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Linguística

Autora: Profa. Siomara Ferrite Pereira Pacheco


Colaboradores: Profa. Cielo Festino
Profa. Joana Ormundo
Prof. Adilson Silva Oliveira
Professora conteudista: Siomara Ferrite Pereira Pacheco

Mestre em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e doutoranda pela
mesma Instituição desde o início de 2010. Atualmente professora nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). Além
da experiência no nível superior, já lecionou no ensino básico, tanto em escolas particulares quanto em escola pública.
Participa de bancas de correção como Enem, Enade, entre outras.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

P116l Pacheco, Siomara Ferrite Pereira

Linguística / Siomara Ferrite Pereira Pacheco. – São Paulo, 2011.

100 p. il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XVII, n. 2-037/11, ISSN 1517-9230.

1. Linguística. 2. Língua portuguesa. 3. Linguagem. I. Título.

CDU 801

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Comissão editorial:
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Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Juliana Mendes
Sumário
Linguística

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................8

Unidade I
1 LINGUAGEM, LÍNGUA E SOCIEDADE...........................................................................................................9
2 OS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS............................................................................................................ 13
2.1 As contribuições de William Labov................................................................................................ 13
2.1.1 A sociolinguística e sua área de atuação....................................................................................... 15
3 VARIEDADES LINGUÍSTICAS......................................................................................................................... 18
3.1 A heterogeneidade da língua e suas dimensões...................................................................... 18
3.2 A variação linguística.......................................................................................................................... 21
3.2.1 A variação lexical..................................................................................................................................... 22
3.2.2 A variação diatópica no nível fonético........................................................................................... 23
3.2.3 A variação diafásica................................................................................................................................ 24
3.2.4 A variação morfológica......................................................................................................................... 25
3.3 Variação e mudança linguística...................................................................................................... 26
3.3.1 Mudanças na língua portuguesa...................................................................................................... 26
3.3.2 Mudanças linguísticas na língua inglesa....................................................................................... 28
3.3.3 Outras variações na língua e questões variacionistas.............................................................. 28
4 VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA..................................................... 29
4.1 Variedade linguística e PCN.............................................................................................................. 29
Unidade II
5 FONÉTICA E FONOLOGIA................................................................................................................................ 35
5.1 Consoantes do português.................................................................................................................. 37
5.2 Sons vocálicos......................................................................................................................................... 41
5.3 Fonemas e alofones.............................................................................................................................. 44
5.4 A sílaba...................................................................................................................................................... 45
5.5 Vogais do português............................................................................................................................ 48
5.6 Fonologia e ortografia......................................................................................................................... 49
6 MORFOLOGIA..................................................................................................................................................... 51
6.1 Morfemas e alomorfes........................................................................................................................ 53
6.2 Processos de formação de palavras em português................................................................. 54
6.3 Fonologia, morfologia e ensino‑aprendizagem........................................................................ 55
6.3.1 Ensino‑aprendizagem de línguas estrangeiras............................................................................ 56
Unidade III
7 SINTAXE E SEMÂNTICA.................................................................................................................................. 63
7.1 A semântica............................................................................................................................................. 67
8 PERSPECTIVAS ESTRUTURALISTA, GERATIVISTA E DISCURSIVA CONFORME OS
PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS...............................................................................................71
8.1 Língua ou linguagem?..........................................................................................................................71
8.2 Perspectivas estruturalista e gerativista...................................................................................... 72
8.3 Linguagem e prática social................................................................................................................ 74
8.4 Linguagem e dialogismo.................................................................................................................... 75
8.5 Aquisição da linguagem..................................................................................................................... 77
8.6 A perspectiva sociointeracionista................................................................................................... 78
8.7 Linguagem e transformação social................................................................................................ 80
8.8 Linguagem e produção de sentidos............................................................................................... 81
8.9 O aluno como sujeito ativo de sua aprendizagem.................................................................. 81
8.10 A noção de erro na perspectiva linguística e da gramática.............................................. 82
8.11 A falsa premissa da deficiência linguística............................................................................... 83
8.12 Conhecimento prévio do aluno e reflexão............................................................................... 85
APRESENTAÇÃO

Caro aluno, seja bem‑vindo à disciplina Linguística, que passamos a apresentar‑lhe para que possa
ter uma visão do que encontrará ao longo deste material.

Primeiramente, o foco da disciplina está no estudo das variedades linguísticas do português do


Brasil, assim como nos conceitos básicos para a descrição da língua. Para completar o programa de
estudos, teremos também algumas noções sobre os modos e as práticas de ensino de língua portuguesa
e/ou outras línguas do ponto de vista da linguística.

O objetivo geral da disciplina é demonstrar a relevância das reflexões sobre a linguagem,


na perspectiva da ciência que se denomina linguística, tanto para o ensino da língua materna
quanto para o de outras línguas, relacionando os conceitos teóricos ao processo de análise
descritiva do idioma.

Assim, esperamos que você, aluno, desenvolva a habilidade de observação e de análise da sua língua
materna a partir de sua intuição linguística enquanto falante, relacionando‑a aos conceitos que as
teorias linguísticas propõem.

É importante, ainda, que desenvolva uma postura crítico‑reflexiva em relação ao uso da língua e
ao seu papel social, assim como o raciocínio abstrato, tanto por meio de práticas discursivas quanto da
análise do uso da língua em práticas sociais.

Nesse contexto, é importante compreender o papel da linguística como instrumento da prática


docente, além de desenvolver a capacidade de reflexão crítica sobre o ensino de línguas.

Para atingirmos nossos objetivos, teremos como conteúdo:

• Fatores socioculturais e linguagem: variedades linguísticas: situacionais, regionais,


socioculturais (idade, sexo, jargões profissionais, escolaridade, contexto situacional, classe
social etc.); variação linguística e mudança linguística; principais características das variedades
linguísticas do português brasileiro; identificação de variedades linguísticas da língua
portuguesa: fonológicas, sintáticas e semânticas.

• Fonética: conceituação; fonética acústica, perceptual e articulatória; o aparelho fonador;


a produção dos sons da fala; o alfabeto fonético internacional; classificação articulatória dos
fonemas; modo de articulação; zona de articulação.

• Fonologia: conceituação e elementos gerais; fonologia enquanto estudo dos sistemas fonológicos
característicos de uma comunidade linguística; conceituação de fonemas, alofones e variações
livres; identificação de fonemas, alofones e variações livres do português a partir das variedades
linguísticas do português brasileiro; importância para o ensino e a aprendizagem de língua
materna e língua estrangeira.

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• Morfologia: conceituação e elementos gerais; morfologia e fonologia: a dupla articulação da
linguagem; conceituação de morfemas e alomorfes; identificação de morfemas e alomorfes do
português brasileiro; importância para o ensino e a aprendizagem de língua materna e língua
estrangeira (inglês/espanhol).

• Sintaxe: conceituação básica dos pontos de vista estruturalista, gerativista e discursivo; aspectos
da sintaxe do português brasileiro considerados a partir das variedades linguísticas observadas
pelos alunos; importância para o ensino e a aprendizagem de língua materna e língua estrangeira
(inglês/espanhol).

• Semântica: conceituação básica dos pontos de vista estruturalista, gerativista e discursivo;


aspectos da semântica do português brasileiro considerados a partir das variedades linguísticas
observadas pelos alunos; importância para o ensino e a aprendizagem de língua materna e língua
estrangeira (inglês/espanhol).

• Os níveis de análise linguística e as chamadas teorias do texto.

INTRODUÇÃO

A partir da apresentação dos objetivos e conteúdos de nossa disciplina, vamos falar um pouco sobre
ela.

Como se trata de uma disciplina específica, você, aluno, deve estar se perguntando do que ela trata,
pois não é o mesmo que estudar gramática, por exemplo, ou literatura, não é mesmo? Então, pense que
a linguística é a ciência que estuda a língua. Comparada a outras ciências, é relativamente nova porque
ganhou expressão no início do século XX com os estudos propostos por Saussure, que foi professor em
Genebra (Suíça) e cujas ideias levaram a uma mudança de paradigma, passando a configurar‑se o que
se conhece hoje por estruturalismo.

Você iniciará o estudo tendo alguns conceitos básicos, por exemplo, a diferença entre língua e
linguagem, que parecem a mesma coisa, mas têm suas peculiaridades. Em seguida, verá uma síntese dos
estudos sociolinguísticos para, em seguida, ter contato com as principais áreas de descrição da língua:
a fonética/fonologia, a morfologia e a sintaxe.

