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29/10/2019 n.

29 (2007): Escritas da violência | Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea

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INÍCIO / ARQUIVOS / n. 29 (2007): Escritas da violência

jan./jun. 2007

PUBLICADO: 2007-01-01

APRESENTAÇÃO

Apresentação
Márcio Seligmann-Silva
13-26

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29/10/2019 n. 29 (2007): Escritas da violência | Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea

SEÇÃO TEMÁTICA

Breve mapeamento das relações entre violência e cultura no Brasil contemporâneo


Karl Erik Schollhammer
27-53

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Nas tripas do cão:


a escrita como espaço de resistência

Regina Dalcastagnè
55-66

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Pior do que ser assassino...


Ettore Finazzi-Agrò, Roberto Vecchi
67-86

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Jogo de xadrez:
representando a violência para crianças

Rosana Bines
87-97

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Nicolas Guillén:
as Elegias antilhanas e a poesia em dilaceramento

Vera Lins
99-108

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Uma hipótese de ligação entre Carlos Drummond de Andrade e a poesia brasileira


contemporânea:
a “Vida menor”

Jaime Ginzburg
109-126

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29/10/2019 n. 29 (2007): Escritas da violência | Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea

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Histórias paranóicas, criados perversos no imaginário literário da Belle Époque tropical


Sônia Roncador
127-140

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A Amazônia como voragem da história:


impasses de uma representação literária

Francisco Hardman
141-152

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Entre vítima e perpetrador:


a identidade problemática da segunda geração pós- Shoá na Alemanha e a proposta do
romance O leitor, de Bernhard Schlink

Helmut Galle
153-164

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No entremeio do trágico:
Perlongher e os “Cadáveres” da Nação

Pablo Gasparini
165-178

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Estado de exceção:
um novo paradigma da política?

João Camillo Penna


179-204

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Walter Benjamin:
o estado de exceção entre o político e o estético

Márcio Seligmann-Silva
205-230

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SEÇÃO TEMA LIVRE

Estranhos estrangeiros:
poética da alteridade na narrativa contemporânea brasileira

Rita Olivieri-Godet
233-252

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Cultura de massa:
o caso José Agustín

Helena Pereira
253-266

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RESENHAS

Michel Laub –
O segundo tempo

Igor Graciano
269-272

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Roberto Gomes –
Todas as casas

Adelaide Miranda
272-276

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IDIOMA

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Apresentação
Márcio Seligmann-Silva

Os textos aqui reunidos são o primeiro fruto do grupo de pesquisa


Projeto Temático FAPESP “Escritas da violência”. A proposta deste grupo
é a de procurar desenvolver novas abordagens a partir da questão da
relação da literatura (e de outras modalidades de produção cultural)
com a violência. As pesquisas incluídas neste grupo exploram tanto a
história da literatura brasileira, que é lida do ponto de vista específico da
temática do projeto, como momentos particulares dessa produção literá-
ria (com destaque para o período da ditadura civil-militar de 1964-1985),
mas passa também por abordagens da produção autobiográfica de terro-
ristas, pela questão da literatura do exílio, pela escrita derivada da Shoah
e por abordagens teóricas como a que ilumina a relação entre a literatura
e a lei. O Projeto “Escritas da Violência” teve início em dezembro de
2006 e deve se estender por quatro anos. No contexto deste projeto orga-
nizaremos encontros anuais que devem reunir não apenas os membros do
grupo, como também os estudantes a ele vinculados e outros pesquisado-
res que se interessem pelo tema geral.
Este dossiê abre-se com um artigo de Karl Erik Schollhammer que
realiza um mapeamento do tema violência na sua relação com a produ-
ção cultural das últimas décadas no Brasil. O trabalho remonta ao final
da era “romântica” dos “grandes bandidos”, que atraíam até os anos 1960
a curiosidade e inclusive a simpatia da população. Indo contra o chavão
que vê na história do Brasil uma história “sem sangue”, ele mostra a forte
presença da violência e sua marca na produção cultural, indo das artes
plásticas, passando pelo cinema e pela TV, com destaque para a produção
literária. Do período da ditadura e do paralelo crescimento da violência
urbana Schollhammer afirma que a literatura então servia como meio de
“re-simbolização da violenta realidade emergente dos confrontos sociais
no submundo das grandes cidades”. A conclusão do artigo aponta para
um novo paradigma da apresentação da violência, muito além dos clichês
da cordialidade e da malandragem, que indica muitas vezes um dilema
do escritor (ou agente cultural, no caso da TV e de outras mídias). Esse
oscila entre um certo fascínio pela apresentação da violência e um desejo
de, por meio de sua obra, de algum modo modificar o panorama social.
Como lemos no artigo, surge agora uma “nova classe de artistas, intelec-
tuais, ativistas, voluntários de diferentes camadas sociais, cujos projetos
visam à intervenção em comunidades carentes, a favor da cidadania,
como o grupo de teatro Nós do Morro, a ONG Afro Reggae, a banda o
Rappa, o corpo de Dança da Maré e entre muitos outros dentro de redes
que se nutrem das dinâmicas comunitárias e que enfrentam, cada um à
sua maneira, a escalada da violência”.
A contribuição de Regina Dalcastagnè faz uma leitura de dois roman-
ces de diferentes momentos do período da ditadura, destacando o modo
como a violência da época reverbera na escrita destas obras: Avalovara,
de Osman Lins (1973), e Um romance de geração, de Sérgio Sant’Anna
(1980). Partindo do conceito, do crítico Harold Rosenberg, de “ansieda-
de da arte” – ou seja, da consciência aguda do criador da impossibilidade
de alterar a realidade por meio de sua produção –, ela mostra em que
medida a escritura nessas obras se apresenta “contaminada” pela realida-
de e, ao mesmo tempo, é tida como insuficiente para uma efetiva trans-
formação do real e saída do mal-estar generalizado. Ambos os autores
procuram construir um espaço para a sua existência em meio à violência.
Se não cabe à linguagem representar nada de modo total, diante das
situações de opressão este gap com relação à realidade apenas alimenta
mais a “ansiedade da arte”. Uma passagem do romance de Sant’Anna
citada por Regina Dalcastagnè expressa bem este dilema do escritor: “En-
tre o Wladimir Herzog que foi morto numa cela do Exército e aquele que
aparecia em nossos livros havia uma diferença de grau e substância, pon-
to. Este último era apenas o personagem que nós, os escritores, precisáva-
mos para manter acesa a ‘nossa chama’, a ‘nossa fogueira’, o JOGO, em
maiúsculas, ponto de exclamação! O velório literário de Wladimir Herzog
foi realizado nas livrarias de Ipanema, com coquetéis, batidinhas e salga-
dinhos, ponto de exclamação!”. Se a opção pela literatura-panfleto está
descartada, esta ansiedade e angústia só tende a aumentar.
O trabalho de Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi elege o Feliz Ano
Novo, de Rubem Fonseca, como pedra de toque para uma análise da
relação entre violência e escritura. Nada mais apropriado. O texto se
divide em duas partes, uma dedicada à questão dos contos como “teste-
munho” da violência, a outra enfocando o tema da “exceção”, a saber, do
“estado de exceção”. Na primeira parte, da pena de Ettore Finazzi-Agrò,
acompanhamos uma análise da mise em texte, na expressão do autor, da
situação política e social da época em que o livro foi publicado (1975). A
obra, ele recorda, foi apreendida pela Polícia Federal logo após sua publi-
cação e liberada apenas em 1989: dez anos após a anistia. Ou seja, entre
o esquecimento decretado oficial (um “pacto” que antes de mais nada
funcionou como um contrato de esquecimento dos crimes cometidos pe-
los órgãos da repressão) e a liberação da obra vemos um tempo que mos-
tra o quanto a transição para a democracia foi articulada de modo lento
e conservador. Ettore Finazzi-Agrò destaca a relação triádica caracterís-
tica da situação de testemunho: entre a “violência” sentida e a passagem
pelo “escritural”, a “testemunha” tem que assumir uma posição, ou seja,
tem que se posicionar eticamente. Mas esta ética é sobretudo marcada
pelo dispositivo literário no caso em questão. Fonseca, por meio da “iro-
nia”, “afasta-se” de qualquer tentativa (sempre ilusória) de escrita cola-
da ao real. Mas esta ironia não impede Ettore de chamar seu texto de
“crônica crua”, e talvez esta seja a marca desta escrita da violência: a
construção deste espaço ao mesmo tempo próximo e distante da cena da
violência. Assim ele apresenta a “banalidade do mal” sem sucumbir ao
banal. A presença da mídia nos contos também indica este momento
meta-reflexivo, onde se percebe que a violência, na mídia, se transforma
em espetáculo grotesco. Ela seria ao mesmo tempo “espelho” e apaga-
mento da violência. Já Roberto Vecchi destaca a escrita de uma violên-
cia em “estado puro”, porque muitas vezes gratuita. Ao deixar de ser
meio, nos contos de Fonseca, ela seria desmontada. O que recorda a
equação benjaminiana entre meios e fins do direito na sua relação essen-
cial com a violência. Ao meio puro sem fim (a utopia benjaminiana) opõe-
se esta “violência pura” sem fim. Ela constrói, nas palavras precisas de
Vecchi, um “realismo oco”, que consegue realizar um mapeamento da
violência onipresente. A frase que resume a característica desta escritu-
ra da violência está em “Intestino Grosso”, último dos contos do volume:
“Não dá mais para Diadorim”. Da encenação em “alta literatura”, alter-
nando tons locais e universais, “cai-se”, passa-se, algumas escalas “abai-
xo”, ao tom e às imagens abjetas de Fonseca. Roberto Vecchi faz ainda
um interessante paralelo entre a linguagem do conto e a própria exceção.
O texto de Rosana Kohl Bines propõe um olhar diverso sobre o tema
da escrita da violência. Ela se debruça sobre o tema extremamente deli-
cado desta escrita voltada para crianças. Novamente podemos pensar na
questão do teor testemunhal, mas agora enfocando especificamente o
problema da comunicação de atrocidades e crueldades para as crianças.
Para tanto, Rosana Bines elege o livro A redação, de Antonio Skármeta.
Ela apresenta as estratégias de narração do autor, que desenha neste
livro o painel de uma ditadura latino-americana. Os personagens infantis
facultam esta passagem para crianças de temas tão ásperos. É pela identi-
ficação que aprendemos, sobretudo quando se é criança: não por acaso
nossos livros escolares são ainda uma catástrofe, pois não respeitam este
princípio. Mas Skármeta não economiza em engenhosidade. Pelas bordas
dos fatos, narrando que pais de colegas são presos, a impossibilidade e a
dificuldade dos pais para explicarem aos filhos o que acontece, os silênci-
os eloqüentes são alguns dos elementos que ele utiliza em seu texto. Ele
atinge o ápice de sua criatividade ao embaralhar o banal, cotidiano, à
exceção, como na seguinte passagem, citada por Rosana Bines:

Passou uma semana, uma árvore da praça caiu de velha, o caminhão do lixo ficou cinco
dias sem passar e as moscas tropeçavam nos olhos das pessoas, o Gustavo Martinez da
casa em frente se casou e os vizinhos ganharam uns pedaços de bolo, o jipe voltou e
prenderam o professor Manuel Pedraza, o padre não quis rezar a missa no domingo, no
muro da escola apareceu escrita a palavra “resistência”, Daniel voltou a jogar futebol e
fez um gol de bicicleta e outro de lençol, os sorvetes subiram de preço e Matilde
Schepp, quando fez nove anos, pediu a Pedro que lhe desse um beijo na boca.

Este passo é tão mais impressionante porque ecoa uma passagem de


Johann Peter Hebel, o escritor do romantismo alemão, apreciado por Ben-
jamin e citado em seu famoso ensaio sobre a narração. A passagem a que
me refiro do conto “Unverhofftes Wiedersehen” (“Reencontro inespera-
do”) é citada como um exemplo da narrativa que se apresenta como “his-
tória natural”1. Benjamin destaca então que é da morte que deriva toda

1
Cf. BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, em Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 207.
Esta passagem de Benjamin, como a de Skarmata, mistura diversos registros factuais e nela também
podemos detectar o encadeamento aparentemente banal da exceção e da “vida normal”.
a autoridade da narrativa. Hoje, por sua vez, com a banalização do mal e
da morte, a aura desta senhora está mais do que destroçada. Não por
acaso, de Hebel a Skármeta passa-se de uma temporalidade de décadas
para a de semanas (mais adequada a uma criança, mas também indicativa
de nosso tempo presentificado, roubado da densidade do passado e da pers-
pectiva de futuro). A história natural é vista agora como história natural
da destruição – um tema que Benjamin tematizara em seu ensaio sobre o
barroco alemão e que era também caro a Sebald. Em Skármeta, portanto,
a função da enumeração de fatos históricos/cotidianos assume, de modo
sintomático e programático, um sentido totalmente diverso daquele que
Benjamin comemorou em Hebel. Aqui ele mostra como a arte de narrar
teve que se reinventar na era das catástrofes.
Vera Lins apresenta, em sua contribuição, a poesia elegíaca de Nicolas
Guillén. Este poeta cubano que esteve no Brasil e estabeleceu muitos
laços de amizade com nossos poetas e intelectuais, foi também um gran-
de crítico do governo Batista e um poeta da revolução cubana. Vera
destaca sua “Elegia a Jesús Menendez”, cuja composição se iniciou no
Brasil em 1947 (quando Guillén aqui estava exilado). Ela foi
desencadeada pelo assassinato brutal de um líder sindical negro em
Cuba. A autora ressalta como o poeta se identificava com a luta deste
sindicalista, na medida em que o próprio Guillén era negro e tratava
em seus poemas desta sua descendência de escravos. Ela nota, com
razão, que a poética de Guillén, com seu tom elegíaco, com seu canto
ao mártir/herói, constitui o procênio de uma apresentação da utopia e
da virada futura. Guillén escreve ainda de dentro do espaço da utopia
e das lutas revolucionárias. Sua apresentação da violência é filtrada
por este porvir de liberdade ansiado. Nela se entrecruza teor testemu-
nhal e resistência, melancolia e desejo de mudança social. Este tom,
como Edna Aisenberg2 notou em outro ensaio recentemente publicado,
tornou-se incompatível com nossa era. Já não temos mais espaço para o
elegíaco. Neste sentido, Rubem Fonseca é apenas um dos inúmeros con-
tra-exemplos.

2
Cf. AISENBERG, Edna. “Holocausto, memória judaica e memorial do terror no cone sul”. Remate de
Males, 26.1, jan.-jun. 2006, dossiê “Literatura como uma arte da memória”, pp. 71-80.
Jaime Ginzburg propõe uma leitura da “Vida menor”, de Drummond,
em quatro tempos. Ele parte do próprio Drummond e deste seu poema,
enfatizando particularmente a relação desta produção com o seu contex-
to ditatorial e o fato de ter sido criado quando a Segunda Guerra Mundi-
al ainda estava em seus últimos estertores. Em um corte cronológico – e
ao mesmo tempo estabelecendo uma ponte entre os anos 1940 e a produ-
ção literária brasileira “filha da ditadura”, desta feita da ditadura de 1964-
1985, bem como das gerações que vieram depois –, Ginzburg propõe uma
leitura de “O futuro é agora”, de Marcos Siscar, “Restos de um homem”,
de Lara e Lemos, de “Cogito”, de Torquato Neto, e de “Dilema”, de An-
tonio Cícero. Nestes poemas Ginzburg mostra que ressoa um modo de
decantação do real que guarda “afinidades eletivas” com o poema de
Drummond. Estamos trilhando aqui uma tradição de escritura do real
calcada não no espetáculo da guerra, na apresentação do sangue, mas
antes na reflexão e na melancolia. Aqui o ensimesmamento é a resposta
ao individualismo narcisista da sociedade pós-industrial. E o poema é um
paradoxal casulo que protege (e denuncia, mesmo que às vezes apenas
“ex negativo”) a violência dos donos do poder. A lírica, como percebeu
Benjamin leitor de Baudelaire, torna-se, no capitalismo anti-lira, desen-
cantamento e não auratização do real. Em Drummond também já se ha-
via abandonado a utopia da compreensão total e da redenção. A “poética
do mínimo” não é perlaboração, introjeção com superação da “vida
danificada” (“Das beschädigte Leben”, para falar com Adorno), mas é
sim, como Freud definiu a melancolia, incorporação do real. Trabalho
sem fim, sem esperança de totalidade. Trata-se de um parti pris pelo me-
nor, pelos silêncios, pelas pequenas perplexidades, pelas “lacunas e au-
sências”, como escreve Ginzburg. Da realidade lemos reflexos não-linea-
res, assim como a apreensão do tempo não é linear, mas se desfaz em
blocos isolados. O passado não é mais fonte de nostalgia, nem o futuro se
abre para a revolução. Algo de semelhante o autor detecta na nova lírica
dos anos 1960 e posteriores. Apesar das várias diferenças das poéticas
desses autores (alguns mais irônicos, outros mais dialógicos, outros mais
decididamente melancólicos), as afinidades eletivas deixam-se entrever.
O importante aqui é a tentativa de analisar a violência em seus pequenos
sismos e de traçar uma espécie de (contra) tradição da “precariedade”.
Não se trata de uma estética da fome, ou da pobreza, mas sim de uma
estética do mínimo. Podemos encarar essa literatura como uma escrita de
um real que aos poucos desfaz o Eu, sendo que a lírica, longe de tentar
re-estofar este Eu, conforma-se ao corpo estilhaçado do melancólico. Se
Stendhal e Balzac tentaram, no século XIX, escrever aquilo que a
historiografia deixava fora, a saber, os lares, a família e as relações
interpessoais, com estes autores vemos aquilo que Adorno chamou de
historiografia inconsciente de seu tempo.
O estudo de Sônia Roncador abre uma cena paradoxal de nossa histó-
ria, tanto social como literária. Ela analisa o tratamento recebido pelos
empregados domésticos da parte da literatura da Belle Époqiue, com des-
taque para os romances de Júlia Lopes de Almeida. Esta cena é parado-
xal, porque ela é uma das mais “visitadas” pelo cotidiano da classe média
brasileira, até hoje, mas também, ao mesmo tempo, uma das cenas mais
“fantasmáticas”, sinistras, Unheimlich (estranhas). O universo destes em-
pregados (destas empregadas, e o feminino é importante aqui) é o mais e
menos presente. É o local onde muitas das contradições da classe média
melhor se revelam. A doméstica é a própria definição do “banido”, para
falar com Agamben, daquele que está dentro e fora do sistema de poder:
dentro na mesma medida em que está excluído, que é “carne sacrificial”.
Ela é o “estado de exceção” dentro do lar3, o Un-Heimlich do Heim (lar,
casa)4. O recalcado na “cripta”, que está sempre presente e ausente5. A
doméstica é aquela que é obrigada a desaparecer, a ser não-sendo. Nos
romances de Júlia Lopes, a proximidade com o regime escravocrata per-
mite que este local atópico da empregada fique ainda mais evidente. Ela
é vista como uma peça essencial dentro do trabalho da casa – aquela que
faz o trabalho “sujo” – e ao mesmo tempo como indesejada, como porta-
dora de contaminações, fonte de contágio, invejosa, ladra. Como nota
Sônia Roncador, a empregada é literalmente vista como aquela que deve

3
Cf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. de. Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004; e do
mesmo autor: Homo sacer: O poder soberano e a vida nua. Trad. de H. Burigo. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2002.
4
Cf. FREUD, “Das Unheimlich”, em Freud-Studieausgabe, Frankfurt/M.: Fischer Verlag, 1970, v. IV.
5
Cf. DERRIDA, J. “Fora. As palavras angulosas de Nicolas Abraham e Maria Torok”. Trad. de F. Landa,
em LANDA, Fábio. Ensaio sobre a criação teórica em psicanálise. Seguido de Fora de Jacques Derrida. São
Paulo: UNESP/FAPESP, 1999. pp. 269-319.
ser “domesticada” pelas patroas, como lemos nos manuais dedicados às
donas de casa da época, gênero ao qual Júlia Lopes também se dedicou.
Ela aconselhava às patroas como funcionar panopticamente no seu traba-
lho de vigiar e punir. As domésticas do romance A viúva Simões, de 1895,
analisado por Sônia Roncador, guardam “impressionantes” semelhanças
com as representações das telenovelas de hoje. Eis aí mais um dado da
continuidade da violência na cultura brasileira, para a qual este conjun-
to de ensaios aponta.
A contribuição de Francisco Foot Hardman promove um verdadeiro
mergulho na Amazônia e nas suas representações, com ênfase nos séculos
XIX e XX. Acompanhamos aí um erudito panorama de uma literatura,
infelizmente, em sua maior parte, pouco freqüentada. Representar a
Amazônia, este universo amorfo, esta potência natural que desafia o his-
tórico e a “civilização”, significa tentar dar conta, como bem nota Foot,
de uma das figuras mais eloqüentes do sublime: força que recorda o ho-
mem de sua pequenez insignificante (sublime dinâmico, nos termos de
Kant), dimensão que ultrapassa nossa capacidade de apreensão e de com-
preensão (sublime matemático, segundo o mesmo filósofo). A história da
representação da Amazônia é apresentada por Foot como um caleidoscó-
pio: ora esta região é tomada como locus por excelência do (auto)exotismo
e do regionalismo, ora ela é apresentada como violência bruta e bárbara,
ora ela é incorporada como mais um topos do maravilhoso (e também do
fantástico), ora é tomada como enorme laboratório da natureza (viajan-
tes e cientistas analisam e tentam destrinchar este “monstro”), ora ela é
objeto de uma literatura engajada na qual se denuncia a exploração dos
trabalhadores da borracha, ora ela é terreno fértil para as representações
naturalistas e realistas (palco das tentativas de reconstrução identitária
de imigrados e de seus descendentes, mas também de construção de uma
identidade nacional-amazônica, quando se tenta colá-la ao resto da na-
ção-continente). Evidentemente estes nichos não se apresentam de modo
estanque, os autores cruzam as barreiras entre gêneros e tradições literá-
rias na tentativa de domar aquele espaço transnacional. Predomina no
panorama erguido por Foot um tom melancólico – que não por acaso
lembra o tom de Tristes trópicos e de Saudades do Brasil, de Lévi-Strauss.
Lembremos da famosa frase do antropólogo: “Um espírito malicioso defi-
niu a América como sendo uma terra que passou da barbárie à decadên-
cia sem conhecer a civilização”6. Este tom e modo de ver a história tam-
bém poderia ser confrontado com o de Walter Benjamin, autor que,
conhecidamente, tinha grande identificação com o barroco. Nessa época
o filósofo de Berlim identificara uma concepção da história como história
natural da decadência, e da natureza, como história do arruinamento. A
história é vista como um acúmulo de catástrofes sem perspectivas de re-
denção. Mas Foot, como o anjo da história de Benjamin, também man-
tém acesa uma esperança, se não de redenção, ao menos de representa-
ção, e fecha seu texto afirmando a necessidade de “recolher a Amazônia
das margens arruinadas do planeta e da história, e de trazê-la não só à
memória e ao coração, mas à cabeça e à ação”.
O artigo de Helmut Galle trata de uma conhecida obra de autoria de
Bernhard Schlink, Der Vorlesser (O leitor), de 1995. Ele lê esta obra den-
tro da história das querelas pela reconstrução da memória do nacional-
socialismo. Este livro de Schlink foi alvo de muitas críticas, e Galle se
propõe a se contrapor à acusação de “revisionismo” feita contra o autor.
Um dos motivos pelos quais a obra foi assim classificada é o fato de Hanna
Schmitz, uma das protagonistas da história, despertar sentimentos de com-
paixão, apesar de ter trabalhado como uma capo em Auschwitz. Para Galle
o narrador não impõe esta identificação; muito pelo contrário, ele não
apresenta desculpas para as atrocidades ou propõe uma reconciliação.
Antes, o romance seria para ele um drama que encena as gerações após a
Segunda Guerra. Hanna representaria a geração culpada e seu amante
no romance seria uma espécie de metáfora da segunda geração. A inca-
pacidade deste em condenar aquela, bem mais velha, caracterizaria um
traço que é a marca na verdade daquilo que tem sido denominado de

6
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Trad. de Jorge Pereira. Lisboa: Edições 70, 1986. p. 89. No
livro sobre o Brasil vemos que o autor não apenas se sente atraído pela paisagem ruinosa das cidades
e do campo, mas também possui uma concepção do passado como um fantástico acúmulo de
barbáries. É a extensão do massacre dos índios que interessa ao antropólogo destacar aqui (Cf. LÉVI-
STRAUSS, Claude. Saudades do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 13). Esta revisão
histórica torna a sua epopéia pelo Brasil tanto mais marcada pela decadência e pela barbárie. Lévi-
Strauss surge como uma testemunha de populações que sobreviveram a “um monstruoso genocídio”
(p. 14) que se estende desde a chegada dos europeus até hoje. Ele viu “os últimos sobreviventes
desse cataclismo que foi para seus antepassados [sc. dos índios] o descobrimento e as invasões que
se seguiram” (p. 16).
“terceira geração” (ou seja, a geração pós-queda do muro) que teria dei-
xado de lado o movimento de ruptura com a geração dos nazistas e teria
tomado como tarefa integrar esta geração, sem recair na identificação
com as vítimas. Galle identifica Schlink a esta posição da chamada “ter-
ceira geração” e justifica esta “virada”. Para esta “terceira geração” seria
necessária, para a “identidade nacional e histórica dos alemães”, uma
recuperação da “geração dos culpados”. No contexto dos demais textos
deste dossiê, este artigo mostra como na Alemanha a construção do pas-
sado tende a dividir os alemães em gerações, enquanto, por exemplo, no
caso brasileiro tende-se não a condenar in toto a geração da ditadura,
mas apenas os que são identificados ou como membros do aparato de
poder ou como entusiastas daquele regime. A diferença está, entre ou-
tros muitos pontos, na radicalidade do mal praticado pela Alemanha na-
zista e sobretudo na distância entre o totalitarismo nazista e o autoritarismo
da ditadura. Como a construção da auto-imagem alemã passa, para mui-
tos, por esta necessidade (ou impossibilidade, conforme a perspectiva) de
se introjetar esta geração dos Täters (dos que fizeram), a atual geração
tende, como nota Rüsen, e Galle concorda, a realizar esta introjeção
desta “geração” (ou da sua imagem), antes demonizada pela geração do
pós-guerra (a chamada “segunda geração”). Esta revisão histórica, no
entanto, ainda está não concluída e nem mesmo é consensual7. Isto ficou

7
É interessante notar que A menina que roubava livros (Trad. de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro:
Intrínseca, 2007), recente best-seller do autor australiano Marcus Zusak, descendente de alemães
e austríacos, guarda certas semelhanças com esta cena da representação das gerações pós-guerra,
observadas como gerações-memória. Essa obra tem recebido uma recepção entusiástica em toda a
Europa e nos Estados Unidos, e inclusive foi resenhada com profunda admiração por críticos judeus.
No livro somos guiados pela Morte, que narra a história da pequena Liesel, uma menina que
aparentemente perdeu o pai, perseguido pelos nazistas por ser comunista, e depois a própria mãe.
Tendo sido adotada por uma típica família de classe média de um pequeno vilarejo na Bavária,
Liesel vive uma vida de criança em tempos de guerra, com suas alegrias e tristezas. Por meio dela
ficamos conhecendo os principais moradores da cidade, muitos deles nazistas convictos, e passamos
a admirá-los enquanto “gente como a gente”. Por exemplo, a esposa do prefeito, que usa uma
suástica até no roupão, torna-se uma das personagens mais simpáticas da cidade, cúmplice de Liesel
em seus “roubos” de livros. Quando a vizinha de Liesel vive a experiência de perder um filho no
campo de batalha e o outro se suicidar, o drama (ou melodrama...) conduz o leitor a se identificar
com essa mãe, que deixa de ser nazista e se torna simplesmente uma mãe. Liesel liga-se emocional-
mente tanto com estes personagens nazistas, como com um judeu que é escondido na casa dos pais
claro, por exemplo, como recorda Galle, quando da recepção da obra de
Goldhagen sobre os carrascos voluntários de Hitler em 1996. Se o livro se
tornou um best-seller (mostrando que a voz da “segunda geração” ainda
era forte), por outro lado também é verdade que ocorreram pesadas críti-
cas do lado dos “especialistas” no tema e também de parte da grande
imprensa (como foi o caso do semanário Die Zeit).
Pablo Gasparini apresenta uma interessante leitura da relação da es-
critura particular de Néstor Perlongher com a violência. Para Gasparini,
o modo de aproximação da violência que Perlongher desenvolveu, sobre-
tudo do regime de violência que vivia a Argentina da ditadura, assim
como a guerra das Malvinas, seria parte de seu “projeto” de construção
literária em “entremeio”: entre as línguas e discursos. Ao invés de entrar
na lógica da veneração e de sacralização do projeto, antes de mais nada
da pátria e de sua língua, Perlongher, com uma escrita banhada em seu
tempo e que não censurava as demandas do corpo, desacralizou estes
templos da “propriedade”. Nada nele lembra a nostalgia da pátria, mas,
antes, o exílio parece ter despertado nele uma pulsão desconstrutora da
origem. Gasparini o compara à figura de Moisés como aquele que se de-
belou contra a filiação. Como parte desta postura existencial, Gasparini
percebe uma “resistência a uma enunciação ou estética do trágico”.
Quando este é apresentado, como no caso da guerra das Malvinas, existe

adotivos dela por alguns meses – o que leva a um relativismo das posições ocupadas por algozes e
vítimas. No fim do livro, a cidade é barbaramente bombardeada pelos exércitos aliados. Contrarian-
do os fatos históricos, os nazistas morrem em grande parte e comemora-se a sobrevivência justamen-
te de Liesel (filha de opositores ao regime) e do judeu Max Vandenburg. Liesel serve, no livro, de
meio para o autor apresentar a guerra do ponto de vista da “normalidade”, dos alemães nazistas
como cidadãos dignos e normais. Como nota Galle ao analisar a obra de Schlink, já outros autores
fizeram este movimento que foge da “demonização” dos nazistas. Mas no caso de Zusak a novidade
parece ser que ninguém mais se escandaliza com este ponto de vista. Na obra parece ser plenamente
conciliável a convivência normal e feliz a alguns quilômetros de um campo de concentração (O que
lembra a normalização do período nazista feita pela escola de história do cotidiano de Martin
Broszat. Cf. FRIEDLÄNDER, S. e BROSZAT, M. “A controversy about the historicization of national
socialism”, em BALDWIN, P. (ed.), Reworking the past: Hitler, the Holocaust and the historians. Boston:
Beacon Press, 1990. pp.102-34.). O tom kitsch e melodramático da narrativa de Zusak ao mesmo
tempo corrobora para este “escândalo” e confirma a cumplicidade entre este modelo estético e um
ponto de vista conservador.
uma encenação sexualizada onde não resta espaço para o herói ou a cons-
trução de uma eventual nação dividida entre vítimas e algozes. O próprio
registro do portunhol já afasta a escrita de Perlongher de qualquer pre-
tensão representacionista. Ao invés de tentar espelhar o real, ele o mani-
festa em uma escritura corporal. Ao invés de erigir monumentos, argu-
menta Gasparini, ele construiu anti-monumentos, lembrando a estética
do precário, de artistas como Jochen Gerz, Thomas Hirschhorn ou Bispo
do Rosário. Sua língua anômica, que é adepta da lógica da indefinição, é
caracterizada pelo “errar”, tanto no sentido de se opor ao suposto “acer-
to” da língua, como também enquanto flanar sem rumo – que é neste
autor aproximado da cena pedestre daqueles que circulam pelas zonas
das cidades. O gozo desta língua é também duplo: é rir e jouir, gozação/
desacralização e prazer oblíquo. Exposição do abjeto. Sem buscar lançar
raízes em qualquer identidade, essa escrita errante tende mais para uma
performance da violência – performance teatral e irônica – do que ao
tom melancólico, lutuoso e muito menos ao elegíaco.
O trabalho de João Camillo Penna traça um competente duplo painel
que pode servir de roteiro para pensarmos muitas das questões envolvidas
na escrita da violência. De um lado, ele descreve uma espécie de diag-
nóstico da violência nos dias de hoje no Brasil e no mundo. Ele apresenta
em que medida o estado de exceção se apropriou da política. Do Brasil
sendo governado por decretos ao Patriot Act de Bush, passando pelas inú-
meras guerras (que extrapolam a caracterização de internas ou exter-
nas), pode-se falar de uma onipresença da exceção. A criminalização da
pobreza em todo o mundo leva tanto à incessante onda de prisões e
desmandos dos aparatos de “segurança” (transformados em tribunais com
força de execução sumária: force de loi8) dentro dos países (seja no Brasil,
na França ou nos EUA), assim como à nova guerra imperialista levada a
cabo para controlar os estados rebeldes ao monopólio do poder internaci-
onal. Num segundo passo, Camillo propõe a valorização das obras de Marx,
Foucault, Negri, Hardt e (cum grano salis) de Carl Schmitt como meio de
contraposição à sociedade disciplinar e ao biopoder nas mãos das elites.
Especificamente com relação ao caso brasileiro, ele enfatiza a necessidade

8
Cf. DERRIDA, Jacques. Force de Loi. Le “Fondement mystique de l’autorité”. Paris: Galilée, 1994.
de se pensar a origem de nossos males na época da última ditadura mili-
tar: “É no período autoritário que se funda o direito da exceção policial,
a penalização da população, a prática da tortura, e a militarização da
sociedade; é aqui que ele toma pé na sociedade brasileira”, escreve
Camillo.
Minha contribuição desdobra um dos aspectos desta questão, a saber,
o conceito de estado de exceção na sua gestão entre os filósofos Carl
Schmitt e Walter Benjamin. Parto do ensaio de Walter Benjamin de 1921,
que inspirou Schmitt a desenvolver este conceito, o “Zur Kritik de Gewalt”
(“Crítica da violência/poder”), e procuro apresentá-lo em uma tentativa
de close reading. O trabalho também apresenta os ensaios recíprocos de
aproximação entre Benjamin e Schmitt, um caso na história intelectual
do século XX que causa tanta espécie quanto a relação de Hanna Arendt
e Heidegger. O elemento central do texto de Benjamin, de 1921, é justa-
mente o desdobramento do conceito de Gewalt enquanto unidade
inseparável de poder e de violência. Qualquer reflexão sobre a escrita da
violência deveria, pensando com Benjamin, levar em conta esta sua rela-
ção essencial com todo e qualquer poder. Para além deste ensaio de 1921,
o texto apresenta também como em Benjamin, diferentemente de Schmitt,
o conceito de estado de exceção não levou a uma valorização do sobera-
no, mas antes a uma crítica desse (como foi o caso do seu ensaio sobre o
drama barroco alemão). Por outro lado, ao mesmo tempo Benjamin incor-
porou uma noção epistemológica (e estética) de exceção como meio de
crítica daquilo que hoje chamamos de cânone e dos aparatos conceituais
a ele vinculados. Já na sua tese “Sobre o conceito da história”, escrita em
1940, em plena guerra, a exceção reaparece como um estado onipresente
na política. No mesmo texto Benjamin fez o famoso plaidoyer por um au-
têntico estado de exceção, ou seja, por uma revolução que interrompesse
com o caminhar da história enquanto constante acúmulo de ruínas e de
catástrofes, a saber, enquanto continuidade de domínio e exploração da
natureza e dos vencidos.
Com este conjunto de ensaios sobre a questão da escrita da violência,
para além de dar início às publicações coletivas do Projeto Temático
FAPESP “Escritas da Violência”, esperamos estar de algum modo contri-
buindo para os debates dentro da nossa academia sobre esta temática
tão (oni)presente e merecedora de pesquisa. Não são poucos os desafios
relativos a esta proposta de abordagem, assim como este painel mostra
que as possibilidades de enfrentamento destas dificuldades são plurais e
podem ser muito produtivas. Uma idéia que vem à mente lendo estes
ensaios – evidentemente escritos justamente para destacar o papel da
violência no campo das manifestações simbólicas – é que a violência é
um ingrediente sine qua non para a literatura e as artes. Esta afirmação é
corroborada pela máxima benjaminiana (e marxista) segundo a qual todo
documento de cultura é um testemunho da barbárie, ou ainda pelo ponto
de vista da psicanálise que vê o universo simbólico como fruto de um
conflito com as pulsões e com Tânatos. O fundamental, no entanto, é a
tentativa de caracterização das infinitas modalidades de relação com este
núcleo violento de nosso estar no mundo. Simplesmente detectar o teor
violento ou a face sacrificial de todo documento da cultura (que funcio-
na como “dom apaziguador” da ameaça e do medo: um núcleo das artes
desde as pinturas nas cavernas e da tragédia) não nos libera da árdua
tarefa de estudar o “como” desta relação entre violência e cultura. Espe-
ramos que em próximos encontros, em seminários ou em outras publica-
ções coletivas como esta, as sementes lançadas aqui possam se desdobrar.
Gostaríamos ainda de agradecer a Regina Dalcastagnè pela generosi-
dade de nos ter oferecido as páginas destes Estudos de Literatura Brasileira
Contemporânea para este dossiê.

São Paulo, 5 de junho de 2007.


Breve mapeamento das relações entre
violência e cultura
no Brasil contemporâneo
Karl Erik Schollhammer

No dia 18 de abril, o jornal O Globo publicou a manchete “Um Rio


refém das balas”, com o relato da guerra entre facções do tráfico de dro-
gas que, na véspera, deixou um saldo de 13 mortos e 3 feridos no Morro
da Mineira do bairro Catumbi. A notícia não é, infelizmente, nada extra-
ordinária, quase diariamente os jornais apresentam vítimas dessa guerra
civil. Segundo os dados de uma pesquisa recente, 91% dos brasileiros
consideram que a violência está aumentando em números e adquirindo
uma brutalidade cada vez mais espantosa. Os números de vítimas da vio-
lência chegam hoje a 45.000 por ano; só no Estado do Rio de Janeiro
morreram, segundo Reuters Bureau, 19.381 pessoas durante os últimos três
anos, mais de seis vezes o número de vítimas americanas na guerra do
Iraque desde 2003. Para jovens do sexo masculino entre 15 e 24 anos, o
assassinato tornou-se a causa mais freqüente de morte. Se os números
assustam, a banalização dessas mortes e dos crimes violentos não parece
ter limite. Em fevereiro deste ano, um roubo de carro à mão armada cau-
sou a morte trágica de um garoto de seis anos, João Hélio, que foi arras-
tado atrás do carro quando não conseguiu se soltar do cinto de seguran-
ça. Em dezembro de 2006, um ônibus interestadual foi atacado por crimi-
nosos e sete passageiros foram queimados vivos. Em março de 2005, 29
moradores inocentes foram vítimas de uma chacina na baixada fluminense,
realizada por um grupo de policiais militares e civis. A lista de crimes
espetaculares dessa natureza é longa demais e quem, na década de 1990,
pensou ter visto o bastante nas chacinas de Acari no Rio de Janeiro (1990),
na Prisão de Carandiru em São Paulo (1992), da Candelária no Rio de
Janeiro (1993), de Vigário Geral (1993), dos índios Yanomâmis em Roraima
(1993), de Taquaril em Belo Horizonte (1996), de Eldorado dos Carajás
no Pará (1996) espanta-se ainda com a seqüência brutal dos crimes no
início do novo século. Também podemos registrar mudanças “qualitati-
vas” no caráter do crime no Brasil. Nos últimos anos, a violência já começa
28 Karl Erik Schollhammer

a mostrar a mesma gravidade no interior do país, quanto nas zonas urba-


nas do eixo Rio de Janeiro e São Paulo. Em alguns lugares, fomos teste-
munhas de ataques, sem nenhum propósito econômico, contra policiais,
funcionários carcerários e bombeiros, apenas motivados por retaliação e
ódio e dirigidos por grupos, como PCC – Primeiro Comando da Capital –
de dentro das prisões. Em maio de 2006, uma série desses ataques, duran-
te dois dias, causou mais de 200 mortos em São Paulo. Em dezembro, 24
pessoas morreram durante um ataque semelhante no Rio de Janeiro. No
mês de março de 2007, em um período de oito dias, 12 policiais foram
vítimas de fuzilamentos nas ruas da mesma cidade. Outro fator que vem
modificando a distribuição do poder no Rio é a aparição de milícias que,
segundo dados incertos da imprensa carioca, já tomam conta da metade
das 800 favelas da área metropolitana, expulsando o tráfico de drogas e
introduzindo esquemas de controle sobre outros lucros, como distribui-
ção de gás, jogos, TV a cabo. Esse retorno ao sistema dos esquadrões da
morte só acirra as guerras internas entre grupos armados; e a contagem
de vítimas não pára. Quem quiser acompanhar as alarmantes estatísticas
pode acessar o site http://www.riobodycount.com.br e conferir que diari-
amente mais vítimas se acumulam com uma regularidade assustadora,
não apenas policiais e criminosos, mas inúmeros inocentes, vítimas dos
fogos cruzados e das balas perdidas.
A intenção deste ensaio, entretanto, não é discutir o fenômeno da vio-
lência brasileira do ponto de vista sociológico nem político, senão tentar
refletir sobre o papel da violência dentro da produção artístico-cultural e
literária dos últimos anos. Nos meios de comunicação de massa, a violência
encontrou um lugar de destaque e, pelo seu poder de fascínio ambíguo,
porém efetivo, entre atração e rejeição, tornou-se uma mercadoria de grande
valor, explorada por todos os meios, sem exceção, em graus mais ou menos
problemáticos. Não vamos aqui repetir as denúncias contra essa explora-
ção, muito menos entrar na discussão sobre a possível influência negativa
dessa divulgação obscena, mas simplesmente constatar que a violência re-
presentada, tanto na mídia quanto na produção cultural, deve ser conside-
rada um agente importante nas dinâmicas sociais e culturais brasileiras.
Precisamos reconhecer os objetos estéticos da violência na sua relação com
o processo geral de simbolização da realidade social, já que participam, de
maneira vital e constitutiva, desta mesma realidade.
Breve mapeamento das relações entre violência e cultura... 29

É preciso, no entanto, antes de tentar aproximar violência e cultura


no Brasil contemporâneo, fazer uma advertência inicial. Não temos a
ambição de explicar o fenômeno histórico da violência no Brasil nem de
dar conta da pluralidade de seus parâmetros culturais, sociais e econômi-
cos. Tampouco pretendemos caracterizar a cultura brasileira através do
fenômeno da violência como elemento definidor e intrínseco à identida-
de nacional. Quando estabelecemos uma relação entre a violência e as
manifestações culturais e artísticas é para sugerir que a representação da
violência manifesta uma tentativa viva na cultura brasileira de interpre-
tar a realidade contemporânea e de se apropriar dela, artisticamente, de
maneira mais “real”, com o intuito de intervir nos processos culturais.
Entender o papel da violência na cultura esbarra, logo de partida,
com o mito da cordialidade e da não-violência do brasileiro1. Mas vale
notar que, já nos primeiros trabalhos sobre o tema2, o antropólogo Ruben
George Oliven lembra a violenta repressão dos movimentos populares,
como o Quilombo dos Palmares, a Cabanada, a Balaiada, Canudos, Con-
testado, os Muckers e a Revolta da Chibata, assim como ressalta o cotidi-
ano da ordem escravocrata, marcada pela violência. E conclui que esse
mito da “índole pacífica do brasileiro conseguiu se desenvolver apesar
destas evidentes manifestações de violência no cotidiano brasileiro e só
foi extirpado depois de 1964”3, quando a violência começa a ser conside-
rada um problema nacional, embora associado primordialmente ao au-
mento da delinqüência da classe baixa, ignorando o caráter repressivo
dos órgãos de segurança.

Os anos 1960 e 70: o malandro revoltoso


O medo da violência e sua aparição nos discursos sobre a realidade
brasileira começam já na década de 1950, mas ganha plena visibilidade
apenas nos anos 70. Nesse primeiro momento, a representação da violên-
cia está marcada por dois componentes sócio-políticos determinantes.
Por um lado, a violência foi considerada um resultado negativo do mila-

1
Chauí, “A não-violência do brasileiro, um mito interessantíssimo”, passim.
2
Oliven, Violência e cultura no Brasil, passim.
3
Id., p. 14.
30 Karl Erik Schollhammer

gre econômico e do entusiasmo desenvolvimentista brasileiro, que de-


sencadeara um crescimento explosivo dos centros urbanos e de suas po-
pulações, sobretudo do Rio de Janeiro e de São Paulo. Em poucas déca-
das, o Brasil transformara-se de agrário e coronelista num país predomi-
nantemente urbano, com todos os problemas sociais decorrentes de uma
urbanização problemática. Em 1960, 45% da população brasileira residi-
am em áreas urbanas e até o final do século este número cresceu para
78%. Surgiu uma nova realidade suburbana que, já nos anos 1950, come-
çou a ser retratada em obras pioneiras do Cinema Novo de Nelson Pereira
dos Santos, o Rio Zona Norte e o Rio 40 Graus. Por outro lado, a violência
foi nos anos 60 e 70 associada à condição política da chamada “revolução
de 64”, cujo rótulo romântico encobria um golpe militar que interrompeu
o processo democrático, dando início a um longo período de autoritarismo
político e de lutas clandestinas contra o Regime.
As manifestações artísticas desta realidade têm facetas plurais e com-
plexas. Entre elas, interessa destacar uma interpretação da escalada da
violência social como uma alegoria da oposição espontânea à situação
antidemocrática do país e não apenas como um sintoma negativo da crise
de legitimidade desencadeada pelo processo sócio-político autoritário.
Nessa perspectiva, encontramos, entre as primeiras manifestações contra
o regime militar, alguns exemplos das artes plásticas que, dentro de uma
orientação neofigurativa ou neo-objetiva, fortemente inspirada no movi-
mento internacional de POP-art, começavam a incluir nas obras frag-
mentos do cotidiano, da imprensa e das representações oficiais com teor
político de denúncia. Em 1965 foi inaugurada a exposição Opinião 65, no
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e no ano seguinte, na Opinião
66, Rubens Gerschman apresenta a obra emblemática: A Bela Lindonéia -
Um amor impossível, um retrato de uma jovem assassinada, um drama
passional tirado de uma manchete de jornal. Dessa forma, a arte pop
brasileira revelava seu engajamento político na inclusão do cotidiano
urbano violento na obra, explorando sua forma mediática. O momento
coincide com as primeiras manifestações do movimento musical Tropicália,
liderado pelos músicos baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre ou-
tros. Caetano escreveu uma canção inspirada no quadro de Gerschman
que foi reproduzido na capa do disco. Outro artista, Hélio Oiticica,
que havia liderado a oposição neoconcretista contra o construtivismo
Breve mapeamento das relações entre violência e cultura... 31

positivista predominante na década de 1950, desenvolveu ao longo dos


anos 60, um trabalho artístico em contato direto com a cultura popular
das escolas de samba dos morros cariocas, principalmente do Morro da
Mangueira. Em 1963, esse engajamento se refletiu na série Bólides –
obras de intervenção, também chamadas de “transobjetos” – visando
estimular a participação direta do espectador. Em 1966, Oiticica reali-
zou uma homenagem ao bandido mais procurado do Rio de Janeiro,
Cara de Cavalo. O “Bólide Caixa 18, Poema Caixa 2” continha imagens
do bandido morto em 1964, executado com apenas 22 anos, depois de
uma longa perseguição policial. A obra de Oiticica consistia numa cai-
xa, cujo interior revelava quatro fotos do bandido perfurado por tiros,
estirado no chão com os braços estendidos formando uma cruz. A ins-
crição na pigmentação no fundo dizia: “Aqui está e aqui ficará.
Contemplai seu silêncio heróico”. Hélio expressou nesta ocasião seu
objetivo artístico com precisão:

Eu quis homenagear o que penso que seja a revolta individual social: a dos chamados
marginais. Tal idéia é muito perigosa, mas algo necessário para mim: existe um contras-
te, um aspecto ambivalente no comportamento do homem marginalizado: ao lado de
uma grande sensibilidade está um comportamento violento e muitas vezes, em geral, o
crime é uma busca desesperada de felicidade4.

