, que poderá se valer de qualquer recurso
tecnológico de transmissão de sons e imagens para esclarecer os pontos controvertidos da causa.
Essa inovação ajuda na desburocratização em demandas nas quais, embora exista a necessidade
da prova técnica, a baixa complexidade envolvida não justifica que as partes se sujeitem à
demorada e custosa produção da prova pericial nos moldes tradicionais.

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Outra questão importante a ser ressaltada é necessidade de que o perito, no prazo de
cinco dias de sua nomeação, junte aos autos, além da sua proposta de honorários e dos seus
contatos profissionais, especialmente e-mail, tendo em vista a maior facilidade em seu uso,
também o seu currículo atualizado, com a devida comprovação de sua
A chamada “perícia consensual” também é inovadora, já que é facultado às partes
plenamente capazes, quando de comum acordo, em casos em que a demanda possa ser resolvida
por autocomposição, escolher o perito, indicando-o ao juízo mediante requerimento nesse
sentido. Esse tipo de perícia consensual substitui, para todos os efeitos, a que seria realizada
por perito nomeado pelo juiz. De evidente aplicação da cooperação no plano processual, dar
liberdade de escolha quanto ao especialista na área que elaborará o laudo pericial evita qualquer
modalidade de impugnação e questionamento em relação à pessoa do perito e à sua formação
técnica, pois foi escolhido e por todas as partes.
Além disso, impende frisar a previsão legal expressa dos requisitos do laudo pericial.
Prevê o artigo 473: “o laudo pericial deverá conter: I – a exposição do objeto da perícia; II – a
análise técnica ou científica realizada pelo perito; III – a indicação do método utilizado,
esclarecendo-o e demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da área do
conhecimento da qual se originou; IV – resposta conclusiva a todos os quesitos apresentados
pelo juiz, pelas partes e pelo órgão do Ministério Público.”. O mesmo dispositivo também exige
que o laudo seja fundamentado em linguagem simples e com coerência lógica. Será um norte
para os peritos, que deverão pautar seu trabalho técnico na busca da elucidação do fato
controvertido que realmente interessa à demanda, evitando-se a prolixidade, o que
corriqueiramente serve como justificativa para os honorários técnicos do que propriamente à
solução da lide.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A adoção da Teoria Dinâmica de Distribuição do Ônus da Prova no Novo Código de


Processo Civil, como regra supletiva à regra geral ancorada no caput do artigo 373,
consubstancia um significativo avanço no sistema processual-constitucional brasileiro, na
medida em que superou aquela única visão estática, segundo a qual o ônus da prova poderia
recair sobre a parte técnica ou economicamente hipossuficiente, desprovidas de condições
suficientes de produzir elementos de prova capaz de lhe assegurar o direito vindicado e o juiz
não faria nada para amenizar esta suposta injustiça, e somente aplicaria a regra geral tradicional,

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imputando ao autor o ônus de provar os fatos constitutivos do direito por ele invocado e ao réu,
os fatos obstativos da pretensão articulada em seu desfavor, sem levar em consideração as reais
condições probatórias de cada uma das partes.
Corrigindo grande parte desses disparates provocados pela adoção de um regramento
completamente rígido, que fere a tantos princípios constitucionais, o Código vigente alberga o
modelo dinâmico de distribuição do ônus probatório, por meio da qual o encargo de provar os
fatos controvertidos pode recair tanto sobre o autor como sobre o réu, a depender das
circunstâncias da causa e das peculiaridades dos fatos a serem provados. Ao magistrado, então,
passa a ser permitido fazer um juízo de ponderação e, mediante decisão devidamente motivada,
respeitando todas as garantias constitucionais asseguradas às partes, modificar, a regra de
distribuição do ônus da prova fazendo-o incidir sobre a parte que tem o maior controle dos
meios de prova e, por isso mesmo, se encontra em melhores condições de produzi-la.
Por conseguinte, o processo dever ser democrático, discursivo e participativo. É
totalmente plausível que se o juiz verificar no caso concreto que a distribuição estática do ônus
da prova se revela inviável à cognição exauriente, possa muda-la dinamizando a distribuição
do encargo de provar certos fatos, o que faz com que o ônus recaia sobre quem, ordinariamente,
não estaria obrigado a suportá-lo, mas a quem se mostra em melhores condições de cumpri-lo.
Tal atividade judicial, pautada na previsão legislativa corrente, coaduna-se perfeitamente com
o Estado Democrático de Direito, pois seu maior objetivo é garantir o direito a quem realmente
o titule, de modo a ratificar que o Judiciário seja eficiente e justo.

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