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de liv

214 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 5 (1):


has Resenhas
vros de livros

215
Resenhas

se consolida entre invisibilidades e “apari-


ções” aconselhadoras.
A primeira seção, composta por três arti-
gos, com o título Saúde, genética e sociedade:
novas/velhas questões, novas /velhas configura-
ções inicia com o trabalho de Sandra Capo-
ni utilizando o trajeto teórico do conceito
de degeneração e sua estreita vinculação
às estratégias eugênicas, na perspectiva
histórica da psiquiatria. A autora identifi-
IDENTIDADES EMERGENTES, GENÉTICA ca que, tanto os degeneracionistas, como
E SAÚDE. PERSPECTIVAS ANTROPO- os eugenistas, se estabelecem descreven-
LÓGICAS, organizado por Ricardo do estigmas físicos e morais, associando a
Ventura Santos, Sabra Gibbon e Jane saúde à normalidade e quaisquer desvios
Beltrão. Rio de Janeiro: Garamond/ a processos hereditários patológicos, de-
Fiocruz, 2012. ISBN 978-85-7617-257-4 generativos ou disgênicos. Fazendo pon-
te com o presente, ela sinaliza que, ainda,
Telma Eliane Garcia vemos reaparecer esses velhos mitos de
Doutoranda do Programa de Pós Graduação herança mórbida como marco explicati-
em Antropologia, PPGA/UFPA vo privilegiado, permanecendo inalterado
o sonho determinista de achar explica-
ções neurogenéticas precisas para cada
A coletânea de textos organizada por comportamento, aflição e sofrimento.
Santos, Gibbon e Beltrão aborda ques-
tões da biopolítica contemporânea a Analisando os fatores envolvidos na ori-
partir de diferentes focos de análise e gem e expressão da agressividade huma-
perspectivas teórico-metodológicas, bus- na geradoras da violência urbana, Gláucia
cando contribuir com os debates sobre Silva propõe um debate entre a Biologia,
as dimensões socioculturais e políticas utilizando artigo do geneticista Renato
relacionadas à produção de conhecimen- Flores (2002) e as Ciências Sociais, ele-
to sobre coletividades humanas por meio gendo um artigo da socióloga Maria Ce-
das tecnologias genéticas. Organizada em cília Minayo (2003) para discussão. Flores
três seções, os artigos se dedicam a anali- situa os determinantes últimos do fenô-
sar as múltiplas formas pelas quais a tec- meno na dimensão evolutiva biológica,
nociência atual influencia a moldagem do entendendo a violência como resposta
mundo social em domínios como: iden- adaptativa da espécie humana. Minayo
tificação pessoal, identidades nacionais e enfatiza questões sociopolíticas contem-
ações coletivas na área da saúde. Tema porâneas, compreendendo a violência
instigante e polêmico chega em meio ao como sintoma, manifestação de algo que
intenso debate sobre as interferências da só pode ser estudado num contexto de
genética e dos geneticistas como “um po- casos específicos, revelando conflitos de
der a mais”, por força de um saber que autoridade, luta pelo poder, ou ainda,

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domínio e aniquilamento do outro. A au- Doação de sêmen e classificação étnico-racial no


tora revela como as alegações biológicas Brasil. Na pesquisa a autora entrevistou
contemporâneas sobre violência podem clientes/pacientes e médicos de clínicas
ser situadas nos questionamentos iden- públicas e privadas de reprodução assis-
tificados pela dicotomia natureza/cultu- tida.1 Pontua que as relações raciais são
ra, podendo até mesmo sofrer completa mais do que definição fenótipica ou de
mudança na maneira de se pensar os limi- origem, as definições de cor e de “raça”
tes entre natureza e cultura diante do sur- dependem do lugar social ocupado em
gimento da nova genética ou genômica. relação a contextos específicos referidos
a classe, gênero, prestígio, proximidade/
Finalizando a primeira sessão, Luis David
intimidade, e relativos a quem pergunta e
Castiel mostra de modo bastante esque-
quem responde. Na interface entre bioé-
mático a questão da longevidade sob o
tica e socioantropologia segue uma anali-
olhar biopolítico. Inicialmente, ele expõe
se das tensões decorrentes da legislação
as possibilidades de oferta da longevi-
no Brasil que reza a doação dos gametas
dade como uma mercadoria no âmbito
como ação anônima ao casal que busca a
dos produtos, serviços e tecnologias no
reprodução assistida e ao mesmo tempo
campo da atenção curativa e preventiva à
deseja conhecer as características do doa-
saúde. Em seguida menciona enunciados
dor. No contexto, a equipe médica faz-se
biológicos a respeito das teorias do enve-
intermediária dos critérios de classificação
lhecimento e suas formas de lidar com
racial exercendo um controle que parece
este processo, detalhando cada teoria. A
se inserir em um panorama geral de vi-
partir deste ponto embasado nas contri-
gilância sobre classificação racial, respon-
buições de “biopolítica”, inspirando-se
sabilidade esta que fere princípios éticos
na perspectiva de biopoder de Foucault
básicos de autonomia, privacidade e o de
(1979) e lançando mão das proposições
igualdade. A autora ressalta: “[a]inda que
de Nikolas Rose (2007), Castiel então
seja um problema de difícil solução (ou
propõe o conceito de “epidemiopoder”
por isso mesmo) ele deve ser apontado
para indicar as concepções de “caminhos
e levado em consideração nas discussões
corretos” e “escolhas racionais” a partir
sobre ética na saúde reprodutiva”. (p.108)
de tecnologias e programas de interven-
ção no âmbito da governabilidade, preva- Naara Luna aborda o debate público
lecendo nesse discurso à dimensão moral sobre o estatuto de fetos e embriões
que pode chegar a uma rígida postura de no que se refere ao uso de argumentos
valorizar o “fiel cidadão, epidemiologica- fundamentados em dados genéticos
mente ativo, que tem a tarefa de controlar para descrever a condição desses entes
sua vida, segundo atos de cálculos e esco- e justificar, ou não, a possibilidade do
lhas racionais”. (p. 87) uso desses embriões em pesquisa ou a
antecipação do parto de anencéfalos. A
Os artigos que compõem a segunda par-
pesquisa centra-se em dados coletados
te da obra tratam, da Reprodução, molecula-
a partir de audiências públicas com es-
rização e biopolítica da vida em si e inicia com
pecialistas, convocados para discutir um
o texto de Rosely Gomes Costa sobre