No mesmo ano, Gerschman volta com um quadro em que o retrato de


Lindonéia, vítima inocente da violência social, é substituído pelo retrato
de Os desaparecidos 2, supostas vítimas da repressão política do regime
repressivo. Na obra de Antonio Manuel – A imagem da violência (1968) –
a manchete de jornal tornava-se o conteúdo explícito de denúncia polí-
tica. Também no trabalho de Oiticica, apesar de seu fascínio pela
marginalidade e de suas relações de amizade com o famoso Cara de Ca-
valo, que havia conhecido no morro da Mangueira, percebemos em sua
obra a despedida de um tipo romântico de bandido, simbolizado pelo
Malandro,
.
um tipo de marginal que vive à margem da lei, sobrevivendo
do meretrício, do jogo do bicho e da pequena venda de maconha.

4
Oiticica apud Duarte, Anos 60: transformações da arte no Brasil, p. 63.
32 Karl Erik Schollhammer

O malandro brasileiro é um andarilho (mal andar: malandro), um homem


sem compromisso, um tipo picaresco que se comporta como um peixe nas
águas do samba, do carnaval, do jogo e das favelas, sempre no limite da
lei, mas nunca em total oposição a ela. A época o identifica em nomes
como Mineirinho, Carne Seca, Sete Dedos, Rainha Diaba e Cara de Cavalo.
Segundo esse mito folclórico tipicamente brasileiro, o Malandro sobrevi-
ve em função do seu talento individual e não da organização criminosa; é
avesso ao batente, bom de briga e rápido na faca, mas raramente usa
arma de fogo, evita o confronto direto e prefere o “jeitinho”, a fuga ou a
boa conversa, mantendo o equilíbrio ou, segundo Antonio Candido, a
“dialética” entre ordem e desordem. O Malandro se reconhece por atuar
sempre com uma certa graça, charme, apesar da sua falta de moral e
sociabilidade, permanece como figura característica da marginalidade
do morro, do samba e do jeitinho “fora-da-lei” tipicamente brasileiro. Na
cultura brasileira, sua figura é, segundo Antonio Candido, constante –
desde o romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio
de Almeida, o folclórico Pedro Malazarte até o Macunaíma modernista e
a música popular da década de 1930 e 40 –, como uma imagem de um
modo particular e nacional de ser.
Mais tarde, em 1968, Hélio Oiticica mergulhou plenamente no para-
doxo desse bandido heróico realizando a emblemática serigrafia “Seja
marginal, seja herói!”. No mesmo ano, Rogério Sganzerla lançou o
despudorado filme O Bandido da Luz Vermelha, que pintava o retrato de
um assaltante, assassino e estuprador com toques líricos que exploravam
a ambígua imagem de atração e espanto. No mesmo espírito, o diretor
Antônio Carlos Fontoura recuperou o mundo boêmio do bairro da Lapa,
no Rio de Janeiro, no filme Rainha Diaba, sobre a mítica figura do
submundo carioca Madame Satã, que durante os anos 70 reaparece em
manifestações politicamente mais conscientes, como a peça de Chico
Buarque e Ruy Guerra Ópera do Malandro. Essa tradução nacional da
alegoria brechtiana retratava o Malandro como aquele bandido que, si-
multaneamente à transgressão da ordem, resguarda a independência de
uma cultura popular brasileira.
No importante livro, que mais tarde se tornaria uma referência de
leitura sobre o Brasil, Carnavais, malandros e heróis (1979), o antropólogo
Roberto DaMatta, desenhou o perfil de três tipos sociais brasileiros: o
Breve mapeamento das relações entre violência e cultura... 33

renunciante, o malandro e o caxias, correspondendo a três manifestações


públicas representativas da ordem social brasileira: a procissão religiosa,
o carnaval e o desfile militar. Curiosamente, o renunciante é opositor ao
estado por renúncia total, como Antônio Conselheiro, Padre Cícero e o
justiceiro do cangaço. E assim se explicita como o Malandro, pela legiti-
midade que oferecia a um certo uso particular da violência na oposição
social ao sistema feudal agrário, representava uma segunda figuração do
“bom bandido”. O livro de Roberto DaMatta dava continuidade a uma
série de estudos sociológicos e antropológicos5 do cangaço brasileiro rea-
lizados durante a década de 1970, fortemente tributários dos trabalhos de
Hobsbawm sobre o banditismo como rebeldia anticapitalista, que renova-
ram o interesse em torno de figuras históricas como Lampião e Maria
Bonita, Antônio Conselheiro e outros personagens das grandes revoltas ru-
rais do início de século.
Os mesmos personagens apareceram com novas características em fil-
mes do Cinema Novo, como Deus e o diabo na terra do sol e O Dragão da
Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha, que davam conti-
nuidade ao já clássico O cangaceiro, de Lima Barreto. Ficou claro que, na
interpretação dos artistas da época, tanto a figura do Malandro quanto a
do Cangaceiro recebia uma outra dimensão política. O submundo do cri-
me e da violência recuperava legitimação por indicar alegoricamente a
revolta espontânea que pudesse indicar uma possibilidade revolucionária
de violência política. Além de denunciar os mecanismos sociais por trás
da violência e, portanto, a responsabilidade implícita do estado autoritá-
rio, aparecia na literatura, nas artes plásticas e no cinema uma exposição
nua e crua de uma nova realidade do crime e da violência que, às vezes,
atribuía certo romantismo ao fenômeno do banditismo, tanto no campo
quando nas grandes cidades.
Enquanto isso, a conjunção entre luta armada política e o crime orga-
nizado acontecia na prática, como conta William da Silva Lima na sua
autobiografia Quatrocentos contra um: a história do Comando Vermelho,
em conseqüência da convivência durante os anos 1970 entre os presos
políticos e os delinqüentes sociais na prisão de segurança máxima de Ilha

5
Facó, Cangaceiros e fanáticos.
34 Karl Erik Schollhammer

Grande. Daí se originou a organização criminosa chamada inicialmente de


Falange Vermelha e posteriormente de Comando Vermelho. Essa organização
assumiu no início certos princípios da luta armada para garantir uma rela-
ção de apoio entre presos e a contravenção em liberdade, mas rapidamente
converteu-se numa base de poder que possibilitava a crescente venda de
cocaína nas favelas cariocas através de uma rede de distribuição e de ar-
mamento, seguindo estratégias militares e clandestinas.
Na literatura da época costumam-se distinguir duas tendências de
representação da violência: o neo-realismo jornalístico e o brutalismo6. A
primeira pode ser vista como uma reação ao Ato Institucional Nº 5, de
dezembro de 1968, que impôs um regime de censura contra a liberdade
de expressão. Alguns profissionais da imprensa se voltavam para o roman-
ce-documentário, no qual encontravam, pela ficção, o meio de retratar
os fatos reais da violência criminosa, driblando assim as restrições impos-
tas pela censura nas redações dos jornais do país. Aqui a literatura se
afastava do desafio estético e assumia um tom de franca denúncia da
violência emergente nos subúrbios das grandes cidades. Por exemplo, no
livro A República dos Assassinos, de Aguinaldo Silva (1976), são relatadas
as atividades dos “esquadrões da morte” nos bairros de Duque de Caxias
e de Belfort Roxo da Baixada Fluminense, formulando uma crítica explí-
cita do envolvimento da polícia e dos órgãos da justiça com as atividades
organizadas do crime. Encontramos nesse documentarismo a proposta de
traduzir a realidade das favelas e da marginalidade no âmbito literário, mas
talvez o maior sintoma de sua fragilidade literária se possa perceber no fato
de que esses romances tenham encontrado maior sucesso em adaptações
para cinema e televisão do que entre o público de leitores. Um bom exem-
plo é o filme Lúcio Flávio, passageiro da agonia (1979), baseado no livro Eu
matei Lúcio Flávio, de José Louzeiro, dirigido por Hector Babenco, em uma
parceria que mais tarde foi responsável pela principal denúncia do proble-
ma dos meninos de rua, com o filme Pixote – A lei do mais fraco (1980).
No entanto, foi a outra vertente, inaugurada ainda em 1963 por Ru-
bem Fonseca, com a antologia de contos Os prisioneiros, que deixaria sua
influência mais marcante na literatura urbana brasileira. Com este livro,

6
Sussekind, Literatura e vida literária e Dalcastagnè, O espaço da dor.
Breve mapeamento das relações entre violência e cultura... 35

Fonseca promove uma prosa denominada por Alfredo Bosi7 de “brutalismo”,


caracterizada pelas descrições e recriações da violência social, entre ban-
didos, prostitutas, leões-de-chácara, policiais corruptos e mendigos. Sem
abrir mão do compromisso literário, Fonseca cria um estilo próprio – en-
xuto, direto, comunicativo –, com temáticas do submundo carioca, no
qual o escritor se apropriava não só das histórias e tragédias cotidianas,
mas também de uma linguagem coloquial que resultava em uma inova-
ção para o seu “realismo marginal”. Outros escritores como Júlio Gomide,
Wander Piroli, Ignácio Loyola Brandão, Roberto Drummond e, mais tar-
de, Sérgio Sant’Anna, Caio Fernando Abreu e João Gilberto Noll se-
guem, cada um à sua maneira, os passos de Fonseca e de seus precursores,
o dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues, e o paranaense Dalton
Trevisan, que contribuíram no desnudamento de uma espécie de “crueza
humana”, até então inédita na literatura brasileira.
Para a maior parte da crítica e para alguns censores do estado8, a
revelação das paixões violentas e da desumanização da vida urbana con-
tinha uma denúncia implícita da realidade brutal emergente do regime
político repressivo. Via-se com certa razão, nessa literatura, uma implíci-
ta apologia à violência, incitando revoltas violentas contra um aparelho
estatal sem legitimidade. O governo Médici havia proibido aos meios de
comunicação que divulgassem “qualquer exteriorização considerada con-
trária à moral e aos bons costumes”. Segundo afirmava o General, a cen-
sura se dirigia contra as ofensas à “moral comum” daqueles que “estimu-
lam a licenciosidade, insinuam o amor livre e ameaçam destruir os valo-
res morais da sociedade, obedecendo a um plano subversivo que põe em
risco a segurança nacional”. Foi nesta perspectiva que a relação entre a
revolta social e uma ameaça política era percebida pelos censores do go-
verno, causando a censura da coletânea dos contos de Fonseca, Feliz Ano
Novo, em 1976, acusado de “incentivar a violência”.
Ao mesmo tempo havia, nessa literatura, um elemento que radicalizava
a expressão das motivações políticas do momento, uma tentativa de com-
preensão de uma realidade social excluída, que procurava representar a

2
Bosi, O conto brasileiro contemporâneo.
8
Silva, Nos bastidores da censura.
36 Karl Erik Schollhammer

reação da classe média urbana às ameaças criadas pelas crescentes desi-


gualdades sociais: assaltos, seqüestros e assassinatos. Nessa perspectiva, a
ficcionalização literária da época pode ser compreendida em termos de
re-simbolização da violenta realidade emergente dos confrontos sociais
no submundo das grandes cidades. A recriação literária de uma lingua-
gem coloquial “chula”, desconhecida pelo público de leitores, represen-
tava a vontade de superar as barreiras sociais da comunicação e, ao mes-
mo tempo, imbuir a própria linguagem literária de uma nova vitalidade
para poder superar o impasse do realismo tradicional diante da moderna
realidade urbana. Antes de Fonseca, outros autores, como Antônio
Fraga e João Antônio, tinham dirigido sua atenção à realidade dos
submundos urbanos, dedicando-se à recriação dos seus personagens
em um projeto de aproximação à realidade brasileira. Nos anos 1970,
numa provocação a seus colegas contemporâneos, João Antônio lan-
çava a seguinte pergunta: “A desconhecida vida de nossas favelas,
local onde mais se canta e onde mais existe um espírito comunitário;
a inédita vida industrial; os nossos subúrbios escondendo quase sem-
pre setenta e cinco por cento de nossas populações urbanas; os nossos
interiores – os nossos intestinos, enfim, onde estão em nossa literatu-
ra?”. Mas a exigência de João Antônio de mais “realismo” na literatu-
ra era limitada, comparada com a prosa inovadora de Fonseca e a
apropriação expressiva de uma crueldade violenta das grandes cida-
des e de seus personagens. Sem recorrer ao extremo neonaturalismo
de João Antônio, Fonseca cria um estilo pungente e cru, quase porno-
gráfico na sua impiedosa exposição de todas as feridas da mente hu-
mana. Seus textos nunca se restringem ao aspecto social, e conse-
guem aprofundar os paradoxos da existência humana, provocando a
aparição das origens do mal que os perturba. Em “Passeio noturno”,
um executivo rico e bem-sucedido sai de noite em sua Mercedes para
atropelar pedestres sem motivo aparente. O lado enigmático do ato
gratuito faz parte da violência revelada nos contos de Fonseca, e
transparece como um elemento que nos anos 1980 se complexifica e
passa a caracterizar a presença da violência em obras de outros auto-
res, como João Gilberto Noll (O cego e a bailarina, 1980), e Sérgio
Sant’Anna (“O Assassino”, 1969), nos quais o crime é revelado na
perspectiva enigmática do próprio caráter humano.
Breve mapeamento das relações entre violência e cultura... 37

Para os personagens de Fonseca não existe nenhuma dimensão de es-


perança política na rebeldia dos marginais da sociedade. Do ponto de
vista individual, os personagens são despidos impiedosamente de qual-
quer heroísmo engajado. Num dos contos mais famosos do escritor, o ban-
dido romântico adquire uma acidez inesperada de revolta individual e a
violência do “Cobrador” é apenas uma maneira de saldar as dívidas que a
sociedade de consumo tem com os excluídos: “Estão me devendo comi-
da, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me
devendo. Um cego pede esmolas sacudindo uma cuia de alumínio com
moedas. Dou um pontapé na cuia dele, o barulhinho das moedas me
irrita”9. Depois de uma carreira de vingador inconformado com os ícones
da sociedade desigual, e estimulado por uma amante terrorista que o
convence da ação violenta organizada, o “Cobrador” finalmente encon-
tra sua verdadeira vocação. O conto termina ironicamente com a
premonição inquietante da canalização de todo o ódio da desigualdade
social num ato terrorista contra as instituições da sociedade, sem diálogo
com o sistema político.
O bandido desenhado por Fonseca não é mais o Malandro, cuja in-
fração lhe permitia viver na marginalidade para o bom funcionamento
da sociedade, esquivando-se das obrigações sociais, embora no fundo
fosse totalmente dependente dela. Percebemos a emergência de um novo
tipo de bandido, para quem a marginalidade, o crime e a violência são
uma condição de existência e identidade, um protesto cego e
injustificável que só pode ser entendido como o avesso da perda de
legitimidade das instituições sociais e de suas premissas democráticas.
É um jovem, mal-nutrido, dentes ruins, fraco, analfabeto e sem opções,
igual a milhões de brasileiros nascidos nas décadas de 1970 e de 80.
Mora numa favela ou na periferia da cidade e, muito jovem, passa a
integrar as quadrilhas do tráfico de drogas, no início trabalhando ape-
nas como avião ou fogueteiro. Ainda adolescente ganha uma arma, e
com a arma vem um tênis novo, poder aquisitivo, garotas, poder na
comunidade e uma expectativa de vida cada vez mais curta. O novo

9
Fonseca, “O Cobrador”, p. 492.
38 Karl Erik Schollhammer

bandido é o resultado de uma nova ordem do crime em que não predo-


mina mais o mercado restrito da maconha, puxado pelo Malandro, mas
pelo mercado da cocaína, de circulação financeira muito maior, garan-
tido por quadrilhas fortemente armadas, que passam a constituir o po-
der informal nos morros da cidade.
No livro de Zuenir Ventura, Cidade partida (1993), em que o autor
retrata a realidade criminosa do subúrbio de Vigário Geral, o chefe do
tráfico de drogas, Flávio Negão, é descrito da seguinte maneira: “O
chapéu de jóquei virado para o lado, a camisa de listas azuis largas,
horizontais, uma bermuda azul e um par de pernas arcadas que acaba
numa sandália havaiana laranja seriam impróprios para identificá-lo
como o poderoso chefão do local, a não ser pelo celular pendurado na
cintura. Fisicamente, ele é um molecote do tipo que, num assalto, pro-
voca como primeira reação a vontade de dizer: – Não enche o saco,
garoto”10.

Os anos 1980 e 90
Se a década de 1970 já tinha mostrado um aumento quantitativo do
crime nas cidades brasileiras, causando um sentimento público de inse-
gurança e medo da violência na classe média acossada em condomínios
fechados e prédios cercados de grades e seguranças particulares, os anos
80, em que o plano político deu lugar à volta da democracia direta, são
marcados pelo aperfeiçoamento do tráfico de drogas, pelos seqüestros,
assaltos a transportes de valores e ousados assaltos a bancos. O novo perfil
do crime pesado garantia a presença do capital de investimento do tráfi-
co e tornava possível a sua manutenção, graças ao poderoso armamento
militar introduzido nas favelas cariocas. A insegurança nas ruas aumen-
tava, com o aumento de assaltos armados e com a aceleração de latrocí-
nios e assassinatos, somando-se a isso a ineficiência flagrante das polícias
brasileiras. O bandido dos novos tempos é um frio assassino ou um solda-
do do tráfico ainda em plena adolescência, sem os valores de honra e a
ética marginal do seu antecessor na malandragem. Nos últimos anos da
década, o Comando Vermelho começa a perder hegemonia e se divide

10
Ventura, Cidade partida, p. 78.
Breve mapeamento das relações entre violência e cultura... 39

em facções cada vez menores e mais violentas, que radicalizaram as guer-


ras internas entre bandidos permitindo um crescimento estrondoso do
crime e o surgimento de um sentimento geral de banalização da violên-
cia. Uma série de batalhas espetaculares entre grupos de bandidos, lu-
tando pelo poder e contra as forças da Polícia Militar em favelas do Rio
de Janeiro, como as ocorridas no morro da Dona Marta, coloca a nova era
do crime organizado nas primeiras páginas dos jornais e nos noticiários da
televisão. Eles impregnam a memória popular de imagens trágicas como a
de Carla, do morro da Dona Marta, uma menina de 14 anos se exibindo
orgulhosamente armada para a guerra. De novo é o artista Rubens
Gerschmann que, com a série de quadros Registro Policial, iniciada no
início dos anos 1980, chamava atenção para a mudança da realidade da
violência urbana, agora mais difusa, irracional e espetacularizada. Mais
tarde, Caco Barcellos, jornalista investigativo, que se tornou famoso em
1992 com a investigação crítica sobre as mortes produzidas pela ronda
ostensiva, chamada a Rota, da polícia militar de São Paulo, escreveu a
biografia Abusado – o dono da Dona Marta (2004) sobre o traficante
Marcinho VP. Barcellos narra a história das guerras da década de 1980 e
9011, revelando que os confrontos quase militares com o crime organizado
nos morros cariocas, os altos índices de execuções efetuados pelos corpos
especiais da polícia, em ações contra os marginais, ou as chacinas fre-
qüentes nos subúrbios de São Paulo refletiam um novo mundo do crime.
Nesse, o alto grau de profissionalização do tráfico de drogas era acompa-
nhado de um recrutamento de “soldados do movimento”, cada vez mais
jovens, cujo sangue frio se equiparava ao alto risco de vida. Do ponto de
vista dos jovens das camadas sociais mais baixas, o tráfico de drogas
começava a representar uma opção de vida não só pelos motivos econô-
micos, mas muito mais por representar uma contestação de risco contra
uma realidade percebida como injusta. Desenvolvia-se, em torno da
opção delinqüente, uma cultura de reivindicação, a partir dessa con-
testação, que resultava produtiva em associação vicária a esse risco e a
essa luta sem causa, criando fenômenos de abrangência cultural muito

11
Penna, “Marcinho VP: um estudo sobre a construção do personagem”.
40 Karl Erik Schollhammer

maior nas comunidades carentes, como o funk12, o surfismo de trem e o


arrastão13.
O início da década de 1990 foi marcado pela escalada das chacinas e,
com ela, uma maior visibilidade do envolvimento de policiais no crime.
Em 1992, a artista plástica Rosignorada.ma realidade ignoradao e O Dia
entraram aqui no palco da arte como uma memente receberia as reformas
necessevolta da Chângela Rennó criou uma instalação com fotos da im-
prensa dos mortos anônimos desovados na floresta da Tijuca durante o
Earth Summit internacional no Rio de Janeiro e em casos notórios como as
chacinas de Acari (1990), Candelária (1993) e Vigário Geral (1993). As
ligações perigosas entre policiais, esquadrões da morte, justiceiros e o
próprio tráfico foram expostas na imprensa nacional e internacional e
desencadearam mobilizações contra a violência urbana em ONGs e mo-
vimentos cívicos que continuam até hoje – como o Viva Rio – contra a
violência e a favor de um processo de reforma interna dos corpos polici-
ais. As imagens e notícias das vítimas desconhecidas ou “sem importân-
cia”, que normalmente só chegavam às folhas de jornais de perfil mais
popular como O Povo e O Dia, começaram a entrar no palco da arte como
uma memória perturbadora de uma realidade ignorada.
A década foi marcada por intervenções militares na guerra contra o
tráfico, duros golpes judiciais contra a máfia do jogo do bicho e uma
relativa moralização da polícia militar e civil que, inicialmente, quase
eliminou a indústria dos seqüestros que tinha jazido como uma praga
sobre Rio de Janeiro durante os anos 1980. Em 1998, o sociólogo Luiz
Eduardo Soares assumiu a Secretaria de Segurança Pública do governo

12
Herschmann, “A imagem das galeras Funk na imprensa”.
13
O processo de retorno à democracia durante os anos 1980 também abria para uma reflexão na
literatura sobre a violência política ligada à opção pela luta armada contra a ditadura, que foi
discutida e revisada em romances de cunho memorialista e autobiográfico, como A casa de vidro, de
Ivan Ângelo (1979), O calor das coisas, de Nélida Piñon (1980), Os Carbonários, de Alfredo Sirkis
(1981), e O que é isso, companheiro? (1981), de Fernando Gabeira. Não só foi um momento de
autocrítica e revisão das posturas e opções na luta contra a ditadura, mas também um testemunho
da memória mais violenta e traumática das prisões políticas e dos porões de tortura do regime
militar que evidenciou uma realidade ainda presente em muitos centros carcerários no país (Ginzburg,
“Escritas da tortura”).
Breve mapeamento das relações entre violência e cultura... 41

de Garotinho no Rio de Janeiro e com ele a esperança de que as forças


policiais finalmente receberiam as reformas necessárias. Durou pouco e
antes de completar dois anos na função, Soares, intimado por grupos po-
derosos da polícia, teve que ceder e sair não só do governo como também
do país por um período. A experiência foi relatada no livro Meu casaco de
general (2000), em que Soares evidenciou a profundidade dos laços de
corrupção no governo do Rio de Janeiro14.
No meio literário surgiram duas obras cuja originalidade era intima-
mente ligada à nova realidade da violência e da maneira flagrante de
expô-la. Em 1995, a jovem escritora paulista Patrícia Melo lançou seu
segundo livro, O Matador, que se tornará um fenômeno de vendas. Patrí-
cia Mello já tinha ganhado aplausos pelo livro de estréia, Acqua Toffana
(1994), mas com O Matador Patrícia explicitou a vontade de se inscrever
no contexto literário brasileiro como a verdadeira herdeira da prosa
brutalista de Rubem Fonseca. O personagem principal do mundo ficcional
de Patrícia Melo é Máiquel, jovem suburbano de São Paulo que se torna
um matador de aluguel, um justiceiro pago e um exterminador de desafetos
da grande sociedade paulista. Seu primeiro “cliente” é o dentista Doutor
Carvalho, um personagem resgatado do conto “O Cobrador”, de Fonseca,
que, depois de levar um tiro na perna, muda-se para São Paulo e reapare-
ce no romance de Patrícia Melo como agenciador dos contratos de matar.
O Matador, uma espécie de romance de formação, pelo avesso, mostra o
processo de embrutecimento de um homem que começa a matar por aca-
so, para em seguida tornar-se cúmplice da alta sociedade como carrasco
informal com direito a uma vida fácil e proteção da polícia, mas acaba
sendo incorporado no processo de banalização da violência que final-
mente o leva à autodestruição. Apesar de seu profissionalismo, da agili-
dade do texto e da composição narrativa cuja fluência nos remete ao
ritmo de um filme de ação com flashes rápidos e cortes alucinantes, a
obra de Patrícia Melo apresenta uma diferença fundamental em relação
às obras mencionadas previamente. Em nenhum momento, o tema da

14
No livro Elite da tropa, escrito em colaboração com dois policiais militares, Luiz Eduardo Soares
conta o outro lado da história num relato sobre o dia-a-dia do comando de elite BOPE, e as práticas
ilegais e transgressoras cometidas na guerra contra o tráfico.
42 Karl Erik Schollhammer

violência parece colocar um limite expressivo; em momento algum senti-


mos que o crescimento dos atos violentos beira a uma fronteira ético-
existencial última de algo impronunciável, o mal em si. Os personagens
se esvaziam de conteúdo à medida que simplesmente acabam sendo apre-
sentados como meros portadores de uma realidade de absoluta desuma-
nidade e perdem profundidade diante desta proibição fundadora que os
fazem “pessoas”. Nesse sentido, o livro também se esvazia de sentido e, ao
invés de envolver o leitor no drama de um homem em decadência moral,
impõe-nos a mesma indiferença diante dos fatos violentos que aterrori-
zam o personagem e assim nada mais nos espanta. As qualidades técnicas
do livro, o ritmo em aceleração contínua e a manipulação hábil da histó-
ria mostram a mestria da autora e justifica a filmagem do livro15, mas não
legitimam o incômodo provocado pela superexposição pornográfica dos
fatos. No romance Inferno, de 2000, o cenário já não é o subúrbio de São
Paulo, mas uma favela carioca, e o protagonista do catatau de 400 pági-
nas é um menino de morro, chamado Reizinho, que cresce junto aos
traficantes, qualifica-se no crime e acaba se tornando um poderoso chefe
do tráfico. Ao invés de contar a história em primeira pessoa, como ocorria
no romance O Matador, a narrativa de Reizinho é mais clássica e segue os
moldes do romance de formação romântica e realista. O protagonista é
ambicioso, conquista seu mundo, mas acaba se destruindo depois de des-
truir seus adversários, seus desafetos mas também todos os seus próximos
e amados. Depois de um tempo foragido do morro, Reizinho reaparece
nas últimas páginas do livro sem saber se espera a reconciliação ou a
morte pelos bandidos rivais. Patrícia Melo deu seqüência à história do
personagem Máiquel, no recente Mundo perdido (2007), em que, dez anos
depois, o assassino percorre o país em busca da mulher que o abandonara
no final do O Matador com a filha Samantha e vinte mil dólares. O Brasil
é retratado, satiricamente, através do olhar de Máiquel, num relato road-
movie em que o tema central já não é mais a violência senão a decompo-
sição moral da corrupção, do oportunismo e da desaparição de estruturas
e instituições sociais sólidas. Nessa realidade de egoísmo arrivista gene-
ralizado, o princípio simples e violento de um assassino de aluguel arre-

15
O homem do ano (2003), de José Henrique Fonseca, com roteiro de Rubem Fonseca.
Breve mapeamento das relações entre violência e cultura... 43

pendido oferece um exemplo de coerência. E o laço afetivo tênue que se


estabelece entre o herói e um cachorro vira-lata torna-se o último e patêtico
resquício de humanidade para alguém que não apenas se lança na procu-
ra de sua família irrecuperavelmente perdida, mas através dela busca
uma maneira de comunicação sem violência.
Com uma ambição totalmente diferente surge Cidade de Deus, de
Paulo Lins, um escritor jovem, morador de uma ilha pobre, de cerca de
300.000 moradores, encravada no bairro mais Miami do Rio de Janeiro,
a Barra da Tijuca. Se Patrícia Melo só pisou numa favela pela primeira
vez depois de ter escrito 20 capítulos de Inferno, Paulo Lins nasceu e
morou a maior parte de sua vida na Cidade de Deus. Conseguiu vencer
as condições sociais desfavoráveis, formar-se na universidade pública e
realizar um trabalho sociológico sobre a sua própria favela, percurso de
vida e de pesquisa que culmina num projeto literário de grande impor-
tância. O livro pode ser lido de várias maneiras. É um documento sobre
a história da Cidade de Deus, complexo habitacional construído para
dar moradia à população que ficara sem casa durante as grandes en-
chentes no Rio de Janeiro em 1966. As três partes da narrativa – “His-
tória de Cabeleireira”, “História de Bené” e “História de Zé Pequeno”
– retratam três décadas – anos 60, anos 70 e anos 80 – da história do
lugar. Ao mesmo tempo, é uma narrativa memorialista em que o percur-
so do desenvolvimento individual – da infância inocente, ao choque
com o mundo real na adolescência a caminho do cinismo da maturida-
de – reflete-se no tom de voz, a cada passo mais duro no relato. Final-
mente, trata-se de uma ficcionalização de fatos reais; “tudo no livro é
real”, costuma insistir o autor com fervor naturalista ou, diríamos an-
tropológico, comprometido com seus “informantes”. Não resta dúvida
de que esse compromisso conscientemente assumido constitui a grande
força e ao mesmo tempo a grande fraqueza do romance. Força porque a
realidade transparece em cada ação dos “malandros” ou “bichos-sol-
tos” de maneira comovente, e porque a reconstrução da linguagem dos
personagens é feita com muito esmero. Mas também fraqueza, porque
os personagens parecem presos nos papéis previsíveis de dramas em que
a individualidade de cada um parece se confundir com seus “tipos”. De
todo modo, o resultado do trabalho de Lins é admirável por seu fôlego e
envergadura, pelo compromisso científico e sentimental, e pelo esforço
44 Karl Erik Schollhammer

de expressão em que a crueldade da vida serve ao autor de potência


poética à sua literatura.
Os últimos anos do milênio foram marcados pelas iniciativas políticas
contra o mundo do crime. Lentamente o sistema judiciário e penal come-
ça a enfrentar sua própria ineficiência e os corpos policiais entraram em
processo de modernização. A violência talvez tenha perdido visibilidade
no dia-a-dia das grandes cidades, mas continua produzindo uma realida-
de estatística assustadora. Para os artistas da nova geração, a violência e
o mundo do crime têm promovido a abordagem do real como um fato
referencial presente na obra. No âmbito do cinema brasileiro ressuscita-
do, o tema foi retomado tanto de forma tradicional quanto através de
estratégias inovadoras. O diretor Sérgio Rezende filmou uma épica inter-
pretação da Guerra de Canudos (1997) e na televisão vimos ressurgir o
sertão do cangaço na história de Memorial de Maria Moura (1994), de
Rachel de Queiroz (Rede Globo, 24 capítulos; Romance, 1992)16. Murilo
Salles ofereceu-nos uma versão comovente do drama dos meninos infra-
tores em Como nascem os anjos? (1996), e no filme A grande arte (1991),
Walter Salles incluiu tomadas com documentários de surfistas de trem,
hoje todos mortos. O sucesso Central do Brasil (1998), do mesmo diretor,
divulgou mundialmente a situação dos meninos abandonados, além de
ter trazido de novo à tona a discussão sobre o tráfico de órgãos.
Surgiram jovens diretores como Beto Brandt, com Os Matadores (1997)
e Ação entre amigos (1998), e Tata Amaral, com Um céu de estrelas (1996),
do romance homônimo de Fernando Bonassi. Mais polêmico, no entanto,
foi o documentário de João Walter Salles e Kátia Lund Notícias de uma
guerra particular (1999), que provocou indiretamente uma acusação con-
tra o diretor por apoio ao tráfico, ou o clipe Soldados do tráfico do músico
de Rap, MV Bill, que foi censurado por mostrar garotos do morro sendo
recrutados para o crime. A mistura problemática de realidade e ficção
também é a força do documentário de Paulo Caldas e Marcelo Luna, O
rap do Pequeno Príncipe contra as almas sebosas (2000), que conta a histó-
ria de dois personagens reais de Camaragibe (PE): Helinho, justiceiro,
acusado de matar 65 bandidos, e Garninzé, músico, militante político e

16
Pereira et al., Linguagens da violência.
Breve mapeamento das relações entre violência e cultura... 45

líder comunitário. O justiceiro acabou assassinado dentro da prisão pou-


cos meses depois do lançamento do filme.
Assim a virada do milênio se caracterizou pela penetração da realida-
de documental da violência na ficção e da ficção na violência
espetacularizada num coquetel perigoso. Lembremos apenas o seqüestro
do ônibus 174, na Rua Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, em junho de
2000, quando um assaltante provocou um drama em que os reféns foram
mantidos durante horas sob a mira de uma arma e das câmaras da im-
prensa. O resultado trágico foi a morte de uma das vítimas, provocada
pela arma do assaltante, seguida da morte deste por vingança ou
despreparo policial. O assaltante Sandro do Nascimento era um sobrevi-
vente, ressurgido como um fantasma terrível, da chacina da Igreja da
Candelária. Ninguém conseguiu afirmar sua identidade nem seu nome
verdadeiro. A cena emblemática foi quando o assaltante, com a pistola
encostada na cabeça de uma vítima, em delírio de droga e do stress do
assalto, gritava para as câmaras da televisão: “Isto não é um filme, não é
um filme”.
A década de 1990 foi marcada pela atenção despertada em torno da
situação carcerária, principalmente depois do massacre da Casa de De-
tenção de Carandiru, ocorrido em 2 de outubro de 1992. A intervenção
das forças especiais do GATE, sob o comando do Coronel Ubiratan Gui-
marães e a mando direto do Governador Fleury, organizadas para repri-
mir uma suposta revolta carcerária em andamento, causou a morte de
111 presos, muitos deles fuzilados a sangue frio pelos policiais. Apesar de
a justiça nunca ter esclarecido os fatos dessa chacina, nem ter consegui-
do atribuir a responsabilidade penal a ninguém, a mobilização artística
em torno dos testemunhos do massacre e a recente implosão do complexo
de Carandiru revela a força simbólica desse monumento vergonhoso. Ci-
neastas, escritores, artistas plásticos e dramaturgos partiram desse exem-
plo na elaboração de obras que situavam a violência carcerária de
Carandiru no centro de uma expressão crítica das desigualdades sociais e
da realidade da exclusão que ainda estigmatiza e idealiza a democracia
brasileira atual. A forte carga espetacular do evento e a violência brutal
que ele condensa parecem autorizar essas produções culturais. O silêncio
oficial em torno dos fatos ocorridos acabou instigando os artistas a dar voz
a quem antes não falava e a escolha de Carandiru como emblema de
46 Karl Erik Schollhammer

denúncia contra um sistema criminal, judicial e penal totalmente


ineficiente e autoritário.
O início se deu com o sucesso extraordinário e surpreendente do
relato carcerário Estação Carandiru, de Drauzio Varella, que, ajudado
pela adaptação para o cinema por Hector Babenco, chegou a vender
mais de 400.000 exemplares. O reflexo imediato foi uma onda de ro-
mances, biografias e relatos diversos sobre a realidade marginal brasi-
leira do crime centrada no olhar sobre a situação crítica dos cárceres.
Na forma de um neodocumentarismo, baseado na prosa testemunhal,
autobiográfica e confessional, dando voz a sobreviventes desses infer-
nos institucionais, criou-se uma zona cinza entre ficção e registro docu-
mental, capaz de conquistar uma fatia significativa do novo mercado
editorial. Títulos como Memórias de um sobrevivente (Luiz Alberto Men-
des), Sobrevivente André do Rap (organizado por Bruno Zeni), Diário de
um detento (Jocenir), Pavilhão 9 – paixão e morte no Carandiru (Hosmany
Ramos) e a coletânea de escritos de presos Letras de liberdade, organiza-
da por Fernando Bonassi, assim como o documentário Prisioneiro das
grades de ferro, de Paulo Sacramento (2004), giram em torno da vida e
das experiências dentro dos centros carcerários, que, cada vez mais, se
impuseram como símbolos do fracasso da justiça brasileira e do combate
ao crime. Ao mesmo tempo, esses se revelaram verdadeiros centros de
organização criminosa, como ficou evidente após a aparição do PCC, o
Primeiro Comando da Capital, organização que teve origem em 1993 no
CRP (Centro de Reabilitação Penitenciária) de Taubaté, uma prisão
perto de São Paulo, destino de presos indisciplinados de outras prisões.
Em 2001, o PCC mostrou sua força na coordenação de rebeliões
carcerárias no país inteiro através dos violentos ataques contra agentes
penitenciários, policiais e bombeiros. No início, o PCC era a expressão
de um pacto de ajuda mútua entre os presos, organizado para vingar a
chacina de Carandiru em 1992 e lutar contra a “repressão carcerária”,
mas em 2001 ficou claro17 que tinha se estabelecido uma aliança com o
Comando Vermelho para ação conjunta na organização do crime dentro
e fora das prisões.

17
Souza, Sindicato do crime: PPC e outros grupos, passim.
Breve mapeamento das relações entre violência e cultura... 47

Início do século: o falcão


A noite de domingo, de 19 de março de 2006, guardava uma surpresa
para milhões de telespectadores brasileiros: um documentário chocante e
comovedor – Falcão: os meninos do tráfico (2006) – realizado pelo músico
de Hip-Hop MV Bill e seu parceiro e produtor Celso de Athayde, que
assinaram o projeto como representantes da organização CUFA – Central
Única das Favelas. O programa Fantástico, da Rede Globo de Televisão,
fecha normalmente o fim de semana com uma mistura descomprometida
de diversão, entretenimento, notícias e reportagens especiais, inserida
de maneira central na programação entre Domingão do Faustão e Big Brother.
No entanto, nessa noite foi exibido em rede nacional um documentário
que, pelo conteúdo, linguagem e estilo, pode ser considerado um marco
na televisão brasileira. O documentário durou 58 minutos, um formato
que, por si só, já representa uma quebra radical com o modelo habitual
do Fantástico. Mas o verdadeiro choque era assistir a uma reportagem
com uma intimidade tão confiante entre a câmera e os entrevistados,
longe do sensacionalismo comum, oferecendo o ponto de vista de 17 me-
ninos envolvidos no tráfico de drogas em favelas do Rio de Janeiro e de
outros estados brasileiros. Mesmo que nada do exposto fosse novidade
para o público, já que a realidade cruel do narcotráfico é amplamente
divulgada e conhecida, o documentário conseguiu uma proximidade com
os meninos entrevistados, que pareciam ter plena liberdade de falar sem
interrupção nem direcionamento jornalístico. Os autores do projeto não
aparecem nem fazem perguntas moralizantes, conseguem uma sinceri-
dade surpreendente dos garotos e até uma ternura que transparece nesse
diálogo amputado, apesar do cenário e dos temas sinistros. O que mais
surpreende é essa humanidade que acompanha a crueldade das históri-
as contadas e que possibilita uma empatia excepcional com esses jo-
vens, normalmente demonizados e tratados como ameaça hedionda à
sociedade.
O projeto iniciou-se em 1998 com filmagens esporádicas em comuni-
dades carentes visitadas por MV Bill e chegou a acumular 90 horas de
filmagens e entrevistas realizadas com uma centena de jovens. Em 2003 a
Rede Globo assumiu a produção, e a exibição do documentário chegou a
ser anunciada, mas acabou sendo abortada pelos diretores alegando mo-
tivos de foro íntimo. Na época, a imprensa especulou livremente sobre os
48 Karl Erik Schollhammer

motivos que teriam levado os autores ao rompimento do contrato, inclu-


sive chegou a ser ventilado o boato de que ameaças de morte teriam
provocado a decisão. Hoje, MV Bill explica que não foi nada disso, a
decisão apenas refletia a necessidade dos autores de ter mais tempo para
desenhar um projeto ideológico mais consistente. Sem dúvida, há uma
consistência inédita no projeto, pois, além da exibição do documentário,
iniciou-se uma grande campanha de conscientização nacional em várias
etapas de aproveitamento deste material. Um livro com as entrevistas foi
editado, um filme de duas horas foi lançado nos cinemas, um CD homô-
nimo de MV Bill foi colocado à venda, e a utilização do interesse desper-
tado nas mídias produziu uma onda de entrevistas, artigos, comentários,
discussões e aparições em programas diversos. Tampouco restam dúvidas
a respeito do ineditismo desse projeto, tanto em relação ao tratamento do
material quanto ao aproveitamento dos canais de divulgação altamente
profissionalizados para uma mensagem politicamente engajada de dois
ativistas em movimentos comunitários.
É preciso sublinhar que se trata de um fenômeno pioneiro e, ao mesmo
tempo, indicador de uma nova tendência na relação entre artistas, inte-
lectuais e ativistas em projetos culturais com finalidades sociais. Obvia-
mente, não é desconhecida a realidade revelada pelo documentário, muito
pelo contrário, muitas pesquisas e reportagens já mostraram a inumanidade
das condições de exclusão dessas comunidades, o mecanismo de recruta-
mento de crianças para o narcotráfico, por ausência de outras opções, e a
conseqüência suicida do caminho do crime para esses jovens infratores.
Documentários como, por exemplo, Notícias de uma guerra particular (1999),
de João Moreira Salles, conta cruamente essa mesma história em deta-
lhes. No entanto, há uma diferença muito grande no tratamento dado às
histórias pelo Falcão – os meninos do tráfico, pois os autores evitam o olhar
sociológico, de quem vem de fora para denunciar uma injustiça, e pres-
tam mais atenção à voz dos entrevistados, à opinião e à visão que lançam
sobre sua própria realidade criando um resultado muito mais agudo e
claro do que se poderia esperar de crianças e jovens na sua maioria anal-
fabetos ou iletrados. Todos demonstram que conhecem muito bem o beco
sem saída em que se meteram e toda a lógica perversa da relação entre o
tráfico de entorpecentes e as forças policiais, que muitas vezes aprovei-
tam a criminalidade para lucrar economicamente. Esses meninos não
Breve mapeamento das relações entre violência e cultura... 49

desconhecem o destino fatal que aguarda aquele que não conseguir sair
a tempo desse caminho sinistro. Dos 17 meninos entrevistados em 2003,
apenas um sobreviveu até hoje e alguns morreram já durante a própria
filmagem. Não se comenta esse trabalho para entrar na discussão do pro-
blema da violência e do tráfico “em si”, mas para sugerir que tal projeto
representa um tipo de engajamento que apenas tem sido possível pela
criação de formas inovadoras de colaboração e interação entre artistas,
ativistas comunitários, produtores culturais e intelectuais que, ao mesmo
tempo, conseguem apoio e cobertura de poderosas instituições de política
e mídia como, por exemplo, a Rede Globo. É evidente que precisamos
questionar criticamente o interesse comercial que a Rede Globo vê nesse
projeto. E não há dúvida que se calculam muitos benefícios nada altruís-
tas em termos de imagem e de produção de um fato que a mídia recicla
em sucessivas auto-referências de jornalismo sobre o jornalismo próprio.
Não obstante, é ainda difícil medir o efeito dessa estranha aliança que
tornou possível uma divulgação do debate para um público de mais de 50
milhões de brasileiros ligados ao aparelho televisivo no horário exclusivo
de domingo. Os autores do documentário conseguem ao mesmo tempo
driblar os perigos do jornalismo sensacionalista e colocar perguntas críti-
cas. Sem soar ofensivos nem pedantes, ambos conversam com os envolvi-
dos com a franqueza de quem cresceu enfrentando os mesmos problemas,
e estimulam os jovens a falar sem hesitações, com grande sinceridade e
afeto. O valor do projeto Falcão está no tipo de engajamento que só tem
sido possível pela criação de formas inovadoras de colaboração e interação
social, que viabiliza o apoio e cobertura de poderosas instituições de po-
lítica e mídia como, por exemplo, a Rede Globo.
A história da colaboração entre MV Bill e Celso Atayde é interessan-
tíssima e mereceria um trabalho extenso. Ambos possuem um longo currí-
culo de eventos, projetos, produtos e obras culturais, assim como visibili-
dade na mídia, resultado de provocações e de declarações críticas contra
a opinião pública. A sua mais recente realização foi o livro Cabeça de
Porco (2006), escrito a seis mãos em colaboração com o sociólogo Luiz
Eduardo Soares. Com um estilo pessoal e ao mesmo tempo coletivo, regis-
tram nesse livro impressões, reportagens e entrevistas em favelas, perife-
rias e comunidades carentes de todo o Brasil, oferecendo uma radiografia
de extraordinária amplitude do problema do crime organizado e do tráfi-
50 Karl Erik Schollhammer

co, muito além das reportagens de guerra sempre limitadas a mostrar o


problema apenas nos morros cariocas ou na periferia paulista. Fazem parte
de uma nova classe de artistas, intelectuais, ativistas, voluntários de di-
ferentes camadas sociais, cujos projetos visam à intervenção em comuni-
dades carentes, a favor da cidadania, como o grupo de teatro Nós do
Morro, a ONG Afro Reggae, a banda o Rappa, o corpo de Dança da Maré,
entre muitos outros dentro de redes que se nutrem das dinâmicas comu-
nitárias e que enfrentam, cada um à sua maneira, a escalada da violên-
cia. Hoje, ninguém mais acredita no mito da não-violência brasileira. A
cordialidade e a malandragem parecem pertencer a um país do passado
ou a uma realidade há muito tempo ultrapassada pela intensificação dos
problemas sociais nas grandes cidades, e pela perpétua exclusão e
marginalização de gerações inteiras privadas de educação, trabalho ou
alternativas dignas de sobrevivência.
Neste sentido vale a pena ouvir o comentário de João Cezar de Castro
Rocha sobre o fim do malandro como figura dinâmica na integração soci-
al e explicativa do crime. Na produção artística, literária e cultural mais
recente, como nas músicas dos Racionais MC, no romance de Paulo Lins
e em particular no último romance de Ferrez, Manual prático do ódio (2003),
o autor vê a superação não só da ginga malandra, mas também do ódio
individual do “Cobrador”, de Rubem Fonseca. Ele defende uma dinâmi-
ca representativa que seja capaz de analisar os mecanismos econômicos e
sociais do crime e da exclusão, de modo a oferecer material para a sua re-
simbolização em práticas comunitárias.

