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Barbarói, 11, 1999, pp. 81-109.

Enunciado Falso e Não-Ser no Sofista de Platão


Alexandre N. Machado
Universidade Federal da Bahia
anmachado@ufba.br

1. Introdução
Platão inicia o seu Sofista anunciando, através das palavras do Eleata, o objeti-
vo do diálogo que se segue: “...cabe a mim e a ti, ao empreender esta análise,
iniciá-la desde logo pelo estudo do sofista, ao que me parece, procurando saber
e definir claramente o que ele é.”1 O Eleata propõe, então, um método para
atingir este objetivo. Primeiramente, descobre-se o gênero mais alto ao qual
pertence aquilo que se pretende definir. A seguir, procede-se uma divisão do
gênero em espécies distintas, dentre as quais descobre-se aquela à qual perten-
ce aquilo que se deseja definir. Divide-se novamente a espécie em subespécies
e novamente descobre-se a qual delas pertence aquilo que se deseja definir.
Este procedimento é repetido tantas vezes quantas forem necessárias para que
se atinja a mais ínfima espécie à qual pertencem aquilo que se pretende definir.
O método é exercitado pelo Eleata e por Teeteto na definição de algo “fácil de
conhecer”, o pescador com anzol (218e-221b), e logo após é aplicado ao caso
do sofista.
Dado o descontentamento expressado pelo Eleata em relação às cinco pri-
meiras definições do sofista2 (221c-226a), parece que, para ele, elas capturam
apenas aspectos não essenciais do sofista, ainda que aspectos importantes.3
Talvez a quinta definição, a que apresenta o sofista como um erístico mercená-
rio (225a-226a), deva ser colocada à parte das demais, dado que é a que mais
se aproxima da definição aparentemente conclusiva: a que apresenta o sofista

1
PLATÃO, “Sofista”, 218b (para referência bibliográfica completa, cf. bibliografia no
final). Doravante todas as referências das passagens citadas do “Sofista” encontrar-se-ão no
texto principal.
2
No final de 226a o diálogo entre o Eleata e Teeteto parece confirmar esta suspeita, pois
mesmo após ambos estarem de posse de cinco definições do sofista, o Eleata afirma que eles
devem continuar a investigação “seguindo-lhe as pegadas, nesta pista”. Que pegadas deveri-
am ser seguidas se o sofista já tivesse sido satisfatoriamente definido?
3
Sobre as razões que levaram Platão a ocupar-se com as definições não essenciais do so-
fista, cf. CONFORD, s. d., pp. 161 ss.
1
como um refutador ou contraditor4 (226a-231c). A erística é definida como a
oposição de argumento contra argumento conduzida com arte a respeito do que
certas determinações gerais são em si (225a-d). A sexta definição parece, por
um lado, estar em mútua cooperação com a quinta definição e, por outro, pare-
ce estar em um curioso confronto com ela. Enquanto que a arte de contradizer é
apresentada na quinta definição como uma espécie de arte de aquisição através
da luta, na sexta definição ela é apresentada como um meio de empreender
uma separação purificadora da alma. O sofista, a partir disso, é um purificador
adquirente e/ou um adquirente purificador ⎯ aparentemente sem que nenhum
dos definiens tenha uma prerrogativa. Mas, o que, na quinta definição, é apre-
sentado como um meio perverso de adquirir dinheiro é apresentado na sexta
definição como um nobre meio de educar, livrando a alma da ignorância. Co-
mo pode o sofista ter estas duas índoles mutuamente conflitantes? O estrangei-
ro expressa essa perplexidade afirmando ter receio de conceder muita honra ao
sofista definindo-o como refutador (2303-231a). Entretanto, ele afirma que há
uma semelhança entre o sofista e o refutador, tal como há entre o cão e o lobo.
O termo “semelhança” parece indicar aqui que, na verdade, o sofista não é um
refutador. Mas, em 231b o Eleata afirma que a argumentação precedente leva
inesperadamente à conclusão de que o sofista é um refutador de uma ilegítima
pretensão de sabedoria.
Esta tensão talvez possa ser explicada do seguinte modo: as premissas que
levam à conclusão de que o sofista é um refutador são apresentadas pelo Eleata
como a expressão da opinião daqueles que consideram a sofística de um ponto
de vista inadequado.5 O ponto de vista adequado é aquele que revela a sofística
como algo que exibe uma falsa aparência. Tal ponto de vista é exposto a partir
de 232a, onde o Eleata afirma, a propósito dos múltiplos misteres que são atri-
buídos ao sofista, que “…um homem que se nos apresenta dotado de múltiplos
misteres, ainda que para designá-lo bastasse o nome de uma única arte, trata-se
apenas de uma aparência que não é uma aparência verdadeira…”. O sofista
parece ser um refutador, mas, na verdade, não é.
A reformulação da definição de sofista a partir do conceito de falsa aparên-
cia engendra a discussão em torno da possibilidade de enunciados falsos. O

4
Cf. 232b, onde o Eleata afirma que a definição do sofista como contraditor é a melhor
de todas.
5
Se isso está correto, o que o Eleata afirma em 231b, que a refutação purgadora da alma
é a “sofística autêntica e verdadeiramente nobre”, seria a expressão deste ponto de vista
inadequado, e não de Platão. Talvez Platão estivesse aqui fazendo alguma reverência àquilo
que alguns sofistas realmente pensavam de si mesmos, isto é, que estavam realmente pur-
gando a alma dos cidadãos por meio de refutações. Neste caso, quando Platão afirma que a
sofística exibe uma falsa aparência, ele estaria acusando estes sofistas de ignorarem o que
estavam realmente fazendo.
2
presente artigo consiste numa breve reconstrução do problema sofista a respei-
to da possibilidade de enunciados falsos e da solução que Platão pretende ter
dado a este problema. A solução de Platão é dependente de considerações so-
bre o ser e o não-ser, dada a sua definição de enunciado falso como aquele que
enuncia o não-ser (aquilo que não é). Devido a isso, as considerações de Platão
sobre o ser e o não-ser, que são relevantes para a solução do problema do não-
ser, também são apresentadas sumariamente. A abordagem dos temas procura
seguir a ordem expositiva de Platão.

2. A Impossibilidade do Enunciado Falso


Ao examinar os temas a respeito dos quais o sofista pretende ser um hábil refu-
tador ou contraditor, o Eleata e Teeteto concluem que o sofista está sempre
pronto “…a discutir, seja o que for, a propósito de qualquer assunto” (232e).
Mas, admitindo que isso implica que um homem saiba tudo e que isso não é
possível, eles concluem que o sofista parece ser onisciente sem o ser. O sofista
é alguém que produz a falsa aparência de ciência universal. A partir disso, o
sofista é classificado como um mimético, um imitador da realidade. Sua míme-
sis, entretanto, não é uma cópia, mas um simulacro, pois guarda uma relação
apenas de parecença com o imitado, não de exatidão (235a-236b). Enquanto
que se pode dizer do simulacro que ele é uma mímesis perfeita de uma coisa x,
ainda que não seja exatamente como x, o mesmo não se pode dizer da cópia de
x.
Neste ponto o Eleata apresenta uma dificuldade que forçará a interrupção
da definição do sofista. O sofista, ao produzir uma falsa aparência de sabedori-
a, acaba, de uma só vez, criando aquilo que “parece ser sem ser” e dizendo
“algo sem, entretanto, dizer com verdade” (236d). Pensar que isso é possível,
segundo o Eleata, é pensar que “o falso é real”, o que parece uma contradição.
O argumento aqui pare ser o seguinte: se uma coisa y se parece com outra coisa
x sem ser x, então y é um falso x (como no caso do dinheiro falso); por outro
lado, se pronuncio um enunciado E que não diz a verdade, E é falso; entretanto,
tanto y quanto E são reais ou existentes; mas se ambos são falsos, então o falso
é real.6

6
Essa comparação entre o tratamento da falsa aparência e do enunciado falso e a depen-
dência de ambos da possibilidade do ser do não-ser ⎯ na medida em que a falsidade é a
propriedade daquilo que é um não-ser ⎯ mostra que a análise da falsa aparência não está no
mesmo nível da análise do não-ser. Isso mostra-se, também, no fato que, no Sofista, Platão
deixou sem resposta a pergunta acerca de como é possível que exista alguma coisa como a
falsa aparência, aquilo que parece ser sem ser (e que, por isso, não é nem ser, nem não-ser),
3
É a definição de falsidade que leva Platão a acreditar na existência de uma
dificuldade extrema na tese de que o falso é real. Segundo ele, afirmar que o
falso é real, isto é, que há falsidade, que há coisas que se pode com sentido
chamar de falsas, “…é supor o não ser como ser…”, na medida em que
“…nada de falso é possível sem esta condição” (237a). A razão pela qual Pla-
tão define assim a falsidade parece ser a seguinte: a realidade não é como o
enunciado falso diz que é; portanto, o enunciado falso diz como a realidade
não é; a realidade é o que é; portanto, o enunciado falso diz como o que é não é
(cf. 240d). Se, pois, existem enunciados falsos, se faz sentido pensar o que um
enunciado falso diz, então faz sentido pensar que a realidade, aquilo que é, não
é. E se isso é possível, o inverso também o é: se o que é pode não ser, então o
não-ser, o que não é, pode ser (se x é um não-ser, então o não-ser ⎯ x ⎯ é).
O Eleata cita as palavras de Parmênides que aconselham todos a afastarem
o pensamento da investigação sobre a possibilidade do não-ser ser (237a). Mas,
se é impossível que o não-ser seja, então, segundo a definição de falsidade
supramencionada, é impossível que exista a falsidade. Portanto, é impossível
que existam falsas aparências ou enunciados falsos. Isso permite que o sofista
esquive-se da pecha de mimético criador de simulacros (cf. 239c-141b), refu-
giando-se na “obscuridade do não-ser” (254a), pois a impossibilidade da falsi-
dade implica a impossibilidade de simulacros, de falsas aparências. A investi-
gação do Eleata resulta, pois, num dilema. Por um lado, parece plausível afir-
mar que o não-ser não pode ser; por outro, parece plausível acreditar na exis-
tência da falsidade. Mas, o resultado da investigação é um dilema apenas por-
que a definição de falsidade não é questionada no diálogo de Platão. A solução
que Platão dá para este dilema, portanto, deve ratificar a sua definição de
falsidade.