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“conceito operacional jurídico para a vida de perspectivas.” (p. 151) Analisam via
humana”. Na argumentação “quanto ao estudo de caso (biomarcadores molecu-
objeto do embrião extracorporal os ex- lares para o câncer de próstata) questões
positores pró-vida atribuem a autonomia mais gerais a respeito da forma pela qual
à sua constituição genética individual, ...” o corpo biológico é “enquadrado” pela
(p. 144-5) portanto indicando um estatu- tecnologia e oportuniza possibilidades
to pleno de pessoa humana a partir da fe- precoces de detectar e localizar tais pa-
cundação, reforçando com estas técnicas tologias. As ações “induzem” alteração
a genetização do ser humano e das rela- na experiência subjetiva do corpo e da
ções familiares, sendo “[a]ssim os genes doença, podendo até ser vista enquanto
seriam uma nova metáfora da natureza, potencial, como um determinante inevi-
corporificando a verdade essencial do ser tável. Os autores concluem oferecendo a
humano, algo que sobredetermina sua idéia como um esboço teórico dessa vira-
vontade” (p.145) Na argumentação do da ontológica incitando à necessidade de
Judiciário os embriões são considerados pensar-se para além da separação entre
“substância humana em forma de conge- significados e matéria, não apenas por
lamento” sem identidade de pessoa, “são razões teóricas, mas principalmente pelo
algo, mas não alguém” com autonomia “fato de que “híbridos” e “ciborgues” são
jurídica para consentir sobre o aproveita- crescentemente parte de como interagi-
mento de suas células, e que sem a trans- mos com nosso mundo e entre nós.
ferência para o útero, serão descartados
Tecnologias Genéticas e Identidades Étnico-Ra-
no prazo de três anos, desperdiçando-se
ciais Emergentes é o título da terceira ses-
a oportunidade de garantir a estes embri-
são de textos que inicia com o trabalho
ões, pela pesquisa, o aproveitamento para
de Elena Calvo-Gonzáles denominado
a dignidade da vida. “A consciência como
Usos Políticos da leucopenia e diferença racial
sede da humanidade é o argumento prin-
no Brasil contemporâneo. A autora apresen-
cipal no debate sobre a antecipação do
ta dois estudos de casos que abordam a
parto de anencéfalo.” (p.145) A autora
leucopenia (baixa contagem de leucócitos
conclui sustentando que a busca de mar-
– células sanguíneas) no contexto da luta
cos estruturais fixos para a condição de
sindicalista e das discussões contemporâ-
pessoa e a utilização da biologia como
neas sobre o campo da chamada “saúde
base para prescrições de ordem social,
da população negra”, para analisar dis-
reitera o fato de que o valor da natureza
cursos sobre raça enquanto realidade so-
como fundamento da condição humana
cial ou biológica e como estes discursos
é um aspecto característico da cosmolo-
mobilizam verdades que, por sua vez são
gia ocidental moderna.
mobilizadas politicamente. A associação
Marko Monteiro e Ricardo Vêncio in- da leucopenia à condição do corpo negro
troduzem o polêmico tema de como as mantém-se dentro da ambiguidade na
práticas cientificas vem produzindo “... hematologia levando a uso, até manipula-
o conceito de “molecularização” da vida dor, no contexto de processos trabalhista
e do corpo a partir de uma diversidade em casos de trabalhadores expostos ao

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benzeno, podendo ora ser considerada parativa, os perfis de três empresas que
como “normal no corpo negro e ora “in- comercializam testes de ancestralidade
capacitante ao mesmo corpo” quando da genética, sendo duas nos E.U.A e uma
contratação desses trabalhadores. Calvo- no Brasil, afim de avaliar o que as apro-
-Gonzáles se remete a qualidade hibrida xima ou distancia no trato concedido ao
do conceito de raça, dialogando com a potencial revelador dos testes realidados.
literatura contemporânea sobre raça e No caso das empresas americanas, ambas
saúde e ressaltando a dificuldade em se oferecem metodologia que busca uma
separar a raça social de raça biológica, descendência direta a partir do mais dis-
concluindo que o uso do termo implica, tante ancestral de um indivíduo, através
necessariamente, que ambos os âmbitos do pai e da mãe. No Brasil, o laboratório
são mobilizados de forma consciente ou revela a miscigenação, oferecendo testes
inconsciente e terminam impactando o voltados ao perfil genético de brasileiros
quotidiano do cidadão. e os dados analisados dizem respeito a
composição genética de nove personali-
A partir de uma etnografia feita nos An-
dades negras (Milton Nascimento, Dja-
des Bolivianos entre o povo indígena
van, Seu Jorge, Neguinho da Beija-Flor,
Uro, enfocando as políticas conceituais
Sandra de Sá, Daiane dos Santos, Obina,
travadas em torno da identidade dos
Ildi Silva e Frei David) e seus depoimen-
Uro, o artigo de Michael Kent busca dar
tos diante dos resultados. O que primeiro
um melhor entendimento das condições
se concluiu no estudo é que populações e
sociais que possam levar à aceitação ou
identidades significativamente diferentes
rejeição de pesquisa genética por parte
podem emergir a partir de pesquisas ge-
desses coletivos em relação aos debates
néticas com o mesmo conjunto de amos-
sobre identidade étnica diferenciada. A
tras, a depender das tecnologias emprega-
analise dos dados revela a relação da ge-
das e das partes do DNA que são focadas,
nética com processos e registros sociais,
bem como do tipo de marcadores que
alcançando os processos políticos nos
são utilizados. E quanto à receptividade
quais estão imersos. No caso específico
ou não dos resultados por parte dos sujei-
a análise genética não oferece afirmação
tos, a interpretação esta ligada as experi-
positiva de identidade diferenciada, mas
ências individuais específicas construídas
responde à contestação social, sendo in-
em torno dos testes de ancestralidade
terpretada dentro de valores do campo
genética e são parcialmente moldadas
das políticas conceituais entre repertórios
pelas expectativas e desejos preexistentes
biológicos e sociais. O artigo se encerra
do usuário. Os autores enfatizam que a
com uma discussão preliminar das con-
interpretação dos resultados de um teste
sequências sociais da incorporação do
de ancestralidade genética pode interferir
conhecimento genético no debate so-
em dimensões que vão além do senso de
bre a identidade dos Uro.
identidade e “criação” pessoas e persona-
Gaspar Neto, Santos e Kent exploram, lidades ou núcleos familiares ancorados
no artigo seguinte da sessão, a partir de em uma pretensa ancestralidade comum,
uma perspectiva antropológica com- destacando os complexos processos de