São esses conceitos que o introduzirão na área que se denomina linguística, e você observará quão
importante é essa ciência para a compreensão de outras áreas do conhecimento em nosso curso.

8
LINGUÍSTICA

Unidade I
Estudar a língua é considerar os vários fatores que podem influenciar os fenômenos de variação
quanto ao sistema linguístico em uso. Todavia, além de saber o que pode produzir alterações, é
importante descrever também em que nível – fonológico, mórfico, sintático, por exemplo – estas podem
ocorrer. Além disso, o léxico pressupõe a língua em uso e pode também variar de acordo com algumas
circunstâncias. Essas questões compõem a primeira unidade deste material.

1 LINGUAGEM, LÍNGUA E SOCIEDADE

A linguagem é uma peculiaridade do ser humano que o distingue do animal irracional, uma vez que
o homem elabora o seu código de comunicação, podendo interferir de acordo com as intenções que
existem na situação comunicativa. Para tanto, dispõe de vários sistemas semióticos, entre eles o sistema
linguístico, objeto de estudo de nossa disciplina.

A linguística é definida, de modo geral, como a disciplina que estuda a linguagem. Mas o que é
linguagem? Esse termo pode ter vários sentidos. Alguns linguistas atribuem‑no a qualquer processo
de comunicação, como a linguagem dos animais, a linguagem corporal, a linguagem computacional, a
linguagem das artes, entre outras.

Essa ciência privilegia bases teóricas e metodológicas interdisciplinares e multidisciplinares, tais como
a aquisição da linguagem, a linguística de texto, a linguística do discurso, a linguística da conversação
e a linguística da enunciação. A partir do prisma da pragmática, os estudiosos da língua voltam‑se para
o uso efetivo, de forma que abra novas perspectivas de investigação.

Entende‑se que a linguagem humana é definida por diferentes naturezas, tais como a cognitiva, a
social, a ideológica, a cultural, a linguística, entre outras. Todas necessitam ser consideradas no ensino
da língua.

A linguística, enquanto ciência, apresenta diferentes abordagens teóricas que se diferenciam no


modo de compreender o fenômeno da linguagem. Entre os estudiosos é necessário estabelecer a
diferença entre língua e linguagem.

Os seres humanos são os únicos dotados de linguagem como uma habilidade de se comunicar por
meio da língua. Desse modo, o termo língua refere‑se a um sistema de signos utilizado na comunicação
em sociedade.

Como o ser humano é um ser social e, portanto, múltiplo, o fenômeno da linguagem é abordado
pelos linguistas, cientistas que estudam a língua, de várias maneiras, e cada abordagem incorpora
características diferentes no tratamento da linguagem humana.
9
Unidade I

Os estudos linguísticos passaram a ter expressão a partir de Saussure, na década de 1920, quando
propôs um estudo da língua enquanto sistema, ou seja, ele e seus discípulos estudaram a língua em uma
visão unidisciplinar, sem levar em conta o falante dessa língua.

Observação

Saussure foi o precursor dos estudos linguísticos na Suíça. Seus


discípulos, alunos, publicaram mais tarde o livro Curso de linguística geral,
em que reuniram a teoria do mestre.

Todavia, a natureza da linguagem é heteróclita (multidisciplinar), apresentando várias faces: social,


psíquica, histórica, antropológica etc., o que levaria cada uma a ser objeto de um estudo diferenciado,
em razão do enfoque pressuposto.

Observação

Heteróclito: termo utilizado por Saussure para a linguagem, uma vez


que seus estudos são da langue (língua enquanto sistema, conjunto de
regras), e não da parole (língua em uso).

Até a década de 1960, o objeto de estudo é a língua nessa visão unívoca, o que origina dois
paradigmas, o estruturalista e o gerativo‑transformacionalista. Até essa época, os estudos foram
feitos na dimensão da frase, seja pelos estruturalistas, seja pelos gerativo‑transformacionalistas.
Para os primeiros, o objeto da linguística é o estudo do sistema da língua, e, para os outros,
o objeto é a gramática da competência linguística de um falante ideal. Ambos operaram,
metodologicamente, com a unidisciplinaridade, e o objeto examinado foi a língua fora do uso,
tratada de forma ideal e abstrata.

Todavia, a partir da década de 1960 ocorre um conjunto de insatisfações, na medida em que a


dimensão da frase não é adequada para explicar a produtividade da linguagem humana. A mudança
ocorrida nessa época implica que o objeto da linguística passe a ser o uso efetivo da língua, de forma
que se investiguem os processos de produção relativos ao texto e ao discurso.

Tal mudança de objeto implica mudança teórica e metodológica. No que se refere à mudança
teórica, a linguagem torna‑se complexa e exige uma diversidade de prismas para o seu tratamento,
tais como o linguístico, o cognitivo, o social, o histórico, o cultural, o ideológico. No que se
refere à mudança metodológica, necessária para o procedimento científico desses diferentes
prismas, a unidisciplinaridade é substituída por interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e
transdisciplinaridade.

Ainda na década de 1960, as análises transfrásticas (fase intermediária entre frase e texto) preconizam
uma interdisciplinaridade porque os estudiosos desse período entendem que é preciso inserir o estudo
10
LINGUÍSTICA

da semântica, o qual não era levado em consideração por estruturalistas e gerativistas. Tais análises
ultrapassam o enunciado enquanto oração, ou seja, enquanto um conjunto de palavras organizadas de
acordo com as regras gramaticais da língua.

Observação

Enunciado é o produto da enunciação, enquanto esta é o processo, o


ato de fala. Assim, enunciado é o que se diz, e enunciação, o que se quer
dizer.

Foi a partir dos estudos de Benveniste que se iniciaram as análises transfrásticas, uma vez
que ele postula que o “que se diz” não é “o que se quer dizer”. Seus estudos levam a diferenciar o
enunciado da enunciação. Dessa forma, os que eram estruturalistas passam a tratar a fala como
uma forma de ação sobre o outro. Assim, começam a trabalhar a linguagem levando em conta a
argumentatividade.

Saiba mais

Para saber mais sobre esse assunto, leia as obras a seguir:

BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral. 5. ed. São Paulo: Pontes,


2008. v. 1.

______. Problemas de linguística geral. 2. ed. São Paulo: Pontes, 1989. v. 2.

Nesse sentido, um dos estudiosos que trabalham esse enfoque e propõem modelos de análise é
Ducrot (1987). No primeiro modelo, ele postula as noções de posto, pressuposto e subentendido,
incluindo o primeiro no componente linguístico e os dois últimos no componente retórico. Já em seu
segundo modelo, Ducrot insere os dois primeiros no componente linguístico e o último no componente
retórico.

Observação

No primeiro modelo de Ducrot, posto corresponde ao dito (explícito), e


pressuposto/subentendido, ao que se quer dizer (implícito). No segundo,
posto/pressuposto estão explícitos, enquanto o subentendido está
implícito.

Outro momento que se configura nessa fase intermediária dos estudos linguísticos é o das gramáticas
textuais, propostas pelos gerativistas, que postulam a competência textual, ou seja, a aplicação de

11
Unidade I

regras a um texto pelo indivíduo, a fim de demonstrar tal competência. Trata‑se, ainda, de um modelo
ideacional, quer dizer, a produtividade encontra‑se no texto, e não no falante da língua.

O terceiro momento da fase intermediária tem como ponto de partida os filósofos de Oxford, que,
saindo da unidisciplinaridade, postulam a não existência de relações lógicas entre o que se diz e o que
se encontra no mundo. Trata‑se, segundo eles, de uma relação analógica, e, nesse sentido, defendem a
competência comunicativa, também ideacional ainda.

Nesse contexto, a linguística textual instaura‑se na década de 1970, a partir de insatisfações dos
gramáticos de texto, que chegam à conclusão de que não há regras, mas estratégias para a produção e
a interpretação de um texto. Assim, o sujeito passa a ter espaço, uma vez que se trabalha com a língua
em uso e o método é observacional.

Há duas vertentes desses estudos, que originarão a diversidade atualmente existente nas
investigações cuja ciência‑mãe seja a linguística. Uma delas é a análise do discurso, tanto a de
linha francesa, cuja base são as ciências sociais, quanto a de linha anglo‑saxônica, que se baseia
nas ciências cognitivas. A outra vertente é a linguística de texto, que se formou a partir dos
gramáticos de texto, os quais passaram a utilizar estratégias, e não regras, para explicar a produção
de sentido nos textos.