Já o modelo da dialética da marginalidade pressupõe uma nova forma de relacionamen-


to entre as classes sociais. Não se trata mais de conciliar diferenças, mas de evidenciá-
las, recusando-se a improvável promessa de meio-termo entre o pequeno círculo dos
donos do poder e o crescente universo dos excluídos. Nesse contexto, o termo marginal
não possui conotação unicamente pejorativa, representando também o contingente da
população que se encontra à margem, no tocante aos direitos mais elementares, sem
dispor de uma perspectiva clara de absorção, ao contrário do malandro18.

18
Rocha, “A dialética da marginalidade”.
Breve mapeamento das relações entre violência e cultura... 51

As iniciativas civis de combate à violência que surgiram durante os


últimos anos oferecem um caminho absolutamente compreensível e justi-
ficado, porém não suficientemente eficazes diante do vácuo simbólico
resultante da desagregação social. Apesar da intensa produção artístico-
cultural, esse problema parece ainda exigir novas soluções. Uma discus-
são sobre violência e cultura deve, em primeiro lugar, enfrentar esse de-
safio: se a violência é a brutal expressão de uma ausência de negociação
social, ao mesmo tempo é a demanda impotente de outra forma de
simbolização, cuja energia pode ser um poderoso agente nas dinâmicas
sociais.

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Recebido em maio de 2007.


Aprovado em junho de 2007.

Karl Erik Schollhammer – “Breve mapeamento das relações entre violência e cultura no Brasil
contemporâneo”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de
2007, pp. 27-53.
Nas tripas do cão: a escrita como
espaço de resistência
Regina Dalcastagnè

Abro as mãos ante os olhos no âmago da noite e não as vejo. Crio um casulo
de trevas. Questiono o meu ofício de escrever em face da opressão. Fico
ouvindo a resposta que se forma no ponto mais protegido e inviolado do meu
corpo. A máquina da opressão alcança-me através das paredes e da carne.
Todos os seus guardas e artífices dormem, todos - rodeados de arames,
casamatas, armas – e ela, a máquina, opera. Máquina ou cão? Não há
modo algum de escapar ao seu hálito.

Osman Lins, Avalovara

Em meio à ditadura salazarista, um pintor se reúne com os amigos e


propõe o silêncio dos artistas, um “pôr-se entre parêntesis até que o
mundo se transforme”1. Ciente de que, com vontade ou sem ela, a arte
dá “satisfação às necessidades vitais de beleza, não de todos os homens,
mas somente de alguns: e os piores”2, ele se dilacera em seu conflito,
sem, é claro, conseguir parar de produzir. Até que encontra uma solu-
ção provisória: pinta o retrato de uma mulher nua, extremamente bela
de rosto, mas com um corpo repelente, coberto de chagas. Depois, es-
conde suas feridas sob uma camada de tinta especial, que se decomporá
com o passar dos dias, revelando a obra original: “Ao fim de algum tem-
po, o bom burguês, comprador de uma genial Vênus para seu repouso,
para embelezamento da sua sala de estar, verá aparecer uma imagem
repugnante. E, pelo menos como artista, deixarei de contribuir para o
sossego dele”3.
Embora seu ambiente seja outro, Aleixo, personagem do português
Augusto Abelaira, sintetiza com estas palavras uma das facetas da crise

1
Uma versão anterior deste artigo foi publicada no nº. 61 da Revista de crítica literaria latinoamericana.
2
Abelaira, Bolor, p. 70.
3
Id., p. 72.
56 Regina Dalcastagnè

vivida, e de algum modo expressa, pelos escritores brasileiros durante a


ditadura de 1964-85. Uma vez que a censura à produção ficcional foi me-
nos intensa do que aquela dirigida à música e ao teatro, nossos autores se
encontraram na obrigação de abrir espaço em seus textos para a denúncia
das arbitrariedades e dos crimes do regime. O que não foi um processo
simples. De uma hora para outra viram-se espremidos entre “escrever para
exercer minha liberdade individual e escrever para exprimir minha parte
da angústia coletiva”4, como dizia outra personagem, desta vez de Ivan
Ângelo. Imersos no dilema, muitos se debruçaram dolorosamente sobre a
própria escrita, perscrutando-a. Surgiam, então, as fraturas – livros que,
mais do que a denúncia do momento, expõem o avesso de sua execução e
nos falam de um dilaceramento que corrói artista e obra, levando-os a
contorcionismos como os que sugere o pintor de Abelaira.
Interessa, aqui, portanto, não as estratégias de autocensura ou de
codificação da escrita efetuadas pelos autores para dizer da repressão5,
mas a obra que nasce da dúvida, dos questionamentos, do desconforto do
artista diante do próprio fazer literário num momento de opressão. Inte-
ressa esse “objeto ansioso” – nos termos do crítico de arte norte-america-
no Harold Rosenberg –, que nos permite enxergar com maior profundi-
dade a relação entre o artista e seu tempo, justamente por ser o resultado
mais íntimo desse confronto. Sendo assim, serão discutidos dois romances
que têm como protagonistas escritores e como tema a própria escrita:
Avalovara, de Osman Lins, publicado em 1973, e Um romance de geração,
de Sérgio Sant’Anna, publicado em 1980.
São livros difíceis – em diferentes medidas – e talvez por isso mesmo
pouco conhecidos, especialmente o de Sant’Anna, que sequer foi reeditado.
Parte da dificuldade desses romances pode ser creditada à estrutura inusual
que apresentam. Avalovara é um livro longo (tem mais de 400 páginas) e
extremamente sofisticado, repleto de implicações míticas e simbólicas. Em
suas oito linhas narrativas, que vão reaparecendo de acordo com uma pro-
gressão matemática, sobressai a história de um escritor, chamado Abel, e
das mulheres por quem se apaixona em diferentes etapas de sua vida, todas
vinculadas a suas buscas pela escrita adequada, ao seu tempo e à sua

4
Ângelo, A festa, p. 123.
5
Sobre estas estratégias, ver Dalcastagnè, O espaço da dor.
Nas tripas do cão 57

necessidade de expressar o indizível. Em torno de, e convergindo para, um


intenso encontro sexual entre o protagonista e a terceira de suas mulheres
– o presente da narrativa –, vão se desenrolando as outras tramas, que
também adquirem status de “aqui e agora” num texto em que tempo e
espaço se pretendem unificados.
Já Um romance de geração, que transcorre em menos de cem páginas,
tem a estrutura de uma peça de teatro. Também traz o encontro entre um
homem, o escritor Carlos Santeiro, e uma mulher, a jornalista Cléa. Um
pouco peça (são dadas as marcações de fala e de espaço), um pouco
entrevista (a repórter vai até a casa do escritor em busca de uma frase de
efeito sobre a “geração de 64”), um pouco manifesto (ele faz longos dis-
cursos altissonantes sobre a literatura de sua geração), o texto seria, afi-
nal, o romance fracassado de Santeiro que, cínico, se compraz em exibir
os próprios desacertos, não só literários, mas também afetivos, sexuais e
políticos. Daí que o que é encontro de fato no primeiro romance, neste
não passa de farsa – uma encenação que o escritor e a jornalista repetem
todas as noites para eles mesmos, uma vez que não têm para quem
apresentá-la (a peça, que na verdade é um romance, que na verdade é
uma peça, é proibida pelo órgão de censura).
Mas, além da estrutura diferenciada, do conteúdo fragmentado e não-
linear, da sobreposição de narrativas (no romance de Lins) ou de repre-
sentações (no de Sant’Anna), há ainda nesses livros um sentimento de
desassossego, talvez o principal responsável pelo desconforto do leitor.
Sentimento que pode estar camuflado pelas tintas poéticas de Avalovara,
ou pelo humor corrosivo de Um romance de geração, mas que nem por isso
se faz menos presente. Voltando, então, à Vênus de Aleixo, o pintor por-
tuguês não tem certeza, na verdade, de que a tinta vai descascar um dia
– o que torna seu esforço ainda mais dramático, uma vez que o resultado
é duvidoso. De qualquer modo, a podridão estará sempre lá, oculta, aguar-
dando, dizendo de si. É uma arte infeccionada, como o texto de Abel, ou
de Santeiro, como os próprios romances que os acolhem.
É essa escrita contaminada que pode ser aproximada à idéia da ansie-
dade da arte proposta por Harold Rosenberg para se referir ao que ele
chamou de action painting (pintura de ação) – aquela realizada por nomes
como Pollock ou De Kooning nos anos 1950. A expressão, para o crítico,
não está absolutamente relacionada com a intensidade das angústias dos
58 Regina Dalcastagnè

artistas, mas sim com a consciência dolorosa de que se a arte não envolve o
criador com as dificuldades de seu tempo, ela se esgota em sua própria
realização6. Isso porque “nenhum problema essencial da arte, salvo dificul-
dades técnicas, pode ser resolvido somente pela arte”7. A ansiedade surgi-
ria então, “não como um reflexo da condição dos artistas, mas como resul-
tado da reflexão que eles fazem sobre o papel da arte em outras atividades
humanas” e se manifestaria, sobretudo, no questionamento da própria arte8.

Escrita contaminada
Esse questionamento começa, tanto em Avalovara quanto em Um ro-
mance de geração, pela indagação dos motivos do escritor. Abel, no livro de
Osman Lins, procura de algum modo se constituir a partir da escrita, usan-
do-a para nomear o mundo e tornar-se senhor de seu destino. Mas precisa
dela também para alcançar os outros homens, afinal são eles que legitimam
sua identidade, que o fazem único num mundo habitado há milhares de
anos e que o tornam igual a todos aqueles que um dia pisaram a superfície
da Terra9. Acomodando em si a ambigüidade, ele busca um texto que lhe
permita “alcançar o cerne do sensível”10, mas que, ao mesmo tempo, dê
conta da superfície do real – e portanto do tempo histórico (no caso, o
regime de 64 no Brasil): “Procuro entrever e nomear um fragmento do que
jaz sepultado sob as aparências. Assoma, entretanto, nos meus textos
conflituosos e híbridos, a História – dissonante, sem integração possível –
em uma de suas manifestações mais soturnas. Um quisto: cáustico e arbi-
trário”11. A escrita, para ele, é um canal de acesso ao mundo, que pode
estar obstruído pelas circunstâncias, mas que mantém sua integridade.

6
Rosenberg, Objeto ansioso, p. 18.
7
Id., p. 23.
8
Id., pp. 19 e 20.
9
Como lembra Hannah Arendt, “se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-
se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das
gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que
existiram, existe ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da ação para se fazerem
entender. Com simples sinais e sons, poderiam comunicar suas necessidades imediatas e idênticas”.
Arendt, A condição humana, p. 188.
10
Lins, Avalovara, p. 223.
11
Id., p. 328.
Nas tripas do cão 59

Já Santeiro, o protagonista de Sérgio Sant’Anna, ao ser perguntado so-


bre seus motivos para escrever, começa dizendo que o faz porque se “preo-
cupa com a condição humana”12, depois esclarece que é “pra comer as
mulheres, pra elas gostarem de mim”13, para em seguida afirmar que preci-
sava dar a si próprio “uma identidade: Carlos Santeiro, escritor”14 – o que,
sem dúvida, impressionaria as mulheres. Em meio ao deboche e à ironia,
ele coloca em dúvida suas próprias razões, tornando amarga sua literatura.
Bem ao contrário de Abel, Santeiro não vê a escrita como possibilidade de
reintegração ao mundo, nem mesmo uma reintegração simbólica. Enquan-
to Abel viaja pela Europa e pelo Brasil, perseguindo, de algum modo, suas
raízes na arquitetura das cidades e nos rostos dos homens, o outro se tranca
em seu apartamento no Leblon, compra carbono, papel, cigarros, cachorro-
quente e coca-cola, e se põe a observar as vidas nas janelas em frente à sua.
Sonhando inspirar-se nos dramas mais autênticos que as “entranhas da
cidade” lhe pudessem dar, ele se vê de repente diante de um único e mes-
mo drama a “repetir-se em camadas infinitas, labirínticas, de espelhos”15 –
as telas dos televisores, sintonizados no mesmo canal.
Para Santeiro, qualquer tentativa de se aproximar do real costuma
dar nisso: embuste. Daí, suas afirmações sobre a falsidade das palavras,
daí a ansiedade em relação ao material básico de sua obra:

Perdi o tesão. Perdi o tesão desde o dia em que percebi o quanto as palavras eram falsas,
tão falsas como essa vodka aqui (...). Que, uma vez descrito em palavras, um seio
deixava de ser um seio. Numa folha de papel um seio só podia mesmo “arfar de
expectativa”. Que o seio não era o seio, a vodca não era a vodca e mesmo o gosto
péssimo na boca deixava de ser o gosto péssimo na boca para tornar-se apenas a frase
“um gosto péssimo na boca” escrita numa folha de papel. E até mesmo as sensações mais
concretas como esse gosto péssimo na boca deixavam de ser qualquer sensação porque
se procurava agarrá-las pelo rabo, utilitariamente, para transformá-la num texto literá-
rio qualquer. E o que dirá então, das sensações mais sutis e perfumadas como o amor e

12
Sant’Anna, Um romance de geração, p. 26.
13
Id., p. 35.
14
Id., p. 40.
15
Id., p. 24.
60 Regina Dalcastagnè

o desejo? Algo que antes era vital como o desejo formigando entre as pernas passava
mesmo a ser uma “sensação sutil e perfumada”16.

Georges Gusdorf dizia que situar-se no mundo é estar em paz com as


palavras: “Nosso espaço vital é um espaço de palavras, um território paci-
ficado onde cada nome é solução de um problema”17. Tanto Abel quanto
Carlos Santeiro, embora o segundo possa se pôr a gritar contra a simples
possibilidade da intenção aventada, se consomem em busca desse lugar –
um texto, uma idéia, algo que lhes permita ser, existir em relação aos
outros e em sua individualidade. Qualquer coisa que lhes conceda o
privilégio de alcançar o mundo sem traí-lo em sua representação. Ambos,
no entanto, estão muito longe desse “território pacificado”. Transportam,
em si, um espaço de conflito. Se Santeiro encena diante da jornalista e
do leitor sua repugnância pelas palavras – as quais ele não abandona,
como Aleixo não larga suas tintas – Abel as enaltece, sem desconhecer
que lida com um material gasto, contaminado:

A palavra sagra os reis, exorciza os possessos, efetiva os encantamentos. Capaz de


muitos usos, também é a bala dos desarmados e o bicho que descobre as carcaças
podres. (...) Sei bem: há, tem havido outros males na Terra, sempre e inúmeros. A
opressão, fenômeno tendente a legitimar muitos outros males e em geral os mais prós-
peros, reduz a palavra a uma presa de guerra, parte do território invadido. Lida o
escritor, na opressão, com um bem confiscado18.

A principal dificuldade de ambos está no fato de que as palavras não são


transparentes. Não temos como ver, através delas, todas as suas implicações.
Poderíamos dizer, com Rousseau, que a linguagem, tanto quanto um meio,
é um obstáculo entre as idéias e os sentimentos de um homem e outro19,
uma vez que esconde e deforma. Mas é com elas, com palavras gastas, usa-
das, que o escritor terá que trabalhar. Se a palavra é um “bem confiscado”
pela opressão, Abel não pode ignorar, nem permitir que ignorem, que lida
com um material impuro. Mas também não vai fingir que não se contami-

16
Id.. pp. 44-5.
17
Gusdorf, La parole, p. 37.
18
Lins, Avalovara, p. 261.
19
Ver Starobinski, Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo, passim.
Nas tripas do cão 61

nou com o manuseio. Entretanto, além de impura, a palavra também pode


ser insuficiente ou demais, e é isso que mais incomoda Carlos Santeiro.
Como lembra o filósofo André Gorz, “a linguagem é um filtro que me obriga
sempre a dizer mais e menos do que aquilo que sinto. Sua aprendizagem é
uma violência original feita ao vivido: ela me obriga a calar os vividos para
os quais não há palavras, a dizer conteúdos que não correspondem à minha
experiência, a ter intenções que não são as minhas”20.
Esse dilema da linguagem é explicitamente vivido por Abel e Santeiro
em circunstâncias e momentos diferentes. Como escritores que são, não
desconhecem os perigos da linguagem, mas tampouco podem prescindir
dela. As palavras jamais darão conta do vivido, como diz Gorz, então só
resta ao escritor a tarefa de tentar aproximações e de insistir. Insistir ain-
da que o resultado seja inferior ao prometido, ou imaginado, insistir mes-
mo que se sinta traído em suas emoções, em seus pensamentos. A frustra-
ção diante do que não se pode dizer talvez só não seja mais forte do que
a necessidade de continuar tentando. Wittgenstein afirmava que “o in-
dizível (o que me parece cheio de mistério e que não sou capaz de expri-
mir) forma talvez o pano de fundo em virtude do qual o que posso expri-
mir adquire uma significação”21. Sendo assim, reconhecer o indizível,
enxergar seu brilho em meio à escuridão, já seria ampliar as possibilida-
des do que pode ser dito.
Talvez resida aí grande parte da força da literatura. Nesse conflito perma-
nente entre o autor e a palavra. O que, pelo menos no caso de Osman Lins e
Sérgio Sant’Anna, está irremediavelmente impregnado pela ansiedade, e
pela dúvida. A luta com as palavras é intermediada pela consciência de seu
momento histórico, e de sua própria limitação. Por isso, Abel se pergunta:

Pode um artista manter-se fiel às indagações que mais intensamente o absorvem e realizar
sua obra, ignorando a surdez e a brutalidade, como se as circunstâncias lhe fossem propí-
cias – a ele e à obra. Talvez se convença de que deste modo a preserva e se resguarda da
infecção. Engana-se ou procura enganar? Isto, não sei. Sei que obra e homem, ainda assim,
estão contaminados e, o que é mais grave, comprometidos indiretamente com a realidade
que aparentam desconhecer. Ele e sua obra resgatam uma anomalia: testemunham (teste-

20
Gorz, Métamorphoses du travail, p. 216.
21
Cit. in Chauviré, Wittgenstein, p. 48.
62 Regina Dalcastagnè

munho enganoso, bem entendido) que a expansão, a pureza e a soberania da vida espiri-
tual não são incompatíveis com a opressão, e nos levam mesmo a indagar se esta, além de
as admitir, não propicia grandes percursos do espírito22.

A posição de Abel, como a de Osman Lins, é visceralmente contrária


à glamourização do embate entre criação e repressão: “serei sempre infe-
rior, como homem e artesão, ao que seria em outras circunstâncias.
Tornamo-nos, sob a opressão, piores do que éramos”23. Consciente disso,
ele segue ruminando suas dúvidas. As mesmas, na verdade, que ator-
mentavam muitos dos autores brasileiros da época. E que fariam Carlos
Santeiro se perguntar se boa parte da literatura produzida então, com sua
seriedade e sua intenção de denúncia, não passava de uma “cópia vaga-
bunda” do filme real e triste que se passava do lado de fora24:
Entre o Wladimir Herzog que foi morto numa cela do Exército e aquele
que aparecia em nossos livros havia uma diferença de grau e substância,
ponto. Este último era apenas o personagem que nós, os escritores, preci-
sávamos para manter acesa a “nossa chama”, a “nossa fogueira”, o JOGO,
em maiúsculas, ponto de exclamação! O velório literário de Wladimir
Herzog foi realizado nas livrarias de Ipanema, com coquetéis, batidinhas
e salgadinhos, ponto de exclamação!25
Aqui, não é simplesmente a palavra, ou a linguagem, que está sendo
colocada em questão, mas o próprio artista. Harold Rosenberg dizia que
“a ansiedade se impôs à arte junto com a experiência que acompanha a
rejeição de soluções superficiais ou fraudulentas”26. Osman Lins, Sérgio
Sant’Anna e seus protagonistas estão imersos nessa experiência. Já não
podem aceitar os parâmetros de um engajamento fácil – da literatura
transformada num panfleto político – até porque estão cientes de sua
ineficácia, mas também não pretendem ignorar a necessidade de fazer
sua obra interagir com seu tempo, nem que para isso tenham que tensioná-
la até seu limite. E esse limite inclui o próprio escritor, que se questiona e,
mais que isso, se coloca sob suspeita. Como acontece com Humberto, o
amigo advogado (que também escreve) do pintor de Abelaira. Remoen-

22
Lins, Avalovara, pp. 339-40.
23
Id., p. 364.
24
Sant’Anna, Um romance de geração, p. 68.
25
Id., pp. 68-9.
26
Rosenberg, Objeto ansioso, p. 19.
Nas tripas do cão 63

do-se na vergonha por não lutar por aquilo em que acredita, ele está
sempre frustrado, vendo nos outros o reflexo do seu fracasso:

Esta noite sonhei que vivia no Porto em 1830. De repente, vindo de Londres, o Alexan-
dre Herculano aparece em minha casa e diz-me: “Vamos desembarcar dentro de poucas
horas, precisamos do teu apoio”. Acordei nesse instante com suores frios e, por acaso,
lembrei-me do sonho interrompido. Pensei então, repousadamente acordado: Que res-
ponder? “Não conte comigo”? Nunca mais poderia olhar para ele a direito (nunca mais
poderia olhar para mim mesmo a direito), mas como dizer-lhe: “Conte comigo” se o medo
invadira o meu coração e a minha alma? Sem querer, sem dar por isso, surpreendi-me a
raciocinar deste modo: “porque vieste? Eu vivia em paz, sim, vivia em paz, sabedor de que
nada poderia fazer, crente de que era por isso que nada fazia. Porque vieste?”27

Humberto está duplamente condenado. Primeiro, pela ditadura, que o


impede de agir, que lhe incute o medo; depois, por si próprio, uma vez que
ele já não confia em si e coloca antecipadamente em dúvida suas reações. É
uma consciência dilacerada, bastante semelhante à de Carlos Santeiro,
que insiste em dizer que sua necessidade de escrever se vincula exclusiva-
mente à possibilidade de conquistar as mulheres e ter o ego afagado pelos
leitores, ou que ele, como outros escritores que lhe são contemporâneos,
estariam tristes com o fim da ditadura, porque “não teremos mais em quem
botar as nossas culpas”28. Com isso, ele se resguarda da verdadeira angústia
que lhe causa a necessidade de escrever seu “romance de geração”, menos-
prezando a seriedade de seu projeto. Seriedade que se reafirma através de
seu constante questionamento, seja da literatura produzida então, seja da
própria obra. Tudo, sempre, atravessado pelo sentimento de compromisso
com o tempo que os circunscreve. Em seu tom abusado, embriagado, Santeiro
se recusa a ser indiferente, o que o aproxima, mais uma vez, de Abel:

A indiferença do escritor é adequada à sua presumível elevação de espírito? Para


defender a unidade, o nível e a pureza de um projeto criador, mesmo que seja um
projeto regulado pela ambição de ampliar a área do visível, tem-se o privilégio da
indiferença? Preciso ainda saber se na verdade existe a indiferença: se não é – e só isto
– um disfarce da cumplicidade. Busco as respostas dentro da noite e é como se estivesse

27
Abelaira, Bolor, p. 51.
28
Sant’Anna, Um romance de geração, p. 69.
64 Regina Dalcastagnè

nos intestinos de um cão. A sufocação e a sujeira, por mais que procure defender-me,
fazem parte de mim – de nós. Pode o espírito a tudo sobrepor-se? Posso manter-me
limpo, não infeccionado, dentro das tripas do cão? Ouço: “A indiferença reflete um
acordo, tácito e dúbio, com os excrementos”. Não, não serei indiferente 29.

Tanto Abel quanto Carlos Santeiro produzem uma escrita que já nasce
contaminada pela opressão e que não se pretende pura ou elevada apesar
dela. Uma arte que não resolve seus dilemas, mas que também não se deixa
vencer por eles, que não se intimida nem se deixa anular. É que o
questionamento, e mesmo a suspeita, no campo da produção artística não
precisa ser sinônimo de paralisia, ou estagnação. Não é assim para Abel e
Santeiro, nem para Aleixo ou Humberto, tampouco para seus autores. A
síntese do problema pode não ser uma solução, apenas um encaminhamen-
to, provisório, circunstancial. A decisão de continuar escrevendo, ou pin-
tando, comporta então a necessidade de explicitar a dúvida, a ansiedade:

Dentro de mim ou dentro da noite, procuro ouvir as respostas. Não pretendo ser limpo:
estou sujo e sufocado, nos intestinos de um cão. Angustia-me, claro, reconhecer que a
sombra da opressão infiltra-se nas minhas armações e envenena-as. Por outro lado, isto
me causa uma espécie de alegria negra. Que se salve, das tripas, o que pode ser salvo –
mas com o seu cheiro de podridão30.

Esse cheiro dá a Avalovara a aparência da Vênus de Aleixo – é sim um


belo romance, mas aflora aqui e ali o irremediavelmente feio, o doloroso e o
contaminado. E sequer é preciso esperar que a tinta caia, basta seguir a
leitura, lenta em alguns momentos, acelerada em outros, para esbarrar em
seus tumores. A poesia do livro, sua plasticidade, a erudição explícita do
autor, nada está posto de forma a obscurecer esse aspecto. Bem pelo contrá-
rio, toda a beleza de Avalovara se organiza e se desloca para fornecer contras-
te. A ditadura brasileira irrompe no romance das mais diferentes maneiras,
seja pela aflição que ronda as personagens, sempre confusas e frustradas com
sua atuação ou falta de, seja através de manchetes de jornal (enxertadas no
texto), que, em sua dura concisão, dão conta do impacto das más notícias.
Nada é verdadeiramente bonito aí. Tudo é muito direto e claro, sem recur-
29
Lins, Avalovara, p. 354.
30
Id., p. 383.
Nas tripas do cão 65

sos, marcando a diferença com o resto do texto, ricamente trabalhado.


Em Um romance de geração já não há intenção de beleza. O tom é de
fracasso, de destempero, de acusação. As personagens são desgastadas por
suas culpas, por suas frustrações – políticas, artísticas, amorosas, sexuais –,
mas as enfrentam com escárnio. Carlos Santeiro, diante do sisudo e compe-
netrado Abel, morreria de rir. Debocharia da intensidade de suas buscas,
das “sensações sutis e perfumadas” que ele descreve, de seu tremendo es-
forço de integridade, política e estética. Com isso, ele voltaria a se denegrir
e à sua obra, diminuindo seu próprio empenho – talvez ainda mais doloroso,
porque negado – em busca de um lugar de onde resistir. É isso, afinal, a sua
escrita, como a de Abel, um espaço de resistência. É daí que ambos interagem
com o mundo opressivo que os cerca, daí que tentam se entender e enten-
der aquilo que, em meio à ansiedade, produzem.
E resistir é ainda acreditar – nos homens e na própria literatura como
instrumento de ação. Se não acreditasse, Santeiro realmente abdicaria das
palavras e faria “da vida um livro não escrito que se escreve a cada momen-
to”31, como propõe desolado durante sua entrevista. Mas tanto crê que se
arma de palavras e de ironia e ataca sem descanso, reinterpretando-se a
cada página virada, fazendo-se síntese de um dilema que não era só seu. O
teor de denúncia e de subversão de sua escrita não é menor que o do prota-
gonista de Osman Lins, apenas se organiza de modo diferente. O deboche
em Santeiro e a raiva em Abel funcionam como mecanismos para mantê-los
de pé, o que é, afinal, a pré-condição para qualquer forma de resistência.
Mudar o mundo é tarefa grande demais para a literatura. Um romance
pode expressar a oposição a um estado de coisas, mas se a oposição permanecer
restrita às páginas dos romances, estará fadada ao fracasso. Em Avalovara, é
contada a história dos pequenos mamíferos que surgiram no período triádico e
que destruíram os gigantescos dinossauros quebrando seus ovos nos ninhos32.
Mesmo com toda a sua “ingenuidade” – do ponto de vista de um Carlos Santeiro
–, Abel não acredita que uma obra literária possa cumprir este papel. Ele sabe
que a palavra escrita, a ficção, é uma das armas dos fracos – que, segundo
Lucien Bianco, “são sempre fracas armas”33, mas nem por isso inócuas.

31
Sant’Anna, Um romance de geração, p. 45.
32
Lins, Avalovara, pp. 281-2.
33
Apud Bourdieu, La domination masculine, p. 38.
66 Regina Dalcastagnè

De diferentes maneiras e em diferentes momentos – pois os sete anos


que separam um livro de outro marcam a distância entre os anos de chum-
bo do governo Médici e o período da “abertura” do regime, quando a dita-
dura já tivera que conceder, por exemplo, a anistia aos presos políticos e
exilados –, as obras de Osman Lins e Sérgio Sant’Anna colocam em ques-
tão a posição do intelectual sob condições de violência. Sem que se redu-
zam a isto, são também dois vívidos testemunhos sobre aquele período. São
literatura política, na mais completa acepção do termo, pois trazem em si a
discussão do que há de político no interior do próprio fazer literário.

Referências bibliográficas
ABELAIRA, Augusto. Bolor. 2ª ed. Amadora: Bertrand, 1970.
ÂNGELO, Ivan. A festa. São Paulo: Summus, s.d.
A RENDT , Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-
Universitária, 1987.
BOURDIEU, Pierre. La domination masculine. Paris: Seuil, 1998.
CHAUVIRÉ, Christiane. Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
DALCASTAGNÈ, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance
brasileiro. Brasília: Editora UnB, 1996.
GORZ, André. Métamorphoses du travail: quête du sens. Paris: Galilée,
1988.
GUSDORF, Georges. La parole. Paris: Presses Universitaires de France, 1963.
LINS, Osman. Avalovara. São Paulo: Melhoramentos, 1973.
ROSENBERG, Harold. Objeto ansioso. São Paulo: Cosacnaify, 2004.
SANT’ANNA, Sérgio. Um romance de geração. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1980.
STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo.
São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

Recebido em abril de 2007.


Aprovado em maio de 2007.

Regina Dalcastagnè – “Nas tripas do cão: a escrita como espaço de resistência”. Estudos de Literatura
Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 55-66.
Pior do que assassino …
Ettore Finazzi-Agrò
Roberto Vecchi

E você? Sou assassino de mulheres – podia ter dito, sou


escritor, mas isso é pior do que ser assassino.

Rubem Fonseca, “Agruras de um jovem escritor”

1. Feliz Ano Novo ou de como se escreve a


violência (I): a testemunha
A escolha de falar da representação da violência a partir de uma aná-
lise dos contos reunidos em Feliz Ano Novo pode parecer (e talvez seja)
tão óbvia, ao ponto de dispensar qualquer justificativa, toda reflexão so-
bre a razão pela qual uma obra é eleita como exemplar1. Na verdade,
entre os escritores contemporâneos, Rubem Fonseca pode ser considera-
do um daqueles que, com maior contundência e com grande arte (para
retomar o título de um seu famoso romance), vem tratando o tema da
brutalidade nas relações humanas, da conexão indissolúvel entre Poder e
Força no universo urbano. E isso a partir dos seus primeiros textos, em que
já aflora a sua atenção para fenômenos ligados, de um lado, à situação da
marginalidade no contexto das grandes cidades brasileiras e, do outro, à
ferocidade de uma burguesia empenhada em defender os seus, pequenos

1
O presente artigo é fruto de uma discussão conjunta sobre a escrita da violência a partir de uma
releitura do célebre – por inúmeras razões, inclusive extraliterárias – volume de contos Feliz Ano
Novo, de Rubem Fonseca. Apesar disso, os dois textos que decorreram desse confronto são de
autoria individual – o nº. 1 (“a testemunha”) de Ettore Finazzi-Agrò; o nº. 2 (“a exceção”) de
Roberto Vecchi – e refletem opções, opiniões, estilos de cada um dos seus autores. A combinação
dos dois ensaios, no entanto, produz um valor acrescido, permitindo detectar preocupações co-
muns, fios entrelaçados, margens sobrepostas, que, não por acaso, deságuam num desfecho comum
que, mais do que encerrar, descortina outros problemas de ordem crítica. Por essas razões, os
autores resolveram dispor dentro de uma única moldura o produto de um trabalho, ao mesmo
tempo, conjunto e individual.
68 Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi

ou grandes, interesses e cruelmente atenta à manutenção do status quo.


Desde as suas primeiras provas narrativas, a partir do começo dos anos 60
do século passado, Rubem Fonseca tem testemunhado, de fato, a degra-
dação de um contexto ambiental (e político, e ético, e econômico...) que
vai desembocar, enfim, no AI-5 – que pode ser considerado, nesse senti-
do, a conseqüência fatal e a consagração normativa de um processo de
polarização social já evidente nos anos anteriores e de que o autor tinha
prestado fiel testemunho nas suas obras.
Feliz Ano Novo, publicado pela primeira vez em 1975, apreendido pela
Polícia Federal (após já ter vendido, porém, cerca de trinta mil cópias) e
liberado para a sua reimpressão só em 1989, depois de um demorado pro-
cesso, representa, com certeza, uma etapa fundamental nessa longa fide-
lidade a uma obrigação testemunhal que, de fato, atravessa toda a escri-
ta ficcional de Fonseca. Livro “obsceno” então, no entender dos censo-
res, como todo livro tentando dar conta, de modo integral, duma realida-
de histórico-social moralmente degradada, em que o diálogo entre as
classes é substituído por relações de força que atingem tanto o lado orgâ-
nico (ou bio-político) quanto o lado psicológico (ou psico-patológico) de
uma humanidade aparentemente sem rumo. O “estado de exceção” (de-
terminado pelo AI-5) em que os contos são compostos e em que eles
acabam por ser implicados, representa, nesse sentido, não apenas um pano
de fundo, mas a própria razão de ser deles.
Porém, a questão da escolha dessa coletânea de contos para um estu-
do da representação da violência não tem tanto a ver com a situação
histórica “violenta” em que ela foi composta e (em) que ela (se) reflete,
quanto com uma análise de como a violência é descrita no plano literá-
rio, ou seja, da forma em que ela se inscreve no universo ficcional. Para
ser mais claro, é óbvio que o contexto histórico influi na seleção temática
e na organização dos conteúdos, mas o grande problema consiste no modo
(o “estilo”) através do qual se aproximar de uma representação, de uma
mise en texte desse contexto. De fato, a questão de como “escrever a vio-
lência” implica de imediato uma instância que, de modo geral, poderia
ser chamada “ética”, visto que ninguém – e tanto menos quem se coloca
na posição da testemunha – pode escapar de uma reflexão sobre o seu
posicionamento em relação às situações (vividas ou apenas imaginadas)
que está escrevendo.
Pior do que ser assassino... 69

O exemplo talvez mais claro desse dilema moral é o debate que se vem
desenvolvendo nos últimos anos no âmbito da antropologia dita “científi-
ca”: como guardar uma atitude imparcial (científica, justamente) na des-
crição e na análise de fenômenos, sociais ou simplesmente humanos, extre-
mos? Um pesquisador que pretenda estudar acontecimentos históricos
marcados por uma brutalidade gritante e insuportável (que podem ir da
organização e da atuação de bandas de jovens marginais nas periferias ur-
banas até aos, aparentemente infindáveis, genocídios que ponteiam a nos-
sa época), deve manter uma atitude puramente descritiva ou, ao contrário,
assumir uma posição crítica, de aberta condenação dos mecanismos que
impulsionam a violência? Alternativa, esta, que fica todavia não resolvida,
visto que uma participação emocional do pesquisador pode prejudicar o
êxito do seu trabalho, e, por outro lado, a reivindicação da imparcialidade
do observador é, pelo menos, discutível, senão impossível – deixando espa-
ço, aliás, à suspeita de uma certa cumplicidade, de uma complacência
mórbida com a violência representada, por parte do espectador-cientista.
De fato, o paradoxo em que o antropólogo se embate pode ser assimi-
lado ao paradoxo da testemunha, como ele é definido, por exemplo, por
Giorgio Agamben no âmbito da Shoah:

exatamente pelo fato de o testemunho ser a relação entre uma possibilidade de dizer e
ter o seu lugar, ele pode se dar apenas através da relação com uma impossibilidade de
dizer – ou seja, apenas como contingência, como um poder não-ser. (...) O testemunho
é uma potência que se dá realidade através de uma impotência de dizer e uma impossi-
bilidade que se dá existência através de uma possibilidade de falar2.

Colocado numa situação extrema, que ele tem a obrigação de descre-


ver e analisar, o antropólogo deveria preliminarmente enfrentar a ques-
tão de como dar conta desse poder baseado numa impossibilidade, isto é,
como relatar a violência a partir daquele silêncio ou daquela língua “ou-
tra” em que se expressa o sujeito/objeto (a vítima/algoz) dessa violência.
As perguntas são, afinal, sempre as mesmas: como representar aquilo que
– por ser indício do nada que o institui, ou melhor, por ser um significante

2
Agamben, Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita, pp. 135-6.
70 Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi

de um significado deslocado e, às vezes, incompreensível – permanece


irrepresentável na sua integralidade? Adotando qual linguagem ou pon-
to de vista se torna, enfim, legítimo falar do que, por natureza própria,
fica (também no seu sentido etimológico) “nefando”?
Acostumado a habitar o paradoxo, o estudioso, muitas vezes, nem se
apercebe (ou até recalca) a impossibilidade sobre a qual assenta a possibi-
lidade de exercer a sua profissão, recorrendo a um estilo aparentemente
“factual” que o deveria preservar de qualquer contaminação com o horror
representado. Em outros casos, ciente da natureza fora da ordem, exce-
dente e excessiva, dos eventos testemunhados, ele pode também escolher
a via da ficção, abrindo mão de toda pretensão cientificista, para armar
uma estória que seja o reflexo ou o resumo das histórias que ele tem acom-
panhado como pesquisador (no caso brasileiro, temos o exemplo bastante
próximo e muito conhecido de Paulo Lins e da sua Cidade de Deus). Em
todo caso, o paradoxo não pode ser apagado por completo, deixando que a
escolha de como “escrever a violência” seja resolvida num plano que po-
deríamos chamar de “retórico”. Existe, de fato, uma gama muito ampla de
opções que vai da adoção de um grau zero da escrita até à implicação
(ideológica, política ou apenas emocional e psicológica) do narrador nos
fatos narrados, passando pela eventualidade de um manejo irônico dos
fatos, que permite aproximar-se do horror se afastando dele.
Claro que a tarefa do antropólogo difere da do artista, mas é igualmente
claro que o espetáculo do horror e a representação da degradação humana
colocam questões parecidas tanto ao cientista social quanto àquele que
não tem nenhuma pretensão de estudo ou análise dos fatos violentos. Aquilo
que une as duas práticas é, no fundo, ainda e sempre, a vontade ou a
necessidade de testemunhar a violência, ou melhor, de passar de uma fase
de observação a uma atividade de de-scrição ou de re-figuração dos even-
tos observados, em que aquilo que está em jogo é a capacidade individual
de transmitir o vivido através da palavra ou da imagem, e em nome daque-
les que “não podem falar”. Nesse sentido, antropologia e arte (junto com
outras disciplinas, mas com um grau maior de consciência e auto-reflexão,
talvez) são expressões marcantes da “era da testemunha” em que se trans-
formou a nossa época – mantendo, no mundo atual, a mesma obrigação de
mostrar o Mal nas suas formas extremas, colocando-nos diante de um espe-
táculo de que todos nós somos, no fundo, também atores, participando, sem
Pior do que ser assassino... 71

querer, daquele “estado de emergência” que, segundo Benjamin, “não é


mais a exceção mas a regra”. Na verdade eu não quero, aqui, me adiantar
num estudo articulado das Figuras do Mal (título de um livro magistral de
Franco Rella, de 2002, para o qual remeto) presentes na cultura contempo-
rânea, mas apenas refletir sobre como um escritor do porte de Rubem Fon-
seca solucionou, na sua coletânea de contos de 1975, o problema de dar
conta da violência, nas suas diferentes manifestações, implícita no univer-
so urbano (e, mais especificamente, carioca).
De fato, o título do primeiro conto, coincidindo com o título do livro,
não poderia ser mais explícito: Feliz Ano Novo tem a função para-textual
de marcar um início, de delimitar um tempo que é novo na sua antigüi-
dade e ciclicidade (tanto assim que, de modo mais claro e retomando o
título de outro romance muito conhecido, poderia ser trocado com Feliz
Ano Velho). Tempo da violência, claro, relatada aqui de forma, eu diria,
referencial: crônica crua de um assalto que acaba numa tragédia sem
trágico, de um crime vivido através do olhar (e da linguagem, e da sensi-
bilidade…) dos seus agentes. O conto inicial tem, nesse sentido, o valor
de um intróito, de um proêmio em que o autor nos declara imediatamen-
te, e de modo quase impessoal, o assunto ou a instância poética ligando
todos os outros contos: a violência, justamente, aqui explícita e explicitada
na forma de um relato sem comentário, depois, nos contos que restam,
retrabalhada a partir de um ponto de vista cada vez diferente.
Acho que a variedade de situações que vamos enfrentando ao longo
do livro seja representativa não apenas do horror habitando as relações
interpessoais, mas dos modos como é possível testemunhar o Mal. Um
leque de opções balançando entre uma escrita irônica ou, às vezes, gro-
tesca, em que o autor se mostra no seu esconder-se atrás dos persona-
gens, até à imersão sem escape num mundo psicótico, onde a voz do
escritor parece apagar-se, para deixar a cena à violência em si mesma,
embora não sempre tão patente ou declarada como no conto inicial. E
aquilo que permanece em tudo isso – nessa relação, às vezes humorística,
às vezes alucinada, com as manifestações do horror cotidiano – é, por um
lado, o que pode ser ainda chamado “a banalidade do mal” e, pelo outro,
a interrogação constante sobre como se relacionar com ela, sobre como
relatar, sem condescendência, esse elemento trivial habitando a vida di-
ária das cidades.
72 Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi

O que eu quero sublinhar, nesse sentido, é a presença, ao longo do


texto da coletânea, de uma reflexão metatextual sobre como o escritor
pode ou deve se posicionar em relação à sua própria escrita – de como,
em suma, medir a distância entre escrever e descrever, entre ficção e
relato, entre testemunho (mais uma vez) e literatura, no momento em
que se decide tratar de um tempo marcado pela brutalidade. E isso, repa-
re-se, já a partir do segundo conto (“Corações solitários”) em que, de-
pois da crônica – angustiante, no seu tom asséptico – do crime presente
em “Feliz Ano Novo”, aparece como protagonista um repórter de polícia
que, demitido do jornal por falta de “crimes interessantes” na cidade,
passa a trabalhar numa revista feminina. Além de escrever roteiros de
fotonovelas, ele é incumbido, pelo diretor desse periódico, de uma falsa
seção de correspondência, escrevendo ele mesmo cartas de hipotéticas
leitoras pobres e marginais, a que responde com um incongruente oti-
mismo (aliás, ao longo do conto aparece também a figura de um cientis-
ta social, classificado, não por acaso, como agente da “Grande Menti-
ra”, que a própria revista e o seu redator contribuem a montar). Aqui a
violência real é claramente submetida ao filtro da ficção, a uma dissi-
mulação contínua de identidades e de sentidos acabando num
inextricável jogo de cabra-cega, em que, como está escrito quase no
fim do conto, “a vida dá um romance” e o romance se transforma em
vida, deixando que a escrita seja auto-referencial e, por isso, totalmen-
te supérflua e profundamente ridícula.
Rubem Fonseca, nessa perspectiva, parece contrabalançar de imedia-
to a violência anômica e anônima presente no primeiro conto, com esta
encenação falsa da dura realidade dos habitantes da periferia, por parte
de uma burguesia que impõe os seus modelos de vida, fingindo que todos
os dramas sociais não passam de uma grande carnavalização mediática.
O espetáculo do horror, em vez de se tornar mais suportável, é, de um
lado, amplificado por esta incongruência entre uma realidade trágica e a
sua reprodução fictícia, evidenciando, do outro lado, toda a complexida-
de de uma descrição da violência que chegue até ao âmago do
irrepresentável, até o núcleo indizível do “nefando”. A pergunta que o
escritor se e nos coloca continua sendo, então, a de como manter um
justo compromisso entre a pura e impessoal crônica dos acontecimentos
(se isso é realmente possível) e a sua inscrição num contexto ficcional
Pior do que ser assassino... 73

que mantenha a sua capacidade de dizer aquilo que a ficção se recusa a


dizer de forma direta (a realidade da violência em si mesma). Pergunta,
repare-se, que acaba abalando a própria identidade social e as certezas
ideológicas tanto do escritor quanto do leitor, presos, ambos, num meca-
nismo que é, ao mesmo tempo, de compaixão e repulsa.
Com efeito, a resposta ou a possível saída, diante desse impasse, é, a
meu ver, o contínuo, tresloucado balançar entre um e outro pólo – entre
verdadeiro e verossímil, entre o que é e o que se finge ser – numa espiral
em que a violência se dobra e desdobra na sua natureza, ao mesmo tempo,
factual e ficcional, física e psicológica. Espiral, turbilhão ou turba3, arras-
tando tudo consigo, desfazendo qualquer protesto ou proclamação de ino-
cência, porque todos somos culpados, porque todos participamos de um
Poder se manifestando apenas como Força e como Opressão. Nesse perene
“estado de emergência”, de fato, não existe salvação possível, nem mesmo
para quem assumiu a tarefa de observar e descrever (aparentemente, de
um lugar salvo e afastado) a brutalidade do torvelinho social em que estamos.
E é por isso que Rubem Fonseca não imagina apenas a violência, mas mer-
gulha nela, nela se espelha e se reconhece, identificando-se, enquanto
autor, com o “assassino”, com o agente e o portador da violência. Poderia
citar outro conto de Feliz Ano Novo, como “Agruras de um jovem escritor”,
ou tratar dos dois “Passeios noturnos” em que o autor se apresenta enquan-
to flâneur, observador erradio duma violência urbana também ela sempre
“em andamento”, sempre deslocada e sem alvo, sem princípio nem fim, sem
sujeito nem objeto (tema, aliás, de outro famoso conto de Rubem Fonseca,
“A arte de andar na ruas do Rio de Janeiro”, incluído em Romance Negro e
outras histórias, publicado em 1992). Temos, porém, um exemplo ainda mais
explícito desse espelhar-se do escritor no texto, que é bom olhar de perto
antes de concluir esta breve reflexão: é a metanarrativa fechando a coletâ-
nea e intitulada “Intestino grosso”.
Aqui o autor se desdobra nas figuras de um jornalista que entrevista e de
um escritor entrevistado por ele. Rubem Fonseca expõe ironicamente, nesse
falso diálogo (muito rentável, aliás, visto que as respostas são pagas “por pala-
vra”), as suas idéias sobre a razão pela qual começou e continua escrevendo
(“Acho que foi aos doze anos. Escrevi uma pequena tragédia. Sempre achei
3
Serres, Gênese, pp. 112-3.
74 Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi

que uma boa história tem que terminar com alguém morto. Estou matando
gente até hoje” – IG4, p. 163; “Nenhum escritor gosta realmente de escrever.
(...) É uma doença” – IG, p. 174); sobre a necessidade da pornografia (“Isso
que chamam pornografia nunca faz mal e às vezes faz bem”– IG, p. 174; “A
pornografia está ligada aos órgãos de excreção e de reprodução, à vida, às
funções que caracterizam a resistência à morte” – IG, id.); sobre, enfim, a
própria literatura (apesar de possuir “cerca de cinco mil” livros, o Autor de-
clara: “Odeio o Joyce. Odeio todos os meus antecessores e contemporâneos”
– IG, p. 170), acrescentando que não existe nenhuma literatura latino-ame-
ricana “nem mesmo uma literatura brasileira”, “existem pessoas escrevendo
na mesma língua, em português, o que já é muito e tudo” (IG, p. 173).
Uma série de afirmações, como se vê, marcadas fundamentalmente
por duas instâncias que já temos encontrado ao longo de Feliz Ano Novo:
a necessidade do realismo, por um lado

(Eles [os editores] queriam os negrinhos do pastoreiro, os guaranis, os sertões da vida.