3. O Paradoxo da Inefabilidade do Não-Ser


Como se não bastasse implicar a impossibilidade de enunciados falsos, a tese
parmenidiana implica, segundo Platão, um paradoxo. O paradoxo é exposto
como a conclusão de um argumento que inicia-se em 237b. O Eleata pergunta:

mas não deixou sem resposta a pergunta acerca de como é possível que o não-ser seja. O
paralelismo entre o tratamento da falsa aparência e do enunciado falso é limitado. Do ouro
falso podemos dizer que não é ouro, mas do enunciado falso não podemos dizer que não é
um enunciado. Ser um enunciado é uma condição para ser um enunciado falso. Se dissermos
que um enunciado falso não é um enunciado, estaremos enunciado justamente a posição do
sofista. A refutação do sofista por parte de Platão consiste em mostrar que se pode dizer
verdadeiramente de algo que é um enunciado e é falso.
4
“…atreveríamos a proferir de uma ou outra maneira o que absolutamente não
é?” Concordando com a resposta negativa de Teeteto, ele afirma:
“…suponhamos que […] alguém que nos ouve tivesse que indicar a que objeto
se deve aplicar este nome de ‘não ser’…” (237b-c), e a seguir pergunta:
“…como ele o aplicaria, a que objeto e com que qualidades, quer em seu pró-
prio pensamento que em explicação que então tivesse que apresentar?” (237c)
Nesta passagem Platão parece estar tratando a expressão ‘não-ser’ como um
predicado cuja significatividade é dependente da possibilidade de ser aplicado
a alguma classe de coisas. Ele, então, pede um critério para o tipo de coisas às
quais se aplica corretamente a expressão ‘não-ser’.
No que se segue, o Eleata oferece um critério negativo afirmando que
“…não se poderia atribuir o não-ser a qualquer ser que se considere” (237c). E
não podendo ser aplicada ao ser, prossegue o Eleata, ela não pode ser aplicada
a nada a que se aplique as expressões ‘qualquer’ e ‘quaisquer’, pois elas não
podem ser aplicadas a nada que não seja (237d). E falar de qualquer e quais-
quer significa falar de qualquer um e de vários, respectivamente. Portanto,
quando quer que se fale de uma quantidade ou o número de qualquer coisa,
estar-se-á falando do ser (Idem).
O passo seguinte da argumentação consiste na formulação de uma condição
para o dizer: “…quem não diz alguma coisa, ao que parece, absolutamente,
nada diz”7 (237e) E quem nada diz, absolutamente não diz, pois o nada, o que
absolutamente não é, não pode ser dito. O argumento para a última afirmação
parece ser o seguinte: dizer é dizer alguma coisa; àquilo que falta absolutamen-
te determinações, o nada, o que absolutamente não é, não é alguma coisa, pois
alguma coisa é um ser, é algo que possui determinações; portanto, o nada não
pode ser dito. O Eleata equaciona os significados de ‘nada’ e ‘não-ser’, extra-
indo para o não-ser a mesma conclusão que ele havia extraído para o nada:
“…esforçar-se por enunciar o não-ser é nada dizer”, ou seja, é não dizer.
Após Teeteto afirmar que o que o estrangeiro dissera punha fim na dificul-
dade, dando uma resposta à questão sobre se é possível pensar o não-ser, o
Eleata anuncia uma dificuldade maior, um paradoxo, que se segue das premis-
sas do argumento exposto em 137b-e. Ele então reformula as premissas tor-
nando explícita a tese da inefabilidade do não-ser: “Compreendes então que
não se poderia, legitimamente, nem pronunciar, nem dizer, nem pensar o não-
ser em si mesmo; que, ao contrário, ele é impensável, inefável, impronunciável
7
A expressão “alguma coisa” parece aqui referir-se ao conteúdo do que é dito; mais pre-
cisamente, ao sentido do enunciado proferido. Mas, o modo como Platão fala sobre esta
alguma coisa sugere que ela é também uma entidade ou conjunto de entidades, cuja relação
especial que mantém com o enunciado ⎯ uma sequência organizada de signos ⎯ é uma
condição para que este enunciado seja um legítimo ato de dizer, isto é, é uma condição para
que ele tenha sentido.
5
e inexprimível?” (238c) O paradoxo implicado na tese da inefabilidade do não-
ser é formulado como se segue:

ESTRANGEIRO: ⎯ Instantes antes afirmei que ele [o não-ser] é impronunciável,


inefável e inexprimível. Estás seguindo?
TEETETO: ⎯ Sim, como não te seguir?
ESTRANGEIRO: ⎯ Tentar aplicar-lhe este ‘é’ não é contradizer as minhas pro-
posições anteriores? [238e-239a]

A expressão ‘é’, assim como a expressão ‘não-ser’ em 237b-c, parece estar


sendo tratada aqui como um predicado, ou parte de um predicado, cuja signifi-
catividade é dependente da possibilidade de ele ser aplicado a alguma classe de
coisas. Se ele é aplicado, então ele é aplicado a alguma classe de coisas, ou seja
a algo que é, ao ser. Se dizemos que o não-ser é inefável, então estaremos di-
zendo que o não-ser é, e, portanto, estaremos dizendo alguma coisa, algo que
possui determinações e que, por isso, não é um absoluto não-ser. Mas, foi dito
que esta era uma condição para que se realize um legítimo ato de dizer, dado
que dizer é dizer alguma coisa. Sendo assim, se a tese da inefabilidade do não-
ser é verdadeira, então ela não é um legítimo ato de dizer. Todavia, como algo
que não é um legítimo ato de dizer poderia ser a formulação de uma tese ver-
dadeira? Por outro lado, se ela é um legítimo ato de dizer, ela é necessariamen-
te falsa, pois ela realiza aquilo que ela diz ser impossível realizar.
A própria tese da inefabilidade do não-ser, portanto,, se verdadeira, é inefá-
vel.
O problema aqui resume-se em saber quais são “as regras de falar correta-
mente sobre o não-ser” (239b). O sofista esquiva-se da definição de mimético
criador de simulacros afirmando que isso pressupõe algo que ele julga ser im-
possível: a falsidade. A definição de falsidade do sofista é aceita por Platão: o
falso é aquilo que não é, é um não-ser. Todavia, isso torna a tarefa de provar
como é possível a falsidade dependente da prova de como é possível (quais são
as regras para) falar corretamente sobre o não-ser.
Esta formulação do problema poderia sugerir uma interpretação, digamos,
“lógica” (num sentido amplo) ou “linguística” do problema. O problema, se-
gundo tal interpretação, resumir-se-ia apenas em se determinar o modo correto
de uso, ou significado, ou lógica, da expressão ‘não-ser’. Esta interpretação
está correta, se se pensa, como Platão o faz, que a determinação do modo cor-
reto de uso da expressão ‘não-ser’ depende de considerações (metafísicas)
sobre o não-ser. Caso contrário, ela certamente está equivocada.8

