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Fernando SeffnerII
Resumo
Palavras-chave
Fernando SeffnerII
Abstract
Keywords
148 Fernando SEFFNER. Sigam-me os bons: apuros e aflições nos enfrentamentos ao regime da heteronormatividade...
parecem ser mais “merecedores” de inclusão do ela joga futebol muito bem, ninguém se lembra
que outros. Não será necessário que cada um de que pode haver ali uma futura Marta,6 mas
demonstre “esforço” para ser incluído? Ou bas- já se vê a “lésbica-sapatona-caminhoneira” que
ta ser criança e já ter direito a estar na escola? depois vai sair agarrando todas as demais me-
Alguns parecem que “se esforçam por serem ninas, e talvez até as professoras!
excluídos”; não seria o caso de então retirá-los Os conceitos que estruturam as ações
da escola, afinal, não querem estudar e estão ali dos programas de valorização da diversidade
apenas para “bagunçar”? Todas essas questões e de combate à homofobia estão situados num
complicam-se sobremaneira quando cruzadas campo de luta. No escopo deste artigo, não é
com as questões de gênero e sexualidade. Uma possível precisar extensamente as definições de
coisa é falar da inclusão e do respeito à diferen- todos os conceitos mencionados,7 mas oferece-
ça das pessoas deficientes, aquelas portadoras -se a seguir uma abordagem de seus aspectos
de necessidades especiais, cadeirantes, alunos essenciais. O conceito de identidade é normal-
com surdez ou redução visual, alunos com al- mente utilizado em seu viés cultural, ou seja,
gum comprometimento cognitivo. Nesses casos, como identidade culturalmente construída no
mesmo reconhecendo os desafios de aprendi- interior de relações de poder, em referência
zagem e permanência na escola, em geral, há a homens gays, mulheres lésbicas, travestis e
unanimidade na defesa de sua inclusão. Afinal, transexuais, bissexuais ou intersex. Entretanto,
eles não são “culpados” por aquele atributo que o modo como esse conceito transita nas falas
os diferencia. e nos documentos favorece uma apropriação
Mas quando se está diante de um meni- com atributos mais essencialistas, seja por ele
no que deseja vestir-se de menina e não gos- se vincular a uma identidade biológica (em for-
ta de futebol na aula de educação física, ou de mulações como “os homossexuais possuem um
uma menina que claramente manifesta sua pre- desenho de cérebro particular”, “os homosse-
ferência afetiva por outras meninas, a crença na xuais nascem assim” ou “a homossexualidade
inclusão balança e podem surgir duas posições: está presente em todos os grupos animais”), seja
busca-se ou excluir esses diferentes, porque por se vincular a uma identidade psicológica
causam muita perturbação no cenário escolar, (em formulações como “os homossexuais são
ou exigir que “entrem nos eixos” e “se esforcem fruto de configurações familiares específicas”),
por ter um comportamento adequado” para que seja porque existe um essencialismo cultural
possam ter os “benefícios” da inclusão, que é que, embora fale em construções culturais (e,
percebida como ato benemerente, e não como portanto, históricas), afirma coisas como “a ho-
direito. As questões relativas à diversidade de mossexualidade existe desde a Grécia Antiga”
gênero e sexualidade andam de braços dados ou “temos registros que mostram que os índios
na escola – assim como na sociedade em ge- praticavam a homossexualidade antes da che-
ral – com os valores morais e religiosos, o que gada de Cabral”.
explica manifestações que qualifico de quase Notadamente nos discursos militantes,
pânico moral: se Rafael, numa classe de educa- reivindica-se por vezes uma espécie de es-
ção infantil, certo dia, na hora de escolher uma sencialismo estratégico (MISKOLCI, 2010): ao
fantasia, enfiou-se num vestido, a professora já mesmo tempo em que se reconhece que a iden-
percebe aí o primeiro passo em direção à ho- tidade é cultural, transitória, historicamente
mossexualidade, e o pânico se instala. Fica-se situada e fruto de interpelações, apela-se para
na obrigação de intervir, porque todos sabem
que “é de pequenino que se torce o pepino”. Se 6- Marta Vieira da Silva, jogadora de futebol brasileira, diversas vezes
considerada a melhor futebolista do mundo.
a menina do primeiro ano do ensino fundamen- 7- Para um alargamento da discussão, remetemos aos trabalhos de
tal insiste em jogar futebol ou, pior ainda, se Junqueira (2009) e de Ribeiro e Santos (2011).