Eu morava num edifício de apartamentos no centro da cidade e da janela do meu quarto
via anúncios coloridos em gás néon e ouvia barulho de motores de automóveis. (...) Os
meus livros estão cheios de miseráveis sem dentes – IG, p. 164),

e, por outro, a exigência da ironia ou até do nonsense

(O que eu proponho é uma nova religião, superantropocêntrica, o Canibalismo Místi-


co. (...) Eu não teria a menor repugnância em devorar o meu pai. É possível ainda que
alguém queira devorar a mãe assada, inteirinha, como uma galinha, para depois lamber
os dedos e os beiços, dizendo, mamãe sempre foi muito boa – IG, p. 172).

A testemunha, obrigada a dar conta das misérias e dos horrores que


habitam o universo urbano, é ainda quem tenta vencer a violência no seu
próprio terreno, assumindo-a como princípio inspirador da sua escrita,
mas para apagá-la num gesto de escárnio. É como se o “nefando”, uma
vez dito ou escrito, se tornasse o princípio oculto de qualquer linguagem,
revelando o fundamento ferino do homem:

4
As referências ao conto “Intestino grosso”, de Rubem Fonseca, serão indicadas pela sigla IG,
acompanhada do número de página.
Pior do que ser assassino... 75

No meu livro Intestino grosso eu digo que, para entender a natureza humana, é preciso que
todos os artistas desexcomunguem o corpo, investiguem, da maneira que só nós sabemos
fazer, ao contrário dos cientistas, as ainda secretas e obscuras relações entre o corpo e a
mente, esmiúcem o funcionamento do animal em todas as suas interações (IG, p. 171).

É talvez aqui, nessa tentativa de chegar até o núcleo recalcado da


brutalidade humana, o sentido da procura de Rubem Fonseca: fazer aquilo
que os cientistas não sabem ou não podem fazer, explicar o funcionamen-
to misterioso de um mecanismo de destruição do “outro”.
Esse é o único diálogo social possível, a única relação viável entre quem
está dentro do Poder e aqueles que são “excetuados” (i.e., “tomados fora”)
dele. E com isso, depois de ter experimentado vários modos de “escrever a
violência”, voltamos à constatação de uma impossibilidade que está no interi-
or de toda possibilidade de testemunhar o horror: num círculo terrível em que
o que resta é uma sensação, angustiante e trivial, de que o humano consiste
apenas na sua desumana inconsistência, no seu puro ser-pela-morte. “Esta
entrevista parece um Dialogue des Morts do classicismo francês, de cabeça
para baixo”, conclui o jornalista. E aquilo que sobra desse diálogo é, de fato,
apenas o montante pago, um tanto por palavra, ao escritor, é a obscenidade do
dinheiro – que foi, aliás, o motor do assalto relatado no primeiro conto de Feliz
Ano Novo – que não pode todavia resgatar a obscenidade da vida nem apagar
a tragédia sem trágico duma relação diária e violenta com a morte.

2. Feliz Ano Novo ou de como se escreve a


violência (II): a exceção

Meios sem fim


Reler Feliz Ano Novo nos tempos sombrios de João Hélio produz não só
uma sensação incômoda de mal-estar. É como se a realidade induzisse a
questionar a literatura, e de modo contundente, contra a certeza codifi-
cada de que a literatura, pelo contrário – como ocorre, por exemplo, na
época clássica, com a tragédia – é um lugar de reflexão e problematização
de um “real” que sempre nos foge. De certo modo, em nosso tempo, o
drama da morte do menino arrastado pelo carro roubado por adolescen-
tes – ou quase um “boneco de judas” desmitologizado e sem dia do aleluia,
no lugar qualquer de uma periferia do Rio, de uma cidade em estado de
76 Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi

sítio – ergue-se como a condição simbólica de um impasse que corta


transversalmente não só o espaço rachado da metrópole, ou o tempo es-
tanque de um presente que não parece passar, mas também todo o uni-
verso social de extremos que vai da elite letrada (que lera os contos de
Rubem Fonseca) aos Perebas e Zequinhas e aos outros homines sacri da
desagregação anômica que contorna – e dá poder de cidadania – o perí-
metro circunscrito da “sociedade civil”.
No entanto, quantas palavras já foram escritas sobre os contos de Ru-
bem Fonseca apontando para o “brutalismo” da violência à flor da pele
nos anos do milagre de chumbo que os torna uma representação suposta-
mente realista e datada, pelo menos em circunstância e contexto, e elas
não salvaram absolutamente nada ou ninguém? E como encarar a sensa-
ção de déjà-vu como “epifania contemporânea”5 que bloqueia um diferen-
cial de tempos e parece apontar para um eterno presente, uma história
estagnada, coincidente com seu fim?
Uma leitura alegórica de Feliz Ano Novo, ainda que dominante e legi-
timamente viável dos contos de Rubem Fonseca, no entanto, reduzir-se-
ia a secundar uma parcialidade da obra cujo potencial crítico – e é isso
que a distância temporal nos deixa enxergar hoje – se revela bem de
outro porte. Verdade é que se nos limitássemos ao conto epônimo que
inaugura a série de narrativas breves de Feliz Ano Novo poderíamos per-
ceber o reflexo do “discurso teórico erudito”, como o define Roberto
DaMatta6, que permeia até excelentes e pioneiras arrumações críticas da
matéria – como a de Gilda Salem Szklo – onde a violência é um efeito da
violência do Estado contra os cidadãos, do surdo choque de classes que
se trava no pano de fundo opaco de uma história que ninguém contará.
A forma como a violência se configura pelo livro como um todo, po-
rém, vai além de uma argumentação referencial que a reduz a um realis-
mo imediato, desprovido, portanto, de duração significativa. Particular-
mente, essas narrativas de Rubem Fonseca, no modo em que dão forma
à violência, fundam, pelo contrário, uma escrita da violência que se
disseminará por narrativas a vir, alastrando-se por multíplices reflexos e

5
Virno, Il ricordo del presente, p. 44.
6
DaMatta, “As raízes da violência no Brasil”, pp. 17-26.
Pior do que ser assassino... 77

cacos em outras representações que tomam como objeto o irrepresentável


da violência7.

O redemoinho da violência
De fato, a violência nos contos de Feliz Ano Novo é uma violência que
não tem uma direção única e detectável. Trata-se mais de uma violência
multidirecional, excêntrica, que resiste a encontrar uma forma unívoca
condizente, tanto horizontal como verticalmente. É uma violência que
sobressai, excede a uma codificação imediata, aflora, estoura, mas tam-
bém afunda e desaparece. No entanto, está presente e bem palpável,
insinuando-se nas narrativas aparentemente digressivas. Um arabesco
que resulta de uma recomposição súbita de uma explosão caótica cuja
origem fica, no entanto, encoberta. A figuralidade que se pode
exemplificar já desde o primeiro conto, como a violência imagética da
riqueza e a violência da matança que nela se enxerta, mas de modo autô-
nomo e sem um elo etiológico, logo reduz a impressão de reflexividade do
factum no fictum. Descontrole de violências e brutalidades que degene-
ram deixando indefinidos suas fronteiras e limites na crueldade sem prin-
cípio, fora da razão, em um estado puro, onde se torna secundário tanto o
sujeito como o objeto dela: “É tão fácil matar uma ou duas pessoas. Prin-
cipalmente se você não tem motivo para isso”8.
A violência parece assim que mais se apresenta do que se representa.
Surgem contos onde ela fica em um plano puramente gratuito, imotivado,
puro – pense-se, por exemplo, em dois contos significativamente duplica-
dos como “Passeio noturno I e II” – onde a violência se desquita de qual-

7
Os exemplos possíveis são incontáveis: do mais flagrante, inclusive pela citação explícita de Feliz
ano velho, de Marcelo Rubens Paiva (e vale a pena lembrar que em Feliz Ano Novo, no conto “74
degraus” aparece o corpo de Alfredo “totalmente separado de sua mente” (p.123) ou os ecos que se
podem captar em outras obras. Penso em Estorvo, de Chico Buarque, e de modo geral no tributo que
a literatura contemporânea deve à lição fonsequiana, pense-se em particular na literatura da
periferia e na literatura marginal. A esse respeito, veja-se a correlação que Renato Cordeiro Gomes
constrói entre Cidade de Deus, de Paulo Lins, e o conto homônimo de Rubem Fonseca, do volume
Histórias de amor (Gomes, “Narrativa e paroxismo: será preciso um pouco de sangue verdadeiro para
manifestar a crueldade?”, pp. 148-9).
8
Fonseca, Feliz Ano Novo, p. 159.
78 Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi

quer caráter instrumental que poderia torná-la “racional” na medida em


que se torna útil para perseguir determinados fins9.
Decaindo da condição de meio, anulando qualquer teleologismo
imaginável, ainda que delirante, a violência assume assim um estatuto ab-
soluto, dissolvendo nitidamente o elo que a relaciona – às vezes até se con-
fundindo – com a força. Essa desmontagem da violência, que é freqüentemente
separada pela narrativa da ação causal que a produz ou mostrando a com-
plexidade dessa relação constitutiva, torna-se assim pervasiva, como uma
vertente própria, imanente do “real”. Por esse viés, ela expõe – põe em um
estado revelador da exceção – uma tipologia de violência que é a do massa-
cre, ou seja, aquela violência onde a ação não possui nenhum outro fim a
não ser si própria10, a violência portanto em um estado puro que se determi-
na quando não há nenhuma outra força de contenção contrária.
É desse modo que Feliz Ano Novo leva a pensar em uma guerra não
representada mas que deve ter se consumado em algum tempo próximo,
se ocorreram as condições do massacre que funciona pela dinâmica uni-
versal da violência absoluta. A guerra subjacente, que funciona em uma
condição de latência, remete para o contexto histórico do tempo, mas
funciona como um realismo oco, um vácuo que se enche de sentido,
fugindo assim às limitações da prosa neonaturalista em voga na época.

A forma da violência, a violência da forma


As narrativas, contudo, correspondem a um mapeamento sutil, a um
projeto que não se reduz a um levantamento sobre o cotidiano de abusos,
cômicos e trágicos, mas bem mais se condensam em caligrafias que não
desgastam o uso das representações, mas, pelo contrário, conduzem uma
meticulosa sondagem dentro do núcleo imperfurável e cego da violência. O
que conjuga então os 15 fragmentos narrativos que espaçam de situações e
temas tão irredutíveis mas, ao mesmo tempo, tão marcados pelo rosto do
horror – assaltos, disfarces, frustrações, vigarismos, assassinatos, chantagens,
suicídios, competições sexuais, canibalismos iniciáticos, o mal com todos
seus banais portanto não culpáveis semblantes – tirando o sinal macroscópico
de um eu que narra sempre, como uma adesão sem distâncias, na primeira

9
Arendt, Sulla violenza, p. 72.
10
Sofsky, Saggio sulla violenza, p. 152.
Pior do que ser assassino... 79

pessoa? O primeiro motivo surge de uma reflexão de pendor antropológico:


o conector de um mal, de uma violência que, se analisada em seus micros-
cópicos componentes, tanto dentro da esfera erudita como na percepção
popular do senso comum, é a canonização de um modo de integrar, de dar
totalização, como observa Roberto DaMatta, a universos vividos e percebi-
dos como fragmentários e sustentados por multiplicidades éticas11.
Por isso, as 15 peças funcionam na economia de um mosaico, singular-
mente mas também em função do conjunto. Ou seja, é verdade que se dá
uma impressão de dispersão em direções incontornáveis da violência, mas
há uma força de coesão que vem da própria montagem da escrita. Há
uma tensão, nos contos, entre conteúdo e forma dos contos, a ser assina-
lada. De fato, a opção pela narrativa breve marca um espaço essencial na
construção de um contrafactum literário que se opõe ao domínio da vio-
lência. De acordo com a diretriz modernista traçada, em campo poético,
por Pau Brasil – que encontraremos ciclicamente nos desdobramentos
pós-modernistas em muitos recantos da história cultural do século XX –,
cada conto de Feliz Ano Novo se articula a partir de uma combinação
funcional, se diria, de um fragmento – pela exigüidade da narrativa –
que porém funciona aforisticamente.
Equacionar fragmento e aforismo de fato constitui uma coincidência
de opostos que confere tensão ao produto. O fragmento é de fato um
deverbal do latim frangere apontando para o resultado caótico de uma
ruptura, de uma libertação de formas, enquanto aforismo é também um
deverbal do grego aphorizen, dividir ou separar, mas, pelo contrário, apon-
ta para uma estrita limitação, de que se extrai o sentido12. Não por acaso,
o aforismo se correlaciona com a insuficiência do pensamento sistemático
peculiar da modernidade e, na sua etimologia básica, significa justamen-
te “definição” (de aphorismos); aliás, ele encontra em Musil a sua mais
nítida e persuasiva enunciação como “o menor inteiro possível”13.
Já partindo da funcionalidade do fragmento, nessa ótica se pode apre-
ciar a distância entre Feliz Ano Novo como um todo e as linhas domi-
nantes da literatura da década que lhe fora contemporânea. De acordo

11
DaMatta, op. cit., p. 42.
12
Susini-Anstopoulos, Françoise. L’écriture fragmentaire: définitions et enjeux, p. 17.
13
Rella, Miti e figure del moderno, p. 58.
80 Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi

com Flora Süssekind, de fato, dupla é a trilha estética que “aprisiona” –


texto e contexto parecem, nessa leitura, funcionar, de maneira signifi-
cativa, por um mesmo compasso – a literatura brasileira dessa conjun-
tura: o naturalismo dos romances-reportagem o de sua transcodificações
fantásticas ou a “literatura do eu” das memórias ou dos depoimentos da
“ego-histoire”14.
Se o contexto referencial motiva e legitima a estreita margem das op-
ções estéticas da época, ainda mais apreciável é o gesto criador de Rubem
Fonseca que canibaliza os traços dominantes do seu tempo por uma escrita
metanarrativa que desmonta os estilemas em voga implicando, aliás, em
suas dobras, um gesto vanguardista, embora meio disfarçado. É sempre a
narrativa na primeira pessoa a se alastrar na superfície, como ocorre nos
contos de Feliz Ano Novo, com evidência macroscópica. No entanto, isso
ocorre com uma reorientação significativa que não cai na armadilha da
pretensão realista, mas pela literatura, pelo pacto manifestamente ficcional,
funda uma representação bem mais durável enquanto já particularizada.
Trata-se de um dos multíplices indícios que remetem para a peculiari-
dade de narrativas fragmentárias mas que se reposicionam em uma com-
binação que desvenda a natureza estética dos textos. De fato, Feliz Ano
Novo funciona, um pouco na contramão em relação às dominantes do
tempo, como um projeto essencialmente barroco – o que revela mais um
elo com a corrente pós-vanguardista – onde o conjunto se dispõe como
uma constelação figural de elementos que instauram em suas partes rela-
ções complexas entre as várias partes, cuja decriptação, no entanto, tor-
na-se essencial para o desvendamento do sentido global do projeto.
O conto como forma eleita da constelação desempenha uma tarefa es-
sencial e engenhosa como dispositivo. A dobra que revela a combinação
semântica dos contos é certamente o desfecho, “Intestino grosso”, que se
torna uma engrenagem mais complexa do que uma simples poética às aves-
sas, induzindo a repensar na obra como um todo15. O conto final revela e
oculta, mas sobretudo expõe, mais do que o conteúdo parodístico da “por-
nografia terrorista”, um índice mais ambicioso: na condição intermediária

14
Süssekind, Literatura e vida literária, p. 42.
15
Szklo, “A violência em Feliz ano novo”, p. 102 e Gomes, “Narrativa e paroxismo: será preciso um
pouco de sangue verdadeiro para manifestar a crueldade?”, p. 145.
Pior do que ser assassino... 81

do autor, que se põe “entre escritor e bandido” (IG, p. 136), afirma-se não
só a representação oblíqua dos interditos referenciais (a repressão, a tortu-
ra, a censura etc.) mas uma configuração da literatura póstuma em relação
aos mitos ainda sobreviventes do Modernismo (“Não dá mais para Diadorim”
– IG, p. 173) como lugar onde o pensamento outro e do outro, o andersdenken,
da cena discursiva apagada, obscena, se resgata representando-se, pelo
que ficou separado, alienado da voz e dos disfarces da razão.
A disjunção que se configura funda assim um modo de leitura dentro
da própria obra, uma dobra justamente, que, em seus paradoxos só apa-
rentes, na verdade revela o rosto de um biopoder – em um tempo em que
o próprio Foucault estava refletindo sobre os mesmos problemas – que
coloca em jogo a vida pela sua conservação negativa16, o que a faz coinci-
dir com um exercício mortífero, de administração da morte (veja-se, por
exemplo, as considerações sobre a “pornografia da morte” do conto, atu-
ando bem mais como uma radiografia da regulação de um poder gover-
nando politicamente o puro processo biológico).
Assim a violência difusa e aparentemente irracional pode ser revista à
luz de uma recodificação teórica, metanarrativa, final como o produto
biopolítico de um ato de poder que sob o aspecto da barbárie, da violên-
cia do massacre de uma guerra brutal mas irrepresentada, expõe uma
sutil, encoberta lucidez. Tal funcionamento, no entanto, não emerge por
um ato imediatista de denúncia, mas pela ação do texto: o conto de Feliz
Ano Novo estrutura-se a partir de um gesto soberano, de inclusão e ex-
clusão dentro do foco narrativo. A providência básica e crucial dos con-
tos é que sua exposição da violência ocorre através de uma exceção que
o autor – pelo poder de bando da escrita que evoca, aliás até doutrinari-
amente para si – pratica perante o nosso olhar de leitores.

Conto e exceção
De certo modo, a forma do conto Feliz Ano Novo corresponde a um
exercício ou movimento de poder. O modo, não só o conteúdo portanto,
plasmaria a escrita da violência, tornando assim, poderíamos dizer,
consubstanciais a forma e os temas, tanto que acabam fundando uma
modalidade de representação não intransitiva, mas transponível a outros
16
Esposito, Bíos: Biopolitica e filosofia, p. 42.
82 Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi

contextos e proporcionando forma ao informe do massacre. Euclides ti-


nha ensaiado essa modalidade fundacional da escrita da violência em Os
Sertões, que continuam a ser o limiar das escritas do massacre17.
A forma literária do conto e o funcionamento da exceção convergem
e se combinam, como condição peculiar da escrita de Feliz Ano Novo:
vale a pena assinalar que a combinação entre as duas formas não é abusiva
no campo da teoria. De fato, Paolo Virno, recentemente ao estudar o
mote de espírito, o Witz, não em perspectiva freudiana, mas do ponto de
vista de uma filosofia lingüística e política, detecta um paradigma
subjacente, um verdadeiro diagrama – no sentido que Peirce dá ao termo,
ou seja, de um signo que reproduz em miniatura a estrutura de um fenô-
meno – da ação inovadora que se projeta na compreensão não só de
muitos campos de conhecimento lógico-lingüísticos mas também da di-
mensão mais ampla da praxe humana e política18. Nesta linha, observa
que a argúcia verbal, evidenciando na língua o fragmento residuário e
não recalcável de uma espécie de “estado de exceção”, ou seja, instau-
rando uma simetria entre plano gramatical e plano empírico, entre língua
e praxe humana (a história, a vida pública, a esfera pessoal etc.), desven-
da o funcionamento justamente não só lingüístico da modificação de uma
regra, isto é, da ação inovadora19.
O conto de Rubem Fonseca em Feliz Ano Novo funciona de certo modo
também como um diagrama. O que se insinua conjeturalmente aqui é que
sua construção consegue dar forma à violência não só em virtude do efeito
da representação, mas particularmente pela morfologia da representação em
si: a escrita da violência é uma escrita proporcionando a representação da
violência, mas é também uma escrita praticando de certo modo um ato de
violência soberana, ou seja, por uma inclusão exclusiva, para ficar no para-
doxo da definição do estado que funda a soberania pelo limiar da exceção20.
Se analisarmos, do ponto de vista da dinâmica biopolítica, contos exem-
plares como “O outro”, percebemos que o poder se funda na vida nua do
excluído, na condição da sacratio, como atesta de maneira incisiva o seu

17
Hardman, Morte e progresso, p. 129.
18
Virno, Motto di spirito e azione innovativa, pp. 10-1.
19
Id., p. 23.
20
Agamben, Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita, p. 23.
Pior do que ser assassino... 83

assassinato “sem culpa” (“que culpa eu tinha de ele ser pobre?”21) parado-
xalmente reincluído na condição de corpo massacrado, de carne, onde
revela os perturbadores traços da sua invisível identidade de menino
marginal. Tratar-se-ia de mais um ato de violência soberana, na verdade
um ato de bando – que é o seu elo fulcral com a vida nua, a vida sacra –
anulando uma vida indigna, sem valor ou até com um antivalor (a molés-
tia que provoca) se não ocorresse o que poderíamos chamar de o “com-
plexo Dom Casmurro”. Ou seja, quem nos dá acesso ao saber é o próprio
detentor do poder soberano que decide sobre a vida do outro excluído,
portanto inexistente e desidentificado: o narrador na primeira pessoa é
que pratica a exceção e não há alternativa ao conhecimento – exata-
mente como no romance machadiano onde tudo o que se sabe é proporci-
onado pelo Bentinho – a não ser o seu poder de nos incluir por uma
exclusão, aplicando portanto a exceção. Um poder justamente de bando,
como dupla força que atrai e rejeita conjugando os dois lados, o fora e o
dentro da exceção soberana, o poder exercido lucidamente por um autor
que se coloca “entre escritor e bandido”, que remete significativamente
para a anfibologia própria do termo bando22.
Assim a violência se expõe – exposição é uma palavra coincidente com
exceção –porque não só é exibida mas praticada pela forma exemplar do
conto, que na exigüidade dos movimento proporciona as condições, em
relação ao horizonte da leitura, do exercício soberano. Os contos de Feliz
Ano Novo funcionam como um diagrama de um poder que se afirma pelo
uso de uma violência que cria uma simetria complexa entre o plano da
escrita e o plano de um “real” que escoa mas deixa rastros na urdidura
textual. É assim que se funda um realismo pela arte, um uso máximo do
poder (soberano) da escrita artística e experimental –caligráfica e
arabescada – que funda uma congruência enviesada mas “verdadeira”
(na acepção que se confere ao termo no conto final, como possibilidade
relativa) de funcionamento entre o fora e o dentro do texto. E ainda
assim ficará sempre, perante toda a violência que não se retém nas ma-
lhas das letras, o resto de uma “história dos subúrbios” por escrever.

21
Fonseca, “O outro”, em Feliz Ano Novo, p. 90.
22
Agamben, op. cit., p. 123.
84 Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi

3. O fim do inacabado
(quando as leituras se entrecruzam)
Mais de trinta anos nos separam da primeira edição de Feliz Ano Novo.
Trinta anos podem ser muitos: é o tempo de uma geração e foi, no nosso
caso, o tempo ordenado e caótico em que tanta coisa mudou e tanto
ficou igual ao que era. Acabou o “século breve”, caiu o Muro e caíram
(na verdade, desabaram pela ação de aviões-bomba e não de “picaretas
jubilosas”) as Torres gêmeas, marcando, respectivamente e por conven-
ção, um fim e um princípio. No Brasil, no entanto, caiu a Ditadura e teve
tempo de entrar em crise um pouco também a Democracia. Trinta anos
no compasso histórico do Brasil é um tempo enorme, ainda mais dilatado,
onde a História se desdobra com um ritmo de certo modo frenético.
Entre as coisas que não mudaram podemos incluir, com certeza, aquela
violência presente, sobretudo, no universo urbano que nos contava e que
continuou nos recontando, nos seus livros sucessivos, Rubem Fonseca. A
violência das periferias, aquela que se coloca nas margens porosas da cida-
de e que, às vezes, invade e atinge também os bairros residenciais. Dupla
violência, na verdade, em que à Força do Poder se contrapõe a brutalidade
dos delitos. E aquilo que se inscreve nessa duplicidade é aquela nebulosa
inextricável de atos e reações, de assaltos e defesas, de manifestações não-
homogêneas de uma Força maligna em que se suspende algo de ainda mais
trágico que é o não-trágico do hábito, ou melhor, do acostumar-se progres-
sivo a um regime (ou sistema) de violência cotidiana que torna o hábito,
não um modo de ser, mas a própria essência da sociedade – não, em suma,
um ter (o que permitiria uma forma de controle cultural ou político) mas
um ser, aquilo que entra a fazer parte da natureza humana.
Certo, a história contribuiu para essa transformação, o contexto global
em que vivemos é sempre mais imbuído de violência, de tentativas de
exportar a democracia na ponta das armas ou de formas de rebelião que
atingem também as cidades, teoricamente mais evoluídas, do Ocidente.
O protesto das banlieues, no segundo caso, mostrou como a política de
banimento (como indica o próprio termo, significando, na origem, justa-
mente os “lugares de banimento”), a sensação de ser “a-bandonados”
pode provocar uma reação “bandida”, enquanto, no primeiro, o
reaparecimento dos campos de concentração (na ex-Iugoslávia, no Darfur
como em Guantanamo e em tantos outros lugares do mundo) confirma
Pior do que ser assassino... 85

que o “estado de exceção”, a permanência da condição do homo sacer –


resultado duma bio-política tomando conta da vida na sua inteireza “fisi-
ológica” – continua sendo a regra, ainda hoje.
Podemos, eventualmente, nos interrogar sobre a quantidade e a quali-
dade da violência presente na época de composição de Feliz Ano Novo e a
que vige nos tempos de hoje. A nossa impressão, porém, é que os marcos (os
“verrous de sûreté”, como os definia Roland Barthes) saltaram: como não há
mais distinção, no âmbito do comportamento violento, entre uma situação
local e uma condição global, entre indivíduos e coletividade, entre Poder
nacional e Poder transnacional, assim fomos perdendo aos poucos – e a
partir da Shoah, evidentemente23 – os termos para montar ou estabelecer
uma taxonomia do horror. E aquilo que nos resta (como freqüentadores da
literatura) é apenas o estudo dos modos de inclusão, de descrição ou de
figuração do Mal no interior da escrita literária: um estudo, talvez, da retó-
rica da violência, que tem, em Rubem Fonseca, um dos seus cultores mais
antigos e experimentados, mas que não pode se limitar a ele. Porque –
como fica claro nos dois breves ensaios aqui apresentados, dialogando sobre
um oco, sobre uma falta – a violência se concentra e se dispersa, dispõe-se
em círculo e se alastra, dobra-se e desdobra, assume a forma de um rede-
moinho engolindo e apagando qualquer linguagem normativa, qualquer
possibilidade de identificá-la e de fixá-la, na sua anomia e no seu anonima-
to, dentro da obra de um só escritor. Não existindo uma testemunha inte-
gral, somos, enfim, levados a testemunhar apenas a nossa insuficiência.

Roma-Bologna, abril de 2007.

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23
Seligmann-Silva, “Reflexões sobre a memória, a história e o esquecimento”, pp. 72-6.
86 Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi

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Recebido em maio de 2007.


Aprovado em junho de 2007.

Ettore Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi – “Pior do que ser assassino...”. Estudos de Literatura Brasileira
Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 67-86.
Jogo de xadrez: representando a
violência para crianças
Rosana Kohl Bines

A leitura é, antes de mais nada, uma desforra da infância.


Vincent Jouve, A leitura

O tema da precariedade da linguagem face à tarefa de narrar eventos de


extrema violência é onipresente na literatura crítica que trata das barbáries
contemporâneas. A pergunta “em que língua?” contar a matança generali-
zada da Shoah ou a tortura e desaparecimento de presos políticos no período
das ditaduras latino-americanas torna-se ainda mais complicada quando o
destinatário da narrativa é a criança. Se considerarmos o aspecto de orien-
tação futura da memória, como insiste Geoffrey Hartman, quando lê os
testemunhos da Shoah como uma espécie de contrato transgeracional, em
que o sobrevivente sobrevive justamente para transmitir o relato do que
viveu a uma nova audiência que possa transformar a narrativa em experiên-
cia compartilhada afetivamente1, a tensão envolvida neste “esforço comu-
nicativo”2 é tão maior quando à criança é endereçada. Como conciliar a
densidade da matéria narrada com a legibilidade que se espera de um texto
produzido para crianças? E ainda, como relatar os aspectos mais terríveis do
real para um público, a quem a História convencionou proteger?
Consideremos a especificidade construída historicamente para o uni-
verso infantil. A partir do século XVIII, com a ascensão da ideologia
burguesa, a criança passa a ocupar um lugar tutelado na sociedade. É
vista como um ser em miniatura e ainda incipiente, em fase preparatória
para o mundo adulto e suas complicações. No universo da literatura, o
tratamento pueril dedicado à criança gerou um movimento de “adapta-
ção” dos contos folclóricos, que originalmente não se destinavam ao pú-
blico mirim, tampouco discriminavam temas difíceis como a morte ou a
doença. Tratava-se de uma literatura de forte teor político, que tinha
como pano de fundo os conflitos entre camponeses e senhores feudais. As

1
Hartman, “Holocausto, testemunho, arte e trauma”, passim.
2
Id., p. 217
88 Rosana Kohl Bines

narrativas folclóricas encenavam este mundo de opressão, acenando com


uma possibilidade de inversão de forças. Aos oprimidos – os Joãos-Bobos,
os irmãos caçulas, os Pedro Malasartes, a garantia de um final feliz, e aos
opressores – reis, soberanos, lobos em pele de cordeiro – o castigo mereci-
do. Pela pena talentosa dos irmãos Grimm, de Charles Perrault e de Hans
Christian Andersen, os contos folclóricos se transfiguram em contos de
fada, cambiando também de função. A literatura deixa de ser um espaço
de contestação do poder e de dramatização da violência, para assumir pau-
latinamente a tarefa moralizante de transmissão dos valores burgueses que
visam conformar a criança a um papel social tutelado pelo adulto3.
As catástrofes do século XX e XXI, de que tantas crianças são testemu-
nhas e vítimas, abalam forçosamente esta visão idealizada da infância e obri-
gam à formulação de novas linguagens e categorias interpretativas. O desafio
de aproximar literariamente o universo do sofrimento da sensibilidade infan-
til implica no embate com este imaginário sedimentado acerca da incompa-
tibilidade entre a criança e o mundo da barbárie. Embate delicado, porque
não se trata de negar à infância qualquer especificidade, expondo-a sem
critério à matéria ferida da memória. Trata-se antes de implicar o jovem
leitor na conversa com o mundo, valorizando a complexidade de sua experi-
ência, de seu repertório de vivências e leituras e a sua prontidão para a
escuta da dor, que se dá no terreno seguro do texto, do lado de cá da vida.
Pois quando a literatura conta o passado catastrófico está já em outro lugar,
alojada no futuro, trabalhando com “o que ainda não é”, como diz Ricardo
Piglia4. A idéia fundamental é a de que os sentidos não pertencem ao passa-
do, não estão incrustados no evento que se relata. Os sentidos estão na pos-
sibilidade sempre renovada de acercar-se da experiência e reconstruí-la des-
de um outro lugar.

3
Para um desdobramento da discussão sobre o lugar historicamente construído para a criança, ver
Ariès, Phillipe, História social da criança e da família. Para o impacto desta discussão no âmbito da
literatura infantil, ver Ponde, Glória Maria Fialho, “Literatura infantil e realidade”.
4
Transcrevo o trecho onde se insere a citação: “A escrita de ficção se instala sempre no futuro,
trabalha como que ainda não é. Constrói o novo com os restos do presente. ´A literatura é uma festa
e um laboratório do possível`, dizia Ernst Bloch. Os romances de Arlt, como os de Macedônio
Fernández, como os de Kafka ou os de Thomas Bernhard são máquinas utópicas, negativas e cruéis
que trabalham a esperança” (grifo meu). PIGLIA, Ricardo, O laboratório do escritor, pp. 71-2: Minha
leitura da obra de Piglia foi enriquecida pela pesquisa de Mauro Gaspar Filho, doutorando em
Estudos da Literatura pela PUC-Rio.
Jogo de xadrez 89

Tal é o pressuposto do livro A redação, que recebeu o prêmio Unesco


2003 de Literatura Infantil e Juvenil em Prol da Tolerância5, do escritor
chileno Antonio Skármeta (mais conhecido pela adaptação cinemato-
gráfica de sua obra O carteiro e o poeta). A história acompanha um meni-
no latino-americano (cujo país não é especificado), à época da ditadura
militar. O enredo é enxuto: o menino Pedro um dia vê o pai de um amigo
seu ser levado por soldados com metralhadoras. A partir daí desata a
fazer perguntas aos amigos e aos seus pais, sobre o porquê daquele estado
de coisas. Intui que os seus pais são contra a ditadura pelo clima de
segredo que impera na casa, pelo choro descontrolado de sua mãe, pelas
frases lacônicas de seu pai, e porque toda noite eles colam o ouvido no
rádio para saber das notícias que chegam de muito longe, em transmissão
chiada. O clímax acontece com a chegada de um oficial à escola de
Pedro, convocando todas as crianças a participar de um concurso de re-
dação. O tema é: “O que minha família faz todas as noites”. Da sensibili-
dade do menino em compreender o que está em jogo com a escrita da
redação, depende a segurança de sua família. A narrativa sustenta o
suspense até a última página, quando Pedro lê em voz alta para os seus
pais o conteúdo do texto que produziu e entregou ao militar. Não há
como definir a priori o desenlace da narrativa, já que o texto articula
diferentes perspectivas, cabendo ao leitor equacioná-las de modo a fazer
suas previsões e antecipações do enredo. Do ponto de vista dos pais, tudo
leva a crer que o menino cairá na arapuca e descreverá a cena da família
junto ao rádio todas as noites, já que o silêncio com que devolvem as
perguntas sempre diretas de Pedro contribui para a construção da ima-
gem convencional da criança tutelada, a quem se deve proteger dos as-
pectos negativos do real. Quando o menino quer saber “eu também sou
contra a ditadura?” (AR, p. 19)6, a mãe responde que “... criança não é
contra nada. Criança é simplesmente criança. Garoto da sua idade tem é
que ir para a escola, estudar muito, brincar e ser carinhoso com os pais”
(idem). A esta visão preservada da infância, sobrepõe-se a curiosidade in-
saciável do menino, que usa o modo interrogativo para apreender o mun-

5
Skármeta, A redação. A tradução de Ana Maria Machado foi premiada pela Fundação Nacional
do Livro Infanto-Juvenil em 2003.
6
Será empregada a sigla AR sempre que for feita referência à obra A redação, de Antonio Skármeta.
90 Rosana Kohl Bines

do, e o aplica inclusive para questionar as regras básicas da redação impos-


tas pelo oficial: “Senhor, a gente pode apagar, se errar? Pode escrever com
caneta, senhor? Pode fazer em folha quadriculada, senhor?” (AR, p. 22).
O narrador habilmente postula uma distância irônica de todas as fa-
las, inclusive da do menino, de modo que cabe ao leitor decidir, por exem-
plo, se a linguagem polida e subserviente da criança que faz questão de
dizer “senhor” a cada pergunta é emblema de sua vontade de conferir e
adequar-se às regras do jogo ou é uma forma de irritar o oficial com a sua
língua afiada. Ingenuidade ou deboche?
As estruturas textuais mantêm alerta a consciência crítica do leitor,
que, obrigado a transitar entre pontos de vista distintos, é levado a tomar
certa distância com relação à história contada. É assim que lemos com
desconfiança a afabilidade do militar que “convida” os alunos a partici-
par do concurso de redação, encorajando-os a escrever “livremente” so-
bre quem vem visitar os pais à noite ou sobre o que eles comentam quan-
do vêem televisão. A ativação de um repertório lexical pretensamente
democrático por parte do oficial contrasta, na economia narrativa, com
as respostas acuadas por parte dos alunos. Ao “convite” do oficial para
que as crianças se sentem e comecem a trabalhar, o narrador aloja a
pequena frase: “Os meninos obedeceram”(idem). Segue-se a descrição
da linguagem corporal dos alunos, contida e tensa: mordem os lápis, roem
as unhas, franzem a testa, põem a língua entre os dentes. No atritar dos
dois léxicos, firma-se um contrato de leitura que oferece ao leitor uma
latitude ampla para a interpretação. Há espaço de sobra para a conjectura,
móvel indispensável ao fenômeno literário. O ato de leitura já foi equipa-
rado mais de uma vez, e com justa causa, à estrutura de um romance
policial e o leitor, assemelhado a um detetive, um caçador de pistas fal-
sas7. A comparação é rentável para a narrativa de Skármeta, cujo narrador
parece contar sempre ao menos duas histórias. Aquilo que o texto auten-
tica como enredo linear, e as incertezas que dissemina ao longo do per-
curso. O estratagema é plantar algumas certezas para o leitor, desviar sua
atenção, de forma a liberar o narrador para cometer seus pequenos deli-

7
Ver a propósito, Piglia, O laboratório do escritor. O romance policial é também foco da reflexão de
Eco, em Pós-escrito a O nome da rosa.
Jogo de xadrez 91

tos ao contar uma outra história paralela e invisível. Se as certezas do


enredo asseguram ao leitor um investimento emocional e encorajam seu
mergulho desabrido no texto, os pequenos “crimes” narrativos estimulam
a vigilância distanciada – o leitor se observa lendo e revê constantemen-
te suas posições diante das estratégias do narrador. É através deste movi-
mento pendular que oscila entre envolvimento afetivo e recuo crítico,
entre implicação e observação que o texto se faz agir sobre o leitor, tor-
nando a ato de ler uma experiência viva. A representação da violência se
inscreve neste esquema de duplo efeito. Vejamos mais detidamente.
O livro apresenta três cenas de produção de linguagem para dizer a
violência: a linguagem da ordem; a linguagem do silêncio; a linguagem da
invenção. A ordem está presente de forma insidiosa em várias instâncias
narrativas. Ela se encarna nos usos oficiais da linguagem gritada pelos
soldados que prendem o pai do amigo de Pedro. São comandos curtos,
intransitivos como “Para trás” ou “Cuidado!”. Tais palavras de ordem blo-
queiam a possibilidade de diálogo e hierarquizam as relações,
potencializando a força impositiva da linguagem do mando. De forma mais
sutil, a ordem se instala na linguagem controlada dos pais de Pedro, feita
igualmente de frases curtas e intransitivas, que procuram desesperada-
mente estancar a linguagem, encerrar o assunto. Quando Pedro comenta
em casa a prisão do pai de seu amigo, arma-se um diálogo sem diálogo:

– Você acha que vai aparecer na televisão? – perguntou Pedro.


– O quê? – perguntou o pai.
– Seu Daniel.
– Não [...]
– Por que mamãe está chorando? [...]
– Não estou chorando.
– Alguém te fez alguma coisa? – perguntou Pedro.
– Não – disse ela (AR, p. 16).

A ameaça do patrulhamento ideológico interdita a linguagem da intimi-


dade, submetendo-a perversamente aos mesmos códigos de contenção da
linguagem oficial. A palavra “desafetivizada” aumenta a voltagem da vio-
lência na narrativa, na medida em que encurrala seus personagens em po-
sições solitárias, impedidos de fazer conexões – de sentido e de afeto. Cada
92 Rosana Kohl Bines

“não” proferido pelos pais em resposta às interpelações do menino é a inter-


rupção de uma outra narrativa possível, que nunca vem à tona. A utopia de
uma conversa leve e bem-humorada em torno da mesa de jantar ou um
bate-papo franco sobre o as pressões da ditadura se instalam nas dobras
deste silêncio terrível que faz da intimidade familiar uma elipse gramatical.
É uma elipse que tem peso, densidade e volume, porque nela está suprimido
um sem número de histórias não atualizadas pelo relato. Neste sentido, aquilo
que não é dito – o indizível – abarca uma gama ampla de narrativas e
inflama a imaginação. O indizível esconde a utopia da palavra liberta; de-
nuncia a periculosidade do narrar; formula na mesma moeda uma resposta
crítica ao contexto histórico que impõe o silêncio, duplicando-o na lingua-
gem daqueles que são obrigados a calar, mas calam astutamente para burlar
a vigilância. O indizível é, portanto, imposição, sofrimento, inação, gesto,
resistência, utopia, astúcia, estratégia de sobrevivência. Quando os pais de
Pedro não respondem às suas dúvidas, sentimos a brutalidade da comunica-
ção interdita, o sangue-frio da linguagem, o esmaecimento do afeto e a
contraface urgente do amor e do instinto de proteção da cria.
As ilustrações do espanhol Alfonso Ruano são magistrais na captura
deste universo enquadrado e racional, habitado por criaturas estáticas,
que não ousam olhar umas nos olhos das outras, de onde pulsa a vida
sufocada. A cada página, uma moldura diferente contém cenas de inten-
so teor emocional, protegidas de qualquer derramamento. Seja no espaço
público, seja no espaço privado, as personagens mantêm o corpo insupor-
tavelmente rígido e deitam os olhos baixos, criando redomas
intransponíveis. O efeito de clausura não se propaga apenas no nível
intradiegético. É como se as ilustrações quisessem expulsar também o
leitor da cena, acirrando o abismo entre a matéria narrada e a audiência.
Miramos algo que não nos mira de volta, que se fecha a nossa contempla-
ção. Ou que dá a contemplar justamente o abismo que nos aparta da
cena. A exceção, que confirma a regra, é a imagem do menino Daniel,
no episódio em que seu pai é levado preso. A criança nos encara de
frente em meio a uma multidão de soldados e anônimos, de quem só
vemos as costas. Seu olhar é uma interpelação, nos força a ver o abismo.
Comprimido por entre os ombros largos e os fuzis dos soldados, que emol-
duram o seu desamparo, o menino segura nas mãos um molho de chaves
da mercearia de seu pai. Como é possível a vida seguir depois disto? A
Jogo de xadrez 93

pergunta nos atravessa com violência e, a um só tempo, engaja-nos emo-


cionalmente com o destino do menino, enquanto nos rouba a cumplici-
dade possível pelo enquadramento da dor no espaço constritivo da mol-
dura que nos aliena. O menino, quase tão próximo, está fora do nosso
alcance. E isto dói. Dói porque a narrativa estimula a simpatia e identifi-
cação com as crianças da história, cujo destino incerto nos mobiliza na
torcida por um final feliz, como dita a convenção dos contos infantis, que
Skármeta manipula com maestria. Do ponto de vista estilístico, isto signi-
fica dizer que o texto nos oferece, habilmente, percursos de leitura já
conhecidos, porém introduz desvios violentos, materializados na frieza
visual e contenção discursiva, feita de “orações inconclusas” e de “voca-
bulário extraviados”, que freiam o virar das páginas e frustram a comu-
nhão desejada, desprogramando a recepção prevista. Isto gera um des-
conforto produtivo. O leitor sai do seu eixo, ganha uma margem de movi-
mentação e parte em busca do que Nelly Richard chama de “planos de
legibilidade”8 para assimilar a matéria violenta, ao mesmo tempo em que
busca ressignificar a sua própria experiência de leitura.
É um caminho inteligente e generoso, porque não exclui até mesmo os
leitores mais ingênuos, atentos apenas à história clássica dos fracos con-
tra os fortes. O narrador oferece os subsídios convencionais para a identi-
ficação afetiva com o menino protagonista – Pedro é inteligente, tem a
língua afiada, senso de humor, joga bem futebol, é solidário com os ami-
gos, preocupado com os pais e sozinho em sua incompreensão do mundo.
Enfim, é um herói construído para conquistar nossa simpatia imediata.
Mas uma vez enredados na trama, tornamo-nos prisioneiros também de
uma outra história e de uma outra estrutura dramática.
O interesse de A redação reside justamente na capacidade do texto
em sustentar essa estrutura dramática, construída a partir do binômio
improvável “menino-ditadura”, atritando estes dois universos díspares para
a articulação de uma só história que englobe aquilo que, por princípio,
não deveria estar junto. O par “menino-ditatura” se arma de forma tensa
no relato, como duas peças que precisam dividir o mesmo espaço, mas
cujo encaixe exige esforço narrativo. O narrador se aproxima, com um

8
As expressões entre aspas são de Richard, “Poéticas da memória e técnicas do esquecimento”, p. 333.
94 Rosana Kohl Bines

misto de afetividade e prudência, do dia-a-dia do menino Pedro, descre-


vendo com minúcia aquilo que Roland Barthes chamaria de “notação
insignificante”9. Assim, ficamos sabendo do jogo de futebol com a bola de
plástico no campinho do bairro, do pão com geléia engolido às pressas no
café da manhã, da pipa azul presa nos galhos de uma árvore, ou da unha que
o amigo de escola rói e cospe no chão. Tais “pormenores inúteis”, para seguir
com a terminologia de Barthes, produzem um “efeito de real”, tão mais
fantasmagórico na medida de sua precariedade. O real não se sustenta como
tal. Mais do que uma proposição semiológica isenta sobre a ilusão referencial,
ou seja, a idéia de que o pormenor descritivo não aponta para o real em si,
mas para a categoria do real, em A redação o recurso descritivo ganha uma
dimensão assustadora – é o veículo por onde se infiltra o perigo. Na econo-
mia do texto infantil, a notação insignificante funciona como uma espécie
de lobo-mau desencarnado e disfarçado em linguagem, sempre à espreita
para, no menor deslize, fazer desintegrar o mundo do pequeno herói.
O texto caminha inescapavelmente para o encontro difícil entre o uni-
verso infantil das brincadeiras cotidianas e a violência do estado ditatorial.
A força impositiva da repressão militar desautoriza o estatuto do real para a
criança, abalando os alicerces que até então sustentavam o seu estar-no-
mundo: a estabilidade familiar, a rotina dos jogos infantis, a escola, o grupo
de amizades. Tudo muda, nada é trivial, o real já não é passível de reco-
nhecimento. É com distanciada ironia que o narrador descreve os porme-
nores insignificantes da vida cotidiana, toda ela infiltrada por aconteci-
mentos excepcionais. O corriqueiro e o estado de exceção são inventariados
lado a lado, indistintamente, em um único parágrafo:

Passou uma semana, uma árvore da praça caiu de velha, o caminhão do lixo ficou cinco
dias sem passar e as moscas tropeçavam nos olhos das pessoas, o Gustavo Martinez da
casa em frente se casou e os vizinho ganharam uns pedaços de bolo, o jipe voltou e
prenderam o professor Manuel Pedraza, o padre não quis rezar a missa no domingo, no
muro da escola apareceu escrita a palavra “resistência”, Daniel voltou a jogar futebol e fez
um gol de bicicleta e outro de lençol, os sorvetes subiram de preço e Matilde Schepp,
quando fez nove anos, pediu a Pedro que lhe desse um beijo na boca (AR, p. 30).

