Você está na página 1de 18

POLíTICA E TECNOCRACIA

THE,rÍSTOCLES BRA:\'DÃO CAVALCA:\'Tl

.\ grande reyolução da nossa época. com grayes implica-


ções sôbre o comportamento do homem, é o progresso cien-
tífico e a sua utilização não só para aumentar o bem-estar
e talvez a felicidade humana, mas também na organização da
estrutura do Estado e elaboração da técnica de goyêrno.
Por isso mesmo, não seria lícito admitir a conservação
de uma estrutura tradicional, quando o meio se transforma e
os recursos humanos, para viver, alcançam alto grau de efi-
ciência e profundidade. ~enhuma razão existe também
para conservar as técnicas tradicionais de govêrno e adminis-
tração em um mundo transtornado por novas técnicas e pelo
progresso científico.
Se a ciência ele goyêrno foi a que menos progrediu, não
tendo podido ainda sequer utilizar os milhares de pesquisas e
estudos realizados sôbre os problemas de govêrno e o com-
portamento político. nada impede que também o progresso
científico seja incorporado à técnica do govêrno na realização
dos fins comuns da humanidade.
:\"ão quer isto significar nem que o govêrno se deva
transformar em academia científica, nem que os técnicos
devam dominar os políticos, eliminando precisamente o que
ele humano e imponderável se encontra nas decisões políticas.
Não. O que se pode pretender é impregnar a tarefa do go-
\'êrno ele material técnico e científico. sem eliminar o con-
teúdo sutil das soluções políticas.

R. Cio pol.. Rio de Janeiro. 3 (2): 3-20. ah ... !jlln. 1969


-1-

o que se pode pretender é aplicar no processo e na obra


de govêrno, tôda essa riqueza obtida pela investigação e pelo
estudo da ciência, subtraindo um pouco da decisão política
naquilo que ela possa ter de arbitrário, pelo menos naquelas
áreas em que o pensamento humano já atingiu alturas ponde-
ráveis.
Não que a política tenha de ser dirigida por uma casta
de intelectuais ou de técnicos que teriam o privilégio de en-
contrar nas formas mágicas da verdade científica. a verdade
política.
A tese não é nova e tem mesmo numerosos prosélitos que
procuram envolver os intelectuais nas direções partidárias.
Nos Estados Unidos já foi objeto de graves discussões
êsse tema; até expressões irônicas ou jocosas foram lançadas
aos intelectuais que procuram encontrar na política soluções
que os políticos não conseguiram até hoje.
O Professor LIPSET em seu livro Political A1an analisa
com muita perspicácia êsse tema, que envolve muitas vêzes
certas manifestações de esnobismo, comum entre os que par-
ticipam de falsos setores da vida intelectual.
Também no Brasil não escapamos dessas soluções nos
vários episódios de salvação nacional nas crises políticas.
Mas não é dessa participação ativa dos intelectuais de
que se cogita; o que se pretende é apenas verificar como os
homens de ciência podem participar da vida política e ad-
ministrativa do Estado, como devem agir, quais os limites
dessa participação, qual a área em que sómente o poder po-
lítico de decisão deve prevalecer.
O problema sugere algumas dificuldades ele base porque
infelizmente as observações de quantos estudaram o meca-
nismo democrático, em qualquer país do mundo, não são
das mais lisonjeiras quanto ao resultado da seleção qualitativa
dos valôres na organização dos órgãos representativos. Pode-
ria mencionar aqui os mais variados depoimentos.