É interessante lembrar que, ao delimitar o objeto da linguística como ciência, Ferdinand de Saussure
preferiu privilegiar o estudo da língua, em detrimento da fala. A língua era entendida, então, como “algo
social” (SAUSSURE, 1972, p. 22), adquirida pelos indivíduos no convívio em sociedade. Para Saussure,
a linguística enquanto ciência só poderia estudar a língua, por ser esta um sistema homogêneo e
sistemático.

Assim, apesar de o estruturalismo, estabelecido a partir das ideias de Saussure, considerar que é em
sociedade que o indivíduo adquire o sistema linguístico, não houve, naquele momento, a preocupação
com o papel social da linguagem.

Como visto, as ideias de Saussure revolucionaram completamente o pensamento linguístico


ocidental e foram publicadas no clássico Curso de linguística geral, obra póstuma compilada por dois
discípulos dos três cursos de linguística geral ministrados por Saussure de 1906 a 1911 na Universidade
de Genebra, onde era titular desde 1896 (CARVALHO, 2000, p. 23).

De modo semelhante, a gramática gerativa, proposta pelo americano Noam Chomsky, no final da
década de 1950, assumiu como objeto de estudo a descrição e a explicação de algumas características
do conhecimento linguístico adquirido nos primeiros anos de vida do ser humano, pela interação entre
o ambiente linguístico (social) e a informação genética (inata), fora do ambiente escolar (NEGRÃO et al.
in FIORIN, 2002, p. 96).

A teoria linguística conhecida genericamente como gramática gerativa iniciou‑se com a publicação
de Syntactic Structures (Chomsky, 1957), livro que reuniu notas de um curso que Chomsky ministrava
no Massachusetts Institute of Technology (MIT).
12
LINGUÍSTICA

Observação

Avram Noam Chomsky é professor de linguística no MIT. Seu nome


está associado à criação da gramática gerativa transformacional,
abordagem que revolucionou os estudos no domínio da linguística
teórica. Chomsky postula que a comunidade linguística possui um
conhecimento compartilhado sobre os enunciados que podem e os que
não podem ser produzidos. Enquanto as teorias estruturalistas eram,
em geral, explicitamente descritivas, a teoria de Chomsky pretendia‑se
explicativa, ou seja, os fenômenos deviam ser deduzidos de um conjunto
de princípios gerais (NEGRÃO et al. in FIORIN, 2002, p. 113).

Na sequência, estudaremos como os fatores sociolinguísticos passaram a fazer parte dos estudos
linguísticos.

2 OS ESTUDOS SOCIOLINGUÍSTICOS

Neste item abordaremos a relação entre os estudos linguísticos e os fatores socioculturais. Sabe‑se
que, embora o estudo da linguagem em si tenha surgido como prioridade, as relações entre linguagem
e sociedade ganharam espaço como objeto de estudo a partir do estabelecimento da sociolinguística
como área de investigação.

Segundo Alkmim (2001, p. 28), em oposição às abordagens voltadas para os aspectos linguísticos em si, o
interesse em investigar como linguagem e sociedade se relacionavam surgiu a partir de trabalhos apresentados
em um congresso, organizado por William Bright, na Universidade da Califórnia, no ano de 1964. Os referidos
trabalhos foram publicados em 1966 sob o título Sociolinguistics. Nessa publicação, o papel dos falantes em
suas interações verbais e sociais é destacado por Bright, que relaciona a diversidade linguística a fatores como:

• a identidade social do emissor ou falante;

• a identidade social do receptor ou ouvinte;

• o contexto social;

• julgamento social distinto que os falantes fazem sobre o próprio comportamento linguístico e
sobre o dos outros.

2.1 As contribuições de William Labov

Antes mesmo do estabelecimento da sociolinguística como área de estudos linguísticos, trabalhos


pioneiros relacionando linguagem e sociedade já preparavam a cena para a nova abordagem que
começava a emergir.

13
Unidade I

O nome de William Labov deve ser destacado, dada a importância de seus estudos para o
desenvolvimento da teoria variacionista e, consequentemente, para os estudos sociolinguísticos.

Saiba mais

William Labov nasceu em 4 de dezembro de 1927 em Rutherford, Nova


Jersey. Obteve seu ph.D. em 1964 na Universidade de Columbia, onde
trabalhou como professor‑assistente até 1970.

Em 1971, tornou‑se professor do Departamento de Linguística


da Universidade da Pensilvânia. Sua grande contribuição para os
estudos sociolinguísticos inclui, entre outras, publicações como The
Social Stratification of English in New York City (1966), The Study
of Nonstandard English (1969), Sociolinguistic Patterns (1972) ‑
disponível em português: LABOV, W. Padrões sociolinguísticos. São
Paulo: Parábola, 2008 ‑, Studies in Sociolinguistics by William Labov
(2001), além do Atlas of North American English: Phonetics, Phonology
and Sound Change (2006).

Em um trabalho, publicado em 1963, sobre a comunidade da ilha de Martha’s Vineyard, no litoral


de Massachusetts, Labov associou fatores como idade, sexo, ocupação, origem étnica e atitude ao
comportamento linguístico manifesto dos nativos (ALKMIM, 2001).

Em outro estudo, realizado em 1972, sobre o inglês falado na cidade de Nova Iorque, Labov
mostrou que os falantes dessa localidade reconheciam diferenças da ordem de 10% no uso
do ‑r pós‑vocálico para fazer julgamentos acerca do status social dos falantes. O pesquisador
constatou que deixar de pronunciar o ‑r e substituí‑lo por um alongamento da vogal anterior
era considerado sinal de baixo status social em Nova Iorque, de acordo com Beline ( in FIORIN,
2002, p. 130).

Labov continua a ser uma referência para estudos de cunho sociolinguístico. O linguista brasileiro
Marcos Bagno inicia sua novela sociolinguística intitulada A língua de Eulália (publicada em 1997)
citando Labov:

O serviço mais útil que os linguistas podem prestar hoje é varrer a


ilusão da “deficiência verbal” e oferecer uma noção mais adequada
das relações entre dialetos padrão e não padrão (LABOV, 1969, apud
BAGNO, 2006a).

A importância do trabalho de Labov está justamente no enfoque dado a aspectos até então
desconsiderados nos estudos linguísticos de inspiração estruturalista e gerativista, já aqui referidos:

14
LINGUÍSTICA

o contexto social relacionado a fatores linguísticos. A seguir, enfocaremos a área de atuação da


sociolinguística.

2.1.1 A sociolinguística e sua área de atuação

A nova área de estudos foi denominada sociolinguística pela necessidade de englobar sua abrangência,
isto é, para designar o social, sociedade = socio + linguístico.

Lembrete

A sociolinguística pode ser definida como área dentro da linguística


que trata das relações entre linguagem e sociedade (ALKMIM, 2001, p. 61).

O enfoque nas variáveis como objeto de estudo representou uma inovação na teoria da
linguagem que, até então, considerava as unidades linguísticas (fones, fonemas, morfemas,
sintagmas e orações) como unidades de natureza invariante, discreta e qualitativa. A unidade de
análise criada pela sociolinguística tem uma natureza:

• variável, por existirem duas ou mais maneiras de expressão;

• contínua, porque certas alternativas assumem valores sociais


negativos com base na distância da forma padrão;

• quantitativa, uma vez que a relevância metodológica das variantes que


constituem uma variável é determinada pela frequência percentual
de cada uma em relação aos diferentes fatores que as condicionam
(ALKMIM, 2001, p. 61).

A preocupação em descrever e analisar a língua falada no contexto em que ela ocorre, isto é, em
situações reais de uso, é o ponto de partida da sociolinguística.

Basicamente essa área de investigação procura verificar de que modo fatores de natureza linguística
e extralinguística estão correlacionados ao uso de variantes nos diferentes níveis da gramática de uma
língua – a fonética, a morfologia e a sintaxe, segundo Beline (in FIORIN, 2002, p. 125).

Observação

A fonética estuda os sons como entidades físico‑articulatórias


isoladas. À fonética cabe descrever os sons da linguagem e analisar
suas particularidades articulatórias (produção), acústicas (propriedades
físicas das ondas sonoras) e perceptivas (efeitos físicos que provocam
no ouvido).
15
Unidade I

A morfologia é a parte da gramática que estuda a forma e a estrutura


das palavras.

