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jan./jun. 2007
PUBLICADO: 2007-01-01
APRESENTAÇÃO
Apresentação
Márcio Seligmann-Silva
13-26
periodicos.unb.br/index.php/estudos/issue/view/858 1/6
29/10/2019 n. 29 (2007): Escritas da violência | Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea
SEÇÃO TEMÁTICA
Regina Dalcastagnè
55-66
Jogo de xadrez:
representando a violência para crianças
Rosana Bines
87-97
Nicolas Guillén:
as Elegias antilhanas e a poesia em dilaceramento
Vera Lins
99-108
Jaime Ginzburg
109-126
periodicos.unb.br/index.php/estudos/issue/view/858 2/6
29/10/2019 n. 29 (2007): Escritas da violência | Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea
Francisco Hardman
141-152
Helmut Galle
153-164
No entremeio do trágico:
Perlongher e os “Cadáveres” da Nação
Pablo Gasparini
165-178
Estado de exceção:
um novo paradigma da política?
Walter Benjamin:
o estado de exceção entre o político e o estético
Márcio Seligmann-Silva
205-230
periodicos.unb.br/index.php/estudos/issue/view/858 3/6
29/10/2019 n. 29 (2007): Escritas da violência | Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea
Estranhos estrangeiros:
poética da alteridade na narrativa contemporânea brasileira
Rita Olivieri-Godet
233-252
Cultura de massa:
o caso José Agustín
Helena Pereira
253-266
RESENHAS
Michel Laub –
O segundo tempo
Igor Graciano
269-272
Roberto Gomes –
Todas as casas
Adelaide Miranda
272-276
IDIOMA
English
Español (España)
Português (Brasil)
periodicos.unb.br/index.php/estudos/issue/view/858 4/6
Apresentação
Márcio Seligmann-Silva
Passou uma semana, uma árvore da praça caiu de velha, o caminhão do lixo ficou cinco
dias sem passar e as moscas tropeçavam nos olhos das pessoas, o Gustavo Martinez da
casa em frente se casou e os vizinhos ganharam uns pedaços de bolo, o jipe voltou e
prenderam o professor Manuel Pedraza, o padre não quis rezar a missa no domingo, no
muro da escola apareceu escrita a palavra “resistência”, Daniel voltou a jogar futebol e
fez um gol de bicicleta e outro de lençol, os sorvetes subiram de preço e Matilde
Schepp, quando fez nove anos, pediu a Pedro que lhe desse um beijo na boca.
1
Cf. BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, em Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 207.
Esta passagem de Benjamin, como a de Skarmata, mistura diversos registros factuais e nela também
podemos detectar o encadeamento aparentemente banal da exceção e da “vida normal”.
a autoridade da narrativa. Hoje, por sua vez, com a banalização do mal e
da morte, a aura desta senhora está mais do que destroçada. Não por
acaso, de Hebel a Skármeta passa-se de uma temporalidade de décadas
para a de semanas (mais adequada a uma criança, mas também indicativa
de nosso tempo presentificado, roubado da densidade do passado e da pers-
pectiva de futuro). A história natural é vista agora como história natural
da destruição – um tema que Benjamin tematizara em seu ensaio sobre o
barroco alemão e que era também caro a Sebald. Em Skármeta, portanto,
a função da enumeração de fatos históricos/cotidianos assume, de modo
sintomático e programático, um sentido totalmente diverso daquele que
Benjamin comemorou em Hebel. Aqui ele mostra como a arte de narrar
teve que se reinventar na era das catástrofes.
Vera Lins apresenta, em sua contribuição, a poesia elegíaca de Nicolas
Guillén. Este poeta cubano que esteve no Brasil e estabeleceu muitos
laços de amizade com nossos poetas e intelectuais, foi também um gran-
de crítico do governo Batista e um poeta da revolução cubana. Vera
destaca sua “Elegia a Jesús Menendez”, cuja composição se iniciou no
Brasil em 1947 (quando Guillén aqui estava exilado). Ela foi
desencadeada pelo assassinato brutal de um líder sindical negro em
Cuba. A autora ressalta como o poeta se identificava com a luta deste
sindicalista, na medida em que o próprio Guillén era negro e tratava
em seus poemas desta sua descendência de escravos. Ela nota, com
razão, que a poética de Guillén, com seu tom elegíaco, com seu canto
ao mártir/herói, constitui o procênio de uma apresentação da utopia e
da virada futura. Guillén escreve ainda de dentro do espaço da utopia
e das lutas revolucionárias. Sua apresentação da violência é filtrada
por este porvir de liberdade ansiado. Nela se entrecruza teor testemu-
nhal e resistência, melancolia e desejo de mudança social. Este tom,
como Edna Aisenberg2 notou em outro ensaio recentemente publicado,
tornou-se incompatível com nossa era. Já não temos mais espaço para o
elegíaco. Neste sentido, Rubem Fonseca é apenas um dos inúmeros con-
tra-exemplos.
2
Cf. AISENBERG, Edna. “Holocausto, memória judaica e memorial do terror no cone sul”. Remate de
Males, 26.1, jan.-jun. 2006, dossiê “Literatura como uma arte da memória”, pp. 71-80.
Jaime Ginzburg propõe uma leitura da “Vida menor”, de Drummond,
em quatro tempos. Ele parte do próprio Drummond e deste seu poema,
enfatizando particularmente a relação desta produção com o seu contex-
to ditatorial e o fato de ter sido criado quando a Segunda Guerra Mundi-
al ainda estava em seus últimos estertores. Em um corte cronológico – e
ao mesmo tempo estabelecendo uma ponte entre os anos 1940 e a produ-
ção literária brasileira “filha da ditadura”, desta feita da ditadura de 1964-
1985, bem como das gerações que vieram depois –, Ginzburg propõe uma
leitura de “O futuro é agora”, de Marcos Siscar, “Restos de um homem”,
de Lara e Lemos, de “Cogito”, de Torquato Neto, e de “Dilema”, de An-
tonio Cícero. Nestes poemas Ginzburg mostra que ressoa um modo de
decantação do real que guarda “afinidades eletivas” com o poema de
Drummond. Estamos trilhando aqui uma tradição de escritura do real
calcada não no espetáculo da guerra, na apresentação do sangue, mas
antes na reflexão e na melancolia. Aqui o ensimesmamento é a resposta
ao individualismo narcisista da sociedade pós-industrial. E o poema é um
paradoxal casulo que protege (e denuncia, mesmo que às vezes apenas
“ex negativo”) a violência dos donos do poder. A lírica, como percebeu
Benjamin leitor de Baudelaire, torna-se, no capitalismo anti-lira, desen-
cantamento e não auratização do real. Em Drummond também já se ha-
via abandonado a utopia da compreensão total e da redenção. A “poética
do mínimo” não é perlaboração, introjeção com superação da “vida
danificada” (“Das beschädigte Leben”, para falar com Adorno), mas é
sim, como Freud definiu a melancolia, incorporação do real. Trabalho
sem fim, sem esperança de totalidade. Trata-se de um parti pris pelo me-
nor, pelos silêncios, pelas pequenas perplexidades, pelas “lacunas e au-
sências”, como escreve Ginzburg. Da realidade lemos reflexos não-linea-
res, assim como a apreensão do tempo não é linear, mas se desfaz em
blocos isolados. O passado não é mais fonte de nostalgia, nem o futuro se
abre para a revolução. Algo de semelhante o autor detecta na nova lírica
dos anos 1960 e posteriores. Apesar das várias diferenças das poéticas
desses autores (alguns mais irônicos, outros mais dialógicos, outros mais
decididamente melancólicos), as afinidades eletivas deixam-se entrever.
O importante aqui é a tentativa de analisar a violência em seus pequenos
sismos e de traçar uma espécie de (contra) tradição da “precariedade”.
Não se trata de uma estética da fome, ou da pobreza, mas sim de uma
estética do mínimo. Podemos encarar essa literatura como uma escrita de
um real que aos poucos desfaz o Eu, sendo que a lírica, longe de tentar
re-estofar este Eu, conforma-se ao corpo estilhaçado do melancólico. Se
Stendhal e Balzac tentaram, no século XIX, escrever aquilo que a
historiografia deixava fora, a saber, os lares, a família e as relações
interpessoais, com estes autores vemos aquilo que Adorno chamou de
historiografia inconsciente de seu tempo.
O estudo de Sônia Roncador abre uma cena paradoxal de nossa histó-
ria, tanto social como literária. Ela analisa o tratamento recebido pelos
empregados domésticos da parte da literatura da Belle Époqiue, com des-
taque para os romances de Júlia Lopes de Almeida. Esta cena é parado-
xal, porque ela é uma das mais “visitadas” pelo cotidiano da classe média
brasileira, até hoje, mas também, ao mesmo tempo, uma das cenas mais
“fantasmáticas”, sinistras, Unheimlich (estranhas). O universo destes em-
pregados (destas empregadas, e o feminino é importante aqui) é o mais e
menos presente. É o local onde muitas das contradições da classe média
melhor se revelam. A doméstica é a própria definição do “banido”, para
falar com Agamben, daquele que está dentro e fora do sistema de poder:
dentro na mesma medida em que está excluído, que é “carne sacrificial”.
Ela é o “estado de exceção” dentro do lar3, o Un-Heimlich do Heim (lar,
casa)4. O recalcado na “cripta”, que está sempre presente e ausente5. A
doméstica é aquela que é obrigada a desaparecer, a ser não-sendo. Nos
romances de Júlia Lopes, a proximidade com o regime escravocrata per-
mite que este local atópico da empregada fique ainda mais evidente. Ela
é vista como uma peça essencial dentro do trabalho da casa – aquela que
faz o trabalho “sujo” – e ao mesmo tempo como indesejada, como porta-
dora de contaminações, fonte de contágio, invejosa, ladra. Como nota
Sônia Roncador, a empregada é literalmente vista como aquela que deve
3
Cf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. de. Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004; e do
mesmo autor: Homo sacer: O poder soberano e a vida nua. Trad. de H. Burigo. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2002.
4
Cf. FREUD, “Das Unheimlich”, em Freud-Studieausgabe, Frankfurt/M.: Fischer Verlag, 1970, v. IV.
5
Cf. DERRIDA, J. “Fora. As palavras angulosas de Nicolas Abraham e Maria Torok”. Trad. de F. Landa,
em LANDA, Fábio. Ensaio sobre a criação teórica em psicanálise. Seguido de Fora de Jacques Derrida. São
Paulo: UNESP/FAPESP, 1999. pp. 269-319.
ser “domesticada” pelas patroas, como lemos nos manuais dedicados às
donas de casa da época, gênero ao qual Júlia Lopes também se dedicou.
Ela aconselhava às patroas como funcionar panopticamente no seu traba-
lho de vigiar e punir. As domésticas do romance A viúva Simões, de 1895,
analisado por Sônia Roncador, guardam “impressionantes” semelhanças
com as representações das telenovelas de hoje. Eis aí mais um dado da
continuidade da violência na cultura brasileira, para a qual este conjun-
to de ensaios aponta.
A contribuição de Francisco Foot Hardman promove um verdadeiro
mergulho na Amazônia e nas suas representações, com ênfase nos séculos
XIX e XX. Acompanhamos aí um erudito panorama de uma literatura,
infelizmente, em sua maior parte, pouco freqüentada. Representar a
Amazônia, este universo amorfo, esta potência natural que desafia o his-
tórico e a “civilização”, significa tentar dar conta, como bem nota Foot,
de uma das figuras mais eloqüentes do sublime: força que recorda o ho-
mem de sua pequenez insignificante (sublime dinâmico, nos termos de
Kant), dimensão que ultrapassa nossa capacidade de apreensão e de com-
preensão (sublime matemático, segundo o mesmo filósofo). A história da
representação da Amazônia é apresentada por Foot como um caleidoscó-
pio: ora esta região é tomada como locus por excelência do (auto)exotismo
e do regionalismo, ora ela é apresentada como violência bruta e bárbara,
ora ela é incorporada como mais um topos do maravilhoso (e também do
fantástico), ora é tomada como enorme laboratório da natureza (viajan-
tes e cientistas analisam e tentam destrinchar este “monstro”), ora ela é
objeto de uma literatura engajada na qual se denuncia a exploração dos
trabalhadores da borracha, ora ela é terreno fértil para as representações
naturalistas e realistas (palco das tentativas de reconstrução identitária
de imigrados e de seus descendentes, mas também de construção de uma
identidade nacional-amazônica, quando se tenta colá-la ao resto da na-
ção-continente). Evidentemente estes nichos não se apresentam de modo
estanque, os autores cruzam as barreiras entre gêneros e tradições literá-
rias na tentativa de domar aquele espaço transnacional. Predomina no
panorama erguido por Foot um tom melancólico – que não por acaso
lembra o tom de Tristes trópicos e de Saudades do Brasil, de Lévi-Strauss.
Lembremos da famosa frase do antropólogo: “Um espírito malicioso defi-
niu a América como sendo uma terra que passou da barbárie à decadên-
cia sem conhecer a civilização”6. Este tom e modo de ver a história tam-
bém poderia ser confrontado com o de Walter Benjamin, autor que,
conhecidamente, tinha grande identificação com o barroco. Nessa época
o filósofo de Berlim identificara uma concepção da história como história
natural da decadência, e da natureza, como história do arruinamento. A
história é vista como um acúmulo de catástrofes sem perspectivas de re-
denção. Mas Foot, como o anjo da história de Benjamin, também man-
tém acesa uma esperança, se não de redenção, ao menos de representa-
ção, e fecha seu texto afirmando a necessidade de “recolher a Amazônia
das margens arruinadas do planeta e da história, e de trazê-la não só à
memória e ao coração, mas à cabeça e à ação”.
O artigo de Helmut Galle trata de uma conhecida obra de autoria de
Bernhard Schlink, Der Vorlesser (O leitor), de 1995. Ele lê esta obra den-
tro da história das querelas pela reconstrução da memória do nacional-
socialismo. Este livro de Schlink foi alvo de muitas críticas, e Galle se
propõe a se contrapor à acusação de “revisionismo” feita contra o autor.
Um dos motivos pelos quais a obra foi assim classificada é o fato de Hanna
Schmitz, uma das protagonistas da história, despertar sentimentos de com-
paixão, apesar de ter trabalhado como uma capo em Auschwitz. Para Galle
o narrador não impõe esta identificação; muito pelo contrário, ele não
apresenta desculpas para as atrocidades ou propõe uma reconciliação.
Antes, o romance seria para ele um drama que encena as gerações após a
Segunda Guerra. Hanna representaria a geração culpada e seu amante
no romance seria uma espécie de metáfora da segunda geração. A inca-
pacidade deste em condenar aquela, bem mais velha, caracterizaria um
traço que é a marca na verdade daquilo que tem sido denominado de
6
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Trad. de Jorge Pereira. Lisboa: Edições 70, 1986. p. 89. No
livro sobre o Brasil vemos que o autor não apenas se sente atraído pela paisagem ruinosa das cidades
e do campo, mas também possui uma concepção do passado como um fantástico acúmulo de
barbáries. É a extensão do massacre dos índios que interessa ao antropólogo destacar aqui (Cf. LÉVI-
STRAUSS, Claude. Saudades do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 13). Esta revisão
histórica torna a sua epopéia pelo Brasil tanto mais marcada pela decadência e pela barbárie. Lévi-
Strauss surge como uma testemunha de populações que sobreviveram a “um monstruoso genocídio”
(p. 14) que se estende desde a chegada dos europeus até hoje. Ele viu “os últimos sobreviventes
desse cataclismo que foi para seus antepassados [sc. dos índios] o descobrimento e as invasões que
se seguiram” (p. 16).
“terceira geração” (ou seja, a geração pós-queda do muro) que teria dei-
xado de lado o movimento de ruptura com a geração dos nazistas e teria
tomado como tarefa integrar esta geração, sem recair na identificação
com as vítimas. Galle identifica Schlink a esta posição da chamada “ter-
ceira geração” e justifica esta “virada”. Para esta “terceira geração” seria
necessária, para a “identidade nacional e histórica dos alemães”, uma
recuperação da “geração dos culpados”. No contexto dos demais textos
deste dossiê, este artigo mostra como na Alemanha a construção do pas-
sado tende a dividir os alemães em gerações, enquanto, por exemplo, no
caso brasileiro tende-se não a condenar in toto a geração da ditadura,
mas apenas os que são identificados ou como membros do aparato de
poder ou como entusiastas daquele regime. A diferença está, entre ou-
tros muitos pontos, na radicalidade do mal praticado pela Alemanha na-
zista e sobretudo na distância entre o totalitarismo nazista e o autoritarismo
da ditadura. Como a construção da auto-imagem alemã passa, para mui-
tos, por esta necessidade (ou impossibilidade, conforme a perspectiva) de
se introjetar esta geração dos Täters (dos que fizeram), a atual geração
tende, como nota Rüsen, e Galle concorda, a realizar esta introjeção
desta “geração” (ou da sua imagem), antes demonizada pela geração do
pós-guerra (a chamada “segunda geração”). Esta revisão histórica, no
entanto, ainda está não concluída e nem mesmo é consensual7. Isto ficou
7
É interessante notar que A menina que roubava livros (Trad. de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro:
Intrínseca, 2007), recente best-seller do autor australiano Marcus Zusak, descendente de alemães
e austríacos, guarda certas semelhanças com esta cena da representação das gerações pós-guerra,
observadas como gerações-memória. Essa obra tem recebido uma recepção entusiástica em toda a
Europa e nos Estados Unidos, e inclusive foi resenhada com profunda admiração por críticos judeus.
No livro somos guiados pela Morte, que narra a história da pequena Liesel, uma menina que
aparentemente perdeu o pai, perseguido pelos nazistas por ser comunista, e depois a própria mãe.
Tendo sido adotada por uma típica família de classe média de um pequeno vilarejo na Bavária,
Liesel vive uma vida de criança em tempos de guerra, com suas alegrias e tristezas. Por meio dela
ficamos conhecendo os principais moradores da cidade, muitos deles nazistas convictos, e passamos
a admirá-los enquanto “gente como a gente”. Por exemplo, a esposa do prefeito, que usa uma
suástica até no roupão, torna-se uma das personagens mais simpáticas da cidade, cúmplice de Liesel
em seus “roubos” de livros. Quando a vizinha de Liesel vive a experiência de perder um filho no
campo de batalha e o outro se suicidar, o drama (ou melodrama...) conduz o leitor a se identificar
com essa mãe, que deixa de ser nazista e se torna simplesmente uma mãe. Liesel liga-se emocional-
mente tanto com estes personagens nazistas, como com um judeu que é escondido na casa dos pais
claro, por exemplo, como recorda Galle, quando da recepção da obra de
Goldhagen sobre os carrascos voluntários de Hitler em 1996. Se o livro se
tornou um best-seller (mostrando que a voz da “segunda geração” ainda
era forte), por outro lado também é verdade que ocorreram pesadas críti-
cas do lado dos “especialistas” no tema e também de parte da grande
imprensa (como foi o caso do semanário Die Zeit).
Pablo Gasparini apresenta uma interessante leitura da relação da es-
critura particular de Néstor Perlongher com a violência. Para Gasparini,
o modo de aproximação da violência que Perlongher desenvolveu, sobre-
tudo do regime de violência que vivia a Argentina da ditadura, assim
como a guerra das Malvinas, seria parte de seu “projeto” de construção
literária em “entremeio”: entre as línguas e discursos. Ao invés de entrar
na lógica da veneração e de sacralização do projeto, antes de mais nada
da pátria e de sua língua, Perlongher, com uma escrita banhada em seu
tempo e que não censurava as demandas do corpo, desacralizou estes
templos da “propriedade”. Nada nele lembra a nostalgia da pátria, mas,
antes, o exílio parece ter despertado nele uma pulsão desconstrutora da
origem. Gasparini o compara à figura de Moisés como aquele que se de-
belou contra a filiação. Como parte desta postura existencial, Gasparini
percebe uma “resistência a uma enunciação ou estética do trágico”.
Quando este é apresentado, como no caso da guerra das Malvinas, existe
adotivos dela por alguns meses – o que leva a um relativismo das posições ocupadas por algozes e
vítimas. No fim do livro, a cidade é barbaramente bombardeada pelos exércitos aliados. Contrarian-
do os fatos históricos, os nazistas morrem em grande parte e comemora-se a sobrevivência justamen-
te de Liesel (filha de opositores ao regime) e do judeu Max Vandenburg. Liesel serve, no livro, de
meio para o autor apresentar a guerra do ponto de vista da “normalidade”, dos alemães nazistas
como cidadãos dignos e normais. Como nota Galle ao analisar a obra de Schlink, já outros autores
fizeram este movimento que foge da “demonização” dos nazistas. Mas no caso de Zusak a novidade
parece ser que ninguém mais se escandaliza com este ponto de vista. Na obra parece ser plenamente
conciliável a convivência normal e feliz a alguns quilômetros de um campo de concentração (O que
lembra a normalização do período nazista feita pela escola de história do cotidiano de Martin
Broszat. Cf. FRIEDLÄNDER, S. e BROSZAT, M. “A controversy about the historicization of national
socialism”, em BALDWIN, P. (ed.), Reworking the past: Hitler, the Holocaust and the historians. Boston:
Beacon Press, 1990. pp.102-34.). O tom kitsch e melodramático da narrativa de Zusak ao mesmo
tempo corrobora para este “escândalo” e confirma a cumplicidade entre este modelo estético e um
ponto de vista conservador.
uma encenação sexualizada onde não resta espaço para o herói ou a cons-
trução de uma eventual nação dividida entre vítimas e algozes. O próprio
registro do portunhol já afasta a escrita de Perlongher de qualquer pre-
tensão representacionista. Ao invés de tentar espelhar o real, ele o mani-
festa em uma escritura corporal. Ao invés de erigir monumentos, argu-
menta Gasparini, ele construiu anti-monumentos, lembrando a estética
do precário, de artistas como Jochen Gerz, Thomas Hirschhorn ou Bispo
do Rosário. Sua língua anômica, que é adepta da lógica da indefinição, é
caracterizada pelo “errar”, tanto no sentido de se opor ao suposto “acer-
to” da língua, como também enquanto flanar sem rumo – que é neste
autor aproximado da cena pedestre daqueles que circulam pelas zonas
das cidades. O gozo desta língua é também duplo: é rir e jouir, gozação/
desacralização e prazer oblíquo. Exposição do abjeto. Sem buscar lançar
raízes em qualquer identidade, essa escrita errante tende mais para uma
performance da violência – performance teatral e irônica – do que ao
tom melancólico, lutuoso e muito menos ao elegíaco.
O trabalho de João Camillo Penna traça um competente duplo painel
que pode servir de roteiro para pensarmos muitas das questões envolvidas
na escrita da violência. De um lado, ele descreve uma espécie de diag-
nóstico da violência nos dias de hoje no Brasil e no mundo. Ele apresenta
em que medida o estado de exceção se apropriou da política. Do Brasil
sendo governado por decretos ao Patriot Act de Bush, passando pelas inú-
meras guerras (que extrapolam a caracterização de internas ou exter-
nas), pode-se falar de uma onipresença da exceção. A criminalização da
pobreza em todo o mundo leva tanto à incessante onda de prisões e
desmandos dos aparatos de “segurança” (transformados em tribunais com
força de execução sumária: force de loi8) dentro dos países (seja no Brasil,
na França ou nos EUA), assim como à nova guerra imperialista levada a
cabo para controlar os estados rebeldes ao monopólio do poder internaci-
onal. Num segundo passo, Camillo propõe a valorização das obras de Marx,
Foucault, Negri, Hardt e (cum grano salis) de Carl Schmitt como meio de
contraposição à sociedade disciplinar e ao biopoder nas mãos das elites.
Especificamente com relação ao caso brasileiro, ele enfatiza a necessidade
8
Cf. DERRIDA, Jacques. Force de Loi. Le “Fondement mystique de l’autorité”. Paris: Galilée, 1994.
de se pensar a origem de nossos males na época da última ditadura mili-
tar: “É no período autoritário que se funda o direito da exceção policial,
a penalização da população, a prática da tortura, e a militarização da
sociedade; é aqui que ele toma pé na sociedade brasileira”, escreve
Camillo.
