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Resenhas
“conceito operacional jurídico para a vida de perspectivas.” (p. 151) Analisam via
humana”. Na argumentação “quanto ao estudo de caso (biomarcadores molecu-
objeto do embrião extracorporal os ex- lares para o câncer de próstata) questões
positores pró-vida atribuem a autonomia mais gerais a respeito da forma pela qual
à sua constituição genética individual, ...” o corpo biológico é “enquadrado” pela
(p. 144-5) portanto indicando um estatu- tecnologia e oportuniza possibilidades
to pleno de pessoa humana a partir da fe- precoces de detectar e localizar tais pa-
cundação, reforçando com estas técnicas tologias. As ações “induzem” alteração
a genetização do ser humano e das rela- na experiência subjetiva do corpo e da
ções familiares, sendo “[a]ssim os genes doença, podendo até ser vista enquanto
seriam uma nova metáfora da natureza, potencial, como um determinante inevi-
corporificando a verdade essencial do ser tável. Os autores concluem oferecendo a
humano, algo que sobredetermina sua idéia como um esboço teórico dessa vira-
vontade” (p.145) Na argumentação do da ontológica incitando à necessidade de
Judiciário os embriões são considerados pensar-se para além da separação entre
“substância humana em forma de conge- significados e matéria, não apenas por
lamento” sem identidade de pessoa, “são razões teóricas, mas principalmente pelo
algo, mas não alguém” com autonomia “fato de que “híbridos” e “ciborgues” são
jurídica para consentir sobre o aproveita- crescentemente parte de como interagi-
mento de suas células, e que sem a trans- mos com nosso mundo e entre nós.
ferência para o útero, serão descartados
Tecnologias Genéticas e Identidades Étnico-Ra-
no prazo de três anos, desperdiçando-se
ciais Emergentes é o título da terceira ses-
a oportunidade de garantir a estes embri-
são de textos que inicia com o trabalho
ões, pela pesquisa, o aproveitamento para
de Elena Calvo-Gonzáles denominado
a dignidade da vida. “A consciência como
Usos Políticos da leucopenia e diferença racial
sede da humanidade é o argumento prin-
no Brasil contemporâneo. A autora apresen-
cipal no debate sobre a antecipação do
ta dois estudos de casos que abordam a
parto de anencéfalo.” (p.145) A autora
leucopenia (baixa contagem de leucócitos
conclui sustentando que a busca de mar-
– células sanguíneas) no contexto da luta
cos estruturais fixos para a condição de
sindicalista e das discussões contemporâ-
pessoa e a utilização da biologia como
neas sobre o campo da chamada “saúde
base para prescrições de ordem social,
da população negra”, para analisar dis-
reitera o fato de que o valor da natureza
cursos sobre raça enquanto realidade so-
como fundamento da condição humana
cial ou biológica e como estes discursos
é um aspecto característico da cosmolo-
mobilizam verdades que, por sua vez são
gia ocidental moderna.
mobilizadas politicamente. A associação
Marko Monteiro e Ricardo Vêncio in- da leucopenia à condição do corpo negro
troduzem o polêmico tema de como as mantém-se dentro da ambiguidade na
práticas cientificas vem produzindo “... hematologia levando a uso, até manipula-
o conceito de “molecularização” da vida dor, no contexto de processos trabalhista
e do corpo a partir de uma diversidade em casos de trabalhadores expostos ao
benzeno, podendo ora ser considerada parativa, os perfis de três empresas que
como “normal no corpo negro e ora “in- comercializam testes de ancestralidade
capacitante ao mesmo corpo” quando da genética, sendo duas nos E.U.A e uma
contratação desses trabalhadores. Calvo- no Brasil, afim de avaliar o que as apro-
-Gonzáles se remete a qualidade hibrida xima ou distancia no trato concedido ao
do conceito de raça, dialogando com a potencial revelador dos testes realidados.
