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Histeria e o Caso Dora

A histeria é uma classe de neuroses que apresentam quadros clínicos muito


variados. Seu desenvolvimento está diretamente ligado a conflitos psíquicos
inconscientes e ao recalcamento de fantasias, que se exprimem sob a forma de
simbolizações. A doença, muitas vezes, traz consigo sintomas conversivos (na
histeria de conversão) ou fóbicos (na histeria de angústia), embora eles não sejam
obrigatórios. Outras características comuns, relacionadas ao recalcamento, são as
amnésias e ilusões da memória. Freud considerou como conflito central da histeria a
“impossibilidade de o sujeito liquidar o complexo de Édipo e evitar a angústia da
castração, que o leva a rejeitar a sexualidade” (Roudinesco, 1998). Essa
característica explicaria a sensação de asco que histéricos geralmente apresentam em
situações que normalmente causariam excitação sexual. O Caso Dora, relatado por
Freud (1905), é um importante exemplo de caso de neurose histérica, e será
resumidamente comentado aqui a fim de ilustrar o quadro da doença.
Dora era uma moça de 18 anos que foi encaminhada a Freud por seu pai. Ela
vivia com ele, sua mãe e seu irmão, tendo sido sempre muito próxima ao pai. Ele
teve em sua vida muitas enfermidades, e Dora sempre se responsabilizou por seus
cuidados. A maturidade da garota foi também responsável por aproximá-los desde
cedo, já que o pai encontrou nela uma agradável companheira e confidente. A
relação entre seus pais, importante ressaltar, não era muito boa, sendo os dois
bastante distantes. Quando Dora tinha seis anos, a família se mudou para outra
cidade, e lá fizeram amizade com um casal, o Sr. e a Sra. K. O pai de Dora se
aproximou bastante da Sra. K., que muitas vezes cuidou dele quando sua saúde
piorava. A princípio, Dora tinha também grande afeição por ela, mas depois de certa
época passou a não mais suportá-la, afirmando que ela e seu pai tinham um caso
amoroso. A moça, inicialmente, tinha boa relação também com o Sr. K, mas aos 16
anos acusou-o de lhe fazer uma proposta amorosa, passando desde então a evitá-lo.
Quanto à saúde de Dora, ela já apresentava desde a infância sintomas
histéricos. Com sete anos apareceu o primeiro sintoma conversivo, enurese norturna,
passando, ao longo dos anos, por dispnéia, tosse nervosa, afonia, enxaquecas,
depressão e insociabilidade histérica. Todos esses sintomas estavam relacionados a
um recalcamento sofrido por Dora algum tempo antes.
Uma das interpretações de Freud a respeito deste caso de histeria se baseia
principalmente na relação entre Dora, seu pai e a Sra. K. Dora, em sua infância, teria
se apaixonado por seu pai, acontecimento bastante comum nas crianças,
compreendido como Complexo de Édipo. Essa paixão, embora aceitável pela
criança quando ainda é muito jovem e não permeada por questões morais, com o
passar do tempo pode se traduzir em culpa, já que começa a perceber que esse
relacionamento não seria possível, nem aceito. Dora deve então ter recalcado tal
lembrança, tornando-a inconsciente, de forma a proteger seu próprio eu. Esses
sentimentos e lembranças ficaram adormecidos por algum tempo, mas alguns fatos
foram responsáveis por trazer esse material à tona, embora nunca de forma explícita.
A histeria que Dora desenvolveu representava uma identificação com seu pai,
estando este no lugar de sujeito desejante. Ela compartilhava com ele, portanto, o
desejo pela Sra. K. Em toda fantasia, entretanto, o sujeito ocupa o lugar do sujeito
desejante mas também o lugar do objeto de desejo, sendo possível entender então
que a moça se identificava também à Sra. K. Esta senhora era uma mulher jovem
que tinha o amor de seu pai, assim como ela havia desejado ter. A identificação com
ela possibilitou, inicialmente, que Dora cultivasse a amizade entre as duas, mesmo
desconfiando da relação entre ela e seu pai. Em um segundo momento, entretanto, a
moça deixou de aceitar essa situação, passando a odiar a Sra. K, por ter roubado seu
posto, e a acusar seu pai. Essa mudança ocorre justamente quando as lembranças
recalcadas voltam com mais força, provavelmente pelo que será explicado a seguir.
O afeto que a moça tinha pelo Sr. K., na verdade, acabou se traduzindo em
um apaixonamento, que Dora tentou veementemente evitar. Para evitar tais
sentimentos, acabou trazendo outros à tona, justamente os que havia recalcado na
infância: o desejo pelo pai. Quando o Sr. K. mostrou então interesse por ela, Dora
passou a evitar o relacionamento entre os dois. E foi então que deixou de aceitar
também o relacionamento do pai com a Sra. K. É importante lembrar que a paixão
de Dora pelo pai ainda se mantinha em nível inconsciente, sendo que ela não podia
compreender seus sentimentos, nem guiar suas ações racionalmente.
Quando confrontada com essas hipóteses, sobre já haver se apaixonado (ou
ainda estar apaixonada) por seu pai ou pelo Sr. K., Dora negou prontamente, ou
simplesmente afirmou não lembrar disso. Nesse caso, a moça não estava mentindo
conscientemente. O que ocorre é que essas lembranças foram apagadas quando
ocorreu o recalque, deixando em seu lugar amnésias, ou mesmo ocupando-o com
memórias falsas. Isso é bastante comum nos casos de neurose, em que também
ocorrem confusões e dúvidas quanto às lembranças em decorrência de alterações na
cronologia dos fatos, fator que também faz parte do processo de recalcamento.
Os sintomas apresentados por Dora, como a tosse de que ela tanto se
queixava quando foi consultar Freud, têm também relação com o recalque dessa
fantasia. Dora acreditava, por certas razões, que a relação sexual que seu pai e a Sra.
K. tinham era basicamente oral. Tendo esta paixão inconsciente por seu pai, ela se
identificava com a amante dele, e desejava estar em seu lugar. Sua tosse era a forma
como essa fantasia do sexo oral se converteu em um sintoma. Ao mesmo tempo,
esse sintoma também representava uma identificação ao pai, era o desejo de
entender por que o pai se sentia atraído pela amante, por que era ela seu objeto de
desejo. O sintoma também pode ser entendida como uma identificação ao pai
quando lembramos que este teve tuberculose quando ela tinha seis anos, doença
facilmente relacionada a tosse. É possível observar, pelo exemplo de Dora, como os
conflitos psíquicos recalcados se traduzem, de forma simbolizada, em sintomas
corporais, nos casos de histeria de conversão.
O caso Dora tem ainda muitas outras questões importantes que podem ser
analisadas e relacionadas com a histeria. Freud mesmo considerou a possibilidade de
mais de uma interpretação para os relatos da moça, que, por ter se originado de
apenas três meses de análise, não possibilitou investigações mais aprofundadas, nem
novos fatos. A intenção desse breve texto, entretanto, é apenas destacar alguns
aspectos importantes observados em casos de histeria, especialmente na histeria de
conversão, exemplificando-os com um caso real.

Referências:
Freud, S. (1905). Estudos sobre a histeria. Em: Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
Laplanche, J. (1991). Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.
Roudinesco, E. (1998). Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: J. Zahar.

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