Minha contribuição desdobra um dos aspectos desta questão, a saber,
o conceito de estado de exceção na sua gestão entre os filósofos Carl
Schmitt e Walter Benjamin. Parto do ensaio de Walter Benjamin de 1921,
que inspirou Schmitt a desenvolver este conceito, o “Zur Kritik de Gewalt”
(“Crítica da violência/poder”), e procuro apresentá-lo em uma tentativa
de close reading. O trabalho também apresenta os ensaios recíprocos de
aproximação entre Benjamin e Schmitt, um caso na história intelectual
do século XX que causa tanta espécie quanto a relação de Hanna Arendt
e Heidegger. O elemento central do texto de Benjamin, de 1921, é justa-
mente o desdobramento do conceito de Gewalt enquanto unidade
inseparável de poder e de violência. Qualquer reflexão sobre a escrita da
violência deveria, pensando com Benjamin, levar em conta esta sua rela-
ção essencial com todo e qualquer poder. Para além deste ensaio de 1921,
o texto apresenta também como em Benjamin, diferentemente de Schmitt,
o conceito de estado de exceção não levou a uma valorização do sobera-
no, mas antes a uma crítica desse (como foi o caso do seu ensaio sobre o
drama barroco alemão). Por outro lado, ao mesmo tempo Benjamin incor-
porou uma noção epistemológica (e estética) de exceção como meio de
crítica daquilo que hoje chamamos de cânone e dos aparatos conceituais
a ele vinculados. Já na sua tese “Sobre o conceito da história”, escrita em
1940, em plena guerra, a exceção reaparece como um estado onipresente
na política. No mesmo texto Benjamin fez o famoso plaidoyer por um au-
têntico estado de exceção, ou seja, por uma revolução que interrompesse
com o caminhar da história enquanto constante acúmulo de ruínas e de
catástrofes, a saber, enquanto continuidade de domínio e exploração da
natureza e dos vencidos.
Com este conjunto de ensaios sobre a questão da escrita da violência,
para além de dar início às publicações coletivas do Projeto Temático
FAPESP “Escritas da Violência”, esperamos estar de algum modo contri-
buindo para os debates dentro da nossa academia sobre esta temática
tão (oni)presente e merecedora de pesquisa. Não são poucos os desafios
relativos a esta proposta de abordagem, assim como este painel mostra
que as possibilidades de enfrentamento destas dificuldades são plurais e
podem ser muito produtivas. Uma idéia que vem à mente lendo estes
ensaios – evidentemente escritos justamente para destacar o papel da
violência no campo das manifestações simbólicas – é que a violência é
um ingrediente sine qua non para a literatura e as artes. Esta afirmação é
corroborada pela máxima benjaminiana (e marxista) segundo a qual todo
documento de cultura é um testemunho da barbárie, ou ainda pelo ponto
de vista da psicanálise que vê o universo simbólico como fruto de um
conflito com as pulsões e com Tânatos. O fundamental, no entanto, é a
tentativa de caracterização das infinitas modalidades de relação com este
núcleo violento de nosso estar no mundo. Simplesmente detectar o teor
violento ou a face sacrificial de todo documento da cultura (que funcio-
na como “dom apaziguador” da ameaça e do medo: um núcleo das artes
desde as pinturas nas cavernas e da tragédia) não nos libera da árdua
tarefa de estudar o “como” desta relação entre violência e cultura. Espe-
ramos que em próximos encontros, em seminários ou em outras publica-
ções coletivas como esta, as sementes lançadas aqui possam se desdobrar.
Gostaríamos ainda de agradecer a Regina Dalcastagnè pela generosi-
dade de nos ter oferecido as páginas destes Estudos de Literatura Brasileira
Contemporânea para este dossiê.
1
Chauí, “A não-violência do brasileiro, um mito interessantíssimo”, passim.
2
Oliven, Violência e cultura no Brasil, passim.
3
Id., p. 14.
30 Karl Erik Schollhammer
Eu quis homenagear o que penso que seja a revolta individual social: a dos chamados
marginais. Tal idéia é muito perigosa, mas algo necessário para mim: existe um contras-
te, um aspecto ambivalente no comportamento do homem marginalizado: ao lado de
uma grande sensibilidade está um comportamento violento e muitas vezes, em geral, o
crime é uma busca desesperada de felicidade4.
4
Oiticica apud Duarte, Anos 60: transformações da arte no Brasil, p. 63.
32 Karl Erik Schollhammer
5
Facó, Cangaceiros e fanáticos.
34 Karl Erik Schollhammer
6
Sussekind, Literatura e vida literária e Dalcastagnè, O espaço da dor.
Breve mapeamento das relações entre violência e cultura... 35
2
Bosi, O conto brasileiro contemporâneo.
8
Silva, Nos bastidores da censura.
36 Karl Erik Schollhammer
9
Fonseca, “O Cobrador”, p. 492.
38 Karl Erik Schollhammer
Os anos 1980 e 90
Se a década de 1970 já tinha mostrado um aumento quantitativo do
crime nas cidades brasileiras, causando um sentimento público de inse-
gurança e medo da violência na classe média acossada em condomínios
fechados e prédios cercados de grades e seguranças particulares, os anos
80, em que o plano político deu lugar à volta da democracia direta, são
marcados pelo aperfeiçoamento do tráfico de drogas, pelos seqüestros,
assaltos a transportes de valores e ousados assaltos a bancos. O novo perfil
do crime pesado garantia a presença do capital de investimento do tráfi-
co e tornava possível a sua manutenção, graças ao poderoso armamento
militar introduzido nas favelas cariocas. A insegurança nas ruas aumen-
tava, com o aumento de assaltos armados e com a aceleração de latrocí-
nios e assassinatos, somando-se a isso a ineficiência flagrante das polícias
brasileiras. O bandido dos novos tempos é um frio assassino ou um solda-
do do tráfico ainda em plena adolescência, sem os valores de honra e a
ética marginal do seu antecessor na malandragem. Nos últimos anos da
década, o Comando Vermelho começa a perder hegemonia e se divide
10
Ventura, Cidade partida, p. 78.
Breve mapeamento das relações entre violência e cultura... 39
11
Penna, “Marcinho VP: um estudo sobre a construção do personagem”.
40 Karl Erik Schollhammer
12
Herschmann, “A imagem das galeras Funk na imprensa”.
13
O processo de retorno à democracia durante os anos 1980 também abria para uma reflexão na
literatura sobre a violência política ligada à opção pela luta armada contra a ditadura, que foi
discutida e revisada em romances de cunho memorialista e autobiográfico, como A casa de vidro, de
Ivan Ângelo (1979), O calor das coisas, de Nélida Piñon (1980), Os Carbonários, de Alfredo Sirkis
(1981), e O que é isso, companheiro? (1981), de Fernando Gabeira. Não só foi um momento de
autocrítica e revisão das posturas e opções na luta contra a ditadura, mas também um testemunho
da memória mais violenta e traumática das prisões políticas e dos porões de tortura do regime
militar que evidenciou uma realidade ainda presente em muitos centros carcerários no país (Ginzburg,
“Escritas da tortura”).
Breve mapeamento das relações entre violência e cultura... 41
14
No livro Elite da tropa, escrito em colaboração com dois policiais militares, Luiz Eduardo Soares
conta o outro lado da história num relato sobre o dia-a-dia do comando de elite BOPE, e as práticas
ilegais e transgressoras cometidas na guerra contra o tráfico.
42 Karl Erik Schollhammer
15
O homem do ano (2003), de José Henrique Fonseca, com roteiro de Rubem Fonseca.
Breve mapeamento das relações entre violência e cultura... 43
16
Pereira et al., Linguagens da violência.
Breve mapeamento das relações entre violência e cultura... 45
17
Souza, Sindicato do crime: PPC e outros grupos, passim.
Breve mapeamento das relações entre violência e cultura... 47
desconhecem o destino fatal que aguarda aquele que não conseguir sair
a tempo desse caminho sinistro. Dos 17 meninos entrevistados em 2003,
apenas um sobreviveu até hoje e alguns morreram já durante a própria
filmagem. Não se comenta esse trabalho para entrar na discussão do pro-
blema da violência e do tráfico “em si”, mas para sugerir que tal projeto
representa um tipo de engajamento que apenas tem sido possível pela
criação de formas inovadoras de colaboração e interação entre artistas,
ativistas comunitários, produtores culturais e intelectuais que, ao mesmo
tempo, conseguem apoio e cobertura de poderosas instituições de política
e mídia como, por exemplo, a Rede Globo. É evidente que precisamos
questionar criticamente o interesse comercial que a Rede Globo vê nesse
projeto. E não há dúvida que se calculam muitos benefícios nada altruís-
tas em termos de imagem e de produção de um fato que a mídia recicla
em sucessivas auto-referências de jornalismo sobre o jornalismo próprio.
Não obstante, é ainda difícil medir o efeito dessa estranha aliança que
tornou possível uma divulgação do debate para um público de mais de 50
milhões de brasileiros ligados ao aparelho televisivo no horário exclusivo
de domingo. Os autores do documentário conseguem ao mesmo tempo
driblar os perigos do jornalismo sensacionalista e colocar perguntas críti-
cas. Sem soar ofensivos nem pedantes, ambos conversam com os envolvi-
dos com a franqueza de quem cresceu enfrentando os mesmos problemas,
e estimulam os jovens a falar sem hesitações, com grande sinceridade e
afeto. O valor do projeto Falcão está no tipo de engajamento que só tem
sido possível pela criação de formas inovadoras de colaboração e interação
social, que viabiliza o apoio e cobertura de poderosas instituições de po-
lítica e mídia como, por exemplo, a Rede Globo.
A história da colaboração entre MV Bill e Celso Atayde é interessan-
tíssima e mereceria um trabalho extenso. Ambos possuem um longo currí-
culo de eventos, projetos, produtos e obras culturais, assim como visibili-
dade na mídia, resultado de provocações e de declarações críticas contra
a opinião pública. A sua mais recente realização foi o livro Cabeça de
Porco (2006), escrito a seis mãos em colaboração com o sociólogo Luiz
Eduardo Soares. Com um estilo pessoal e ao mesmo tempo coletivo, regis-
tram nesse livro impressões, reportagens e entrevistas em favelas, perife-
rias e comunidades carentes de todo o Brasil, oferecendo uma radiografia
de extraordinária amplitude do problema do crime organizado e do tráfi-
50 Karl Erik Schollhammer
18
Rocha, “A dialética da marginalidade”.
Breve mapeamento das relações entre violência e cultura... 51
Referências bibliográficas
ATHAYDE, Celso e MV BILL. Falcão: meninos do tráfico. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2006.
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. Abusado: o dono do Morro Dona Martha. Rio de Janeiro: Record,
2004.
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CHAUÍ, Marilena. “A não-violência do brasileiro, um mito interessantíssi-
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DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1979.
DALCASTAGNÈ, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasilei-
ro. Brasília: Editora da UnB, 1995.
DUARTE, Paulo Sérgio. Anos 60: transformações da arte no Brasil. Rio de
Janeiro: Campos Gerais, 1998.
FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos: gênese e lutas. 6ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira. 1980.
52 Karl Erik Schollhammer
Karl Erik Schollhammer – “Breve mapeamento das relações entre violência e cultura no Brasil
contemporâneo”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de
2007, pp. 27-53.
Nas tripas do cão: a escrita como
espaço de resistência
Regina Dalcastagnè
Abro as mãos ante os olhos no âmago da noite e não as vejo. Crio um casulo
de trevas. Questiono o meu ofício de escrever em face da opressão. Fico
ouvindo a resposta que se forma no ponto mais protegido e inviolado do meu
corpo. A máquina da opressão alcança-me através das paredes e da carne.
Todos os seus guardas e artífices dormem, todos - rodeados de arames,
casamatas, armas – e ela, a máquina, opera. Máquina ou cão? Não há
modo algum de escapar ao seu hálito.
1
Uma versão anterior deste artigo foi publicada no nº. 61 da Revista de crítica literaria latinoamericana.
2
Abelaira, Bolor, p. 70.
3
Id., p. 72.
56 Regina Dalcastagnè
4
Ângelo, A festa, p. 123.
5
Sobre estas estratégias, ver Dalcastagnè, O espaço da dor.
Nas tripas do cão 57
artistas, mas sim com a consciência dolorosa de que se a arte não envolve o
criador com as dificuldades de seu tempo, ela se esgota em sua própria
realização6. Isso porque “nenhum problema essencial da arte, salvo dificul-
dades técnicas, pode ser resolvido somente pela arte”7. A ansiedade surgi-
ria então, “não como um reflexo da condição dos artistas, mas como resul-
tado da reflexão que eles fazem sobre o papel da arte em outras atividades
humanas” e se manifestaria, sobretudo, no questionamento da própria arte8.
Escrita contaminada
Esse questionamento começa, tanto em Avalovara quanto em Um ro-
mance de geração, pela indagação dos motivos do escritor. Abel, no livro de
Osman Lins, procura de algum modo se constituir a partir da escrita, usan-
do-a para nomear o mundo e tornar-se senhor de seu destino. Mas precisa
dela também para alcançar os outros homens, afinal são eles que legitimam
sua identidade, que o fazem único num mundo habitado há milhares de
anos e que o tornam igual a todos aqueles que um dia pisaram a superfície
da Terra9. Acomodando em si a ambigüidade, ele busca um texto que lhe
permita “alcançar o cerne do sensível”10, mas que, ao mesmo tempo, dê
conta da superfície do real – e portanto do tempo histórico (no caso, o
regime de 64 no Brasil): “Procuro entrever e nomear um fragmento do que
jaz sepultado sob as aparências. Assoma, entretanto, nos meus textos
conflituosos e híbridos, a História – dissonante, sem integração possível –
em uma de suas manifestações mais soturnas. Um quisto: cáustico e arbi-
trário”11. A escrita, para ele, é um canal de acesso ao mundo, que pode
estar obstruído pelas circunstâncias, mas que mantém sua integridade.
6
Rosenberg, Objeto ansioso, p. 18.
7
Id., p. 23.
8
Id., pp. 19 e 20.
9
Como lembra Hannah Arendt, “se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-
se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das
gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que
existiram, existe ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da ação para se fazerem
entender. Com simples sinais e sons, poderiam comunicar suas necessidades imediatas e idênticas”.
Arendt, A condição humana, p. 188.
10
Lins, Avalovara, p. 223.
11
Id., p. 328.
Nas tripas do cão 59
Perdi o tesão. Perdi o tesão desde o dia em que percebi o quanto as palavras eram falsas,
tão falsas como essa vodka aqui (...). Que, uma vez descrito em palavras, um seio
deixava de ser um seio. Numa folha de papel um seio só podia mesmo “arfar de
expectativa”. Que o seio não era o seio, a vodca não era a vodca e mesmo o gosto
péssimo na boca deixava de ser o gosto péssimo na boca para tornar-se apenas a frase
“um gosto péssimo na boca” escrita numa folha de papel. E até mesmo as sensações mais
concretas como esse gosto péssimo na boca deixavam de ser qualquer sensação porque
se procurava agarrá-las pelo rabo, utilitariamente, para transformá-la num texto literá-
rio qualquer. E o que dirá então, das sensações mais sutis e perfumadas como o amor e
12
Sant’Anna, Um romance de geração, p. 26.
13
Id., p. 35.
14
Id., p. 40.
15
Id., p. 24.
60 Regina Dalcastagnè
o desejo? Algo que antes era vital como o desejo formigando entre as pernas passava
mesmo a ser uma “sensação sutil e perfumada”16.
16
Id.. pp. 44-5.
17
Gusdorf, La parole, p. 37.
18
Lins, Avalovara, p. 261.
19
Ver Starobinski, Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo, passim.
Nas tripas do cão 61
Pode um artista manter-se fiel às indagações que mais intensamente o absorvem e realizar
sua obra, ignorando a surdez e a brutalidade, como se as circunstâncias lhe fossem propí-
cias – a ele e à obra. Talvez se convença de que deste modo a preserva e se resguarda da
infecção. Engana-se ou procura enganar? Isto, não sei. Sei que obra e homem, ainda assim,
estão contaminados e, o que é mais grave, comprometidos indiretamente com a realidade
que aparentam desconhecer. Ele e sua obra resgatam uma anomalia: testemunham (teste-
20
Gorz, Métamorphoses du travail, p. 216.
21
Cit. in Chauviré, Wittgenstein, p. 48.
62 Regina Dalcastagnè
munho enganoso, bem entendido) que a expansão, a pureza e a soberania da vida espiri-
tual não são incompatíveis com a opressão, e nos levam mesmo a indagar se esta, além de
as admitir, não propicia grandes percursos do espírito22.
22
Lins, Avalovara, pp. 339-40.
23
Id., p. 364.
24
Sant’Anna, Um romance de geração, p. 68.
25
Id., pp. 68-9.
26
Rosenberg, Objeto ansioso, p. 19.
Nas tripas do cão 63
do-se na vergonha por não lutar por aquilo em que acredita, ele está
sempre frustrado, vendo nos outros o reflexo do seu fracasso:
Esta noite sonhei que vivia no Porto em 1830. De repente, vindo de Londres, o Alexan-
dre Herculano aparece em minha casa e diz-me: “Vamos desembarcar dentro de poucas
horas, precisamos do teu apoio”. Acordei nesse instante com suores frios e, por acaso,
lembrei-me do sonho interrompido. Pensei então, repousadamente acordado: Que res-
ponder? “Não conte comigo”? Nunca mais poderia olhar para ele a direito (nunca mais
poderia olhar para mim mesmo a direito), mas como dizer-lhe: “Conte comigo” se o medo
invadira o meu coração e a minha alma? Sem querer, sem dar por isso, surpreendi-me a
raciocinar deste modo: “porque vieste? Eu vivia em paz, sim, vivia em paz, sabedor de que
nada poderia fazer, crente de que era por isso que nada fazia. Porque vieste?”27
27
Abelaira, Bolor, p. 51.
28
Sant’Anna, Um romance de geração, p. 69.
64 Regina Dalcastagnè
nos intestinos de um cão. A sufocação e a sujeira, por mais que procure defender-me,
fazem parte de mim – de nós. Pode o espírito a tudo sobrepor-se? Posso manter-me
limpo, não infeccionado, dentro das tripas do cão? Ouço: “A indiferença reflete um
acordo, tácito e dúbio, com os excrementos”. Não, não serei indiferente 29.
Tanto Abel quanto Carlos Santeiro produzem uma escrita que já nasce
contaminada pela opressão e que não se pretende pura ou elevada apesar
dela. Uma arte que não resolve seus dilemas, mas que também não se deixa
vencer por eles, que não se intimida nem se deixa anular. É que o
questionamento, e mesmo a suspeita, no campo da produção artística não
precisa ser sinônimo de paralisia, ou estagnação. Não é assim para Abel e
Santeiro, nem para Aleixo ou Humberto, tampouco para seus autores. A
síntese do problema pode não ser uma solução, apenas um encaminhamen-
to, provisório, circunstancial. A decisão de continuar escrevendo, ou pin-
tando, comporta então a necessidade de explicitar a dúvida, a ansiedade:
Dentro de mim ou dentro da noite, procuro ouvir as respostas. Não pretendo ser limpo:
estou sujo e sufocado, nos intestinos de um cão. Angustia-me, claro, reconhecer que a
sombra da opressão infiltra-se nas minhas armações e envenena-as. Por outro lado, isto
me causa uma espécie de alegria negra. Que se salve, das tripas, o que pode ser salvo –
mas com o seu cheiro de podridão30.
31
Sant’Anna, Um romance de geração, p. 45.
32
Lins, Avalovara, pp. 281-2.
33
Apud Bourdieu, La domination masculine, p. 38.
66 Regina Dalcastagnè
Referências bibliográficas
ABELAIRA, Augusto. Bolor. 2ª ed. Amadora: Bertrand, 1970.
ÂNGELO, Ivan. A festa. São Paulo: Summus, s.d.
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CHAUVIRÉ, Christiane. Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
DALCASTAGNÈ, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance
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GORZ, André. Métamorphoses du travail: quête du sens. Paris: Galilée,
1988.
GUSDORF, Georges. La parole. Paris: Presses Universitaires de France, 1963.
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SANT’ANNA, Sérgio. Um romance de geração. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1980.
STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo.
São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
Regina Dalcastagnè – “Nas tripas do cão: a escrita como espaço de resistência”. Estudos de Literatura
Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 55-66.
Pior do que assassino …
Ettore Finazzi-Agrò
Roberto Vecchi
1
O presente artigo é fruto de uma discussão conjunta sobre a escrita da violência a partir de uma
releitura do célebre – por inúmeras razões, inclusive extraliterárias – volume de contos Feliz Ano
Novo, de Rubem Fonseca. Apesar disso, os dois textos que decorreram desse confronto são de
autoria individual – o nº. 1 (“a testemunha”) de Ettore Finazzi-Agrò; o nº. 2 (“a exceção”) de
Roberto Vecchi – e refletem opções, opiniões, estilos de cada um dos seus autores. A combinação
dos dois ensaios, no entanto, produz um valor acrescido, permitindo detectar preocupações co-
muns, fios entrelaçados, margens sobrepostas, que, não por acaso, deságuam num desfecho comum
que, mais do que encerrar, descortina outros problemas de ordem crítica. Por essas razões, os
autores resolveram dispor dentro de uma única moldura o produto de um trabalho, ao mesmo
tempo, conjunto e individual.
68 Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi
O exemplo talvez mais claro desse dilema moral é o debate que se vem
desenvolvendo nos últimos anos no âmbito da antropologia dita “científi-
ca”: como guardar uma atitude imparcial (científica, justamente) na des-
crição e na análise de fenômenos, sociais ou simplesmente humanos, extre-
mos? Um pesquisador que pretenda estudar acontecimentos históricos
marcados por uma brutalidade gritante e insuportável (que podem ir da
organização e da atuação de bandas de jovens marginais nas periferias ur-
banas até aos, aparentemente infindáveis, genocídios que ponteiam a nos-
sa época), deve manter uma atitude puramente descritiva ou, ao contrário,
assumir uma posição crítica, de aberta condenação dos mecanismos que
impulsionam a violência? Alternativa, esta, que fica todavia não resolvida,
visto que uma participação emocional do pesquisador pode prejudicar o
êxito do seu trabalho, e, por outro lado, a reivindicação da imparcialidade
do observador é, pelo menos, discutível, senão impossível – deixando espa-
ço, aliás, à suspeita de uma certa cumplicidade, de uma complacência
mórbida com a violência representada, por parte do espectador-cientista.
De fato, o paradoxo em que o antropólogo se embate pode ser assimi-
lado ao paradoxo da testemunha, como ele é definido, por exemplo, por
Giorgio Agamben no âmbito da Shoah:
exatamente pelo fato de o testemunho ser a relação entre uma possibilidade de dizer e
ter o seu lugar, ele pode se dar apenas através da relação com uma impossibilidade de
dizer – ou seja, apenas como contingência, como um poder não-ser. (...) O testemunho
é uma potência que se dá realidade através de uma impotência de dizer e uma impossi-
bilidade que se dá existência através de uma possibilidade de falar2.
2
Agamben, Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita, pp. 135-6.
70 Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi
que uma boa história tem que terminar com alguém morto. Estou matando
gente até hoje” – IG4, p. 163; “Nenhum escritor gosta realmente de escrever.
(...) É uma doença” – IG, p. 174); sobre a necessidade da pornografia (“Isso
que chamam pornografia nunca faz mal e às vezes faz bem”– IG, p. 174; “A
pornografia está ligada aos órgãos de excreção e de reprodução, à vida, às
funções que caracterizam a resistência à morte” – IG, id.); sobre, enfim, a
própria literatura (apesar de possuir “cerca de cinco mil” livros, o Autor de-
clara: “Odeio o Joyce. Odeio todos os meus antecessores e contemporâneos”
– IG, p. 170), acrescentando que não existe nenhuma literatura latino-ame-
ricana “nem mesmo uma literatura brasileira”, “existem pessoas escrevendo
na mesma língua, em português, o que já é muito e tudo” (IG, p. 173).
Uma série de afirmações, como se vê, marcadas fundamentalmente
por duas instâncias que já temos encontrado ao longo de Feliz Ano Novo:
a necessidade do realismo, por um lado
4
As referências ao conto “Intestino grosso”, de Rubem Fonseca, serão indicadas pela sigla IG,
acompanhada do número de página.
Pior do que ser assassino... 75
No meu livro Intestino grosso eu digo que, para entender a natureza humana, é preciso que
todos os artistas desexcomunguem o corpo, investiguem, da maneira que só nós sabemos
fazer, ao contrário dos cientistas, as ainda secretas e obscuras relações entre o corpo e a
mente, esmiúcem o funcionamento do animal em todas as suas interações (IG, p. 171).
5
Virno, Il ricordo del presente, p. 44.
6
DaMatta, “As raízes da violência no Brasil”, pp. 17-26.
Pior do que ser assassino... 77
O redemoinho da violência
De fato, a violência nos contos de Feliz Ano Novo é uma violência que
não tem uma direção única e detectável. Trata-se mais de uma violência
multidirecional, excêntrica, que resiste a encontrar uma forma unívoca
condizente, tanto horizontal como verticalmente. É uma violência que
sobressai, excede a uma codificação imediata, aflora, estoura, mas tam-
bém afunda e desaparece. No entanto, está presente e bem palpável,
insinuando-se nas narrativas aparentemente digressivas. Um arabesco
que resulta de uma recomposição súbita de uma explosão caótica cuja
origem fica, no entanto, encoberta. A figuralidade que se pode
exemplificar já desde o primeiro conto, como a violência imagética da
riqueza e a violência da matança que nela se enxerta, mas de modo autô-
nomo e sem um elo etiológico, logo reduz a impressão de reflexividade do
factum no fictum. Descontrole de violências e brutalidades que degene-
ram deixando indefinidos suas fronteiras e limites na crueldade sem prin-
cípio, fora da razão, em um estado puro, onde se torna secundário tanto o
sujeito como o objeto dela: “É tão fácil matar uma ou duas pessoas. Prin-
cipalmente se você não tem motivo para isso”8.