8
Isso, todavia, não impede de se ver a determinação do modo correto de usar a expressão
‘não-ser’, independente de considerações metafísicas sobre o não-ser, como um meio de
6
Se o problema, pois, consiste em se encontrar as regras para se falar corre-
tamente sobre o não-ser, então a solução do problema implica em se refutar a
tese de Parmênides (241d). A opinião falsa, segundo Platão, ou concebe o ser
como não sendo ou o não-ser como sendo (cf. 240d-e). Portanto, demonstrar
como a falsidade é possível é demonstrar como é possível que se possa atribuir
ser ao não-ser e como é possível atribuir não-ser ao ser. A refutação da tese de
Parmênides, entretanto, não é absoluta. Há um sentido da tese que Platão não
está disposto a refutar, a saber, aquele em que ‘não-ser’ é tomando em sentido
absoluto. Neste sentido, o não-ser, aquilo que não possui quaisquer determina-
ções, não pode de modo algum ser. E a inversa também é verdadeira: o ser não
pode não ser em sentido absoluto. A solução de Platão para o problema da
possibilidade da falsidade, portanto, baseia-se numa distinção entre sentido
absoluto e sentido relativo de ‘não-ser’. Há um sentido de ‘não-ser’, o sentido
relativo, segundo o qual o não-ser é e o ser não é. E é nesse sentido que se diz
que o enunciado falso enuncia o não-ser.
Se não atribuíssemos a Platão uma distinção entre dois sentidos de ‘não-ser’
(o sentido absoluto, mencionado no parágrafo anterior, e o sentido relativo, que
será abordado mais adiante),9 então teríamos que admitir a tese implausível de
que Platão acreditava que o absoluto não-ser, o nada, possui determinações.
Seja como for, em qualquer uma das alternativas nos vemos com a dificuldade
de explicar como Platão resolve o paradoxo da inefabilidade do não-ser, pois o
não-ser em sentido absoluto não pode ser dito dizível pelas mesmas razões que
o é o não-ser em sentido relativo, dado que, como se verá, o último é dizível
justamente devido à sua relatividade. Em outras palavras: a solução de Platão
para o problema da possibilidade da falsidade não soluciona o paradoxo da
inefabilidade do não-ser em sentido absoluto. E ele deveria ser solucionado por
Platão, se é o caso que, no Sofista, ele acredita na tese da inefabilidade do não-
ser em sentido absoluto. Portanto, o paradoxo da inefabilidade do não-ser pare-
ce servir, no Sofista, muito mais como um meio de persuadir um filósofo par-
menidiano a revisar a cara tese de Parmênides e, deste modo, a torná-lo mais
propenso a admitir que, em um certo sentido, ela é falsa, do que para apresentar
uma refutação conclusiva da tese da inefabilidade do não-ser, qualquer que seja
o sentido de ‘não-ser’.10

solucionar o problema formulado por Platão, ainda que esta não seja o seu meio de solucio-
ná-lo.
9
Note-se que fala-se aqui em sentido relativo e absoluto de ‘não-ser’, não em não-ser re-
lativo e não-ser absoluto. Dizer que há um sentido relativo de ‘não-ser’ não implica necessa-
riamente comprometer-se com a tese de que aquilo a que se atribui não-ser possui uma
existência dependente da existência de uma outra coisa.
10
Esta seria então uma aplicação do método descrito em 230b-c. O sofista tentara reduzir
ao absurdo a tese da existência da falsidade através da tese da inefabilidade do não-ser.
7
4. Não-Ser e Falsa Aparência
Após propor refutar a tese de Parmênides, Platão inicia o tratamento de um dos
problema subordinados a esta refutação: o problema da falsa aparência. O fal-
so, e, a fortiori, a falsa aparência, é um não-ser. Mas, se a falsa aparência é ou
existe, então deve existir algo que nem é ser absoluto (que não pode não ser, ou
ao qual não se pode atribuir não-ser), nem não-ser absoluto (que não pode ser,
ou ao qual não se pode atribuir ser). Portanto, para refutar a tese de que a falsa
aparência é impossível, Platão precisa demonstrar que se pode atribuir ser ou
realidade a algo que não é nem ser absoluto, imutável e uno, nem não-ser abso-
luto ou nada. Mutabilidade, multiplicidade são justamente características do
mundo que se nos revela por meio dos sentidos: o mundo onde há repouso,
movimento e falsas aparências.
Para argumentar a favor da tese da realidade do mundo sensível, Platão tra-
ta de refutar as antigas teses sobre o ser, a totalidade do que é real, pois ne-
nhuma delas faz justiça ao, digamos, estatuto ontológico do mundo sensível,
ora lhe concedendo muito, ora lhe concedendo pouco. Todas elas, segundo
Platão, reduzem o ser a algo que ele não é, seja (a) a pares ou trios do que são,
na verdade, partes do ser (umidade e calor, p. ex.; cf. 242b-244b), seja (b) a
uma unidade absoluta (cf. 244b-245e), seja (c) à matéria (cf. 246e-247d), seja
(d) às formas11 (cf. 248a-248d), seja (e) ao repouso e ao movimento (cf. 250a-
c). O ser nem exclui, nem se reduz a nenhuma destas coisas, quer todas juntas,
quer em grupos que se quiser organizar. O ser, portanto, como já foi dito, deve
conter ⎯ ainda que não se reduza a ⎯ algo que não é nem ser absoluto, nem
não-ser absoluto, tal como o mundo sensível.
As reflexões de Platão em torno da aparência são na, sua essência, negati-
vas. Ele logra apenas a demonstração de que não se pode negar ser ao não-ser
com base na impossibilidade de que exista algo que não é ser absoluto. A sua
questão positiva inicial sobre como algo pode “parecer sem ser” (236d) queda
intocada no final destas reflexões.12

Platão reduz ao absurdo a própria tese da inefabilidade do não-ser, obrigando os sofistas a


experimentarem “um descontentamento para consigo mesmos” e a criarem “disposições
mais conciliatórias para com outrem” (230b).
11
Há fortes razões para se pensar que dentre aqueles que Platão denominava “amigo das
formas” estava ele próprio.
12
Segundo Conford, a resposta a esta pergunta deve ser procurada no Timeu. Cf.
CONFORD, s. d., pp. 226s.
8
5. Múltiplas Denominações e Participação Formal
Depois de abandonar abruptamente o problema da falsa aparência, Platão abor-
da de passagem o problema da múltipla denominação (251a-c), a fim de intro-
duzir no tratamento do problema do não-ser a sua teoria das formas e das suas
relações mútuas. O problema da múltipla denominação consiste em saber “co-
mo pode acontecer que designemos uma única e mesma coisa por uma plurali-
dade de nomes” (251a) O que Platão tem em mente é a possibilidade de que
enunciados predicativos singulares tais como ‘Sócrates é branco’ possam ser
verdadeiros de Sócrates, ainda que nele haja um termo, a saber, ‘branco’, que
não se refere a Sócrates, mas à cor branca, a qual é diferente de Sócrates. Isso
parece um problema a partir de uma antiga teoria da “predicação”, segundo a
qual somente podem ser verdadeiros enunciados tais como ‘Sócrates é Sócra-
tes’ ou ‘Este bem é um bem’, por exemplo, os quais simplesmente nomeiam as
coisas com seus nomes próprios.13 Esta teoria pressupõe que a expressão ‘é’,
em enunciados da forma ‘x é y’, tem apenas a função de identidade.
Platão trata este problema com desdém porque acredita tê-lo já resolvido no
seu Parmênides14 com a sua teoria das formas, que inclui a teoria da participa-
ção. Segundo Platão, nem todos os nomes são nomes próprios. Há nomes co-
muns ⎯ ou termos gerais ⎯ que podem ser aplicados a um número indefinido
de coisas singulares. Cada termo geral designa uma forma ou idéia.15 Por e-
xemplo, a palavra ‘vermelho’ designa a forma de vermelho, uma entidade cog-
noscível apenas pelo pensamento, única,16 imutável, eterna e distinta de todas
as coisas singulares vermelhas, e que, por isso, continuaria a existir, ainda que
nada de vermelho existisse.17 Quando dizemos que uma coisa singular é ver-
melha, estamos então dizendo que esta coisa singular, que existe, está em uma
relação especial com a forma de vermelho, que também existe, a saber, a rela-
ção de participação.18 Esta é uma relação assimétrica, pois enquanto que as
coisas singulares podem participar das formas, as formas não podem participar
das coisas singulares. Uma coisa singular pode participar não apenas de uma
forma, mas de várias. É devido a isso que podemos, segundo Platão, denominar