A sintaxe preocupa‑se com os padrões estruturais, com as relações


recíprocas dos termos nas frases e das frases entre si, enfim, com todas as
relações que ocorrem entre as unidades linguísticas (SAUTCHUK, 2004, p. 35).

O termo extralinguístico é empregado para designar a relação dos fatores sociais e


contextuais com os fatores linguísticos. Como já foi mencionado, é o que enfocam os estudos
sociolinguísticos.

No século XX, com os estudos de Saussure, já referidos anteriormente, houve um desenvolvimento


da linguística enquanto ciência, todavia, nessa fase, os linguistas distinguiam uma linguística
interna de uma linguística externa, e as investigações dos estruturalistas eram voltadas para a
primeira.

Essa linguística propriamente dita, a interna, teve como tarefa descrever o sistema formal, isto
é, o sistema linguístico, numa perspectiva da língua como um sistema de signos convencionado na
sociedade e por esta, que deveria ser descrito.

Por privilegiar o caráter formal e estrutural do fenômeno linguístico, esse paradigma


denominou‑se estruturalismo, e todos os que seguiram o ponto de vista de Saussure foram
designados estruturalistas.

A sociolinguística, portanto, está situada no que se classificou inicialmente como linguística externa,
pois os estudos da língua, nesse contexto, estão relacionados à área das ciências sociais, a qual estuda
o homem como um ser social, e, nesse sentido, é preciso relacionar língua à cultura e à sociedade,
perspectiva à qual estão vinculados os sociolinguistas.

Nessa área de estudos linguísticos, tivemos importantes contribuições de pesquisadores, dos quais
selecionamos alguns, que, por terem relevância no contexto, passamos a apresentar.

Atualmente, no Brasil, há pesquisadores com trabalhos considerados de expressão nessa área; dentre
eles, Marcos Bagno e Dino Preti.

Marcos Bagno é linguista, além de escritor e tradutor, tendo recebido o título


de doutor pela Universidade de São Paulo. Em sua pesquisa, dedica‑se a investigar
a influência de fatores socioculturais em relação à norma, principalmente no que
diz respeito ao ensino de língua portuguesa e seu padrão normativo nas escolas
brasileiras.

Entre várias obras publicadas pelo autor, destaca‑se A língua de Eulália – uma novela
sociolinguística, publicada pela Editora Contexto, em que Bagno, por meio de uma linguagem
acessível, apresenta fenômenos socioculturais no uso da língua.
16
LINGUÍSTICA

Dino Preti é também linguista e professor, livre‑docente pela Universidade de São


Paulo desde 1982 (onde atuou até 1995, ano em que se aposentou, passando a lecionar
na PUC/SP), considerado um dos introdutores da pesquisa sociolinguística no Brasil,
sobretudo no que diz respeito aos estudos da oralidade e análise da conversação.
Considera‑se Luiz Antônio Marcuschi outro pesquisador de grande expressão nessa
área, atuando em outra região do Brasil, uma vez que seu trabalho concentrou‑se na
Universidade Federal de Pernambuco.

O Projeto Norma Urbana Culta (NURC), no Estado de São Paulo, deve sua origem e
desenvolvimento ao professor doutor Dino Preti, que foi mais que um precursor, formando
um grupo de pesquisa que se multiplicou em outros pontos do Brasil, resultando, assim,
em várias publicações. Preti é, ainda, organizador da série Projetos Paralelos, que em 2009
chegou à nona edição.

Atualmente, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Dino Preti atua


nas seguintes linhas de pesquisa: “Análise da Conversação”; “Estudos do Discurso
em Língua Portuguesa” e “Texto e Discurso nas Modalidades Oral e Escrita”. Nessa
instituição, ministra as seguintes disciplinas: “Variações Linguísticas no Português do
Brasil”, “A Gíria do Brasil”, “Língua Oral e Diálogo Literário” e “Análise da Conversação
no Português do Brasil

Fonte: Bagno (2007); Urbano, Dias e Leite (2001).

O objeto de estudo da área que se denomina sociolinguística é a língua falada, ou seja, a língua em
seu uso efetivo, em que se deve considerar o contexto social. Neste, há o que os sociolinguistas chamam
de comunidade linguística, a qual não se define por uma localização geográfica, mas por características
comuns na realização da fala de uma língua.

Ao investigar as comunidades linguísticas, os sociolinguistas deram‑se conta de que há variação no


uso do código linguístico e esta pode ser descrita tanto do ponto de vista interno (da própria língua)
quanto do ponto de vista externo (fatores que determinam essa variação). É disso que passaremos a
tratar.

A microlinguística corresponde aos estudos que se preocupam com a língua em si, ou seja, a língua
enquanto código, sistema. Esses estudos dividem‑se em fonética e fonologia, sintaxe, morfologia,
semântica e lexicologia.

Em contraposição, a macrolinguística prevê uma visão inter, multi e transdisciplinar, em que a


linguística relaciona‑se a outras áreas do conhecimento. Daí a denominação também diversificada desses
estudos: psicolinguística, sociolinguística, linguística antropológica, dialetologia, linguística matemática
e computacional, estilística, etnolinguística, entre outras.

17
Unidade I

É preciso considerar, então, que esse código chamado língua portuguesa, no Brasil (sem levar em
conta outros países), apresenta diversidade de uso. Basta pensarmos no falante que vive no sertão
nordestino e no falante que vive em uma metrópole como São Paulo, por exemplo.

3 VARIEDADES LINGUÍSTICAS

3.1 A heterogeneidade da língua e suas dimensões

Os linguistas variacionistas, ou sociolinguistas, interessam‑se pela heterogeneidade da língua, isto


é, pelas variedades linguísticas. Estas estão presentes dentro da própria comunidade linguística sob
diversas formas.

Observação

A comunidade linguística define‑se pelo conjunto de indivíduos que


se relacionam por meio de várias redes comunicativas e que têm seu
comportamento verbal orientado por um mesmo conjunto de regras,
segundo Alkmim (2001).

É certo afirmar que as línguas variam conforme o espaço geográfico, de acordo com Beline (in
FIORIN, 2002, p. 122). Por isso, mesmo havendo semelhanças entre línguas de origem latina, como o
português, o espanhol e o italiano, estas são línguas distintas faladas em países específicos.

Em um mesmo país, podem existir também diferentes povos que falam idiomas diferentes
daquele utilizado como língua oficial. Há, ainda, povos de diferentes regiões que falam idiomas
distintos, como é o caso do basco, que é falado em uma região ao norte da Espanha (BELINE in
FIORIN, 2002, p. 121).

Um dos fatores que influem na variedade é a localização geográfica. Todos concordam que o
modo de falar português no Brasil varia de acordo com a região. Frequentemente os falantes de
português se deparam com falantes de regiões distintas da sua e logo reconhecem variedades de
pronúncia, de palavras e de ordem de palavras. Paulistas podem perceber o ‑r aspirado dos cariocas,
por exemplo, que difere do modo como o mesmo som é articulado em São Paulo. Cariocas, por sua
vez, podem dizer, por exemplo, que uma pessoa é do Rio Grande do Sul pelo fato de ela usar palavras
como guri. Gaúchos podem perceber a ordem de uma oração negativa como típica dos baianos, por
exemplo, “é não”, em vez de “não é”, e assim por diante. Portanto, pode‑se dizer que a variedade
permeia nossa língua portuguesa.

Além disso, o português falado em Portugal também constitui uma variedade da língua portuguesa,
no que se refere às diferenças de pronúncia, de palavras ou de ordem de palavras. Por isso, muitos
brasileiros sentem dificuldades de compreender os portugueses, e o inverso também é verdadeiro. Veja
os exemplos a seguir:

18
LINGUÍSTICA

[...] no Brasil dizemos estou falando com você; em Portugal eles dizem
estou a falar consigo.

[...]

O português chama de saloio aquele habitante da zona rural, que no Brasil


[é chamado] de caipira [...].

[...]

[Em Portugal] cuecas [...] são as calcinhas das brasileiras (BAGNO, 2006a,
p. 19).