A violência parece assim que mais se apresenta do que se representa.
Surgem contos onde ela fica em um plano puramente gratuito, imotivado,
puro – pense-se, por exemplo, em dois contos significativamente duplica-
dos como “Passeio noturno I e II” – onde a violência se desquita de qual-
7
Os exemplos possíveis são incontáveis: do mais flagrante, inclusive pela citação explícita de Feliz
ano velho, de Marcelo Rubens Paiva (e vale a pena lembrar que em Feliz Ano Novo, no conto “74
degraus” aparece o corpo de Alfredo “totalmente separado de sua mente” (p.123) ou os ecos que se
podem captar em outras obras. Penso em Estorvo, de Chico Buarque, e de modo geral no tributo que
a literatura contemporânea deve à lição fonsequiana, pense-se em particular na literatura da
periferia e na literatura marginal. A esse respeito, veja-se a correlação que Renato Cordeiro Gomes
constrói entre Cidade de Deus, de Paulo Lins, e o conto homônimo de Rubem Fonseca, do volume
Histórias de amor (Gomes, “Narrativa e paroxismo: será preciso um pouco de sangue verdadeiro para
manifestar a crueldade?”, pp. 148-9).
8
Fonseca, Feliz Ano Novo, p. 159.
78 Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi
9
Arendt, Sulla violenza, p. 72.
10
Sofsky, Saggio sulla violenza, p. 152.
Pior do que ser assassino... 79
11
DaMatta, op. cit., p. 42.
12
Susini-Anstopoulos, Françoise. L’écriture fragmentaire: définitions et enjeux, p. 17.
13
Rella, Miti e figure del moderno, p. 58.
80 Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi
14
Süssekind, Literatura e vida literária, p. 42.
15
Szklo, “A violência em Feliz ano novo”, p. 102 e Gomes, “Narrativa e paroxismo: será preciso um
pouco de sangue verdadeiro para manifestar a crueldade?”, p. 145.
Pior do que ser assassino... 81
do autor, que se põe “entre escritor e bandido” (IG, p. 136), afirma-se não
só a representação oblíqua dos interditos referenciais (a repressão, a tortu-
ra, a censura etc.) mas uma configuração da literatura póstuma em relação
aos mitos ainda sobreviventes do Modernismo (“Não dá mais para Diadorim”
– IG, p. 173) como lugar onde o pensamento outro e do outro, o andersdenken,
da cena discursiva apagada, obscena, se resgata representando-se, pelo
que ficou separado, alienado da voz e dos disfarces da razão.
A disjunção que se configura funda assim um modo de leitura dentro
da própria obra, uma dobra justamente, que, em seus paradoxos só apa-
rentes, na verdade revela o rosto de um biopoder – em um tempo em que
o próprio Foucault estava refletindo sobre os mesmos problemas – que
coloca em jogo a vida pela sua conservação negativa16, o que a faz coinci-
dir com um exercício mortífero, de administração da morte (veja-se, por
exemplo, as considerações sobre a “pornografia da morte” do conto, atu-
ando bem mais como uma radiografia da regulação de um poder gover-
nando politicamente o puro processo biológico).
Assim a violência difusa e aparentemente irracional pode ser revista à
luz de uma recodificação teórica, metanarrativa, final como o produto
biopolítico de um ato de poder que sob o aspecto da barbárie, da violên-
cia do massacre de uma guerra brutal mas irrepresentada, expõe uma
sutil, encoberta lucidez. Tal funcionamento, no entanto, não emerge por
um ato imediatista de denúncia, mas pela ação do texto: o conto de Feliz
Ano Novo estrutura-se a partir de um gesto soberano, de inclusão e ex-
clusão dentro do foco narrativo. A providência básica e crucial dos con-
tos é que sua exposição da violência ocorre através de uma exceção que
o autor – pelo poder de bando da escrita que evoca, aliás até doutrinari-
amente para si – pratica perante o nosso olhar de leitores.
Conto e exceção
De certo modo, a forma do conto Feliz Ano Novo corresponde a um
exercício ou movimento de poder. O modo, não só o conteúdo portanto,
plasmaria a escrita da violência, tornando assim, poderíamos dizer,
consubstanciais a forma e os temas, tanto que acabam fundando uma
modalidade de representação não intransitiva, mas transponível a outros
16
Esposito, Bíos: Biopolitica e filosofia, p. 42.
82 Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi
17
Hardman, Morte e progresso, p. 129.
18
Virno, Motto di spirito e azione innovativa, pp. 10-1.
19
Id., p. 23.
20
Agamben, Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita, p. 23.
Pior do que ser assassino... 83
assassinato “sem culpa” (“que culpa eu tinha de ele ser pobre?”21) parado-
xalmente reincluído na condição de corpo massacrado, de carne, onde
revela os perturbadores traços da sua invisível identidade de menino
marginal. Tratar-se-ia de mais um ato de violência soberana, na verdade
um ato de bando – que é o seu elo fulcral com a vida nua, a vida sacra –
anulando uma vida indigna, sem valor ou até com um antivalor (a molés-
tia que provoca) se não ocorresse o que poderíamos chamar de o “com-
plexo Dom Casmurro”. Ou seja, quem nos dá acesso ao saber é o próprio
detentor do poder soberano que decide sobre a vida do outro excluído,
portanto inexistente e desidentificado: o narrador na primeira pessoa é
que pratica a exceção e não há alternativa ao conhecimento – exata-
mente como no romance machadiano onde tudo o que se sabe é proporci-
onado pelo Bentinho – a não ser o seu poder de nos incluir por uma
exclusão, aplicando portanto a exceção. Um poder justamente de bando,
como dupla força que atrai e rejeita conjugando os dois lados, o fora e o
dentro da exceção soberana, o poder exercido lucidamente por um autor
que se coloca “entre escritor e bandido”, que remete significativamente
para a anfibologia própria do termo bando22.
Assim a violência se expõe – exposição é uma palavra coincidente com
exceção –porque não só é exibida mas praticada pela forma exemplar do
conto, que na exigüidade dos movimento proporciona as condições, em
relação ao horizonte da leitura, do exercício soberano. Os contos de Feliz
Ano Novo funcionam como um diagrama de um poder que se afirma pelo
uso de uma violência que cria uma simetria complexa entre o plano da
escrita e o plano de um “real” que escoa mas deixa rastros na urdidura
textual. É assim que se funda um realismo pela arte, um uso máximo do
poder (soberano) da escrita artística e experimental –caligráfica e
arabescada – que funda uma congruência enviesada mas “verdadeira”
(na acepção que se confere ao termo no conto final, como possibilidade
relativa) de funcionamento entre o fora e o dentro do texto. E ainda
assim ficará sempre, perante toda a violência que não se retém nas ma-
lhas das letras, o resto de uma “história dos subúrbios” por escrever.
21
Fonseca, “O outro”, em Feliz Ano Novo, p. 90.
22
Agamben, op. cit., p. 123.
84 Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi
3. O fim do inacabado
(quando as leituras se entrecruzam)
Mais de trinta anos nos separam da primeira edição de Feliz Ano Novo.
Trinta anos podem ser muitos: é o tempo de uma geração e foi, no nosso
caso, o tempo ordenado e caótico em que tanta coisa mudou e tanto
ficou igual ao que era. Acabou o “século breve”, caiu o Muro e caíram
(na verdade, desabaram pela ação de aviões-bomba e não de “picaretas
jubilosas”) as Torres gêmeas, marcando, respectivamente e por conven-
ção, um fim e um princípio. No Brasil, no entanto, caiu a Ditadura e teve
tempo de entrar em crise um pouco também a Democracia. Trinta anos
no compasso histórico do Brasil é um tempo enorme, ainda mais dilatado,
onde a História se desdobra com um ritmo de certo modo frenético.
Entre as coisas que não mudaram podemos incluir, com certeza, aquela
violência presente, sobretudo, no universo urbano que nos contava e que
continuou nos recontando, nos seus livros sucessivos, Rubem Fonseca. A
violência das periferias, aquela que se coloca nas margens porosas da cida-
de e que, às vezes, invade e atinge também os bairros residenciais. Dupla
violência, na verdade, em que à Força do Poder se contrapõe a brutalidade
dos delitos. E aquilo que se inscreve nessa duplicidade é aquela nebulosa
inextricável de atos e reações, de assaltos e defesas, de manifestações não-
homogêneas de uma Força maligna em que se suspende algo de ainda mais
trágico que é o não-trágico do hábito, ou melhor, do acostumar-se progres-
sivo a um regime (ou sistema) de violência cotidiana que torna o hábito,
não um modo de ser, mas a própria essência da sociedade – não, em suma,
um ter (o que permitiria uma forma de controle cultural ou político) mas
um ser, aquilo que entra a fazer parte da natureza humana.
Certo, a história contribuiu para essa transformação, o contexto global
em que vivemos é sempre mais imbuído de violência, de tentativas de
exportar a democracia na ponta das armas ou de formas de rebelião que
atingem também as cidades, teoricamente mais evoluídas, do Ocidente.
O protesto das banlieues, no segundo caso, mostrou como a política de
banimento (como indica o próprio termo, significando, na origem, justa-
mente os “lugares de banimento”), a sensação de ser “a-bandonados”
pode provocar uma reação “bandida”, enquanto, no primeiro, o
reaparecimento dos campos de concentração (na ex-Iugoslávia, no Darfur
como em Guantanamo e em tantos outros lugares do mundo) confirma
Pior do que ser assassino... 85
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita. Torino:
Einaudi, 1995.
. Quel che resta di Auschwitz. L’archivio e il testimone. Torino: Bollati
Boringhieri, 1998.
ARENDT, Hannah. Sulla violenza. Parma: Guanda, 1996 [Edição original:
New York, 1970].
DEI, Fabio (org.). Antropologia della violenza. Roma: Meltemi, 2005.
23
Seligmann-Silva, “Reflexões sobre a memória, a história e o esquecimento”, pp. 72-6.
86 Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi
Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi – “Pior do que ser assassino...”. Estudos de Literatura Brasileira
Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 67-86.
Jogo de xadrez: representando a
violência para crianças
Rosana Kohl Bines
1
Hartman, “Holocausto, testemunho, arte e trauma”, passim.
2
Id., p. 217
88 Rosana Kohl Bines
3
Para um desdobramento da discussão sobre o lugar historicamente construído para a criança, ver
Ariès, Phillipe, História social da criança e da família. Para o impacto desta discussão no âmbito da
literatura infantil, ver Ponde, Glória Maria Fialho, “Literatura infantil e realidade”.
4
Transcrevo o trecho onde se insere a citação: “A escrita de ficção se instala sempre no futuro,
trabalha como que ainda não é. Constrói o novo com os restos do presente. ´A literatura é uma festa
e um laboratório do possível`, dizia Ernst Bloch. Os romances de Arlt, como os de Macedônio
Fernández, como os de Kafka ou os de Thomas Bernhard são máquinas utópicas, negativas e cruéis
que trabalham a esperança” (grifo meu). PIGLIA, Ricardo, O laboratório do escritor, pp. 71-2: Minha
leitura da obra de Piglia foi enriquecida pela pesquisa de Mauro Gaspar Filho, doutorando em
Estudos da Literatura pela PUC-Rio.
Jogo de xadrez 89
5
Skármeta, A redação. A tradução de Ana Maria Machado foi premiada pela Fundação Nacional
do Livro Infanto-Juvenil em 2003.
6
Será empregada a sigla AR sempre que for feita referência à obra A redação, de Antonio Skármeta.
90 Rosana Kohl Bines
7
Ver a propósito, Piglia, O laboratório do escritor. O romance policial é também foco da reflexão de
Eco, em Pós-escrito a O nome da rosa.
Jogo de xadrez 91
8
As expressões entre aspas são de Richard, “Poéticas da memória e técnicas do esquecimento”, p. 333.
94 Rosana Kohl Bines
Passou uma semana, uma árvore da praça caiu de velha, o caminhão do lixo ficou cinco
dias sem passar e as moscas tropeçavam nos olhos das pessoas, o Gustavo Martinez da
casa em frente se casou e os vizinho ganharam uns pedaços de bolo, o jipe voltou e
prenderam o professor Manuel Pedraza, o padre não quis rezar a missa no domingo, no
muro da escola apareceu escrita a palavra “resistência”, Daniel voltou a jogar futebol e fez
um gol de bicicleta e outro de lençol, os sorvetes subiram de preço e Matilde Schepp,
quando fez nove anos, pediu a Pedro que lhe desse um beijo na boca (AR, p. 30).
9
Barthes, “O efeito de real”, p.159.
Jogo de xadrez 95
Quando meu pai volta do trabalho, eu vou esperá-lo no ponto de ônibus. Às vezes,
minha mãe está em casa e quando meu pai chega ela pergunta quequiouve meu bem,
como foram as coisas hoje. Tudo bem diz meu pai, e com você, o de sempre responde
minha mãe. Então eu saio para jogar futebol e adoro fazer gol de cabeça. Depois minha
mãe chega e diz tá na hora Pedrinho vem que a janta tá na mesa, e a gente se senta e eu
sempre como tudo menos a sopa que eu detesto. Depois toda noite minha mãe e meu
pai sentam no sofá e jogam xadrez e eu termino o dever de casa. E eles continuam
jogando xadrez até a hora de dormir. E depois, depois eu não posso contar porque já
estou dormindo (AR, pp. 34-5).
10
A expressão “felicidade de narrar” é derivada do pensamento de Maurice Blanchot sobre a escrita
do desastre. Segundo Blanchot, em L`écriture du desastre, a catástrofe promove a “extinção da
felicidade de falar”, porque inviabiliza a linguagem como processo comunicativo, tornando-a opaca
e intransitiva. Há uma descontinuidade radical entre as palavras e as coisas, entre o presente da
linguagem e o passado traumático, entre o sobrevivente e a audiência apartada da experiência
catastrófica, que interdita a fluência narrativa e gera uma escrita fragmentária.
96 Rosana Kohl Bines
Referências bibliográficas
ARIÈS, Phillipe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar,
1978.
BARTHES, Roland. “O efeito de real”, em . O rumor da língua.
Trad. de Mario Laranjeira. Rio de Janeiro: Brasiliense. 1988, pp. 158-
65.
BLANCHOT, Maurice. L‘écriture du desastre. Paris: Gallimard, 1980.
JOUVE, Vincent. A leitura. Trad. de Brigitte Hervot. São Paulo: Unesp,
2002.
Jogo de xadrez 97
Rosana Kohl Bines – “Jogo de xadrez: representando a violência para crianças”. Estudos de Literatura
Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 87-97.
Nicolas Guillén: as Elegias antilhanas
e a poesia em dilaceramento
Vera Lins
1
Rancière, Políticas da escrita, p. 109. Ver também, do mesmo autor, Malaise dans l’esthétique.
100 Vera Lins
2
Em 1992, foi publicada uma outra antologia poética de Nicolas Guillén com o título de Lagarto
verde, traduzida por Carlos Augusto Nougué e outros, no Rio de Janeiro, pela Editora Leviatã.
Nicolas Guillén: as Elegias antilhanas... 101
3
Drummond, Poesia completa, p. 86.
4
O episódio lembra o assassinato do seringalista Chico Mendes na Amazônia, em 1988.
5
Guillén conta que estava na casa de Portinari, no Rio, quando este leu no jornal sobre a morte do
líder sindical cubano. Foi quando deu início ao poema.
102 Vera Lins
Estrujamos su voz
como una flor de insomnio
y suelta un zumo amargo,
suelta un olor mojado,
un agua de palabras puntiagudas,
que encuentran en el viento
el camino del grito;
que encuentran en el grito
el camino del canto
que encuentran el canto
el camino del fuego;
que encuentran en el fuego
el camino del alba;
que encuentran en el alba un gallo rojo,
de pólvora, un metálico
gallo desparramando el día con sus alas.
Desde la escuela
y aun antes...Desde el alba, cuando apenas
Nicolas Guillén: as Elegias antilhanas... 105
Mi nombre interminable
hecho de interminables nombres;
el nombre mio, ajeno,
libre y mio, ajeno y vuestro,
ajeno y libre, como el aire.
De pronto, el golpe
de la pólvora. El zarpazo
puesto en la punta de un rugido,
y el capitán de plomo y cuero,
ya en tu incansable, en tu marítima,
ya en tu profunda sangre submergido.
106 Vera Lins
Ku Klux Klan, repetindo “!Va por la muerte, por la muerte va!”. Mas o
verso de novo se transforma em prosa com uma alegoria dos três reis ma-
gos. Jesús encontra Walt Whitman e Carver. Sete vozes sobem e pedem
vingança, mas “Jesús levanta su puño poderoso como un seguro martillo y
avanza seguido de duras gargantas que entonam en un idioma nuevo una
canción ancha y alta, como un pedazo de oceáno”.
A última parte são versos livres com epígrafe do Cid: “Apressa cantan
los gallos e quieren crebar albores”. O grito se transforma em canto, o
poema se dirige de novo a vós: “Venid, venid y en la alta/torre estareis,
campane y campanero/estaremos, venid”. Jesús volta como o General de
lãs Cañas para dizer: “Mirad, he aqui o azucar ja sin lagrimas”.
As elegias são poemas de testemunho e de resistência, como toda gran-
de poesia – recusam o que se instalou e projetam outras possibilidades com
suas imagens, sons e ritmos. A melancolia da elegia impulsiona a transfor-
mação, ela é a consciência da falta e o desejo de um outro estado do mun-
do. A melancolia, que é a reflexão sobre a infelicidade existente, não tem
nada em comum com o desejo de morte, é uma forma de resistência6.
A descrição da infelicidade incluiria em si a possibilidade de sua su-
peração. É o que se encontra nessas elegias antilhanas, que terminam
sempre com a possibilidade de mudança, mudança que é entrevista no
próprio canto, apesar de delineada por um momento histórico específico.
Mas a fé num outro estado possível do mundo parece faltar hoje. A
arte liga-se a uma catástrofe interminável. Paul Celan falava em
“Meridiano”, discurso dos anos 1960, do poema à beira do emudecimento,
entre um já-não-mais e um ainda-e-sempre, mas de uma pretensão inau-
dita como um lugar em que todos os tropos e metáfora querem ser levados
ad absurdum. E afirmava, criando um diálogo no meio do ensaio:
Investigação topológica?
Certamente! Mas sob a luz do que será investigado: sob a luz da u-topia.
E o homem? E a criatura?
Sob esta luz7.
6
Ver a reflexão de Sebald na introdução de seu livro sobre a literatura austríaca, Pútrida pátria,
ensayos sobre literatura.
7
Celan, Cristal, p. 180.
108 Vera Lins
Referências bibliográficas
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 2002.
CELAN. Paul. Cristal. Trad. de Cláudia Cavalcanti. São Paulo: Iluminuras,
1999.
GUILLÉN, Nicolas. Elegias antilhanas. Trad. de Claude Couffon. Paris:
Seghers, 1955.
. Lagarto verde: antologia poética. Trad. de Carlos Augusto Nougué
et al. Rio de Janeiro: Leviatã, 1992.
MAGRIS, C. Utopie und Entzauberung. Munique: Carl Hanser Verlag, 2002.
RANCIÈRE, J. Políticas da escrita. Trad. de Raquel Ramalhete. São Paulo:
Ed. 34, 1995.
. Malaise dans l’esthétique. Paris: Galilée, 2004.
SEBALD. W. G. “Introdução”, em . Pútrida pátria: ensayos sobre
literatura. Trad. de Miguel Saénz. Barcelona: Editorial Anagrama, 2005.
8
Magris, Utopie und Entzauberung. Traduzido do italiano por vários tradutores.
Vera Lins – “Nicolas Guillén: as Elegias antilhanas e a poesia em dilaceramento”. Estudos de Literatura
Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 99-108.
Uma hipótese de ligação entre
Carlos Drummond de Andrade e a
poesia brasileira contemporânea:
a “ Vida menor ”
Jaime Ginzburg
1
Camilo, Drummond: da Rosa do Povo à Rosa das Trevas.
2
Simon, Drummond: uma poética do risco.
3
Seligmann-Silva, “A história como trauma”.
110 Jaime Ginzburg
4
Ribeiro, “A dor e a injustiça”.
5
Kramer, “Sobre a relação entre trauma e catarse na literatura”.
6
Adorno, Mínima Moralia, passim.
Uma hipótese de ligação entre Carlos Drummond... 111
7
Salgado, Obras Completas.
112 Jaime Ginzburg
8
Vianna, Evolução do povo brasileiro; Reale, “O fenômeno fascista”; Barroso, História secreta do Brasil.
9
Schwartzman, Bases do autoritarismo brasileiro.
10
Araújo (org.), As instituições brasileiras da Era Vargas.
Uma hipótese de ligação entre Carlos Drummond... 113
11
Marques, Tempos modernos, poetas melancólicos.
12
Roncari, “O terror na poesia de Drummond”, p. 280.
114 Jaime Ginzburg
13
Bornheim, “O sujeito e a norma”.
Uma hipótese de ligação entre Carlos Drummond... 115
14
Vecchi, “Seja moderno, seja brutal: a loucura como profecia da história em Lima Barreto”, p.113.
Uma hipótese de ligação entre Carlos Drummond... 117
15
Natali, A política da nostalgia, p. 125.
Uma hipótese de ligação entre Carlos Drummond... 119
16
Butler, Precarious life, p. 31.
120 Jaime Ginzburg
17
Scholhammer, “Memórias de delinqüência e sobrevivência”, p. 145.
122 Jaime Ginzburg
Vida menor
A fuga do real,
ainda mais longe a fuga do feérico,
mais longe de tudo, a fuga de si mesmo,
a fuga da fuga, o exílio
sem água e palavra, a perda
voluntária de amor e memória,
o eco
já não correspondendo ao apelo, e este fundindo-se,
a mão tornando-se enorme e desaparecendo
desfigurada, todos os gestos afinal impossíveis,
senão inúteis,
a desnecessidade do canto, a limpeza
da cor, nem braço a mover-se nem unha crescendo.
Não a morte, contudo.
18
Walty, “Testemunha estomacal: fome e escrita”, p. 32.
Uma hipótese de ligação entre Carlos Drummond... 123
O futuro é agora
O ácido sulfúrico vai evaporar em temperatura am-biente daqui a 500 anos. Mas meu
sangue já chegou à seringa. E antes que o desaquecimento das estrelas consuma a última
utopia, dentro do meu peito, o coração pulsa. Quase não o ouço. Concentro-me para
que ele não pare de bater. Qualquer distração pode ser fatal. Há tempos, mandei-me
uma mensagem ao fu-turo. Hoje, escrevo mensagens eletrônicas em prosa límpida e vou
lançando, uma a uma, para mim mes-mo, como quem lança perto da janela do prédio
as folhas de um velho caderno. O retorno é provável, mas não é garantido. Muita coisa
desaparece no sopro da memória, na caligrafia ilegível, entre os impulsos elétricos e
nervosos que me mantêm20.
Restos de um homem
Inútil que reclames
teus despojos.
A mandíbula do tempo
é implacável.
Já não resta mais
osso sobre osso.
19
Andrade, Nova reunião, pp. 139-40.
20
Siscar, O roubo do silêncio, p. 53.
124 Jaime Ginzburg
A memória
cavou seu fundo poço21.
Cogito
eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível.
Dilema
o que muito me confunde
é que no fundo de mim estou eu
e no fundo de mim estou eu.
No fundo
sei que não sou sem fim
e sou feito de um mundo imenso
imerso num universo
que não é feito de mim.
21
Lemos, Adaga lavrada, p. 53.
22
Neto, “Cogito”, pp. 65-6.
Uma hipótese de ligação entre Carlos Drummond... 125
Referências bibliográficas
ADORNO, Theodor. Mínima Moralia. São Paulo: Ática, 1992.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Nova reunião. Rio de Janeiro: Record,
1987. v. 1.
ARAÚJO, Maria Celina (org.). As instituições brasileiras da Era Vargas. Rio
de Janeiro: Ed. UERJ/Ed. FGV, 1999.
BARROSO, Gustavo. História secreta do Brasil. São Paulo: Companhia Edi-
tora Nacional, 1939. T. 1.
BORNHEIM, Gerd. “O sujeito e a norma”, em BIGNOTTO, Newton et al. Éti-
ca. São Paulo: Companhia das Letras/SMC, 1992.
BUTLER, Judith. Precarious life: the powers of mourning and violence. New
York: Verso, 2004.
CAMILO, Vagner. Drummond: da Rosa do Povo à Rosa das Trevas. São Pau-
lo: Ateliê Editorial, 2001.