13
Cf. CONFORD, s. d., p. 232.
14
Idem.
15
Esta tese não é defendida com esta universalidade em todos os diálogos de Platão. Isso,
todavia, é irrelevante par os presentes propósitos.
16
Ao designar uma forma única, os termos gerais afinal parecem ser, em certo sentido,
também termos singulares.
17
Como se poderá ver, este aspecto da teoria das formas entra na solução platônica do
problema da possibilidade da falsidade.
18
Cf. PLATÃO, Parmênides, 130e-131a.
9
uma coisa singular com uma pluralidade de nomes, ao descrevê-las através de
distintos enunciados predicativos singulares.
É bem verdade que, no Parmênides, Platão torna explícitas as sérias difi-
culdades que a sua teoria das formas enfrenta (Cf. 131a ss.). Além do famoso
argumento do terceiro homem (uma reductio ad infinitum do número de cada
forma) e da aparente impossibilidade de se conhecer as formas, Platão chama a
atenção para uma, prima facie, impossibilidade de se especificar no que consis-
te a relação de participação. Seja como for, a teoria das formas é, no Sofista, o
que Platão parece pressupor como solução para o problema da possibilidade da
denominação múltipla. Evidência disso parece ser o fato de ele, após abando-
nar este problema, engajar-se imediatamente na questão a respeito da possibili-
dade da existência de participação entre as formas. Isso parece indicar que a
menção ao problema da denominação múltipla visa simplesmente frisar que
não há dúvidas sobre a existência de coisas que participam das formas. A ques-
tão seguinte seria, então, sobre se dentre estas coisas que participam das formas
poderiam estar as próprias formas.
Qual é a relação entre esta questão e o problema original sobre o não-ser? O
problema do não-ser, engendrado pelo argumento contra a possibilidade da
falsidade, consiste em explicar como podemos atribuir ser ao não-ser. A atribu-
ição de ser ao não-ser é feita, por exemplo, por meio do enunciado predicativo
‘O não-ser é’. De acordo com a teoria das formas, toda predicação é uma des-
crição de uma relação de participação. Um enunciado da forma ‘S é P’ é ver-
dadeiro se e somente se aquilo que é referido por ‘S’ participa da forma referi-
da por ‘P’. Portanto, explicar como podemos atribuir ser ao não-ser através do
enunciado ‘O não-ser é’ é o mesmo que explicar como aquilo que é referido
pela expressão ‘não-ser’ participa da forma referida por ‘é’, ou seja, o ser. E a
explicação que Platão oferece depende da consideração da possibilidade da
participação entre formas, pois, segundo ele, ‘não-ser’ em ‘O não-ser é’ refere-
se a uma forma.
Em 251d-253a Platão toma como exemplos as formas ser, movimento e re-
pouso para decidir a questão sobre a possibilidade da participação entre as
formas. Sua resposta baseia-se na refutação de duas das três respostas mutua-
mente excludentes e exaustivas: ou (1) nenhuma forma participa de qualquer
outra forma, ou (2) cada forma participa de todas as demais, ou (3) algumas
formas participam de outras e algumas formas não participam de outras. A
alternativa (1) implica a negação da atribuição de ser tanto ao repouso quanto
ao movimento (isto é, implica que movimento e repouso não existem, dado que
não participam do ser) (cf. 251e). A alternativa (2) implica, por exemplo, que o
repouso está em movimento, pois tudo o que participa do movimento está em
movimento (cf. 252d). Provando desta maneira a alternativa (3) (cf. 252e-
253a; 254b), Platão não apenas prova que pode haver participação entre as

10
formas, mas mostra que a existência de participação entre as formas deve ser
constatada examinando-se cada caso particular. E isso significa que deve-se
explicar exatamente o que é cada forma que é candidata a participar de outra
forma. Portanto, para determinar se e como há relação de participação entre o
ser e o não-ser, deve-se explicar exatamente o que ambos são. A explicação do
que é o ser, como foi mencionado, fora empreendida em 242c-251a. A explica-
ção do que é o não-ser inicia-se em 254b.

6. Ser e Não-Ser: Mesmidade e Alteridade


A caça ao sofista acaba revelando a natureza da filosofia pura (cf. 253e): a
dialética. Pois é a ela que cabe, segundo Platão, a tarefa de “dividir […] por
gêneros,19 e não tomar por outra, uma forma que é a mesma, nem pela mesma
uma forma que é outra…”, bem como “…discernir, gêneros por gêneros, as
associações que para cada um deles são possíveis ou impossíveis…” (253d).
As relações entre o ser, o movimento e o repouso, como foi dito, foram de-
terminadas em 251d-253a. Ali foi concluído que nem o movimento participa
do repouso nem o repouso participa do movimento (são, pois, incompatíveis).
Mas tanto o repouso quanto o movimento participam do ser. O ser, aliás, é uma
forma da qual participam todas as demais formas, pois todas elas, além do
próprio ser, são. Todavia, o ser não participa nem do movimento nem do re-
pouso, pois em si mesmo o ser não está nem em movimento nem em repouso.
O papel do movimento e do repouso neste ponto das reflexões de Platão é
simplesmente o de exemplo de formas mutuamente distintas, mutuamente in-
compatíveis e mutuamente contrárias.20 Platão procura mostrar que alteridade,
incompatibilidade e contrariedade desempenham um papel decisivo na deter-
minação da natureza do não-ser.21 Mas o papel principal é reservado à alterida-

19
Platão usa ‘gênero’ (genus) aqui como sinônimo de ‘Forma’ (eidos), dado que uma
forma é o que pode ser designada por uma expressão que representa uma característica
genérica: um predicado.
20
Conford atribui ao movimento e ao repouso apenas o papel de exemplos de formas
contrárias (Cf. CONFORD, s. d., p. 253). Ser e não-ser são contrários. Mas, como se tentará
mostrar, Platão estava atento para o fato de que nem sempre o contrário de uma forma F
esgota o que abarca o não-ser-F.
21
A. N. Prior expõe as relações entre a negação e as relações de diferença, incompatibili-
dade, contrariedade e contraditoriedade: “Contradictory negation, or contradiction, is the
relation between statements that are exact opposites, in the sense that they can be neither
true together nor false together […]. Contrary negation, or contrariety, is the relation be-
tween the extreme opposites (which may very well both be false) […]. Incompatibility is the
relation between statements which cannot both be true, whether or not they stand at apposite
11
de (ou a forma do outro, ou ainda a forma da diferença). O não-ser é definido
por Platão como uma alteridade.
Do fato de que há três formas, movimento, repouso e ser, pode-se concluir
que as três formas são distintas umas das outras (pois, caso contrário, seriam
uma) e idênticas a si mesmas. Cada forma ou gênero “é outro com relação aos
dois que restam, e o mesmo que ele próprio.” (254e) Esta última afirmação
introduz um novo problema: os predicados ‘é outro’ (ou ‘é diferente’) e ‘é o
mesmo’ (ou ‘é idêntico’) designam outras formas, além daquelas três já men-
cionadas? (254e) Platão primeiramente argumenta pela distinção entre movi-
mento e repouso, por um lado, e identidade e diferença, por outro (255a-b).
Repouso e movimento participam da identidade e da diferença (são diferentes
entre si e idênticos a si mesmos), mas não participam um do outro. Portanto,
nem repouso nem movimento podem ser a identidade ou a diferença. A seguir
Platão argumenta contra a identidade entre ser e identidade (255b-c). Pode-se
atribuir ser tanto ao repouso quanto ao movimento (ambos são). Se ser e iden-
tidade são a mesma coisa, isto é, se dizer ‘x e y são’ e ‘x e y são o mesmo’ é
dizer a mesma coisa, então repouso e movimento são a mesma coisa.
A demonstração de que a diferença ou alteridade não é o mesmo que o ser é
um pouco mais complexa (255c-d). Platão primeiramente introduz a distinção
entre ser em si e ser em alguma relação. Ser branco, por exemplo, é ser alguma
coisa em si, enquanto que ser pai é ser alguma coisa em uma relação: a relação
com o filho. Ser outro ou ser diferente é justamente um exemplo da última
espécie mencionada. Se alguma coisa é diferente, então ela é necessariamente
diferente de uma outra coisa. Mas, se o ser e a diferença fossem a mesma coisa,
então poderia haver algo que fosse diferente em si mesmo, pois tanto o ser em
si quanto o ser em uma relação participam do ser.
A seguir, Platão formula sua curiosa tese a respeito da natureza da alterida-
de. De uma forma geral ela pode ser enunciada como se segue: x e y não são
diferentes um do outro porque possuem naturezas distintas, mas, ao contrário,
possuem naturezas distintas porque ambos são diferentes, ou seja, ambos parti-
cipam da diferença ou alteridade (255e). A diferença, tal como a identidade e o
ser, é uma forma da qual participam todas as demais formas. É devido a isso
que todas são diferentes entre si. Todavia, cada uma delas é a mesma, pois
todas participam da identidade. Mas, com exceção da identidade ou do mesmo,

ends of a scale [...].” “There is also a relation between the concept of negation, specially as
applied to terms, and that of otherness or diversity. What is not red is other than anything
that is red, and what is other than anything that is red is not red.” (PRIOR, 1967, p. 458.)
Como se tentará mostrar, Platão explica um aspecto do não-ser de modo essencialmente
idêntico a esta explicação de Prior da relação entre negação e alteridade.
12
nenhuma delas é a mesma.22 Tomando novamente como exemplo o movimen-
to, Platão chama a atenção para a conclusão aflitiva que se segue desta refle-
xão: “…o movimento é o mesmo e não é o mesmo” (256a) (ou de um modo
geral: as formas são as mesmas e não são as mesmas). Ele, entretanto, procura
dissipar a perplexidade com uma explicação que desempenha um papel central
na definição de não-ser (a sexta forma).