O diagrama a seguir ajuda a entender melhor os diferentes modos como as variedades linguísticas
se manifestam:

Variedades
linguísticas

Diferentes
Diferentes Diferentes Diferentes
povos em um
países regiões cidades
mesmo país

Basco = Diferentes
Diferentes Diferentes falado modos de falar
línguas línguas em uma Diferentes uma mesma
pequena línguas língua
região da
Espanha
Brasil = Português falado
português Povos indígenas em SP versus
em suas português
EUA = inglês comunidades falado no RJ

Figura 1 – Variedades linguísticas

Note que estar familiarizado com determinada variedade decorre justamente da inserção em certo
contexto social, que a usa regularmente. Por isso, o fato de um falante estranhar alguma variedade
indica simplesmente que não está familiarizado com ela. A perspectiva variacionista, desenvolvida pela
sociolinguística, defende que não existem variedades “melhores” ou “piores”. Todas integram o fenômeno
linguístico.

No Brasil essa variedade pode ser notada, principalmente, quando se trata da variação diatópica, a
que distingue os falares do paulista, do nordestino, do mineiro e assim por diante. Nosso país, em sua

19
Unidade I

grande dimensão territorial, abarca uma diversidade muito grande de modos de expressão da mesma
língua, a portuguesa, que é o nosso idioma oficial.

Essa variedade também pode ser notada entre os falantes que têm acesso à escolaridade e os que
não têm. Esse fator é responsável, inclusive, pelo preconceito, um tema abordado por Marcos Bagno em
sua obra para mostrar que o preconceito linguístico nada mais é que a consequência do preconceito
social. Há um padrão de uso da língua instituído pela classe de prestígio, e aquele falante que foge a
esse padrão é discriminado.

O texto a seguir ilustra as divergências culturais que existem entre as regiões do país. Entretanto, essas
diferenças não chegam a caracterizar dialetos no Brasil, uma vez que nos aceitamos, apesar das “intrigas”,
pois podemos até dizer que temos hoje o que os linguistas chamam de português brasileiro (PB).

Cariocas e paulistanos

Se até irmãos brigam, por que não dois vizinhos tão desiguais?
Ivan Ângelo

Uma das coisas que divertem o visitante neutro, em São Paulo, é a pendenga dos nativos
com os cariocas. Os motivos perdem‑se na bruma dos tempos, inútil procurá‑los. Seria
incorreto dizer: os santos não combinam. Não há no mundo católico notícia de divergências
entre São Sebastião e São Paulo, nem entre seus devotos.

Quem está de fora assiste aos embates com um sorriso e procura, não no episódico, mas
no permanente, entender o que os separa. Quem sabe há alguma explicação no jeito de ser?
Se até irmãos se hostilizam por ter personalidades conflitantes, que dirá dois vizinhos?

Observam os neutros que ser carioca é mais um comportamento do que uma naturalidade.
Há pessoas que nascem cariocas em Bauru, Rolândia, Florianópolis ou Quixadá. Quando vão
para o Rio se descobrem subitamente cariocas: folgados, falantes, espertos. Conheci um
sujeito em Minas que tantas fez que acabou ficando com o apelido de “Carioca”. Jurava que
era capixaba. Ora, capixabas são mineiros com praia, nada a ver. Ele pode ter nascido no
Espírito Santo, mas era carioca e não sabia.

Outro, que vi no bonde de Santa Teresa, no Rio, ostentava bigodes de cantor de ópera,
grandiloquentes, e ria para os passageiros, falava alto:

‑ Eu sou gaiato! Gosto disso! Trago estes bigodes porque sou gaiato! Sou um português
gaiato!

Engano dele. Era carioca.

Já paulistanos não nascem em Goiás ou no Pará. Eles se formam na sua cidade mesmo,
em trabalhosa aprendizagem. Ficam diferentes para sempre, e são reconhecidos até pelo
20
LINGUÍSTICA

andar. Não batem pernas à toa; andam atarefados, sabem para onde vão, e está indo. Não
se adaptam a outra cidade, porque em todo lugar lhes falta alguma coisa. Não é paisagem
(que nem têm), como o mineiro que sonha com montanhas, ou o carioca que anseia pelo
mar. É a própria cidade que lhes falta, o tumulto. Talvez uma dose diária de gás carbônico,
viciados.

O carioca ganhou a sua paisagem, herdou da natureza uma obra perfeita. Com verbas
do reino, embelezou‑a ainda mais. Mora num cartão‑postal maltratado. O paulistano teve
de fazer tudo a sua custa, e refaz, insatisfeito, e muitas vezes erra, desmancha, faz de novo,
e esquece cores, mistura formas, épocas... O que ele fez tem a imperfeição e a inquietação
do humano. Por isso se orgulha.

Reparem nas roupas. O carioca se veste para si, privilegia o conforto. O paulistano se
veste para o olhar do outro, procura um efeito, valoriza o social.

O morador clássico de São Paulo, aquele que lhe dá o estilo, tem o espírito do aventureiro
e a moral do conservador; vive a ousadia no longo prazo e a cautela no aqui e agora. É um
homem do interior, esteve cercado de matos, teve de abrir com as mãos o próprio panorama.
Enquanto não o fazia, criou o hábito de olhar para dentro de si.

O do Rio tem o espírito batido de ventos, sal marinho no sangue. Caminha à vela. É
liberal porque ganhou cedo a corte, com suas licenças. O horizonte foi‑lhe oferecido, teve
desde sempre, para o espraiar‑se dos olhos, o espaço sem portas do mar. Ficou folgazão.

Um dia a sorte dele se mudou para Brasília. Acostumado, manteve‑se fiel a seu modo
de ser. O dinheiro sumiu, não o espírito. No caminho inverso, o matuto enriquecido de
Piratininga foi acrescentando alma ao bem que tinha. Não queria apenas fortunas, mas arte
e cultura, e viu que era bom.

Estrangeiros deram um toque cosmopolita ao caráter paulistano. Aquele não era um


visitante em férias, como no Rio, mas um colega, um braço para empurrar o carro. Nasceu
uma relação de troca e cumplicidade. Compromisso, prazo, cobrança, horário tornaram‑se
traços locais. Já o carioca não esquenta.

Poderia ser por aí?

Fonte: ÂNGELO, I. Cariocas e paulistanos. Originalmente publicada em Veja São Paulo, São Paulo, ago. 1999.
Republicada em coletânea comemorativa aos 450 anos da cidade. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/idade/
exclusivo/vejasp/450_anos/index.html>. Acesso em: 18 abr. 2012.

3.2 A variação linguística

As línguas variam em diversos níveis. Cabe lembrar, entretanto, que as variações internas da língua
são determinadas por fatores extralinguísticos, que se somam aos fatores linguísticos.
21
Unidade I

Os primeiros dizem respeito, por exemplo, ao nível social, ao sexo, à escolaridade, à localização
geográfica, enfim, a fatores que estão fora da língua, mas determinam sua variação.

Já o segundo grupo de fatores, os internos, está relacionado aos níveis linguísticos – fonético,
mórfico, sintático, semântico – os quais podem apresentar variantes no uso da língua.

Em sua obra intitulada A língua de Eulália: uma novela sociolinguística, Marcos Bagno (2006a)
descreve essa variação linguística, exemplificando fenômenos como o rotacismo, que compreende a
troca do /l/ por /r/ em sílabas intermediárias, como em alface, cuja variante é [a r f a s i].

Do ponto de vista fonético (talvez a diversidade mais evidente entre os falantes), um indivíduo que
vive na primeira região pronunciará o [r] de porta diferentemente, bem como haverá outras realizações
do mesmo fonema (variantes) para indivíduos de outras regiões do país.

Todavia, não é apenas quanto à fonética que se podem observar a variação e a diversidade linguísticas.
Quando se trata de léxico, por exemplo, podem também ocorrer variantes. O que é mandioca para uns
pode ser macaxeira ou aipim para outros. O pivete de São Paulo pode ser o guri do Rio Grande do Sul.

No nível sintático, é uma “marca” do falante não escolarizado, por exemplo, indicar o plural das
palavras apenas por um dos elementos do sintagma, resultando em sentenças como “Os menino vai
com você”. Veja que o plural foi determinado apenas pelo artigo, permanecendo o substantivo e o verbo
no singular.

Esses fatos identificados na investigação do uso da língua são observados por Bagno em sua obra,
como dito anteriormente. É sobre essa variação que falaremos em seguida.

3.2.1 A variação lexical

Como visto, as línguas variam em relação às palavras usadas por uma comunidade linguística.
Tomando como exemplo o português falado no Brasil, podemos afirmar que há, de fato, uma variação
de uso de certas palavras para designar a mesma coisa, dependendo, é claro, da região. Beline (in FIORIN,
2002, p. 122) apresenta o exemplo do termo jerimum, usado como regionalismo do nordeste, que
corresponde a abóbora nos estados do sul e do sudeste do Brasil. Todo falante do português é capaz de
reconhecer tanto jerimum quanto abóbora como palavras de sua língua materna, pois tanto os sons
quanto o padrão silábico são típicos do português.