Re\ista de Cil'ncia Política


:J

A correção dessa deficiência qualitativa dos órgãos de


govêrno e principalmente dos parlamentos, dificilmente po-
derá ser realizada dentro das concepções tradicionais, mas
seria exeqüível, sem dúvida, através de uma reformulação das
estruturas políticas, permitindo-se uma influência maior dos
que podem fornecer elementos qualitativamente mais efica-
zes para a realização da obra de govêrno.
A. participação inevitável de homens de ciência, das or-
ganizações de estudos e pesquisas para elaboração e execução
efetiva dos planos governamentais, é a grande inovação das
novas estruturas políticas.
Sentimento dominante dos que se preocupam com o as-
pecto técnico do problema de govêrno é aquêle que se ajusta
às críticas de numerosos autores como JAMES BUR:"JHAM em
sua Managerial Revolution ou de BOULDI:"J em lino seme-
lhante, mas onde os conceitos éticos estão mais presentes.
O perigo contrário é o domínio puro da ciência com a
redução do homem que deve ser, afinal, um centro de tôdas
as preocupações e interêsses.
O perigo é a supremacia ou o primado absoluto dos téc-
nicos, a chamada tecnocracia, com a repercussão exagerada da
Técnica sôbre a Filosofia com a interferência dos técnicos na
área própria da decisão política .
.-\ invasão dessa área pode importar naquilo que já se cha-
mou de "redução do humano" nas soluções dos problemas de
govêrno é o aspecto negativo da solução.
A tecnocracia, entretanto, para muitos, se apresenta co-
mo uma modificação na arte de governar, fundada em ou-
tros valôres, na participação de fatôres diferentes, na con-
ceituação própria do fenômeno político.
A sofocracia de PLATÃO, a sociocracia de COMTE, são
idéias precursoras de uma solução que só com o progresso so-
cial equivalente ao progresso industrial ou tecnológico pode-
na prosperar.

"bril,junho 1969
li

:\ão obstante essa dificuldade. algumas lentatlyaS de


conciliação do poder político com os técnicos têm sido exe-
cutadas em setores que permitem uma elaboração mais ínti-
ma e uma distribuição de tarefas na realização de objeti"os
comuns. É o que ocorre na numerosa legislação delegada ou
de ação administratiya executada pelos órgãos especializados
com funções mais ou menos executivas.
Exemplo típico dessa solução foi aquela adotada pela
Lei de Diretrizes e Bases da Educação ?\'acional, com a trans-
ferência aos Conselhos de Educação de uma parcela impor-
talHe das funções legislati"as e executiyas. naquilo que diz res-
peito à definição. à conceituação e execução do próprio sis-
tema educacional.
:\esse particular. reseryou-se ;\ lei uma definição mínima.
deixando o essencial aos órgãos técnicos especializados de
execução.
A. opção política limitou-se a lralar as linhas essenciais do
sistema, cujas características básicas são a descentralização e
a flexibilidade. princípios que encontram a sua realização na
ação de ~ll'Iltiplos conselhos regionais de educação.
Deye-se reconhecer que muito limitada foi no caso a
ação legislatiya. se considerarmos a amplitude da competên-
cia dos órgãos de execução. A. própria solução adotada tor-
nou irrelevante a continuidade da ação legislatiya. transfe-
rindo para os órgãos técnicos a escolha dos meios para orien-
tar a política educacional mais con\"eniente em detalhes fun-
damentais.
Será melhor. será pior. esta solução~ Tudo dependerá do
comportamento dêsses órgãos.
Os seus elementos são tão humanos como os políticos, os
seus interêsses, entretanto. estão mais próximos dos objetiyos
do que os próprios interêsses dos políticos: sofrem também
pressões. são dominados pelas mesmas paixões. sofrem, além
do mais, a influência de idéias preconcebidas e de preconcei-
lOS doutrinários.
i

Terão, talvez, a vantagem de melhor conhecer os instru-


mentos que manipulam e principalmente, de possuir uma
liberdade de ação, uma flexibilidade no comportamento que
não podem ter os legisladores políticos.
Se não sofrem o impacto demagógico que deforma fre-
qüentemente as legítimas soluções políticas e democráticas,
padecem entretanto das deformações profissionais e ideológi-
cas tão perniciosas quanto as famosas injunções políticas.
~essa colaboração da técnica e da política é preciso in-
dagar até onde vai ou deve ir a influência e a atuação das
soluções técnicas? Até que ponto deve ser aceita a incidên-
cia dessas soluções na área política? Quais as vantagens dos cri-
térios sôbre os políticos? Como dividi-los?
São questões que não podem ter resposta uníssona. Nem
mesmo nos regimes totalitários, quando os setores públicos e
privados se nivelam e onde se poderia abstrair as soluções po-
líticas, os critérios políticos ideológicos são dominantes na
realização dos objetivos, com sacrifício da liberdade científica
e com a submissão dos técnicos aos objetivos do Estado.
~os países subdesenvolvidos o campo maior não é pa-
ra interferência dos técnicos, embora freqüentemente o pro-
gresso tecnológico supere o desenvolvimento político, porque
a ação política se acha valorizada pela exploração de uma in-
fra-estrutura popular débil, acessível principalmente à solu-
ção demográfica.
Por outro lado, nem sempre as soluções técnicas são as
mais adequadas e convenientes às contingências políticas. Fre-
qüentemente as melhores soluções técnicas ou científicas são
as que mais se coadunam com os interêsses políticos.
I'\a minha opinião, com o que diz os problemas jurídi-
cos que também podem ser considerados técnicos, na ma-
neira de formular soluções que transcendem do político, es-
tou bem certo de sua nenhuma incompatibilidade com as
decisões políticas.