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uma compreensão sobre sua prática. As cenas em sala de aula); a sempre complicada nego-
são os dados que alimentam as pesquisas e, ciação da disciplina e da condução das tarefas
para tanto, necessitam ser convenientemente escolares; a aprendizagem de gírias, gostos mu-
anotadas, discutidas, analisadas e colocadas em sicais, referências culturais dos alunos. Enfim,
conexão com leituras e discussões acadêmicas. trata-se de conhecimentos que constituem o sa-
A sala de aula pode ser vista como um labo- ber fazer do professor, que auxiliam no encami-
ratório onde o professor vai coletando cenas, nhamento prático de soluções e nos quais pode
situações, e anotando-as num diário de cam- (ou não) estar impressa uma forte marca de au-
po para futura análise. As cenas podem ser toria (no caso, por exemplo, de professores(as)
dos mais diversos tipos: disciplinares, ligadas que buscam construir um estilo de atuação).
a questões de aprendizagem, ligadas à socia- Infelizmente, os professores do ensino
bilidade entre os alunos, envolvendo posições fundamental e do ensino médio poucas vezes
políticas dos alunos em temas da atualidade etc. convertem o que lhes acontece em motivo de
O presente texto ocupa-se de narrar e analisar reflexão. Em geral, tudo o que acontece na esco-
cenas onde estão envolvidas negociações de la e, em especial, na sala de aula colabora para
atributos de gênero e sexualidade. alimentar o circuito da queixa, que termina por
O método de observação, seleção e regis- ocupar o lugar do pensamento (FERNANDEZ,
tro descritivo das cenas apoia-se em discussões 1994). Por conta disso, a maioria dos docentes
referenciadas na etnografia cultural e está mais vai apenas “sofrendo” os anos de magistério,
detalhado em Seffner (2010a). Em síntese, ob- jamais convertendo em experiência o que lhes
servar e efetuar o registro adequado para poste- acontece. Uma carreira docente com um mínimo
rior análise exige alguns procedimentos, dentre de qualidade profissional e pessoal deve envol-
os quais se destacam: desenvolvimento da no- ver a formação de um professor pesquisador ca-
ção de estranhamento para com os aconteci- paz de refletir sobre sua prática. Se o professor
mentos escolares; estabelecimento de direções não se sentir como produtor de conhecimentos,
de observação (no caso deste texto, questões jamais será capaz de gerar uma boa experiência
de gênero e sexualidade); manutenção de uma docente (assim como o professor que não tem
rotina de observação e de um diário de campo; gosto pela leitura jamais conseguirá contribuir
descrições do contexto e dos principais atores de modo efetivo para que seus alunos leiam). De
envolvidos na cena; atenção para elementos modo sucinto, exerço minha função de pesqui-
recorrentes nas cenas, bem como para impre- sador abrindo bem os olhos e os ouvidos quan-
vistos, novidades ou surpresas; atenção para a do das incursões nas escolas possibilitadas pelos
delimitação da cena, desde o momento em que momentos de supervisão dos estágios docentes,
ela tem início até sua finalização. e recolho todo tipo de cena a partir de alguns
Pensar o professor como um observador interesses temáticos específicos.8
atento de cenas escolares busca agregar valor As cenas trabalhadas neste texto foram
ao saber docente e à constituição de um pro- coletadas em três escolas públicas de Porto
fessor pesquisador. Por saber docente, na esteira Alegre, duas delas localizadas em área central
de Tardif (2003), entende-se aquele conjunto de
8- Sou professor do curso de Licenciatura em História e atuo em
aprendizados que o dia a dia da docência pro- disciplinas de orientação de estágio docente. A cada semestre, tenho
porciona e que, em geral, não são sistematizados oportunidade de supervisionar diretamente os alunos, assistindo a uma ou
nem valorizados, por estarem ligados à esfera de duas aulas de cada um deles. Dessa forma, compareço à escola em horário
previamente agendado, sento-me no fundo da sala de aula e observo o
conhecimentos práticos tais como: a gestão da estagiário em seu trabalho docente. Tais visitas também oportunizam
classe de alunos; os procedimentos pedagógicos circular pela escola, conversar com professores, observar rituais escolares,
momentos de recreio, entrada e saída de crianças na escola etc. Todas as
e avaliativos estratégicos (ou aqueles que o pro- cenas aqui narradas foram diretamente assistidas por mim e anotadas em
fessor percebe que se mostram mais produtivos meu diário de campo.