Exemplo:

“É abóbora?”

“É jerimum, oxente!”

Logo, um mesmo elemento do mundo enunciado em uma língua pode ser referido por mais de uma
palavra dessa língua em razão de questões geográficas. É o que se chama variação diatópica. Nesse
22
LINGUÍSTICA

tipo de variação, a mudança ocorre em relação ao termo de acordo com a região, mas o elemento a que,
no exemplo citado, jerimum e abóbora se referem tem de ser obrigatoriamente o mesmo. O que varia,
nesse caso, é o léxico usado, segundo Beline (in FIORIN, 2002, p. 122).

Esse tipo de variação não se dá apenas pela localização geográfica. Se pensarmos, por exemplo,
em grupos diferentes na sociedade, veremos que há diferença de vocabulário de um grupo para outro.
Os jovens, em sua maioria, caracterizam‑se por usarem gírias, as quais podem modificar‑se de uma
comunidade linguística para outra, assim como podem se atualizar ao longo do tempo. Do mesmo
modo, os profissionais de cada área de trabalho podem ter um vocabulário específico a cada uma delas,
o qual conhecemos por “jargão”.

3.2.2 A variação diatópica no nível fonético

Ainda em relação à variação de palavras de acordo com a localização geográfica, é importante


lembrar que um mesmo vocábulo pode ter diferentes pronúncias. Nesse caso, temos a chamada variação
diatópica no nível fonético, pois, em uma mesma língua, um mesmo termo pode ser pronunciado de
formas diferentes, dependendo da região do falante.

Como já foi mencionado, os cariocas são conhecidos por aspirar o ‑r. O modo de falar dos cariocas,
assim como o dos mineiros, baianos etc., enfim, de pessoas de diferentes regiões do Brasil, é característico
e permite identificar a origem dessas pessoas. É a comunidade linguística que garante a manutenção
de determinado modo de falar.

Vejamos um exemplo desse tipo de variação:

“O marrrrr esssshhtá demaishhh!!!”

Nesse exemplo, a grafia múltipla representa a “marcação” desse som na pronúncia.

A região do falante também define sua pronúncia, como se pode observar a seguir:

Os limites da fala do carioca são definidos em parte pela pronúncia


chiante do ‑s em final de sílaba, assim como pela aspiração do ‑r em final
de sílaba. A fala do carioca é da maneira que é porque a comunicação
entre os membros da comunidade de fala carioca é muito mais intensa
do que a comunicação com membros de outras comunidades, o que leva
à manutenção de suas características linguísticas, a falta de contato
linguístico entre comunidades favorece o desenvolvimento de diferenças
linguísticas. Tendemos a falar como aquelas pessoas com quem mais
falamos (BELINE in FIORIN, 2002, p. 129).

No que se refere ao modo de falar, é interessante acrescentar que o sotaque, que nada mais é que a
percepção da variação, é responsável por diversas reações por parte dos ouvintes, seja de aceitação, de
surpresa ou até de incômodo. Do mesmo modo que as pessoas tendem a identificar‑se com o sotaque
23
Unidade I

de sua região, podem demonstrar certo estranhamento, ou até mesmo rejeição, a um sotaque distinto
do seu. Nesse sentido, postula‑se que:

As atitudes linguísticas não estão delimitadas apenas por fronteiras


geográficas, mas também por fronteiras sociais. Não assumimos
características linguísticas daqueles de que, de algum modo, não
gostamos ou daqueles de quem queremos nos distanciar ou ainda
daqueles com quem não queremos ser parecidos (BELINE in FIORIN,
2002, p. 129).

É mesmo comum achar que “os outros” é que têm sotaque, e não nós. Isso ocorre porque um falante
de determinada região está tão habituado a um certo modo de falar que não se dá conta de que o
sotaque apenas sinaliza uma variação linguística de sua própria língua materna. Observa‑se, então, que
há, de fato, uma relação entre fatores sociais e linguagem.

3.2.3 A variação diafásica

As pessoas também podem variar seu modo de falar dependendo da situação ou do contexto social
em que se encontram. Considerar o contexto social pode remeter a informações interessantes sobre a
atitude linguística de um falante, como se pode verificar no seguinte exemplo:

“Valei‑me, meu Senhor do Bonfim! Que situação!!!”

A variação diafásica ocorre em virtude da situação comunicativa.

Um falante não tem o mesmo comportamento linguístico quando, por exemplo, está
conversando com amigos em um bar e quando está em uma entrevista de emprego. Pelo menos
é o que pressupõe a prática. Isso ocorre porque uma situação com amigos é, por si, informal,
ao passo que uma entrevista de emprego é, sem dúvida, uma situação formal. Assim, é possível
verificar que o falante tende a adequar sua linguagem ao contexto e, consequentemente, ao seu
interlocutor. Nesse caso, temos uma variação diafásica, aquela que é caracterizada pela situação
de uso da língua.

A linguagem usada em determinado contexto pode ser responsável pela impressão que o falante
causa em seu interlocutor. Em termos práticos, podemos dizer que o objetivo comunicativo pode ou não
ser atingido de acordo com a linguagem usada.

É pertinente observar que todo contexto exige um papel específico do falante, que, por sua vez,
procura cumprir determinado papel em relação à atitude linguística.

Assim, pode‑se afirmar que o uso efetivo de variedades linguísticas significa saber adequar o modo
de falar a cada contexto, seja ele familiar, de trabalho etc. Isso faz parte da habilidade comunicativa do
falante.

24
LINGUÍSTICA

3.2.4 A variação morfológica

No que diz respeito ao uso das palavras, verificamos que, em uma situação informal, o falante de
português pode, por exemplo, omitir o final das palavras, por exemplo, o ‑r, no caso dos verbos. Desse
modo, ele pode pronunciar o verbo fazer como “fazê”, levar como “levá” e assim por diante. A ausência
do ‑r causa também uma mudança de pronúncia da vogal final, que tende a ser acentuada. No entanto,
nesse caso não se trata de uma simples variação fonética, isto é, de pronúncia, pois esse ‑r final constitui
um morfema na palavra, trata‑se do morfema que indica a desinência modo‑temporal do verbo (o
infinitivo).

Vejamos um exemplo:

“E aí, galera!! Vamo fazê uma festa!”

No exemplo, houve a supressão do morfema que indica plural no verbo “vamo”, assim como houve
a supressão do morfema que indica infinitivo no verbo “fazê”.

Lembre‑se de que esse tipo de variação não se dá simplesmente em virtude da região (mudança
diatópica), pois pode ocorrer com falantes de Minas Gerais, de São Paulo, do Rio de Janeiro, enfim, de
qualquer região do Brasil. A ausência ou a presença do ‑r final em verbos no infinitivo é uma variação
morfológica, pois há uma mudança na estrutura da palavra.

A variação morfológica é, portanto, caracterizada pela presença ou ausência de determinado


morfema e pode ocorrer quando o falante está numa situação informal (por exemplo, numa conversa
com amigos falando sobre futebol). Nesse caso, seria uma variação diafásica.

Lembrete

Morfema é o elemento originário em que se concentra a significação. A


partir dele, podemos formar palavras com significado semelhante.

Nas palavras certo, certas, incerteza e certamente, o morfema é cert‑.

Uma outra hipótese de uso da variante diafásica pode ocorrer em razão do nível de escolaridade do
falante.

É importante ressaltar que o limite da variação individual é estabelecido pelo contato do


falante com outros de sua comunidade, pois, uma vez que o indivíduo vive inserido num grupo,
deverá haver semelhanças entre a língua que ele fala e a que os outros membros falam. Caso
contrário, ocorreria um caos linguístico, isto é, os falantes não se entenderiam (BELINE in FIORIN,
2002, p. 128).