abril., junho 1969


- :-;-

Diríamos mesmo que a política faz pane do próprio con-


teúdo da ordem jurídica que. na regulamentação da vida so-
cial, reserva uma área estranha ao poder normativo ou ao
puro tecnicismo jurídico, para apreciação livre da conveni-
ência e da oportunidade, e que o Direito usa como instrumen-
to para dar maior flexibilidade :1 execução da própria nor-
ma jurídica.
Os próprios llonnatn'lstas onodoxos, como KELSE;-'\) já
evoluíram nesse sentido, transigindo com estas limitações ao
puro Direito objetivo.
Seria, entretanto, absurdo alargar a área do político e
estabelecer o seu primado, porque é o justo equilíbrio entre
o Direito e a Política como entre o Direito e a Técnica, co-
mo entre a Técnica e a Política que protege o homem das so-
l uções totalitárias.
l\:ão tenho nenhum desprêzo pela Política, pois consi-
dero-a como ciência e como arte. uma das condições da vida
da democracia.
Compreendo, por isso, o homem que úve para a Política
como maneira de realizar um ideal o objetivo humano, in-
tegI-ando-se em uma estrutura partidária e manipulando os
instrumentos sutis do poder político. O que não compreendo
é aquêle que viye ela política, alimentando-se dos seus favo-
res, das suas transigências. dos seus equívocos e com êles se
mancomunanclo em benefício próprio. O que não compre-
endo é a vida política sem vocação ou a posição duvidosa que
procura conciliar uma suposta lealdade política com alguma~
convicções íntimas contraditórias.
É sabido que a política. isto é, o poder de decisão polí-
tica, se caracteriza. antes de tudo, pela possibilidade de esco-
lha, de opção entre diversas soluções, geralmente a mais con-
\'eniente ou a mais oportuna.
É aqui precisamente que nasce o conflito que envolve o
exame, em sua profundidade_ da própria decisão, quanto ao
seu conteúdo ético. condição cle sua legitimidade.
- ~I -

É precisamente a avaliação, no sentido prático, da solu-


ção técnica e do valor da decisão política, que gera o confli-
to,
.-\ indagação será sempre a mesma: por que deverál
prevalecer a solução política se a solução recomendada é tec-
nicamente a melhor? Será a solução de conveniência a me-
lhor, só pelo fato de atender a outra ordem de interêsse de
grupo, de partido, etc.?
O pressuposto é que a solução política no regimc de-
mocrático exprime apenas a vontade popular.
Éexatamente o drama de quem procura em pressupostos
éticos ou científicos as bases do comportamento político.
Por isso é que RAYMOND ARON, prefaciando a obra de
MAX WEBER, Le savant et le politique) escreveu estas pala-
vras que exprimem bem êsse conflito:
".-\ dificuldade do professor que deseja entrar na política
decorre da disciplina e da doutrina dos partidos. Não existc
nenhum sociólogo ou economista que seja capaz de conside-
rar ao pé da letra o programa de qualquer partido político,
em qualquer país do mundo, em qualquer época. Ele só po-
de aderir, na melhor das hipóteses, usando daquilo que se
chamava em matéria religiosa de interpretação simbólica".
E acrescenta mais adiante:
"Daí resulta para o professor de Ciências Sociais que
deseja permanecer politicamente ativo, uma tensão penna-
nente. Tensão mais ou menos intensa segundo o grau de de-
sonestidade característica das discussões, variável segundo o
país e o grau de disciplina partidária exigida".
E é aqui que surge o problema mais grave, que é o da
lealdade política, para quem deseja ficar fiel à sua cons-
ciência.
Como se vê, o problema contém elementos dos mais
variáveis, não se devendo nunca desprezar, no meu entender.