9
Barthes, “O efeito de real”, p.159.
Jogo de xadrez 95

É eficaz o emprego de uma linguagem isenta de qualquer convulsão,


que desdramatiza e expõe a violência banalizada. O recurso do humor tam-
bém contribui para quebrar a recepção convencional, conferindo leveza a
um cenário em que o riso soa deslocado, causa desconforto, mas é também
fonte de alívio e catarse emocional. A pressão da violência que se alastra
por todos os espaços da vida cede diante dos casos divertidos da infância,
que recusa a se render. Assim o texto respira e também o leitor. Por isto a
sensação que poderia ser desorientadora, já que tudo está fora do lugar ou
fora do tom, jamais atinge níveis extremados. O mérito do texto é manter
dois discursos inconciliáveis funcionando simultaneamente, sem harmonizá-
los, por um lado, e sem escancarar o descompasso, por outro. Ainda que
esta seja uma história de incompatibilidades: entre a criança e o mundo da
barbárie, entre a família e o desamparo, entre o leve e o pesado – dribla-se
o desacerto pela linguagem da invenção, que reabilita a felicidade de nar-
rar10 e reabre a dimensão do futuro para deixar entrar a vida. Na última
página do livro, em desfecho surpreendente, o menino Pedro lê para os seus
pais a redação que escrevera a pedido do oficial militar:

Quando meu pai volta do trabalho, eu vou esperá-lo no ponto de ônibus. Às vezes,
minha mãe está em casa e quando meu pai chega ela pergunta quequiouve meu bem,
como foram as coisas hoje. Tudo bem diz meu pai, e com você, o de sempre responde
minha mãe. Então eu saio para jogar futebol e adoro fazer gol de cabeça. Depois minha
mãe chega e diz tá na hora Pedrinho vem que a janta tá na mesa, e a gente se senta e eu
sempre como tudo menos a sopa que eu detesto. Depois toda noite minha mãe e meu
pai sentam no sofá e jogam xadrez e eu termino o dever de casa. E eles continuam
jogando xadrez até a hora de dormir. E depois, depois eu não posso contar porque já
estou dormindo (AR, pp. 34-5).

A redação é uma obra-prima de ironia e dissimulação. O menino usa


da astúcia própria dos tricksters infantis – como o jabuti, a raposa, o maca-

10
A expressão “felicidade de narrar” é derivada do pensamento de Maurice Blanchot sobre a escrita
do desastre. Segundo Blanchot, em L`écriture du desastre, a catástrofe promove a “extinção da
felicidade de falar”, porque inviabiliza a linguagem como processo comunicativo, tornando-a opaca
e intransitiva. Há uma descontinuidade radical entre as palavras e as coisas, entre o presente da
linguagem e o passado traumático, entre o sobrevivente e a audiência apartada da experiência
catastrófica, que interdita a fluência narrativa e gera uma escrita fragmentária.
96 Rosana Kohl Bines

co – que vencem o antagonista mais forte pelo jogo da esperteza. O tru-


que aqui é duplicar na escrita o imaginário pueril que se espera da crian-
ça, operando por debaixo do pano um deslocamento de sentido, que tra-
paceia e contradiz a imagem postulada. Os erros ortográficos, os
coloquialismos que simulam a linguagem oral, as palavras redundantes,
tudo colabora para a construção de um perfil ingênuo, acima de qual-
quer suspeita. Que a ingenuidade tão prezada pelos pais de Pedro, quan-
do lhe negam acesso à informação, tenha sido justamente aquilo que os
salva a todos é um golpe de mestre em direção ao final feliz. Porque a
redação obriga os pais de Pedro a rever a insuficiência de suas noções de
infância, reconectando-os com o seu filho através da linguagem da in-
venção, tomada de empréstimo à criança. Os pais entram no jogo da farsa
consentida: “Pedro olhou para os pais e viu que os dois estavam sorrindo.
– Bom – disse o pai –, por via das dúvidas, vamos ter que comprar um
jogo de xadrez. Nunca se sabe...” (AR, p. 35).
Pela via da ficção, é possível voltar a imaginar uma outra história,
senão para o país, ao menos para aquela família, re-unida pela satisfação
de jogar com as palavras. Deste modo, face à aspereza do real, a litera-
tura resgata seu poder encantatório, de nomear mundos possíveis e,
pela nomeação, de fazê-los surgir de fato. Como o título original do
livro antecipa – La Composición –, a ficção ajuda a compor a utopia. As
peças do xadrez imaginário, se posicionadas com sabedoria no tabulei-
ro, jogam a favor da vida e a favor do leitor. A redação apresenta a
violência, mas não se curva a ela. O livro faz uma aposta na infância e
na criança que um dia fomos (e que ainda lê em nós) de que é possível
vencer a partida.

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Recebido em maio de 2007.


Aprovado em junho de 2007.

Rosana Kohl Bines – “Jogo de xadrez: representando a violência para crianças”. Estudos de Literatura
Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 87-97.
Nicolas Guillén: as Elegias antilhanas
e a poesia em dilaceramento
Vera Lins

Não buscar a realidade nem dela fugir, mas produzi-la e com


mais razão produzi-la com sua destruição.
Karl Kraus

La fraternité n’est pas un mythe.


Lautréamont

Nicolás Guillén é um poeta de quem tinha lido, nos anos 1970, um


livro, El gran zoo, mas do qual não me lembrava mais. É fácil confundi-lo
com Jorge Guillén, poeta espanhol leitura de João Cabral, embora sejam
poéticas muito diferentes. Até que, por acaso, encontrei as Elegias anti-
lhanas, em espanhol e francês, numa publicação da editora Seghers, de
1955. O livro pertenceu a Ribeiro Couto, amigo de Manuel Bandeira,
poeta que fez uma recepção ao cubano quando este esteve no Rio de
Janeiro em 1947. No mesmo ano, Nicolás Guillén começou a escrever a
elegia mais impressionante do livro, a “Elegia a Jesús Menendez”, em que
a violência de que fala o poema cria um tumulto que explode os limites
entre prosa e poesia, faz o poema se estilhaçar na página, incorporando
cotações de ações na bolsa e variando da canção ao verso livre e ao poe-
ma em prosa. Nela tudo é ritmo e, embora Guillén fosse um escritor
engajado, a relação poético-política se faz aqui também na maneira como
a enunciação se faz apresentação, “impõe o reconhecimento de uma
significância imediata no sensível”1.
Guillén, poeta nacional depois da revolução, é voz crítica na Cuba de
Batista (1934-52), que a escancara à exploração pelo capitalismo norte-
americano. Suas palmeiras sangram, diz o poeta, que nasce em 1902 e

1
Rancière, Políticas da escrita, p. 109. Ver também, do mesmo autor, Malaise dans l’esthétique.
100 Vera Lins

morre em 1989. Jornalista, colabora em várias revistas cubanas, e seu


primeiro livro, Motivos de son, é de 1930. Em 1937 publica, no México,
depois de ter estado na Espanha, então em guerra civil, España: poema en
quatro angustias e una esperanza. Entre 1945 e 1947, faz uma viagem pela
América Latina, considerada um tipo de auto-exílio. Em novembro de 47
está no Rio de Janeiro. Os jornais da cidade, de Minas e de São Paulo
noticiam sua vinda, e críticos, como Sérgio Milliet, e vários poetas tradu-
zem seus versos e comentam sua poesia.
Manuel Bandeira faz um discurso em sua homenagem na Academia
Brasileira de Letras, na quinta feira, 20 de novembro, e é respondido pelo
cubano, que fala de Castro Alves e Machado. O discurso é reproduzido
no Jornal do Comércio no domingo, dia 23, e depois publicado nos Cader-
nos de Cultura do MEC, de 1954, De poetas e poesia. Drummond traduzi-
ra seu poema “Sones” (“Sons”) no meio da página do Diário Carioca no
ano anterior (27/01/1946), entre uma crônica de Bandeira e uma crítica
de Antonio Bento sobre Graciliano Ramos e Leskoschek. Numa nota
apresentando o poeta, vê nele traços de Villon e Baudelaire e diz que
deu foros literários à canção folclórica. Jorge de Lima escreve sobre ele,
em O Globo (3/11/1947). José Lins do Rego também, dois artigos no mes-
mo jornal (30 de outubro e 3 de novembro de 47) e Álvaro Moreyra, na
Tribuna Popular (19 de fevereiro de 1948). Guillén hospeda-se na casa de
Portinari, visita o ateliê de Flávio de Carvalho. Sérgio Milliet, crítico e
poeta, fala dele no Estado de São Paulo (5/12/47), traduzindo-lhe alguns
versos do poema “West Indies Ltd.”, comenta sua obra reunida, El son
entero, dizendo que combina folclore com um lirismo requintado. Mas em
Santos cancelam uma apresentação sua, é proibido de falar. Ainda Murilo
Araújo escreve sobre ele o artigo “A revolta que canta”, na revista Leitu-
ra, em 1962, quando passa de novo pelo Brasil e é lançada em português
sua Antologia poética, traduzida por Ari de Andrade, pela Editora Leitu-
ra2. Neste número, a revista publica também um texto seu, curto e em
prosa: “Impressões do Brasil”, escrito na volta da última viagem, em que
conta sobre conversas e contatos com brasileiros na ruas, nos táxis.

2
Em 1992, foi publicada uma outra antologia poética de Nicolas Guillén com o título de Lagarto
verde, traduzida por Carlos Augusto Nougué e outros, no Rio de Janeiro, pela Editora Leviatã.
Nicolas Guillén: as Elegias antilhanas... 101

Em 1964 publica-se em Cuba (Universidad Central de las Villas) o


livro de Angel Augier, Nicolás Guillén: notas para um estudo biográfico-
crítico, que conta a viagem de três anos com detalhes dessa primeira vin-
da ao Brasil. O livro está na biblioteca de Bandeira, que tem vários livros
de Guillén, inclusive a Prosa de Prisa, uma coleção de crônicas de 1962,
publicadas em jornais e revistas.
Na sua homenagem, diz Bandeira: “Da cor cubana chegastes por alarga-
mento dessa funda simpatia de raiz à cor humana universal ou integral a que
se referiu Unamuno”. Miguel de Unamuno escrevera uma carta em 1932 a
Guillén. Considerado poeta da negritude, para Bandeira, no entanto, Guillén
compreendeu que o negro “é um caso particular do pobre – negro, amarelo,
vermelho ou branco – escravizado” e cita os versos do poeta cubano:

Jo, hijo de America


hijo de ti y de Africa
Jo, hijo de America
corro hacia ti, muero por ti.

Elegia é forma de expressão de tristeza e melancolia; há uma tradição


da elegia na poesia espanhola. Mas pode-se afirmar que na América La-
tina não falta motivo para elegias. A catástrofe que foi o domínio imperi-
alista sobre Cuba, que levava Guillén a dizer, na tradução de “Sones” por
Drummond, “ai Cuba se eu te dissesse/que é sangue tua palmeira”, não é
estranha ao resto do continente. Drummond tem várias elegias, em mo-
mentos diferentes, entre elas a “Elegia carioca”, de 1977, e a conhecida
“Elegia 1938”, que termina com os versos: “Aceitas a chuva, a guerra, o
desemprego e a injusta distribuição/porque não podes, sozinho, dinamitar
a ilha de Manhattan”3.
O episódio que faz surgir esta elegia de Guillén é extremamente vio-
lento: o assassinato de um líder sindical negro em Cuba pelas costas, por
um capitão4. O poeta leva três anos escrevendo o texto, que é uma explo-

3
Drummond, Poesia completa, p. 86.
4
O episódio lembra o assassinato do seringalista Chico Mendes na Amazônia, em 1988.
5
Guillén conta que estava na casa de Portinari, no Rio, quando este leu no jornal sobre a morte do
líder sindical cubano. Foi quando deu início ao poema.
102 Vera Lins

são também no sentido de que nele a poesia se faz de ímpeto e impacto.


Há referências ao Rio de Janeiro (o poema nasceu aqui5). Diz que o
morto vive e repete como um refrão: “El vivo es el muerto”. E mais adian-
te: “Jesús trabaja y sueña. Anda por su isla, pero también sale de ella en
un gran barco de fuego”, e “Hierven los morros y favelas en Rio de Janei-
ro, porque allá anunciaron la llegada de Jesús con otros trabajadores, en
el tren de la Leopoldina”.
O poema, comparado a uma sinfonia, se aproximaria então das de
Beethoven, pela explosão musical, a turbulência e o dilaceramento. Con-
voca os poetas americanos Whitman e Carver para se irmanar com os
negros do sul americano, “las amargas tierras del sur ianqui, onde el jazz
estalla en lagrimas”, pois “Jesús no está en el cielo, sino en la tierra; no
demanda oraciones sino lucha; no quiere sacerdotes, sino compañeros;
no erige iglesias, sino sindicatos: Nadie lo podrá matar”. O poema, a partir
do dilaceramento que a notícia da morte provoca, acaba produzindo um
líder vivo, lhe dá voz, palavra que é grito e canto, explorando o sentido
simbólico do nome de Jesús e as repetições das cantigas populares.

Estrujamos su voz
como una flor de insomnio
y suelta un zumo amargo,
suelta un olor mojado,
un agua de palabras puntiagudas,
que encuentran en el viento
el camino del grito;
que encuentran en el grito
el camino del canto
que encuentran el canto
el camino del fuego;
que encuentran en el fuego
el camino del alba;
que encuentran en el alba un gallo rojo,
de pólvora, un metálico
gallo desparramando el día con sus alas.

Imagens de galo e aurora encontramos também em Cabral e


Drummond. “Um galo sozinho não tece a manhã”, de Educação pela pe-
Nicolas Guillén: as Elegias antilhanas... 103

dra, é de 1962-65 e “Morte do leiteiro”, de A Rosa do povo, é de 1945. E


a longa e complexa elegia termina como a fala de Jesús, criando a ima-
gem da ressurreição, da manhã:

– Fué largo el viaje y áspero el camino.


Cresció um árbol com sangre de mi herida.
Canta desde el un pájaro
La mañana se anuncia con un trino.

A violência leva a linguagem poética a seus limites, a uma representa-


ção dilacerada, que se contorce frente ao horror e à barbárie, criando
novas formas de verso: tumulto e arestas, ondas de palavras e imagens.
Mas há uma promessa, como em Cabral e Drummond, da manhã, da
aurora de um novo dia. Serão palavras já gastas ou dizem de uma delica-
deza e lucidez de percepção, que em meio à melancolia e à dor sustentam
a possibilidade de poesia e de vida? Guillén vive a Segunda Guerra Mun-
dial, a Guerra Civil Espanhola e a ditadura de Batista com a exploração
de Cuba pelo imperialismo americano. A “Elegia cubana” fala do vizinho:
“afuera está el vecino,/rodeado de fieras”, num verso que faz lembrar a
“Fuga da morte”, de Paul Celan, em que os nazistas estão rodeados de
seus mastins.
Hoje, com o modelo do estado de exceção que o nazismo nos legou,
banaliza-se a violência, espetacularizando-a no dia a dia. A barbárie nas
páginas dos jornais se tornou trivial. Aqui, nas elegias, ela gerou a ima-
gem da revolta radical e foi desarmada e transformada na própria arqui-
tetura do poema.
A “Elegia a Jesús Menendez” é uma experiência verbal radical, em
que a revolta não cabe nas formas clássicas e cria o que se poderia cha-
mar de uma escrita poética miscigenada, híbrida. Com uma funda cons-
ciência do desastre, no entanto, abre um horizonte, em pleno pós-guerra.
Guillén é conhecido como poeta de uma Cuba negra – afro-espanhol,
mas é mais do que isso, sua voz não se limita à questão racial.
A outra elegia é a um poeta haitiano morto, Jacques Roumain (1907-
1944). Fala de uma grande página de pedra sangrenta, em que se escreve
a história do país, “única abierta página/ terrible haitiana hace trescientos
anos!” e a palavra sangre se repete onze vezes, no início de onze versos.
104 Vera Lins

Fala de uma situação que não se alterou, colocando ironicamente, entre


parênteses, a imagem criada pelo amigo:

(Olvidava decir justamente


Jacques, el personage
de este poema, murmuraba a veces:
Haití es una esponja
empapada de sangre.)

Nostálgico do amigo, relembra-o, descrevendo detalhes como seus


sapatos, seu cigarro e sua caligrafia. Mas ao final há um allegro, um con-
vite ao canto:

Cantemos, pues, querido,


pisando el látego caído
del puño del amo vencido
una canción que nadie haya cantado:
(Florece plantada la vieja lanza)
una húmeda canción tendida
(Quema en las manos la esperanza)
de tu garganta en sombras, mas allá de la vida,
(La aurora es lenta, pero avanza.)
a mi clarín terrestre de cobre ensanguentado!

A “Elegia cubana” começa com os versos

Cuba, palmar vendido,


sueño descuartizado,
duro mapa de azucar y de olvido..

E termina com Maceo e Marti, heróis da guerra pela independência, e


a confiança na estrela, no seu brilho metafórico.
O poema “El apellido” fala do próprio poeta que procura as origens e
os limites de seu sobrenome e seu nome espanhóis:

Desde la escuela
y aun antes...Desde el alba, cuando apenas
Nicolas Guillén: as Elegias antilhanas... 105

era una brizna yo de sueño y llanto,


desde entonces,
me dijeron mi nombre. Un santo y seña
para poder hablar con las estrellas.

E se pergunta por seus antepassados africanos:

Yo soy también el nieto,


biznieto,
tataranieto de un esclavo,
(Que se avergüenze el amo)

Vai repetindo nomes africanos, jogando com seus sons, e termina se


dando um nome interminável, seu e de outros, com o que se libera da
prisão do eu odioso, de que fala Pascal:

Mi nombre interminable
hecho de interminables nombres;
el nombre mio, ajeno,
libre y mio, ajeno y vuestro,
ajeno y libre, como el aire.

Mas o poema de linguagem mais radical é a “Elegia a Jesús Menendez”,


que se divide em sete partes, com epígrafes do “Poema de el Cid”, de
Rubén Darío, de Góngora, Lope da Vega, tentando articular o tumulto
da experiência que é saber da morte do líder operário negro. Começa
com uma imagem da natureza personificada – as canas como pessoas agi-
tam as mãos, avisando a Jesús da morte que se aproxima, e o golpe do
capitão apresentado rápido:

De pronto, el golpe
de la pólvora. El zarpazo
puesto en la punta de un rugido,
y el capitán de plomo y cuero,
ya en tu incansable, en tu marítima,
ya en tu profunda sangre submergido.
106 Vera Lins

A segunda parte tem a epígrafe da seção financeira do New York Herald


Tribune “Hubo muchos valores que se destacaron” em que valor tem du-
plo sentido. Na Bolsa de Nova York anuncia-se cruel e ironicamente a
venda do sangue do morto. Ao lado direito da página, em linguagem
numérica, os ganhos:

Cuban Company Communes


abre com 5 puntos
cierra com 5 3/8

West Indies Company


abre com 69 puntos.
cierra com 69 5/8

E, de repente, em lugar de uma companhia, o sangue:

Sangre Menendez, hoy, alcanza


150 puntos 7/8 con tendencia al alza

Na terceira parte, estrofes de oito versos terminam sempre com a fuga


do capitão e o refrão, “pero trás el corre la Muerte”, até que aparece o
morto: “Jesús Menendez se sonrie/desde su pulmon amanece”.
Na quarta parte, Jesús renascido, em fragmentos de prosa de dois ou
três períodos se convida o leitor a ver “com que fragor hierve a sus pies y
se renueva em ondas interminables la vida!”
A quinta parte é prosa que começa com a frase “Los grandes muertos
son imortales: no mueren nunca”. Fala-se de novo a um vós, agora os
leitores, e se repete “El vivo es el muerto”. A voz dos que o viram toma a
forma de uma canção popular com o refrão:

Pasó uma paloma herida


volando cerca de mi
roja le brillaba un ala
que jo la vi.

A sexta continua em prosa “Jesús trabaja y sueña”. Em certo momento


a prosa de novo se transforma em versos com as vozes dos americanos da
Nicolas Guillén: as Elegias antilhanas... 107

Ku Klux Klan, repetindo “!Va por la muerte, por la muerte va!”. Mas o
verso de novo se transforma em prosa com uma alegoria dos três reis ma-
gos. Jesús encontra Walt Whitman e Carver. Sete vozes sobem e pedem
vingança, mas “Jesús levanta su puño poderoso como un seguro martillo y
avanza seguido de duras gargantas que entonam en un idioma nuevo una
canción ancha y alta, como un pedazo de oceáno”.
A última parte são versos livres com epígrafe do Cid: “Apressa cantan
los gallos e quieren crebar albores”. O grito se transforma em canto, o
poema se dirige de novo a vós: “Venid, venid y en la alta/torre estareis,
campane y campanero/estaremos, venid”. Jesús volta como o General de
lãs Cañas para dizer: “Mirad, he aqui o azucar ja sin lagrimas”.
As elegias são poemas de testemunho e de resistência, como toda gran-
de poesia – recusam o que se instalou e projetam outras possibilidades com
suas imagens, sons e ritmos. A melancolia da elegia impulsiona a transfor-
mação, ela é a consciência da falta e o desejo de um outro estado do mun-
do. A melancolia, que é a reflexão sobre a infelicidade existente, não tem
nada em comum com o desejo de morte, é uma forma de resistência6.
A descrição da infelicidade incluiria em si a possibilidade de sua su-
peração. É o que se encontra nessas elegias antilhanas, que terminam
sempre com a possibilidade de mudança, mudança que é entrevista no
próprio canto, apesar de delineada por um momento histórico específico.
Mas a fé num outro estado possível do mundo parece faltar hoje. A
arte liga-se a uma catástrofe interminável. Paul Celan falava em
“Meridiano”, discurso dos anos 1960, do poema à beira do emudecimento,
entre um já-não-mais e um ainda-e-sempre, mas de uma pretensão inau-
dita como um lugar em que todos os tropos e metáfora querem ser levados
ad absurdum. E afirmava, criando um diálogo no meio do ensaio:

Investigação topológica?
Certamente! Mas sob a luz do que será investigado: sob a luz da u-topia.
E o homem? E a criatura?
Sob esta luz7.

6
Ver a reflexão de Sebald na introdução de seu livro sobre a literatura austríaca, Pútrida pátria,
ensayos sobre literatura.
7
Celan, Cristal, p. 180.
108 Vera Lins

A violência como se apresenta hoje talvez não deixe ver um projeto de


transformação do estado letárgico que produz a sociedade do entreteni-
mento. A arte se fez, no século XX, como recusa e promessa. Mas parece
haver hoje, quando o Império se torna global, um bloqueio do pensamen-
to, com um descrédito da imaginação utópica, ou heterotópica, aquela
que pode inventar outras configurações para o visível, o pensável e o
possível. Claudio Magris8, num livro de 1999, discute desencanto e uto-
pia e diz que são inseparáveis. Afirma a falência das utopias totalitárias,
mas reforça a idéia da necessidade, contra um pessimismo apocalíptico,
da utopia como a visão, na esteira de Bloch, de que atrás de qualquer
realidade estão outras possibilidades para serem liberadas.

Referências bibliográficas
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 2002.
CELAN. Paul. Cristal. Trad. de Cláudia Cavalcanti. São Paulo: Iluminuras,
1999.
GUILLÉN, Nicolas. Elegias antilhanas. Trad. de Claude Couffon. Paris:
Seghers, 1955.
. Lagarto verde: antologia poética. Trad. de Carlos Augusto Nougué
et al. Rio de Janeiro: Leviatã, 1992.
MAGRIS, C. Utopie und Entzauberung. Munique: Carl Hanser Verlag, 2002.
RANCIÈRE, J. Políticas da escrita. Trad. de Raquel Ramalhete. São Paulo:
Ed. 34, 1995.
. Malaise dans l’esthétique. Paris: Galilée, 2004.
SEBALD. W. G. “Introdução”, em . Pútrida pátria: ensayos sobre
literatura. Trad. de Miguel Saénz. Barcelona: Editorial Anagrama, 2005.

Recebido em maio de 2007.


Aprovado em junho de 2007.

8
Magris, Utopie und Entzauberung. Traduzido do italiano por vários tradutores.

Vera Lins – “Nicolas Guillén: as Elegias antilhanas e a poesia em dilaceramento”. Estudos de Literatura
Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 99-108.
Uma hipótese de ligação entre
Carlos Drummond de Andrade e a
poesia brasileira contemporânea:
a “ Vida menor ”
Jaime Ginzburg

A profunda complexidade da política brasileira na primeira metade


do século XX pode ser observada em vários campos da esfera pública, na
vida ideológica, na organização jurídica e na formação de dinâmicas ur-
banas de trabalho. Uma das faces dessa complexidade está na produção
cultural que, não sem contradições, dialoga com as tensões da sociedade
brasileira, apresentando impasses decisivos.
O livro A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, publicado
em 1945, já foi examinado por historiadores e críticos literários, como um
livro voltado para a militância. Vagner Camilo estudou suas relações com
o ambiente ideológico em torno do Partido Comunista Brasileiro1. Iumna
Maria Simon discutiu as relações do livro com a literatura engajada, nele
encontrando uma ambigüidade constitutiva, a articulação de uma ex-
pectativa de mudanças com um senso de limitações da poesia para a
capacidade de intervenção2.
Podemos pensar no contexto de elaboração de A rosa do povo com
base em trabalhos de Márcio Seligmann-Silva que relacionam história e
literatura com a categoria do trauma. O autor, centrado em sua pesquisa
sobre o holocausto, desenvolveu uma proposta conceitual que consiste
em pensar a história como trauma. Trata-se de compreender o passado
em uma elaboração para a qual a consciência não está preparada3.
Renato Janine Ribeiro elaborou uma reflexão sobre o assunto dentro
do quadro histórico especificamente brasileiro. Para ele, o país viveu dois

1
Camilo, Drummond: da Rosa do Povo à Rosa das Trevas.
2
Simon, Drummond: uma poética do risco.
3
Seligmann-Silva, “A história como trauma”.
110 Jaime Ginzburg

traumas constitutivos: a violência continuada durante a colonização, e a


escravidão, estendida após a independência. Os massacres, genocídios, a
exploração perversa do espaço e a ausência de bases para instituições
sólidas definiram fundamentos da experiência brasileira moderna4. Como
a sociedade não superou seus traumas, isto é, não elaborou consciente-
mente as perdas coletivas, permanece sem condições de perceber clara-
mente a si mesma, e os resíduos e heranças da violência retornam cons-
tantemente, como fantasmagorias.
Nesse assunto, foi muito importante a contribuição de Sven Kramer,
que elaborou o problema do trauma na perspectiva da sua continuidade
no tempo. Se uma geração não resolve o trauma vivido, a carga de
impacto pode ser retomada pela geração seguinte, e assim sucessiva-
mente. Kramer chama de trauma seqüencial a condição em que as re-
percussões da violência podem ser persistentemente desdobradas e im-
pregnadas 5. Nessa perspectiva, a sociedade brasileira atual estaria
marcada pelo efeito difuso de violência e repressão de décadas e sécu-
los anteriores.
A leitura de A rosa do povo, com o apoio dessas reflexões, leva à obser-
vação de que o livro traz em si um diálogo crítico com a violência e a
repressão de seu tempo. No contexto brasileiro, a referência é o
autoritarismo do Estado Novo. Em um âmbito mais amplo, está presente o
impacto da Segunda Guerra Mundial.
Em 1951, Theodor W. Adorno publicou a Mínima Moralia, trabalho
que apresenta um conjunto de reflexões aforísticas, abordando a re-
gressão e a barbárie que se desenvolveram com a modernização. Pro-
fundamente marcado pela Segunda Guerra, o livro coloca em questão
os princípios da racionalidade européia tradicional, encontrando mani-
festações diretas e indiretas da violência em padrões de comportamen-
to e em procedimentos institucionais6. Escrito com descontinuidades e
fragmentação formal, o livro estuda a presença do inumano no solo his-
tórico do seu presente.

4
Ribeiro, “A dor e a injustiça”.
5
Kramer, “Sobre a relação entre trauma e catarse na literatura”.
6
Adorno, Mínima Moralia, passim.
Uma hipótese de ligação entre Carlos Drummond... 111

Guardando as diferenças entre os respectivos contextos de produção,


podemos encontrar uma ligação importante entre Mínima Moralia e A
rosa do povo. Adorno procura meios para elaborar a impregnação da vio-
lência regressiva na vida social européia, e esse esforço exige o
distanciamento com relação a categorias tradicionais, em especial as
hegelianas, que ele conhecia bem. Adorno precisava questionar intensa-
mente as concepções de pensamento pautadas pela totalidade, pela ple-
nitude, em razão da proporção abismal tomada pela história com a Se-
gunda Guerra e seus desdobramentos.
A experiência histórica brasileira dos anos 1930 e da primeira metade
dos anos 40 está fortemente ligada ao processo de modernização
tecnológica, em articulação com o capitalismo internacional. A política
brasileira associou ideologicamente a política modernizadora ao controle
autoritário da sociedade.
Nas várias formas da retórica conservadora, que permeiam a prosa
política e os discursos institucionais desse tempo, encontramos constan-
temente o elogio da unificação do país, em nome de sua soberania. Entre
os princípios conceituais dessa retórica, estão a remissão constante à
transcendência, com a legitimação da política por parte de Deus; a pers-
pectiva positiva de vivência do tempo, voltada para a continuidade e o
progresso; e a convicção de que a ação prática é decisiva para a
concretização dos ideais abstratos.
A concepção de poesia lírica de A rosa do povo se distancia
deliberadamente de projetos de representação totalizante. A configura-
ção da história do Brasil se afasta esteticamente da unidade. Um dos
principais inimigos, em termos de formulação artística, deve ser Plínio
Salgado. O escritor, responsável por extensa produção, cultivou forte-
mente a simbologia da unidade. Esse interesse atendia o propósito, em
termos ideológicos, de defesa de uma imagem autoritariamente imposta
de um Brasil unificado, a partir de São Paulo, do controle econômico e de
uma linguagem repressora7.
As diferenças de contextos e mediações são importantes, mas cabe
evidenciar um ponto comum entre Adorno e Drummond. Nos dois casos,

7
Salgado, Obras Completas.
112 Jaime Ginzburg

a incorporação traumática da experiência histórica leva à imagem do


mínimo. Trata- se de uma imagem que exige uma delimitação
interpretativa ponderada.
A experiência configurada como mínimo tem uma ambigüidade. Ela
não é uma experiência viável em termos plenos, ela não atinge seu poten-
cial. De outro lado, ela também não é a completa ausência, o vazio total.
A imagem do mínimo porta a dubiedade de não estar nos parâmetros
esperados do vivido, nem se entregar à morte.
Em Adorno, a presença assustadora do inumano é descrita com cate-
gorias negativas. O pensador necessita, constantemente, de termos que
permitam perceber a diferença entre as suas expectativas de uma ex-
periência humana passível de atribuição de sentido, e o impacto
destrutivo da violência coletiva, dos regimes autoritários e da
impessoalidade das instituições.
O livro de Drummond remete a um contexto intelectual pautado,
dentro do pensamento hegemônico, por perspectivas excludentes. A de-
fesa do branqueamento de Oliveira Vianna, a adoração do fascismo em
Miguel Reale, o anti-semitismo sistemático de Gustavo Barroso tinham
uma circulação importante e prestigiada8. Contrariando essas correntes
ideológicas, Drummond se voltou para a experiência histórica traumáti-
ca de seu tempo. Considerando os trabalhos de Simon Schwartzman9 e
Maria Celina Araújo10, podemos inferir que, resistente a tendências do
contexto, pensando em contrariedade aos controles ideológicos de Gustavo
Capanema, não defendeu os projetos nacionalistas de Getúlio Vargas,
nem a inserção dos indivíduos em planos de modernização.
O interesse de Drummond pela imagem do mínimo está associado a
um confronto direto com a retórica conservadora de seu tempo, voltada
constantemente para a grandiloqüência, as noções de progresso e avan-
ço, a exploração política do discurso do crescimento. Em lugar disso, o
livro mergulha no impacto traumático do processo histórico. Ali, de onde
ele fala, não há progresso no horizonte, não há superação visível, não há
síntese conciliadora.

8
Vianna, Evolução do povo brasileiro; Reale, “O fenômeno fascista”; Barroso, História secreta do Brasil.
9
Schwartzman, Bases do autoritarismo brasileiro.
10
Araújo (org.), As instituições brasileiras da Era Vargas.
Uma hipótese de ligação entre Carlos Drummond... 113

Reinaldo Martiniano Marques, em sua reflexão sobre Drummond e


outros poetas do período, observa uma conexão entre a perspectiva me-
lancólica de elaboração da lírica e a postura de resistência ao autoritarismo
do Estado Novo. A crítica da modernização nacionalista está associada,
para o autor, à valorização do olhar melancólico sobre o passado 11. Luiz
Roncari observou a problematização da imagem do futuro em A rosa do
povo, como fator de interesse atual para o livro12.
Há um poema, em A rosa do povo, em que a imagem do mínimo e a
perspectiva melancólica se integram, de modo produtivo e provocador. O
texto tem o título “Vida menor”. Cabe deter a atenção sobre esse poema,
e pensar como ele pode assumir um papel central nas relações entre pro-
dução cultural e tensão política no Brasil.
Destoando da postura exclamativa e das interrogações revoltadas que sur-
gem em outras partes do livro, esse poema apresenta uma economia formal
muito específica. A construção rítmica, em que se destaca a enorme quantida-
de de pausas, permite que o ritmo acentue a idéia, enfatizada por imagens do
poema, de sofreguidão e desgaste por parte do sujeito lírico. Falta à fala a condi-
ção da fluência. A repetição das palavras “não” e “nem” desenvolve a percep-
ção de que sabemos deste sujeito, sobretudo, o que ele não é, não faz, não
realiza. Temos dele uma percepção calcada em lacunas e ausências. A prefe-
rência por formas nominais do verbo, o gerúndio e o particípio, contribui para
uma configuração em que a experiência não ocorre de modo afirmativo e ativo.
São elementos formais que, como certos traços da pele em Portinari ou
certas cenas na água em Mário Peixoto, apontam para uma necessidade
estética, em que a elaboração detalhada da forma deve se associar à
precariedade dos horizontes da experiência. Rompe-se com a mimese
tradicional, com o reconhecimento realista da unidade formal. A relação
entre literatura e história se dá em uma condição antagônica. O trauma
histórico não pode ser representado mimeticamente, não foi assimilado
nem elaborado coletivamente. Seu impacto é elaborado esteticamente
como limite. O sujeito não ascende à individualidade burguesa, à eman-
cipação moderna. O lugar de sua constituição é a “vida menor”.

11
Marques, Tempos modernos, poetas melancólicos.
12
Roncari, “O terror na poesia de Drummond”, p. 280.
114 Jaime Ginzburg

O título do poema de Drummond pode ser usado, dentro dessa


perspectiva, como categoria antropológica, para pensar as condições
de constituição da subjetividade, em um ambiente de elevada repres-
são. É uma imagem que pode assumir a função de um conceito para
interpretação histórica.
Como definir o Brasil em 1945, em um momento forte de sua moderni-
zação conservadora, atingido pela opressão do autoritarismo de Vargas,
impregnado pelo percurso das transformações promovidas em razão da
Segunda Guerra Mundial? Como configurar, sem apelar para os discursos
fascistas, racistas e anti-semitas, a tensão vivida entre sujeitos singulares
e a experiência coletiva? A leitura do poema de Drummond permite ela-
borar uma hipótese de abordagem de questões como essas.
Percebendo em separado a elite dominante, uma avaliação geral da
sociedade brasileira, se utilizarmos as categorias de Gerd Bornheim, le-
varia à percepção de que o país não formava indivíduos plenos, no senti-
do dos valores burgueses. O quadro político levava a grande maioria dos
brasileiros a não desenvolverem autonomia de pensamento, condições
qualificadas de trabalho, capacidade de gerar patrimônio e liberdade de
expressão, traços esperados no individualismo burguês13. O Brasil em tor-
no de A rosa do povo é, nesse sentido, um país que não constitui sujeitos
plenos, que não realiza sínteses coletivas harmoniosas em seu processo de
modernização; pelo contrário, sua vida política reforça constantemente a
inumanidade e a reificação.
O poema de Drummond elabora a configuração crítica de uma série
de categorias fundamentais para os pilares do modelo autoritário varguista
para a civilização moderna brasileira.
O tempo é elaborado sem linearidade ou continuidade. Em oposição
ao horizonte evolutivo da ideologia arianista, e sem viabilizar a imagem
modernizadora de um país rumo ao progresso, o tempo se reconfigura,
confundindo “manhã e tarde”, e “não mais se divide em seções”, distante
da racionalidade cartesiana tradicional.
A ação prática não se define como empreendedora, transformadora,
mas se define pelo próprio senso de limite, em gestos “impossíveis” e “inú-

13
Bornheim, “O sujeito e a norma”.
Uma hipótese de ligação entre Carlos Drummond... 115

teis”. A poesia, presente na sua forma de canto, reconhece suas limita-


ções, na referência à sua “desnecessidade”. A repercussão do que se faz
se perde, como “eco”, ilhado em um verso sem desenvolvimento, sem
expansão.
Em contrariedade radical aos escritos de Plínio Salgado, o horizonte
do poema de Drummond é destituído de transcendência. Não há busca
do “eterno” ou do “divino”. Além disso, a imagem da “mão” fortalece a
percepção em movimento abismal, com o percurso vertiginoso de um cres-
cimento para a enormidade, a que se segue o desaparecimento.
Seguindo o argumento de Reinaldo Martiniano Marques, encontra-
mos em “Vida menor” uma perspectiva melancólica, principalmente pelo
impacto das perdas, envolvendo o amor e a memória, perdas constitutivas
que, remetendo ao conjunto de imagens, acentuam a impossibilidade de
estabelecer uma expectativa de experiências plenas.
No poema, o adjetivo “mínima” é utilizado para a caracterização
definidora da vida. Trata-se de uma condição em que não é possível
ambicionar plenitude, mas também não se deseja o oposto, não se pede a
morte. A vida é “mínima” e “irredutível”, de modo que sua condição
precária é constitutiva, e não incidental. O estranhamento do sujeito
com relação a esse estado de precariedade irredutível aparece logo no
início do poema, com a fuga de “si mesmo”, a atitude negativa do sujeito
com relação a si.
Essa atitude se refere tanto à realidade (o “real”) como à imagina-
ção (o “feérico”), e, mais do que isso, ao próprio percurso do sujeito,
“fuga da fuga”. Por desenvolver uma atitude negativa com relação às
diversas possibilidades da existência, o sujeito aponta para a própria
experiência como um “exílio”. Colapso do próprio centramento, o exílio
permite ao sujeito referir a si mesmo, ambiguamente, como estando
dentro e fora de sua própria experiência, vivenciando e negando o que
a ele e nele se apresenta.
A partir das idéias de Márcio Seligmann-Silva, Renato Janine Ribeiro
e Sven Kramer, podemos entender “Vida menor” como um texto consti-
tuído em perspectiva traumática. Não há um passado assimilável, a me-
mória foi perdida. Não há condição de ação prática ou de aceitação da
realidade imediata. A posição precária e abjeta, contemplativa e medita-
tiva, é reflexiva, sem ser linear ou cartesiana.
116 Jaime Ginzburg

Em uma leitura alegórica de inspiração benjaminiana, o poema elabo-


ra, de modo fragmentário e melancólico, os limites da constituição do
sujeito, em diálogo com um contexto no qual os horizontes de
transcendência e superação de limites estão ausentes. Relacionando tex-
to e contexto, percebemos no sujeito lírico de “Vida menor” elementos
de uma experiência profundamente atingida pela atrofia da liberdade e
pela contenção de impulsos emancipatórios.
Como culminância da crítica à retórica grandiloqüente do autoritarismo
brasileiro, em vez de buscar o país da afirmação, o sujeito declara ao final
buscar “apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente e solitário”. Des-
colado do repertório de vocabulário do poder hegemônico, o sujeito se
volta para o interesse pelo que não tem empatia com o que ocorre à volta,
com o que está isolado, com o mínimo.
O contexto histórico social brasileiro não eliminou inteiramente pro-
blemas vividos nas décadas de 1930 e 40. Em acordo com as reflexões
sociológicas de Jose Antonio Segatto, Paulo Sérgio Pinheiro, Jose Vicente
Tavares dos Santos e Oscar Vilhena Vieira, entre outros, existe uma con-
tinuidade de elementos institucionais conservadores na sociedade con-
temporânea. Os regimes ditatoriais não foram estanques, os seus compo-
nentes autoritários se desdobraram em diversas escalas.
Ao olhar para a contemporaneidade, podemos utilizar duas lentes com-
plementares. Uma é concedida pelos referidos pesquisadores em ciências
sociais, que evitam o otimismo e percebem no contemporâneo rastros de
estruturas autoritárias de décadas anteriores. Outra, formulada por Sven
Kramer, permite questionar em que medida a permanência de impactos
traumáticos pode atravessar gerações, de acordo com a noção de trauma
seqüencial.
A esses olhares se soma a reflexão de Roberto Vecchi que, ao avaliar a
modernidade no Brasil, examina sua “violência latente”, nela encontrando
um “continuísmo camuflado entre presente e passado”, um movimento
ambíguo em que se articulam permanência e transformação14.
A literatura contemporânea poderia, nesse sentido, estar pautada, de
modo não excludente, por dois referenciais – o impacto da violência do

14
Vecchi, “Seja moderno, seja brutal: a loucura como profecia da história em Lima Barreto”, p.113.
Uma hipótese de ligação entre Carlos Drummond... 117

passado, que atravessa décadas e gerações, e as especificidades da vio-


lência contemporânea. Para a literatura brasileira, essa dupla constitui-
ção acentuou a exigência de enfrentamento de problemas delicados.
Nesse horizonte, a leitura de quatro poemas serve como motivação
para situar o problema. Escolhemos “Cogito”, de Torquato Neto, “Dile-
ma”, de Antonio Cícero, “Restos de um homem”, de Lara de Lemos, e “O
futuro é agora”, de Marcos Siscar.
Tomemos a hipótese de que Carlos Drummond de Andrade tenha, em
perspectiva alegórica, proposto uma interpretação do Brasil, com a ima-
gem da vida menor, e que essa imagem possa servir como referência para
uma chave antropológica. Assumindo essa hipótese, podemos elaborar o
seguinte: os quatro poemas fazem parte de um conjunto vasto e aberto de
textos literários que colocam desafios para a crítica literária brasileira.
Guardada a percepção da pluralidade e da heterogeneidade da produ-
ção contemporânea, considerado o fato de serem poemas escritos por au-
tores em datas diversas, em estilos próprios, podemos entre eles observar
afinidades eletivas.
Mais do que isso, podemos pensar afinidades eletivas entre o poema
de Drummond, de 1945, e esses quatro textos, que se referem ao âmbito
histórico da ditadura militar e da cultura pós-ditatorial. Se as reflexões
sociológicas encaminham para a necessidade de pensar as conexões en-
tre o passado e o presente, na literatura brasileira o mapeamento de liga-
ções intertextuais, diretas ou indiretas, permite, em perspectiva
comparatista, rever a relevância que os textos específicos podem apre-
sentar. Para além disso, essa mesma posição crítica pode situar uma corren-
te subterrânea na poesia lírica brasileira, integrando vozes individuais e
impasses coletivos, como historiografia inconsciente dos conflitos sociais.
Imagens que se integram ao campo de referências da vida menor são,
por exemplo, o som do coração em Siscar, “quase não o ouço”, os resíduos
corporais em Lemos, “teus despojos”, e a redução do todo à parte em
Torquato, “feito um pedaço de mim”.
O poema de Torquato Neto, especificamente, ao abordar desde o títu-
lo o “Cogito”, permite elaborar uma reflexão sobre o processo de consti-
tuição do sujeito. A definição se pauta negativamente por lacunas – “sem
grandes segredos dantes/sem novos secretos dentes” – e pela percepção
da finitude – “vivo tranqüilamente todas as horas do fim”.
118 Jaime Ginzburg

Ao elaborar uma definição de si, o sujeito inclui em seu percurso uma


observação gramatical, uma manifestação da impossibilidade, e elemen-
tos como o imediatismo, a tautologia, e a dissociação de si. Em contraposição
à tradição cartesiana, o sujeito não se mostra capaz de dominar a si mes-
mo ou à natureza, ele não organiza em critérios lógicos e racionais a per-
cepção, mas é lançado negativamente na indeterminação de seu próprio
processo constitutivo.
Chama a atenção em “Cogito” o confronto com a temporalidade. Há
uma insistência no presente, “agora”, “nesta hora”, “presente”, articula-
da com uma percepção lacônica do passado, e uma expectativa de esgo-
tamento do futuro. As proporções desiguais apontam para uma exigência
contundente de prestar atenção no presente, sem nostalgia, e sem uto-
pia. “Tanto o futuro quanto o passado seriam, então, possibilidades não
dominantes no presente”15, estabelecendo uma tensão entre a vivência
imediata e as condições para atribuição de sentido à existência.
Essa hipertrofia remete ao poema em prosa de Siscar, cujo título, “O
futuro é agora”, acentua a ênfase na percepção do imediato em detrimento
de um distanciamento. Na memória, sugere o poema, “muita coisa desapa-
rece”. O futuro, sugere a paisagem celeste, verá, com o “desaquecimento
das estrelas”, a consumação da “última utopia”. Como em Torquato Neto,
em Siscar existe uma perturbadora atenção ao presente, em que passado e
futuro não garantem atribuição de sentido à experiência.
Tanto em Torquato Neto como em Marcos Siscar, é apresentada uma
forma trágica e residual da vida menor, uma vida em que o tempo se res-
tringe, em que o presente é pesadamente sólido, e o passado e o futuro
perdem consistência.
O poema de Antonio Cícero trabalha, de diferente maneira, com uma
cisão interna do sujeito. Como em Torquato Neto, encontramos aqui a
tautologia (“é que no fundo de mim estou eu/e no fundo de mim estou eu”)
e a dissociação da imagem de si (“sou feito de um mundo imenso/imerso
num universo/que não é feito de mim/mas mesmo isso é controverso”). A
procura do “certo” em um fluir que “confunde” e é “disperso” leva a uma
imagem paradoxal – “no fundo de mim/sou sem fundo”. Se a imagem de
um “sem fundo” produz uma vertiginosa configuração de subversão das

15
Natali, A política da nostalgia, p. 125.
Uma hipótese de ligação entre Carlos Drummond... 119

medidas, a vertigem não escapa às categorias do pensamento do próprio


sujeito, em que estranho e familiar se encontram e se questionam.
Trata-se de imagem muito próxima da que finaliza o poema de Lara de
Lemos, “A memória/cavou seu fundo poço”. Tanto o sujeito “sem fundo”
de Cícero como a voz criada por Lemos estão diante de uma profundida-
de que remove as certezas cartesianas. Nos dois casos, a constituição do
sujeito é elaborada como descentramento vertiginoso. Se em Cícero a
situação se configura como “Dilema”, em Lemos é um processo residual,
em que “já não resta mais osso sobre osso”. Entre os quatro poemas, este
de Lemos é o que mais se volta para a percepção do passado e a interpre-
tação do presente à luz do que ocorreu. Descreve um agônico esvazia-
mento da experiência, com imagens abjetas e cadavéricas.
A percepção da finitude aparece em “Dilema”, em “sei que não sou
sem fim”, em “Cogito”, em “vivo tranqüilamente/todas as horas do fim”, e
em “O futuro é agora”, em “Concentro-me para que ele não pare de
bater”. No caso de Lara de Lemos a percepção da morte configura o pon-
to de vista, e define as elaborações do corpo e do tempo.
Os quatro poemas são integrados por pontos em comum – processos
negativos de constituição do sujeito, imagens de precariedade e cisão,
ruptura com a estabilidade de categorias cartesianas de percepção. As
diferenças entre eles são muitas, mas cabe insistir em questionar como as
afinidades eletivas entre eles apontam para um problema histórico.
Nesses poemas não encontramos cenas de violência física, explicitações
de agressão, ou de imagens de militares armados. Isso não impede, no
entanto, que a formulação de uma hipótese de interpretação dos textos
leve em conta a violência social brasileira.
Nesses poemas encontramos imagens que correspondem diretamente a
uma vulnerabilidade, tal como entende Judith Butler. Trata-se de uma
condição de existência em que, para aquém do processo de individualização,
surge o risco de aniquilação, a sujeição à cisão. Essa configuração negativa
de um eu que não chega a ser inteiramente um eu, e mesmo assim tem de
elaborar um discurso sobre si, é própria, para Butler, de contextos em que a
definição de humano é relativizada pela intensidade da violência social16.