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fato de que o Internacional tem mais sócios do Segunda cena: das surpreendentes es-
que o Grêmio. O professor estagiário encara a tratégias mobilizadas para “conter” a diferença.
turma e começa a falar da matéria que vai abor- Chego mais cedo para observar minha estagi-
dar; a conversa se interrompe e não é retomada ária e fico conversando com duas professoras
até o final da aula. que na escola estiveram envolvidas em ações de
As noções de maioria e minoria são combate à homofobia e já participaram de se-
metáforas bélicas, entendidas na ótica de uma minários oferecidos na Faculdade de Educação
geopolítica de ataque e defesa. Ao contrário do acerca de gênero e sexualidade. Uma delas me
que insistem os programas de direitos humanos conta um “caso” acontecido em turma de crian-
na escola, o linguajar é apropriado numa lógi- ças do 1º ano do ensino fundamental. A profes-
ca que valoriza o pertencimento à maioria para sora regente da classe chamou a mãe de Felipe
oprimir a minoria. Outro elemento aqui presen- para conversar sobre certos comportamentos
te é o afastamento entre o que se diz, o que se agressivos que vinham acontecendo na relação
faz e o que se valoriza no interior da escola, e de seu filho com os colegas da turma. Felipe
o que prevalece na “vida lá fora”. Conforme já brigava muito, agredia os colegas, usava pala-
tratado extensamente na bibliografia educacio- vrões com frequência, desobedecia à professora.
nal – vale lembrar obras clássicas inspiradas no Frequenta essa turma outro menino, Paulo, que
pensamento de Paulo Freire, como a de Ceccon gosta de brincar de bonecas com as meninas.
(1991) –, uma parte importante do que é apren- Para surpresa da professora, a mãe de Felipe
dido na escola é vista como sem valor no mundo atribuiu a agressividade do filho à presença de
“lá fora”, assim como uma parte enorme de co- Paulo e ao seu comportamento tido como fe-
nhecimentos e questões do “mundo lá fora” não minino, uma vez que tal situação deixava seu
entra e não é problematizada na escola. Pode filho bastante “irritado e nervoso”. Isso para ela
até ser, como mostram outras cenas do acervo, era compreensível, visto que o comportamento
que no ambiente escolar esses garotos respeitem de Paulo não era normal. É importante destacar
meninos como Diogo. Mas da porta para fora que as situações de conflito envolvendo Felipe
da escola a regra é outra. Parte do que já assisti não ocorriam de forma exclusiva ou persecu-
em atividades dedicadas a valorizar o respeito tória com relação a Paulo e tampouco eram
pela diferença e a atenção aos direitos humanos justificadas por Felipe em função de qualquer
traz certa marca de “politicamente correto” e comportamento de Paulo. As professoras que
não permite que os aprendizados sejam levados me contaram o caso concluíram que quem de
para fora do cenário escolar, que igualmente fato parecia ficar “irritada e nervosa” era a mãe
não é visto como laboratório para questões da de Felipe, devido à presença de Paulo na classe.