,,"ril jUllho 1969


-111-

o conteúdo ético li ue eSl;l na essência de lOdo o problema de


comportamento.
~Ias, se poder de decisão política está sUjeIto a crítica,
tem a seu fayor alguns elementos ponderáveis que corres-
pondem às dificuldadcs quc comportam as dccisões puramcn-
te técnicas.
:\csse particular, não podcríamos deixar de cnumerar
algumas razões apol1ladas por GREGOIRE em um excelente rc-
latório sôbrc qual o papel dos técnicos na yida política.

1.
o raCiOCl11l0 científico exige o uso dc dados quantitati"os.
Ora, apesar do progresso das ciências humanas, nada permi-
te afirmar que os fatôrcs dc que dependc a conduta dos ne-
gócios públicos scjam quantificá"eis. Tudo leva a provar
que, pelo contdrio. os elcmentos ideológicos e religiosos são,
por natureza, irredutÍ"eis a número.

:\ em sempre as soluções mais lógicas são as mais exeq üÍ\·cis. A


circunstância de existir solução científica para um problema,
e mesmo dc permitir solução lógica. não basta para que seja
considerada a mais adequada.

~.

\1 uitas yêzes a simples colocação do problema significa uma


escolha, uma opção. Por exemplo, colocar o problema do
ensino em têrmos de ensino público e ensino privado pres-
supõe o reconhecimento do ensino priyado. A menos que
não se subordine a Ciência a determinado sistema filosófico
ou confessional, não existe nenhum processo que permita for-
mular ou realizar cientificamente uma tal opção. A despoliti-
zação de problemas fundamentais será portanto ou um mito
ou uma operação política em si mesma. Daí se concluir quc a
yerdade científica ncm sempre é a \erdade política. c por-
-11 -

tanto, o poder de decisão política é indeleg,íyel e não deverá


caber à Ciência.
A. tese, como se yê. tem inúmeras facêtas diferentes.
O técnico. o perito. considera o caso particular, o obje-
tiyo definido e restrito do problema com o qual se acha fa-
miliarizado e sóbre o qual está habilitado a emitir uma opi-
nião fundada em estudos e pesquisas .
.\las o drama do perito é que nenhum problema é iso-
lado no mundo. Cada um representa o elo de uma cadeia de
outros problemas específicos, relacionados, por sua vez, com
numerosos outros problemas. mas também especializados. ca-
ela qual em sua própria área.
Verifica-se, além do mais. Ullla complicação crescente de
cada problema. à medida que se multiplicam os diversos pla-
nos, passando do local para o regional. para o nacional, para
o internacional e. segundo parece. para outros planos es-
peCIaIS.
Os Professôres JOHR e SI:\GER fizeram sôbre o assun-
to uma interessante análise para mostrar a interdependência
elos problemas econômicos. notadamente a repercussão dos
mesmos no campo jurídico. no campo legislativo. etc.
Daí uma tendência que se propaga no sentido do ensi-
no e das pesquisas interdisciplinares. resultado ela complexi-
dade dos problemas e das soluções. pondo em xeque, de al-
guma forma, os que se apresentam como os senhores absolu-
tos das "erdades e das soluções .
.\las é preciso não confundir. também, a colaboração
técnica com a tecnocracia que pressupõe a transferência do
poder de decisão dos políticos para os técnicos. Quando êstes
tiverem a última palavra na escolha das soluções e o poder
de torná-las efetivas. então a transferência se terá operado e
o político terá desaparecido em sua expressão democrática
e representativa .
.\fas, para eYÍtar êsses perigos c assegurar a liberdade.
c preCISO uma reforma de base na f'strutura e no comporta-