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ordem social e política envolvidos no que frapolítica da contemporaneidade brasileira. Rio


poderíamos chamar de “etnogeneses” de de Janeiro: Fiocruz.
identidades coletivas. Rose, N. 2007. The politics of life itself: biomedici-
A obra indica que o tema das “identida- ne, power and subjectivity in the twenty-first century.
des emergentes” no campo da genética Princeton: Princeton University Press.
e da saúde trazem novos problemas à
construção social de identidades no de-
bate em contraponto com as questões
de “natureza biológica” hoje modificada
pelo avanço científicos, mas para além
do inscrito nos diversos artigos, há o en-
frentamento a questão ética que envolve
o uso político das “identidades emergen-
tes”, assinalando que a polêmicas terá
novos desdobramentos, os quais não
podem ser resolvidos nem judicialmente,
pois as autoridades também não estão em NAS TEIAS DA VIDA: SABERES,
consenso. E talvez, não devam estar, pois SOCIABILIDADES E PODERES DE
as mesmo “identidades emergentes” são MULHERES PARTEIRAS EM MELGAÇO
cunhadas na forja das relações sociais. Parteiras, buchudas e aperreios:
Uma etnografia do cuidado obste-
trício não oficial em Melgaço, Pará,
NOTA
de Soraya Fleischer. Belém: Paka-Tatu;
1
A autora utiliza as conceituações de Correa Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2011.
& Loyola (1999) que dizem respeito a pro- ISBN 978-85-7803-090-2.
cedimentos relativos à inseminação artificial,
fertilização in vitro, congelamento de sêmen e Jerônimo da Silva e Silva
embriões, doação de material reprodutivo, se- Doutorando do Programa de Pós-Graduação
leção sexual e diagnóstico pré-implantarório, em Antropologia, PPGA/UFPA.
pesquisas com células e embriões humanos e
clonagem.
Pensar as práticas sociais de determinada
localidade buscando apreender a fluidez
REFERÊNCIAS
com que os sujeitos conformam proces-
Flores, R. Z. 2002. A biologia na violência. sos de identificação é o ponto de partida
Ciência e Saúde Coletiva, 7: 197-202. que Soraya Fleischer anuncia na etnogra-
Foucault, M. 1979. O nascimento da me- fia feita a partir de histórias de vida, sa-
dicina social, in Microfísica do poder. Rio de beres, representações e cotidiano do “cui-
Janeiro: Graal. dado obstetrício não oficial” de mulheres
Minayo, M. C. 2003. A violência dramatiza na cidade de Melgaço, Pará. Resultado da
causas, in Violência sob o olhar da saúde: a in- tese de doutorado em Antropologia So-

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cial, defendida no ano de 2007 na Univer- determinado momento, recorre à experi-