…quando dizemos o mesmo e não o mesmo, não nos referimos às mesmas re-
lações. Quando dizemos que ele é o mesmo é porque, em si mesmo, ele partici-
pa do mesmo [ou identidade], e quando dizemos que ele não é o mesmo, é em
consequência de sua comunidade com “o outro” [ou diferença], comunidade es-
ta que separa do “mesmo” e o torna não-mesmo, e sim outro: de sorte que, nes-
te caso, temos o direito de chamá-lo “não-o-mesmo”. [256a-b]

Quando afirmamos que o movimento não é o mesmo, estamos atribuindo não-


ser ao movimento. Mas não estamos nem dizendo que o movimento não existe,
nem dizendo que ele é diferente de si mesmo. Estamos apenas dizendo que ele
é diferente, é outro em relação à forma da mesmidade ou identidade. A identi-
dade e o movimento não são a mesma coisa. Ambos participam da diferença ou
alteridade. Quando se diz, pois, que o movimento é o mesmo e não é o mesmo,
‘o mesmo’ tem dois significados. Num deles ‘o mesmo’ significa o mesmo que
‘a forma da mesmidade’, noutro, significa o mesmo que ‘idêntico a si’.
Após examinar as relações entre movimento e identidade, Platão examina
as relações entre movimento e ser, chegando a conclusões similares às anterio-
res: “…o movimento é, realmente, não-ser, ainda que seja ser na medida em
que participa do ser” (256d). Desta última reflexão Platão extrai uma conclusão
geral:

Segue-se, pois, necessariamente, que há um ser do não-ser, não somente no


movimento, mas em toda a série de gêneros; pois na verdade em todos eles a
natureza do outro [ou alteridade] faz cada um deles outro que não o ser e, por
isso mesmo, não-ser. Assim, universalmente, por essa relação chamaremos to-
dos, corretamente, não-ser; e ao contrário, pelo fato de eles participarem do ser,
diremos que são seres.
[…]
Assim, cada forma encerra uma multiplicidade de ser e uma quantidade infinita
de não-ser. [256d-e]

22
A torção da linguagem torna-se inevitável aqui, pois Platão usava a expressão grega
tautòn tanto para designar a forma da identidade ou “mesmidade” (esta palavra não existe
em nenhum dicionário de português), quanto para qualificar as coisas como idênticas a si
mesmas ou, o que não é usual em português, como as mesmas.
13
A última afirmação pode ser parafraseada do seguinte modo: pode-se afirmar
com verdade muitas coisas sobre cada forma e pode-se negar com verdade
muitas coisas sobre elas.
O simples fato de uma forma ser diferente da forma do ser nos autoriza,
pois, a dizer que trata-se de uma não-ser. Mas, isso pode ser generalizado, de
tal forma que também inclua o ser:

…é necessário afirmar que o próprio ser é outro que não o resto dos gêneros.
[…]
Assim, vemos que tanto quanto os outros são, tantas vezes o ser não é; pois,
não os sendo, ele é um em si; e por sua vez, os outros, infinitos em número, não
são. [257a]

O simples fato de esta forma ser diferente daquela outra nos autoriza a dizer
que trata-se de um não-ser: o não ser aquela outra forma; o ser outra forma que
aquela. Portanto, dado que o ser é diferente do movimento, o ser não é o mo-
vimento.
Com isso chega-se às duas conclusões que refutam a tese de Parmênides:
(1) o não-ser é e (2) o ser não é. A refutação é possível, entretanto, porque fora
determinado um outro significado para a expressão ‘não-ser’: “Quando fala-
mos do não-ser isso não significa, ao que parece, qualquer coisa contrária ao
ser, mas apenas outra coisa qualquer que não o ser.” [257b] O contrário ao ser
é o não-ser em sentido absoluto, aquilo que não possui determinações. Esse era
o único significado que Parmênides reconhecia para a expressão ‘não-ser’.
Platão procura mostrar que esta expressão possui outro significado, o qual
permite afirmar com verdade que o não-ser é e que o ser não é.
Poder-se-ia objetar que Platão não refuta a tese de Parmênides, porque ele
dá a ela outro sentido, tornando-a uma outra tese. Isso é, em parte, verdadeiro
e, em parte, falso. Parmênides afirma que é impossível que o enunciado ‘O não
ser é e o ser não é’ seja verdadeiro, pressupondo que este enunciado de forma
alguma é ambíguo. Platão, então, demonstrou que (1) este enunciado é ambí-
guo, (2) que num sentido ele é necessariamente falso e que (3) noutro sentido
ele é necessariamente verdadeiro. Parmênides acredita que quando alguém diz,
por exemplo, que o não-ser é, esta necessariamente dizendo algo falso. Platão
demonstrou que quem diz isso talvez esteja dizendo algo verdadeiro.
Uma outra objeção poderia ser dirigida à tese interpretativa segundo a qual
Platão admite dois sentidos de ‘não-ser’. Em primeiro lugar, poder-se-ia dizer,
Platão não diz isso em parte alguma. Em segundo lugar, esta interpretação se
choca com a seguinte passagem do Sofista:

14
Não podemos, pois, admitir que a negação signifique contrariedade, mas ape-
nas admitiremos nela alguma coisa de diferente. Eis o que significa o “não”
que colocamos como prefixo dos nomes que seguem a negação, ou ainda das
coisas designadas por esses nomes. [257b; o grifo foi acrescentado]

Parece difícil não dizer que aqui Platão admite apenas um significado da ex-
pressão ‘não-ser’: esta expressão significa apenas o que é diferente e não o
nada.
Se esta objeção está correta, então teremos que admitir que quando Platão
fala sobre “o que absolutamente não é”, em 237b, dizendo que não se pode
dizer o que absolutamente não é, ele está, na verdade, apenas dizendo que não
faz sentido qualquer enunciado em que se usa a expressão ‘não-ser’ para de-
signar o nada. Isso resolveria o paradoxo da inefabilidade do não-ser em senti-
do absoluto, mas à custa de atribuir a Platão o conhecimento de que esta tese
somente poderia fazer sentido se a expressão ‘não-ser’, que nela ocorre, esti-
vesse sendo mencionada, e não usada.23 Isso parece ser demasiada atribuição a
Platão, pois, neste caso, ter-se-ia que admitir que quando ele afirma que ‘não-
ser’ não significa o contrário do ser, o nada, ele está dizendo que ‘não-ser’ não
significa o que a expressão ‘contrário do ser’ significa, dado que esta expressão
nada significa. (E Platão ficaria ainda devendo a demonstração de que a ex-
pressão ‘contrário do ser’ nada significa).
Há, entretanto, uma passagem que parece, em alguns aspectos, decidir a
questão: “Para nós, há muito tempo que demos adeus a não sei que contrário do
ser, não nos importando saber se ele é ou não, se é racional ou totalmente irra-
cional.” (258e-259a) Esta passagem parece deixar claro que, se Platão admitia
um paradoxo na formulação da tese da inefabilidade do não-ser em sentido
absoluto, ele o deixou sem solução no Sofista.
Seja como for, algo é certo: ainda que a expressão ‘não-ser’ não signifique
aquilo que é contrário ao ser (se apenas em enunciados que se atribui ser ao
não-ser e não-ser ao ser, ou em qualquer outro enunciado, isso não importa),
ela significa, em alguns casos, algo que está em uma “oposição determinada”
(257e) com aquilo que é. A explicação desta tese, através do exemplo da atri-
buição de tamanho, encontra-se em 257b-258e. Quando negamos que uma
coisa x seja grande, não devemos admitir necessariamente que ela é pequena.
Uma coisa x é sempre grande em relação a outra coisa y, que consideramos
pequena. Mas, poderíamos dizer que x, em relação a y, não é grande nem pe-
quena, mas do mesmo tamanho. Sendo assim, quando dizemos que uma coisa x
não é grande, estamos (1) nos comprometendo com a existência de três formas

23
Em terminologia medieval, poder-se-ia dizer que o uso da expressão seria, então, uma
suppositio materialis, e não uma suppositio formalis.
15
incompatíveis: a forma da grandeza (G), a forma da pequenez (P) e a forma
mesmidade de tamanho (M); e (2) estamos dizendo que x participa de uma das
formas incompatíveis com a forma da grandeza. Mas, e se dissermos que uma
cor não é grande? Seja qual for a forma da qual uma cor participe, é certo que
ela nunca participa da forma da grandeza. Isso significa que as formas das
quais uma cor participa são incompatíveis com a forma da grandeza? Sim e
não. Não, se isso implica que uma cor ou é grande ou é pequena. Sim, se isso
significa que as formas das quais uma cor participa são incompatíveis com
qualquer forma que compõe uma escala de tamanho: (G), (P) e (M) ou qual-
quer outra escala. Portanto, deve-se distinguir a incompatibilidade dos graus de
uma escala de tamanho da incompatibilidade, digamos, “categorial” que enun-
ciamos ao dizer ‘Uma cor não é grande’. Platão trata apenas do primeiro tipo
de incompatibilidade. E isso é compreensível, pois raramente enunciamos uma
negação categorial.
O contrário do ser grande é o ser pequeno. Mas, o contrário do não-ser
grande é o ser grande. Por que, então, o não-ser grande não é idêntico ao ser
pequeno? Isso somente pode ser porque ‘contrário’ está sendo usado aqui em
dois sentidos. Na verdade, seria mais correto dizer que o não-ser grande e o ser
grande são contraditórios. Os enunciados ‘x é grande’ e ‘x é pequeno’ podem
ser ambos falsos e, por isso, são contrários. Mas os enunciados ‘x é grande’ e
‘x não é grande’ não podem ser ambos falsos e, por isso, são contraditórios.
Platão não diz que o não-ser grande e o ser grande são contraditórios, mas
tampouco diz que são contrários. Ele afirma que eles estão em oposição deter-
minada. Mas ele parece designar a contraditoriedade que há entre um membro
de uma classe de membros mutuamente incompatíveis e os membros restantes.
A incompatibilidade implicada pela atribuição de não-ser em enunciados pre-
dicativos (por oposição a enunciados de identidade) pode, portanto, ser defini-
da como a contraditoriedade de um membro de uma classe de membros mutu-
amente incompatíveis e os membros restantes.
O conceito de oposição determinada, como se pode ver, é importante para
especificar o tipo de alteridade que constitui o não-ser visado em enunciados
predicativos negativos. Ela não é nem contrariedade, nem diferença simpliciter.
Ser branco, por exemplo, é diferente de ser grande, mas quando dizemos que
alguma coisa x não é grande, não queremos dizer que, dentre o que o não ser
grande encerra, está o ser branco, e que, por isso, x pode ser branco. Se x é um
número, isso não faz o menor sentido. Portanto, a distinção entre ser grande e
não-ser grande não é a distinção entre a forma da grandeza e todas as demais
formas, mas apenas entre ser grande e as formas mutuamente incompatíveis e
incompatíveis com a grandeza e que, junto com a grandeza, compõem uma
determinada escala de tamanho. Ser branco é compatível com ser grande e, por
isso, ambos não estão em oposição determinada. Uma coisa pode ser grande e