literatura contemporânea sobre raça e No caso das empresas americanas, ambas
saúde e ressaltando a dificuldade em se oferecem metodologia que busca uma
separar a raça social de raça biológica, descendência direta a partir do mais dis-
concluindo que o uso do termo implica, tante ancestral de um indivíduo, através
necessariamente, que ambos os âmbitos do pai e da mãe. No Brasil, o laboratório
são mobilizados de forma consciente ou revela a miscigenação, oferecendo testes
inconsciente e terminam impactando o voltados ao perfil genético de brasileiros
quotidiano do cidadão. e os dados analisados dizem respeito a
composição genética de nove personali-
A partir de uma etnografia feita nos An-
dades negras (Milton Nascimento, Dja-
des Bolivianos entre o povo indígena
van, Seu Jorge, Neguinho da Beija-Flor,
Uro, enfocando as políticas conceituais
Sandra de Sá, Daiane dos Santos, Obina,
travadas em torno da identidade dos
Ildi Silva e Frei David) e seus depoimen-
Uro, o artigo de Michael Kent busca dar
tos diante dos resultados. O que primeiro
um melhor entendimento das condições
se concluiu no estudo é que populações e
sociais que possam levar à aceitação ou
identidades significativamente diferentes
rejeição de pesquisa genética por parte
podem emergir a partir de pesquisas ge-
desses coletivos em relação aos debates
néticas com o mesmo conjunto de amos-
sobre identidade étnica diferenciada. A
tras, a depender das tecnologias emprega-
analise dos dados revela a relação da ge-
das e das partes do DNA que são focadas,
nética com processos e registros sociais,
bem como do tipo de marcadores que
alcançando os processos políticos nos
são utilizados. E quanto à receptividade
quais estão imersos. No caso específico
ou não dos resultados por parte dos sujei-
a análise genética não oferece afirmação
tos, a interpretação esta ligada as experi-
positiva de identidade diferenciada, mas
ências individuais específicas construídas
responde à contestação social, sendo in-
em torno dos testes de ancestralidade
terpretada dentro de valores do campo
genética e são parcialmente moldadas
das políticas conceituais entre repertórios
pelas expectativas e desejos preexistentes
biológicos e sociais. O artigo se encerra
do usuário. Os autores enfatizam que a
com uma discussão preliminar das con-
interpretação dos resultados de um teste
sequências sociais da incorporação do
de ancestralidade genética pode interferir
conhecimento genético no debate so-
em dimensões que vão além do senso de
bre a identidade dos Uro.
identidade e “criação” pessoas e persona-
Gaspar Neto, Santos e Kent exploram, lidades ou núcleos familiares ancorados
no artigo seguinte da sessão, a partir de em uma pretensa ancestralidade comum,
uma perspectiva antropológica com- destacando os complexos processos de
çando formulações válidas não só para (mesmo sendo uma contribuição modes-
um observador honesto e objetivo, e sim ta) é a de nos fazer perceber que, no final
para todos os observadores possíveis, das contas, seu benefício essencial é nos
portanto o antropólogo não faz apenas inspirar certa humildade e sabedoria, uma
calar seus sentimentos, ele molda novas vez que os antropólogos estão aí para tes-
categorias mentais, contribui para intro- temunhar que a maneira como vivemos e
duzir noções de espaço e de tempo, de os valores em que acreditamos, não são
oposição e de contradição tão estranhas a os únicos possíveis; que outros gêneros
seu pensamento tradicional como as que de vida, outros sistemas de valores permi-
se encontram hoje em certos ramos das tiram, e permitem ainda, a comunidades
ciências físicas e naturais; a segunda am- humanas encontrarem a felicidade em
bição (2) é a de atingir a totalidade; onde suas formas muito específicas e peculia-
o antropólogo procura a forma comum, res de viver. Portanto, ocorre um diálogo
as propriedades invariantes que se mani- constante no sentido de mostrar que a
festam por trás dos mais diversos gêneros antropologia nos convida a respeitar estes
de vidas sociais, inclusive considerando outros modos de viver, a nos recolocar
os fatos considerados “menores”; e a ter- em questão pelo conhecimento de outros
ceira ambição (3) é a de se empenhar em usos que nos surpreendem, nos chocam
detectar e isolar níveis de autenticidade, mos- ou repugnam. Nessa perspectiva, a pes-
trando por exemplo, que 50 mil pessoas quisa evidencia que, de modo mais geral,
não constituem uma sociedade da mesma pode-se dizer que laços de parentesco e
maneira que 500 pessoas, porque no pri- casamento observados nas sociedades
meiro caso a comunicação se estabelece constituem uma linguagem comum pró-
principalmente a partir da complexidade pria a expressar todas as relações sociais,
dos “códigos” e dos “retransmissores” e sejam elas econômicas, políticas, religio-
não mais entre as pessoas ou a partir do sas, entre outras, e não apenas relações
modelo das comunicações interpessoais familiares.