25
Unidade I

Vejamos alguns exemplos de variação no quadro a seguir:

Quadro 1 – Exemplos de variação linguística

Variação geográfica ou diatópica


Diferentes países Diferentes regiões em um mesmo país
Português do Brasil
Planos Português Brasileiro (PB) Português Europeu (PE)
Nordeste Sudeste
Lexical Caipira Saloio Jerimum Abóbora
“melado“ “melado”
Fonético Sei [‘sey] Sâi[‘s Ây] pronunciado como pronunciado como
vogal aberta vogal fechada
Sintático Estou falando com você Estou a falar consigo “Vou não” “Não vou”
Variação social ou diastrática
Grupos situados • “nós ama” – simplificação das conjugações verbais
abaixo na escala
social • “froco” [r] em lugar de [l] em grupos consonantais
Classe social
Grupos situados • “nós amamos”
acima na escala
social • “floco”
Idade Uso de gírias como “maneiro”, “esperto” denota faixa etária jovem
Duração de vogais como recurso expressivo, como em “Maaaravilhoso”
Sexo costuma ocorrer na fala de mulheres assim como o uso frequente de
diminutivos “bonitinho” “gracinha”.
Situação ou Formalidade Vamos fazer isso.
contexto social Informalidade A gente vai fazê isso.

Fonte: Bagno (2000); Beline in Fiorin (2002).

A partir dos exemplos citados, é possível notar, portanto, que fatores socioculturais e linguagem
relacionam‑se de diversas maneiras, o que demonstra a relevância dos estudos de natureza
sociolinguística.

3.3 Variação e mudança linguística

A forma padrão de uma língua varia também conforme a época, que determina a padronização.
Como as línguas mudam incessantemente, a definição do “certo”, do “agradável” e do “adequado”
também (ALKMIM, 2001).

3.3.1 Mudanças na língua portuguesa

Basta um falante de português entrar em contato com textos de épocas passadas para constatar que
a língua portuguesa mudou. Todas as línguas sofrem modificações ao longo do tempo, e a língua escrita
registra tais mudanças. Veja o exemplo a seguir:

“Onde o profeta jaz, que a lei pubrica” (VII, 34) (Trecho de Os lusíadas, de Camões, in BAGNO, 2000).

26
LINGUÍSTICA

Termos como pubrica, atualmente considerado um erro em português, são encontrados em Os


lusíadas, de Camões (1572).

Lembrete

Não existe registro da vida de Camões, considerado um dos maiores


poetas portugueses. Provavelmente tenha nascido em 1525, em Lisboa. Seu
poema Os Lusíadas conta a viagem de Vasco da Gama.

Alkmim (2001, p. 41) cita ainda formas como “dereito”, “despois” e “frecha”, encontradas no texto
da carta de Pero Vaz de Caminha, de 1500, para exemplificar mudanças linguísticas ocorridas na língua
portuguesa.

Observação

Pero Vaz de Caminha foi um escritor português que se notabilizou nas


funções de escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral.

Confira, a seguir, um trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha na ortografia original e, em seguida,
na versão com a ortografia atualizada, a fim de observar as mudanças ocorridas.

(1) Snõr

(2) posto que o capitam moor desta vossa frota e asy os outros capitaães (3)
screpuam a vossa alteza a noua do achamento desta vossa terra noua (4)
que se ora neesta nauegaçom achou, nom leixarey tambem de dar disso (5)
minha comta a vossa alteza asy como eu milhor poder (6) ajmda que pera o
bem contar e falar o saiba pior que todos fazer!

(1) Senhor,

(2) posto que o capitão‑mor desta vossa frota, e assim os outros capitães
(3) escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta vossa terra
nova, (4) que se agora nesta navegação achou, não deixarei de também
dar disso (5) minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder,
(6) ainda que para o bem contar e falar — o saiba pior que todos fazer!
(Alkmim, 2001, p. 41)

Dentre as diversas mudanças observadas no trecho citado, podemos listar:

27
Unidade I

Quadro 2 – Comparação das grafias presentes na carta


de Caminha com as usadas atualmente

Ocorrência Grafia na carta Grafia atual


Presença de vogais capitaães (linha 2) capitães
dobradas neesta (linha 4) nesta
asy (linhas 2 e 5) assim
Formas desusadas de noua (linha 3) nova
palavras em uso pera (linha 6) para
nauegaçom (linha 4) navegação
Arcaísmo lexical achamento (linha 3) achamento (= descobrimento)

Fonte: Alkmim (2001, p. 41).

3.3.2 Mudanças linguísticas na língua inglesa

O inglês, como conhecemos hoje, derivou de dialetos germânicos, do latim e do francês e formou‑se
durante um período de invasões que culminou com a criação do que hoje conhecemos como Reino
Unido da Grã‑Bretanha.

Para mostrar algumas mudanças ocorridas no português, vejamos o quadro a seguir:

Quadro 3 – Comparação entre mudanças ocorridas


no português e em outras línguas

Latim Francês Espanhol Português


Ecclesia Église Iglesia Igreja
Blasiu Blaise Blas Brás
Plaga Plage Playa Praia
Sclavu Esclave Sclavo Escravo
Fluxu Flou Flojo Frouxo

Fonte: Bagno (2000, p. 44).

Portanto, os textos escritos no passado são a prova viva de que as línguas mudam. É por meio de
documentos, como os que foram apresentados, que podemos realizar estudos acerca de mudanças nas
línguas.

3.3.3 Outras variações na língua e questões variacionistas

Além das variações que ocorrem no nível da palavra por causa da região do falante, do contexto e do
grau de escolaridade, existe ainda um outro tipo de variação linguística que se dá em virtude da posição
dos termos em uma oração. Esse tipo de variação é chamado de variação sintática. Como se sabe, a

28
LINGUÍSTICA

sintaxe estuda os padrões estruturais, as relações recíprocas dos termos nas frases e das frases entre si.
Em português, poderíamos ter uma oração negativa com, pelo menos, três variações:

• “Eu não quero.”

• “Quero não.”

• “Não quero não.”

No entanto, a variação sintática não é tão facilmente definida. Em relação ao uso do advérbio de
negação, citado anteriormente, Beline (in FIORIN, 2002, p. 124) observa que o sentido de uma oração
como a terceira, que apresenta uma dupla negação, é, de algum modo, diferente. Isso ocorre porque a
dupla negação confere mais ênfase ao sentido da oração, com uso restrito em alguns contextos. Nesse
caso, não teríamos um caso de variação sintática, pois não existe uma equivalência total; o que existe
são contextos diferentes em que os enunciados podem ocorrer.

Da mesma forma, uma variação lexical só pode ser considerada como tal se diferentes
vocábulos forem usados para designar exatamente o mesmo elemento. No exemplo apresentado
anteriormente, das palavras jerimum e abóbora, só será possível considerar a variação lexical se os
vocábulos forem sinônimos perfeitos uns dos outros e, portanto, variantes de uma variável. Caso se
constate que jerimum refere‑se a um tipo determinado de abóbora, não podemos considerar uma
variação lexical (BELINE in FIORIN, 2002, p. 124). Essas são questões essenciais para um linguista
variacionista.

4 VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

A questão da variação linguística é fundamental no que se refere ao processo de


ensino‑aprendizagem de línguas. O professor deve estar a par desse fato para tirar o máximo de
proveito dele em suas aulas.

Além disso, essa questão está prevista nos Parâmetros Curriculares Nacionais, cujas diretrizes servem
para nortear as práticas pedagógicas do ensino oficial, como discutido a seguir.

4.1 Variedade linguística e PCN

A variedade linguística é uma realidade oficialmente reconhecida no âmbito governamental. De


fato, ela está prevista nos Parâmetros Curriculares Nacionais, conhecidos como PCN, publicados em
1998 pelo Ministério da Educação.

Os PCN descrevem a variação como “constitutiva das línguas humanas”. Tais afirmações se sustentam,
evidentemente, em teorias linguísticas e estudos aqui discutidos, que demonstraram a variação como
um fato incontestável, inerente ao fenômeno linguístico e que, por isso, não pode ser ignorado quando
se fala em parâmetros utilizados para regular e direcionar procedimentos pedagógicos de ensino da
língua portuguesa.
29
Unidade I

A constatação de que as línguas variam traz implicações para o processo de ensino‑aprendizagem


da língua materna de várias formas.

Sabemos, por exemplo, que a expressão linguística é uma forma de interação social e que os falantes
podem julgar de forma positiva ou negativa seus interlocutores a partir do modo como falam.

Lembrete

“Algumas formas de expressão podem estigmatizar socialmente seus


falantes, enquanto outras podem valorizá‑los socialmente” (ALKMIM,
2001, p. 67).

Consequentemente, o ensino de língua portuguesa pode servir como um instrumento para promover
maior respeito a quaisquer tipos de variação, considerando:

• a necessidade de oferecer iguais condições de aprendizagem a falantes de todas as classes sociais,


fazendo que haja respeito mútuo entre as classes;

• a democratização de ensino como uma forma de promover o acesso de classes menos prestigiadas.