,,"ril junho 19m


- 1~ -

mento político. É preciso ter bem nítida a idéia de que a


solução dos problemas políticos, econômicos e sociais da
atualidade não podem ter um sentido puramente formal ou
institucional, por mais graves que sejam as conseqüências do!'>
males de uma estrutura institucional de funcionamento im-
perfeito. O importante são os problemas de base e que in-
teressam à própria estrutura da sociedade, aquêles relativos
às condicões
, do homem. condicões
, de trabalho, de alimenta-
ção, de subsistência, de habitação, de educação, de vida e que
não se podem mais resolver só politicamente, porque sem os
recursos da Ciência e da Técnica não se encontrará a verda-
deira fórmula para dificuldades que o uso dos processos po-
líticos e técnicos rotineiros só fizeram agravar.
Os grandes problemas políticos, êstes sim, permanentes.
são os ideológicos. os mesmos que afligiram a humanidade
durante séculos. que foram formulados desde ARISTÓTELES
passando por LOCKE, l\IONTESQUIEU, ROUSSEAU, KARL MARX
e que se poderiam reduzir a uma meia dúzia, como o da
separação dos podêres, garantia da liberdade contra o poder
pessoal, a divisão das formas de Govên1O como disciplina
na classificação dos órgãos de Estado. seus podêres, seu me-
canismo, a igualdade como condição do progresso social, ori-
gem ideológica do nacionalismo e da autodeterminação, a
vontade geral como fonte da representação popular e da de-
mocracia igualitária, da soberania inalienável. como origem
histórica da emancipação social e econômica, a lllta de classes
como instrumento da revolução social e da igualdade econô-
ll1lCa.

São idéias que fermentam o caldeirão humano, à pro-


cura de formas políticas definitivas de felicidade e de paz.
Considero, por isso mesmo, secundários os debates em
tôrno de formas políticas usadas e superadas que se reduzem
a uma opção, por exemplo. entre parlamentarismo e pre-
sidencialismo, ou então. da possibilidade do parlamentaris-
mo na federação. todos debates esgotados pelos fatos vividos,
por uma realidade que não se conhecia na helle époqlle do
nosso constitucionalismo.
- I ~~ -

É preciso bem compreender que essa minha afirma-


tiva não significa nenhum desmerecimento do problema ins-
titucional, mas apenas a convicção de que o seu funciona-
mento será sempre precário quando não se fundar em uma
estrutura política e social adequada.
O que impressiona precisamente o observador é o pro-
blema do comportamento político e o da mecânica do siste-
ma político, quando o povo não está habilitado a exercer o
seu poder ou quando a organização partidária ou eleitoral
não se ajusta às condições especiais e peculiares a cada país.
A afirmação parece simplista e elementar, mas não dei-
xa por isto de ser verdadeira, e tanto mais importante quan-
do geralmente desatendida sistemàticamente na elaboração
da legislação específica.
N'ão tem sido bastante considerada na formulação dêsse
problema que apresenta e a preponderância das massas da di-
nâmica do Estado moderno modificou ele todo em todo o
velho sistema paternalista, sôbre o qual ainda se procuram
assentar as instituições políticas.
São razões que levam a exigir que a organização dos par-
tidos políticos e o sistema eleitorai se transformem para me-
lhor se ajustarem às novas condições em que se realiza o pro-
cesso democrático.
As conseqüências dessa resistência a mudanças funda-
mentais nas instituições não podem ser mais desastrosas por-
que, na prática, revelam apenas, de maneira clara, a insatis-
fação das massas, através da composição de órgãos represen-
tativos que exprimem uma reação sem profundidade, e base
lógica do que de efetivo interêsse da massa eleitoral pelo re-
sultado de sua participação.
Quando não se revestem, por vêzes, do caráter grotesco
do fenômeno Cacareco, em São Paulo, que tem explicações
sociológicas e políticas bem claras de insatisfação, geralmente
se apresentam como a influência de falsos líderes, puramente
demagógicos. inaptos ao exercício do poder político. :t<'.ste