CÍCERO, Antonio. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1997.
KRAMER, Sven. “Sobre a relação entre trauma e catarse na literatura”, em
DUARTE, Rodrigo et al. Katharsis: reflexões de um conceito estético. Belo
Horizonte: C/Arte, 2002.
LEMOS, Lara de. Adaga lavrada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.
MARQUES, Reinaldo Martiniano. “Tempos modernos, poetas melancóli-
cos”, em SOUZA, Eneida Maria. Modernidades tardias. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 1998.
NATALI, Marcos Piason. A política da nostalgia. São Paulo: Nankin, 2007.
NETO, Torquato. Cogito. em HOLLANDA, Heloísa Buarque de. 26 poetas
hoje. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001.
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Escritos indignados. São Paulo: Brasiliense, 1984.
R EALE , Miguel. “O fenômeno fascista”, em . Obras políticas.
Brasília: Ed. UNB, 1983.
23
Cícero, Guardar, p. 37.
126 Jaime Ginzburg
Jaime Ginzburg – “Uma hipótese de ligação entre Carlos Drummond de Andrade e a poesia
brasileira contemporânea: a ‘Vida menor’”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº. 29.
Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 109-126.
Histórias paranóicas, criados
perversos no imaginário literário
da Belle Époque tropical
Sônia Roncador
1
Duarte, “Domesticação e domesticidade: a construção das exclusões”, p. 188.
2
Graham, House and street: the domestic world of servants and masters in Nineteenth-Century Rio de
Janeiro, p. 91.
3
Sobre os surtos de epidemias no século XIX e início do XX (febre amarela, cólera, febre tifóide,
sífilis), consultar Graham. Sandra L. “Contagion and Control” (em House and street: the domestic
128 Sônia Roncador
world of servants and masters in Nineteenth-Century Rio de Janeiro); Chalhoub, Sidney. Cidade febril:
cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Sobre o pensamento
racial científico, e as políticas eugenistas na Belle Époque, consultar Borges, Dain. “Puffy, Ugly,
Slothful, Inert: Degeneration in Brazilian Social Thought, 1880-1940”, em Journal of American
Studies 25, 2 (1993), pp. 235-56; “The Recognition of Afro-Brazilian Symbols and Ideas, 1890-1940”,
em Luso-Brazilian Review, v. 32, nº. 2 (Winter, 1995), pp. 59-78; Stepan, Nancy Leys. The Hour of
Eugenics: Race, Gender and Nation in Latin America. Ithaca: Cornell University Press, 1991.
Histórias paranóicas, criados perversos... 129
7
Assim como em “O panoptismo” (em Vigiar e punir: nascimento da prisão), Michel Foucault se
apropria do panóptico de Bentham para falar das instituições modernas “disciplinares” (prisões,
escolas, hospitais, exército). Neste estudo proponho o uso metafórico desse mesmo modelo
arquitetônico para uma compreensão da disciplinarização dos empregados domésticos, prescrita por
moralistas e higienistas, mas executadas pela dona de casa burguesa.
8
Sobre a posição, e status ambivalente da doméstica na família burguesa, consultar STALLLYBRASS,
Peter e WHITE, Allon. “Below Stairs: The Maid and the Family Romance” (em The politics and poetics
of transgression. Ithaca: Cornell University Press, 1986, p. 150.); Clifford, James. The predicament of
culture: Twentieth-Century ethnography, literature, and art (Cambridge, London: Harvard University
Press, 1988, p. 4.); MCCUSKEY, Brian. “Not at Home: Servants, Scholars, and the Uncanny” (em
PMLA, v. 121, nº. 2, mar. 2006, p. 424.).
Histórias paranóicas, criados perversos... 131
9
Costa, Ordem médica e norma familiar, p. 86.
10
A sigla AVS, seguida do número de página, será empregada sempre que se fizer referência à obra
A viúva Simões, de Júlia Lopes de Almeida.
132 Sônia Roncador
em, por sua vez, também vigiar seus empregados, mesmo quando essa
tarefa incluía a invasão da vida pessoal dos mesmos. Dependendo de suas
funções, ou seja, de seu acesso às áreas mais íntimas da casa (mucamas),
às crianças (amas-de-leite e de criação), ou simplesmente à cozinha (que
com os higienistas do século XIX passou a ser associada à saúde da famí-
lia), os empregados domésticos levantavam a suspeita, e medo, dos pa-
trões que se sentiam compelidos a vigiá-los para o bem estar moral e físico
de suas famílias. Recaía, pois, sobre a dona-de-casa a tarefa de vigiar e
controlar os criados, sendo a mesma aconselhada, em vários manuais do-
miciliares, a exercer parte dos serviços domésticos, assim como a circular
por áreas da casa antes destinadas aos escravos (área de serviço, cozinha,
quarto da empregada). “O olhar perscrutador da dona de casa, eis o que
nunca deve faltar” (AVS, p. 25), lê-se repetidas vezes no manual de Vera
Cleser, O lar doméstico: conselhos para boa direcção de uma casa11. Como
revelam esta e outras passagens do mesmo manual, na configuração ide-
alizada do corpo da nova mulher doméstica, privilegiam-se, além das
imagens das mãos (símbolo de suas prendas domésticas) e do coração
(morada de suas afeições e índole moral), os olhos “perscrutadores” ou
vigilantes da dona-de-casa. Os antigos gritos e castigos às mucamas pas-
saram a ser condenados como resquício bárbaro, não civilizado do patri-
arcado, como também um método obsoleto ou ineficaz para a garantia de
respeito e autoridade perante os empregados.
Diante de circunstâncias históricas mais complexas, era necessária, pois,
a criação de novas formas de poder, como a “disciplinarização” dos domés-
ticos, que consistia na assimilação de valores burgueses, tais como a higie-
ne, a economia, o gosto pelo trabalho, pela ordem e método, assim como na
incorporação de certas maneiras e posturas corporais “servis” (modos de se
dirigir aos patrões, maneiras de olhar, andar, de se vestir etc.). Segundo
Cleser, o sucesso dessa empreitada dependia precisamente da vigilância
permanente da dona-de-casa: “Dar ordens, sem vigiar attentamente se são
executadas com esmero, de nada vale; uma criada não fiscalisada é um
ente inutil numa casa” (AVS, p. 25). Pois é como dona de casa “vigilante”
ou “fiscalizadora” do serviço executado pelos criados que a viúva Ernestina
11
Cleser, O lar doméstico: conselhos para boa direcção de uma casa. Decidi manter a ortografia original
nas citações dos manuais domésticos oitocentistas que aparecerão ao longo deste ensaio.
Histórias paranóicas, criados perversos... 133
Levantava-se cedo, percorria o jardim (…) censurava o hortelão pelo menor descuido;
via até as mais insignificantes ninharias (…) No interior da casa era um chuveiro de
recriminações. A cozinha tomava-lhe horas. Passava os dedos nas panelas e nos ferros
do fogão a ver se estavam limpos (…) E era assim em todos os compartimentos,
minuciosa, ativa, severa (AVS, p. 36).
Embora pecasse pela “severidade” com seus cinco criados, a viúva acer-
tava, segundo o narrador, em vigiar o trabalho dos mesmos, pois longe de
seu escrutínio havia sempre o perigo de “que lhe pusessem fogo à casa!”
(AVS, p. 130), como ela mesma confessa a uma tia. Quando se deixa per-
der em “desejos e idílios” românticos, porém, o seu medo se concretiza:
[Ernestina Simões] passava os dias a pensar nele [Luciano Dias], nuns idílios de menina de
quinze anos. Os criados já não sofriam a mesma fiscalização severa. Os armários ficavam
abertos, a chave da dispensa nas mãos da Benedita [a cozinheira da família Simões], para
regalo da Simplícia, que apreciava os seus copinhos de licor de cacau (AVS, p. 101).
12
Almeida, Livro das noivas, p. 126.
134 Sônia Roncador
A areia do jardim rangeu e a viúva voltou para lá a cabeça. Era a Simplícia, que ia lépida, de
saias engomadas, procurando cravinas para enfeitar a carapinha, já amarrada com uma fita
azul. Quando passou rente à janela, a viúva sentiu o cheiro das suas essências exageradamente
impregnadas na mulatinha; fechou os olhos, sentindo preguiça de ralhar por aquela confian-
ça – a rapariga rabeou ligeira por entre os canteiros e sumiu-se (AVS, p. 40).
13
Almeida, “Entre nós mulheres, elas as patroas e elas as empregadas”, p. 193.
14
Cleser, O lar doméstico, p. 244.
15
Id., p. 18.
136 Sônia Roncador
16
Sylvino Junior, A dona de casa: a mais util publicação em portuguez, p. 65.
17
Cleser, op. cit., p. 239.
Histórias paranóicas, criados perversos... 137
18
Para uma revisão das convicções pró-escravocratas do político José de Alencar, ler CHALHOUB,
Sidney. Machado de Assis historiador (São Paulo: Companhia das Letras, 2003), mais especificamente
o capítulo 4 do livro, “Escravidão e cidadania: a experiência histórica de 1871”, pp. 131-291.
138 Sônia Roncador
19
Broca, “‘O bom escravo’ e ‘vítimas-algozes’”, pp. 271-3. Dentre alguns exemplos dessa orientação,
destacaria o romance A escrava Isaura (1865), de Bernardo Guimarães (que justifica a nobreza do
caráter da protagonista Isaura por seus traços fenotípicos europeus, e pela educação recebida longe
do antro do cativeiro) e a coletânea panfletária As vítimas-algozes: quadros da escravidão (1869), de
Joaquim Manuel de Macedo.
20
Ventura, Estilo tropical, p. 46.
21
Graham, op. cit., p. 186.
Histórias paranóicas, criados perversos... 139
Referências bibliográficas
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tação, Ministério da Educação e Cultura, 1957. [1ª. ed.: 1857].
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Sônia Roncador – “Histórias paranóicas, criados perversos no imaginário literário da Belle Époque tropical”.
Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 127-140.
A Amazônia como voragem da
história: impasses de uma
representação literária
Francisco Foot Hardman
Mas se nos fosse dado escolher, entre tantos viajantes que percorre-
ram a Amazônia, algumas vozes especiais, que se diferenciam por maior
sensibilidade em relação às culturas autóctones, que são mais “artísti-
cas” que “científicas” em suas representações, mencionaríamos, além
do filósofo, desenhista e poeta norte-americano William James, que
acompanhou a expedição dos Agassiz nos anos 1865-661, a experiência
singular que se apreende nos relatos e desenhos do francês Paul Marcoy
(1815-1888) e nos ensaios e vocabulários do italiano Ermanno Stradelli
(1852-1926).
De Paul Marcoy, ficaram as narrativas de sua Voyage à travers
l´Amérique du Sud, de Océan Pacifique à l´Océan Atlantique (1869, 2 v.),
empreendida entre os anos 1846-47, mas com prolongamentos e novas
estadias pelo menos até 1860. De espírito aventureiro e nada especialista,
Marcoy, em suas divagações e desenhos, expõe-nos uma Amazônia cujo
legado indígena havia sido precocemente destruído. A inexistência de
objetivo deliberado e a lentidão com que traça seus registros, de resto
precisos, são a marca diferenciadora de seu relato2. Já de Stradelli, são
muitos seus trabalhos, incluindo vocabulários indígenas, estudos sobre
mitos e sobre as inscrições nas itacoatiaras da região dos Uaupés, em que
o explorador percebe outros possíveis liames entre pensamento, imagina-
ção e linguagem nas culturas amazônicas tradicionais3.
Entre o final do século XIX e início do XX, aparecem várias narrativas
ficcionais amazônicas no Brasil. Entre outras, vale ressaltar, da obra do
paraense Inglês de Sousa, para além de seus romances em chave realista-
naturalista (O cacaulista; História de um pescador; O coronel sangrado;
O missionário, publicados entre 1876-91), seus Contos amazônicos (1893),
de muita vivacidade, captando cenas da memória popular na região na-
tal do autor, em torno a Óbidos, inclusive da Guerra da Cabanagem, em
1
A esse propósito, a historiadora Maria Helena Machado, da USP, acaba de editar o interessantís-
simo volume Brazil through the eyes of William James: letters, diaries and drawings, 1865-1866.
2
Recentemente, foi publicada entre nós a “parte brasileira” da expedição de Marcoy, em edição
traduzida e anotada cuidadosamente por Antonio Porro. Cf. Marcoy, Viagem pelo rio Amazonas.
3
A melhor apresentação e homenagem ao viajante italiano ainda está em Luís da Câmara Cascudo:
Em memória de Stradelli.
144 Francisco Foot Hardman
La visión frenética del naufragio me sacudió con uma ráfaga de belleza. El espectáculo
fue magnifico. La muerte había escogido una forma nueva contra sus víctimas, y era
de agradecerle que nos devorara sin verter sangre, sin dar a los cadáveres livores
repulsivos. !Bello morir el de aquellos hombres, cuya existencia apagóse de pronto,
como uma brasa entre las espumas, al través de las cuales subió el espíritu haciéndolas
hervir de júbilo!4.
4
Rivera, La vorágine, pp. 102-3, grifos nossos. Cf. tradução brasileira de Reinaldo Guarany, em A
voragem, pp. 115-6: “A visão do naufrágio sacudiu-me com uma rajada de beleza. O espetáculo foi
magnífico. A morte havia escolhido uma nova forma contra as suas vítimas e era de agradecer-lhe
pelo fato de nos devorar sem verter sangue, sem dar aos seus cadáveres livores repulsivos. Belo
morrer o daqueles homens, cuja existência apagou-se de súbito, como uma brasa entre as espumas,
através das quais o espírito subiu, fazendo-as ferver de júbilo!”.
A Amazônia como voragem da história 145
Mas, além da literatura dos viajantes que essa vertente veio depois
ficcionalizar ao extremo, como não lembrar aqui da literatura fantástica
e da ficção científica, remontando-se obrigatoriamente à experiência
radical do sublime romântico nesse conto soberbo de Edgar A. Poe que é
“A descent into the Maelström” (1841), passando-se pelo metafórico La
jangada: 800 lieues sur l´Amazone (1881), de Jules Verne, que por sinal
cita e homenageia Poe em diversas passagens, e culminando-se nesse
outro compósito de mitos populares, fantásticos e científico-ficcionais sobre
a Amazônia naquela virada de século que é o romance The lost world
(1912), de A. Conan Doyle?
Como negar essa insinuação do mistério exótico, folclorizante e da
hiper-brutalidade das forças naturais em obras como as de Gastão Cruls,
por exemplo, nesse must de público que é o romance A Amazônia miste-
riosa (1925)? Ou a digressão jornalístico-popular em narrativas que en-
tremeiam ficção e crônica, como nas obras do belenense radicado em
Manaus, Raimundo Morais (1875-1941), jornalista e comandante de
vaticanos e gaiolas (embarcações de transporte fluvial na bacia do Ama-
zonas), desde outro amplo sucesso editorial que foi seu Na planície ama-
zônica (1926), até País das pedras verdes (1931), Anfiteatro amazônico
(1936), Ressuscitados: romance do Purus (1939) ou Cosmorama (1940)?
E que dizer de Peregrino Júnior (1898-1983), potiguar que viveu parte
da juventude em Belém, jornalista e médico, autor que reuniu em A
mata submersa e outras histórias da Amazônia (1960), contos e crônicas
produzidos desde os anos 20?
Todos esses links de homologias nos parecem cabíveis. Arriscaríamos ir
um pouco além: difícil mesmo, para o crítico contemporâneo, seria não
enxergar as similitudes dessa linhagem fantasista, folclorista, com laivos
de crônica ficcionalizada e de lirismo fantástico, em obras-primas do mo-
dernismo paulista, como Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, e
Cobra Norato (1931), de Raul Bopp, tentativas em boa parte bem sucedi-
das de domesticar algumas imagens do primitivismo, seja pelo humor sa-
tírico, seja pelo apelo ao lúdico e a certo imaginário “infantil-indigenista”.
A violência, sublimada, tresanda em melancolia. Em uma vida perdida
na constelação Ursa Maior, em Mário, ou simplesmente no retorno da
paisagem arruinada, em Bopp:
146 Francisco Foot Hardman
5
Bopp, “Cobra Norato”, p. 152.
6
Sem falar em outra ancestralidade textual importante, a do artigo político feito por Euclides logo
depois de sua volta da Amazônia, “Entre os seringais”, publicado no início de 1906 na revista
Kosmos, e que pode ser lido como libelo radical contra o sistema capitalista de extração da borracha.
A Amazônia como voragem da história 147
ca, que poderiam se irmanar aos sonetos telúricos coevos de José Eustasio
Rivera, em Tierra de promisión (1921), traçado poético-paisagístico de ima-
gens que logo depois lhe serviriam de material para La vorágine. Essa reitera-
ção parece marcar a tentativa de consolidar a figuração literária naturalista
da região amazônica, no contexto do Estado nacional e da sociedade brasi-
leira, cerca de seis décadas depois do prefácio-manifesto de Franklin Távora.
Será, no entanto, com o escritor, jornalista e militante comunista
Dalcídio Jurandir (1909-1979), natural da ilha de Marajó, que essa re-
presentação romanesca na trilha realista conhecerá estabilidade temática,
equilíbrio estético e continuidade histórica. De seus onze romances, dez
versam sobre a Amazônia, constituindo o que foi chamado de ciclo do
Extremo Norte, com narrativas em cenários da ilha de Marajó, além do
interior do estado do Pará e de Belém, começando com o premiado Chove
nos campos de Cachoeira (1941) e terminando com Ribanceira (1978), in-
tercalados, entre outros, por Marajó (1947), Três casas e um rio (1958) e
Belém do Grão-Pará (1960). Em Dalcídio, a lentidão dos ritmos equatori-
ais adquire textura, sem concessões ao pitoresco. Por outro lado, o peso
de uma natureza aquática, presente em especial na hidrografia e na
pluviometria, fazem-se sentir nas palavras e nas horas. Seus personagens
possuem papéis sociais bem definidos. Mas seus romances não se “nacio-
nalizaram” como os de escritores nordestinos, isto é, permaneceram à
margem, no rodapé da história literária brasileira, como caso exemplar de
um regionalismo de boa qualidade. Somente muito recentemente passou
a ser relido e reeditado. O crítico paranaense Temístocles Linhares foi
das raras vozes a detectar sua importância7.
Cerca de duas gerações posteriores, a produção dos autores amazonenses
Márcio Souza (1946-) e Milton Hatoum (1952-) têm-se destacado no
panorama da prosa de ficção no Brasil contemporâneo. E representações
da vida amazônica estão presentes, em diferentes registros e estilos, nas
obras dos dois escritores8. Assim como diferentes impasses.
7
Cf. Linhares, História crítica do romance brasileiro, pp. 40-1.
8
Na impossibilidade de desenvolver aqui análise mais exaustiva das obras de M. Souza e M.
Hatoum, remeto os leitores aos ensaios de minha autoria: “Morrer em Manaus: os avatares da
memória em Milton Hatoum” e “Revolta – Na planície do esquecimento: a grande falha amazônica”.
148 Francisco Foot Hardman
Souza, não obstante suas escritas serem tão diversas, já não sejam possí-
veis de serem contadas nas convenções e modos até aqui tentados.
Como, no entanto, nenhum dos dois autores manauaras reivindica
qualquer modalidade de ufanismo ingênuo ou interessado, bem ao revés,
o que resta em sua prosa nesta nova virada de século é o travo melancó-
lico, seja das derrotas históricas da região amazônica em Márcio Souza,
seja das “cinzas do Norte” de toda uma geração, em Milton Hatoum. Seu
trabalho de luto passaria, provavelmente, pelas ruínas anunciadas de Raul
Bopp e Mário de Andrade, na hoje distante conjuntura de 1930. Poderia,
igualmente, espelhar-se no vórtice maldito, na voragem eclipsante da
selva de Eustasio Rivera, no labirinto infernal de suas “estradas” sem
volta, de suas cidades-fantasmas, em que moradores-párias já não res-
pondem como humanos: “No me sentieron, no se movieron. Parecíame
haber llegado a un bosque de leyenda donde dormitaba la Desolación”9.
Desolação que assim se revela, sendo mais da história que da natureza,
e que já tivera, entre outros, em Euclides da Cunha e Alberto Rangel, seus
grandes observadores. Na crônica “Os caucheros”, inserida em À margem
da história (1909), relatando passagem nos confins do Alto Purus, na fron-
teira peruana do Acre, durante sua viagem amazônica de 1905, Euclides
relata sua chegada aos restos de um povoado, “ruinaria deplorável”, “tapera
(quase) desabitada”, e seu encontro com “o último habitante”:
Esta cousa indefinível que por analogia cruel sugerida pelas circunstâncias se nos figu-
rou menos um homem que um bola de caucho ali jogada a esmo, esquecida pelos
extratores – respondeu-nos às perguntas num regougo quase extinto e numa língua de
todo incompreensível. Por fim, com enorme esforço levantou um braço; estirou-o,
lento, para a frente, como a indicar alguma cousa que houvesse seguido para muito
longe, para além de todos aqueles matos e rios; e balbuciou, deixando-o cair
pesadamente, como se tivesse erguido um grande peso:
“Amigos”.
Compreendia-se: amigos, companheiros, sócios dos dias agitados das safras, que tinham
partido para aquelas bandas, abandonando-o ali, na solidão absoluta10.
9
Rivera, La vorágine, p. 156 (A voragem, p. 176): “Não me perceberam, não se moveram. Parecia-me
haver chegado a um bosque de lenda onde a Desolação cochilava”.
10
Cunha, Obra completa, v. 1, p. 262.
150 Francisco Foot Hardman
Das alturas aniladas do céu, estas grenhas mormacentas, rendadas de veios d’água,
parecerão fungiformes: – um bolor imenso, ao fundo de uma cuba abandonada à humidade
e à calma, entre os escarpamentos das antiplanuras do Brasil central, os das cordilheiras
guianenses e ao algares andinos. Solidão! Solidão! – império da Morte onde a vida
fervilha, por mais de cinco milhões de quilômetros quadrados... Alimenta-a e exaure-
a essa formidável placenta ou cúpida ventosa, que uma e outra cousa pode ser este
“máximo dos rios”...11.
11
Rangel, Sombras n’água, pp. 30-1.
12
Cunha, “Impressões gerais”, em Obras completas, p. 223.
13
Morais, Cosmorama, p. 8.
A Amazônia como voragem da história 151
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pp. 5-15.
. “Morrer em Manaus: os avatares da memória em Milton
Hatoum”. Letterature d’America, v. XIX-XX, nº 83-84. Roma, 2000,
pp. 147-60.
14
O Núcleo de Estudos da Amazônia da UnB organizou, em boa hora, a Expedição Humboldt, no
ano 2000, coordenada, na parte histórico-social, por Victor Leonardi. Seus resultados começam
agora a ser divulgados. Duas outras importantes contribuições de V. Leonardi para uma visão
contemporânea da questão amazônica podem ser encontradas nos seus ensaios: Os historiadores e os
rios: natureza e ruína na Amazônia brasileira e Fronteiras amazônicas do Brasil: saúde e hístória social.
152 Francisco Foot Hardman
Francisco Foot Hardman – “A Amazônia como voragem da história: impasses de uma representa-
ção literária”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de
2007, pp. 141-152.
Entre vítima e perpetrador: a identidade
problemática da segunda geração pós-
Shoá na Alemanha e a proposta do ro-
mance O leitor , de Bernhard Schlink 1
Helmut Galle
1
O texto foi apresentado no evento Identidades coletivas, anti-semitismo e representação da alteridade,
Universidade de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Língua Hebraica, Literatura e Cultura
Hebraicas, 22-23 ago. 2002. Para esta publicação não foi atualizado, com exceção de pequenas
correções.
2
A publicação brasileira foi realizada pela Nova Fronteira em 1998, com tradução de Pedro Süssekind.
3
Um impulso menos público para a revisão foi, provavelmente, o artigo de W. C. Donahue em
German Life and Letters, de 2001.
4
ADLER, H. G. Theresienstadt 1941-1945 – Das Antlitz einer Zwangsgemeinschaft. Tübingen: Mohr, 1960;
e ADLER, H. G. Gedanken zu einer Soziologie des Konzentrationslagers. Meisenheim: Hain O. J.
154 Helmut Galle
o mingau pós-moderno de Schlink é tão intragável não só por que pretende ser um
trabalho sério enquanto na realidade representa uma paródia da verdade. É tão repug-
nante por que aproveita de maneira traiçoeira e pornográfica as necessidades e fraquezas
humanas. Assim sendo, por que foi tão bem sucedido? Por um lado por que simplifica
a história, que vai ao encontro de camadas amplas de leitores: desde os liberais compas-
sivos, que prefeririam que a extinção dos judeus europeus tivesse decorrido de maneira
menos cruel, até os nacionais-socialistas disfarçados que gostam de afirmar que o grande
crime nunca aconteceu5.