vida. Duas considerações podem ajudar a modi- Indo adiante, a mãe de Felipe insinuou que o
ficar essa situação: trazer para análise situações comportamento delicado de Paulo estaria sendo
do “mundo lá de fora” que envolvam a maioria, “estimulado” na escola, por causa dos cartazes
não ficando refém de análises sobre os proble- que falavam em respeito à diferença, valori-
mas da minoria e mostrando as conexões entre zação da diversidade, direitos humanos etc. A
maioria e minoria. Nessa cena, a categoria de essa altura da conversa, a professora regente da
minoria – ligada de modo positivo à noção de turma entrou na sala dos professores e foi logo
valorização da diversidade na maior parte dos acolhida em nosso bate-papo. Ela acrescentou
discursos e das ações no âmbito do Programa algo que não sabíamos. Meses antes, os pais de
Brasil Sem Homofobia – foi ressignificada pelos Paulo tinham conversado com ela e pedido sua
alunos, sendo a ela atribuída uma sinalização ajuda para estimular Paulo a fazer “coisas de
negativa em oposição à noção de maioria, que menino”, evitando tantas brincadeiras com bo-
foi então positivada. necas e o convívio com as meninas. Segundo os
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uma cena que me marcou muito antes dos porque fracamente nomeados. Com as palestras
meus 17 anos foi quando eu tinha ficado e a presença de lideranças gays na escola, o que
com um guri e ele queria coisas a mais eu era pressentido se reforça, e o sujeito fica in-
disse não ele me ameaçou e disse que ia teiramente capturado pelo discurso da sexuali-
contar para todo mundo eu não acreditei e dade. Todos os seus atos passam a ser julgados
nem dei bola um outro dia eu ia indo para por essa lente, e é a ele que se dirigem cada vez
escola ele gritou no meio da rua eu me sen- mais questões, reforçando esse seu lugar so-
ti muito mal eu tinha vontade de fazer um cial. Claramente, as professoras estavam muito
buraco no chão e me enterrar. angustiadas por perceber que seu trabalho re-
forçava as dificuldades enfrentadas por alguns
Pois bem, ao conversar com Pedro sobre meninos na escola, embora paradoxalmente
essa cena, em que o tal colega havia gritado al- eles agora não fossem mais agredidos fisica-
guns insultos a ele, chamando-o publicamente mente, mas estavam sempre sendo citados.
de “bicha, veado, bichinha”, Pedro acabou re- Quarta cena: a masculinidade balança
ferindo que, depois de algumas atividades na por pouca coisa. Estou no fundo da sala, en-
escola em relação à homossexualidade, tanto quanto o estagiário projeta slides e fala com
meninos quanto meninas que eram seus cole- desenvoltura sobre o exército espartano, sua
gas agora puxavam assunto com ele de modo organização, suas conquistas. A turma é com-
um tanto debochado, mesmo quando misturado posta por uma maioria de meninas, mas neste
com algo amistoso, querendo saber detalhes de momento elas estão caladas. Ao revés, os me-
sua vida sexual, “se ele era ativo, passivo, se ninos participam intensamente, falam do filme
ele chupava, se ele já tinha feito isso e aquilo”. 300,11 fazem perguntas, dizem todo tipo de coi-
Dessa forma, ele terminou por revelar que que- sa sobre guerras, armas, matanças, divertem-
ria apenas ficar no seu canto, sem que ninguém -se com as gravuras e a exposição, e a rela-
lhe perguntasse nada, e que as palestras esta- tiva escuridão da sala os ajuda a se soltarem.
vam provocando um mar de perguntas. Claramente, o tema provoca forte adesão dos
Programas de combate à homofobia não meninos e visível passividade nas meninas.
conseguem andar separados da promoção da Esse entusiasmo todo sofreu uma reviravol-
visibilidade da identidade homossexual. Dessa ta completa em menos de quinze segundos. O
forma, por vezes efetuam uma captura dos in- estagiário projetou uma gravura que mostrava
divíduos em tal identidade. Em outros termos, dois soldados espartanos abraçados, segurando
podem reduzir a pessoa à sua orientação sexual. seus escudos apoiados no chão à frente, com os
Terminam por produzir certa obrigação de se capacetes na mão, usando apenas uma sunga,
expor, ao mesmo tempo em que reiteram a invi- uma ampla capa e as sandálias de guerra. Com
sibilidade dos heterossexuais, que permanecem a figura projetada, em voz alta e clara, ele co-
na sombra. Uma das astúcias da norma é não meçou a falar do companheirismo no exército
dizer de si. Quem deve explicar-se, desvendar- grego e de como o afeto de um soldado pelo
-se, responder a perguntas é quem “foge da nor- outro ajudava a vencer batalhas. Pela primeira
ma”. Com isso, tal indivíduo fica cada vez mais vez desde o início da aula, uma menina se
capturado pelo atributo que o fez afastar-se da manifestou e perguntou qual era a diferen-
norma – no caso, a sexualidade. Dificilmente ça entre afeto e amor, pois ela achava que
conseguimos abordar o tema de modo a mos- os soldados eram namorados. O estagiário não
trar que a exceção faz parte da norma, que ela teve oportunidade de responder, pois foi atro-
é um “fora” constitutivo da norma. Terminamos pelado por várias manifestações dos meninos,
lançando mais luz para cima de indivíduos que 11- 300. Direção de Zack Snyder. Estados Unidos, 2007. O filme concede
até o momento estavam por vezes num limbo, amplo destaque à Batalha das Termópilas.