(talvez por isso um antropólogo se sinta
O antropólogo convida cada sociedade
à vontade numa aldeia de 500 habitantes,
a não acreditar que suas instituições, seus
ao passo que uma cidade grande ou mes-
costumes e suas crenças são os únicos
mo média lhe resiste).
possíveis, sem falar que as sociedades
Lévi-Strauss destaca o olhar distanciado, estudadas pelos antropólogos ministram
ou Le Regardéloigné (p. 29), no qual expli- lições ainda mais dignas de ser ouvidas na
cita que a questão antropológica consiste medida em que, por todas as espécies de
em olhar muito longe para culturas muito regras, elas souberam estabelecer entre o
diferentes daquela do observador, mas homem e o meio natural um equilíbrio
também consiste que o observador olhe que não sabemos mais garantir.
para a sua própria cultura de longe, como
Outro aspecto notório está relacionado
se ele mesmo pertencesse a uma cultura
ao fato de que, no entendimento do au-
diferente. Neste sentido, o autor afirma
tor, a antropologia nos ensina que cada
que uma contribuição da antropologia
costume, cada crença – por mais chocan-
tes ou irracionais que possam nos parecer com uma mulher fecunda; ou um ho-
quando os comparamos com os nossos mem pode casar-se simultaneamente ou
costumes e crenças – fazem parte de um em sucessão com várias irmãs, etc.), as-
sistema cujo equilíbrio interno se estabe- sim como também sugere quadros que
leceu ao longo de séculos, e que, desse desenvolverão evoluções ainda incertas,
conjunto, não se pode retirar um elemen- mas que estaríamos errados em denun-
to sequer sem correr o risco de destruir ciar de antemão como sendo desvios ou
todo o conjunto. perversões.
A discussão é adensada na medida em No tema seguinte, Lévi-Strauss discorre a
que Lévi-Strauss trata das novas técnicas respeito da atividade econômica e defen-
de procriação assistida – possibilitadas de que não há um modelo, e sim vários.
pelo progresso da biologia – que puseram Ele afirma que os modos de produção
em desordem o pensamento contempo- estudados pelos antropólogos, como
râneo. Ele questiona até que ponto e em colheita e apanhadura, caça e colheita,
que limites é possível transgredir as regras horticultura, agricultura, artesanato, entre
biológicas naturais e questiona também outros, representam outros tantos tipos
como definir, então, a relação entre o pa- diferentes e que não é possível ordenar
rentesco biológico e a filiação social que estes formas de atividade econômica
agora se tornam distintas. Mais que isto, numa escala comum, afinal elas repre-
ele se pergunta quais serão as conse- sentam escolhas entre soluções possíveis,
quências morais e sociais da dissociação cada uma apresentando suas vantagens e
da sexualidade e da procriação, se deve-se desvantagens. Para isto, de acordo com
ou não reconhecer o direito do indivíduo cada decisão tomada e com a forma de
de procriar “sozinho” e se uma criança atividade escolhida, deve-se ter em mente
tem o direito de aceder às informações que há um preço a se pagar. O que a an-
essenciais relativas à origem étnica e à tropologia lembra a qualquer economista,
saúde genética de seu procriador, ques- se acaso ele o esquecesse, é que “o ho-
tões estas bastante interessantes e ins- mem não é pura e simplesmente incita-
tigantes para o tempo em que vivemos. do a produzir sempre mais, ele também
Neste grande debate que atualmente se procura no trabalho satisfazer aspirações
desenrola a respeito da procriação assis- que estão arraigadas em sua natureza pro-
tida, a contribuição que podemos esperar funda” (p. 62), assim podendo realizar-se
das pesquisas antropológicas é a de nos como indivíduo, imprimir sua marca na
livrar de nossas viseiras preconceituosas e matéria, dar uma expressão objetiva à sua
compreendermos como e por que outras subjetividade por meio de suas obras. É
sociedades podem considerar simples e por estes aspectos que o exemplo das so-
óbvios costumes que nos parecem incon- ciedades chamadas primitivas pode nos
cebíveis e/ou escandalosos (um homem instruir, tendo em vista que elas se ba-
pode ter várias mulheres legítimas; ou seiam em princípios que tem como efeito
um homem casado cuja mulher é estéril converter o volume das riquezas produ-
pode se entender, mediante pagamento, zidas em valores morais e sociais, ou seja,