5
Tradução deste autor, a partir do seguinte trecho: “Schlinks postmoderner Brei ist nicht nur
deshalb so ungenießbar, weil er eine ernsthafte Auseinandersetzung zu sein beansprucht, während
er tatsächlich eine Travestie der Wahrheit darstellt. Er ist so abstoßend, weil er auf tücki-sche,
pornographische Weise aus menschlichen Nöten und Schwächen Kapital schlägt. Warum aber ist
dieses Buch dann so erfolgreich? Zum Teil, weil es die Geschichte so vereinfacht, dass sie breiten
Leser-schich-ten entgegenkommt, von mitleidigen Liberalen, denen es lieber gewesen wäre, wenn
die Auslöschung des euro-päischen Judentums weniger grausam verlaufen wäre, bis zu verkappten
Nationalsozialisten, die gerne behaup-ten, das große Verbrechen habe gar nicht stattgefunden”
(Adler, Die Kunst, Mitleid mit den Mördern zu erzwingen. Einspruch gegen ein Erfolgs-buch: Bernhard
Schlinks “Der Vorleser” betreibt sentimentale Geschichts-fäl-schung).
6
Adler, Kulturpornografie; Winkler, Holo-Kitsch e Holocaust-Kitsch.
Entre vítima e perpetrador 155
para o momento em que ela for liberada, mas um dia, antes do fim da
pena, ela se enforca na cela. O narrador fica com a tarefa de entregar o
pouco que ela tinha poupado àquela testemunha que sobreviveu ao in-
cêndio da igreja. Essa sobrevivente rejeita o dinheiro mas fica com a lata
de chá onde o dinheiro foi guardado: quando criança, ela tinha uma lata
semelhante para guardar seus tesouros, mas depois essa lata foi roubada
no campo.
Mesmo esse breve resumo da trama deixa patente que a pessoa que
representa o perpetrador Nazi escapa tanto ao estereótipo do demônio
sádico como àquele do mal banal, dominantes na literatura alemã: o pri-
meiro nos anos 1940 e 50, e o segundo nas décadas posteriores ao livro de
Hannah Arendt7. No caso desse livro, trata-se de um perfil, que se apro-
xima muito mais de uma vítima – como Jeremy Adler e os outros críticos
observaram muito bem. Ela é uma mulher, de classe baixa, sem formação,
sem família, sem a competência central da alfabetização, sujeita a uma
psicologia de pudor; cada um desses fatos coloca-a numa posição que
quase a impossibilita de decisões autônomas, soberanas e conscientes, ou
seja, éticas. Considerando todas essas condições, o leitor chega a com-
preender a sinistra lógica que reina sobre o destino dessa pessoa. Assim o
leitor compreende também a reação dela, quando responde, questionada
pelo juiz, por que as guardas aprisionaram os judeus naquela igreja, em
vez de deixá-los fugir: “O que o senhor teria feito, então?”8. É evidente
que no tribunal essa pergunta vale tão pouco como todas as perguntas
desse gênero, insinuando que não houve alternativas ao crime. Nesse
sentido é perfeitamente coerente que ela seja condenada e aceite expiar
os anos de prisão – fato que também difere do perpetrador típico na lite-
ratura (e na realidade histórica).
A pergunta “O que o senhor teria feito, então?” não é, nesse caso,
uma ingenuidade ou um pretexto. Ela resume o encadeamento fatal que
7
O Nazi demoníaco se encontra em forma mais pura no livro Der Verdacht, de Friedrich Dürrenmatt
(1953), e mais moderado nos romances Der Tod in Rom, de Wolfgang Koeppen (1954), e Billard um
halbzehn, de Heinrich Böll (1959). O tipo do empregado subordinado e obediente que executa as
ordens encontra-se em Die Deutschstunde, de Siegfried Lenz (1968). Cf. Galle, Von der Bestie zur
Geliebten. Entwicklung des literarischen Bildes vom Nazitäter in der deutschsprachigen Literatur.
8
Schlink, O leitor, p. 106.
Entre vítima e perpetrador 157
Como poderia ser um consolo o fato de meu sofrimento pelo amor a Hanna ser, de certa
maneira, o destino da minha geração, o destino alemão, que era apenas mais difícil, no
meu caso, de deixar para trás, mais difícil de lidar. Na mesma medida, teria feito bem
para mim se eu pudesse me sentir parte de minha geração10.
9
“Uma de minhas lembranças vívidas é de uma manhã de inverno, quando tinha quatro anos. [...]
Diante do fogão, minha mãe tinha colocado uma cadeira, onde eu ficava enquanto ela me lavava e
vestia. Lembro-me do sentimento reconfortante do calor e do deleite que me dava por ser lavado e
vestido nesse calor” (Schlink, op. cit., p. 27).
10
Schlink, op. cit., p. 142. A obra não ficcional do autor apóia nosssa interpretação. Schlink, que em
primeiro lugar é professor de Direito Público na Universidade Humboldt e juiz do Tribunal consti-
tucional de Nordrhein-Westfalen, publicou também algumas palestras, que tratam, de maneira
discursiva, o tema da holocausto e as atitudes das três gerações desde 1945. Veja Schlink,
Vergangenheitsschuld und gegenwärtiges Recht, passim.
Entre vítima e perpetrador 159
que na realidade alemã essa relação não era obstáculo suficiente para
que a geração dos filhos do pós-guerra não se distanciasse dos seus pais,
os quais, de uma ou outra maneira, haviam participado daquele estado
que organizou o genocídio.
A ruptura entre a geração da guerra e a geração dos anos 1960 era
possível primeiro porque os laços de família, na sociedade contemporâ-
nea, estão se enfraquecendo cada vez mais; e segundo porque a herança
histórica era insuportável. Em outras palavras: o pecado contra o quinto
mandamento bíblico (“Não matarás”, Ex 20, 13) suspendeu o quarto (“Hon-
ra teu pai e tua mãe”, Ex 20, 12), pelo menos sob o olhar dos filhos.
O amor do protagonista obriga-o a uma tentativa séria de compreen-
der essa perpetradora. Ele não pode se colocar no papel do outro e “apon-
tar” para ela como os seus colegas “apontam” a geração dos pais, indican-
do, assim, quem é culpado e quem é inocente, por meio de atos de
distanciamento e de denúncia. Se a relação entre filhos e pais for carac-
terizada por amor, os filhos deveriam fazer a mesma tentativa de compre-
ender. Nessa tentativa se faz um balanço da culpa objetiva (da medida
em que foi envolvido diretamente nos crimes) e das condições específi-
cas, considerando o grau de arrependimento. Evidentemente, a maioria
dos alemães não tinham condições tão precárias como Hanna. Por outro
lado, seu envolvimento era, na grande maioria dos casos, bem menor
também. Se o arrependimento de Hanna e o interesse que ela desenvolve
na prisão por suas vítimas não é nada representativo para os perpetradores
históricos, é muito representativo para a atitude dos alemães, cujo crime
foi a omissão nos atos de resistência contra o crime estatal.
Cabe perguntar ainda por que a atitude geral da geração dos filhos
nos anos 1960 não era legítima e por que merece a crítica do livro de
Schlink. Deveria essa geração solidarizar-se, em vez de se distanciar, em
vez de investigar escrupulosamente em todas as áreas e em todos os deta-
lhes o envolvimento criminoso dos seus pais, mestres e professores? Não
era necessário se identificar com as vítimas em vez de com os carrascos?
Minha resposta seria que a crítica e o distanciamento era inevitável. A
ruptura era necessária para que os fatos atrozes em sua inteira complexi-
dade viessem à tona. Também era necessária para estabelecer um discur-
so político que permitisse detectar e combater qualquer tendência sus-
peita a criar situações análogas ao “Terceiro Reich”. Finalmente, era ne-
160 Helmut Galle
cessária por razões da identidade coletiva daquela geração que não po-
dia se basear na identificação com os atores de um crime de tal dimen-
são. Assim eles se definiam (talvez um caso único) ex negativo pelo
Holocausto, através da diferenças entre si mesmos e os culpados. E era
necessária também para que a geração dos pais começasse a pensar de
novo sobre seu passado.
O historiador Jörn Rüsen concebe as atitudes das gerações na Ale-
manha a partir de 1945 de uma maneira análoga às minhas observações
na literatura12. Para Rüsen, podem-se distinguir três fases: a primeira, a
dos quinze anos que se seguiram ao fim da guerra; a segunda, a dos
anos 1960 até 1989; e a terceira, desde a unificação. Na primeira fase
ainda predominavam as pessoas ativas na época nazista. Por motivos
práticos, políticos e psicológicos, elas preferiam uma estratégia de man-
ter o silêncio sobre a Shoá e de exteriorizar a culpa. Nessa fase, a litera-
tura apresenta o ex-perpetrador sob uma forma demoníaca. Na segunda
fase predominam os filhos que se encontram numa relação vital com os
responsáveis pelo Holocausto. Eles escolhem uma estratégia para dis-
tanciar-se absolutamente de tudo o que levou ao desastre, excluindo
assim uma parte integral da sua descendência genética e histórica. Na
ficção daquela época se encontram constelações que favorecem a
vitimização de representantes da segunda geração pela primeira13. A
terceira geração, a dos netos, já se encontra numa relação histórica
com a Segunda Guerra. Ela pode provavelmente assumir a responsabili-
dade pela Shoá como um elemento histórico da sua própria identidade.
O leitor indica, juntamente com outros livros de autores mais jovens,
que também na literatura se estabelece uma atitude menos tensa frente
aos atores da época nazista14.
Isso porque, finalmente, a identificação com as vítimas gera outros
problemas. Evidentemente os filhos dos perpetradores não podem se alivi-
12
Cf. Rüsen, Zerbrechende Zeit, pp. 279-99 e 310-5.
13
Isso acontece no romance Die Deutschstund, de Siegfried Lenz, e no fragmento póstumo “Der Fall
Franza”, de Ingeborg Bachmann.
14
Veja os livros de Marcel Beyer: Flughunde (1995) e Spione (2001).
Entre vítima e perpetrador 161
15
Traduzido por este autor, a partir do seguinte trecho: “Die Problematik dieser Verarbeitung des
Holocaust in die historischen Züge der eigenen Identität liegt auf der Hand. Mit Widerspruch und
Exklusion allein läßt sich der reale historische Zusammenhang der deutschen Geschichte des 20.
Jahrhunderts im Blick auf Nazi-Zeit und Holocaust nicht plausibel machen. Goldhagen stößt die
jungen Deutschen von heute unerbittlich auf die Tatsache, daß die Täter des Holocaust – “die
Deutschen” – ihre Väter und Großväter waren. Das applaudierende Publikum weiß sich nun
als‚die Andren’ im historischen Verhältnis zu diesen Tätern, und der Holocaust hat ein
identifiktorisches Potential nur in den Opfern. Der grundsätzliche Mangel an Historizität, der
Goldhagens Holocaust-Deutung ausmacht, charakterisiert auch die Geschichtskultur derjenigen,
die ihn feiern und sich durch ein besonders kritisches Verhältnis zur jüngeren deutschen Geschicht
auszeichnen” (Rüsen, Zerbrechende Zeit, p. 294).
162 Helmut Galle
16
Para os conceitos da memória coletiva e a memória cultural, veja particularmente o livros de J.
Assmann.
17
Nora, Zwischen Geschichte und Gedächtnis, p.13.
Entre vítima e perpetrador 163
Referências bibliográficas
A DLER, Jeremy. “Die Kunst, Mitleid mit den Mördern zu erzwingen.
Einspruch gegen ein Erfolgs-buch: Bernhard Schlinks Der Vorleser
betreibt sentimentale Geschichts-fäl-schung”. Süddeutsche Zeitung, 20
abr. 2002 (Ursprünglich in Times Literary Supple-ment).
ASSMANN, Jan. Das kulturelle Gedächtnis: Schrift Erinnerung und politische
Identität in frühen Hochkulturen. München: Beck, 1992.
. Religion und kulturelles Gedächtnis: Zehn Studien. München: Beck,
2000.
DONAHUE, William Collins. “Illusions of Subtlety: Bernhard Schlink’s Der
Vorleser and the Moral Limits of Holocaust Fiction”. German Life and
Letters 54, nº. 1, 2001, pp: 60-81.
GALLE, Helmut. “Von der Bestie zur Geliebten: Die Nazi-Täter im Spiegel
der Literatur”. Atas do IV Congreso argentino de profesores de alemán
(no prelo).
18
Evidentemente, a nação alemã não é um coletivo homogêneo de perpetradores e sua descendên-
cia – inclui igualmente pessoas que estavam na resistência, vítimas e imigrantes posteriores que
não compartilham nada do passado alemão. Não obstante isso, é um fato inegável que a sociedade
alemã carrega a culpa coletiva pelos acontecimentos entre 1933 e 1945 nos territórios ocupados pelo
regime. O primeiro que insistiu nessa responsabilidade foi Karl Jaspers. Embora ele mesmo fosse um
representante da resistência contra os nazistas, ele queria ser incluído nessa responsabilidade.
Schlink concorda com Jaspers na existência da culpa coletiva, mas afirma que ela se origina menos
no comportamento antes do fim da guerra, senão no fato que na sociedade alemã depois da guerra
não houve uma desolidarização com os culpados. Em vez de serem perseguidos juridicamente, os
culpados foram integrados nas diferentes funções do estado: “[Nossa] solidariedade com o perpetrador
[nos] envolve nos crimes e na culpa dele – esse é o núcleo racional da idéia da culpa coletiva”
(Schlink, Vergangenheitsschuld und gegenwärtiges Recht, p. 97).
164 Helmut Galle
Helmut Galle – “Entre vítima e perpetrador: a identidade problemática da segunda geração pós-
Shoá na Alemanha e a proposta do romance O leitor, de Bernhard Schlink”. Estudos de Literatura
Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 153-164.
No entremeio do trágico: P erlongher
Perlongher
e os “Cadáveres” da Nação
Pablo Gasparini
F. Ponge, Le Savon
dedo) e por Orazio De Ferrari (Moisés, retido pela sua mãe adotiva –
pronta já para matá-lo –, olha, entre expectante e desafiante, para um
estupefato e quase impotente faraó)1 tem ainda um desenvolvimento bem
significativo para a nossa leitura. Decerto, o gesto só não será punido pela
morte (como mandava a lei) por causa da intervenção de um anjo que,
tomando a forma de um dos sábios da corte, aconselha submeter Moisés a
um singular julgamento. Para comprovar se a falta do menino foi ou não
intencional, o sábio aconselha preparar um cofre de pedras preciosas e
um outro de carvões ardentes e fazer com que o menino escolha entre os
dois. Guiado pelo anjo, Moisés pegará o carvão ardente e o levará à boca,
ferindo-se os lábios, mas ao mesmo tempo salvando sua vida.
O que parecia uma circunstancial história conjuga, desta maneira, o
gesto de insubordinação ao poder e à filiação paterna com uma explica-
ção dos defeitos de pronúncia que a tradição atribui a Moisés. Como que
sobrevivendo em seu gesto de desfiliação, o episódio talvez oferecesse
uma explicação para a deficiente língua egípcia do menino, já que, se-
gundo o relato tradicional, embora Moisés tivesse sido criado pela filha
do faraó, ele teria sido aleitado por sua própria mãe, iniciando-se, por-
tanto, na sua “língua materna”: o hebraico. Moisés falaria dessa maneira
egípcio com sotaque hebraico, o que faria dele, como o assinala Freud,
um “torpe de língua”2 que precisaria, para comunicar-se com o faraó, da
ajuda de seu irmão Arão. Por sua vez, e seguindo já a leitura de Freud em
Moisés y la religión monoteísta, “Se Moisés era egípcio...”, os defeitos de
pronúncia revelariam a sua condição de estrangeiro diante, em palavras
de Freud, de seus “neo-egípcios semitas”. Precisou inclusive de um intér-
prete, Arão, para se comunicar na língua do povo por ele escolhido (o
hebreu) a fim de fazer sobreviver o monoteísmo: uma invenção egípcia
que teria sido violentamente reprimida pelos próprios egípcios.
De uma maneira ou de outra, a língua de Moisés pode ser entendida
como aquela que, em outros artigos, chamávamos de “língua do entre-
1
As pinturas às quais estamos nos referindo têm por título Moisés e a coroa do faraó e datam de 1633
e 1640 (Ruggieri e De Ferrari, respectivamente). Ver De Capoa, L’ancien Testament:Repères
iconographiques, pp. 159-60
2
Freud, Moisés y la religión monoteísta, p. 3258.
No entremeio do trágico 167
3
Gênesis, XII. 1
4
Gasparini, “Riscos do português/Riscos do castelhano (a língua portuguesa na poesia do argentino
Néstor Perlongher)”.
168 Pablo Gasparini
5
Echavarren, “Un fervor neobarroco”, p. 11.
6
Perlongher, Poemas completos, pp. 26-7.
7
Ver, “Lamborguini, Carrera, Lamborguini: Un ‘nuevo’ verso rioplatense” (Documento CEDAE
0790). Neste texto, Perlongher unifica estes autores porque seriam antecedentes de uma invasão
“de lo ‘poético’ sobre lo social’ (y no a la inversa como postula el social realismo)”. Tratar-se-ia,
assim, de “una suerte de pulsión poética volcada directamente sobre el campo social, sexualizada y
que sexualiza ese terreno” (Documento nº. 0790, p. 4).
8
Alambres, Buenos Aires, Último Reino, 1987, Premio Boris Vian de Literatura Argentina.
9
De fato, a primeira estrofe do poema diz: Bajo las matas / En los pajonales/ Sobre los puentes / En
los canales / Hay Cadáveres // En la trilla de un tren que nunca se detiene / En la estela de un barco
que naufraga / En una olilla, que se desvanece / En los muelles los apeaderos los trampolines los
malecones/ Hay Cadáveres. Em Perlongher, Poemas completos, p. 111.
No entremeio do trágico 169
Era: “No le digas que lo viste conmigo porque capaz que se dan
cuenta”
O: “No le vayas a contar que lo vimos porque a ver si se lo toma a
pecho”
Acaso: “No te conviene que lo sepa porque te amputan una teta”
Aún: “Hoy asaltaron a una vaca”
“Cuando lo veas hacé de cuenta que no te diste cuenta de nada … y listo”
Hay Cadáveres10.
10
Perlongher, op. cit., pp. 119.
170 Pablo Gasparini
11
Yirar: vocábulo do “lunfardo” argentino que conota um transitar sem meta, ou com meta não
determinada, própria do mercado prostibulário que Perlongher, como antropólogo urbano, consti-
tuiu em objeto de estudo.
12
Perlongher, de fato, tanto em sua estética poética como em seu trabalho antropológico, privilegia
a errância enquanto movimento que permite a flutuação semântica e identitária. Em O negócio do
michê: prostituição viril em São Paulo, opõe os dispositivos e processos de sedentarização das sociedades
modernas ao nomadismo próprio do andar erótico nas chamadas “Bocas de Lixo” (zonas de circula-
ção prostibulária). À livre flutuação de línguas e identidades, Perlongher opõe a noção de guetto e
a redução semântica. Em Comunidades imaginadas, Anderson afirma que “En la concepción moder-
na, la soberanía estatal opera en forma plena, llana y pareja sobre cada centímetro cuadrado de un
territorio legalmente demarcado” (p. 40); a ladainha do poema “Hay cadáveres” parece mais aparen-
tada com este movimento que com os deslocamentos constantes da errância social ou poética.
13
Echavarren, op. cit. p. 11.
No entremeio do trágico 171
14
Perlongher, op. cit., p. 177.
15
Anderson, op. cit., p. 27.
172 Pablo Gasparini
16
Refiro-me aos avisos publicados no jornal Página 12 pelos familiares dos desaparecidos na última
ditadura militar argentina. A designação destes avisos como monumentos de papel provém de
Fernando Reati.
17
Sobre estes memoriais, ver Aizenberg, “Holocausto, memória judaica e memoriais do terror no
cone sul”, pp. 71-80.
18
Freud, op. cit. p. 3314.
19
Freud, op. cit., p. 3255.
No entremeio do trágico 173
Nessa mesma noite ouvimos o golpe das botas gurkas no teto do pocinho. Um deles
engatou a bota na junção das chapas e nos viu. Puxamos as armas no ato. O gurka já
entrou batendo bronha. O “inglês”, que estava super-treinado, caiu-lhe em cima. O
gurka arrebentou-lhe o nariz com uma coronhada, e caçou o Pancho, um cara de
Corrientes, virou-o e lhe rasgou as bombachas com uma faca. No primeiro que colocou
o pau em sua boca Pancho tascou uma mordida, caralho! quebraram seus dentes a
pontapés. Mesmo ensangüentado, ele continou se esquivando e se fresqueando para
abrir a bunda. Então o cara da faca pontiaguda alargou-lhe o olho do cu. Depois,
desamarraram uma de suas mãos para que se masturbasse. O coitado estava meio morto
e não conseguia, cortaram-lhe o pau de um só golpe e o enfiaram em seu cu, já que nem
pra punheta ele servia mais.
Quando chegou minha vez, pensei: antes puto do que morto. Assim, ao primeiro que o
brandiu, abri bem a boca e fechei os olhos, como no consultório do doutor. O gurka
tinha acabado de comer o Pancho e estava com o pau incrustado de merda e sangue.
Aspirei fundo e engoli tudo; isso melhorou as relações e o gigante se tranqüilizou,
aquietou um pouco sua pica e começou a mijar; eu, engole que engole22.
1
O texto, que já havia sido publicado em inglês em uma antologia de textos reunidos por Winston
Leyland, causa uma verdadeira polêmica pública quando se publica em Buenos Aires em 1989 (em
El Porteño nº 88).
2
Em Perlongher, Evita vive, pp. 56-67.
1
Ibidem, pp. 56-7.
174 Pablo Gasparini
23
Perlongher, Poemas completos, p. 107.
24
Melmam, Imigrantes: incidências subjetivas das mudanças de língua e país, p. 92.
25
Ponge, Le savon.
26
Ver Melman, op. cit., p. 92.
27
Inserido em Schwartz (org.), Cuadernos de Recienvenido: homenaje a Néstor Perlongher, pp. 5-10.
No entremeio do trágico 175
28
Ver Rosa, “Una ortofonía abyecta”, p. 31.
29
Inserido em Perlongher, Lamê, p. 15.
30
Ibidem.
176 Pablo Gasparini
31
Sobre a questão, lemos em Lya Tourn: “La stéle qui dépassait de la sépulture des aieux a été sans
doute parmi les premieres monuments autour desquels s’organisa le culte paien des ancêtres. Lês
mots ‘pays’ et ‘paysan’ ont la même origine que ‘paysage’, ‘païen’ et ‘paganisme’. Le terme latin pagus,
du verbe pangere dont la signification est ‘ficher en terre’, ‘enfoncer’, ‘etablir solidament’, est
également apparenté à la racine pas pax, ‘paix’. Il faut enterrer les morts pour qu’ils ‘reposent en
paix’”. Por sua vez, citando uma conferencia de M. Serres (“Terre et eau de l’exil et de l’emigration”,
Agen, 7 mars, 1993), Tourn acrecescenta que “L’origine même de la patrie est indissociable du culte
des morts et des tombs des ancêtres, pusiq’elle se rattache á la proprieté des terres. La proprieté du
champ venait de ce qu’y étaient enterrés les ascendants de la famille et sa limite se marquait de la
pierre de cippe”. Cf. Tourn, Chemin de l’exil: vers une identité ouverte, p. 180.
32
Op cit., p. 3255.
33
A expressão pertence à descrição do ritual do Daime de acordo com o artigo de Perlongher “La
religión de la Ayahuasca” (inserido em Prosa plebeya, pp. 155-73). Michel Maffesoli em “Exílio e
reintegração”, último capítulo de Sobre o nomadismo (1997), analisa as relações entre errância e
misticismo de uma maneira, por momentos, claramente perlongheriana.
34
Refiro-me à discussão de Perlongher com a revista Sitio em torno da questão da guerra das Malvinas.
Ver Alcalde, Ramón. “Ilusiones de isleño” (de onde procede a leitura de Perlongher como alguém
subjugado pela “ilusión territorial”) e Jinkis, Jorge. “A la tibia musa, de un vate desencantado” ambos
em Sitio. Buenos Aires, nº. 3, dezembro de 1983. Trabalho este debate em Gasparini, op. cit.
No entremeio do trágico 177
Referências bibliográficas
AIZENBERG, Edna. “Holocausto, memória judaica e memoriais do terror no
cone sul”. Remate de males, 26.1, Instituto de Estudos da Linguagem
– Unicamp, jan.-jun. 2006, pp. 71-80.
ALCALDE, Ramón. “Ilusiones de isleño”. Sitio, nº. 3. Buenos Aires, dez.
1983.
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexiones sobre el origen y
la difusión del nacionalismo. México: FCE, 1993.
CANGI, Adrian e SIGANEVICH, Paula (comps.). Lúmpenes peregrinaciones:
ensayos sobre Néstor Perlongher. Rosario: Beatriz Viterbo, 1996.