Os PCN assim recomendam em relação às competências e habilidades a serem desenvolvidas em


língua portuguesa:

A escola não pode garantir o uso da linguagem fora do seu espaço, mas
deve garantir tal exercício de uso amplo no seu espaço, como forma de
instrumentalizar o aluno para o seu desempenho social. Armá‑lo para poder
competir em situação de igualdade com aqueles que julgam ter o domínio
social da língua (BRASIL, 2000, p. 22).

Daí surge uma questão importante para reflexão sobre o ensino da língua portuguesa:

Até que ponto a língua padrão ensinada na escola como único referencial pode ser responsável pela
marginalização das demais variantes que frequentemente fazem parte do repertório linguístico dos
alunos?

Essa questão está diretamente ligada à prática do professor em sala de aula. Por um lado, conforme
Alkmim (2001),

ao assumir o princípio da heterogeneidade inerente à linguagem,


a linguística moderna, especialmente a sociolinguística, eliminou
preconceitos ao afirmar que todas as línguas e variedades de uma língua
são igualmente complexas e eficientes para o exercício de todas as funções
a que se destinam (Alkmim, 2001, p. 68).
30
LINGUÍSTICA

Por outro lado, se a prática pedagógica de ensino de língua materna se preocupar em ensinar
somente uma variedade como correta, desconsiderando outras formas que fogem ao modelo imposto,
ela acabará contribuindo para excluir alunos que chegam à escola utilizando outras variedades da língua
portuguesa que são parte de seu meio social.

Isso ocorre porque o ensino de língua materna tradicional criou a noção de “certo” e “errado”, o que
obviamente enseja uma prática discriminatória em relação às variedades linguísticas que fazem parte
do repertório dos alunos. Tal prática dedica‑se a substituir um modelo supostamente “errado”, que, na
verdade, seria uma variante que o aluno traz para a sala de aula, fruto de seu contato com determinado
contexto social, pelo modelo “correto”, ditado pela chamada norma culta, ensinada na escola.

Nesse sentido, cabe aos professores garantir que todo o conhecimento trazido por estudos linguísticos
sobre a diversidade não seja descartado. Caso contrário, aqueles alunos provenientes de uma classe
social menos privilegiada serão diretamente afetados, pois: “As crianças socioeconomicamente mais
favorecidas seriam as menos prejudicadas, uma vez que se acham familiarizadas com a variedade padrão
desde a primeira infância” (ALKMIM, 2001, p. 70).

Enfim, ao não reconhecer a variedade linguística, o sistema formal de ensino acaba criando o que o
linguista Marcos Bagno chamou de preconceito linguístico. Bagno (2006b, p. 9) afirma que “tratar da língua
é tratar de um tema político, já que também é tratar de seres humanos”. Para ele, o chamado preconceito
linguístico surgiu a partir de uma grande confusão histórica entre os termos língua e gramática normativa.

Bagno (2006b, p. 10) ilustra o fato comparando a língua a um enorme iceberg, “flutuando no mar
do tempo”, ao passo que a gramática normativa seria “uma tentativa de descrever apenas uma parcela
mais visível dele, a chamada norma culta”. A metáfora usada por Bagno não descarta o mérito de tal
descrição, mas lembra que, tal qual o iceberg, cuja parte que emerge não representa sua totalidade, a
norma culta não representa todos os fenômenos da língua.

É importante ressaltar que as ideias defendidas por Marcos Bagno, bem como por outros estudiosos
da linguística, não representam um ponto de vista isolado, defendido por um teórico solitário, para
sustentar alguma teoria nova. Como visto, a questão aqui colocada é de cunho educacional, com
implicações evidentemente sociais e políticas e que, como tal, mereceu ser abordada para colaborar
com a formação dos professores, que precisam se conscientizar da relevância de sua prática pedagógica
para proporcionar transformações sociais.

Saiba mais

Para maior clareza em relação às questões apresentadas, sugere‑se a


leitura do livro a seguir:

BAGNO, M. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo:


Loyola, 1999.

31
Unidade I

Resumo

Vamos retomar os principais pontos do conteúdo visto nessa Unidade.

Iniciamos vendo os conceitos de língua e de linguagem, lembrando que


o primeiro é objeto de estudo da área que se denomina linguística, e o
segundo diz respeito a toda forma de expressão humana.

Em seguida, foi traçado um breve histórico sobre o desenvolvimento


dos estudos linguísticos, lembrando que foi com os estudos propostos por
Saussure que a linguística adquiriu o status de ciência e esta evoluiu de
uma visão unidisciplinar para uma visão inter, multi, transdisciplinar.

Vimos, também, a contribuição dos estudos na área da sociolinguística,


que pressupõe o homem em sociedade e, portanto, a variação de uso da
língua nas mais variadas formas de expressão. Aqui no Brasil, destacam‑se
os trabalhos desenvolvidos pelo Projeto NURC (Norma Urbana Culta),
coordenado pelo professor Dino Preti, que muito contribuiu nessa área.

A variação linguística é uma realidade nossa, uma vez que se torna


evidente a variação diatópica (localização geográfica), pois sentimos
nitidamente a diferença entre um carioca e um nordestino falando, por
exemplo. Entretanto, além do fator geográfico, outros podem influir nessa
variação, como nível de escolaridade, idade, sexo etc. Além disso, um mesmo
falante pode variar sua fala de acordo com a situação comunicativa.

Nesse sentido, retomou‑se o que consta nos Parâmetros Curriculares


Nacionais (PCN), documento elaborado pelo Ministério de Educação e
Cultura (MEC) com o objetivo de padronizar os conteúdos para a educação
básica.

Exercícios

Questão 1. Atribui‑se à “Cantiga da Ribeirinha” o título de primeiro texto em língua portuguesa. A


data provável de sua criação (1189 ou 1198) é considerada o início do trovadorismo literário. Assinale o
tipo de variação presente no trecho da cantiga:

Cantiga da Ribeirinha

No mundo nom me sei parelha,


mentre me for’ como me vai,

32
LINGUÍSTICA

ca já moiro por vos – e ai


mia senhor branca e vermelha, [...]

Fonte: Publifolha (1997).

A) Variação geográfica (diatópica), pois o texto é característico da região sul do Brasil.

B) Variação estilística (diafásica), pois representa um estilo de falar mais rebuscado.

C) Variação histórica (diacrônica), pois indica a fala de um povo em uma época determinada,
considerando a linha temporal.

D) Variação histórica (diastrática), pois indica uma “língua morta” pelo fator tempo.

E) Variação sociocultural (diatópica), pois indica o posicionamento de um determinado grupo


social.

Resposta correta: alternativa C

Análise das alternativas:

A) Alternativa incorreta.

Justificativa: o texto “Cantiga da Ribeirinha”, de Paio Soares de Taveirós, não é característico da


região sul do Brasil. É um texto típico da literatura trovadoresca portuguesa, do século XII.

B) Alternativa incorreta.

Justificativa: a “Cantiga da Ribeirinha” não apresenta um estilo rebuscado de fala, pelo contrário, é
um gênero tipicamente oral, com a presença de termos da linguagem cotidiana da época.

C) Alternativa correta.

Justificativa: a “Cantiga da Ribeirinha” é um texto com as características das cantigas líricas do


trovadorismo português, do século XII. A variação presente é histórica (diacrônica), considerando as
mudanças ocorridas na língua portuguesa no decorrer dos tempos.

D) Alternativa incorreta.

Justificativa: o texto é escrito em português arcaico, portanto, não se pode considerar que foi escrito
em uma língua morta. A variação histórica não é diastrática, mas diacrônica.

E) Alternativa incorreta.

33
Unidade I

Justificativa: embora tenha as características das cantigas de amor do trovadorismo literário,


indicando o posicionamento de um determinado grupo, a variação diatópica é geográfica, e não
sociocultural.

Questão 2. (Enade 2006 ‑ Adaptado). Analise a charge reproduzida na figura a seguir.

Figura 2

Tendo em vista a construção da ideia de nação no Brasil, o argumento da personagem expressa:

A) A afirmação da identidade regional.

B) A fragilização do multiculturalismo global.

C) O ressurgimento do fundamentalismo local.

D) O esfacelamento da unidade do território nacional.

E) O fortalecimento do separatismo estadual.

Resolução desta questão na Plataforma.

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