sidade Federal do Rio Grande do Sul, a ência etnográfica presente em literatura
autora sedimenta os argumentos no perí- antropológica nacional, latino americana
odo de dois anos (2004/2005) em que re- e estadunidense, não para criar padrões,
alizou tanto pesquisa etnográfica junto às mas, creio eu, para apontar singularida-
parteiras, gestantes e populares em geral, des e oferecer ao leitor possíveis outros
como pesquisas documentais em cartó- entendimentos desse “saber/fazer” em
rios, fóruns, órgãos de saúde e organiza- outros tempos/locais históricos. Igual-
ções não governamentais. Seu intento foi mente, concilia os avanços de etnografias
compreender, de um lado, a constituição recentes com o legado de títulos, conside-
do saber dessas mulheres, denominadas rados como clássicos, sugerindo, no de-
circunstancialmente de parteiras e, de correr dos capítulos, a “fusão de horizon-
outro, o diálogo travado junto ao saber tes”, entremeando a pesquisa de campo
médico oficial e a “agenda política” de e a bagagem intelectual do pesquisador
movimentos sociais, alinhados ou não ao (Cardoso de Oliveira 2003).
poder público, tendo o mérito de não se
Em Buchudas, parteiras e aperreios o parto
deixar seduzir pela posição dicotômica,
emerge como mais um componente da
por vezes mui generalizada, em trabalhos
dinâmica e da atuação das mulheres que
acadêmicos.
manuseiam o saber obstetrício. Ou seja,
O convívio diário e a descrição do modo os sentidos dados ao “parto domiciliar” e
de vida local das parteiras, ajustadas ao “parto hospitalar” ou mesmo a transito-
trato etnográfico pormenorizado e cuida- riedade de requerentes e parteiras nesses
doso, evitou, nesse sentido, apresentá-las espaços, questões sócio-econômicas alia-
como mulheres “exóticas” ou “naturali- das a interditos e interpretações religiosas,
zadas”, congeladas em um tempo históri- fazem emergir aspectos, que, se entendi-
co perene e generalizante. As parteiras de dos dialogicamente, descortinam novos
Melgaço visibilizadas na escrita de Soraya caminhos da temática em destaque. No
Fleischer não constituem um todo orgâ- curso da pesquisa, a autora adquire cons-
nico, monolítico, nem tampouco são ca- ciência de que, apesar de necessária em
racterizadas como representantes de um dado momento, a sistematização e análise
saber tradicional em oposição à lógica quantitativa da presença de parteiras em
do avanço da modernidade. Ao perceber Melgaço (22 parteiras) estava repleta de
mediações, conflitos, fluxos de saberes e lacunas, impossibilitando a compreensão
práticas que perpassavam o cotidiano das densa do cotidiano local. Os meandros da
mulheres, terminou por desvelar di- pesquisa de campo foram estabelecidos a
ferentes concepções de saúde, parto, partir do momento em que manteve con-
reprodução e poder. tato com D. Dorca, sua anfitriã durante
todo período de pesquisa e principal in-
Apesar de não ter o objetivo de trans-
terlocutora junto à maioria das parteiras,
formar o estudo do cotidiano e das re-
famílias locais e demais sujeitos.
presentações das parteiras em Melgaço
num exercício comparativo, a autora, em A predileção inicial pela história de vida

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de D. Dorca, segundo Soraya Fleischer, apenas a sua chegada ao local, repleta de


não foi uma tentativa de tornar essa incertezas e frustrações, mas indicando
mulher um símbolo-síntese de outras o esforço constante em pensar como as
parteiras, nem tampouco uma forma de representações dos moradores atravessa-
compreender a realidade do saber obs- vam as demandas da pesquisa de campo.
tetrício melgacense sob um único olhar, Assim como os populares marajoaras, a
tornando-a um estudo de caso. Na verda- pesquisadora negociou em diversos mo-
de, compreendeu que as narrativas e me- mentos os papéis sociais atribuídos a ela.
mórias de D. Dorca, apesar de centrais, A imagem de ajudante de D. Dorca era
são desfiadas e entrelaçadas aos corpos, um deles, evidenciada durante boa par-
vínculos e vozes de parteiras que emergi- te da confecção da tese. A atribuição de
ram ante a elaboração do olhar e devida ajudante construída pela parteira permitiu
inserção da pesquisadora no campo (Cra- não apenas que acompanhasse o “corpo
panzano 1986). Desse modo, as ruas de a corpo” das puxações e partos in loco,
Melgaço, ramais, areais e as trilhas aquá- mas, sobretudo, ser apresentada a outras
ticas percorridas por D. Dorca mediavam parteiras.
conexões, contatos com D. Benedita, D.
A partir dessas incursões iniciais, a autora
Jita, D. Jandira, Joana, D. Luzia, D. Maria
analisa, no segundo capítulo, de que ma-
Silva, D. Santana, Neném, Sabá, Zuleide,
neira o ato de partejar extrapolava o ato
D. Zezinha e algumas outras parteiras. É
obstétrico do parto e adquiria contornos
da percepção das múltiplas vozes e práti-
sociais que se estendiam por diversos me-
cas que visibilizamos estratégias, alianças
ses. O argumento da autora era susten-
e conflitos que brotam e complexificam
tado na percepção de que as massagens
não apenas a realidade estudada, mas
abdominais realizadas na barriga das
também descarna a instabilidade necessá-
grávidas (com óleo, azeite, ervas pisadas,
ria da própria escrita acadêmica.
álcool etc.) ou em outras partes do corpo,
A disposição das casas e ruas da cidade, em alguns casos, iniciavam antes da gesta-
o fluxo e a descrição das principais ativi- ção e terminavam semanas depois. Eram
dades econômicas, os conflitos familiares, exercidas, ainda, em casos de aborto, vo-
relações de parentesco, manifestações re- luntário ou não. Dessa forma, a puxação,
ligiosas, festas de aparelhagens, cenários além de complexificar o conceito de saú-
propícios a encontros sensuais e saídas de e gestação, estabelecia a possibilidade
noturnas transpareceram no primeiro de diálogo entre parteiras e gestantes, tra-
capítulo associados a comentários que, tava-se do momento destinado ao ouvir
versando “sobre os que haviam chegado e sentir o desenvolvimento do feto, isto
muito tarde em casa, quem havia dor- é, um momento crucial para estabelecer
mido com quem, que menstruação não vínculos sociais e afetivos no interior das
havia descido etc.” (p. 65), estavam indis- famílias, bem como propor diagnósticos
sociados do ofício das parteiras locais. So- e recomendações, em particular no caso
raya Fleischer apresenta a cena etnográfi- de desavenças entre parentes, violência
ca desse cotidiano, problematizando não conjugal, desemprego e outros. De igual