DE CAPOA, Chiara. L’Ancien Testament: Repères iconographiques. Paris:
Hazan, 2003.
DERRIDA, J. Le monolinguisme de l’autre. Paris: Galilée, 1996.
FREUD , Sigmund. “Moisés y la religión monoteísta: três ensayos” em
. Obras completas. Buenos Aires: Hyspamerica, 1988. v. 19.
GASPARINI, Pablo. “Riscos do português/Riscos do castelhano (a língua
portuguesa na poesia do argentino Néstor Perlongher)”. Ipotesi, v. 9,
nºs. 1 e 2, Universidade de Juiz de Fora, 2005.
35
Discutindo a relação de Hannah Arendt com o alemão (colocado pela autora como a sua “língua
materna”), Derrida afirma: “La mère peut devenir la folle du logis, la delirante de la loge, de ce lieu
de substitution ou loge le chez-soi, la loge ou lê lieu, la localité ou la location du chez-soi. Il peut
arriver qu’une mere devienne folle, et cela peut être, certes, un moment de terreur. Quand une
mére perd la raison et le sens commun, l’experience en est aussi effrayante que quand le roi devient
fou. Dans les deux cãs, ce qui devient fou, c’est quelque chose comme la loi ou l’origine du sens (le
pére, le roi, la reine, la mére). Or cela peut parfois arriver comme um événement, sans doute, et
menacer un jour, une fois, dans l’histoire de la maison ou de la lignée, l’ordre même du chez-soi, de
la casa, du chez”. Cf. Derrida, Le monolinguisme de l’autre, p. 106.
36
Sobre esta caracterização da Argentina, ver Prosa plebeya, pp. 13-21.
37
Haroldo de Campos, “Réquiem”, em op. cit., p. 8.
178 Pablo Gasparini
O enunciado do problema
Um espectro assombra o mundo atual: o de que o estado de exceção
tornou-se a regra mais ou menos disfarçada de forma de governo. Walter
Benjamin, na esteira de Carl Schmitt, exprimiu-o de forma clássica em
1940: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de emergência em
que vivemos não é a exceção, mas a regra”1. Dois índices provenientes da
reflexão brasileira recente podem ajudar-nos a circunscrever o problema:
1) o sociólogo Francisco de Oliveira, no ensaio “Democratização e
Republicanização do Estado”, que marcou a sua ruptura definitiva com o
PT do qual era membro histórico2, ainda no início do primeiro mandato
de Lula, escreve:
Está em gestão uma sociedade de controle que escapa aos rótulos simples do
neoliberalismo e até mesmo ao mais radical, e oposto do autoritarismo. Não parece
autoritarismo, pois as escolhas por intermédio das eleições se oferecem periodicamente,
embora o instinto do eleitor desconfie da irrelevância do seu voto. [...] Não é
neoliberalismo, por que raras vezes se viu controles estatais tão severos, e “intervenções
tão pesadas: agora mesmo o ultraconservador George Bush anuncia um programa
nitidamente keynesiano para vitaminar a economia norteamericana”;
1
Benjamin, “Theses on the Philosophy of History”, p. 257.
2
Cf. a coluna de Elio Gaspari a respeito, em Folha de São Paulo, 15 jun. 2003.
3
Arantes, “Estado de sítio”, p. 51.
4
Arantes, Extinção.
180 João Camillo Penna
5
Cf. Teixeira, “na verdade estamos diante de uma verdadeira guerra de guerrilha, com ações
semelhantes às dos vietcongs. Qual a solução? [...] [A] constituição oferece remédios para esse
desafio. O estado de defesa (Art. 136) permite que o Presidente, para restabelecer a paz social,
restrinja alguns direitos em locais restritos e determinados. Outro remédio constitucional é o
estado de sítio (Art. 137), que permite entre outras coisas a busca e apreensão em domicílios,
restrições ao sigilo das comunicações e a obrigação de permanência em localidades determinadas”.
Teixeira, A violência sem retoque: a alarmante contabilidade da violência, p. 90.
6
Aristóteles, Política, 1279a 32; 1279b 6.
Estado de exceção 181
7
Deleuze, “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”, passim.
8
Foucault, Vigiar e punir: história da violência nas prisões, passim.
9
Conforme Oliveira, “o FMI é um saber foucaultiano: ele enquadra os governos nacionais, reco-
mendando superávits e outras medidas, que são diktats; suas missões são o guarda penitenciário que
reiteradamente dá uma olhada no prisioneiro; este mantém suas contas prontas para mostrar ao
gendarme que volta, mas essa volta é até dispensável, pois o prisioneiro faz o dever de casa como um
autômato”. Oliveira, “Democratização e republicanização do Estado”.
10
Rancière, O desentendimento: política e filosofia, p. 107.
182 João Camillo Penna
11
Wacquant, Punir os pobres, p. 30.
12
Derrida, Voyous, p. 52.
13
Agamben, Estado de exceção. Home Sacer, II, 1, pp. 15-6.
Estado de exceção 183
14
Cf. Arantes, “Estado de sítio”, p. 54: é a posição da chamada “escola progressista”, cujo maior
nome é Charles Beard, em An Economic Interpretation of the Constitution. Cf., em especial, a posição
de Antonio Negri, em O Poder constitutinte, p. 227.
15
Cf. Folha de São Paulo, 29/02/2004, “Sob Putin, Estado russo privilegia o medo”.
184 João Camillo Penna
16
O corpus inclui, dentre outros, as canções dos Racionais MC’s, e suas crônicas do “Holocausto
urbano”, em especial a canção “Diário de um detento”, com letra de Jocenir (do CD Sobrevivendo no
Inferno, 1997), o documentário de Paulo Sacramento, Prisioneiro da grade de ferro (2004), e os livros:
Letras de Liberdade (2000), Memórias de um sobrevivente de Luiz Alberto Mendes (2001), Pavilhão 9.
Paixão e morte no Carandiru de Hosmany Ramos (2001), Diário de um detento: o livro, do próprio Jocenir
(2001), e Enjaulado. O amargo relato de um condenado pelo sistema penal de Pedro Paulo Negrini (2002),
Sobrevivente André du rap (Do massacre do Carandiru) organizado por Bruno Zeni (2002), Cela forte
mulher de Antonio Carlos Prado (2003). Não menciono aqui as publicações sem dúvida caudatárias
do massacre, mas já não inteiramente ligadas a ele. A partir dele, Hosmany Ramos sedimentou sua
carreira já então constituída de ficcionista, Luiz Carlos Mendes firmou-se como escritor, o jorna-
lista Bruno Zeni escreveu um romance... Há importantes estudos jornalísticos e sociológicos que
surgiram após o massacre e que devem sua existência em parte a ele.
17
Wacquant, As prisões da miséria, p. 11.
Estado de exceção 185
18
Não é ocioso lembrar que o corolário do estado de exceção para alguns e o de privilégios para
outros, o que inclui a virtual inexpugnabilidade judicial. Nesse sentido é exemplar a história do
Coronel Ubiratan Guimarães, comandante da operação do massacre, e até hoje a única pessoa
julgada por ele. Em 2001, portanto 9 anos após, foi acusado de homicídio e condenado a 632 anos por
102 das 111 mortes (seis anos por cada homicídio e vinte anos por cinco tentativas de homicídio).
No ano seguinte, durante o trâmite do recurso da sentença de sua condenação, foi eleito deputado
estadual por São Paulo, devido à celebridade obtida por sua atuação no massacre (cf. a escolha
lúgubre, embora por ele negada, do número 14.111, como número de legenda, em referência ao
número de mortos). Já como deputado, o recurso de sua sentença condenatória foi julgado pelo
Órgão Especial do Tribunal de Justiça, em 15 de fevereiro de 2006 (5 anos após o julgamento), que
reconheceu um “equívoco” na sentença, o que acabou fazendo com que o réu fosse absolvido. Em 9
de setembro de 2006, quando se candidatava à reeleição, foi assassinado em crime até hoje não
esclarecido. Como deputado, teve papel importante nas discussões sobre o “direito” à arma, durante
o referendo sobre o desarmamento em 2005, junto com o deputado federal Luiz Antônio Fleury
Filho, governador à época do massacre, e em última análise instância decisória da invasão da polícia
militar naquela ocasião – os dois integrando com outros deputados a chamada “bancada da bala”.
O fato judicial em si, corriqueiro de nossa crônica policial/jurídica, contém uma lição interessante:
o elemento constitutivo do massacre, no caso, de uma representação política militarizante, com
grande apelo de votos, e cujo mote notável é o fortalecimento do aparelho de segurança policial
como solução para todos os problemas brasileiros. O massacre do Carandiru não apenas subjetivizou
o preso, constituindo um espaço importante de reivindicação de direitos, instituindo, por exemplo,
o testemunho carcerário no Brasil; ele subjetivizou também a representação policial/política e um
espaço de lobismo forte do aparelho policial/militar de segurança; além, é preciso não esquecer, de
articular a formação do Primeiro Comando da Capital (PCC) (Souza, O sindicato do crime, passim).
186 João Camillo Penna
19
O Sistema Integrado de População Carcerária (SIPC) foi criado mediante a Resolução n° 33, de
10 de abril de 2007, do Conselho Nacional de Justiça, presidido pela Ministra Ellen Gracie.
Conforme escreve Lílian Matsuura na Revista Consultor Jurídico, de 19 de março de 2007: “Nele
constam informações cruzadas entre o Judiciário e órgãos responsáveis pela administração peniten-
ciária dos estados de Sergipe, São Paulo e Rio de Janeiro. Através desse banco de dados, é possível
saber quais as reais condições de cada detento, como a condenação e a previsão para ser libertado.
O objetivo do trabalho é observar a preservação dos direitos de cada detento, reeducá-los, diminuir
a reincidência que hoje é de 60% e oferecer oportunidades para inserir os egressos no mercado de
trabalho. [...] No Sistema Integrado de População Carcerária constam dados do detento como: faixa
etária, sexo, cor, escolaridade, estado civil, naturalidade e nacionalidade, além da condenação e
previsão de saída. Além de audiências e benefícios a que tem direito. [...] As principais queixas vêm
de presos que ficam detidos por mais tempo do que previsto na sentença, de condenados que não
têm progressão de pena atualizada, daqueles que não têm qualificação profissional e dos egressos
que não conseguem entrar para o mercado de trabalho. A criação desse sistema também pretende
reunir dados para descobrir quais as principais motivações para rebeliões e motins”.
20
Wacquant, op. cit., loc. cit.
21
Paulo Sérgio Pinheiro e Marcelo Daher, Folha de São Paulo, 10 abr. 2007.
22
Segundo Luiz Flávio D’Urso, Folha de São Paulo, 26 nov. 2005.
23
Conforme Márcio Thomaz Bastos, Folha de São Paulo, 10 ago. 2004.
Estado de exceção 187
que a cada dois meses seria necessária uma nova prisão nacional do
tamanho da Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, desativado
em 2002, no aniversário de 10 anos do massacre e como conseqüência
deste. Diante de cifras espantosas como estas, que indicam, por um lado,
o aprisionamento maciço e crescente da população urbana pobre brasi-
leira, sem que isso modifique o quadro de criminalidade, e por outro, a
insuficiência da medida, inócua em termos quantitativos – é impressio-
nante o apoio generalizado na população brasileira à medida de redução
da maioridade penal.
O crescimento rápido da população carcerária brasileira confirma o
diagnóstico de uma penalização da pobreza em larga escala, em uma ver-
dadeira ditadura sobre os pobres 24. Trata-se de um esforço coordenado de
disciplinamento da miséria, para falar como Foucault, que integra o sis-
tema penitenciário em uma rede maior, da qual fazem parte as periferias,
bairros pobres das capitais, e favelas, e que inclui uma política de
encarceramento e extermínio das classes populares. Neste sentido soa
profundamente adequado o diagnóstico de Mike Davis, de que nos en-
contramos diante de um mundo gerido imperialmente em que megafavelas,
situadas mundialmente em cidades falidas, constituem zonas de “instabi-
lidade” do ponto de vista de nossos gestores, adjacentes ao grosso dos
recursos energéticos remanescentes do planeta25. Entende-se mal, por-
tanto, as queixas de que o remédio para o problema da desordem brasilei-
ra, o chamado “estado paralelo”, fruto de uma administração “frouxa”,
seja um recrudescimento do estado policial, ou o aumento da rigidez
penal, quando se sabe que, precisamente, a “penalização neoliberal”26 é
resultado de uma drástica diminuição da atuação do estado em termos
dos serviços que presta à sociedade. É neste contexto que devemos pen-
sar os relatos testemunhais de presos. Eles configuram, por um lado, um
instrumento de subjetivação da massa carcerária, constituindo como sujei-
to uma população antes anômica, que só passou existir a partir do acon-
tecimento prisional que lhe conferiu essa visibilidade equívoca. O mas-
24
Wacquant, op. cit., p. 10.
25
Davis, Planeta favela, passim; Arantes, Extinção, p. 300.
26
Wacquant, op. cit., p. 7.
188 João Camillo Penna
27
Relato da Relatora Especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, Asma
Jahandir (16 set. a 8 out. 2003).
28
Pinheiro, “Democratic governance, violence, and the (un) rule of law”, p. 123.
29
Id., p. 124.
Estado de exceção 189
al deixaram de ser uma opção atraente30. Uma justiça seletiva não lhe é
acessível, sendo prerrogativa de ricos, que moram em outros bairros. For-
mas agudas de apartheid social vêm sendo estudadas por pesquisadores,
demonstrando a existência de verdadeiras cidades muradas autônomas
de ricos (por ex., o condomínio Alphaville em São Paulo; o Morada do
Sol no Rio de Janeiro) no meio das capitais, com sistema de segurança
privatizado, comércio, escola, etc.31. Cálculos sobre o custo dos gastos
com segurança demonstram que se gasta em torno de 10% do PIB brasi-
leiro em serviços de segurança32. As análises sociológicas que especulam
sobre as causas destes fenômenos identificam um recrudescimento acen-
tuado de violência no período de redemocratização, que dá continuidade
e agrava quadros iniciados durante o período autoritário33. De fato, abso-
lutamente todas as práticas atuais que resulta(ra)m em abusos monstru-
osos de direitos humanos tiveram sua origem durante os 21 anos do regi-
me militar: a privatização do aparelho de segurança (que se inicia com a
contratação de seguranças para a proteção de bancos contra ataques ter-
roristas), a militarização da polícia, a prática regular da tortura que pas-
sou dos porões da polícia “política” da ditadura ao cotidiano das chefaturas
de polícia, os esquadrões da morte (apoiados pelas autoridades militares
durante a ditadura, que seqüestravam ou matavam dissidentes políticos
no Rio e em São Paulo), a prática dos justiceiros, e as execuções sumárias
de suspeitos. A Secretaria Especial de Direitos Humanos em pesquisa
realizada em seis estados (Pará, Bahia, Distrito Federal, Rio de Janeiro,
São Paulo e Rio Grande do Sul), nos anos de 2000 e 2001, reportou um
total de 3.017 civis mortos pela polícia militar e civil dentro e fora do
serviço34. E mais uma vez, no entanto, se examinarmos cuidadosamente
30
Zaluar, Condomínio do diabo e Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas; Lins, Cidade de Deus;
Cruz Neto, Moreira e Sucena, Nem soldados nem inocentes; Dowdney, Crianças do tráfico; Malaguti
Batista, Difíceis ganhos fáceis; Férrez, Manual prático do ódio.
31
Caldeira, Cidade de muros; “The paradox of police violence in democratic Brazil”.
32
Teixeira, A violência sem retoque, p. 76.
33
Peralva, Violência e democracia; Méndez, O’Donnell, Pinheiro, Democracia, violência e injustiça;
Pinheiro e Almeida, Violência urbana.
34
Relato da Relatora Especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, Asma
Jahandir (16 set. a 8 out. 2003).
190 João Camillo Penna
35
Caldeira, “The paradox of police violence in democratic Brazil”, p. 246.
36
Pinheiro, “Democratic governance, violence, and the (un) rule of law”, p. 127.
37
Ver, a respeito, o maravilhoso filme de Marcelo Luna e Paulo Caldas, O rap do pequeno príncipe
contra as almas sebosas.
38
Ver a revisão de toda a bibliografia a respeito em Zaluar, Integração perversa: pobreza e tráfico de
drogas.
Estado de exceção 191
39
Pinheiro, “Democratic governance, violence, and the (un) rule of law”, p. 124.
40
Sobre “rogue states” ver Derrida, Voyous. A respeito do diagnóstico de uma espécie de desejo
autoritário no Brasil e na América Latina, que as pesquisas da ciência política brasileira propunham
(por exemplo, Santos, Razões da desordem), observe-se o estudo do PNUD (Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento), baseado em pesquisa de opinião feita em 18 países da América
Latina (18.643 pessoas entrevistadas), demonstrando que 55% dos latino-americanos apoiariam a
um governo autoritário se ele pudesse resolver os problemas econômicos da região. A pesquisa do
datafolha divulgada em 10 de abril de 2007 pela Folha de São Paulo, portanto mais ou menos dois
meses após a morte do menino João Hélio Fernandes, mostra que 55% da população brasileira
apoiaria a instituição da pena morte no Brasil.
192 João Camillo Penna
Campos teóricos
Trata-se, portanto, de estabelecer alguns parâmetros teóricos que
possam nos ajudar a balizar o problema. Para tal, me parece, cinco cam-
pos filosófico-políticos distintos podem ser delineados:
Em primeiro lugar, as obras polêmicas de Antonio Negri e Michael Hardt,
Império e Multidão. Lançado em 2000, o best-seller cult, Império, acabou
tornando-se o emblema da geração alternativa do Primeiro Fórum Mundi-
al de Porto Alegre. O modelo para o livro, dizem os autores, são duas obras
interdisciplinares: O Capital, de Marx e Engels, e Mil Platôs, de Deleuze e
Guattari. Nele os autores definem um novo paradigma da política: a ordem
imperial. Ela se configura na transição entre modernidade e pós-
modernidade, entre o fordismo e o pós-fordismo, na esteira, por um lado, da
ordem do direito internacional, que legislava sobre as relações entre esta-
dos-nações por meio de tratados e pactos (do qual a ONU é a expressão
máxima), e do imperialismo, por outro, que descreve o momento
expansionista do poder imperial, sempre confrontado aos seus limites exter-
nos, e absorvendo-os em seu interior. O império, no entanto, se constitui
no momento em que a soberania e a competição entre estados individuais
cedem lugar a um novo poder supranacional inconteste, único,
autolegitimado, que exerce sobre os estados-nações uma norma efetiva e,
quando necessário, coerciva, configurando uma ordem de controle imanente
sobre a totalidade da superfície global. Negri e Hardt levam a sério a
globalização do capital, e consideram toda e qualquer estratégia, progressi-
va ou reacionária, que não leve isso em conta, e esforce-se por retornar ou
restituir as fronteiras nacionais, uma estratégia nostálgica idealista, fadada
ao fracasso. Nesse sentido, a operação levada a cabo por eles é decidida-
mente materialista e pós-moderna, devendo muito a Marx (que enfatiza
desde sempre a internacionalização do capital), e a Nietzsche (que traba-
lha com a potencialidade afirmativa do devir). O império é basicamente a
“constituição política do presente”, e veio para ficar; é preciso explorar-lhe
as potencialidades afirmativas. Ele é simplesmente o momento em que a
soberania se confunde com a totalidade do globo, em relação à qual nada é
exterior, um imenso território organizado em rede, e subordinado a um
único centro disseminado e integrado de poder.
O domínio imperial funciona a partir do monopólio ético-moral identifi-
cado à integridade territorial de suas fronteiras, que se confundem com o
Estado de exceção 193
41
Hardt e Negri, Império, p. 34.
42
"A relação entre poder constituinte e poder constituido encontra a sua perfeita analogia sistemática e
metodológica na relação entre natura naturans e natura naturata, e mesmo se esta noção é tomada ao
sistema racionalista de Spinoza, isso prova precisamente que este sistema não é apenas racionalista.
A teoria do poder constitutinte é sempre ininteligível como racionalismo puramente mecanicista. O
povo, a nação, a força originária de todo o ser do Estado, constituem sem cessar novos órgãos”.
Schmitt, Dictature, p. 147.
194 João Camillo Penna
43
Schmitt, Political theology: four chapters on the concept of sovereignty, p. 5.
44
Agamben, O poder soberano e a vida nua I, p. 24.
45
Agamben, Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I, p. 23.
46
Schmitt: “Embora ele [o soberano] permaneça fora do sistema legal normalmente válido, ele no
entanto pertence a ele, pois é ele quem deve decidir se a constituição precisa ser suspensa na sua
totalidade” (Schmitt, Political theology: four chapters on the concept of sovereignty, p. 7). O que define
o movimento de dupla exclusão e dupla inclusão política, central para o funcionamento da sobera-
nia: a soberania se subtrai à norma, constituindo-a, ao mesmo tempo que, constituída, a norma se
subtrai à soberania, abandonando-a como estado-limite; a soberania inclui a norma como exterior
a si mesma ao fundá-la, ao decidir onde começa a norma e a anormalidade, ao mesmo tempo que a
norma inclui a exceção soberana ao mantê-la sempre como limite, e condição exterior interna para
Estado de exceção 195
seu funcionamento. Os estados de exceção são aqueles em que o banimento recíproco da exceção
no estado de direito (a decisão é banida da norma, excluindo-a, e a norma bane a decisão
interiorizando-a) é substituído pela identificação absoluta da anormalidade à norma, da violência
ao estado de “tranqüilidade superficial” das nossas democracias parlamentares, de forma que
cheguemos ao oxímoro tipicamente moderno de uma violência tranqüila, de uma guerra na paz, de
uma desordem na ordem, e assim por diante.
47
A inversão da famosa frase de Clausewitz, “a guerra não é mais do que a continuação da política por
outros meios”, é estudada por Foucault, como a transformação da guerra em novo paradigma do poder.
É a política que constitui a guerra sob outras formas. Foucault, Em defesa da sociedade, pp. 22-3.
48
Schmitt, The concept of the political, p. 26.
49
Id., p. 28.
50
Schmitt, Political theology: four chapters on the concept of sovereignty, p. 36.
51
Id., ibid.
52
Hardt e Negri, Império, p. 65.
53
Em seu discurso ao Estado da União, em janeiro de 2003, justificando o adiamento sine die do Patriot
Act, promulgado após o 11 de setembro, ficou famosa a proposição de George Bush segundo a qual
“a liberdade que tanto apreciamos não é o presente dos Estados Unidos, mas o presente de Deus
para os homens”. Por outro lado, na esfera local carioca, o edital sancionado em 2004 pela ex-
governadora evangélica do Rio de Janeiro, Rosinha Garotinho, estabelecendo concurso de 500
professores de ensino religioso confessional nas escolas públicas, onde há um déficit de 25.000
professores, sobretudo nas áreas de física, química e matemática, constitui um outro grande
exemplo da disseminação massiva do teológico-político na política atual.
196 João Camillo Penna
54
Hardt e Negri, op. cit., pp. 42-3; Foucault, Vigiar e punir, pp. 173-99.
55
Foucault, Em defesa da sociedade, p. 286.
56
Ver, a respeito, a aula de 17 de março de 1976, em Em defesa da sociedade, e o capítulo “Direito de
morte e poder sobre a vida”, em História da sexualidade I. A vontade de saber.
57
Foucault, Em defesa da sociedade, p. 287.
58
Id., p. 304.
Estado de exceção 197
59
Marx, Grundrisse: introduction to the critique of political economy, pp. 703-6.
60
Negri, 5 lições sobre Império, p. 93.
61
Id., pp. 92-3.
62
Marx, op. cit., p. 706.
63
Cf. Lazzarato e Negri, Trabalho imaterial; Cocco e Hopstein, As multidões e o império.
198 João Camillo Penna
mento dos dois: é bem verdade que tanto o biopoder quanto o trabalho
imaterial se referem a um momento em que a opção de um fora, nem que
seja marginal, deixou de existir, já que o exercício do poder se confunde
com a própria superfície da vida como um todo, e nada é exterior à vida
ocupada pelo exercício produtivo imperial. No entanto, é aqui que po-
dem se armar as forças afirmativas de resistência: o trabalho imaterial
produz não só mercadorias, mas sujeitos; a biopolítica não apenas contro-
la a vida, mas pode libertá-la64.