16
Butler, Precarious life, p. 31.
120 Jaime Ginzburg

Em uma sociedade em que a violência tem um papel constitutivo,


como é o caso do Brasil, pode ocorrer que formas estéticas, como
historiografia inconsciente do tempo, absorvam antagonismos sociais, não
em sua manifestação de superfície, mas em repercussões mediadas.
Não é necessário, para que um processo estético seja relevante, que
ele ocupe a totalidade das manifestações de seu tempo, nem que possa
ser apresentado em fórmula geral para dar conta exaustivamente de um
processo histórico. Contrariamente, é esperado que, em uma sociedade
conflitiva e desigual, as manifestações estéticas realizem entre si um de-
bate produtivo, convivendo com tendências transformadoras, diferenças
e oposições. Na sociedade brasileira, considerada a partir da década de
1960, os avanços da modernização conservadora acentuaram contradi-
ções sociais. Embora esse percurso tenha seus entusiastas, na literatura
brasileira têm aparecido vozes de discórdia, capazes de perceber que o
individualismo competitivo, que no discurso hegemônico constantemen-
te prega a autonomia e a hipertrofia do eu, não o faz sem ser predatório. A
publicidade e o mercado, entre outros fatores, manipulam imagens de
modo a satisfazer os interesses reificadores do sistema econômico.
Nesse horizonte, merece atenção e interpretação uma tendência, na lite-
ratura brasileira contemporânea, a insistir em um componente negativo da
modernidade, a percepção da efemeridade, da finitude, a partir de Baudelaire,
da presença de flores do mal, a partir de Lorca, às cinco da tarde.
Em suas variadas manifestações, os quatro poemas aqui lembrados são
construções de imagens de exílio. Não no sentido geopolítico, mas no
drummondiano. São configurações de sujeito que se distanciam de si
mesmos, por desenvolverem atitudes questionadoras com relação às di-
versas possibilidades da existência.
Em todos eles, está sugerida a dificuldade de estabelecer uma expec-
tativa de plenitude da experiência. Distantes da grandiloqüência da ide-
ologia de consumo, os poemas configuram a ausência de horizontes de
transcendência. Em nenhum deles é obtida uma síntese harmoniosa da
experiência. Em nenhum deles, ocorre o elogio da modernização, ou do
tempo linear continuado. Em nenhum deles, a ação prática aparece como
meio de transformação eficiente para o indivíduo ou a coletividade.
“Cogito”, “Dilema”, “Restos de um homem” e “O futuro é agora” não
foram publicados todos na mesma cidade, nem no mesmo ano. Não são
Uma hipótese de ligação entre Carlos Drummond... 121

uniformes em termos de escolha de vocabulário. No entanto, as afinida-


des eletivas entre eles permitem observar que:
– eles estabelecem entre si relações intertextuais, que apontam para
tensões da poesia brasileira contemporânea, que merecem carac
terização e pesquisa, envolvendo, para além dos limites deste ensaio,
exemplificação e demonstração mais abrangente;
– eles guardam entre si um ponto interior de articulação e convergên-
cia, a negatividade da constituição do sujeito;
– eles dão continuidade a princípios de composição do poema “Vida me-
nor”, de Carlos Drummond de Andrade, em termos temáticos e estilísticos.
As afinidades eletivas entre eles permitem elaborar uma hipótese
interpretativa. Se aceitarmos que “Vida menor” dialoga, em termos antropo-
lógicos e estéticos, com a violência do Estado Novo e da Segunda Guerra
Mundial, podemos ponderar o seguinte: na sociedade brasileira contemporâ-
nea, considerada a partir da década de 1960, a presença da violência foi
renovada e desdobrada. Isso não se restringe a conflitos civis e criminalidade,
mas se fundamenta especialmente no Estado, no militarismo e na polícia.
Se a violência pode levar o sujeito a uma contração, em “Vida menor”,
com uma percepção da vida pautada pelo mínimo, pelo residual, a expansão
contemporânea de modalidades da violência pode motivar uma discussão li-
terária e estética atenta a fatos que não permitem facilidade de explicação e
síntese. Pode estar ocorrendo, na poesia brasileira, um movimento antagônico,
pautado pela negatividade. Sem constituir unidade coesa ou elaborar doutri-
na de vanguarda, esse movimento pode estar apontando para um fundamento
agônico da produção poética. Usando termos de Karl Scholhammer17, se não
há como exprimir propriamente uma subjetividade, é possível discutir, ainda
que com lacunas, ou talvez em razão delas, parâmetros de uma ética possível.
Em continuidade à vida menor, parte da poesia contemporânea encon-
traria na cisão do sujeito, na problematização do tempo, na vertigem do
fundo, na suspensão das referências cartesianas, condições de lidar for-
malmente com o impacto de uma sociedade conflitiva. Em vez de adotar
um discurso próximo do mercado, ou favorável ao capital, escolhe um
caminho negativo. Usando termos de Ivete Walty, a dificuldade de esta-
belecer uma referência identitária exibe fragilidades da organização so-

17
Scholhammer, “Memórias de delinqüência e sobrevivência”, p. 145.
122 Jaime Ginzburg

cial, que a poesia pode estar indiciando, ocultas ou reveladas18.


“Cogito”, “Dilema”, “Restos de um homem” e “O futuro é agora” esco-
lhem o caminho da precariedade. No contexto histórico em que surgem,
essa precariedade não se explica de modo metafísico, nem por generaliza-
ções universalizantes. É um debate, travado pelo sujeito consigo mesmo,
colocando em questão sua capacidade de viver em condições residuais.
Em uma sociedade que, em confronto constante consigo mesma, tenta
viver em condições residuais econômicas e institucionais. Diante do fun-
do poço, em que muita coisa desaparece, até as horas do fim, com desejo
perdido. Feito um pedaço de si, em vida menor.

Transcrição dos poemas

Vida menor
A fuga do real,
ainda mais longe a fuga do feérico,
mais longe de tudo, a fuga de si mesmo,
a fuga da fuga, o exílio
sem água e palavra, a perda
voluntária de amor e memória,
o eco
já não correspondendo ao apelo, e este fundindo-se,
a mão tornando-se enorme e desaparecendo
desfigurada, todos os gestos afinal impossíveis,
senão inúteis,
a desnecessidade do canto, a limpeza
da cor, nem braço a mover-se nem unha crescendo.
Não a morte, contudo.

Mas a vida: captada em sua forma irredutível,


já sem ornato ou comentário melódico,
vida a que aspiramos como paz no cansaço
(não a morte),
vida mínima, essencial; um início; um sono;
menos que terra, sem calor; sem ciência nem ironia;

18
Walty, “Testemunha estomacal: fome e escrita”, p. 32.
Uma hipótese de ligação entre Carlos Drummond... 123

o que se possa desejar de menos cruel: vida


em que o ar, não respirado, mas me envolva;
nenhum gasto de tecidos; ausência deles;
confusão entre manhã e tarde, já sem dor,
porque o tempo não mais se divide em seções; o tempo
elidido, domado.
Não o morto nem o eterno ou o divino,
apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente
e solitário vivo.
Isso eu procuro19.

O futuro é agora
O ácido sulfúrico vai evaporar em temperatura am-biente daqui a 500 anos. Mas meu
sangue já chegou à seringa. E antes que o desaquecimento das estrelas consuma a última
utopia, dentro do meu peito, o coração pulsa. Quase não o ouço. Concentro-me para
que ele não pare de bater. Qualquer distração pode ser fatal. Há tempos, mandei-me
uma mensagem ao fu-turo. Hoje, escrevo mensagens eletrônicas em prosa límpida e vou
lançando, uma a uma, para mim mes-mo, como quem lança perto da janela do prédio
as folhas de um velho caderno. O retorno é provável, mas não é garantido. Muita coisa
desaparece no sopro da memória, na caligrafia ilegível, entre os impulsos elétricos e
nervosos que me mantêm20.

Restos de um homem
Inútil que reclames
teus despojos.

Tento em vão restaurar-te


no mito das lembranças
no sigilo da carne
na intimidade das entranhas.

A mandíbula do tempo
é implacável.
Já não resta mais
osso sobre osso.

19
Andrade, Nova reunião, pp. 139-40.
20
Siscar, O roubo do silêncio, p. 53.
124 Jaime Ginzburg

A memória
cavou seu fundo poço21.

Cogito
eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível.

eu sou como eu sou


agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou


presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou


vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim22.

Dilema
o que muito me confunde
é que no fundo de mim estou eu
e no fundo de mim estou eu.
No fundo
sei que não sou sem fim
e sou feito de um mundo imenso
imerso num universo
que não é feito de mim.

21
Lemos, Adaga lavrada, p. 53.
22
Neto, “Cogito”, pp. 65-6.
Uma hipótese de ligação entre Carlos Drummond... 125

Mas mesmo isso é controverso


se nos versos de um poema
perverso sai o reverso.
Disperso num tal dilema
o certo é reconhecer: no fundo de mim
sou sem fundo23.

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R EALE , Miguel. “O fenômeno fascista”, em . Obras políticas.
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23
Cícero, Guardar, p. 37.
126 Jaime Ginzburg

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WALTY, Ivete. “Testemunha estomacal: fome e escrita”. Estudos de Litera-
tura Brasileira Contemporânea, nº. 27. Brasília, jul.-dez. 2006.

Recebido em maio de 2007.


Aprovado em junho de 2007.

Jaime Ginzburg – “Uma hipótese de ligação entre Carlos Drummond de Andrade e a poesia
brasileira contemporânea: a ‘Vida menor’”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº. 29.
Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 109-126.
Histórias paranóicas, criados
perversos no imaginário literário
da Belle Époque tropical
Sônia Roncador

V. Ex., que é dotada naturalmente de um espirito fino e tem pela


vossa casa o amor arraigado que tem por tudo quanto se possue e
governa, não se confiará na boa-vontade de uma pessoa a quem
não conhece. Portanto a V. Ex. visitará por imperiosa necessidade,
e durante várias vezes ao dia, a cozinha, tendo ocasião de a
fiscalisar.

Sylvino Junior, A dona de casa: a mais


útil publicação em portuguez.

Com o fim da escravidão no Brasil, a questão da adequação dos escra-


vos libertos às novas relações de produção se impôs como tarefa urgente:
não mais forçados ao trabalho pela ameaça de castigos físicos, haveriam, no
Brasil da Velha República, que absorver “os valores da previdência, da
austeridade, da dedicação, obediência, do progresso individual”1. No caso
específico dos empregados domésticos, essa tarefa se tornou mais que ur-
gente, visto que com menos autoridade e controle sobre os mesmos, ou com
a quebra do pacto “proteção-obediência” característico da relação senhor-
escravo2, os novos patrões se viram ameaçados pelo contágio das doenças
trazidas da rua (ou melhor, dos cortiços, onde passara a habitar grande
parte da sua criadagem), assim como pela violência e desonestidade dos
empregados, as quais, para as elites brasileiras, eram mera decorrência da
condição social, e sobretudo racial da maioria de seus serventes3. Uma
conseqüência da perda de autoridade pessoal dos patrões foi a emergência

1
Duarte, “Domesticação e domesticidade: a construção das exclusões”, p. 188.
2
Graham, House and street: the domestic world of servants and masters in Nineteenth-Century Rio de
Janeiro, p. 91.
3
Sobre os surtos de epidemias no século XIX e início do XX (febre amarela, cólera, febre tifóide,
sífilis), consultar Graham. Sandra L. “Contagion and Control” (em House and street: the domestic
128 Sônia Roncador

de mecanismos estatais de controle dos empregados domésticos (registros


de saúde e matrículas em delegacias de polícia), bem como da produção, e
popularidade, de manuais ou guias práticos, que se propunham a auxiliar a
dona de casa na “árdua” tarefa de treinar, ou “domesticar” seus criados. A
perda de autoridade, e controle, patronal também se refletiu na construção
literária dos empregados domésticos como signos de contaminação e vio-
lência: enredos de “delitos” físicos e morais como furtos, extravio de cartas,
chantagens, perversão dos valores morais burgueses, assassinatos permeiam
o universo doméstico das classes dominantes na literatura brasileira do
entresséculos XIX e XX.
Neste ensaio, proponho-me analisar esse imaginário literário do medo,
ou o que também denomino “histórias paranóicas”, a partir de um dos
romances mais importantes, e populares, nos anos em questão, A viúva
Simões (1897; publicado em folhetim na Gazeta de Notícias, em 1895), de
Júlia Lopes de Almeida (1863-1934). Por estar convencida de que o tema
das criadas literárias em Júlia Lopes não deve ser estudado num vácuo
histórico e, portanto, desassociado de outros discursos não-literários so-
bre a domesticidade, interessa-me aqui estudar A viúva Simões junta-
mente com seu manual para jovens esposas, Livro das noivas (1896), bem
como outros manuais domésticos em circulação no mesmo período. Auto-
ra de uma vasta obra que compreende vários romances, antologias de
contos e crônicas, peças teatrais, além de inúmeras traduções, colabora-
ções em jornais e outros escritos não ficcionais como manuais, narrativas
de viagem e ensaios, Júlia Lopes foi, ao longo de sua carreira, considera-
da a escritora e intelectual mais importante dos anos da Belle Époque
(1890-1914). Não obstante seu prestígio e fama (nacional e internacio-
nal), sua obra foi praticamente esquecida após sua morte em 1934, sendo
relativamente recente a recuperação, ou re-edição, de alguns de seus

world of servants and masters in Nineteenth-Century Rio de Janeiro); Chalhoub, Sidney. Cidade febril:
cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Sobre o pensamento
racial científico, e as políticas eugenistas na Belle Époque, consultar Borges, Dain. “Puffy, Ugly,
Slothful, Inert: Degeneration in Brazilian Social Thought, 1880-1940”, em Journal of American
Studies 25, 2 (1993), pp. 235-56; “The Recognition of Afro-Brazilian Symbols and Ideas, 1890-1940”,
em Luso-Brazilian Review, v. 32, nº. 2 (Winter, 1995), pp. 59-78; Stepan, Nancy Leys. The Hour of
Eugenics: Race, Gender and Nation in Latin America. Ithaca: Cornell University Press, 1991.
Histórias paranóicas, criados perversos... 129

livros, além de um re-aquecimento da crítica literária sobre o conjunto


de sua obra4.
Dentre os temas atualmente discutidos sobre a sua obra, parece-me
relevante o reconhecimento, por alguns críticos, de sua participação no
projeto finissecular de (re)construção, ou modernização da nação, leva-
do a cabo por intelectuais, educadores, profissionais liberais (cientistas,
médicos, juristas) e políticos republicanos. Júlia Lopes dedicou-se em seus
escritos a denunciar o arcaísmo da instrução e educação sentimental
femininas institucionalizadas pela família patriarcal, pois que, segundo
ela, impediam a preparação da mulher brasileira para o enfrentamento
dos novos desafios sociais, sobretudo para a compreensão “[d]a seriedade
da missão de esposas e mães dos futuros cidadãos [da] nova arena políti-
ca”5. A meu ver, como escritora engajada no projeto de conscientização
de suas leitoras da missão civilizadora da “mãe republicana”, Júlia Lopes
incentivou o medo burguês aos criados, compondo narrativas de violên-
cia e contágio físico e moral, para o sucesso de tal projeto pedagógico. Em
um outro ensaio sobre essa escritora, tive a oportunidade de examinar as
imagens literárias das amas-de-leite e lavadeiras como portadoras peri-
gosas das doenças associadas aos cortiços onde moravam, e trabalhavam6.
Imagens estas estrategicamente elaboradas para a promoção das teses
médicas oitocentistas a favor da maternidade “natural”, ou higiênica,
cujo objetivo era, em última instância, transferir para a mãe biológica as
responsabilidades atribuídas, no patriarcado, às criadas: a amamentação,
a primeira educação dos filhos, os cuidados higiênicos com o corpo e
vestuário infantis. Neste ensaio, discuto a apropriação de Almeida do
estereótipo da doméstica como invasora da privacidade e intimidade do
lar (qualidades intrínsecas ao espaço doméstico burguês), em especial a
inclusão, em A viúva Simões, da doméstica invejosa, e, pior, consumidora
4
Correio da Roça: romance epistolar (1913) foi republicado em 1987 pela Presença Edições e Instituto
Nacional do Livro; o romance A intrusa (1908) foi reeditado em 1994 pela Fundação Nacional do
Livro, Dep. Nacional do Livro; finalmente, a Editora Mulheres reeditou A viúva Simões (1897) e A
falência (1901), respectivamente em 1999 e 2003; encontra-se em fase de preparação para reedição,
pela mesma Editora Mulheres, o romance A família Medeiros (1892).
5
Sharpe, “O caminho crítico d’A viúva Simões”, p. 20.
6
Trata-se do artigo “O demônio familiar: lavadeiras, amas-de-leite e criadas na narrativa de Júlia
Lopes de Almeida”.
130 Sônia Roncador

(desautorizada, claro) dos bens e hábitos de classe dos patrões, sobretudo


das patroas. Em resposta à posição ambígua a que a criada passa a se
associar na família burguesa, ou seja, alguém “de fora dentro”, Almeida
enfatiza a vigilância da dona-de-casa como parte de suas responsabilida-
des, sugerindo a transformação da casa em um legítimo “panóptico”7.
Vistas como sujas, criminosas, lascivas, supersticiosas e contagiosas, as
domésticas se transformaram, aos olhos das classes dominantes, em um
obstáculo ao processo de aburguesamento da vida e espaço domésticos
que se queria impôr na modernidade. A centralidade que elas adquirem
nos escritos de Júlia Lopes revela uma escritora não somente atenta aos
debates em torno das crises decorrentes da modernização da vida domés-
tica, como também interessada em propor soluções às mesmas – soluções
estas que, ela e seus editores sabiam, seriam assimiladas por um vasto
grupo cativo de leitores, e sobretudo leitoras.
As condições das cidades (cada vez maiores e impessoais), o fato de
que muitos empregados domésticos já não faziam parte do clã familiar, ou
seja, já não moravam onde trabalhavam, são apenas alguns dos fatores
que dificultavam o controle dos patrões sobre seus empregados, e intensi-
ficavam a desconfiança que passou a caracterizar a relação entre patrão e
empregado doméstico. Na literatura desses anos surge precisamente a
figura do empregado invasor, um estranho no meio familiar, ou melhor,
alguém “de fora dentro” da casa8, há muito distante do estereótipo do fiel
escravo (a boa mucama, a mãe-preta, o pai João) – espécie de parente
pobre na família patriarcal brasileira, segundo o sociólogo Gilberto Freyre.
A partir dos esforços de normatização da vida doméstica nos anos da Belle

7
Assim como em “O panoptismo” (em Vigiar e punir: nascimento da prisão), Michel Foucault se
apropria do panóptico de Bentham para falar das instituições modernas “disciplinares” (prisões,
escolas, hospitais, exército). Neste estudo proponho o uso metafórico desse mesmo modelo
arquitetônico para uma compreensão da disciplinarização dos empregados domésticos, prescrita por
moralistas e higienistas, mas executadas pela dona de casa burguesa.
8
Sobre a posição, e status ambivalente da doméstica na família burguesa, consultar STALLLYBRASS,
Peter e WHITE, Allon. “Below Stairs: The Maid and the Family Romance” (em The politics and poetics
of transgression. Ithaca: Cornell University Press, 1986, p. 150.); Clifford, James. The predicament of
culture: Twentieth-Century ethnography, literature, and art (Cambridge, London: Harvard University
Press, 1988, p. 4.); MCCUSKEY, Brian. “Not at Home: Servants, Scholars, and the Uncanny” (em
PMLA, v. 121, nº. 2, mar. 2006, p. 424.).
Histórias paranóicas, criados perversos... 131

Époque, valores intrínsecos à noção burguesa de “lar” (home, ménage),


como intimidade e privacidade, vão se incorporando progressivamente à
vida familiar brasileira. Em Ordem médica e norma familiar, Jurandir Freire
Costa explica a importância de tais valores, a partir dos sentimentos de
desconfiança e medo aos empregados. Nesse contexto, argumenta Costa,
“intimismo familiar” se confunde muitas vezes com “retração do ambien-
te”, ou seja, uma re-orientação dos movimentos e zonas de acesso dos
empregados como resposta ao medo de contágio de doenças e outros “ris-
cos”, tais como furtos, acesso a informações privadas, violência física9.
No romance A viúva Simões, de Júlia Lopes, a ação se inicia “num
domingo de junho de 1891”, único dia da semana em que a protagonista,
Ernestina Simões, podia gozar da privacidade de seu lar, e “então respira-
va de alívio com o silêncio e a ausência dos servos que se revezavam no
serviço” (AVS10, p. 38). Pois é neste domingo de “silêncio” e “ausência
dos servos” que a viúva Ernestina se informa, através dos jornais, da che-
gada na capital de seu amante da juventude, Luciano Dias (nosso “primo
Basílio” tropical). É nesse dia, precisamente, que se re-manifesta na viú-
va a antiga paixão por Luciano – uma “doidice indiscreta” (AVS, p. 167),
nos termos do narrador – o que a leva, no decorrer do romance, a dispu-
tar o amante com a própria filha, Sara. Se a viúva Ernestina já sentia seus
momentos de privacidade invadidos pela presença de seus empregados,
“tão diferente[s] em raças e em educação” (AVS, p. 35), ao envolver-se
amorosamente com Luciano, essa sensação torna-se ainda mais freqüen-
te, e indesejável. A presença incômoda dos “servos” se faz notar em seus
momentos mais íntimos, ou melhor, durante suas entrevistas “secretas”
com o amante Luciano: “ficaram alguns segundos calados e imóveis; de
repente a moça, resvalando o olhar pelas paredes, pareceu-lhe distinguir
o corpo da Simplícia [nome de uma de suas criadas], mal oculto por um
reposteiro; levantou-se de chofre e atravessou a sala” (AVS, p. 101).
Embora se queixassem da “vigilância” ou espionagem das “negras da
casa” (“até as negras da casa queriam vigiá-la”, desabafa a filha Sara, na
página 171 do romance), os patrões não demonstravam o menor pudor

9
Costa, Ordem médica e norma familiar, p. 86.
10
A sigla AVS, seguida do número de página, será empregada sempre que se fizer referência à obra
A viúva Simões, de Júlia Lopes de Almeida.
132 Sônia Roncador

em, por sua vez, também vigiar seus empregados, mesmo quando essa
tarefa incluía a invasão da vida pessoal dos mesmos. Dependendo de suas
funções, ou seja, de seu acesso às áreas mais íntimas da casa (mucamas),
às crianças (amas-de-leite e de criação), ou simplesmente à cozinha (que
com os higienistas do século XIX passou a ser associada à saúde da famí-
lia), os empregados domésticos levantavam a suspeita, e medo, dos pa-
trões que se sentiam compelidos a vigiá-los para o bem estar moral e físico
de suas famílias. Recaía, pois, sobre a dona-de-casa a tarefa de vigiar e
controlar os criados, sendo a mesma aconselhada, em vários manuais do-
miciliares, a exercer parte dos serviços domésticos, assim como a circular
por áreas da casa antes destinadas aos escravos (área de serviço, cozinha,
quarto da empregada). “O olhar perscrutador da dona de casa, eis o que
nunca deve faltar” (AVS, p. 25), lê-se repetidas vezes no manual de Vera
Cleser, O lar doméstico: conselhos para boa direcção de uma casa11. Como
revelam esta e outras passagens do mesmo manual, na configuração ide-
alizada do corpo da nova mulher doméstica, privilegiam-se, além das
imagens das mãos (símbolo de suas prendas domésticas) e do coração
(morada de suas afeições e índole moral), os olhos “perscrutadores” ou
vigilantes da dona-de-casa. Os antigos gritos e castigos às mucamas pas-
saram a ser condenados como resquício bárbaro, não civilizado do patri-
arcado, como também um método obsoleto ou ineficaz para a garantia de
respeito e autoridade perante os empregados.
Diante de circunstâncias históricas mais complexas, era necessária, pois,
a criação de novas formas de poder, como a “disciplinarização” dos domés-
ticos, que consistia na assimilação de valores burgueses, tais como a higie-
ne, a economia, o gosto pelo trabalho, pela ordem e método, assim como na
incorporação de certas maneiras e posturas corporais “servis” (modos de se
dirigir aos patrões, maneiras de olhar, andar, de se vestir etc.). Segundo
Cleser, o sucesso dessa empreitada dependia precisamente da vigilância
permanente da dona-de-casa: “Dar ordens, sem vigiar attentamente se são
executadas com esmero, de nada vale; uma criada não fiscalisada é um
ente inutil numa casa” (AVS, p. 25). Pois é como dona de casa “vigilante”
ou “fiscalizadora” do serviço executado pelos criados que a viúva Ernestina

11
Cleser, O lar doméstico: conselhos para boa direcção de uma casa. Decidi manter a ortografia original
nas citações dos manuais domésticos oitocentistas que aparecerão ao longo deste ensaio.
Histórias paranóicas, criados perversos... 133

é descrita nas primeiras páginas de A viúva Simões. “Para não desmerecer


nunca do conceito de boa dona de casa”, ou da “fama de menagère exem-
plar”, Ernestina, no princípio da narrativa, “dedicava-se absolutamente à
sua casa”, analisando todo o serviço doméstico “num exame fixo, demora-
do, paciente, que exasperava os seus cinco criados” (AVS, p. 35):

Levantava-se cedo, percorria o jardim (…) censurava o hortelão pelo menor descuido;
via até as mais insignificantes ninharias (…) No interior da casa era um chuveiro de
recriminações. A cozinha tomava-lhe horas. Passava os dedos nas panelas e nos ferros
do fogão a ver se estavam limpos (…) E era assim em todos os compartimentos,
minuciosa, ativa, severa (AVS, p. 36).

Embora pecasse pela “severidade” com seus cinco criados, a viúva acer-
tava, segundo o narrador, em vigiar o trabalho dos mesmos, pois longe de
seu escrutínio havia sempre o perigo de “que lhe pusessem fogo à casa!”
(AVS, p. 130), como ela mesma confessa a uma tia. Quando se deixa per-
der em “desejos e idílios” românticos, porém, o seu medo se concretiza:

[Ernestina Simões] passava os dias a pensar nele [Luciano Dias], nuns idílios de menina de
quinze anos. Os criados já não sofriam a mesma fiscalização severa. Os armários ficavam
abertos, a chave da dispensa nas mãos da Benedita [a cozinheira da família Simões], para
regalo da Simplícia, que apreciava os seus copinhos de licor de cacau (AVS, p. 101).

No capítulo “Os criados” de seu manual doméstico Livro das noivas,


capítulo este dedicado a apresentar soluções para a “queixa” das donas
de casa quanto à desobediência e desonestidade de seus empregados
domésticos, Almeida condena o hábito da dona de casa brasileira de
trancar os armários e dispensas da cozinha – para ela um incentivo à
gula, e cobiça dos serventes: “os homens são como os animaes… não
rouba o cão que é bem alimentado nem devora a caça do caçador o
animal que fôr para o campo com o estomago cheio…”12. Em outros ma-
nuais contemporâneos ao de Almeida, como o acima citado O lar domés-
tico, condena-se igualmente o hábito de alimentar os criados com os res-
tos da comida dos patrões, para não lhes aprimorar o paladar, e a necessi-

12
Almeida, Livro das noivas, p. 126.
134 Sônia Roncador

dade de uma dieta dispendiosa (o mesmo conselho servia para o perigoso


hábito de “presentear” as criadas com as roupas usadas das patroas). Ali-
mentadas, pois, com comida barata, as criadas (“cão”) podiam-se acercar
das iguarias (“caça”) mais caras sem que lhes despertasse a vontade de
possuí-las. O hábito condenável de trancar os armários e o fato de Ernestina
Simões abandonar o posto de dona de casa vigilante contribuem, segun-
do Almeida, para a infidelidade de seus serventes, ou, ao menos, da cri-
ada Simplícia – “magra, baixa, com um focinho de fuinha e olhos peque-
nos, perspicazes e terríveis” (AVS, p. 35).
A entrada de Simplícia na narrativa já anuncia suas incursões pela casa,
ou melhor, pelo quarto de Ernestina, onde a criada mulata furtava os obje-
tos femininos da patroa para realizar suas fantasias de senhora branca:

A areia do jardim rangeu e a viúva voltou para lá a cabeça. Era a Simplícia, que ia lépida, de
saias engomadas, procurando cravinas para enfeitar a carapinha, já amarrada com uma fita
azul. Quando passou rente à janela, a viúva sentiu o cheiro das suas essências exageradamente
impregnadas na mulatinha; fechou os olhos, sentindo preguiça de ralhar por aquela confian-
ça – a rapariga rabeou ligeira por entre os canteiros e sumiu-se (AVS, p. 40).

Embora ridicularizada pelo uso “exagerado” dos perfumes da patroa,


Simplícia encarna nessa, e em outras passagens do romance, o protótipo da
empregada doméstica invejosa. Não se trata, portanto, do antigo emprego
retórico dos “servos” como duplos de seus senhores (não obstante a
comicidade provocada pelo efeito de “má” cópia da patroa que a atuação
de Simplícia parece sugerir). Sua diferença social e racial é propositada-
mente marcada pelo registro inculto de sua fala, e pelos movimentos de seu
corpo associados à visão sexualizada da mulata recorrente na literatura, e
pensamento racial da época: “Simplícia voltou, ondulando o seu corpo de
cobra em movimentos preguiçosos, cantarolando entre os dentes …” (itálico
meu; AVS, p. 171). Uma diferença que a criada tenta, contudo, negar: não
aceita ser chamada de negra ou mulata, mas somente pelo eufemismo “moça
morena”; insiste em se referir à patroa Ernestina Simões como sua “mamãe”
(na ausência da mesma, claro); exibe seu “capital cultural” burguês atra-
vés da única frase que domina do idioma francês, e ainda assim mal pro-
nunciada; e, finalmente, como revela a seguinte passagem, limita-se a rou-
bar da patroa somente o que alimenta a sua fantasia de senhora branca:
Histórias paranóicas, criados perversos... 135

A Simplícia aproveitava a ausência de Ernestina, enchendo-se de goiabada, queijo do


Reino e cálices de licor, muito bem repimpada numa cadeira da sala de jantar… A Simplícia
arremedava a senhora na maneira de estar à mesa, movia com delicadeza o cálice e dava
dentadinhas pequenas no doce, sorrindo da sua finura, a remoer idéias (AVS, p. 125).

Em seu ensaio “Entre nós mulheres, elas as patroas e elas as emprega-


das”, sobre a relação entre patroas e empregadas domésticas no Brasil, a
antropóloga Maria Suely Kofes de Almeida examina a “difícil identidade”
entre patroa e doméstica ou, como ela prefere denominar, “uma nebulosi-
dade” pois que a empregada executa na casa as tarefas que, na sua ausên-
cia, seriam realizadas pela patroa. Além das responsabilidades domésticas,
o consumo de bens da patroa (nas passagens acima citadas, roupas e ador-
nos para o cabelo, perfumes, iguarias finas, além de noções de etiqueta)
passa na modernidade a ser um outro fator de nivelamento (embora apa-
rente) entre mulheres de distintas classes sociais. Conseqüentemente, os
fatores igualitários entre criadas e patroas tendem a ser por estas negados,
para que predomine na relação de ambas a diferença social, ou para que a
empregada aprenda “qual é o seu lugar”. Conforme ainda argumenta Kofes,
“como se a organização familiar fosse ameaçada no monolitismo de seus
papéis e na sua função de reprodutora social”, a patroa também impõe
“como condição à presença da empregada a sua assexualidade”13. Obser-
va-se, nesse sentido, a preocupação em vários manuais domésticos com
respeito à aparência física das empregadas domésticas, e as dicas de con-
trole do corpo das mesmas (sua higiene, marcas de sua sexualidade/femini-
lidade) decorrentes dessa preocupação. Em O lar doméstico, de Vera Cleser,
por exemplo, lê-se: “Acostumai-a [a doméstica] a usar de calçado leve e de
um collete mui pouco apertado, para dar ao busto a decencia e a dignidade
perfeitamente compativel com um vestido de riscado”14. Além de decen-
tes, deveriam as criadas receber orientações de higiene corporal, pois “cau-
sam-me arrepios de repugnancia estas borralheiras rotas e sujas, que nunca
lavam o corpo com sabão e somente penteiam o cabello quando vão à mis-
sa, isto é, uma unica vez por semana”15.

13
Almeida, “Entre nós mulheres, elas as patroas e elas as empregadas”, p. 193.
14
Cleser, O lar doméstico, p. 244.
15
Id., p. 18.
136 Sônia Roncador

Dada a carência de escolas de treinamento de domésticos na Velha


República, e a falta de regulamentação dessa profissão na Constituição
de 1891, autores de diversos manuais discutiram maneiras de treinar, ou,
talvez mais adequado ao tom desses manuais, “domesticar” os emprega-
dos. Além da fiscalização do serviço doméstico, fazia-se da dona de casa
a responsável pela absorção dos criados de noções burguesas de higiene;
pela internalização de uma coreografia corporal da subserviência; assim
como o aprendizado das tarefas domiciliares, segundo os padrões de com-
petência estabelecidos pelas classes dominantes. No entanto, como o ob-
jetivo último desses manuais era na realidade educar a própria patroa (os
manuais para domésticas no Brasil aparecem somente no século XX), a
discussão em torno da domesticação dos criados é toda ela perpassada
pela ênfase na exemplaridade da dona de casa. Para Sylvino Junior, autor
do manual A dona de casa: a mais util publicação em portuguez, uma educa-
ção eficaz aos domésticos exigia primeiramente uma dona de casa efici-
ente, metódica, asseada, vigilante, enfim uma dona de casa exemplar, já
que “a criada inferior em raça e em educação procura imitá-[la] e come-
ça por ser limpa, própria, grave e obediente… é uma tendência fatal esta:
o inferior procura sempre imitar o superior…”16. Em seu capítulo “A arte
de educar a criada”, Cleser enfatiza as “maravilhas” que o “exemplo da
ordem e da actividade” produz no “aperfeiçoamento” das domésticas; além
disso, somente a dona de casa exemplar pode “exigir obediencia, pontuali-
dade no serviço e cuidado no gasto dos generos alimenticios, etc”17, ou, em
outras palavras, exercer plenamente sua autoridade patronal.
É interessante observar em A viúva Simões que os furtos de Simplícia
intensificam-se não somente pela negligência de Ernestina em fiscalizar
os criados, como também por seu próprio processo de “degradação” moral:
sua vaidade, voluptuosidade, nervosismo, além das “faltas” domésticas
enquanto mãe e dona de casa. De fato, na cena subseqüente à passagem
acima citada, em que Simplícia se embebeda com cálices de licor e se
empanturra com goiabada e queijo, ela afronta sua patroa – em parte
pelo efeito do álcool, mas em parte também por conhecer o segredo amo-
roso de Ernestina (fato este que a desautorizava diante da criada). Ao

16
Sylvino Junior, A dona de casa: a mais util publicação em portuguez, p. 65.
17
Cleser, op. cit., p. 239.
Histórias paranóicas, criados perversos... 137

insinuar à patroa seu conhecimento de tal segredo, esta, “colérica, ergu[e]


a mão para bater na negrinha” (AVS, p. 126), ao que Simplícia lhe res-
ponde: “ – Iaiá, já não sou sua escrava! Se a senhora não me fizé as
vontades eu juro em como vou direitinha dizê tudo a nhá Sara: que seu
Luciano tem raiva dela, e que dá beijinhos na senhora!...” (AVS, p. 127).
Publicado pela primeira vez em 1895, A viúva Simões revela de modo
contundente a crise de autoridade patronal nos lares das classes média e
alta, durante os primeiros anos da República. A criada Simplícia encarna
a uma só vez os estereótipos da empregada invasora da privacidade e
intimidade burguesas, e invejosa do lugar da patroa. A ênfase na sua
sexualidade “de mulata” poderia, ainda, colocá-la em posição de disputa
do lugar de esposa/amante, não fosse a viuvez de Ernestina. Além de
Simplícia, trabalham no chalet da família Simões outros criados cujo com-
portamento, à exceção da fiel cozinheira Benedita, reforça a perda da
autoridade pessoal dos patrões. A (humilhada) Ernestina da cena acima
citada precisa ser lembrada pela própria criada de que já não mais se
garantia, através de castigos físicos, uma posição de autoridade perante
os empregados domésticos: “– Iaiá, já não sou sua escrava!”.
Embora imagens de domésticos perversos, violentos, desonestos,
infectados recorressem nos escritos literários e não literários da Belle
Époque, vale, no entanto, lembrar que tais imagens já eram conhecidas
do público leitor oitocentista, exposto a um variado repertório de ima-
gens literárias dos escravos – dentre estas, o escravo infiel, e ameaçador
da integridade física e moral da classe senhorial. Talvez tenha sido a peça
teatral O demônio familiar (1857), de José de Alencar, um dos textos pio-
neiros na literatura brasileira a retratar o escravo, em particular o escravo
doméstico, como ameaça à corrupção do bem-estar e costumes familia-
res. Apesar da configuração cômica do escravo nessa peça, e não obstante
as próprias convicções políticas do autor18, em O demônio familiar Alencar
legitimou um perfil do escravo (desonesto, imoral, destruidor da paz do-
méstica) que mais tarde inspiraria o que Brito Broca denominou a orien-

18
Para uma revisão das convicções pró-escravocratas do político José de Alencar, ler CHALHOUB,
Sidney. Machado de Assis historiador (São Paulo: Companhia das Letras, 2003), mais especificamente
o capítulo 4 do livro, “Escravidão e cidadania: a experiência histórica de 1871”, pp. 131-291.
138 Sônia Roncador

tação “realista” (vs. romântica) da literatura abolicionista19. Segundo


Roberto Ventura, a perversão dos escravos era para os abolicionistas um
efeito da escravidão, ou cativeiro, “visto como ‘cancro’ ou ‘infecção mo-
ral’”20. E como este e outros críticos argumentam, num movimento particu-
lar ao pensamento anti-escravagista brasileiro, de vítimas os escravos passa-
vam a algozes, pois que bestializados pelo cativeiro não hesitavam em prati-
car, por inveja ou vingança, atos de violência contra seus senhores. No caso
dos escravos domésticos, havia o risco de transmissão dos valores pouco cas-
tos adquiridos no cativeiro, em particular aos membros “vulneráveis” da
família patriarcal (o sinhôzinho e a sinhá-moça), além de confabulações de
intrigas que fragilizavam a paz doméstica, como é o caso da peça de Alencar.
Mas ao contrário do que argumentavam os abolicionistas, o fim da es-
cravidão não superou o medo das elites de seus criados. Na verdade, como
tentei aqui demonstrar, esse medo se intensificou com o fim do sistema
escravagista. Em primeiro lugar, o antro do cativeiro foi simplesmente subs-
tituído no imaginário das elites pelo submundo dos cortiços. A renovação
da vida doméstica, ou sua modernização, iniciada no Segundo Império mas
levada a cabo nos anos da Velha República, contribuiria também para au-
mentar a desconfiança dos patrões em relação a seus empregados domésti-
cos. Associados às doenças, sujeira, criminalidades e outros males da classe
baixa, o empregado doméstico tornou-se uma espécie de classe incômoda,
ou pior, inimiga do projeto de modernização, ou civilização da vida e espa-
ço domésticos, idealizado pelas elites na virada do século. Contudo, ainda
que incomodados ou temerosos, os patrões não abriram mão dos serviços de
suas criadas. Embora associadas às enfermidades epidêmicas, criminalidades
e outros males dos cortiços, as domésticas, no entanto, constituíam nos
anos da Belle Époque a maior porcentagem de mulheres no mercado de
trabalho – em 1870 elas correspondiam a 71% da mão-de-obra feminina,
contra 76% em 1906 21 . De manufaturadoras dos bens ainda não

19
Broca, “‘O bom escravo’ e ‘vítimas-algozes’”, pp. 271-3. Dentre alguns exemplos dessa orientação,
destacaria o romance A escrava Isaura (1865), de Bernardo Guimarães (que justifica a nobreza do
caráter da protagonista Isaura por seus traços fenotípicos europeus, e pela educação recebida longe
do antro do cativeiro) e a coletânea panfletária As vítimas-algozes: quadros da escravidão (1869), de
Joaquim Manuel de Macedo.
20
Ventura, Estilo tropical, p. 46.
21
Graham, op. cit., p. 186.
Histórias paranóicas, criados perversos... 139

disponibilizados no mercado (sabão, velas, roupas), as famílias na Belle Époque


transformaram-se em “unidades de consumo”22 – fato este que teria simpli-
ficado bastante o serviço doméstico. Ainda assim, segundo as estatísticas
fornecidas por Sandra Graham, a popularidade do emprego de domésticas
não pareceu haver sofrido alterações.
O emprego de perfis assustadores de criadas foi um recurso comum
nos projetos literários de educação feminina para o lar, que criaram nar-
rativas paranóicas de contágio e violência para lograr das leitoras uma
conscientização de suas responsabilidades domésticas. Se os domésticos
não desapareceram das moradas burguesas, mediante a vulnerabilidade
e o medo da classe dominante, é porque tampouco deixaram de represen-
tar, não obstante tal medo, status e conforto para essa classe. Além disso,
a presença de uma doméstica para a execução do serviço “grosseiro” (lim-
peza, cuidados higiênicos, cozinha) foi útil para a consolidação da nobre
“missão de mãe e esposa” na República. A normatização do serviço do-
méstico decorrente da ascensão da família burguesa, e transmitida atra-
vés de distintos discursos sobre a domesticidade (manuais domésticos,
guias médicos populares, romances de conduta), elaborou-se a partir de
uma oposição hierárquica entre as tarefas morais (associadas à “mulher
doméstica”, ou seja, a esposa/mãe/dona de casa) e aquelas manuais (ge-
ralmente sob a responsabilidade de uma criada). No Brasil, a maternida-
de (branca) pôde se associar à função civilizadora graças ao cumprimen-
to por uma ama, geralmente negra ou mestiça, das tarefas maternais con-
sideradas “grotescas”, ou anti-higiênicas. Enquanto à mãe branca, legíti-
ma, cabia a nobre tarefa de educar (civilizar) seus filhos, ficava então
reservado às mães negras de criação o serviço “degradante” da materni-
dade, ou seja, a lavagem de roupas, os cuidados higiênicos das crianças,
e, até o fim da monarquia, a amamentação. Estes são apenas alguns fato-
res que contribuíram para a sobrevivência de uma classe (os criados)
que, apenas emergida com o fim da escravidão, já se ia tornando obstácu-
lo para o que mais almejava a burguesia: a realização de seus sonhos de
civilização; fatores estes que fizeram da empregada doméstica uma espé-
cie de “mal necessário” na vida doméstica burguesa em ascensão nos
anos da Belle Époque tropical.
22
Besse, Restructuring patriarchy, p. 18.
140 Sônia Roncador

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Recebido em abril de 2007.


Aprovado em junho de 2007.