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modo, rezadeiras, benzedeiras e puxado- práticas enquanto oferta de trabalho e es-


res utilizavam-se das massagens em pes- tabeleciam constantemente um contrato
soas com distorções musculares, ossos e na forma de tabelas de serviços junto às
danos nos ligamentos. famílias requerentes. Fleischer, nesse sen-
tido, posiciona-se evitando, por um lado,
Finalmente, a autora analisa a puxação
a visão sagrada que, ao romantizar um
como elemento basilar do trato obste-
destino ou vocação espiritual a essas mu-
trício não oficial que encontra forte re-
lheres, atribui-lhes visão desinteressada
sistência das autoridades sanitárias. Se,
no trato das condições de vida. Por outro,
na perspectiva das parteiras, a puxação
um tipo de paternalismo que imuniza,
diminui os riscos de cirurgia cesariana,
como que perdoando a inserção desses
de partos de risco, isto é, bebê de pé, de
sujeitos na “lógica” do capital, concebido
bunda e outros, por outro, os médicos e
conceitualmente via a lógica dos mundos
agentes públicos de saúde responsabili-
hostis, criticados largamente na escrita de
zam as puxações pela quantidade de crian-
Zelizer (2005). Como alternativa, a autora
ças nascidas laçadas. Através do convívio
compreende que a etnografia em questão
com experiências de parto na cidade e
faz avançar novos termos da reciprocida-
no interior, a pesquisadora descreve que
de local, pois ao envolver interação entre
em situações precárias de distância física,
parteiras, parturientes e familiares, o lugar
em relação ao posto de saúde, ausência
de autoridade ocupado heterogeneamen-
de materiais e medicamentos e a falta de
te pelas parteiras e a presença estratégica
habilidade de médicos e enfermeiros para
nos cursos de orientação, trazem à tona
lidar com situações de risco faziam com
mediações e/ou reciprocidades que per-
que a possibilidade da criança nascer laça-
passam indistintamente valores morais e
da era, dos males, o menor, em oposição
econômicos a um só tempo.
a “quadros clínicos mais graves”. O que
não anulava os riscos de tal procedimento. A iniciação da parteira emerge nessa obra
não apenas como uma forma de com-
Outro ponto salutar evidenciado na
preender narrativas orais que fundam
etnografia é a forma como se dá a relação
uma identidade específica no interior da
de reciprocidade, orbitando entre paga-
dinâmica social, mas, em determinadas
mento em espécie, produtos ou serviços
situações, influencia o lugar de autori-
junto às parteiras, consolidando, através
dade junto às suas “iguais” e a aceitação
das contribuições de Mauss (1974), a arti-
de famílias requerentes no momento
culação de laços sociais em locais de pes-
de optar por qual parteira recorrer no
ca, por exemplo, nas margens dos rios,
momento do “aperreio”. Emerge na
meios de transporte, favores em reparti-
etnografia dezenas de relatos associados
ção pública e outros. Aberto sob o título
a choro no ventre materno, aprendizado
central Do chamado ao contrato, o terceiro
por sonho, dom ou sina de Deus, Santos
capítulo descreve o processo de mudan-
ou Encantados, herança de linhagem ma-
ça vivenciado pelas parteiras que nasciam
terna ou mesmo pelo processo de sim-
ou migravam do interior para a cidade, e
ples aprendizado. Apesar das narrativas
que com isso passaram dinamizar suas

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guardarem especificidades na aquisição no ambiente hospitalar em municípios


e desenvolvimento desse saber obstetrí- limítrofes ou eram encaminhados pelas
cio, a autora destaca com propriedade mãos da parteira ao local (quando esta
que diversas interlocutoras dispunham de não fazia o parto). Outros, por sua vez,
outras narrativas que dessem conta da ini- ocorriam integralmente sob o cuidado
ciação, e que o leque explicativo poderia da parteira, ou a família encaminhava do
ser ampliado de acordo com o interesse hospital para o local de “parto domici-
e objetivo a ser alcançado no diálogo em liar”. O capital financeiro e simbólico, a
questão. relação da parturiente nas redes de soli-
dariedade e reciprocidade, muitas vezes,
No capítulo quatro, nomeado de Parto
denotavam que o local do parto represen-
para a casa ou parto para o hospital, a auto-
tava o lugar social e condição hierárquica
ra considera diversas percepções de ris-
ocupada pela família da parturiente nessa
co e aperreio de parturientes e familiares,
população marajoara. Assim, a busca de
especificamente quando as pessoas pre-
assistência médico-hospitalar em Belém
cisavam definir como, onde e por quem
e Portel, por exemplo, contrastavam com
o parto deveria ser feito. A presença de
a ida ao posto de saúde, para muitos um
crianças nascidas no posto de saúde nos
local destinado a pessoas amplamente
anos de 2005 e 2006, época da pesquisa,
desassistidas.
era relativamente reduzida em proporção
àquelas nascidas em partos domiciliares. No último capítulo há um esforço da
O levantamento documental permitiu a autora em compreender as relações de
Fleischer problematizar, em vários mo- legitimidade e poder entre as parteiras
mentos, empecilhos estruturais (distância locais. Entretanto, além de motivações
física), preconceitos (vergonha de ir ao pessoais que orquestram essas rivalidades,
posto com roupas consideradas sujas e constata-se que a presença de ONGs e
velhas) e medos/representações negati- instituições governamentais possibilitam
vas reproduzidas (quantidade de vacinas em suas próprias ações – cursos, oficinas
dolorosas, toques do dedo repetitivo e e entrega de materiais e medicamentos –
vergonha pela ausência de familiares) a conformação de outras representações
que faziam do atendimento público um que escapam da sistemática e logística
ambiente que, na maioria dos casos era esperada por esses órgãos. Apesar da
requisitado em última circunstância, ape- maioria das parteiras participar das reu-
sar da autora ter presenciado inúmeras niões da Associação das Parteiras Tradicionais
parteiras recomendarem às parturientes a de Melgaço, há entre essas mulheres formas
realização de pré-natal e o cumprimento de classificação e hierarquização no senti-
das recomendações sanitárias. A autora, do de definir o que é ser “parteira”.
no entanto, não sustenta a ideia da opo-
Transpassada por essa questão, muitos
sição entre esses espaços; pelo contrário,
relatos de parteiras indicaram um quadro
acompanhando os partos de Josiane,
considerado circunstancial por Fleischer,
Beatriz, Nara e Acácia, a antropóloga
mas que possibilitaria alguns marcadores
desvela que muitos partos transcorriam
hierárquicos: a definição de parteiras jo-