Um quinto campo ainda se faz necessário, aparentemente distante
dos quatro primeiros, mas na verdade não: iniciar um levantamento das
questões e problemas formulados pela crítica brasileira sobre o golpe de
1964 no Brasil. Nos últimos dez anos, uma leva de estudos sobre o regime
militar vem conseguindo acumular uma reflexão importante sobre o perí-
odo autoritário que tomou o Brasil por 21 anos. O aniversário de 40 anos
do golpe de 64, em 2004, reabriu a mal cicatrizada ferida dos nossos anos
de chumbo, ensejando uma série de publicações que apontam para uma
revisão crítica em profundidade dos fatos, revisitando análises conheci-
das, e expondo mais uma vez uma clássica e perene divisão das visões e
interpretações do golpe. Dentre outros, as obras já consagradas, redigidas
e organizadas por Maria Celina D’Araujo e Celso Castro65. Ou ainda, os
quatro volumes da longa pesquisa de Elio Gaspari sobre a ditadura mili-
tar, As ilusões armadas. Cito estas referências por serem exemplares, mas
há muitas outras. Não nos enganemos: é no período militar que encontra-
mos a gênese das práticas policiais, e do direito policial-militar, que se
estabelecem como ordem fora da ordem, e confundindo-se com o
ordenamento jurídico, ao qual os dirigentes, e os juristas do regime pro-
64
O que Foucault coloca de maneira clara no final de História da sexualidade I. A vontade de Saber:
“E contra esse poder ainda novo no século XIX [o bio-poder], as forças que resistem se apoiaram
exatamente naquilo sobre que ele investe – isto é, na vida e no homem enquanto ser vivo. [...] [O]
que é reivindicado e serve de objetivo é a vida, entendida como as necessidades fundamentais, a
essência concreta do homem, a realização de suas virtualidades, a plenitude do possível. [...] [A]
vida como objeto político foi de algum modo tomada ao pé da letra e voltada contra o sistema que
tentava controlá-la” (Foucault, História da sexualidade I: vontade de saber, p. 136).
65
Refiro-me pincipalmente a Visões do golpe (1994), Os anos de chumbo (1994), A volta aos quartéis
(1995), e Democracia e forças armadas no cone sul (2000).
Estado de exceção 199
curaram dar uma vestimenta legal66. O fato de estas práticas terem recru-
descido de maneira tão espantosa a partir da transição democrática, não
nos deve fazer concluir que elas sejam intrínsecas à democracia, como
querem alguns. É no período autoritário que se funda o direito da exce-
ção policial, a penalização da população, a prática da tortura, e a
militarização da sociedade; é aqui que ele toma pé na sociedade brasilei-
ra, como vimos acima. Entender como se dá o processo poderia contribuir
para conceitualizar a “contribuição” brasileira à configuração imperial
contemporânea. Seria importante fazer a genealogia das práticas do medo
institucional, a “produção simbólica do Inimigo”67, a partir de uma análi-
se da doutrina da segurança nacional, utilizando o paradigma teórico
mobilizado pela pesquisa. Senão, vejamos: o regime militar funda-se a si
próprio (é ditadura “soberana”, e não “de comissário”, segundo a classifi-
cação de Schmitt68), no Ato Institucional (sem número, mas o primeiro),
como “poder constituinte”, ou seja potência revolucionária, representan-
do um “movimento”, que lhe auto-confere a legitimidade de determinar
os poderes constituídos, e desta forma formalizar-se como nova constitui-
ção. A constituição de 1967 já está inteira em germe no primeiro Ato
Institucional, obra magistral de Francisco Campos, o Chico Ciência69. O
furto terminológico do pouvoir constituant de Sieyès, e das revoluções do
século XVIII70, não é um feito menor do escriba da Constituição do Esta-
do Novo de Getúlio. A demanda por uma contratualidade transcenden-
te de tipo hobbesiano inscreve-se de parte a parte na configuração mili-
tar de um regime nacional xenófobo, assombrado pelo espectro comunis-
ta (uma espécie de nómos da terra, como dirá Schmitt), alinhado ao bloco
norte-americano, aparelhado tecnologicamente, e vigiado pelo dispositi-
vo de segurança policial-militar. Não espanta que o medo, órgão que
motiva o contrato social hobbesiano do Leviatã, reapareça explicitamen-
te na pena do maior teórico do regime militar, Golbery do Couto e Silva,
na primeira página de seu Geopolítica do Brasil (1967):
66
Pinheiro, “Autoritarismo e transição”, passim.
67
Hardt e Negri, Império, p. 55.
68
Schmitt, Dictature, passim.
69
Gaspari, As ilusões armadas: a ditadura envergonhada, p. 123.
70
Negri, O poder constitutinte, passim.
200 João Camillo Penna
Daquele modo, porém, foi que, repudiando de frente a Aristóteles [...], e se inspirando,
sobretudo em Euclides, Thomas Hobbes descobriu e apontou à adoração reverente e
temerosa dos povos o novo Leviatã, esse deus portentoso, embora mortal, da soberania
e do poderio absoluto. [...] O estado-soberano, surgido das fontes profundas do Medo
para prover a segurança individual e coletiva na terra, passaria a afirmar sua vontade
onipotente sobre os destinos de todos os súditos que o haviam criado, assim mesmo,
inigualável e autárquico, mas, já agora, pela própria necessidade de um raciocínio
lógico, escorreito e severo, que o justificaria, de uma vez para sempre, contra todas as
críticas e contra quaisquer argumentações71.
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Ce qui reste d’Auschwitz. Lárchive et le témoin. Homo
Sacer III. Trad. de Pierre Alfieri. Paris: Payot & Rivages, 1999.
. Estado de exceção. Home Sacer, II, 1. Trad. de Iraci Poleti. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
.Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I. Trad. de Henrique
Burigo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.
ARANTES, Paulo Eduardo. “Estado de sítio”, em LOUREIRO, Isabel; LEITE,
71
Silva, Geopolítica e poder, pp.3-4.
72
Stepan, Os militares na política, p. 53.
Estado de exceção 201
João Camillo Penna – “Estado de exceção: um novo paradigma da política?”. Estudos de Literatura
Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 179-204.
Walter Benjamin: o estado de e x ceção
ex
entre o político e o estético
Márcio Seligmann-Silva
Crítica da Gewalt
O ponto central do argumento de Benjamin em seu ensaio sobre a
Gewalt é apresentado logo de saída em seu texto:
A tarefa de uma crítica da violência pode ser definida como a apresentação de suas
relações com o direito [Recht] e a justiça [Gerechtigkeit]. Pois, qualquer que seja o
efeito de uma determinada causa, ela só se transforma em violência, no sentido forte da
palavra, quando interfere em relações éticas (160; 179)2.
2
Nas citações do ensaio de Benjamin, de 1921, remeto primeiro ao número das páginas da edição
brasileira e em seguida ao número correspondente da edição alemã da Suhrkamp. Cf. bibliografia.
Walter Benjamin: o estado de exceção... 207
presas à idéia segundo a qual existe uma adequação entre meios e fins, já
que se meios justos devem gerar fins justos, estes são obtidos por aqueles. A
lógica a que esta equação remonta reduz a justiça ora a legitimadora dos
meios (no caso do direito natural), ora a algo garantido pelos meios legíti-
mos (no caso do direito positivo). O passo seguinte de Benjamin consiste
em deixar em suspenso a determinação da justiça e voltar-se para a ques-
tão da legitimidade dos meios. Neste ponto é importante lembrar a crítica
benjaminiana da linguagem “decaída”, apenas comunicativa e pensada como
simples meio, que ele desenvolveu em mais de uma ocasião (lembremos
aqui apenas de seu ensaio de 1916 “Sobre a linguagem em geral e sobre a
linguagem dos homens”, do ensaio sobre a tarefa do tradutor, de 1923, e do
seu texto “Problemas da sociologia da linguagem”, de 1935). Para pensar
aquela legitimidade dos meios, Benjamin inicialmente aceita a tese do
direito positivo, uma vez que este permite a distinção entre “sanktionierten
und der nicht sanktionierten Gewalt” (“poder sancionado e o não-sancio-
nado”, 161; 181). A análise dos fins do poder não é suficiente para avaliá-
lo: precisamos abordar o poder em sua origem histórica. Isto remete em
Benjamin não apenas a uma “genealogia” (nietzschiana) das leis (dos mo-
res), mas à sua “origem histórica” (162; 182).
Neste sentido ele se debruça sobre a cena política européia da sua época.
Nela ele detecta uma antinomia entre a esfera jurídica, que quer integrar
toda a sociedade em um sistema de fins jurídicos, e os fins naturais dos indi-
víduos. Estes não têm direito a recorrer à violência para concretizar seus fins.
Por outro lado, o sistema jurídico, com seu monopólio da Gewalt/violência,
parece querer apenas perpetuar a si mesmo. Neste ponto de sua argumenta-
ção Benjamin introduz pela primeira vez a figura do “‘grande’ bandido”. Ape-
sar de Benjamin não classificar deste modo, ele já representa uma aparição
de um “estado de exceção” dentro da aparente normalidade do estado de
direito. Para Benjamin, este “grande bandido” gera tanta admiração da parte
do povo, justamente porque ele ostenta a violência/poder que lhes é proibido
manifestar. O simples fato de este bandido ter acesso à violência é sentido
como uma ameaça por parte da Gewalt/poder, independentemente de seus
fins. A admiração do povo também não considera estes fins. O poder jurídico
identifica neste desafio uma ameaça. E hoje sabemos até que ponto este sen-
tir-se ameaçado (ou melhor, este apresentar-se como ameaçado) pode levar
os detentores do poder a utilizar uma carga de violência inimaginável.
208 Márcio Seligmann-Silva
3
Neste sentido, lembrando que Benjamin escreve após a Primeira Guerra Mundial, é importante
confrontar este texto com o também famoso ensaio de Karl Jaspers sobre o problema da culpa (Die
Schuldfrage) na Alemanha do pós-guerra, que ele escreveu em 1945-46. Aí o autor tenta refletir
sobre a construção de uma nova ordem jurídica a partir da situação da derrota (e dos complexos
sentimentos nos alemães, derivados desta derrota).
Walter Benjamin: o estado de exceção... 209
e poder (jurídico). Sua crítica da Gewalt visa estas suas duas faces. Mesmo a
máxima bem-intencionada de Kant, “aja de tal modo que você use a huma-
nidade, tanto em nome da tua pessoa como na de qualquer outro, sempre
como fim, nunca apenas como meio...”, é vista como insuficiente e ingênua
para se fazer uma crítica da Gewalt. Ela não é suficiente para dissociar o
núcleo da Gewalt (além de afirmar uma “antropologia” limitada que parece
desconhecer, eu acrescentaria, conceitos como o de trágico, o de sublime e o
de medo, que marcam não só a história da Estética, mas sobretudo, explici-
tamente ao menos desde Maquiavel e Hobbes, a teoria política).
O direito positivo, nota ainda Benjamin, vê em cada indivíduo um repre-
sentante do interesse da humanidade e de uma “ordem de destino”. Esta
submissão do indivíduo a esta ordem implica também a construção de um
discurso que apenas reitera o status quo. A ordem do direito carece de um
poder ameaçador (“Die rechterhaltende Gewalt ist eine drohende”, 165;
188). Esta idéia nos faz lembrar de uma passagem da tragédia Eumênides de
Ésquilo, quando a juíza, chefe do tribunal, Palas Atena, define a nova ordem
jurídica que estava sendo instaurada a partir do julgamento de Orestes:
Prestai atenção ao que instauro aqui, atenienses, convocados por mim mesma para
julgar pela primeira vez um homem, autor de um crime em que foi derramado sangue.
A partir deste dia e para todo o sempre o povo que já teve como rei Egeu terá a
incumbência de manter intactas as normas adotadas neste tribunal na colina de Ares
[...] Sobre esta elevação digo que a Reverência e o Temor, seu irmão, seja durante o dia,
seja de noite, evitarão que os cidadãos cometam crimes, a não ser que eles prefiram
aniquilar as leis feitas para seu bem (quem poluir com lodo ou com eflúvios turvos as
fontes claras, não terá onde beber). Nem opressão, nem anarquia: eis o lema que os
cidadãos devem seguir e respeitar. Não lhes convém tampouco expulsar da cidade todo
o Temor; se nada tiver a temer, que homem cumprirá aqui seus deveres?4.
4
Ésquilo, “Eumênides”, pp. 681-99.
210 Márcio Seligmann-Silva
5
Com relação ao triplo significado do conceito de catástrofe na obra de Walter Benjamin – que ora
indica uma catástrofe contínua, ora uma catástrofe destruidora, ora uma catástrofe ao mesmo
tempo aniquiladora e redentora –, cf. o meu artigo de 2003.
212 Márcio Seligmann-Silva
mais terrível que o mero ainda não-ser da pessoa justa. Mas não se trata
de sacralizar a vida, o corpo humano, Leib, em função do elemento sagra-
do da pessoa. O autor se pergunta sobre a diferença entre as pessoas e os
animais e plantas, para afirmar que estes últimos não teriam um caráter
sagrado devido à pura vida. O programa de pesquisa que ele propõe en-
tão foi seguido à risca por Agamben: “Sem dúvida, valeria a pena inves-
tigar o dogma do caráter sagrado da vida” (174; 202). Para Benjamin,
este dogma deve ser recente e considerado um equívoco da tradição
ocidental enfraquecida, que busca o sagrado perdido no impenetrável
cosmológico. Ele arremata seu raciocínio com um teorema (como que
kafkiano): ele se espanta diante do fato de que se atribua o caráter de
sagrado justamente à vida pura, ou seja, àquilo que o pensamento mítico
considera como o que porta a culpa. Assim ele fecha o círculo de seu
estudo: o poder-direito mítico exige o sacrifício da vida sacra. Apenas a
crítica da Gewalt pode nos instrumentalizar contra este círculo onde a
lei, o sagrado e a culpa se alimentam eternamente.
Esta crítica não é apresentada como genealogia, mas sim como uma
“filosofia” da sua história. A mise en perspective derivada deste ponto de
vista traça um ponto arquimediano fora da esfera do poder-violência que
permite este olhar crítico. Assim, Benjamin propõe, no seu último passo, a
possibilidade de ruptura na cadeia de embates históricos e míticos entre
poderes mantenedores e poderes instituintes. A nova era histórica é anun-
ciada, como aquela sem um poder do Estado. O poder puro, revolucionário
e humano que Benjamin evoca, é posto em paralelo com o poder divino,
que dispõe daquilo que o mito reduziu ao direito. Mas novamente Benja-
min é infeliz na escolha de seus exemplos de tal poder puro: ele o vê tanto
na “verdadeira guerra” como no “juízo divino da multidão sobre o crimino-
so”. Em contrapondo ao “poder que o homem põe”, schaltende Gewalt, que
não abandona o mito e depende do direito, assim como ao poder mantenedor,
administrado, verwaltete Gewalt, ele propõe o poder divino, que nunca é
meio e pode ser chamado de “poder que dispõe”, waltende Gewalt. Se recor-
darmos que em alemão se diz “schalten und walten”, no sentido de “pôr e
dispor”, mandar, e das expressões walt’s Gott, em nome de Deus!, ou das
walte Gott, assim seja!, podemos compreender melhor este jogo de palavras
de Benjamin com o termo Gewalt. Em português dizemos também que “o
homem põe e Deus dispõe”. Aqui se trata de uma equação simples: o direi-
216 Márcio Seligmann-Silva
7
Derrida, Force de Loi. Le “Fondement mystique de l’autorité”, p. 69.
8
Weber, “Taking Exception to Decision: Walter Benjamin and Carl Schmitt”, p. 5.
9
Derrida, op. cit., p. 18.
10
Id., p. 35.
11
Id., p. 43.
12
Id., pp. 48s.
Walter Benjamin: o estado de exceção... 217
13
Id., p. 67.
14
Id., pp. 71, 145.
15
Chega a ser caricata a interpretação do conceito de waltende Gewalt como uma alusão a Walter do
nome de Benjamin. Derrida, Force de Loi: Le “Fondement mystique de l’autorité”, pp. 74-7.
16
Derrida, op. cit., p. 93.
17
Id., pp. 111s.
218 Márcio Seligmann-Silva
conta este diálogo com Carl Schmitt. A relação entre Benjamin e Schmitt
está documentada em poucas passagens. Além da citação do livro Politische
Theologie no seu ensaio sobre o drama barroco alemão, que logo veremos,
devemos nos lembrar de uma carta a Richard Weissbach de 23.03.1923,
da carta que Benjamin enviou a C. Schmitt em 9.12.1930, onde avisa
que ele em breve receberá seu ensaio sobre o Trauerspiel, e de uma passa-
gem de um curriculum vitae de 1928.
Na carta a Weissbach, Benjamin escreve: “Quando da minha última
visita eu esqueci o Politische Theologie do Schmitt com o senhor. O senhor
poderia, por favor, gentilmente enviá-lo a mim. Ele é importante para o
meu trabalho atual sobre o Trauerspiel”18. Já o curriculum de 1928 revela
pistas preciosas para a compreensão da obra de Benjamin daquele período:
Assim como Benedetto Croce com a destruição da doutrina das formas artísticas
[Kunstformen] abriu o caminho para a obra única concreta, assim os meus ensaios até
agora têm se esforçado em abrir o caminho para a obra de arte através da destruição da
doutrina do caráter disciplinar da arte. Seu objetivo programático comum é o processo
de integração da ciência que mais e mais deita ao chão as paredes divisórias entre as
disciplinas, tal como o conceito de ciência do século passado as caracterizavam, com
base no fomento de uma análise da obra de arte que reconheça nela uma expressão
integral, sem delimitar em um campo restrito, das tendências religiosas, metafísicas,
políticas e econômicas de uma época. Este ensaio, que eu levei a cabo em uma escala
ampla no mencionado Origem do drama barroco alemão, conecta-se, por um lado, com
as idéias de Alois Riegl e sua doutrina do Kunstwollen, por outro lado, com as tentati-
vas atuais de Carl Schmitt, que realiza na sua análise das configurações políticas uma
tentativa análoga de integração dos fenômenos, que apenas na aparência são separados
segundo os campos. Sobretudo, no entanto, uma tal observação parece-me condição
para toda compreensão fisionômica profunda da obra de arte no ponto em que elas são
incomparáveis e únicas. Neste sentido, ela se aproxima mais da observação eidética dos
fenômenos do que da sua observação histórica (GS VI, pp. 218s.).
18
Benjamin, Gesammete Briefe. Band II. 1919-1924, p. 327. Cf. também uma menção rápida ao estudo
da teoria da soberania no século XVII em uma carta a Gottfried Salomon-Delatour Id., p. 400.
Walter Benjamin: o estado de exceção... 219
Prezado Professor,
Por estes dias o senhor receberá da editora o meu livro Ursprung des deutschen Trauerspiels
[Origem do drama barroco alemão]. Com estas linhas eu gostaria não apenas de anunciá-lo,
mas também de expressar-lhe minha alegria quanto ao fato de que pude enviá-lo graças ao
senhor Albert Salomon. O senhor irá notar muito rapidamente quanto o livro deve a sua
apresentação da doutrina da soberania no século XVII [Cf. Politische Theologie, 1922].
Talvez eu deva, além disso, já dizer que derivei de suas obras posteriores, particularmente
de Diktatur, uma confirmação dos meus métodos de pesquisa em filosofia da arte das suas
sobre filosofia do estado. Se a sua leitura do meu livro tornar compreensível este senti-
mento, o propósito do meu envio terá se cumprido.
Com a expressão de uma particular admiração,
Atenciosamente,
Walter Benjamin20.
19
Segundo Jacob Taubes, esta carta “é uma mina que simplesmente faz explodir as nossas idéias
sobre a história cultural da era de Weimar. A carta provém não dos inícios da época de Weimar, mas
da época de sua crise: dezembro 1930”. Taubes, Ad Carl Schmitt: Gegenstrebige Fügung, p. 27.
20
Benjamin, Gesammete Briefe. Band III. 1925-1930, p. 558.
21
Agamben, Estado de exceção, p. 84.
220 Márcio Seligmann-Silva
22
Bredekamp, “From Walter Benjamin to Carl Schmitt, via Thomas Hobbes”, pp. 261s.
Walter Benjamin: o estado de exceção... 221
23
Nietzsche, na sua Genealogia da Moral, também pensou a soberania como um conceito-limite. Para
ele o todo poderoso (Mächtigsten) é o único capaz de decretar o perdão (Nietzsche, “Jenseits von Gut
und Böse, Zur Genealogie der Moral. Eine Streitschrift”, p. 309). Neste ato altruísta ele exerce e
impõe seu poder, salvando a vida matável. Este fato aponta para o ser-excepcional do Estado de
Direito, ou seja, para a verdade de que o Estado de Exceção habita o interior do estado de Direito e
não lhe é estranho. Mais adiante, na mesma obra, Nietzsche formula: “É preciso mesmo admitir algo
ainda mais grave: que, do mais alto ponto de vista biológico, os estados de direito não podem senão ser
estados de exceção [Ausnahme-Zustände], enquanto restrições parciais da vontade de vida que visa o
poder, a cujos fins gerais se subordinam enquanto meios particulares: a saber, como meios para criar
maiores unidades de poder” (Nietzsche, Jenseits von Gut und Böse, Zur Genealogie der Moral. Eine
Streitschrift, p. 65, correspondendo a Nietzsche, Genealogia da Moral: uma polêmica, pp. 312s.). Nova-
mente encontramos aqui explicitada a lógica do direito natural que justifica os meios em função do
poder e de sua unidade.
24
Schmitt, Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität, p. 13.
25
Id., p. 13.
222 Márcio Seligmann-Silva
26
Schmitt, Hamlet o Hecuba. La irrupcion del tiempo em el drama, p. 53.
27
Agamben, Estado de exceção, p. 85.
28
Id., pp. 85s.
Walter Benjamin: o estado de exceção... 223
O conceito moderno de soberania tende para um poder executivo assumido pelo prínci-
pe, o Barroco desenvolveu-se a partir da discussão do estado de exceção [Ausnahmezustand],
considerando que a mais importante função do príncipe é impedi-lo. Aquele que exerce
o poder está predestinado de antemão a ser detentor de um poder ditatorial em situações
de exceção provocadas por guerras, revoltas ou outras catástrofes30.
29
Id., ibid.
30
Benjamin, Origem do drama trágico alemão, pp. 57s., correspondendo a GS I, pp. 245s.
31
Na edição da Suhrkamp consta “Es gibt keine barocke Eschatologie” (“Não existe uma escatologia
barroca”, GS I, p. 246), mas Agamben constatou no manuscrito (ou na primeira edição) que em
Benjamin constava “Es gibt eine barocke Eschatologie”, ou seja, “Existe uma escatologia barroca”.
Mas ele mesmo nota que a “correção” realizada pelos editores não violenta o sentido do pensamento
benjaminiano, já que esta escatologia está de fato esvaziada: permanece o fim, mas acaba a sua
transcendência e a possibilidade de redenção. Cf. Agamben, op. cit., pp. 88s.
224 Márcio Seligmann-Silva
mecanismo que acumula e exalta tudo o que é terreno antes de entregar à morte. O
além é esvaziado de tudo aquilo que possa conter o mínimo sopro mundano, e o
Barroco extrai dele uma panóplia de coisas que até aí se furtavam a qualquer configu-
ração artística, trazendo-as, na fase do seu apogeu, violentamente à luz do dia para
esvaziar um derradeiro céu que, nessa sua vacuidade, será capaz de um dia destruir a
terra com a violência de uma catástrofe32.
Benjamin nota que existe por detrás do drama de tirano barroco ele-
mentos da tragédia de mártires. O soberano barroco, para ele, oscila entre
a figura do tirano e a do mártir. Benjamin nota que, por outro lado, também
32
Benjamin, Origem do drama trágico alemão, pp. 58s.; correspondendo a GS I, p. 246. Tradução
modificada.
33
Cf. Seligmann-Silva, “Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin e Chris Marker: a
escritura da memória”.
34
Benjamin, Origem do drama trágico alemão, p. 66; correspondendo a GS I, p. 250.
Walter Benjamin: o estado de exceção... 225
aqueles elementos, que os conceitos têm por tarefa destacar dos fenômenos, são mais
claramente visíveis nos extremos da constelação. A idéia é definível como a configuração
daquele nexo em que o único e extremo se encontra com o que lhe é semelhante. [...] O
universal é a idéia. Já o empírico será tanto mais profundamente apreendido quanto mais
claramente for visto como algo extremo. O conceito procede de algo extremo36.
35
Id., p. 68; correspondendo a GS I, p. 253.
36
Id., p. 21; correspondendo a GS I, p. 215.
226 Márcio Seligmann-Silva
37
“Para a filosofia da arte”, escreve Benjamin, “só os extremos são necessários, o processo historio é
virtual. Por seu lado, o extremo de uma forma ou de um gênero é a idéia, que, enquanto tal, não entra
na história literária. O drama trágico como conceito poderia inserir-se sem problemas nas classificações
conceituais da estética. Ma a idéia relaciona-se de modo diferente com as classificações, na medida em
que não determina uma classe e não contém em si aquela universalidade sobre a qual assenta, no
sistema de classificações, cada um dos graus do conceito, a universalidade da média estatística”
(Origem do drama trágico alemão, pp. 24s.; correspondendo a GS I, p. 218. Tradução alterada.
38
Id., p. 32; correspondendo a GS I, p. 226. Tradução modificada.