Sônia Roncador – “Histórias paranóicas, criados perversos no imaginário literário da Belle Époque tropical”.
Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 127-140.
A Amazônia como voragem da
história: impasses de uma
representação literária
Francisco Foot Hardman

1. Anfiteatro amazônico: gênese incompleta


Franklin Távora, no famoso prefácio-manifesto naturalista de seu ro-
mance O Cabeleira (1876), ao propor uma “Literatura do Norte” como
movimento necessário a uma maior autenticidade da produção literária
nacional, fala-nos pouco de Pernambuco e do Nordeste, palcos privilegia-
dos de suas novelas históricas. Discorre muito mais sobre a Amazônia, sobre
sua grandeza e complexidade quase irrepresentáveis, embora, assim argüis-
se, fosse desejável encarar o desafio dessa representação, não só na vida
artística como no conhecimento científico e na economia política, já que o
processo civilizatório e as leis do progresso assinalavam ali, com o boom da
indústria extrativa do látex e da navegação a vapor, como o marco de fren-
te das futuras fronteiras de expansão do capital em escala planetária.
Claro, o termo Norte, naquelas alturas, abrigava indistintamente to-
das as províncias nordestinas e nortistas do Brasil. Mas é sintomático, no
documento literário em pauta, que o autor cearense, ao lançar esse ma-
nifesto, evoque em primeiro plano as paisagens da Amazônia que conhe-
cera poucos anos antes, como secretário do governo da província do Pará,
e de que afinal nunca tratará diretamente em seus romances regionalistas,
fixando-a assim como um mundo ainda à parte, objeto do nosso sonho
civilizatório – o que incluiria sua representação literária, sua incorpora-
ção à cultura letrada nacional – mas de todo modo um território distan-
te, remoto no tempo e no espaço, envolto no mistério de seus rios, flores-
tas, línguas “sem história”, enfim, no império de uma violência naturali-
zada, na fúria ancestral de uma natureza indômita.
Começamos com este exemplo, porque nos parece ilustrativo de um
paradigma que tem predominado, com pequenas variações, nas represen-
tações literárias sobre a Amazônia, tomada como um dos últimos e gran-
diosos refúgios do exotismo aquático-vegetal e do mistério de culturas
humanas pré-históricas de vestígios não-monumentais no Brasil e no
142 Francisco Foot Hardman

mundo. Mas hoje quase ninguém se preocupa com a obra de Franklin


Távora, a não ser alguns poucos professores démodés. O que sugerimos
não é sua possível “influência”, de resto discutível, mas certamente a
representatividade dessa visão, seu lastro de lugar-comum nos relatos e
ficções que elegeram a região amazônica como seu tópico central.
E isso, acreditamos, deve valer tanto para o Brasil, como para os de-
mais países sul-americanos amazônicos (quantas vezes esquecemos que a
Amazônia é, por natureza e cultura, geografia e história, internacional!),
vale dizer, Guiana Francesa (mesmo que departamento ultramarino fran-
cês, sua condição amazônica pode ser vista especificamente), Suriname,
Guiana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia. Na impossibilida-
de de estender a análise desse argumento aqui, vamos apenas sugerir a
persistência dessa visão da natureza amazônica violenta e bárbara em
alguns autores/obras de nossa melhor vizinhança. Entre eles, a obra-pri-
ma La vorágine (1924), do romancista colombiano José Eustasio Rivera,
talvez a matriz ficcional de maior repercussão na literatura latino-ameri-
cana do século XX, na direção dos arquétipos de que tratamos. Lembre-
mos, a propósito, que por volta de 1935, essa obra já estava traduzida pela
primeira vez no Brasil, acompanhando a onda explosiva da produção e
edição de romances entre nós, naquela década.
Entre fontes mais antigas, é certo que a literatura de cronistas e via-
jantes, desde o século XVI, ao erigir o “real-maravilhoso” como matéria-
prima temática de suas construções sobre a Amazônia, constituiu acervo
considerável de elementos passíveis de serem apropriados e retraduzidos,
já no século XIX, por toda a literatura ficcional, do romantismo aos vários
modernismos, a partir pelo menos de 1870. Poderíamos lembrar, entre
autores-viajantes, na plêiade de exploradores e naturalistas que, entre os
Setecentos e os Oitocentos, repercutiram depois em autores brasileiros,
de Rodrigues Ferreira, Bates, Wallace, Castelnau, Coudreau, casal
Agassiz, Chandless etc. Seria vetada, em princípio, a menção a Humboldt,
que foi proibido pelas autoridades coloniais porturguesas de atravessar a
bacia do Orenoco, pelo rio Cassiquiare, e adentrar a bacia do Amazonas,
pelo rio Negro. Mas o peso do autor-viajante germânico foi decisivo, seja
pela forte recepção de sua obra no imaginário e relatos de autores de
nossos países vizinhos, seja pelas leituras diretas e indiretas certamente
dele feitas no Brasil.
A Amazônia como voragem da história 143

Mas se nos fosse dado escolher, entre tantos viajantes que percorre-
ram a Amazônia, algumas vozes especiais, que se diferenciam por maior
sensibilidade em relação às culturas autóctones, que são mais “artísti-
cas” que “científicas” em suas representações, mencionaríamos, além
do filósofo, desenhista e poeta norte-americano William James, que
acompanhou a expedição dos Agassiz nos anos 1865-661, a experiência
singular que se apreende nos relatos e desenhos do francês Paul Marcoy
(1815-1888) e nos ensaios e vocabulários do italiano Ermanno Stradelli
(1852-1926).
De Paul Marcoy, ficaram as narrativas de sua Voyage à travers
l´Amérique du Sud, de Océan Pacifique à l´Océan Atlantique (1869, 2 v.),
empreendida entre os anos 1846-47, mas com prolongamentos e novas
estadias pelo menos até 1860. De espírito aventureiro e nada especialista,
Marcoy, em suas divagações e desenhos, expõe-nos uma Amazônia cujo
legado indígena havia sido precocemente destruído. A inexistência de
objetivo deliberado e a lentidão com que traça seus registros, de resto
precisos, são a marca diferenciadora de seu relato2. Já de Stradelli, são
muitos seus trabalhos, incluindo vocabulários indígenas, estudos sobre
mitos e sobre as inscrições nas itacoatiaras da região dos Uaupés, em que
o explorador percebe outros possíveis liames entre pensamento, imagina-
ção e linguagem nas culturas amazônicas tradicionais3.
Entre o final do século XIX e início do XX, aparecem várias narrativas
ficcionais amazônicas no Brasil. Entre outras, vale ressaltar, da obra do
paraense Inglês de Sousa, para além de seus romances em chave realista-
naturalista (O cacaulista; História de um pescador; O coronel sangrado;
O missionário, publicados entre 1876-91), seus Contos amazônicos (1893),
de muita vivacidade, captando cenas da memória popular na região na-
tal do autor, em torno a Óbidos, inclusive da Guerra da Cabanagem, em

1
A esse propósito, a historiadora Maria Helena Machado, da USP, acaba de editar o interessantís-
simo volume Brazil through the eyes of William James: letters, diaries and drawings, 1865-1866.
2
Recentemente, foi publicada entre nós a “parte brasileira” da expedição de Marcoy, em edição
traduzida e anotada cuidadosamente por Antonio Porro. Cf. Marcoy, Viagem pelo rio Amazonas.
3
A melhor apresentação e homenagem ao viajante italiano ainda está em Luís da Câmara Cascudo:
Em memória de Stradelli.
144 Francisco Foot Hardman

que se entremeiam tapuios, caboclos e cabanos em resistência cultural


contra os potentados locais. O também paraense de Óbidos e crítico José
Veríssimo escreveu obras importantes sobre a região, como Cenas da vida
amazônica (1886) e A pesca na Amazônia (1895), este último verdadeiro
manifesto ecologista avant la lettre.
Tal enumeração prossegue com acúmulo crescente de títulos ao longo
do século XX. De Euclides da Cunha a Ferreira de Castro e a Márcio
Souza, de Alberto Rangel a Dalcídio Jurandir e a Milton Hatoum, parece
que o realismo naturalista predomina como chave estética da representa-
ção literária da Amazônia no Brasil. E na literatura hispano-americana, o
espectro de La vorágine ganha foros de matriz figuradora de várias novelas
amazônicas ulteriores, como Los pasos perdidos (1953), do cubano Alejo
Carpentier, La casa verde (1966) e Pantaleón y las visitadoras (1973), do
peruano Mario Vargas Llosa, para não falar do ciclo de relatos ficcionais
do marinheiro Maqroll, protagonista da lavra do colombiano Álvaro Mutis,
entre eles as narrativas de La nieve del Almirante (1986) e Un bel morir
(1989), já que no labirinto humano-geográfico entre a cordilheira e o
mar, há sempre a selva e o rio. O título de Un bel morir repercute, mais de
sessenta anos depois, o motivo nuclear e trágico do naufrágio fluvial dos
personagens tragados por um redemoinho, segundo o narrador-viajante
Arturo Cova, em La vorágine:

La visión frenética del naufragio me sacudió con uma ráfaga de belleza. El espectáculo
fue magnifico. La muerte había escogido una forma nueva contra sus víctimas, y era
de agradecerle que nos devorara sin verter sangre, sin dar a los cadáveres livores
repulsivos. !Bello morir el de aquellos hombres, cuya existencia apagóse de pronto,
como uma brasa entre las espumas, al través de las cuales subió el espíritu haciéndolas
hervir de júbilo!4.

4
Rivera, La vorágine, pp. 102-3, grifos nossos. Cf. tradução brasileira de Reinaldo Guarany, em A
voragem, pp. 115-6: “A visão do naufrágio sacudiu-me com uma rajada de beleza. O espetáculo foi
magnífico. A morte havia escolhido uma nova forma contra as suas vítimas e era de agradecer-lhe
pelo fato de nos devorar sem verter sangue, sem dar aos seus cadáveres livores repulsivos. Belo
morrer o daqueles homens, cuja existência apagou-se de súbito, como uma brasa entre as espumas,
através das quais o espírito subiu, fazendo-as ferver de júbilo!”.
A Amazônia como voragem da história 145

Mas, além da literatura dos viajantes que essa vertente veio depois
ficcionalizar ao extremo, como não lembrar aqui da literatura fantástica
e da ficção científica, remontando-se obrigatoriamente à experiência
radical do sublime romântico nesse conto soberbo de Edgar A. Poe que é
“A descent into the Maelström” (1841), passando-se pelo metafórico La
jangada: 800 lieues sur l´Amazone (1881), de Jules Verne, que por sinal
cita e homenageia Poe em diversas passagens, e culminando-se nesse
outro compósito de mitos populares, fantásticos e científico-ficcionais sobre
a Amazônia naquela virada de século que é o romance The lost world
(1912), de A. Conan Doyle?
Como negar essa insinuação do mistério exótico, folclorizante e da
hiper-brutalidade das forças naturais em obras como as de Gastão Cruls,
por exemplo, nesse must de público que é o romance A Amazônia miste-
riosa (1925)? Ou a digressão jornalístico-popular em narrativas que en-
tremeiam ficção e crônica, como nas obras do belenense radicado em
Manaus, Raimundo Morais (1875-1941), jornalista e comandante de
vaticanos e gaiolas (embarcações de transporte fluvial na bacia do Ama-
zonas), desde outro amplo sucesso editorial que foi seu Na planície ama-
zônica (1926), até País das pedras verdes (1931), Anfiteatro amazônico
(1936), Ressuscitados: romance do Purus (1939) ou Cosmorama (1940)?
E que dizer de Peregrino Júnior (1898-1983), potiguar que viveu parte
da juventude em Belém, jornalista e médico, autor que reuniu em A
mata submersa e outras histórias da Amazônia (1960), contos e crônicas
produzidos desde os anos 20?
Todos esses links de homologias nos parecem cabíveis. Arriscaríamos ir
um pouco além: difícil mesmo, para o crítico contemporâneo, seria não
enxergar as similitudes dessa linhagem fantasista, folclorista, com laivos
de crônica ficcionalizada e de lirismo fantástico, em obras-primas do mo-
dernismo paulista, como Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, e
Cobra Norato (1931), de Raul Bopp, tentativas em boa parte bem sucedi-
das de domesticar algumas imagens do primitivismo, seja pelo humor sa-
tírico, seja pelo apelo ao lúdico e a certo imaginário “infantil-indigenista”.
A violência, sublimada, tresanda em melancolia. Em uma vida perdida
na constelação Ursa Maior, em Mário, ou simplesmente no retorno da
paisagem arruinada, em Bopp:
146 Francisco Foot Hardman

Esta é a floresta de hálito podre


parindo cobras

Rios magros obrigados a trabalhar


A correnteza se arrepia
descascando as margens gosmentas

Raízes desdentadas mastigam tudo

Num estirão alagado


o charco engole a água do igarapé5

2. Inferno verde: apocalipse antes do fim


Na esteira de A selva (1930), do escritor português Ferreira de Castro,
romance-denúncia das condições de semi-escravidão do trabalho nos se-
ringais, surgiram, no Brasil, nos anos 1930, várias narrativas ficcionais de
mesma temática, que lembravam, também a seu modo, tanto La vorágine,
quanto os contos amazônicos de Alberto Rangel reunidos em Inferno verde
(Gênova, 1908), prefaciado por Euclides da Cunha, e no excelente e me-
nos conhecido volume Sombras n´água (Leipzig, 1913)6. Referimo-nos, por
exemplo, aos romances amazônicos do jornalista, militante comunista, so-
ciólogo e poeta belenense Abguar Bastos (1902-1995), A Amazônia que
ninguém sabe (1930 – depois renomeado como Terra de Icamiaba, 1934),
Certos caminhos do mundo: romance do Acre (1936) e Safra (1937); a Terra
de ninguém (1934), “romance social da Amazônia”, do amazonense de
Manicoré, Francisco Galvão (1906-1948); e a Seiva (1937), romance em
mesma chave do diplomata belenense Osvaldo Orico (1900-1981).
A esse conjunto haveria que acrescentar, ainda nos anos 1920, os escri-
tores cearenses Carlos de Vasconcelos, autor de Deserdados (1921), roman-
ce-saga pioneiro da vida nos seringais; e Alfredo Ladislau, com Terra imatu-
ra (1923), quadros ensaístico-ficcionais apologéticos da planície amazôni-

5
Bopp, “Cobra Norato”, p. 152.
6
Sem falar em outra ancestralidade textual importante, a do artigo político feito por Euclides logo
depois de sua volta da Amazônia, “Entre os seringais”, publicado no início de 1906 na revista
Kosmos, e que pode ser lido como libelo radical contra o sistema capitalista de extração da borracha.
A Amazônia como voragem da história 147

ca, que poderiam se irmanar aos sonetos telúricos coevos de José Eustasio
Rivera, em Tierra de promisión (1921), traçado poético-paisagístico de ima-
gens que logo depois lhe serviriam de material para La vorágine. Essa reitera-
ção parece marcar a tentativa de consolidar a figuração literária naturalista
da região amazônica, no contexto do Estado nacional e da sociedade brasi-
leira, cerca de seis décadas depois do prefácio-manifesto de Franklin Távora.
Será, no entanto, com o escritor, jornalista e militante comunista
Dalcídio Jurandir (1909-1979), natural da ilha de Marajó, que essa re-
presentação romanesca na trilha realista conhecerá estabilidade temática,
equilíbrio estético e continuidade histórica. De seus onze romances, dez
versam sobre a Amazônia, constituindo o que foi chamado de ciclo do
Extremo Norte, com narrativas em cenários da ilha de Marajó, além do
interior do estado do Pará e de Belém, começando com o premiado Chove
nos campos de Cachoeira (1941) e terminando com Ribanceira (1978), in-
tercalados, entre outros, por Marajó (1947), Três casas e um rio (1958) e
Belém do Grão-Pará (1960). Em Dalcídio, a lentidão dos ritmos equatori-
ais adquire textura, sem concessões ao pitoresco. Por outro lado, o peso
de uma natureza aquática, presente em especial na hidrografia e na
pluviometria, fazem-se sentir nas palavras e nas horas. Seus personagens
possuem papéis sociais bem definidos. Mas seus romances não se “nacio-
nalizaram” como os de escritores nordestinos, isto é, permaneceram à
margem, no rodapé da história literária brasileira, como caso exemplar de
um regionalismo de boa qualidade. Somente muito recentemente passou
a ser relido e reeditado. O crítico paranaense Temístocles Linhares foi
das raras vozes a detectar sua importância7.
Cerca de duas gerações posteriores, a produção dos autores amazonenses
Márcio Souza (1946-) e Milton Hatoum (1952-) têm-se destacado no
panorama da prosa de ficção no Brasil contemporâneo. E representações
da vida amazônica estão presentes, em diferentes registros e estilos, nas
obras dos dois escritores8. Assim como diferentes impasses.

7
Cf. Linhares, História crítica do romance brasileiro, pp. 40-1.
8
Na impossibilidade de desenvolver aqui análise mais exaustiva das obras de M. Souza e M.
Hatoum, remeto os leitores aos ensaios de minha autoria: “Morrer em Manaus: os avatares da
memória em Milton Hatoum” e “Revolta – Na planície do esquecimento: a grande falha amazônica”.
148 Francisco Foot Hardman

Em Márcio Souza, se a verve satírica e folhetinesca da novela de es-


tréia, Galvez, o imperador do Acre (1976), projetada inicialmente como
roteiro cinematográfico e valendo-se ao mesmo tempo da rica experiên-
cia do autor na dramaturgia de um teatro político regional, atingiria tal-
vez o máximo de seu teor transgressivo em um romance
“desconstrucionista” como o é seu O fim do Terceiro Mundo (1990), em
que se parodiam, entre outros modelos, a literatura dos viajantes, o mis-
tério fantástico de Conan Doyle (The lost world) e as incursões
macunaímicas de Mário de Andrade, tal método crítico-ficcional parece
ter sido abandonado em sua produção romanesca mais recente. Esta, re-
presentada pela tetralogia Crônicas do Grão-Pará e Rio Negro, em que se
revisita a história da região amazônica no período 1780-1840, período em
que se jogaram no tabuleiro das lutas coloniais, políticas e sociais as chances
de um desenvolvimento autônomo daquele imenso território em relação
ao recém-criado Estado do Brasil, revela projeto literário ambicioso e de
fôlego, a julgar pelos três romances históricos dele até aqui resultantes:
Lealdade (1997), Desordem (2001) e Revolta (2005). Pelo título anuncia-
do do quarto e último romance dessa série (Derrota), já se vê que, no
horizonte da tetralogia, está-se longe de qualquer visão regionalista
edificante ou auto-complacente, muito ao contrário. Mas o rendimento
estético e ideológico do conjunto parece padecer de certo anacronismo e
carência de verossimilhança que são, a rigor, efeitos dos limites históricos
concernentes ao próprio gênero romanesco privilegiado.
Em Milton Hatoum, se a memória narrada das raízes familiares árabes
de imigrantes na Amazônia foi o grande trunfo da força de seu primeiro
romance, Relato de um certo Oriente (1989), impasses crescentes nas posi-
ções dos narradores foram se acumulando nos romances seguintes, Dois
irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005), à medida que a experiência me-
morável queria ceder passo a certo afã de repor cada narrativa na tradi-
ção da “grande prosa realista”, de enquadrá-la na rota de fuga ao regio-
nalismo, por medo e repulsa de provincianização. Mas, paradoxalmente,
são ainda, a rigor, os velhos espectros do exotismo amazônico que
alavancam boa parte da recepção nacional e internacional da obra de
Hatoum. Embora seus narradores se arrastem e claudiquem, quase se
rebelando em contar as histórias que talvez, como também em Márcio
A Amazônia como voragem da história 149

Souza, não obstante suas escritas serem tão diversas, já não sejam possí-
veis de serem contadas nas convenções e modos até aqui tentados.
Como, no entanto, nenhum dos dois autores manauaras reivindica
qualquer modalidade de ufanismo ingênuo ou interessado, bem ao revés,
o que resta em sua prosa nesta nova virada de século é o travo melancó-
lico, seja das derrotas históricas da região amazônica em Márcio Souza,
seja das “cinzas do Norte” de toda uma geração, em Milton Hatoum. Seu
trabalho de luto passaria, provavelmente, pelas ruínas anunciadas de Raul
Bopp e Mário de Andrade, na hoje distante conjuntura de 1930. Poderia,
igualmente, espelhar-se no vórtice maldito, na voragem eclipsante da
selva de Eustasio Rivera, no labirinto infernal de suas “estradas” sem
volta, de suas cidades-fantasmas, em que moradores-párias já não res-
pondem como humanos: “No me sentieron, no se movieron. Parecíame
haber llegado a un bosque de leyenda donde dormitaba la Desolación”9.
Desolação que assim se revela, sendo mais da história que da natureza,
e que já tivera, entre outros, em Euclides da Cunha e Alberto Rangel, seus
grandes observadores. Na crônica “Os caucheros”, inserida em À margem
da história (1909), relatando passagem nos confins do Alto Purus, na fron-
teira peruana do Acre, durante sua viagem amazônica de 1905, Euclides
relata sua chegada aos restos de um povoado, “ruinaria deplorável”, “tapera
(quase) desabitada”, e seu encontro com “o último habitante”:

Esta cousa indefinível que por analogia cruel sugerida pelas circunstâncias se nos figu-
rou menos um homem que um bola de caucho ali jogada a esmo, esquecida pelos
extratores – respondeu-nos às perguntas num regougo quase extinto e numa língua de
todo incompreensível. Por fim, com enorme esforço levantou um braço; estirou-o,
lento, para a frente, como a indicar alguma cousa que houvesse seguido para muito
longe, para além de todos aqueles matos e rios; e balbuciou, deixando-o cair
pesadamente, como se tivesse erguido um grande peso:
“Amigos”.
Compreendia-se: amigos, companheiros, sócios dos dias agitados das safras, que tinham
partido para aquelas bandas, abandonando-o ali, na solidão absoluta10.

9
Rivera, La vorágine, p. 156 (A voragem, p. 176): “Não me perceberam, não se moveram. Parecia-me
haver chegado a um bosque de lenda onde a Desolação cochilava”.
10
Cunha, Obra completa, v. 1, p. 262.
150 Francisco Foot Hardman

Em “Sôbolos rios que vão”, prosa à moda de quadro, com tintas


impressionistas e simbolistas, com que Alberto Rangel prefacia seu livro
de contos Sombras n’água, sucedem-se imagens que remetem a algumas
das figurações de que tratamos:

Das alturas aniladas do céu, estas grenhas mormacentas, rendadas de veios d’água,
parecerão fungiformes: – um bolor imenso, ao fundo de uma cuba abandonada à humidade
e à calma, entre os escarpamentos das antiplanuras do Brasil central, os das cordilheiras
guianenses e ao algares andinos. Solidão! Solidão! – império da Morte onde a vida
fervilha, por mais de cinco milhões de quilômetros quadrados... Alimenta-a e exaure-
a essa formidável placenta ou cúpida ventosa, que uma e outra cousa pode ser este
“máximo dos rios”...11.

Fugir dessa “voragem da história”, que teima em abreviar seu trabalho


de “cúpida ventosa” antes que a promessa de “formidável placenta” se com-
plete para os homens que ali erraram, no passado e no presente, por rotas
perdidas e condenações antevistas, seria apostar numa tomada panorâmi-
ca, em plano horizontal, que poderia também resultar no desapontamento
narrado por Euclides na abertura de seu ensaio “Terra sem história (Ama-
zônia)”: “em poucas horas o observador cede às fadigas de monotonia
inaturável e sente que o seu olhar, inexplicavelmente, se abrevia nos sem-
fim daqueles horizontes vazios e indefinidos como os dos mares”12.
Ou então, em plano vertical, do alto, tomada aérea em plongée, como a
sugerida pelo escritor Raimundo Morais no ensaio introdutório de seu livro
Cosmorama, num efeito deformante inseparável do advento dos aviões, que
torna a natureza e a história planas, a geologia e a arqueologia indecifráveis:

Desmancharam-se-lhe na retentiva ocular as escadas pétreas das cachoeiras, apaineladas


e ornamentadas de panejamentos ingênuos, cheios de inscrições rupestres. Ao mesmo
tempo que isto sucedia, tombavam também imprevistamente as colunas geológicas,
através de cujas camadas telúricas se liam as idades da terra, os seus ciclos milenares, as
suas catástrofes e a cambiante metamórfica de sua alma lítica13.

11
Rangel, Sombras n’água, pp. 30-1.
12
Cunha, “Impressões gerais”, em Obras completas, p. 223.
13
Morais, Cosmorama, p. 8.
A Amazônia como voragem da história 151

O problema das representações em “grande angular”, horizontal, ver-


tical ou perpendicular – e os autores citados parece que foram em parte
conscientes disso, mesmo que incorrendo nessas tomadas –, é que se per-
ca nelas o movimento do caos. Então, não há jeito. O método é o da
descida ao “inferno verde”, no sentido cordilheiras-planície (ou serras-
planície), no sentido dos rios, e da selva. O Acre desponta como este
ponto extremo, não só do Brasil a noroeste, mas da humanidade nos qua-
tro quadrantes. É aqui o fim da linha e das ilusões, o fim do “terceiro
mundo”, ou quem sabe também o começo de tudo. Depende da vontade
política, no sentido mais amplo, dos povos da floresta. Depende que o
resto do mundo, nós, entendamos a gravidade da coisa e a necessidade
de recolher a Amazônia das margens arruinadas do planeta e da história,
e de trazê-la não só à memória e ao coração, mas à cabeça e à ação. Eis
aqui a fronteira do que não foi; eis aqui a fronteira do que é, em sendo,
um incerto vir-a-ser14.

Referências bibliográficas
BOPP, Raul. “Cobra Norato”, em MASSI, A (org.). Poesia completa. Rio de
Janeiro: José Olympio; São Paulo: EdUSP, 1998.
CASCUDO, Luís da Câmara. Em memória de Stradelli. 3ª. ed. Manaus: Go-
verno do Estado do Amazonas; Valer, 2001.
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HARDMAN, Francisco Foot. “Morrer em Manaus: os avatares da memória
em Milton Hatoum”. Tempo brasileiro, nº. 141. Rio de Janeiro, 2000,
pp. 5-15.
. “Morrer em Manaus: os avatares da memória em Milton
Hatoum”. Letterature d’America, v. XIX-XX, nº 83-84. Roma, 2000,
pp. 147-60.

14
O Núcleo de Estudos da Amazônia da UnB organizou, em boa hora, a Expedição Humboldt, no
ano 2000, coordenada, na parte histórico-social, por Victor Leonardi. Seus resultados começam
agora a ser divulgados. Duas outras importantes contribuições de V. Leonardi para uma visão
contemporânea da questão amazônica podem ser encontradas nos seus ensaios: Os historiadores e os
rios: natureza e ruína na Amazônia brasileira e Fronteiras amazônicas do Brasil: saúde e hístória social.
152 Francisco Foot Hardman

. “Revolta: Na planície do esquecimento: a grande falha amazô-


nica”. Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo, (19), 2005, pp. 96-
117.
LEONARDI, Victor. Fronteiras amazônicas do Brasil: saúde e hístória social.
Brasília: Paralelo 15; São Paulo: Marco Zero, 2000.
. Os historiadores e os rios: natureza e ruína na Amazônia brasileira.
Brasília: UnB/Paralelo 15, 1999.
LINHARES, Temístocles. História crítica do romance brasileiro: 1728-1981. Belo
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diaries and drawings, 1865-1866. Trad. de John Monteiro. Cambridge,
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MORAIS, Raimundo. Cosmorama. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1940.
RANGEL, Alberto. Sombras n’agua: vida e paizagens no Brasil equatorial.
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oteca Ayacucho, 1976. [1ª edição: 1924].
. A voragem. Trad. de Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Fran-
cisco Alves, 1982.

Recebido em junho de 2007.


Aprovado em junho de 2007.

Francisco Foot Hardman – “A Amazônia como voragem da história: impasses de uma representa-
ção literária”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de
2007, pp. 141-152.
Entre vítima e perpetrador: a identidade
problemática da segunda geração pós-
Shoá na Alemanha e a proposta do ro-
mance O leitor , de Bernhard Schlink 1
Helmut Galle

Em 2002 surgiu um debate, primeiro na imprensa inglesa e depois na


Alemanha, cujo ponto central era se a representação do holocausto no
romance Der Vorleser (O leitor)2, de Bernhard Schlink, minimizava ou
não a culpa alemã. O livro foi publicado em 1995 e desde então traduzido
para 25 línguas – o maior êxito internacional da literatura alemã desde O
tambor de lata, de Günter Grass, e O perfume, de Patrick Süskind. Na
Inglaterra, a obra havia encontrado inicialmente uma recepção tão favo-
rável como nos Estados Unidos (onde o autor foi convidado para o show
de Oprah Winfrey), mas em 2002, de repente, apareceram polêmicas co-
locando em dúvida a autenticidade histórica do livro e seu valor estéti-
co3. Os críticos eram Frederick Raphael, Gabriel Josipovici e Jeremy Adler,
o último filho do sobrevivente Hans G. Adler, autor de uma das primeiras
análises importantes sobre os campos de concentração4. O teor das críti-
cas é que o livro forja a história, minimizando a culpa dos Nazis, e induz
no público a compaixão para com os perpetradores. Nas palavras de Jeremy
Adler,

1
O texto foi apresentado no evento Identidades coletivas, anti-semitismo e representação da alteridade,
Universidade de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Língua Hebraica, Literatura e Cultura
Hebraicas, 22-23 ago. 2002. Para esta publicação não foi atualizado, com exceção de pequenas
correções.
2
A publicação brasileira foi realizada pela Nova Fronteira em 1998, com tradução de Pedro Süssekind.
3
Um impulso menos público para a revisão foi, provavelmente, o artigo de W. C. Donahue em
German Life and Letters, de 2001.
4
ADLER, H. G. Theresienstadt 1941-1945 – Das Antlitz einer Zwangsgemeinschaft. Tübingen: Mohr, 1960;
e ADLER, H. G. Gedanken zu einer Soziologie des Konzentrationslagers. Meisenheim: Hain O. J.
154 Helmut Galle

o mingau pós-moderno de Schlink é tão intragável não só por que pretende ser um
trabalho sério enquanto na realidade representa uma paródia da verdade. É tão repug-
nante por que aproveita de maneira traiçoeira e pornográfica as necessidades e fraquezas
humanas. Assim sendo, por que foi tão bem sucedido? Por um lado por que simplifica
a história, que vai ao encontro de camadas amplas de leitores: desde os liberais compas-
sivos, que prefeririam que a extinção dos judeus europeus tivesse decorrido de maneira
menos cruel, até os nacionais-socialistas disfarçados que gostam de afirmar que o grande
crime nunca aconteceu5.

A esta denúncia junta-se a opinião de que o romance seja, estetica-


mente, não distinguível do Kitsch e da pornografia6.
À primeira vista, parece pouco coerente acusar uma ficção literária
de desvios dos fatos históricos. O escritor holandês Harry Mulisch publi-
cou recentemente um livro no qual inventa, contra toda evidência histó-
rica, um filho de Hitler; e essa ficção contra-fática pode perfeitamente
iluminar o perfil psíquico do ditador. No romance de Schlink não apare-
cem personagens reais, portanto mereceria ainda menos críticas de Adler.
Por outro lado, um texto literário que desdobra sua trama numa paisagem
bem referencial quanto aos acontecimentos históricos do Holocausto não
pode abstrair completamente a verdade, mesmo que seja simbolicamen-
te. Nesse sentido, um romance que representasse os culpados como víti-
mas e as vítimas como culpados seria insuportável. Estou convencido de
que O leitor não pode ser considerado uma propaganda revisionista, como
sugere Adler. Por outro lado, reconheço que o personagem Hanna Schmitz

5
Tradução deste autor, a partir do seguinte trecho: “Schlinks postmoderner Brei ist nicht nur
deshalb so ungenießbar, weil er eine ernsthafte Auseinandersetzung zu sein beansprucht, während
er tatsächlich eine Travestie der Wahrheit darstellt. Er ist so abstoßend, weil er auf tücki-sche,
pornographische Weise aus menschlichen Nöten und Schwächen Kapital schlägt. Warum aber ist
dieses Buch dann so erfolgreich? Zum Teil, weil es die Geschichte so vereinfacht, dass sie breiten
Leser-schich-ten entgegenkommt, von mitleidigen Liberalen, denen es lieber gewesen wäre, wenn
die Auslöschung des euro-päischen Judentums weniger grausam verlaufen wäre, bis zu verkappten
Nationalsozialisten, die gerne behaup-ten, das große Verbrechen habe gar nicht stattgefunden”
(Adler, Die Kunst, Mitleid mit den Mördern zu erzwingen. Einspruch gegen ein Erfolgs-buch: Bernhard
Schlinks “Der Vorleser” betreibt sentimentale Geschichts-fäl-schung).
6
Adler, Kulturpornografie; Winkler, Holo-Kitsch e Holocaust-Kitsch.
Entre vítima e perpetrador 155

não representa o perpetrador da SS exemplar, senão o seu oposto. O mal


entendido de Adler, parece-me, está na afirmação de que o livro de Schlink
é um livro sobre a Shoá. Em vez disso, trata-se de um livro sobre a relação
entre a geração dos perpetradores/espectadores e a geração dos seus fi-
lhos. Assim sendo, explica-se melhor que O leitor tenha despertado ao
mesmo tempo tanto aplauso e tanto ódio.
Para dar sustentação à minha tese, resumo brevemente o conteúdo da
obra. O narrador recorda seus 15 anos, quando ele se apaixonou por uma
mulher bem mais velha do que ele, de aparência física madura e mater-
nal. Entre outras peculiaridades dessa relação, nota-se que ela quer que
seu amante leia para ela, em voz alta, os textos estudados no colégio. A
aventura erótica dura um certo tempo, até que ele finalmente abandona
sua amante e retoma a vida “normal” de um adolescente. Anos depois,
sendo agora estudante de direito, ele assiste com seus colegas a um pro-
cesso contra o pessoal da vigilância de um campo ligado a Auschwitz e
reconhece sua antiga amante entre as guardas acusadas. Ao contrário
das outras ex-guardas, ela não se defende de uma maneira muito astuta e
finalmente assume a culpa da atrocidade central do caso: durante o “trans-
porte” (uma das chamadas “marchas de morte”) para o oeste, os judeus
tinham sido aprisionados numa igreja e lá dentro foram queimados du-
rante um ataque de bombas – salvaram-se duas pessoas, uma mulher e
sua filha. Todas as acusadas negam a responsabilidade por não terem
destrancado as portas da igreja e não terem liberado os prisioneiros, mas
quando o juiz quer comparar a letra escrita no relatório oficial daquele
incêndio com a letra escrita de Hanna Schmitz, ela assume a culpa. É
este comportamento e mais um detalhe que levam o narrador à solução
do mistério da mulher: no campo ela tinha suas favoritas que liam para
ela em voz alta, durante as noites – antes de serem selecionadas. Com
esses dados – mais a sua experiência pessoal –, o protagonista compreen-
de, finalmente, que ela era e continua sendo analfabeta; que, para es-
conder sua deficiência vergonhosa, mudou do seu emprego da Siemens
para a SS, e que ela agora aceita a pena de prisão para um crime que não
cometeu. Durante os anos de cárcere, ela recebe fitas gravadas do seu
ex-amante e começa a aprender a ler e escrever, acumulando uma bibli-
oteca não somente de clássicos mas também, particularmente, de textos
sobre os campos. O narrador organiza um apartamento e um trabalho
156 Helmut Galle

para o momento em que ela for liberada, mas um dia, antes do fim da
pena, ela se enforca na cela. O narrador fica com a tarefa de entregar o
pouco que ela tinha poupado àquela testemunha que sobreviveu ao in-
cêndio da igreja. Essa sobrevivente rejeita o dinheiro mas fica com a lata
de chá onde o dinheiro foi guardado: quando criança, ela tinha uma lata
semelhante para guardar seus tesouros, mas depois essa lata foi roubada
no campo.
Mesmo esse breve resumo da trama deixa patente que a pessoa que
representa o perpetrador Nazi escapa tanto ao estereótipo do demônio
sádico como àquele do mal banal, dominantes na literatura alemã: o pri-
meiro nos anos 1940 e 50, e o segundo nas décadas posteriores ao livro de
Hannah Arendt7. No caso desse livro, trata-se de um perfil, que se apro-
xima muito mais de uma vítima – como Jeremy Adler e os outros críticos
observaram muito bem. Ela é uma mulher, de classe baixa, sem formação,
sem família, sem a competência central da alfabetização, sujeita a uma
psicologia de pudor; cada um desses fatos coloca-a numa posição que
quase a impossibilita de decisões autônomas, soberanas e conscientes, ou
seja, éticas. Considerando todas essas condições, o leitor chega a com-
preender a sinistra lógica que reina sobre o destino dessa pessoa. Assim o
leitor compreende também a reação dela, quando responde, questionada
pelo juiz, por que as guardas aprisionaram os judeus naquela igreja, em
vez de deixá-los fugir: “O que o senhor teria feito, então?”8. É evidente
que no tribunal essa pergunta vale tão pouco como todas as perguntas
desse gênero, insinuando que não houve alternativas ao crime. Nesse
sentido é perfeitamente coerente que ela seja condenada e aceite expiar
os anos de prisão – fato que também difere do perpetrador típico na lite-
ratura (e na realidade histórica).
A pergunta “O que o senhor teria feito, então?” não é, nesse caso,
uma ingenuidade ou um pretexto. Ela resume o encadeamento fatal que

7
O Nazi demoníaco se encontra em forma mais pura no livro Der Verdacht, de Friedrich Dürrenmatt
(1953), e mais moderado nos romances Der Tod in Rom, de Wolfgang Koeppen (1954), e Billard um
halbzehn, de Heinrich Böll (1959). O tipo do empregado subordinado e obediente que executa as
ordens encontra-se em Die Deutschstunde, de Siegfried Lenz (1968). Cf. Galle, Von der Bestie zur
Geliebten. Entwicklung des literarischen Bildes vom Nazitäter in der deutschsprachigen Literatur.
8
Schlink, O leitor, p. 106.
Entre vítima e perpetrador 157

levou a mulher ao lugar e ao momento onde ela pôde cometer um crime.


Isso pode ser entendido como um encadeamento trágico. Evidentemente
a tragédia das vítimas do crime não é somente muito maior; ela está
numa categoria diferente: converter-se em vítima de atos violentos versus
converter-se em perpetrador por condições adversas. Mas o livro de
Schlink em nenhum momento trata de reduzir os sofrimentos das vítimas
ou de nivelá-los aos tormentos alemães do pós-guerra (estratégia bem
conhecida das argumentações em favor do “Schlussstrich”/”ponto final”).
A questão central, porém, não são as vítimas; a questão central é essa
perpetradora e a atitude que o narrador pôde tomar frente a ela. O ele-
mento realmente novo nessa construção literária é que se oferece a pos-
sibilidade de ter compaixão com o destino de um perpetrador (sempre
que ele mostre o perfil descrito acima). E a construção está longe de
sugerir ou mesmo exigir um sentimento desse tipo por parte da vítima.
Quando a judia sobrevivente, no final da narrativa, mantém uma atitude
distanciada frente à sua antiga torturadora, a narração apresenta isso
como atitude legítima, talvez até necessária. O fato de ela aceitar a lata
de chá é só um gesto simbólico de reconhecimento da tentativa de arre-
pendimento e de penitência da culpada. Nesse sentido, o livro nem des-
culpa as atrocidades nem propõe uma reconciliação precipitada entre
vítimas e carrascos, como insinuam Jeremy Adler e os outros críticos.
É necessário então analisar mais profundamente a relação entre essa
Hanna Schmitz e o narrador. Há críticos que consideram que a relação
amorosa entre a mulher madura e o rapaz é um ingrediente estratégico
para aumentar os números de venda. Pode ser. Por outro lado, parece-me
que, em geral, o Kitsch pornográfico procede de uma maneira muito mais
aberta e conseqüente, misturando esse tipo de motivo com a atmosfera
sadomasoquista de um Nazismo estetizado. Neste caso, as cenas (ligeira-
mente) eróticas limitam-se estritamente à primeira parte, enquanto que
a temática do Nazismo e da culpa se desenvolve na segunda, onde o amor
se despojou de qualquer aspecto erótico. O que resta é somente a respon-
sabilidade do protagonista frente a um ser humano que ele amava. A mo-
tivação construtiva do amor dentro da trama deve ser outra e mais séria.
É notável que o picante do romance se alimente não só da diferença
etária mas também da proximidade da amante à mãe do rapaz. Desde o
primeiro encontro, o comportamento dela apresenta traços maternais que
158 Helmut Galle

complementam sua aparência física. Os rituais eróticos do casal são mar-


cados por procedimentos da higiene infantil: ela costuma banhar o seu
amante e ele, o narrador, associa isso, inclusive, a uma lembrança infan-
til, vinculada a ser banhado por sua mãe e acompanhada por emoções de
prazer9. É a mãe que manda o rapaz para a mulher com um buquê de
flores, e nesta imagem já se misturam os papéis de filho agradecido com o
de amante. Isso confere uma certa nota incestuosa a essa relação mas –
mais importante – cria-se um amálgama da amante e da mãe, que permite
depois que a relação amorosa seja tematizada junto com a relação geracional.
O narrador confirma isto muito mais tarde, no contexto da questão de
como ele poderia definir sua atitude frente à culpa nazista. Nesse momen-
to, ele compara sua situação com aquela dos seus colegas universitários
que levaram a cabo uma ruptura radical com os pais e escreve:

Como poderia ser um consolo o fato de meu sofrimento pelo amor a Hanna ser, de certa
maneira, o destino da minha geração, o destino alemão, que era apenas mais difícil, no
meu caso, de deixar para trás, mais difícil de lidar. Na mesma medida, teria feito bem
para mim se eu pudesse me sentir parte de minha geração10.

Enquanto os colegas rompem perfeitamente com a geração anterior e


se identificam com as vítimas, o narrador não pode fazer isso porque a
relação pessoal amorosa o obriga a compreender essa pessoa.
A partir desse trecho podemos entender que, na construção da trama,
era necessário estabelecer entre os dois representantes geracionais uma
relação mais forte do que fosse a simples afeição entre pais e filhos. Por-

9
“Uma de minhas lembranças vívidas é de uma manhã de inverno, quando tinha quatro anos. [...]
Diante do fogão, minha mãe tinha colocado uma cadeira, onde eu ficava enquanto ela me lavava e
vestia. Lembro-me do sentimento reconfortante do calor e do deleite que me dava por ser lavado e
vestido nesse calor” (Schlink, op. cit., p. 27).
10
Schlink, op. cit., p. 142. A obra não ficcional do autor apóia nosssa interpretação. Schlink, que em
primeiro lugar é professor de Direito Público na Universidade Humboldt e juiz do Tribunal consti-
tucional de Nordrhein-Westfalen, publicou também algumas palestras, que tratam, de maneira
discursiva, o tema da holocausto e as atitudes das três gerações desde 1945. Veja Schlink,
Vergangenheitsschuld und gegenwärtiges Recht, passim.
Entre vítima e perpetrador 159

que na realidade alemã essa relação não era obstáculo suficiente para
que a geração dos filhos do pós-guerra não se distanciasse dos seus pais,
os quais, de uma ou outra maneira, haviam participado daquele estado
que organizou o genocídio.
A ruptura entre a geração da guerra e a geração dos anos 1960 era
possível primeiro porque os laços de família, na sociedade contemporâ-
nea, estão se enfraquecendo cada vez mais; e segundo porque a herança
histórica era insuportável. Em outras palavras: o pecado contra o quinto
mandamento bíblico (“Não matarás”, Ex 20, 13) suspendeu o quarto (“Hon-
ra teu pai e tua mãe”, Ex 20, 12), pelo menos sob o olhar dos filhos.
O amor do protagonista obriga-o a uma tentativa séria de compreen-
der essa perpetradora. Ele não pode se colocar no papel do outro e “apon-
tar” para ela como os seus colegas “apontam” a geração dos pais, indican-
do, assim, quem é culpado e quem é inocente, por meio de atos de
distanciamento e de denúncia. Se a relação entre filhos e pais for carac-
terizada por amor, os filhos deveriam fazer a mesma tentativa de compre-
ender. Nessa tentativa se faz um balanço da culpa objetiva (da medida
em que foi envolvido diretamente nos crimes) e das condições específi-
cas, considerando o grau de arrependimento. Evidentemente, a maioria
dos alemães não tinham condições tão precárias como Hanna. Por outro
lado, seu envolvimento era, na grande maioria dos casos, bem menor
também. Se o arrependimento de Hanna e o interesse que ela desenvolve
na prisão por suas vítimas não é nada representativo para os perpetradores
históricos, é muito representativo para a atitude dos alemães, cujo crime
foi a omissão nos atos de resistência contra o crime estatal.
Cabe perguntar ainda por que a atitude geral da geração dos filhos
nos anos 1960 não era legítima e por que merece a crítica do livro de
Schlink. Deveria essa geração solidarizar-se, em vez de se distanciar, em
vez de investigar escrupulosamente em todas as áreas e em todos os deta-
lhes o envolvimento criminoso dos seus pais, mestres e professores? Não
era necessário se identificar com as vítimas em vez de com os carrascos?
Minha resposta seria que a crítica e o distanciamento era inevitável. A
ruptura era necessária para que os fatos atrozes em sua inteira complexi-
dade viessem à tona. Também era necessária para estabelecer um discur-
so político que permitisse detectar e combater qualquer tendência sus-
peita a criar situações análogas ao “Terceiro Reich”. Finalmente, era ne-
160 Helmut Galle

cessária por razões da identidade coletiva daquela geração que não po-
dia se basear na identificação com os atores de um crime de tal dimen-
são. Assim eles se definiam (talvez um caso único) ex negativo pelo
Holocausto, através da diferenças entre si mesmos e os culpados. E era
necessária também para que a geração dos pais começasse a pensar de
novo sobre seu passado.
O historiador Jörn Rüsen concebe as atitudes das gerações na Ale-
manha a partir de 1945 de uma maneira análoga às minhas observações
na literatura12. Para Rüsen, podem-se distinguir três fases: a primeira, a
dos quinze anos que se seguiram ao fim da guerra; a segunda, a dos
anos 1960 até 1989; e a terceira, desde a unificação. Na primeira fase
ainda predominavam as pessoas ativas na época nazista. Por motivos
práticos, políticos e psicológicos, elas preferiam uma estratégia de man-
ter o silêncio sobre a Shoá e de exteriorizar a culpa. Nessa fase, a litera-
tura apresenta o ex-perpetrador sob uma forma demoníaca. Na segunda
fase predominam os filhos que se encontram numa relação vital com os
responsáveis pelo Holocausto. Eles escolhem uma estratégia para dis-
tanciar-se absolutamente de tudo o que levou ao desastre, excluindo
assim uma parte integral da sua descendência genética e histórica. Na
ficção daquela época se encontram constelações que favorecem a
vitimização de representantes da segunda geração pela primeira13. A
terceira geração, a dos netos, já se encontra numa relação histórica
com a Segunda Guerra. Ela pode provavelmente assumir a responsabili-
dade pela Shoá como um elemento histórico da sua própria identidade.
O leitor indica, juntamente com outros livros de autores mais jovens,
que também na literatura se estabelece uma atitude menos tensa frente
aos atores da época nazista14.
Isso porque, finalmente, a identificação com as vítimas gera outros
problemas. Evidentemente os filhos dos perpetradores não podem se alivi-

12
Cf. Rüsen, Zerbrechende Zeit, pp. 279-99 e 310-5.
13
Isso acontece no romance Die Deutschstund, de Siegfried Lenz, e no fragmento póstumo “Der Fall
Franza”, de Ingeborg Bachmann.
14
Veja os livros de Marcel Beyer: Flughunde (1995) e Spione (2001).
Entre vítima e perpetrador 161

ar, dessa maneira, da herança histórica. Eles se encontram –


involuntariamente – num contínuo vital, que os vincula à geração ante-
rior. Rüsen pôs em evidência que a identificação dos alemães da segunda
geração com as vítimas é problemática e que isso se observava particular-
mente na ocasião do livro de Goldhagen:

A problemática desta integração do Holocausto nos traços históricos da própria iden-


tidade é óbvia. Não é somente por meio da contradição e da exclusão [dos culpados
H.G.] que se pode explicar a real consistência histórica da história alemã no século XX,
olhando para a época Nazi e o Holocausto. Goldhagen confronta os jovens alemães
inexoravelmente com o fato de que os perpetradores do Holocausto – “os alemães” –
eram seus pais e avôs. O público aplaude e se reconhece no lugar dos “outros”, numa
relação histórica frente àqueles perpetradores, e o Holocausto apresenta um potencial
identificador somente nas vítimas. A principal falta de historicidade, que marca a
interpretação do Holocausto de Goldhagen, carateriza também a cultura histórica
daqueles que o festejam e se destacam por sua relação particularmente crítica frente a
história recente da Alemanha15.