ahril !junho 1969


- 11 -

animal do Jarelim Zoológico recebcu peno ele lOO.OO() \"otos


de protesto contra as listas políticas. Foi um fenômeno ele
despolitizac,ão elo eleitorado. embora transitório.
O que caracteriza a e\"oluc,ão elo eleitorado é uma pro-
gressi\"a mobilização c intcgração das massas no mecanismo
elo poder. na cxpressão de GI:\O GER\IA.:\I. ~Ias essa integra-
ção não sc \"crificará realmcnte. como processo eficaz de
progresso social c político. se ela não ti\"er as condições ele-
mentares para uma colaboração efeti\"a e consciente das mas·
sas na organização elo poder.
Daí precisamente os processos de seleção e os critérios ele
qualificação que precedem o exercício do voto e a existência
de diversos sistemas eleitorais quc se elevem ajustar às condi-
c;ões peculiares de cada país .
.-\ participação necessária dc maior número de eleitores.
cm conseqüência do processo de elesen\"oh'imento, precisa
ser incenti\"ada, como imperativo do próprio fenômeno de
tomada de consciência, atra\"és de proYidências institucionais,
para não gerar imatisfações naquilo que deve ser considera-
do aspiração justa cm tôelas as camadas sociais. a participa-
ção na organização do poder.
É êste o sentido da minha afirmação. que o problema
elas formas políticas é, por assim dizer, secundário, diante da-
queles que se referem à infra-estrutura política e social, a me·
d.nica do sistema eleitoral c dos organismos associati\"os que
participam da formacão do poder. como os partidos políticos.
os sindicatos. etc.
O objetivo maior de\"c ser. portanto. propiciar a parti-
cipação de tôdas as classcs no processo político, eliminando o
conceito de classe dominante. mas sem esquecer ao mesmo
tempo de conservar um critério qualitati"o para aquêles
que participam da formação do poder.
É preciso não esquecer a observação de LOWE:\"STEI:\"
(Political Power, p. 262). que o comportamento da massa.
cmbora com caracterí'iticas próprias. reprcsenta o comporta-
- Eí-

mento dc seus membros ineliYidualmcnte considerados, em-


bora sofrendo as naturais distorçôes dos movimentos coleti-
\"os.
A realidadc é quc a intcgração elas massas no processo
político. sem preparo prévio. conduz a resultados impre-
vistos.
Dizem que o sufrágio uniycrsal sem o voto do analfa-
beto é uma mistificação do próprio sistema. :'\ão abonamos
a tese, porque entendemos que, para o exercício de qual-
quer direito, pressupõe-se a capacidade, que tem a sua me-
dida nas condições indispensáveis ao seu exercício e dificil-
mente será possíyel admitir ao analfabeto alguns dêsses re-
quisitos mínimos, não obstante os nO\'os métodos de pro-
paganda audiovisuais.
A. verdade é que êsses métodos, aplicados com obje-
tivos pessoais e eleitorais sofrem, utilizados pela demagogia,
naturais deformações, porque a sua ação se exerce precisa-
mente sôbre os sentidos, afetando mais a sensibilidade que a
inteligência, o raciocínio.
Parecem-me, por isso mesmo, exageradas as teses dos que
atribuem, como o ilustre Professor HER:\fES LIMA, exclusiva-
mente ao presidencialismo as chamadas "razões da crise".
E não me parecem infundadas, porque o comportamen-
to humano, no terreno político como no social. não influi di-
retamente na forma das instituições.
Estas podem melhorar o comportamento, ou afrouxá-lo,
mas os defeitos orgânicos da sociedade não se corrigem ex-
clusivamente com a modificação da forma dos seus órgãos elc
cúpula.
Reconheço, por exemplo, que a afirmação do ilustre Dr.
JosÉ AUGUSTO quanto à localização ou definição de certas
crises, bem como a sua caracterização, em função de alguns
traços essenciais do sistema presidencial, favoreceu o desen-
volvimento de conhecidas deformações autoritárias. seguindo
a tradição dos nossos caciques e fazendo sobreviver nas ins-

ahril 'junho 190~)


- ]t, -

titUlçoes democráticas algumas qualidades. aliás. positivas.