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venzinhas, antigas e aposentadas, na verdade, veis apresentados na obra compreendem


formava uma rede de identificação criada o ato de partejar tanto como forma de
por muitas parteiras com interesses que solidariedade, onde duas ou três parteiras
poderiam ser específicos ou marcados entrelaçam saberes e ofícios em um único
por alianças contextuais. Se, por um lado, parto, como na elaboração de um discur-
as jovenzinhas eram aquelas que tinham so de autoridade e superioridade reivindi-
por volta de 40 anos, faziam pouquíssi- cado pelas parturientes em narrativas que
mos partos e ainda necessitavam de con- sucedem o nascimento da criança. O fato
quistar a consideração das famílias locais, abre o leque para pensarmos essas mu-
por outro, as antigas, tal como Dona Ta- lheres no interior de uma dinâmica que,
puia e Dona Dorca, gozavam de idade se por um momento questiona a suposta
avançada, respeito e eram requisitadas unidade das parteiras de Melgaço, por ou-
diariamente em puxações e partos. Segun- tro fragiliza ainda mais a busca por uma
do Dona Dorca, as primeiras não deve- definição específica do que é ser parteira
riam ser consideradas parteiras, se levar- na Amazônia e no Arquipélago do Marajó.
mos em conta a pouca experiência com
a prática obstetrícia. Em situação diame-
tralmente oposta, as aposentadas, como REFERÊNCIAS
Dona Bené e Dona Chiquita, apesar de Cardoso de Oliveira, R. 2003. Sobre o pensamento
se aposentarem e/ou terem sido aposen- antropológico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
tadas não prescindiam de um lugar de
Crapanzano, V. 1986. Hermes’ Dilemma: the
destaque junto à memória local, posição masking of subversion in ethnographic des-
que lhes garante respeito. cription, in Writing Culture. The poetics and politics
A teia de acordos e conflitos é amplifi- of ethnography. Editado por J. Clifford e G. E.
cada na importância que muitas dessas Marcus, pp. 51-76. California: University of
California Press.
mulheres associavam à participação e
integração efetiva na associação de gru- Mauss, M. 1974 [1923-24]. Ensaio sobre a dá-
pos governamentais ou não. O porte de diva. Forma e razão da troca nas sociedades
camisas, bolsas e instrumentos diversos arcaicas, in Sociologia e Antropologia. M. Mauss,
recebidos marcavam diferenças e canali- pp. 37-184. São Paulo: EPU.
zavam autoridade entre parteiras associa- Zelizer, V. 2005. Circuits within capitalism, in
das e não associadas. A compreensão da The economic sociology of capitalism. Organizado
ação e efeitos dos cursos e políticas pú- por V. Nee e R. Swedberg, pp. 289-322. Prin-
blicas sob a ótica e interpretação local ceton: Princeton University Press.
das detentoras do saber obstetrício não
oficial representa para Soraya Fleischer
uma alternativa para se pensar a eficácia
e as diversas formas de intervenção do
Estado.
Conforme ressaltado pela autora, os inú-
meros conflitos e relações de poder tangí-

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Resenhas

artificial, aos laços entre pensamento


científico e mítico, bem como revela suas
inquietações relativas às afinidades entre
as diversas formas de “explosão ideológi-
ca” e o futuro dos integrismos.
Sabe-se que a obra de Lévi-Strauss é, hoje,
um laboratório de pensamento aberto
para o futuro e este livro vem a ser uma
introdução à inteligência sensível deste
grande autor. O livro inicia-se explorando
A ANTROPOLOGIA DIANTE DOS a antropologia como disciplina que enca-
PROBLEMAS DO MUNDO MODERNO, ra os problemas com os quais confron-
de Claude Lévi-Strauss. São Paulo: Schwarcz, ta a humanidade de hoje sem pretender
2012. ISBN 978-85-359-2140-3 resolvê-los sozinha, mas na esperança de
Mônica do Corral Vieira melhor compreendê-los, sabendo que é
necessário ter vários campos do conheci-
Doutoranda do Programa de Pós- mento dialogando entre si para compre-
-Graduação em Antropologia, PPGA/ ender mais ainda acerca do homem e suas
UFPA, bolsista CAPES. formas de viver.A preocupação é propor
que as singularidades e estranhezas
observadas junto aos grupos estudados
Na quarta viagem ao Japão feita por se ordenavam entre si de modo muito
Claude Lévi-Strauss, o autor profere três mais coerente que os fenômenos con-
conferências em Tóquio com o tema des- siderados como os únicos importantes
te livro, A antropologia diante dos problemas para fixar atenção. Observa que a divisão
do mundo moderno. Ele retorna a seus es- do trabalho entre os sexos, as regras de
critos para reler este ou aquele texto que residência, as regras de filiação e do casa-
o tornaram célebre, retomando temas mento, as proibições alimentares, as rela-
da sociedade que sempre o inquietaram, ções humanas e o modelo do parentesco
principalmente no que tange a laços entre são as primeiras formas observadas para
“raça”, cultura e história, ou ainda, pode- distinguir as sociedades umas das outras e
-se perceber estes temas como novas dar a cada uma seu lugar numa tipologia.
formas de humanismo num mundo em
plena transformação. Lévi-Strauss des- Trecho interessante do livro é o que
taca que a cultura japonesa o instigou a busca definir o que é a antropologia e
(re)pensar a antropologia e seus meios e o que faz sua originalidade. Dentre as
percebe “a importância da antropologia ambições da antropologia está a de: (1)
como novo ‘humanismo democrático’ atingir a objetividade,não se contentando
” (p. 7); ele fala sobre examinar os pro- com um tipo de objetividade que a eleva
blemas de uma sociedade que se tornou acima dos valores próprios à sociedade
mundial e interroga as práticas econô- ou ao meio social do observador, mas
micas, as questões ligadas à procriação de seus métodos de pensamento, alcan-