Walter Benjamin: o estado de exceção... 227
nazista existiu por seus doze anos sob o signo de um estado de exceção
declarado. As reflexões contidas no seu último texto, o “Sobre o conceito
da história”, em parte reúnem idéias que já haviam sido avançadas ao
longo da década anterior pelo próprio Benjamin. A teoria do choque,
que ele desenvolveu a partir de suas leituras de Freud, de Baudelaire, de
Poe, entre outras figuras-chave, também indica a presença desta modali-
dade do tempo que irrompe para estancar a continuidade da vida “nor-
mal”. O conhecido poema de Baudelaire sobre a perda da aureola apenas
indica uma das modalidades do choque que penetrou a vida moderna e
impede, para Benjamin, a construção da Erfahrung, experiência autênti-
ca, capaz de articular a tradição e o passado ao presente. Já a teoria da
reprodutibilidade técnica e a teoria da passagem para o registro pós-
aurático no campo das artes também devem ser lidas no seu momento de
filosofia da história, na medida em que Benjamin fala no seu artigo de
1936 de um “abalo violento da tradição” causado por esta
reprodutibilidade39. Benjamin deduz do estado de onipresença dos cho-
ques na sociedade moderna a necessidade de um método de pesquisa e
de um trabalho de Darstellung, apresentação, desta pesquisa, condizentes
com esta nova realidade. Este é, de certo modo, o seu “salto tigrino” no
céu da teoria. Daí a centralidade do conceito de “montagem” no seu
trabalho sobre as passagens de Paris. O tempo-do-agora, que marca sua
nova teoria da escritura histórica, é o que resta ao homem submetido à
fragmentação da tradição. Benjamin desenvolveu um método de traba-
lho à altura da humanidade na era do estado de exceção. Justamente as
reflexões epistemológicas contidas nas fichas do Trabalho das passagens
também indicam um aprofundamento tanto do método benjaminiano de
trabalhar com os extremos, como de seu projeto de se manter próximo aos
fenômenos e não dissolvê-los na média ou mediocridade dos conceitos
tradicionais. O conceito de colecionador que ele desenvolveu então,
desdobra a noção de alegorista, do livro sobre o Trauerspiel, como aquele
que, como vimos, recolhe e salva as ruínas do histórico.
Para finalizar esta apresentação da questão do estado de exceção em
Benjamin, não podemos deixar de citar algumas das suas teses de 1940.
39
Cf. Seligmann-Silva, “Após o ‘Violento Abalo’. Notas sobre a arte – relendo Walter Benjamin”.
228 Márcio Seligmann-Silva
Aqui ele levou às últimas conseqüências tanto o seu método como a sua
concepção da história. Na sexta tese lemos com relação ao procedimento
do historiador: “Articular o passado historicamente não significa
reconhecê-lo ‘como ele de fato aconteceu’. Significa apropriar-se de uma
recordação como ela relampeja no momento do perigo”40. Benjamin exige
do historiador presença de espírito para este ato tanto epistemológico
como político. O “momento do reconhecimento” de que a tese cinco
fala, é o momento do conhecimento no qual devemos conseguir reconhe-
cer uma imagem do passado que passa diante de nós rapidamente41. Ao
estado de exceção onipresente corresponde uma ação excepcional visan-
do à libertação. O historicismo correspondia a uma visão da história etapista
e progressista: seu adepto era o burguês satisfeito com o trajeto histórico.
Benjamin apresenta o ponto de vista não propriamente oposto, mas total-
mente outro, já que explode com aquela estrutura de pensamento.
Para tanto, ele utiliza novamente uma metaforologia teológica. Revo-
lucionar muitas vezes pode significar resgatar o “passado”. Este é sempre
o caso em Walter Benjamin. Ele fala na tese seis de um Messias que vem
não como salvador, mas sim como vencedor do Anticristo. Novamente
poderíamos pensar em Schmitt e em sua teoria (maniqueísta) do político
como um estado de luta entre inimigos. Como Jacob Taubes destacou:
“Na luta contra o Historismo Carl Schmitt concordava com Walter Ben-
jamin, ou, mais exatamente: Walter Benjamin concordava com Carl
40
Benjamin, Gesammelte Schriften I, p. 695.
41
Cf. ainda a tese de número quatorze: “A história é objeto de uma construção cujo local não é o
tempo homogêneo e vazio, mas sim o preenchido pelo tempo de agora [Jetztzeit]” (GS I, p.701). Nesta
mesma tese Benjamin faz uma reflexão sobre a moda como modo de citação do passado, que ela
concilia com o faro para o atual. Neste sentido ela seria um “salto tigrino [Tigersprung] no passado”.
O problema é que a moda se dá sob a regência das classes dominantes. Seu movimento, no entanto,
corresponde, na história, à citação, nas revoluções, de momentos anteriores. Para Benjamin, a
revolução postulada por Marx promoveria um tal salto, Sprung, no “céu da história”. Também a tese
seguinte trata da ruptura. Ela introduz uma importante reflexão sobre o calendário e os dias de
festa: temas privilegiados da teoria do Estado de Exceção. A tese se inicia com as palavras: “A
consciência de arrebentar [aufzusprengen] o continuum da história é própria das classes revoluci-
onárias no momento da sua ação. A Grande Revolução introduziu um novo calendário. O dia em
que um calendário se inicia funciona como um acelerador histórico. E, no fundo, ele é o mesmo dia
que sempre volta sob a figura dos feriados, que são dias de comemoração” (Id.).
Walter Benjamin: o estado de exceção... 229
A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘Estado de Exceção’, no qual nós vivemos,
é a regra. Precisamos atingir um conceito de história que corresponda a isto. Então
teremos diante de nós como nossa tarefa provocar o efetivo Estado de Exceção; e deste
modo melhorará a nossa posição na luta contra o fascismo. A sorte deste depende não
em última instância, que seus opositores lutem contra ele em nome do progresso como
uma norma histórica. – A admiração de que as coisas que nós vivenciamos “ainda” são
possíveis no século XX, não é filosófica. Ela não está no início de um conhecimento, a
não ser de que a idéia de história, de onde ela provém, não pode mais ser sustentada44.
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. I. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
B ENJAMIN , Walter. “Zur Kritik der Gewalt”, em T IEDEMANN , R. e
SCHWEPPENHÄUSER, H. (org.). Gesammelte Schriften. Frankfurt a. M.:
Suhrkamp, vol. II: Aufsätze, Essays, Vorträge, 1974. pp. 179-203.
42
Taubes, Ad Carl Schmitt: Gegenstrebige Fügung, p. 26.
43
Taubes, comentando a oitava tese, escreveu: “Os vocábulos fundamentais de Carl Schmitt são
introduzidos por Walter Benjamin, recebidos e revertidos no seu oposto”. Mas em seguida ele introduz
outra importante aproximação entre as esferas de pensamento destes dois autores: “O ‘Tempo-de-agora’
[Jetztzeit], uma monstruosa abreviação do tempo messiânico, determina tanto a experiência da história
de Walter Benjamin como a de Carl Schmitt, ambas contêm uma concepção mística da história, cujo
ensinamento essencial consiste na relação da ordem sacra com a ordem profana. Id., p. 28.
44
Benjamin, Gesammelte Schriften I, p. 697.
230 Márcio Seligmann-Silva
L’Exotisme n’est donc pas une adaptation; n’est donc pas la compréhension parfaite d’un
hors-soi-même qu’on étreindrait en soi, mais la perception aiguë et immédiate d’une
incompréhensibilité éternelle. Partons donc de cet aveu d’impénétrabilité. Ne nous flattons
d’assimiler les mœurs, les races, les nations, les autres; mais au contraire réjouissons-nous
de ne pouvoir jamais; nous réservant ainsi la perdurabilité du plaisir de sentir le Divers7.
1
Ver em Segalen, Essai sur l’exotisme.
2
Cf. Affergan, Exotisme et altérité.
3
Moura, La littérature des lointains: Histoire de l’exotisme européen au XXe siècle e Exotisme et lettres
francophones.
4
Gontard, Victor Segale: une esthétique de la différence, p. 13: “[...] la notion d’Exotisme désigne
l’expérience de l’altérité au sens le plus général du terme”.
5
Moura, op. cit., p. 12.
6
Id., p. 19.
7
Segalen, op. cit., p. 35.
Estranhos estrangeiros 235
8
Ver o comenário de Moura sobre o assunto, em La littérature des lointains... (op. cit.), p. 20.
236 Rita Olivieri-Godet
Par quoi la leçon, qui s’apprend de la littérature, est patente: toute frontière est une
transparence à cause de l’obscurité même qu’elle désigne et qu’elle impose, tout
effacement – éventuellement symbolique comme l’indique la textualisation que note
l’ethnologie – des frontières est, à raison de la transparence alors établie, la certitude de
l’obscurité, de la frontière, et de l’autre9.
9
Bessière, “Y a-t-il des limites de la littérature? La littérature contemporaine et le destin paradoxal
des frontières”, p. 221.
10
Freud, “L’inquiétante étrangeté”, pp.163-210.
Estranhos estrangeiros 237
11
Kristeva, Etrangers à nous-mêmes, p. 268.
12
Segalen, op. cit
238 Rita Olivieri-Godet
13
Moura, op. cit., p. 11.
14
A sigla EQ indicará as referências à obra O enigma de Qaf, de Alberto Mussa.
Estranhos estrangeiros 239
15
Ver Moura, Exotisme et lettres francophones, p. 34.
240 Rita Olivieri-Godet
– segundo a crença dos antigos beduínos – a Terra era concebida como um plano
circular, à feição daqueles pães. E que Qaf era uma enorme montanha mítica, que
circundava, delimitava e mantinha a Terra em equilíbrio (EQ, p. 118).
Desde a primeira vez me fascinou aquela história de um poeta que cruzava o deserto em
busca de uma mulher desconhecida, de um enigma relacionado a uma fabulosa monta-
nha circular, de um gênio caolho e cego que podia viajar no tempo (EQ, p. 20).
16
As referências à obra Mongólia, de Bernardo Carvalho, serão feitas doravante pela sigla M,
seguida do número de página.
17
Barthes, A câmara clara, p. 174.
Estranhos estrangeiros 243
fotografar o lugar exato em que o velho lama teria visto o Antibuda [na
forma de Narkhajid], em 1937, enquanto tentava fugir dos comunistas”
(M, p. 96).
O diário do Ocidental rasura e reescreve o texto anterior ao interpre-
tar e comentar as impressões do fotógrafo: “O Ocidental ficava cada vez
mais intrigado com a história que ia montando aos poucos, com os dois
diários, como um quebra-cabeça. Pulava de um para o outro” (M, p. 69).
Registra assim sua própria visão das paisagens e das pessoas que encon-
tra, ao seguir os passos do fotógrafo. Como o fotógrafo, ele passa a perse-
guir a revelação do enigma, os elementos que ligam a história do velho
lama e a lenda da deusa Narkhajid. O Ocidental, rejeitado pelo pai, é
irmão do fotógrafo e essa é a razão pela qual ele tenta recusar a missão
que o narrador, embaixador da China, lhe tinha confiado. É o seu misté-
rio. Enfim, o texto do narrador-escritor coloca em diálogo os textos ante-
riores e apresenta igualmente sua versão da história e sua visão sobre a
China, só compreendendo no final o porquê da recusa do Ocidental.
O questionamento da figuração do estrangeiro segundo a doxa se faz
preferencialmente através do uso do estrangeiro pela indústria do turis-
mo. O personagem do fotógrafo profissional remete aos novos significados
que a viagem adquire num mundo cada vez mais uniformizado, onde as
fronteiras culturais se dissolvem e evoluem para uma massificação. As-
sim, nesse mundo ávido de novidades, os circuitos massivos da indústria
do turismo abrem-se para o exotismo das paisagens e povos longínquos (o
“turismo étnico”), de preferência em extinção, que cultivam tradições
milenares como os nômades do oeste da Mongólia, com a experiência do
diverso restringindo-se às imagens rígidas e aos simulacros que desfigu-
ram sua essência:
Seus argumentos podiam até ser interessantes, como hipótese, para um estrangeiro
que nunca tivesse posto os pés na China, mas eram de uma arrogância, de um
etnocentrismo e de uma ignorância constrangedores até para um sujeito como eu,
que também não sabia grande coisa mas pelo menos não me atrevia a tamanhos vôos
cegos. Eram argumentos que só expunham o seu desespero de saber que nunca
poderia compreender aquela cultura, que havia todo um mundo do qual ele nunca
poderia participar, por mais que se esforçasse, por mais que batesse o pé (M, p. 25).
18
Marc Gontard, refletindo sobre a dialética entre identidade e alteridade a partir de Paul Ricoeur
(Soi-même comme un autre), propõe uma semiótica do mesmo e do outro identificando dois programas
narrativos básicos: o programa-narrativo-tipo do olhar turístico, sensível à estranheza sob a moda-
lidade superficial do pitoresco e um segundo programa narrativo que opõe ao idem o outro, sob sua
forma absoluta, vê reforçado seu ipse neste distanciamento exótico do desejo, em que se reconhece
o exote. Mongólia explora o cruzamento desses olhares, expondo o parodoxo entre esses programas
narrativos. Ver Gontard, “O desejo do outro: por uma semiótica do olhar exótico”, p. 176.
19
Ver Barthes, op. cit., p. 15.
246 Rita Olivieri-Godet
Todos os olhos estão voltados para fora, e quando me viro, também vejo o seu vulto na
soleira da porta. É uma sensação estranha. Não era o que eu esperava. Não era o que
tinha imaginado. Não era assim que eu o via. Estou há dias sem me ver, há dias sem me
olhar no espelho, e, de repente, é como se me visse sujo, magro, barbado, com o cabelo
comprido, esfarrapado. Sou eu na porta fora de mim. É o meu rosto em outro corpo,
que se assusta ao nos ver (M, p. 176).
20
Wisnik, “O autor do livro (não) sou eu”, disponível em: http://www.ig.br/paginas/hotsites/
chicobuarque/ wisnik.html.
21
Id.
248 Rita Olivieri-Godet
22
Olivieri-Godet, “La fictionnalisation de la voix auctoriale dans A casa dos budas ditosos”, pp. 143-57.
Estranhos estrangeiros 249
23
Quando se fizer referência ao romance Budapeste, de Chico Buarque, utilizar-se-á a sigla B,
seguindo-se o número de página.
250 Rita Olivieri-Godet
24
Ver Moura, op. cit., p. 58.
25
Farias, “Budapeste: as fraturas identitárias da ficção”, p. 393.
Estranhos estrangeiros 251
Referências bibliográficas
AFFERGAN, Francis. Exotisme et altérité. Paris: Presses Universitaires de
France, 1987.
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
26
Cf. Canclini, Culturas híbridas, p. III: “entiendo por hibridación procesos socioculturales en los
que estructuras o prácticas discretas, que existían en forma separada, se combinan para generar
nuevas estructuras, objetos y prácticas”.
252 Rita Olivieri-Godet
Rita Olivieri Godet – “Estranhos estrangeiros: poética da alteridade na narrativa contemporânea brasi-
leira”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 233-252.
Cultura de massa: o caso José Agustín
Helena Bonito Couto Pereira
ser moderno é experimentar a existência pessoal e social como um torvelinho, ver o mundo
e a si próprio em perpétua desintegração e renovação, agitação e angústia, ambigüidade e
contradição: é ser parte de um universo em que tudo o que é sólido desmancha no ar. Ser
um modernista é sentir-se de alguma forma em casa em meio ao redemoinho, fazer seu o
ritmo dele, movimentar-se entre suas correntes em busca de novas formas de realidade,
beleza, liberdade, justiça, permitidas pelo seu fluxo ardoroso e arriscado1.
Registra-se, em importante setor de nossa cultura, uma notável mudança nas formações de
sensibilidade das práticas e de discurso que torna um conjunto pós-moderno de posições,
experiências e propostas distinguível do que marcava um período precedente. O que
precisa ser mais amplamente esclarecido é se essa transformação tem gerado verdadeira-
mente novas formas estéticas nas artes ou se ela predominantemente recicla técnicas e
estratégias do próprio modernismo, reinscrevendo-as num contexto cultural modificado.2
1
Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar, p. 328.
2
Huyssen, “Mapeando o pós-moderno”, p. 20.
Cultura de massa 255
3
Coutinho, “O pós-modernismo e a literatura latino-americana”.
4
Lee, Cultura y sociedad de México en la obra de José Agustín, p. 15.
256 Helena Bonito Couto Pereira
nació en el ascenso de varias manifestaciones juveniles sobre la cultura popular (el gusto
por el rock, el cine, el melodrama televisivo y las tiras cómicas) y del cuestionamiento de
las estructuras sociales y políticas del país, que tendría como año de crisis a 1968. Como
se aprecía, la juventud, que antes no contaba con voz ni expresión propias, emerge desde
su marginación social, política y estética para ocupar un espacio ya irrenunciable5.
5
Williams e Rodríguez, La narrativa posmoderna en Mexico, p. 34.
Cultura de massa 257
Cultura de massa
Sem que seja necessário o retorno direto às teorias de Adorno e
Walter Benjamin, podemos considerar a cultura de massa como um fe-
nômeno mercadológico pelo qual os produtos culturais são expostos a
um enorme contingente de possíveis consumidores. Umberto Eco ten-
tou sistematizar essa questão, primeiramente situando a cultura de massa
no banco dos réus e apresentando, a seguir, uma série de argumentos
que poderiam justificá-la. Entre suas acusações, destaca-se o papel dos
meios de comunicação de massa junto a um público “incônscio de si
mesmo como grupo social caracterizado”6, que, por isso mesmo, não pode
manifestar exigências. Além disso, Eco os inclui num circuito comerci-
al em que
sujeitos à “lei da oferta e da procura”, dão ao público somente o que ele quer, ou, o que
é pior, seguindo as leis de uma economia baseada no consumo e sustentada pela ação
persuasiva da publicidade, sugerem ao público o que este deve desejar. (...) encorajam
uma visão passiva e acrítica do mundo (...), entorpecem toda consciência histórica (...)
e assumem os modos exteriores de uma cultura popular mas, ao invés de crescerem
espontaneamente de baixo, são impostos de cima7.
6
Eco, Apocalípticos e integrados, p. 40.
7
Id., ibid.
258 Helena Bonito Couto Pereira
ela é hoje manobrada por “grupos econômicos” que miram fins lucrativos, e realizada
por “executores especializados” em fornecer ao cliente o que julgam mais vendável, sem
que se verifique uma intervenção maciça dos homens de cultura na produção8.
8
Id., p. 51.
Cultura de massa 259
De perfil
O narrador autodiegético em De perfil é um estudante de classe média,
na fase preparatória para a entrada na universidade. Ele contracena, na
maior parte do tempo, com personagens de sua família e também com jo-
vens da sua própria e de outras classes sociais, sejam mais ricos, como Queta
Johnson, que corresponde aproximadamente a uma protagonista feminina,
9
Duarte, Teoria crítica da indústria cultural, p. 8.
10
Lee, op. cit., p. 102.
260 Helena Bonito Couto Pereira
11
As referências à obra De perfil serão doravante indicadas pela sigla DP, seguidas do número da
página em que se encontram.
Cultura de massa 261
a uma versão fake de uma atriz hollywoodiana, quando diz: “Hace tiempo
he visto una película, no recuerdo como se llama, una mujer fumaba puros y
desde entonces juré que cuando pudiera, lo haría” (DP, p. 45).
A música ocupa um lugar à parte em De perfil, a começar pela própria
Queta, mostrada por um viés irônico (e às vezes cruel) como uma jovem
cantora que se julga, no mínimo, esplêndida. No primeiro dia, o protago-
nista vai com seu primo Octavio a uma festa que, embora ele ainda não
saiba, ocorre na casa de Queta, com quem ele terá uma aventura amoro-
sa. Nessa festa estão grupos de músicos (ou pseudomúsicos), que são re-
feridos pelo narrador por meio de paródia a conhecidos grupos de rock:
Yo toco la batería, pero no he podido formar mi conjunto. Ahorita soy suplente del baterista
de los Suásticos, pero el maldito Rudolf no se ha enfermado ni una vez (...) ¿Tú que tocas?
– Nada – respondí.
Hacedor de Plática (...) deveras quería formar su conjunto para demostrar que los
tambores pueden ser el instrumento más suave de la música.
– Los congoleses deben pensar lo mismo – dije, recordando un disco de tamborazos
africanos (...)
Cultura de massa 263
– ¿Quiénes?
– Los congoleses.
No conozco ese conjunto (DP, p. 40).
El disco tenía escrito lo siguiente en la funda [ou seja, alguém havia escrito a mão –
conferir se é isso mesmo]
LET´S DO THE TEUTONIC BEAT!
THE BEACEPS SING IN GERMAN!
Y luego, con letras más pequeñas:
Twang Over Beethoven!
The Coral Craze!
Lyrics by Schiller!
Music by Beethoven!
Arr, by Lehmon-MacCarthy (DP, p. 25).
Estoy hundido en el sofá beige. Aparece, por el comedor, Queta con una sonrisa
profesional, pasos lentos y medidos (música de fondo: marcha quemada de Aída),
camina hasta mí y dice:
264 Helena Bonito Couto Pereira
– Jaliscience tequila Aqualung sobre todos más profundo más sabor más buqué calidad
comprobada de empersamiento inemediato – de un sólo tirón.
O si no:
– Es Aqualung el tequila/que tomaban Mario y Sila/tiene un pegue inigualable/que se
hunde como sable/Aqualung tan sólo tome/hasta que usted desplome (DP, p. 130).
Leí primero los pedazos de periódico que envolvían la cartera y luego reparé en un
anuncio que nunca había visto.
Pero seguía zumbando el anuncio de Sapol. (Siéntese y siéntase, al gusto, siéntese, aviéntese,
aliénese, consiéntase, furtiéntase, tiéntese, miéntese, briéntase, siéntase, no le saque) (...)
Se me ocurrió un poema, para no variar: El camión en las mañanas – llenito va de
almorranas – que se quitan con Sapol – ese ungüento del cocol (DP, pp. 70-1).
Referências bibliográficas
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BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1986.
COELHO, Marcelo. Crítica cultural: teoria e prática. São Paulo: Publifolha,
2006.
COUTINHO, Eduardo. “O pós-modernismo e a literatura latino-americana
contemporânea”, em . Literatura comparada na América Lati-
na. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2003.
DUARTE, Rodrigo. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva,
2001.
HUTCHEON, Linda. Teoria da paródia. Lisboa: Edições 70, 1996.
HUYSSEN, Andreas. “Mapeando o pós-moderno”, em et al. Pós-
modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
LEE, Joong Kim. Cultura y sociedad de México en la obra de José Agustín.
Guadalajara: Universidad de Guadalajara, 2000.
LIMA, Luiz Costa. Demanda dispersa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.
WILLIAMS, Raymond L. The postmodern novel in Latin America. New York:
St Martin’s Press, 1996.
e RODRÍGUEZ, Blanca. La narrativa posmoderna en Mexico. Xalapa
(México): Universidad Veracruzana, 2002.
Helena Bonito Couto Pereira – “Cultura de massa: o caso José Agustín”. Estudos de Literatura
Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 253-266.
Michel Laub – O segundo tempo
São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
1
FOCILLON, Henri. A vida das formas. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 36.
2
Id., p. 39.
272 resenhas
1
FOCILLON, Henri. A vida das formas. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 36.
2
Id., p. 39.
resenhas 273
3
Id., p. 55.
274 resenhas
Festas, brigas, comentários maldosos, inveja, um ombro amigo, o sexo debaixo das
escadas, nos porões e sótãos, nos quartos e corredores, uma casa inteira para dançar-
mos, meu amor, nesta noite que ficará para sempre nesta sala, nesta varanda, neste
quarto, eu não sabia que teu corpo brilhava no escuro. Ninguém suspeita que os
amantes ali permanecem, amando-se para sempre... (p. 10).
4
ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 50. Esta referência à casa
como centro do universo já aparece na epígrafe do livro, uma citação de G. K. Chesterton.
5
Idem, p. 51.
resenhas 275
Aqui, na varanda, onde eu brincava com um carrinho, meu pai se sentava a um canto
e tocava violão. (...) Meu pai está emoldurado pelas grades da varanda, tendo ao fundo
as árvores e o rio. Só. Não trocamos palavras, não nos olhamos, apenas sentimos a
presença um do outro. A música é sempre a mesma, embora não se repita em minha
memória. Como se houvesse se transformado em algo fora e acima do tempo. Não é
som. Ou melhor, é som que se converteu em espaço: imagem (pp. 25-7).
Não sabia o que iria fazer ou encontrar, mas, de alguma forma e apesar do medo, iria em
frente movido pelos mesmos desejos, embora agora mais obstinados e duros. Como um
mapa: o contorno externo de uma esperança. Como aqueles textos que escrevia e lia ao
adormecer como a cara enfiada num livro (p. 158).