dos nossos chefes aborígenes.
Entendo que o presidencialismo impediu também o aces-
so à liderança política de muitos que teriam encontrado essa
oportunidade no sistema parlamentar. permitindo maior
circulação de partidos no Govêrno.
;\1as é evidente que, se não fizermos certas correções no
comportamento político e não melhorarmos a seleção e o
aprimoramento político das massas, a influência que estas
poderão ter na organização do poder serão negativas e não
há parlamentarismo que corrija, antes poderá agravar a si-
tuação com o acesso ao poder de líderes demagógicos ou ca-
rismáticos despreparaelos para o seu exercício.
O problema e a crise j;í vêm, portanto, de longe, elo
abandono do homem de seus interêsses mínimos, intelectuais.
físicos, econômicos. por parte de todos os nossos governos.
?\enhum trabalho eficaz a sério tem sido realizado para
eliminar o analfabetismo, para incentivar a formação profis-
sional e técnica, para constituição de uma infra-estrutura so-
cial capaz de suportar o progresso econômico e social do
País.
A. nossa realidade constitucional, repito, deve ser outra.
menos de forma do que de conteúdo. porque ela se assenta
na análise da estrutura e elo mecanismo de base do regime
como organização partidária, sistemas eleitorais, estrutura
administrativa, órgãos de planejamento e assessoria dos po-
dêres, formação de técnicos em número suficiente para su-
portar as responsabilidades de uma infra-estrutura sólida no
campo administrativo. científico e profissional.
Sem êsse apoio, sem essas bases, que precisam ser não só
ti uantitativamente importantes, mas que o devem ser tam-
bém qualitativamente, não se pode falar em clesenvolvimen-
tismo, porque seria admitir uma sociedade econômicamente
instruída com uma estrutura colonial.
?\ão é preciso demonstrar em que nível se realiza, em
nossos dias. a competição internacional. em que nível se
- 17 -

situa hoje em todo o mundo civilizado a organização política


e governamental.
Para isso também é que os órgãos do poder se recondi-
cionam para sobreviver. apelando para a colaboração téc-
nica e científica.
O poder executivo se transforma, apoiando-se em nume-
rosas comissões, assessôres, entidades descentralizadas, pro-
curando realizar aquilo que o Professor WHEARE chamou de
govêrno por comissões com funções, nem sempre específicas,
mas que correspondem a setores de atividades especializadas,
preenchidos principalmente por homens representativos da
Ciência e da Técnica.
Poucos imaginam o que representam na vida política e
econômica dos Estados Unidos as Comissões de Energia e os
órgãos controladores dos vôos espaciais.
DON PRICE J em seu excelente livro sôbre O Govêrno e a
Ciência mostra com abundância de detalhes o poder imenso
dos comitês e assessorias, com larga penetração nos setores
mais secretos da política interna e externa.
Esta assessoria científica nesses setores fundamentais da
política, da segurança e da economia dos Estados Unidos es-
tende-se profusamente às Universidades técnicas como Massa-
chusets Institute of Tecnology, a Universidade George
Washington, com o seu Human Resources Research Office e
a Universidade Johns Hopkins.
Mas não só o Executivo se reestrutura. Também o Le-
gislativo procura se apertar através de novos processos. Men-
cionaremos apenas a reorganização de seus trabalhos internos,
e a delegação de suas funções legislativas.
São ambas processos que visam a suprir as deficiências
técnicas das Assembléias, constituídas à base de influências
políticas e não de capacidade intelectual, profissional ou
técnica.
Os seus critérios de julgamento são próprios, porque
exprimem com maior ou menor fidelidade a soma dos in-

ahril/junho 1969
- IR-

terêsses dos inelidcluos c dos grupos SOCiaiS, econômicos c


científicos elo Estado.
Para decidir. entretanto, precisam de informações, de
esclarecimentos, de dados. que permitam dar solução acer-
tada às proposições que alí circulam, precisam decidir com
conhecimento de causa. Daí a complicada assessoria legislati-
va. Pergunta-se, porém, qual a eficácia dessa assessoria? Até
onde os representantes do povo consideram a opinião dos
assessôres? Qual a capacidade que têm êsses homens para
pensar a decisão tecnicamente certa e acertadamente política?
Eis uma indagação que desafia a argúcia da crítica polí-
tica.
A outra solução, que é a chamada delegação de atribui-
ções, consiste em deferir ao Poder Executivo a elaboração
legislativa, de acôrdo com a política legislativa traçada pelas
Câmaras. Processo hoje uni\"ersalmente aceito, é conseqüên-
cia da complicação técnica do processo legislativo e o reco-
nhecimento explícito de que o poder de decidir, nas demo-
cracias, cabe ao órgão político, mas aos órgãos técnicos cabe
a função de preparar, de planejar, de elaborar.
Abundantes poderiam ser as informações sôbre êsses
dois temas, porque exausti\"o é o material existente sôbre os
trabalhos parlamentares em todo o mundo.
O nosso objetivo aqui, porém, é limitado à significação
do que ocorre em relação à colaboração técnica e científica
no Gm'êrno, considerado êste em sua mais ampla expressão.
O velho conceito de que o perito ele\"eria ficar em bai-
xo e não em cima (Ou tap IJ/lt not 011 toP) já se acha quase
superado pela fôrça e importância elas soluções técnicas. COI1-
seq üência da revolução ind ustrial.
1'\ inguém pode ignorar a importância dessas soluções e
o seu impacto na evolução da política internacional sôbre a
qual tem importância decisi\"a porque nela se apóiam os
setores políticos.