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Resenhas

çando formulações válidas não só para (mesmo sendo uma contribuição modes-
um observador honesto e objetivo, e sim ta) é a de nos fazer perceber que, no final
para todos os observadores possíveis, das contas, seu benefício essencial é nos
portanto o antropólogo não faz apenas inspirar certa humildade e sabedoria, uma
calar seus sentimentos, ele molda novas vez que os antropólogos estão aí para tes-
categorias mentais, contribui para intro- temunhar que a maneira como vivemos e
duzir noções de espaço e de tempo, de os valores em que acreditamos, não são
oposição e de contradição tão estranhas a os únicos possíveis; que outros gêneros
seu pensamento tradicional como as que de vida, outros sistemas de valores permi-
se encontram hoje em certos ramos das tiram, e permitem ainda, a comunidades
ciências físicas e naturais; a segunda am- humanas encontrarem a felicidade em
bição (2) é a de atingir a totalidade; onde suas formas muito específicas e peculia-
o antropólogo procura a forma comum, res de viver. Portanto, ocorre um diálogo
as propriedades invariantes que se mani- constante no sentido de mostrar que a
festam por trás dos mais diversos gêneros antropologia nos convida a respeitar estes
de vidas sociais, inclusive considerando outros modos de viver, a nos recolocar
os fatos considerados “menores”; e a ter- em questão pelo conhecimento de outros
ceira ambição (3) é a de se empenhar em usos que nos surpreendem, nos chocam
detectar e isolar níveis de autenticidade, mos- ou repugnam. Nessa perspectiva, a pes-
trando por exemplo, que 50 mil pessoas quisa evidencia que, de modo mais geral,
não constituem uma sociedade da mesma pode-se dizer que laços de parentesco e
maneira que 500 pessoas, porque no pri- casamento observados nas sociedades
meiro caso a comunicação se estabelece constituem uma linguagem comum pró-
principalmente a partir da complexidade pria a expressar todas as relações sociais,
dos “códigos” e dos “retransmissores” e sejam elas econômicas, políticas, religio-
não mais entre as pessoas ou a partir do sas, entre outras, e não apenas relações
modelo das comunicações interpessoais familiares.
(talvez por isso um antropólogo se sinta
O antropólogo convida cada sociedade
à vontade numa aldeia de 500 habitantes,
a não acreditar que suas instituições, seus
ao passo que uma cidade grande ou mes-
costumes e suas crenças são os únicos
mo média lhe resiste).
possíveis, sem falar que as sociedades
Lévi-Strauss destaca o olhar distanciado, estudadas pelos antropólogos ministram
ou Le Regardéloigné (p. 29), no qual expli- lições ainda mais dignas de ser ouvidas na
cita que a questão antropológica consiste medida em que, por todas as espécies de
em olhar muito longe para culturas muito regras, elas souberam estabelecer entre o
diferentes daquela do observador, mas homem e o meio natural um equilíbrio
também consiste que o observador olhe que não sabemos mais garantir.
para a sua própria cultura de longe, como
Outro aspecto notório está relacionado
se ele mesmo pertencesse a uma cultura
ao fato de que, no entendimento do au-
diferente. Neste sentido, o autor afirma
tor, a antropologia nos ensina que cada
que uma contribuição da antropologia
costume, cada crença – por mais chocan-

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Resenhas

tes ou irracionais que possam nos parecer com uma mulher fecunda; ou um ho-
quando os comparamos com os nossos mem pode casar-se simultaneamente ou
costumes e crenças – fazem parte de um em sucessão com várias irmãs, etc.), as-
sistema cujo equilíbrio interno se estabe- sim como também sugere quadros que
leceu ao longo de séculos, e que, desse desenvolverão evoluções ainda incertas,
conjunto, não se pode retirar um elemen- mas que estaríamos errados em denun-
to sequer sem correr o risco de destruir ciar de antemão como sendo desvios ou
todo o conjunto. perversões.
A discussão é adensada na medida em No tema seguinte, Lévi-Strauss discorre a
que Lévi-Strauss trata das novas técnicas respeito da atividade econômica e defen-
de procriação assistida – possibilitadas de que não há um modelo, e sim vários.
pelo progresso da biologia – que puseram Ele afirma que os modos de produção
em desordem o pensamento contempo- estudados pelos antropólogos, como
râneo. Ele questiona até que ponto e em colheita e apanhadura, caça e colheita,
que limites é possível transgredir as regras horticultura, agricultura, artesanato, entre
biológicas naturais e questiona também outros, representam outros tantos tipos
como definir, então, a relação entre o pa- diferentes e que não é possível ordenar
rentesco biológico e a filiação social que estes formas de atividade econômica
agora se tornam distintas. Mais que isto, numa escala comum, afinal elas repre-
ele se pergunta quais serão as conse- sentam escolhas entre soluções possíveis,
quências morais e sociais da dissociação cada uma apresentando suas vantagens e
da sexualidade e da procriação, se deve-se desvantagens. Para isto, de acordo com
ou não reconhecer o direito do indivíduo cada decisão tomada e com a forma de
de procriar “sozinho” e se uma criança atividade escolhida, deve-se ter em mente
tem o direito de aceder às informações que há um preço a se pagar. O que a an-
essenciais relativas à origem étnica e à tropologia lembra a qualquer economista,
saúde genética de seu procriador, ques- se acaso ele o esquecesse, é que “o ho-
tões estas bastante interessantes e ins- mem não é pura e simplesmente incita-
tigantes para o tempo em que vivemos. do a produzir sempre mais, ele também
Neste grande debate que atualmente se procura no trabalho satisfazer aspirações
desenrola a respeito da procriação assis- que estão arraigadas em sua natureza pro-
tida, a contribuição que podemos esperar funda” (p. 62), assim podendo realizar-se
das pesquisas antropológicas é a de nos como indivíduo, imprimir sua marca na
livrar de nossas viseiras preconceituosas e matéria, dar uma expressão objetiva à sua
compreendermos como e por que outras subjetividade por meio de suas obras. É
sociedades podem considerar simples e por estes aspectos que o exemplo das so-
óbvios costumes que nos parecem incon- ciedades chamadas primitivas pode nos
cebíveis e/ou escandalosos (um homem instruir, tendo em vista que elas se ba-
pode ter várias mulheres legítimas; ou seiam em princípios que tem como efeito
um homem casado cuja mulher é estéril converter o volume das riquezas produ-
pode se entender, mediante pagamento, zidas em valores morais e sociais, ou seja,