16
branca. Mas ser branco é incompatível com ser preto e com o ser qualquer
outra cor. Uma coisa não pode ser (totalmente) branca e (totalmente) preta
(salvo anacronicamente).
A explicação precedente ajuda a tornar claro o que Platão quer dizer com a
obscura expressão “parte da natureza do outro” (257d). De tudo aquilo que é
outro pode-se dizer que é um não-ser, pois o que é outro é sempre o que não é
uma outra coisa ou outras coisas. Dentre tudo aquilo que é outro podemos en-
contrar aquilo que é outro que não o que é belo, ou tudo o que é não-belo. O
não-belo, portanto, é uma parte do outro, no sentido em que é tudo aquilo que é
outro em relação de oposição determinada ao que é belo.
A forma ou gênero do não-ser, portanto, é definido como a alteridade. Dizer
que uma coisa x é um não-ser é dizer que x não é alguma coisa, digamos y. E
dizer que x não é y é ou (a) dizer simplesmente que x e y são diferentes, ou (b)
dizer que x participa de uma forma distinta de y e em relação de oposição de-
terminada ou incompatibilidade com y.24

…quando uma parte da natureza do outro e uma parte da natureza do ser se o-


põem mutuamente, esta oposição não é, se assim podemos dizer, menos ser que
o próprio ser; pois não é o contrário do ser o que ela exprime; e sim, simples-
mente, algo de diferente. [258a-b]

7. Não-Ser e Enunciado Falso


O próximo passo da argumentação de Platão no seu Sofista consiste em tornar
claro como a sua explicação da possibilidade do ser do não-ser e do não-ser do
ser pode contribuir para a explicação de como são possíveis os enunciados
falsos, para, deste modo, concluir a tarefa de definir o sofista. Que os enuncia-
dos falsos são possíveis parece já ter sido demonstrado. A demonstração de que
o não-ser pode ser e de que o ser pode não ser é a demonstração do ser daquilo
que é enunciado pelos enunciados falsos, pois eles enunciam o não-ser (260c).
Mas, Platão alerta, o sofista pode objetar que, embora o não-ser seja e o ser não
seja, isto é, embora ser e não-ser participem um do outro, disso não se segue
que todas as formas ⎯ dentre as quais está a forma do discurso ⎯ participem
do não-ser (260d-e). Portanto, Platão necessita demonstrar que e como o enun-
ciado falso é possível; que e como o discurso participa do não-ser.

24
(a) e (b) expressam a diferença entre enunciados de identidade e enunciados predicati-
vos, respectivamente.
17
Para resolver esta questão, Platão segue o mesmo caminho seguido na in-
vestigação da relação entre as formas: determinar a natureza dos termos da
suposta relação.

…é necessário examinar cuidadosamente o que podem ser o discurso, a opinião


e a imaginação;25 e, uma vez assim esclarecidos, descobrir a comunidade que
eles possuem com o não-ser; e a partir desta descoberta, demonstrar a existên-
cia da falsidade… [260e-261a]

Um pouco antes de enunciar esta tarefa, Platão já iniciava sua execução, afir-
mando que “é pela mútua combinação das formas que o discurso nasce”
(259e). A possibilidade de participação entre as formas, portanto, é uma condi-
ção necessária para a possibilidade do discurso e, por isso, é parte da sua natu-
reza. Resta saber quais e como as formas se combinam para que o discurso
exista. A combinação que está sob exame é a da forma do discurso com a for-
ma do não-ser.
Em 261d-262e Platão expõe mais uma condição necessária para a existên-
cia do discurso: ser um todo organizado segundo uma regra de combinação de
suas partes. Ele chega a esta conclusão através do seguinte argumento: (1)
“Possuímos, na verdade, para exprimir vocalmente o ser, dois gêneros de sinais
[…] [o]s nomes e os verbos, como os chamamos.” (261e-262a) (2) “Nomes
apenas, enunciados de princípio a fim, jamais formam um discurso, assim co-
mo os verbos enunciados sem o acompanhamento de algum nome.” (262a)
Logo, a menor unidade de discurso, ou, como diz Platão, o “primeiro e mais
breve de todos os discursos” (262c), é um enunciado formado por no mínimo
um nome e um verbo. (Nomes e verbos correspondem ao que tradicionalmente
se denomina sujeito e predicado.)
O que há de mais valioso nesta análise de Platão não é, parece, a conclusão
de que o discurso mais simples é uma união de nome e verbo, mas sim a cons-
tatação de que a unidade mais simples do discurso ou linguagem é, em termos
gerais, uma unidade complexa estruturada a partir da combinação de signos de
25
A opinião (doxa) é definida por Platão como a “conclusão do pensamento (dianoia)”
(264a), o qual é, por sua vez, definido como o “diálogo interior e silencioso da alma consigo
mesma” (263e). Opinião e discurso, portanto, são a mesma coisa, na medida em que ambos
são um diálogo. A diferença está no fato de a primeira não ser constituída de signos enquan-
to que o último o é (“A corrente que emana da alma e sai pelos lábios em emissão vocal, não
recebeu o nome de discurso?”; 263e). Deste modo, mostrar como a falsidade é possível no
discurso implica mostrar como a falsidade é possível na opinião. Aquilo que Peleikat e Cruz
Costa traduziram como “imaginação” (phantasía) é explicado por Conford como uma espé-
cie de juízo que se baseia nas percepções ou aparências (no sentido de ‘aquilo que aparece’)
(cf. CONFORD, s. d. p. 289). Por conseguinte, mostrar como a falsidade é possível no
discurso implica mostrar como a falsidade é possível na imaginação.
18
distintas classes. O discurso não é, pois, uma mistura de signos. Ele é estrutu-
rado a partir de certas possibilidades de combinação de signos de determinados
tipos (cf. 262d-e).
Platão alude muito brevemente à segunda condição necessária para a exis-
tência do discurso: “O discurso, desde que ele é, é necessariamente um discur-
so sobre alguma coisa; pois sobre o nada é impossível haver discurso.” (262e)
Se formulamos o argumento sofista contra o discurso falso a partir do conceito
de discurso sobre alguma coisa, obtemos o seguinte: (1) o discurso é sempre
sobre alguma coisa; (2) alguma coisa é sempre um ser; (3) o discurso falso é
sobre o não-ser; (4) o não-ser não pode ser; logo, o discurso falso não pode ser,
é impossível. Na passagem recém mencionada, Platão está admitindo as pre-
missas (1) e (2): o discurso é sempre sobre alguma coisa que é contrária ao
nada, sobre alguma coisa que existe. Esta coisa sobre o qual é o discurso é
representada pelo nome, como se pode ver a partir dos exemplos de Platão:
‘Teeteto está sentado’ e ‘Teeteto voa’ são ambos enunciados sobre Teeteto
(263a).
A exigência de que o nome refira-se a alguma coisa que exista, para que o
enunciado seja um discurso sobre alguma coisa, gera um problema para os
enunciados existenciais negativos. Se dizemos ‘Teeteto não é (não existe)’, e se
este enunciado é verdadeiro, sobre o que ele é?26 Há um outro problema. Este,
porém, parece ser mais fácil de ser resolvido. Trata-se do significado dos ver-
bos. Mas sua formulação e solução dependem da exposição da terceira condi-
ção necessária para a existência do discurso.
O discurso, segundo Platão, deve possuir, como terceira condição necessá-
ria, uma dentre duas “qualidades”: a verdade e a falsidade (263b). As defini-
ções de ‘verdadeiro’ e de ‘falso’ oferecidas por Platão são extremamente bre-
ves. Mas elas são peças decisivas no quebra-cabeça sobre a possibilidade da
falsidade, pois elas determinam como o enunciado verdadeiro enuncia o ser e
como o enunciado falso enuncia o não-ser.

ESTRANGEIRO: ⎯ Ora, aquele [enunciado] que, dentre os dois [enunciados que


têm como nome ‘Teeteto’], é verdadeiro, diz, sobre ti, o que é tal como é.
TEETETO: ⎯ Claro!
ESTRANGEIRO: ⎯ E aquele que é falso diz outra coisa que aquela que é.