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das atividades, os colegas, além das brincadeiras pluralidade é um importante passo, mas há que
que já faziam com ele, haviam acrescentado mais se discutir como se articula e se mantém a di-
uma. Utilizando o bordão de um dos cartazes ferença do ponto de vista do poder, pois é por
(“valorize a diferença”), ficavam dizendo na sala meio dele que as situações de desigualdade são
de aula “valorize o Artur”. A professora também criadas e mantidas. O que em geral se observou
acrescentou que a coisa terminou envolvendo um nas cenas escolares, e que em parte caracteri-
dos professores de literatura, também objeto de za os discursos que operam com o conceito de
gracejos por parte dos alunos por ser assumida- diversidade, é um “estacionamento” da discus-
mente gay, e que agora era alvo de brincadeiras são na valorização do múltiplo, do diverso, do
do tipo “valorize o professor de literatura”. plural, aproveitando então para fazer uma apo-
Um resultado concreto do prolongado logia a favor da aceitação da diversidade, da
período de afirmação da política das identida- demonstração da riqueza que está contida na
des que vivemos no Brasil é que a diferença tem diversidade e do aprofundamento daquilo que
apenas o sentido de construir uma nova iden- tem sido chamado de política das identidades.
tidade. Sou um homem que gosta de homens, O que se revela pobre, nas cenas e nos docu-
então essa diferença serve rapidamente para mentos, são as estratégias de enfrentamento do
produzir outra identidade, que já é catalogada, regime de heteronormatividade ou heterossexu-
recebe nome e atributos, vira algo “naturaliza- alidade compulsória.
do”. A noção de que a identidade é relacional A heteronormatividade é percebida
fica relegada ao segundo plano, não sendo pro- porque articula dispositivos de ordem dis-
blematizada. Certamente a identidade é marca- ciplinar e de controle sobre o corpo dos in-
da pela diferença, mas a ela não se reduz, uma divíduos e sobre as populações (FOUCAULT,
vez que a identidade é uma posição de sujeito 1977, 1985). Os que supostamente “fogem” à
fruto de interpelações (WOODWARD, 2000). O norma são necessários a ela, para demarcar
jogo de poder que envolve norma, identidade e seus limites, suas possibilidades e penalida-
diferença acaba ficando oculto. O que é inten- des. Ninguém está fora da norma, embora
samente visibilizado é a nova identidade, seus possa estar em situação de confronto com
atributos, suas características, seus modos de ela, pois só conseguimos estabelecer o que
ser. Reafirma-se aqui a astúcia da norma em é normal e desejável (por exemplo, o aluno
não dizer de si. O sujeito heterossexual não é heterossexual) se tivermos em mente o que
visto como diferente, mas simplesmente passa não é normal nem desejável (o aluno homos-
a usar a diferença “do outro” como sinônimo sexual). Percebemos que a maioria das ações
de identidade, empobrecendo as possibilidades empreendidas não colabora para explicitar a
de envolver a todos na discussão que produz norma. A invisibilidade da norma é condição
posições de si. importante de sua eficácia, silenciando sobre
Cumpre destacar alguns aspectos à guisa os mecanismos que nos fazem tomar algumas
de conclusão. O primeiro diz respeito ao forte identidades (a identidade de gênero heteros-
componente de valorização da diversidade pre- sexual, por exemplo) como comportamentos
sente nas cenas em manifestações de alunos(as) que não precisam dizer de si, não precisam
e professores(as) e igualmente em materiais ser problematizados. Não se enfrenta a he-
no âmbito de programas como o Brasil Sem teronormatividade e, com isso, o discurso de
Homofobia. Embora haja dados positivos, ve- valorização da diversidade parece pretender
rificamos (em conexão com as teorias pós- conviver com a existência dessa norma, o que
-identitárias e com a produtividade das ações) explica algumas das situações um tanto pa-
que não basta a inclusão de novos conteúdos radoxais narradas nas cenas. Há uma inces-
e novos personagens na escola. A aceitação da sante preocupação em achar a “explicação”
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Fernando Seffner é professor no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
na área de Educação, Sexualidade e Relações de Gênero. Pesquisa as pedagogias de gênero e sexualidade envolvidas na
produção, na manutenção e na modificação das masculinidades.