Rc\ista de Cil'ncia Política


- 19-

Sómente a coincidência de uma filosofia política basea-


da nas mesmas concepções fundamentais dos setores cientí-
ficos e políticos pode assegurar a paz e o progresso social. Esta
é a idéia fundamental na análise do problema.
Por isso mesmo não se pode desvincular o progresso ci-
entífico de pressupostos de uma filosofia que considera o
homem e a comunidade humana os centros de tôda a polí-
tica do progresso científico.
E se aplica ou se deye aplicar em tôdas as manifestações
de Ciência, notadamente das Ciências Sociais.
Em nenhum momento o cientista pode esquecer de que
o seu objetivo final é a valorização do ser humano e a sua
preservação física e moral.
Estas são as bases de uma aliança entre a Política e a
Ciência, entre os governos e os homens de ciência.
E quando falamos em Govêrno não é somente ao Exe-
cutivo que nos referimos, mas também ao Poder legislativo e
mesmo ao Judiciário, cujos processos e métodos de ação de-
vem se renovar para se ajustar às novas condições no mundo
moderno.
Se a resistência à mudança é maior na esfera judiciária,
o Poder Legislativo procura se preservar de uma inevitável
decadência, com o recurso das novas técnicas. como a assesso-
ria técnica e as delegações legislativas.
O tema é inesgotável, mas nada pretendi senão provocar
a meditação sôbre alguns problemas atuais e principalmente
sôbre os problemas do comportamento político e da influên-
cia da Ciência sôbre êsse comportamento em uma época de
profundas transformações.
Esta revolução que aí está, que não é somente tecnoló-
gica, porque ela atinge a profundidade da vida social e o
coração humano, nada mais deve ser senão o início de uma
nova civilização, que por ser um mO"imento de exaltação do
poderio humano não se pode esquecer que precisa antes de
tudo valorizá-lo moral e intelectualmente.

"bril, junho 1969


- 20-

A nova geração, que será responsável por essa reforma,


obedece a novos impulsos, seus reflexos são menos condicio-
nados, a espontaneidade da ação supera geralmente os velhos
freios do convencionalismo, prefere a ação direta às sinuosas
controvérsias acadêmicas. Não serão, a meu ver, homens me-
lhores ou piores do que os da velha geração, serão diferentes
porque terão outras ambições, outras perspectivas, instru-
mentos de vida e de trabalho muito diversos, mas terão maio-
res responsabilidades, porque a Ciência lhes imporá maiores
encargos, mais graves serão os ônus da preservação de novas
conquistas que exigirão mais valor, mais coragem, mais equi-
líbrio e mais fôrça.
O homem fraco, o homem medíocre, o homem cansado,
cada vez valerá menos, porque nunca o mais forte e o mais
capaz terá maiores oportunidades na competição humana.
As novas gerações deverão ser o orgulho do poder e da
inteligência do homem ou não resistirão ao impacto da civi-
lização que fundaram.
Mas, para isso, deverão rever também os problemas de
govêrno, das estruturas políticas, procurando a integração da
totalidade dos recursos humanos e da Ciência na obra de go-
vêrno, para realizar em sua mais alta expressão o sonho de-
mocrático do govêrno de todos para todos.
No meio do nosso drama interior, devemos ter confian-
ça, não em uma conjuntura política que é uma expressão
muito mesquinha de um vasto problema humano, mas no
próprio homem, que ao lado da imensa capacidade de des-
truição que possui, tem o poder ainda maior de reconstruir
novas civilizações sôbre as ruínas que êle mesmo plantou.

Rc\ista de Ci('ncia Políti(a

Você também pode gostar