26
Este problema sobreviveu aos séculos e foi discutido na contemporaneidade. Uma das
soluções que a ele se deu foi a teoria que admite a existência (ou subsistência) de entidades
possíveis, mas não reais. Willard v. O. Quine (QUINE, 1980, p. 217) identificou esta tese
com a tese de Platão de que o não-ser, de certa forma, é. Mas isso não parece ser correto,
pois, para Platão, o não-ser possui tanto ser quanto o ser; ele possui uma existência real e
não meramente possível. Platão não parecia estar consciente do problema que sua teoria do
discurso gera para os enunciados existenciais negativos.
19
TEETETO: ⎯ Sim.
ESTRANGEIRO: ⎯ Diz, portanto, aquilo que não é.
TEETETO: ⎯ Mais ou menos.
ESTRANGEIRO: ⎯ Ele diz, pois, coisas que são, mas outras, que aquelas que são
a teu respeito; pois, como dissemos, ao redor de cada realidade há, de certo
modo, muitos seres e muitos não-seres. [263b]
[…]
ESTRANGEIRO: ⎯ Assim, o conjunto formado de verbos e de nomes, que enun-
cia, a teu respeito, o outro como sendo o mesmo e o que não é como sendo, eis
exatamente, ao que parece, a espécie de conjunto que constitui, real e verdadei-
ramente, um discurso falso. [263d]

Faz-se necessário aqui uma pequena digressão antes de se examinar esta passa-
gem.
O nome ‘Teeteto’, no enunciado ‘Teeteto está sentado’, nomeia Teeteto, se-
ja este enunciado verdadeiro, seja falso. Teeteto deve existir para que ‘Teeteto’
seja um nome. Neste sentido, se ‘Teeteto’ é um nome, ele expressa um ser, e,
por isso, o enunciado ‘Teeteto está sentado’, seja ele verdadeiro, seja falso, é
sobre alguma coisa. Mas, se este enunciado for verdadeiro, então ele não pode
o ser apenas porque ‘Teeteto’ nomeia algo existente. Algo mais do que Teeteto
em si deve existir para que o enunciado ‘Teeteto está sentado’ seja verdadeiro,
mas o quê? A resposta natural aqui seria: deve existir não apenas Teeteto em si,
mas o fato de Teeteto estar sentado. O nome ‘Teeteto’, portanto, nomeia Teete-
to em si e o enunciado ‘Teeteto está sentado’ descreve algo complexo: aquilo
que é nomeado por ‘Teeteto’ na sua relação com aquilo que é designado por
‘está sentado’. Como assinala Conford, e, ao que tudo indica, corretamente,
esta explicação natural da verdade, em termos apenas da relação entre o enun-
ciado e o fato que ele descreve, não pode ser verdadeira.27
Se o enunciado ‘Teeteto está sentado’ descreve Teeteto sentado, então tal
enunciado é um enunciado legítimo, porque possui uma das duas qualidades
que um enunciado deve possuir para ser um enunciado: ser verdadeiro. A outra
qualidade é o ser falso, o contrário do ser verdadeiro. Agora, se o ser falso é o
contrário do ser verdadeiro, não podemos entender o ser falso como o contrário
do que é explicado no parágrafo anterior. Se o enunciado ‘Teeteto está sentado’
é falso, certamente não é porque ‘Teeteto’ não nomeia nada, pois, neste caso, o
enunciado não seria sobre nada, Mas tampouco ele pode ser falso porque des-
creve um fato inexistente ou fato negativo; algo semelhante aos possíveis não
realizados mencionados por Quine.28 Esta, todavia, não pode ser a posição de

27
CONFORD, s.d., p. 282.
28
Cf. nota 26.
20
Platão, pois o que não existe de forma alguma pode ser, e o que um enunciado
falso descreve é o não-ser, que, todavia, é. Se optamos por descrever o enunci-
ado falso como aquele que não descreve fato algum (existente ou ⎯ se isso faz
sentido ⎯ inexistente), então nos vemos às voltas com a tarefa de determinar a
função do verbo ou predicado no enunciado falso. Na medida em que, no e-
nunciado verdadeiro, o verbo está unido a um nome, ele descreve um fato. O
verbo ‘está sentado’, por exemplo, no enunciado verdadeiro, ‘Teeteto está
sentado’, descreve o estar sentado de Teeteto. Mas qual é a função do verbo
‘voa’ no enunciado falso ‘Teeteto voa’, dado que este enunciado não descreve
nada?
Michael Frede ofereceu, para esta pergunta, uma resposta aparentemente
óbvia e simples. Mas ela parece ter problemas. Diz ele que…

There is no problem, either, about what gets said about the subject, that is,
about flying. There is such a thing as flying. one can give a coherent account of
it. A complete description of the world will have to make some reference to it.
there surely is such a thing as flying, in so far as there are plenty of things that
are flying.29

Nesta passagem parece claro que, para Frede, o voar deve existir para que ‘vo-
ar’ tenha alguma função no enunciado ‘Teeteto voa’. Ele oferece três razões
distintas para se crer na verdade de ‘Há uma coisa tal como o voar’: (1) pode-
se dar uma descrição coerente do voar; (2) uma descrição completa do mundo
deve fazer referência ao voar; (3) existem muitas coisas que voam. A razão (1)
certamente não é uma razão para acreditar que há uma coisa tal como o voar,
pois pode-se dar uma descrição coerente de um unicórnio sem que, por isso,
exista qualquer unicórnio no mundo. A razão (2) é ambígua, pois ‘descrição
completa’ é uma expressão ambígua. Entretanto, uma descrição completa do
mundo, neste contexto, não deve incluir enunciados nem sobre o passado nem
sobre o futuro, pois o que existiu pode não existir mais e o que existirá certa-
mente não existe. Portanto, se (2) é uma razão para crer que há o voar, então
deve reduzir-se a (3). Mas, se a função de ‘voa’ no enunciado falso ‘Teeteto
voa’ é garantida pela existência do voar, e se a existência do voar é a existência
de coisas que voam, o que ocorre se não houver uma só coisa no mundo que
voe?
Parece que não há como escapar desta dificuldade se não interpretarmos a
afirmação ‘Há uma coisa tal como o voar’ como afirmando a existência da

29
FREDE, 1992, p. 197; cf. p. 196.
21
forma do voar.30 Se esta interpretação está correta, então os verbos são expres-
sões que possuem uma mesma função em qualquer enunciado, seja ele verda-
deiro, seja falso: eles referem-se a uma forma, algo que continua a existir
mesmo que não exista nada que dela participe. Sendo assim, num enunciado
verdadeiro, o verbo desempenha duas funções: refere-se a uma forma e descre-
ve a participação que aquilo que é nomeado pelo nome tem desta forma. O
verbo ‘está sentado’, no enunciado ‘Teeteto está sentado’, refere-se à forma
estar sentado e descreve a participação que Teeteto tem desta forma. Tanto
Teeteto quanto a forma do estar sentado são (existem), e, por isso, podemos
entender o enunciado. Mas, além disso, existe a participação de Teeteto da
forma do estar sentado, o que torna o enunciado verdadeiro. O enunciado ver-
dadeiro envolve, pois, a existência de três coisas: (a) aquilo que é nomeado
pelo nome; (b) a forma referida pelo verbo; e (c) a relação de participação entre
o nomeado e a forma. É por isso que Platão menciona três fatores na definição
de enunciado verdadeiro: o enunciado verdadeiro “diz, [a] de ti, [b] o que é [c]
tal como é.” (263a) (a) e (b) garantem que o enunciado é compreensível: ele
diz algo que é (uma forma) sobre alguma coisa (aquilo que é nomeado pelo
nome). A expressão ‘…é sobre…’ significa aqui que a forma está em relação
com o que é nomeado, na medida em que o que é nomeado participa da forma.
(c) garante que o enunciado verdadeiro.
(a) e (b) são comuns ao enunciado verdadeiro e ao enunciado falso, e, devi-
do a isso, constituem a natureza do enunciado, da linguagem. A existência do
que é nomeado por ‘Teeteto’ e a existência do que é referido por ‘voa’ garan-
tem a compreensibilidade ou o sentido do enunciado falso ‘Teeteto voa’; ga-
rantem que este enunciado diz algo de alguma coisa. Resta por explicar como o
enunciado falso diz o que não é, pois isso chocar-se com a afirmação de que
um enunciado diz o que é. É neste ponto que a explicação da possibilidade do
não-ser opera. O enunciado falso diz o que não é na medida em que diz “coisas
que são, mas outras, que aquelas que são” a respeito do que é nomeado pelo
nome. Platão acredita que estar voando e estar sentado são coisas incompatí-
veis.31 Por isso, da verdade de ‘Teeteto está sentado’ ele acredita que se pode
concluir que o enunciado ‘Teeteto voa’ é falso, isto é, que ele diz o que é, o
voar, mas que é outra coisa que aquilo que é em relação a Teeteto, a saber, o
estar sentado. Formalmente, isso pode ser expressado do seguinte modo:

30
Esta é, de um modo geral, a posição interpretativa de Conford (s. d., pp. 284ss.). Po-
der-se-ia postular algum tipo de psicologismo como solução alternativa para determinar da
função dos verbos. Platão, entretanto, não considerou esta hipótese.
31
Poder-se-ia dizer que o passageiro sentado de um avião que está voando está, ao mes-
mo tempo, sentado e voando. Isso todavia, pouco importa. O invariável é a necessidade de
que a negação envolva ao menos dois conceitos incompatíveis. Se um dado par de conceitos
é ou não é incompatível, isso deve ser decidido caso a caso.
22
O enunciado ‘ “Fx” é falso’ diz que há um F e um G tal que se G é em rela-
ção a x, F é outro que não G

Para que esta formulação seja interpretada corretamente, deve-se tomar a ex-
pressão ‘…é outro que não…’ no sentido em que não indica uma diferença
simpliciter, mas uma incompatibilidade, tal como as reflexões sobre o não-ser
expressado por enunciados predicativos negativos concluíram.
Na sua explicação da natureza do enunciado falso, Platão oferece apenas
exemplos de enunciados predicativos singulares e afirmativos. Fica a cargo do
leitor obter as explicações adequadas dos enunciados universais e dos enuncia-
dos negativos. Sobre este último podemos dizer o seguinte:

O enunciado ‘ “~Fx” é falso’ diz que há um F e um G tal que se G não é em


relação a x, F é outro que não G

O enunciado universal não encerra maiores problemas, pois nele o nome é


um termo geral ou nome comum que está sendo usado como nome próprio de
uma forma. Os enunciados que descrevem relações entre formas, tais como ‘O
não-ser é’, são justamente desse tipo.
Com estas reflexões Platão pretende ter demonstrado que pode haver enun-
ciados falsos e, assim, que o sofista é um produtor de coisas falsas, na medida
em que produz enunciados falsos. Isso permite a Platão concluir em 264b-268d
a tarefa que ele havia proposto no início do diálogo: definir o sofista:

Assim, esta arte de contradição que, pela parte irônica de uma arte fundada a-
penas sobre a opinião, faz parte da mimética e, pelo gênero que produz os si-
mulacros, se prende à arte de criar imagens; esta porção, não divina mas huma-
na, da arte de produção que, possuindo o discurso por domínio próprio, através
dele produz suas ilusões, eis aquilo de que podemos dizer “que é a raça e o san-
gue” do autêntico sofista, afirmando, ao que parece, a pura verdade. [268e-d]

8. Conclusão
Se tivermos em mente que dizer ‘É falso que p’ e dizer ‘Não p’ é dizer a mes-
ma coisa, podemos apreciar melhor a razão pela qual pareceu relevante a Pla-
tão elucidar a natureza do enunciado falso elucidando a natureza da negação. A

23
atribuição de falsidade de um enunciado é idêntica à sua negação.32 Mas, a
negação não é um conceito primitivo para Platão. Ela é definida por ele como a
atribuição de uma alteridade em relação a o que é. ‘S não é P’, deste modo, diz
essencialmente ‘S é outro que P’.
Esta análise tem duas consequências importantes. Em primeiro lugar, ela
transforma a negação em uma espécie de afirmação.33 Isso pode ser visto como
um paradoxo. Se a negação é uma espécie de afirmação, e se a negação é o
contrário da afirmação, então a negação é uma espécie do seu contrário. Há
uma solução óbvia para esse paradoxo: Platão não demonstra que a negação é
uma espécie do seu contrário, mas ele simplesmente demonstra que a negação
não é contrário da afirmação. Mas, esta solução não parece ser menos parado-
xal, pois, que a negação é o contrário da afirmação parece inquestionável, seja
o que for que isso signifique. Quando uma pessoa diz ‘S é P’, ela está se posi-
cionando em favor da verdade deste enunciado. Se ela diz ‘S não é P’, ela está
se posicionando contra a verdade de ‘S é P’. Como, então, a negação pode não
ser o contrário da afirmação. Pode-se esboçar uma solução para este problema
baseando-se em algumas reflexões de Ernst Tugendhat. Segundo Tugendhat, se
um enunciado p é a negação do enunciado q, nem sempre podemos concluir
disso que p é um enunciado negativo. O enunciado ‘Cristo é imortal’, por e-
xemplo, é a negação de ‘Cristo é mortal’, mas ‘é imortal’ não é um predicado
negativo e ‘é mortal’, um predicado positivo, pois se ‘é imortal’ é sinônimo de
‘não é mortal’, ‘é mortal’ é sinônimo de ‘não vive para sempre’.34 A negação
⎯ ou, como Tugendhat diz, a “denegação” (Verneinung) ⎯ deve, portanto,
segundo ele, ser entendida como a afirmação de uma tomada de posição contra
a verdade de um outro enunciado.35 A afirmação, por sua vez, é a afirmação de
uma tomada de posição em favor da verdade de um enunciado. O que distingue
afirmação de negação não é, pois, o fato de, num caso, se fazer e de, no outro,
não se fazer uma afirmação, mas de num caso se tomar uma posição a favor e
no outro contra a verdade de um enunciado. São estas posições contrárias que
tornam contrárias a afirmação e a negação. Se isso está correto, não se pode
dizer que as análises platônicas da negação estão equivocadas simplesmente
porque apresentam a negação como uma espécie de afirmação. Platão faz a
contrariedade entre a afirmação e a negação repousar sobre a contrariedade dos
conceitos de o mesmo e outro. Afirmar é dizer de x aquilo que é o mesmo que
é em relação a x. Negar é dizer de x aquilo que é outro que o que é em relação a
32
Cf. PRIOR, 1967, p. 458. Para Platão a negação aparece sempre no interior do enunci-
ado, na forma de um verbo ou predicado negativo. ‘Não p’, deste modo, é um modo de dizer
‘S não é P’ ou ‘S é não-P’.
33
Cf. KOSTMAN, 1973, pp. 205, 207.
34
TUGENDHAT, 1992, p. 71.
35
Idem. p. 72.
24
x. Obviamente, tanto no caso de Tugendhat, quanto no caso de Platão, dizer
que a negação é uma espécie de afirmação, implica a atribuição de dois senti-
dos a ‘afirmação’: em um sentido, ‘afirmação’ significa o gênero que inclui a
negação; no outro, é a espécie deste gênero contrária à negação.
A segunda consequência importante da definição platônica de negação con-
siste numa circularidade. Se a negação, no caso de enunciados predicativos, é a
atribuição de uma alteridade incompatível com o que é, como se pode definir
esta incompatibilidade sem apelar apara o conceito de negação?36 De uma
forma geral, x e y são incompatíveis se, quando x é, y não é, e, quando y é, x
não é. Esta explicação do conceito de incompatibilidade serve-se da negação, a
qual era justamente o conceito que o conceito de incompatibilidade deveria
explicar.37

Bibliografia
CONFORD, M. Francis, “El Sofista”, in _____ La Teoria Platônica Del
Conocimiento: El Teeteto Y El Sofista, Tradución Y Comentario, Trad.
Nestor Luís Cordero e Maria Dolores del Carmen Ligatto, Buenos
Aires, Paidos, s. d., pp. 155-299.
FREDE, Michael. “Plato’s Sophist on False Statements” in: KRAUT, Richard
(ed.) The Cambridge Companion to Plato, Cambridge, Cambridge UP,
1992, pp. 397-424.
KOSTMAN, James. “False Logos and Not-Being in Plato’s Sophist” in:
MORAVICSIK, J. M. E. (ed.) Patterns in Plato’s Thought: Papers Aris-
ing Out Of The 1971 West Coast Greek Philosophy Conference,
Dordrecht-Holland/Boston-USA, D. Reidel Publishing, 1973, pp. 192-
212.
PLATÃO. “Parmênides”. in: _____ Diálogos. Vol. 8. Trad. Carlos Alberto
Nunes, Belém, Universidade Federal do Pará, 1980, pp. 21-85.
________ “Sofista”, Trad. e Notas de Jorge Paleikat e João Cruz Costa, in:
_____ Diálogos, São Paulo, Nova Cultural (Coleção Os Pensadores),
1987, pp. 126-195.
PRIOR, A. N. “Negation”. in: EDWARDS, Paul (ed.). The Encyclopedia of
Philosophy. vol. V. New York, The Macmillan Company & The Free
Press, 1967, pp. 458-463.

36
Cf. KOSTMAN, 1973. p. 207.
37
Talvez a explicação de Tugendhat sofra do mesmo mal, pois ele faz o conceito de ne-
gação repousar sobre o conceito de contrariedade, a qual é uma espécie de incompatibilida-
de. (cf. TUGENDHAT, 1992, p. 72)
25
QUINE, Willard van Orman. “Sobre o que há”. Trad. Luiz Henrique dos San-
tos. São Paulo. in: Ensaios. Trad. Balthazar Barbosa Filho et alli. São
Paulo, Abril Cultural, 1980, pp. 218-229.
TUGENDHAT, Ernst. Lições Introdutórias à Filosofia Analítica da Lingua-
gem. Trad. Mario Fleig et alli. Ijuí, Editora UNIJUÍ, 1992.

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