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Resenhas

prezando pela realização pessoal num nem um subproduto da evolução bioló-


trabalho, pela estima dos parentes e vizi- gica, o que os biólogos e antropólogos
nhos, pelo prestígio moral e social, bem devem ter em conta é que seus estudos
como pelo acordo bem-feito entre o ho- podem se ajudar mutuamente, com tanto
mem e os mundos natural e sobrenatural. que ambos também tenham consciência
de suas respectivas limitações. O autor
Quando o autor adentra o tema dos mi-
defende que para desenvolver “diferen-
tos, ele diz “o que os mitos fazem pelas
ças que permitam distinguir uma cultura
sociedades sem escrita – legitimar uma
de suas vizinhas, as condições são, grosso
ordem social e uma concepção do mun-
modo, idênticas às que favorecem as di-
do, explicar o que as coisas são pelo que
ferenças biológicas entre as populações”
elas foram, encontrar a justificativa de
(p. 77), dentre elas o isolamento relativo
seu estado presente num estado passa-
durante um tempo prolongado, as trocas
do e conceber o futuro em função, a um
limitadas, sejam elas de ordem cultural
só tempo, desse presente e desse passa-
ou genética, entre outras. Ou seja, salvo
do – esse é também o papel que nossas
a ordem de grandeza, as barreiras cultu-
civilizações conferem à história” (p. 66)
rais desempenham o mesmo papel que as
com a diferença de que cada mito parece
barreiras genéticas.
contar uma história diferente, no entanto
é a mesma história, cujos episódios são Vale ainda destacar que, toda vez que so-
dispostos de modo diferente; já a Histó- mos levados a qualificar uma cultura de
ria, acreditamos que há uma só, quando inerte ou estacionária devemos nos per-
na realidade cada partido, cada meio so- guntar se esse imobilismo aparente não
cial, cada indivíduo conta uma história vem da ignorância que nos encontramos
diferente e a utiliza para dar a si mesmo em relação aos interesses verdadeiros
razões de esperar que o futuro seja dife- desta determinada cultura, e se, com cri-
rente do presente da mesma maneira que térios diferentes dos nossos, esta cultura
o próprio presente diferiu do passado. A não é vítima da mesma ilusão a nosso
antropologia, portanto, nos faz compre- respeito, sendo assim, nós (e não eles) os
ender que o passado de nossa própria indivíduos inertes ou estacionários, sim-
sociedade, e de sociedades diferentes da plesmente pelo fato de que não oferece-
nossa, não tem apenas uma significação mos nenhum interesse para esta cultura,
possível, pois não há interpretação abso- já que em nada nos parecemos. O que
luta do passado histórico, mas sim inter- faz a originalidade de cada cultura reside
pretações que são, todas, relativas. mais no seu modo particular de resolver
problemas, de por em perspectiva valo-
No último tema abordado, Lévi-Strauss
res que são, grosso modo, os mesmos
afirma que o número de culturas ultra-
para todos os homens, mas sua dosagem
passa o número de raças e que os patri-
nunca é exatamente a mesma para cada
mônios culturais evoluem muito mais
cultura, e a antropologia se interessa em
depressa que os patrimônios genéticos.
compreender as razões secretas dessas
A evolução humana não é nem comple-
escolhas, mais do que em fazer inventá-
tamente distinta da evolução biológica,

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rios de fatos separados. Por sua vez, os


antropólogos se proíbem de formular
julgamentos sobre o valor comparado
da cultura de uns e de outros, tendo em
mente que cada cultura é impotente para
fazer julgamentos sobre outra cultura,
já que ela (a cultura) não pode se evadir
de si mesma e, portanto, sua apreciação
permanece prisioneira de um relativismo
contra o qual não há recurso.
Ao ler “A Antropologia diante dos pro-
blemas do mundo moderno”, o leitor
será levado a refletir arespeito não só dos
estudos de Lévi-Strauss, mas a refletir so-
bre o homem, a humanidade e para onde
nosso mundo caminha, podendo assim
compreender melhor o fim da suprema-
cia cultural do Ocidente, saber mais acer-
ca da sexualidade, do desenvolvimento
econômico, do pensamento mítico, bem
como aprofundar ideias no que tange à
relação entre reconhecimento da diver-
sidade cultural e o que outras culturas
podem nos ensinar. Os valores morais
são estudados em consonância com os
valores científicos e, finalmente, as subje-
tividades envolvidas na vivência humana,
tanto a singular quanto a plural (ou em
sociedade), recebem a devida atenção e
amplitude que merecem para serem me-
lhor compreendidas.

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