Com vistas a uma identidade nacional e histórica dos alemães, será


necessário recuperar a geração dos culpados e manter, ao mesmo tem-
po, o significado negativo do Holocausto. No nível das relações indivi-
duais, o romance de Schlink apresenta uma constelação na qual esta
tarefa árdua seria viável. Para um representante da segunda geração, o
modelo literário permite experimentar emoções e atitudes até então

15
Traduzido por este autor, a partir do seguinte trecho: “Die Problematik dieser Verarbeitung des
Holocaust in die historischen Züge der eigenen Identität liegt auf der Hand. Mit Widerspruch und
Exklusion allein läßt sich der reale historische Zusammenhang der deutschen Geschichte des 20.
Jahrhunderts im Blick auf Nazi-Zeit und Holocaust nicht plausibel machen. Goldhagen stößt die
jungen Deutschen von heute unerbittlich auf die Tatsache, daß die Täter des Holocaust – “die
Deutschen” – ihre Väter und Großväter waren. Das applaudierende Publikum weiß sich nun
als‚die Andren’ im historischen Verhältnis zu diesen Tätern, und der Holocaust hat ein
identifiktorisches Potential nur in den Opfern. Der grundsätzliche Mangel an Historizität, der
Goldhagens Holocaust-Deutung ausmacht, charakterisiert auch die Geschichtskultur derjenigen,
die ihn feiern und sich durch ein besonders kritisches Verhältnis zur jüngeren deutschen Geschicht
auszeichnen” (Rüsen, Zerbrechende Zeit, p. 294).
162 Helmut Galle

consideradas tabus. É compreensível que isso provoque resistência, es-


pecialmente do lado da (primeira e) segunda geração das vítimas. Mas,
por outro lado, trata-se aqui do campo da memória coletiva, não o da
história16. Como disse Pierre Nora, “memória, história: de maneira ne-
nhuma são conceitos sinônimos”17. Sobre os fatos históricos e a sua ava-
liação, é estabelecido um discurso científico global, que se orienta vir-
tualmente pela racionalidade da argumentação e pelos valores da hu-
manidade. A memória coletiva é e deve ser construída na perspectiva
do próprio grupo que a mantém em função da sua identidade. Como
conseqüência desse perspectivismo, a memória coletiva das sociedades
que representam as vítimas deve diferir da memória coletiva daquele
grupo ao qual pertenceram os perpetradores. Um romance não se ins-
creve na historiografia, um romance faz uma proposta que possivelmen-
te será integrada na construção da memória coletiva. No caso de
Bernhard Schlink, a proposta era que os alemães da segunda geração
deixassem de se posicionar no lugar das vítimas porque não se pode
dissolver a cadeia geracional que os vincula à geração do Holocausto.
Será necessário assumir a herança da culpa e da vergonha, e será ne-
cessário terminar com a auto-estilização como vítima. A culpa dos pais
alemães frente aos filhos não é a mesma que a culpa frente aos judeus.
É evidente que a proposta não cabe em todos os casos: o balanço de
culpa objetiva, condições individuais e arrependimento podem pesar
mais para o lado da culpa. O filho de um Mengele possivelmente nunca
poderá integrar a afeição por seu pai e o respeito às pessoas torturadas
por ele. Mas a grande maioria dos pais que viveram na época Nazi na
qualidade de oportunistas, indiferentes e espectadores pode ser com-
preendida em analogia à Hanna Schmitz, menos culpada talvez, mas
não necessariamente menos arrependida. Em todos esses casos, o livro
de Schlink seria o modelo para repensar as atitudes e experimentar os
sentimentos no jogo ficcional do romance.
A discussão pública na Alemanha das décadas passadas resultou na
integração do luto pelos mortos do genocídio na memória coletiva.

16
Para os conceitos da memória coletiva e a memória cultural, veja particularmente o livros de J.
Assmann.
17
Nora, Zwischen Geschichte und Gedächtnis, p.13.
Entre vítima e perpetrador 163

A construção do memorial no centro de Berlim é só um sintoma desse


processo. Mas, frente ao resto do mundo, a Alemanha como nação não
pode se apresentar como representante das vítimas (embora a sociedade
não seja formada exclusivamente pelos perpetradores e sua prole)18. Para
o resto do mundo, a Alemanha tem que assumir a herança da culpa. Isso
provavelmente exige uma reconsideração das relações intergeracionais,
como sugere o romance de Schlink. Espera-se que esse processo possa
avançar sem provocar ou ofender as vítimas e seus descendentes e que as
memórias coletivas sejam construídas numa atmosfera de respeito mútuo.

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Einspruch gegen ein Erfolgs-buch: Bernhard Schlinks Der Vorleser
betreibt sentimentale Geschichts-fäl-schung”. Süddeutsche Zeitung, 20
abr. 2002 (Ursprünglich in Times Literary Supple-ment).
ASSMANN, Jan. Das kulturelle Gedächtnis: Schrift Erinnerung und politische
Identität in frühen Hochkulturen. München: Beck, 1992.
. Religion und kulturelles Gedächtnis: Zehn Studien. München: Beck,
2000.
DONAHUE, William Collins. “Illusions of Subtlety: Bernhard Schlink’s Der
Vorleser and the Moral Limits of Holocaust Fiction”. German Life and
Letters 54, nº. 1, 2001, pp: 60-81.
GALLE, Helmut. “Von der Bestie zur Geliebten: Die Nazi-Täter im Spiegel
der Literatur”. Atas do IV Congreso argentino de profesores de alemán
(no prelo).

18
Evidentemente, a nação alemã não é um coletivo homogêneo de perpetradores e sua descendên-
cia – inclui igualmente pessoas que estavam na resistência, vítimas e imigrantes posteriores que
não compartilham nada do passado alemão. Não obstante isso, é um fato inegável que a sociedade
alemã carrega a culpa coletiva pelos acontecimentos entre 1933 e 1945 nos territórios ocupados pelo
regime. O primeiro que insistiu nessa responsabilidade foi Karl Jaspers. Embora ele mesmo fosse um
representante da resistência contra os nazistas, ele queria ser incluído nessa responsabilidade.
Schlink concorda com Jaspers na existência da culpa coletiva, mas afirma que ela se origina menos
no comportamento antes do fim da guerra, senão no fato que na sociedade alemã depois da guerra
não houve uma desolidarização com os culpados. Em vez de serem perseguidos juridicamente, os
culpados foram integrados nas diferentes funções do estado: “[Nossa] solidariedade com o perpetrador
[nos] envolve nos crimes e na culpa dele – esse é o núcleo racional da idéia da culpa coletiva”
(Schlink, Vergangenheitsschuld und gegenwärtiges Recht, p. 97).
164 Helmut Galle

. Von der Bestie zur Geliebten: Entwicklung des literarischen Bildes


vom Nazitäter in der deutschsprachigen Literatur (a ser publicado).
HAGE, Volker. “Autoren unter Generalverdacht”. Spiegel online, 10 abr.
2002.
JASPERS, Karl. Die Schuldfrage: Von der politischen Haftung Deutschlands.
München: Piper 1996.
NORA, Pierre. Zwischen Geschichte und Gedächtnis. Frankfurt a. M.: Fischer,
1998 (Le lieux de mémoire).
N ORFOLK , Lawrence. “Die Sehnsucht nach einer ungeschehenen
Geschichte. Warum Bernhard Schlinks Roman Der Vorleser ein so
schlechtes Buch ist und allein sein Erfolg einen tieferen Sinn hat”.
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RÜSEN, Jörn. Zerbrechende Zeit: Über den Sinn der Geschichte. Köln/Weimar/
Wien: Böhlau, 2001.
SCHLINK, Bernhard. Der Vorleser. Zürich: Diógenes, 1997.
. O leitor. Trad. de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Nova Fron-
teira, 1998.
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Suhrkamp, 2002.
WINKLER , Willi. “Vorlesen, Duschen, Durcharbeiten Schlechter Stil,
unaufrichtige Bilder: England begreift nicht mehr, was es an Bernhard
Schlinks Bestseller Der Vorleser fand”. Süddeutsche Zeitung, 30 mar.
2002.

Recebido em fevereiro de 2007.


Aprovado em abril de 2007.

Helmut Galle – “Entre vítima e perpetrador: a identidade problemática da segunda geração pós-
Shoá na Alemanha e a proposta do romance O leitor, de Bernhard Schlink”. Estudos de Literatura
Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 153-164.
No entremeio do trágico: P erlongher
Perlongher
e os “Cadáveres” da Nação
Pablo Gasparini

Le savon a beaucoup à dire. Qu’il le dise avec volubilité,


enthousiasme. Quand il a fini de le dire, il n’existe plus

F. Ponge, Le Savon

Listar del broderie el entusiasmo, intuito del fiestero, al gozador las


lenguas se le hacen medias (o inmedias) como estambres

N. Perlongher, “el rompehielos”

Língua, Deus e Nação: sobre o pequeno Moisés


Falar de Néstor Perlongher não é, com certeza, falar de um fundador
(e, menos ainda, do fundador de um povo), mas é, certamente, falar da
subversão da origem que, paradoxalmente, encontrar-se-ia (abjetamente
oculta) na fundação de toda origem. Como se a poesia de Perlongher
desvelasse o “vergonhoso” instante prévio a toda filiação, a leitura desta
proposta estética talvez exija que nos lembremos da (controvertida) cena
original de um dos mais famosos expatriados (e fundadores de povos):
Moisés.
De fato, Flávio Josefo nos conta uma peculiar história da infância des-
te personagem. Em Antiguidades Judaicas (II, 9, 7) nos diz que, certo dia,
o pequeno Moisés, com apenas três anos, recebe do faraó, na distensão da
mesa familiar, a sua coroa. Moisés, perante esse gesto simpático do faraó
que se encontra carregado, no entanto, de toda uma simbologia da filiação,
terá uma atitude reveladora. Para consternação do faraó, e angústia (ou
aborrecimento) de sua mãe adotiva, Moisés tira a coroa de sua cabeça,
joga-a no chão e pisoteia. A anedota, imortalizada, entre outros, pelos
pintores Giovanni Battista Ruggieri (Moisés, resguardado pelos braços
de sua mãe adotiva, olha atemorizado para o faraó que o acusa com o
166 Pablo Gasparini

dedo) e por Orazio De Ferrari (Moisés, retido pela sua mãe adotiva –
pronta já para matá-lo –, olha, entre expectante e desafiante, para um
estupefato e quase impotente faraó)1 tem ainda um desenvolvimento bem
significativo para a nossa leitura. Decerto, o gesto só não será punido pela
morte (como mandava a lei) por causa da intervenção de um anjo que,
tomando a forma de um dos sábios da corte, aconselha submeter Moisés a
um singular julgamento. Para comprovar se a falta do menino foi ou não
intencional, o sábio aconselha preparar um cofre de pedras preciosas e
um outro de carvões ardentes e fazer com que o menino escolha entre os
dois. Guiado pelo anjo, Moisés pegará o carvão ardente e o levará à boca,
ferindo-se os lábios, mas ao mesmo tempo salvando sua vida.
O que parecia uma circunstancial história conjuga, desta maneira, o
gesto de insubordinação ao poder e à filiação paterna com uma explica-
ção dos defeitos de pronúncia que a tradição atribui a Moisés. Como que
sobrevivendo em seu gesto de desfiliação, o episódio talvez oferecesse
uma explicação para a deficiente língua egípcia do menino, já que, se-
gundo o relato tradicional, embora Moisés tivesse sido criado pela filha
do faraó, ele teria sido aleitado por sua própria mãe, iniciando-se, por-
tanto, na sua “língua materna”: o hebraico. Moisés falaria dessa maneira
egípcio com sotaque hebraico, o que faria dele, como o assinala Freud,
um “torpe de língua”2 que precisaria, para comunicar-se com o faraó, da
ajuda de seu irmão Arão. Por sua vez, e seguindo já a leitura de Freud em
Moisés y la religión monoteísta, “Se Moisés era egípcio...”, os defeitos de
pronúncia revelariam a sua condição de estrangeiro diante, em palavras
de Freud, de seus “neo-egípcios semitas”. Precisou inclusive de um intér-
prete, Arão, para se comunicar na língua do povo por ele escolhido (o
hebreu) a fim de fazer sobreviver o monoteísmo: uma invenção egípcia
que teria sido violentamente reprimida pelos próprios egípcios.
De uma maneira ou de outra, a língua de Moisés pode ser entendida
como aquela que, em outros artigos, chamávamos de “língua do entre-

1
As pinturas às quais estamos nos referindo têm por título Moisés e a coroa do faraó e datam de 1633
e 1640 (Ruggieri e De Ferrari, respectivamente). Ver De Capoa, L’ancien Testament:Repères
iconographiques, pp. 159-60
2
Freud, Moisés y la religión monoteísta, p. 3258.
No entremeio do trágico 167

meio”, aquela que apostando na impureza e na contaminação lingüística,


aponta para a falta ou a multiplicidade de origens e para a irrisão de
qualquer política identitária. De fato, em qualquer das leituras sobre
Moisés – a tradicional (sendo criado como egípcio Moisés sente-se hebreu)
e a freudiana (sendo egípcio, se desilude de sua nação pela rejeição dos
preceitos monoteístas de Ikhnaton que tentará passar aos hebreus) –, ele
nos é apresentado como um verdadeiro extraterritorial: como aquele que
subvertendo toda filiação faz de toda língua uma língua “outra”, saben-
do-se (diríamos junto de Derrida em Le monolinguisme de l’autre) proprie-
tário de nenhuma.
No entanto, sabemos que, no caso específico de Moisés, essa inquieta-
ção das origens procurava a fundação de uma origem, de um povo, de uma
nação. Embora os textos nada nos digam sobre a língua de Moisés na dura
travessia pelo deserto, podemos imaginar que a voz do deus que Moisés
procura impor a seu povo seria uma voz tão diáfana e luminosa, tão rígida e
pura como os severos e precisos mandamentos que Moisés baixa do monte
e que quebrará diante da insubordinação de seu povo dado, mais uma vez,
ao afrontoso politeísmo. Se lembrarmos do mandato divino a outro funda-
dor (“Deixa tua terra, tua família e a casa de teu pai e vai para a terra que
eu te mostrarei” 3), Deus, ao que parece, sempre se serve de
desterritorializados para fundar, paradoxalmente, uma lei e um território:
aquele da nação. Cercado pelo âmbito do sagrado, esse território (real ou
simbólico, mas sempre fundador de um povo) condenará precisamente aquilo
de que precisou para se fundar (a desfiliação e a transgressora rejeição da
coroa): Moisés, sabemos, nunca pisará a terra prometida.

Do sagrado e sua “abjeta” afronta


Longe de qualquer gesto fundador, e ainda muito antes do literal exí-
lio biográfico, Néstor Perlongher (aquele que, em outro artigo, vislum-
brávamos como o “mísero” ou “errante” estrangeiro gongorino4) se enun-
ciava já desde a mais patente desterritorialização. Decerto, em reitera-

3
Gênesis, XII. 1
4
Gasparini, “Riscos do português/Riscos do castelhano (a língua portuguesa na poesia do argentino
Néstor Perlongher)”.
168 Pablo Gasparini

das ocasiões, o poeta e crítico Roberto Echavarren tem apontado certa


compulsão de Perlongher pela desmarcação – melhor dizendo, superposição
– de fronteiras: uma espécie de “transcontinentalidade” pela qual, se-
gundo esse crítico, “Canción de amor para los nazis en Baviera” (apenas
para citar um exemplo do primeiro livro de Perlongher, Austria-Hungría)
podia falar do presente argentino (sob o peso do terrorismo de Estado) ao
referir-se a um passado europeu no qual “los pervertidos u homosexuales
eran enviados – junto a judíos, gitanos y otros marginales o disidentes – a
la confinación y exterminio”5. Contudo, como já tínhamos assinalado, se
levamos em consideração a maneira pela qual Perlongher fala do trágico,
versos como “y yo sentía el movimiento de tu svástica en las tripas” ou “y
nos íbamos a hacer/el amor en mi bohardilla/pero tú descubrías a Ana
Frank en los huecos/y la cremabas, Nelson, oh”6 falam-nos de certa resis-
tência a uma enunciação ou estética do trágico que Perlongher (consci-
ente deste efeito de seus textos) ligava – para seguir suas próprias pala-
vras – a uma espécie de pulsão ou “liberação desejante da subjetividade”
que “sexualizaria” o “traumatizado campo social”7.
Esse gesto de extravasamento do trágico pelo sexual se repete em “Ca-
dáveres”, poema escrito por volta de 1982 e incorporado posteriormente
em Alambres 8. Inscrito na tradição neobarroca ou neobarrosa que
Perlongher inventou, o poema se desloca por uma fronteiriça geografia de
matas y pajonales, de puentes y canales, de trillas ou, talvez (seguindo o
português convocado pelo texto), de trilhas e sonoras revelações9. Decer-

5
Echavarren, “Un fervor neobarroco”, p. 11.
6
Perlongher, Poemas completos, pp. 26-7.
7
Ver, “Lamborguini, Carrera, Lamborguini: Un ‘nuevo’ verso rioplatense” (Documento CEDAE
0790). Neste texto, Perlongher unifica estes autores porque seriam antecedentes de uma invasão
“de lo ‘poético’ sobre lo social’ (y no a la inversa como postula el social realismo)”. Tratar-se-ia,
assim, de “una suerte de pulsión poética volcada directamente sobre el campo social, sexualizada y
que sexualiza ese terreno” (Documento nº. 0790, p. 4).
8
Alambres, Buenos Aires, Último Reino, 1987, Premio Boris Vian de Literatura Argentina.
9
De fato, a primeira estrofe do poema diz: Bajo las matas / En los pajonales/ Sobre los puentes / En
los canales / Hay Cadáveres // En la trilla de un tren que nunca se detiene / En la estela de un barco
que naufraga / En una olilla, que se desvanece / En los muelles los apeaderos los trampolines los
malecones/ Hay Cadáveres. Em Perlongher, Poemas completos, p. 111.
No entremeio do trágico 169

to, aportunholadas e/ou agauchadas vozes acompanham o discorrer poé-


tico de “Cadáveres” e (sob a órbita desmesurada ou frustrada do desejo)
sussurram vislumbres de histórias, mexericos, boatos ou, ainda, denúnci-
as de bairro em que (acima de uma vida social – e sexual – coarctada por
um compartilhado porém inominado terror) se diz uma mesquinha
moralidade pública:

La que hace años que no ve una pija


La que se la imagina, como aterciopelada, en una cuna (o cuña)
Beba, que se escapó con su marido, ya impotente, a una quinta
donde los
vigilaban, con un naso, o con un martillito, en las rodillas, le
tomaron los pezones, con una tenacilla (Beba era tan bonita como una
profesora…)
Hay Cadáveres

Era ver contra toda evidencia


Era callar contra todo silencio
Era manifestarse contra todo acto
Contra toda lambida era chupar
Hay Cadáveres

Era: “No le digas que lo viste conmigo porque capaz que se dan
cuenta”
O: “No le vayas a contar que lo vimos porque a ver si se lo toma a
pecho”
Acaso: “No te conviene que lo sepa porque te amputan una teta”
Aún: “Hoy asaltaron a una vaca”
“Cuando lo veas hacé de cuenta que no te diste cuenta de nada … y listo”
Hay Cadáveres10.

Sobre esta descombinada ou dissociada paisagem, somente a fruição


dos cadáveres –predicada através do obsidente e fúnebre estribilho “Hay
Cadáveres”– parece se converter, em seu caráter inumerável, em um prin-
cípio de homogeneização. O interessante é que, se em uma economia

10
Perlongher, op. cit., pp. 119.
170 Pablo Gasparini

textual mais tradicional, o retorno obsessivo deste verso (uma espécie de


“Never more”) poderia se considerar positivo para o desenvolvimento do
poema (enquanto o faz progredir e, de alguma maneira, o unifica), consi-
derando-se o privilégio outorgado por Perlongher ao yirar11 semântico no
desenvolvimento de seus textos (dados sempre a repetições, desvios, re-
gressos, fugas e idas inesperadas), o “Hay Cadáveres” transforma-se, com
certeza, em um fator que decanta (no sentido de ser aquilo que o poema
não consegue assimilar) ou des-canta o gozoso fluir neobarroco. Ao invés
de se entrever como o respeitável pilar sobre o qual poderia se erigir um
monumento político, os cadáveres são aqui uma espécie de ruína que
interrompe a libertária errância semântica proposta pelo poema12. O fato
de que, de maneira incipiente, este poema (que, para recorrer ao
anedótico, Perlongher teria escrito numa viagem de ônibus entre São
Paulo e Buenos Aires) comece a trabalhar com o chamado portunhol
significa, por sua vez, a utilização do escorregadio entremeio lingüístico
para marcar aquela extraterritorialidade que tocava ou profanava o cará-
ter sacro da tragédia.
Essa marca lingüística se firmará em “El cadáver de la nación”, poema
que continua de alguma maneira com a profanação da figura de Eva
como santa do povo (já presente no poema “El cadáver” de Áustria-Hungría,
1980), e que é enunciado, segundo Echavarren, por “um abrasilerado,
um subversivo transnacional”13 que utiliza o fronteiriço verbo trepar e

11
Yirar: vocábulo do “lunfardo” argentino que conota um transitar sem meta, ou com meta não
determinada, própria do mercado prostibulário que Perlongher, como antropólogo urbano, consti-
tuiu em objeto de estudo.
12
Perlongher, de fato, tanto em sua estética poética como em seu trabalho antropológico, privilegia
a errância enquanto movimento que permite a flutuação semântica e identitária. Em O negócio do
michê: prostituição viril em São Paulo, opõe os dispositivos e processos de sedentarização das sociedades
modernas ao nomadismo próprio do andar erótico nas chamadas “Bocas de Lixo” (zonas de circula-
ção prostibulária). À livre flutuação de línguas e identidades, Perlongher opõe a noção de guetto e
a redução semântica. Em Comunidades imaginadas, Anderson afirma que “En la concepción moder-
na, la soberanía estatal opera en forma plena, llana y pareja sobre cada centímetro cuadrado de un
territorio legalmente demarcado” (p. 40); a ladainha do poema “Hay cadáveres” parece mais aparen-
tada com este movimento que com os deslocamentos constantes da errância social ou poética.
13
Echavarren, op. cit. p. 11.
No entremeio do trágico 171

aportunholadas construções sintáticas (no da para) para referir-se a cer-


tos destroços em “los pliegues o sayales de la santa”:

El poder, sus botones de harmalina, no


da para trepar (ya desgarrando) los pliegues o
sayales de la santa, en lapa escayolada, momi-
ficada o muesca, desgarrando, a dos ojos
cejijuntos, en balde mito, rito que te frustra,
porque ella no se inmuta, desde lo alto
de su nariz quebrada al salir (ser sacada) del
cajón, zombi escarlata, nylon Revlon, flecos
kanekalon, uñas que la manicura, con un esmero
de película, talla, tajea un corredor de
alambres14.

Com certeza, se esses corpos podem ser profanados (destroçados, cor-


tados ou, como em “Cadáveres”, dispersos por uma geografia hirsuta) é
porque eles têm ganhado a condição de sagrados, condição esta que, de
acordo com Benedict Anderson em Comunidades imaginadas, seria
consubstancial tanto ao discurso patriótico quanto ao religioso (sustenta-
ção, na verdade, daquele).
De fato, para Anderson, a Pátria, talvez pela sua afinidade com as
imagens e imaginação religiosas, pode exigir sacrifícios que têm a “la
muerte como la última de toda una gama de fatalidades”15, uma exigên-
cia que a sentença pro patria mori resumiria de forma paradigmática.
Dessa maneira, ainda que, conforme afirma Anderson, fosse absurdo pensar
em uma “tumba para el ‘Marxista desconocido’ o un cenotafio para los
‘liberales caídos’”, não surprende a estética entre religiosa e fúnebre de
um monumento pátrio, estética esta da qual o Panthéon em Paris seria
exemplo notório, assim como o cemitério da Recoleta em Buenos Aires
onde, diga-se de passagem, repousa hoje o corpo de Eva Perón após uma
longa série de peregrinações e profanações.

14
Perlongher, op. cit., p. 177.
15
Anderson, op. cit., p. 27.
172 Pablo Gasparini

Contrariamente ao caráter sacro que envolve, na verdade, todo mo-


numento (da simples sepultura da Recoleta ao projetado monumento nas
Malvinas, dos chamados “monumentos de papel”16 aos memoriais dos aten-
tados à AMIA e a Embaixada de Israel17), Perlongher parece se colocar
do lado de um afrontoso antimonumento. Tocando o que por definição é
intocável, a sua poesia converte (até pelo fato de estar se enunciando no
“pouco serio” portunhol) o sacro em abjeto, conversão que parece delimi-
tar e dividir a ambigüidade inerente ao termo.
Segundo a filogenética elaborada por Freud no já citado Moisés y la
religión monoteísta, esse caráter ambíguo do sacer (“sagrado”, “santifica-
do”, mas também “abjeto”, “execrável”) dever-se-ia à ambivalente rela-
ção com o paterno já que, na sua leitura, o sacro não seria outra coisa
senão “la perpetuada voluntad del proto-padre”18. Todo monumento, pa-
receria dizer Freud, é, ao final, um monumento totêmico, isto é, a recor-
dação e prova de uma “tragédia pré-histórica” que ele atualiza e da qual
exige reparação, fazendo de seus acólitos (ou filhos) irredentos devedo-
res. Matizando, a partir do próprio Freud, estas colocações, bem podería-
mos dizer que essa “tragédia” (que não é outra senão a devoração do
aborrecido/amado proto-padre) bem pode ser reatualizada ou recalcada
por circunstâncias outras a essa cena original.
Nesse sentido, o “desastre”, e pontualmente o desastre histórico, é
colocado como especialmente predisposto a ocupar o lugar de um sacrifí-
cio “original”. Decerto, o que Freud descreve como a “catástrofe de
Ikhnaton”19, isto é a destruição e confiscação dos templos da antiga reli-
gião de Amon, teria sido o grande alicerce a partir do qual Moisés, num
colossal ressarcimento, fundaria a nova pátria que pudesse render culto
ao monoteísmo violentamente desdenhado pelos egípcios. O desastre,

16
Refiro-me aos avisos publicados no jornal Página 12 pelos familiares dos desaparecidos na última
ditadura militar argentina. A designação destes avisos como monumentos de papel provém de
Fernando Reati.
17
Sobre estes memoriais, ver Aizenberg, “Holocausto, memória judaica e memoriais do terror no
cone sul”, pp. 71-80.
18
Freud, op. cit. p. 3314.
19
Freud, op. cit., p. 3255.
No entremeio do trágico 173

“monumentalizado” através do ganho do caráter sacro (que reverte o


que era execrável em coisa “santa”), converter-se-ia, assim, na garantia
de uma nova filiação.
Diante desta “monumentalização”, Perlongher desvela (tocando “o
que não deveria”) o caráter abjeto do sacro, operação reversa que nada
casualmente remete a tudo o que foi reprimido pelo pai: o instintual, o
sexo, a desbordante erótica em que Eva, antes da heróica cancerosa que
morre entregue a seu povo, é, como em Evita vive, uma suburbana que se
entrega aos prazeres carnais com este20, ou onde a prescritiva heroicidade
dos soldados argentinos nas Malvinas se vê afrontada, como em “El infor-
me Grossman”21, por cenas de brusca violência e humilhação sexual que
transformam os gurkas em estupradores perversos dos nada inocentes sol-
dados argentinos:

Nessa mesma noite ouvimos o golpe das botas gurkas no teto do pocinho. Um deles
engatou a bota na junção das chapas e nos viu. Puxamos as armas no ato. O gurka já
entrou batendo bronha. O “inglês”, que estava super-treinado, caiu-lhe em cima. O
gurka arrebentou-lhe o nariz com uma coronhada, e caçou o Pancho, um cara de
Corrientes, virou-o e lhe rasgou as bombachas com uma faca. No primeiro que colocou
o pau em sua boca Pancho tascou uma mordida, caralho! quebraram seus dentes a
pontapés. Mesmo ensangüentado, ele continou se esquivando e se fresqueando para
abrir a bunda. Então o cara da faca pontiaguda alargou-lhe o olho do cu. Depois,
desamarraram uma de suas mãos para que se masturbasse. O coitado estava meio morto
e não conseguia, cortaram-lhe o pau de um só golpe e o enfiaram em seu cu, já que nem
pra punheta ele servia mais.
Quando chegou minha vez, pensei: antes puto do que morto. Assim, ao primeiro que o
brandiu, abri bem a boca e fechei os olhos, como no consultório do doutor. O gurka
tinha acabado de comer o Pancho e estava com o pau incrustado de merda e sangue.
Aspirei fundo e engoli tudo; isso melhorou as relações e o gigante se tranqüilizou,
aquietou um pouco sua pica e começou a mijar; eu, engole que engole22.

1
O texto, que já havia sido publicado em inglês em uma antologia de textos reunidos por Winston
Leyland, causa uma verdadeira polêmica pública quando se publica em Buenos Aires em 1989 (em
El Porteño nº 88).
2
Em Perlongher, Evita vive, pp. 56-67.
1
Ibidem, pp. 56-7.
174 Pablo Gasparini

Do portunhol como banquete totêmico.


O fato de que esta profana antimonumentalização seja feita em ocasi-
ões no macarrônico portunhol, não deixa, por sua vez, de ser significati-
vo. Decerto, o portunhol, na concepção de Perlongher, escaparia, en-
quanto poética língua do entremeio, da pretensão de controlar o sentido
e, portanto, da castração. Com efeito, se – como se afirma em “el
rompehielos” de Alambres – “al gozador las lenguas se le hacen medias o
inmedias”23, poderíamos pensar que o portunhol é meio espanhol e meio
português – não de todo o espanhol e nem de todo o português –, e espera
equilibrar-se numa posição intermediária ou niveladora entre ambas as lín-
guas, através do cruzamento de imaginárias “medias” de línguas (o cruza-
mento dos caracteres imaginários gerais do espanhol – a “media” do espa-
nhol – com os caracteres imaginários gerais do português – a “media” do
português); uma ilusão ideal de nivelação ou “media” que (apesar de sua
pretensão de “língua franca”) se frustra e acaba – se consideramos a cita-
ção de Perlongher e a sua própria prática poética – em “in-media”, em uma
impossível conciliação que redunda no constante errar dos sentidos permi-
tindo, paradoxalmente, a evocação dos mais intocáveis sentidos. De fato,
se, seguindo Charles Melman (1992), o sagrado consiste, em seu viés
lingüístico, em “fazer com que haja palavras interditadas”24, a oscilação do
portunhol faria possível aquilo que Francis Ponge encontrou em seu “sensible,
susceptible, compliquée” sabão, pois se ele “a beaucoup à dire” [...] “Quand
il a fini de le dire, il n’existe plus”25. Escorregadio, o sabão de Ponge e de
Perlongher não diz, sabemos, apenas o lugar da falta, mas, sobretudo, como
sustentam Charles Melman e Contardo Calligaris em uma rica entrevista,
o lugar impronunciável de um significante sagrado26.
“Cuninlingüíneo portunhol lubrificante”, diz Haroldo de Campos so-
bre a língua de Perlongher em “Réquiem”27, um dos textos que escreveu
por ocasião da morte do poeta argentino, um tributado admirador da

23
Perlongher, Poemas completos, p. 107.
24
Melmam, Imigrantes: incidências subjetivas das mudanças de língua e país, p. 92.
25
Ponge, Le savon.
26
Ver Melman, op. cit., p. 92.
27
Inserido em Schwartz (org.), Cuadernos de Recienvenido: homenaje a Néstor Perlongher, pp. 5-10.
No entremeio do trágico 175

poética haroldiana. Jogando com a própria materialidade dessa língua


(tão líquida como o próprio texto de Ponge e dada, como sustenta Rosa,
a uma abjeta ortofonia28), Haroldo parece resumir o que ela tinha de
gozo, mas também, considerando o seu outro texto sobre Perlongher, o
que ela tinha de profanatório. Decerto, em “Neobarroco: in memoriam”29,
Haroldo recupera o estribilho “Hay Cadáveres” do célebre poema
perlongheriano, abrindo no entanto uma cesura que converte o impesso-
al de existência “hay” em um lamento de dor (ay) que, apesar da circuns-
tância de agonia aludida no poema, lê-se menos a partir do individual
que do coletivo/nacional. Assim, diz-se que “néstor perlongher” está:

morrendo e canta) “hay...”


madres-de-mayo heroínas-car-
pideiras vazadas em prata negra
lutuoso argento rioplatense plangem)
“... cadavéres” e está
morrendo e canta [...]30

Significativamente, contra o “lutuoso argento rioplatense plangem”


não apenas se opõe “seu canto de/pérolas-berrucas alambres bo-/quitas
repintadas restos de unhas/lúnulas [...]” da primeira parte do poema, mas
também o fato peculiar de que esse canto se realize – como se afirma
próximo ao final do poema – “em gozoso portunhol”, língua que se (para
tomar outra imagem de Haroldo no já citado “Réquiem”) Perlongher
“manducou”, talvez seja por sua antimonumental pretensão de convidar
a um formidável “banquete totêmico”, como se o sacro pudesse ser sub-
vertido sem seu retorno redentor.
Em Chemin de l’exil: vers une identité ouverte, Yves Tourn assinala que
o monumento estabelece o culto aos ancestrais, pois eram precisamente
seus restos (indicados pelo túmulo) os que estabeleciam a propriedade
da terra, as fronteiras do “pago” e, conseqüente e simbolicamente, o

28
Ver Rosa, “Una ortofonía abyecta”, p. 31.
29
Inserido em Perlongher, Lamê, p. 15.
30
Ibidem.
176 Pablo Gasparini

preclaro e arcaico fundamento da Pátria, do Patronímico e do


Patrimônio31. Desfiliado desse tributo pagão, Perlongher (como Moisés,
do qual Freud diz que “había perdido su patria”32), resgatou sua vida
(também como o próprio Moisés) queimando seus lábios e até procuran-
do um novo espaço sacro, aquele de “flujos de partículas iridiscentes”
da religião da ayahuasca33. Contudo, com um furor somente equiparável
ao do faraó da pintura de Battista Ruggieri, seria duramente acusado
de desrespeitar a tragédia vernácula, de lançar por terra a inusitada
oportunidade de filiação oferecida por um novo desastre nacional. Acu-
sado com o paterno dedo da Pátria, lhe foi imputada, por exemplo, na
ocasião da guerra das Malvinas, a aparente comodidade de sua “ilusão
extraterritorial”34, como se, de fato, Perlongher, tal qual a criança da
cena, estivesse amparado pelos amorosos braços de sua mãe adotiva.
Longe desse abrigo, a cena que nos pinta a poesia de Perlongher parece
estar mais próxima da proposta de De Ferrari. Decerto, fazendo de toda
língua (tanto vernácula como adotiva) a – segundo Derrida – “folle du

31
Sobre a questão, lemos em Lya Tourn: “La stéle qui dépassait de la sépulture des aieux a été sans
doute parmi les premieres monuments autour desquels s’organisa le culte paien des ancêtres. Lês
mots ‘pays’ et ‘paysan’ ont la même origine que ‘paysage’, ‘païen’ et ‘paganisme’. Le terme latin pagus,
du verbe pangere dont la signification est ‘ficher en terre’, ‘enfoncer’, ‘etablir solidament’, est
également apparenté à la racine pas pax, ‘paix’. Il faut enterrer les morts pour qu’ils ‘reposent en
paix’”. Por sua vez, citando uma conferencia de M. Serres (“Terre et eau de l’exil et de l’emigration”,
Agen, 7 mars, 1993), Tourn acrecescenta que “L’origine même de la patrie est indissociable du culte
des morts et des tombs des ancêtres, pusiq’elle se rattache á la proprieté des terres. La proprieté du
champ venait de ce qu’y étaient enterrés les ascendants de la famille et sa limite se marquait de la
pierre de cippe”. Cf. Tourn, Chemin de l’exil: vers une identité ouverte, p. 180.
32
Op cit., p. 3255.
33
A expressão pertence à descrição do ritual do Daime de acordo com o artigo de Perlongher “La
religión de la Ayahuasca” (inserido em Prosa plebeya, pp. 155-73). Michel Maffesoli em “Exílio e
reintegração”, último capítulo de Sobre o nomadismo (1997), analisa as relações entre errância e
misticismo de uma maneira, por momentos, claramente perlongheriana.
34
Refiro-me à discussão de Perlongher com a revista Sitio em torno da questão da guerra das Malvinas.
Ver Alcalde, Ramón. “Ilusiones de isleño” (de onde procede a leitura de Perlongher como alguém
subjugado pela “ilusión territorial”) e Jinkis, Jorge. “A la tibia musa, de un vate desencantado” ambos
em Sitio. Buenos Aires, nº. 3, dezembro de 1983. Trabalho este debate em Gasparini, op. cit.
No entremeio do trágico 177

logis”35, e com um pai sentido como “autoritario, hiposensual e deca-


dente”36, a sua mãe adotiva, longe de oferecer resguardo, não parece
duvidar em liquidar aquele menino que, ao final, “nunca de
nemnúncares/conseguiu arredondar no palato um es-/correito portugu-
ês normativo-purista-/puritano”37. Desarraigado de ambos os lados, os
seus (cremados) restos, hoje, não têm nenhum jazigo.

Referências bibliográficas
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cone sul”. Remate de males, 26.1, Instituto de Estudos da Linguagem
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portuguesa na poesia do argentino Néstor Perlongher)”. Ipotesi, v. 9,
nºs. 1 e 2, Universidade de Juiz de Fora, 2005.

35
Discutindo a relação de Hannah Arendt com o alemão (colocado pela autora como a sua “língua
materna”), Derrida afirma: “La mère peut devenir la folle du logis, la delirante de la loge, de ce lieu
de substitution ou loge le chez-soi, la loge ou lê lieu, la localité ou la location du chez-soi. Il peut
arriver qu’une mere devienne folle, et cela peut être, certes, un moment de terreur. Quand une
mére perd la raison et le sens commun, l’experience en est aussi effrayante que quand le roi devient
fou. Dans les deux cãs, ce qui devient fou, c’est quelque chose comme la loi ou l’origine du sens (le
pére, le roi, la reine, la mére). Or cela peut parfois arriver comme um événement, sans doute, et
menacer un jour, une fois, dans l’histoire de la maison ou de la lignée, l’ordre même du chez-soi, de
la casa, du chez”. Cf. Derrida, Le monolinguisme de l’autre, p. 106.
36
Sobre esta caracterização da Argentina, ver Prosa plebeya, pp. 13-21.
37
Haroldo de Campos, “Réquiem”, em op. cit., p. 8.
178 Pablo Gasparini

JINKIS, Jorge. “A la tíbia musa, de um vate desencantado”. Sitio, nº. 3.


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Recebido em maio de 2007.


Aprovado em junho de 2007.

Pablo Gasparini – “No entremeio do trágico: Perlongher e os “Cadáveres” da Nação”. Estudos de


Literatura Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 165-178.
Estado de exceção: um novo
paradigma da política?
João Camillo Penna

O enunciado do problema
Um espectro assombra o mundo atual: o de que o estado de exceção
tornou-se a regra mais ou menos disfarçada de forma de governo. Walter
Benjamin, na esteira de Carl Schmitt, exprimiu-o de forma clássica em
1940: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de emergência em
que vivemos não é a exceção, mas a regra”1. Dois índices provenientes da
reflexão brasileira recente podem ajudar-nos a circunscrever o problema:
1) o sociólogo Francisco de Oliveira, no ensaio “Democratização e
Republicanização do Estado”, que marcou a sua ruptura definitiva com o
PT do qual era membro histórico2, ainda no início do primeiro mandato
de Lula, escreve:

Está em gestão uma sociedade de controle que escapa aos rótulos simples do
neoliberalismo e até mesmo ao mais radical, e oposto do autoritarismo. Não parece
autoritarismo, pois as escolhas por intermédio das eleições se oferecem periodicamente,
embora o instinto do eleitor desconfie da irrelevância do seu voto. [...] Não é
neoliberalismo, por que raras vezes se viu controles estatais tão severos, e “intervenções
tão pesadas: agora mesmo o ultraconservador George Bush anuncia um programa
nitidamente keynesiano para vitaminar a economia norteamericana”;

2) o filósofo Paulo Arantes diz algo semelhante em “Estado de sítio”:


“Se fosse possível e desejável resumir numa fórmula o atual estado do
mundo, de minha parte não pensaria duas vezes: estado de sítio”. Este
monstro constitucional tem vários nomes: “estado de sítio, estado de ex-
ceção, estado de emergência ou urgência, plenos poderes, lei marcial...”3,
tema que depois desdobrou em livro4. A Constituição brasileira de 1988,

1
Benjamin, “Theses on the Philosophy of History”, p. 257.
2
Cf. a coluna de Elio Gaspari a respeito, em Folha de São Paulo, 15 jun. 2003.
3
Arantes, “Estado de sítio”, p. 51.
4
Arantes, Extinção.
180 João Camillo Penna

nos Artigos 136 e 137, concede a exceção em duas gradações: o estado de


defesa, como medida necessária para preservar ou restabelecer a ordem
pública diante de ameaça institucional ou calamidade; e o estado de sítio,
uma vez comprovada a ineficácia do estado de defesa, ou diante de de-
claração de estado de guerra. Espanta atualmente o clamor aqui e ali,
mas cada vez mais sistemático, de que os problemas de (in)segurança nas
capitais brasileiras possam ser solucionados com a adoção imediata destas
medidas de exceção, sobretudo quando sabemos que a dita (in)segurança
atual é fruto dileto da política de segurança nacional adotada durante os
21 anos de regime militar, ou seja, de um estado de exceção explícito que
durou toda a extensão do período autoritário5. No Rio de Janeiro, vive-
mos sob ditames jornalísticos que decretam a cada dia a existência de um
terror criminal, conclamando a população a exigir de seus governantes
uma intervenção militar, saudosa de melhores dias do regime autoritário,
que lhes restituiria afinal a paz e o direito de ir e vir que a criminalidade
abastada, articulada a segmentos da política corrupta, lhe roubou. A isso
se acresce o óbvio – e é este o cerne da discussão que proponho quanto
ao Brasil, como veremos adiante: que grandes segmentos da população
brasileira vivem hoje em dia sob um estado de sítio branco, por debaixo
da cobertura de um suposto estado de direito.
Tudo indica que estejamos caminhando para uma superação da clas-
sificação tripartite das constituições fundada por Aristóteles (as três boas
constituições: Monarquia, Aristocracia, e a Politéia, e os seus desvios
correspondentes: tirania, oligarquia, e democracia6.), e canonizada com
variações por Montesquieu, rumo a alguma coisa que temos dificuldade
de definir. A nova “constituição” é paradoxal: combina, no Brasil, uma
extensão impressionante dos poderes do executivo, a administração polí-

5
Cf. Teixeira, “na verdade estamos diante de uma verdadeira guerra de guerrilha, com ações
semelhantes às dos vietcongs. Qual a solução? [...] [A] constituição oferece remédios para esse
desafio. O estado de defesa (Art. 136) permite que o Presidente, para restabelecer a paz social,
restrinja alguns direitos em locais restritos e determinados. Outro remédio constitucional é o
estado de sítio (Art. 137), que permite entre outras coisas a busca e apreensão em domicílios,
restrições ao sigilo das comunicações e a obrigação de permanência em localidades determinadas”.
Teixeira, A violência sem retoque: a alarmante contabilidade da violência, p. 90.
6
Aristóteles, Política, 1279a 32; 1279b 6.
Estado de exceção 181

tica por meio de medidas provisórias e decretos-lei, o fisiologismo sistêmico


do legislativo, com loteamento de votos das câmaras, adquiridos por meio
de distribuição de cargos, e verbas públicas, e a inépcia arrogante do
judiciário; com o seu aparente contrário: o virtual desaparecimento da
esfera de decisão política, e sua transferência para instâncias do poder
imperial econômico e seus representantes locais, com a implantação dos
planos de desregulagem financeira. Francisco de Oliveira utiliza a famo-
sa expressão de Deleuze “sociedade de controle”7, mas desenvolve algo
que se assemelharia mais à “sociedade panóptica” resgatada por Foucault8
(explicitamente referido por ele no ensaio mencionado acima), para des-
crever a gestão imperial do FMI no novo Leviatã9. Os parâmetros da
financeirização da economia não são mais cristalizados em torno da opo-
sição nós/eles, em que “eles” designa a instância externa, demonizada,
do FMI, mas são devidamente interiorizados e geridos por “nós mesmos”,
a quem cabe a gestão de riscos de uma administração “madura”. O cam-
po da política não admite mais algo que lhe seja exterior (os mandarins
de Washington manipulando marionetes, ou a utopia da esquerda fora do
“sistema”), requisito da formação imperial, como veremos: Jacques
Rancière chama de “democracia consensual” à situação política atual,
na qual o povo é tornado idêntico à sua visibilidade midiática, por meio
de pesquisas de opinião e simulação incessante de votos, em uma relação
especular do povo consigo mesmo, que não admite resto10, ao mesmo tem-
po que pululam restos ocultamente escancarados por toda a parte; Loïc
Wacquant fala sobre a transformação do estado-providência (ou “estado
caritativo”) em estado penal, com a literal transferência de verbas antes
utilizadas em projetos de assistência social para gastos com o dispositivo
de segurança (policiamento, sistema carcerário, forças armadas), no que

7
Deleuze, “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”, passim.
8
Foucault, Vigiar e punir: história da violência nas prisões, passim.
9
Conforme Oliveira, “o FMI é um saber foucaultiano: ele enquadra os governos nacionais, reco-
mendando superávits e outras medidas, que são diktats; suas missões são o guarda penitenciário que
reiteradamente dá uma olhada no prisioneiro; este mantém suas contas prontas para mostrar ao
gendarme que volta, mas essa volta é até dispensável, pois o prisioneiro faz o dever de casa como um
autômato”. Oliveira, “Democratização e republicanização do Estado”.
10
Rancière, O desentendimento: política e filosofia, p. 107.
182 João Camillo Penna

consiste de fato uma nova forma de gestão da miséria, com o aumento


maciço da população carcerária (por exemplo, a população carcerária
dos Estados Unidos compreende atualmente dois milhões de pessoas, 7
milhões, se incluirmos a população em liberdade condicional, ou seja,
mais ou menos 2% da população do país11; e o mais irônico é que isso tudo
ocorra exatamente quando a universalização ocidental do regime demo-
crático faz com que os únicos regimes que não se apresentam como demo-
cracias sejam as teocracias islâmicas!12.
A primeira formulação moderna do estado de sítio (estado de exceção
ou de emergência) é a do Decreto de 8 de julho de 1791 da Assembléia
Constituinte francesa, que distinguia entre o estado de paz, no qual a
autoridade civil e a militar agem cada uma em sua própria esfera; o estado
de guerra, onde elas agem em conjunto; e o estado de sítio, onde a autori-
dade civil passa a ser subordinada à esfera militar. O decreto referia-se
exclusivamente às praças fortes e portos militares, sendo, no entanto,
pouco a pouco estendido às cidades comuns do interior (Lei de 19 de
Frutidor, ano V do Diretório), e conferindo-se em seguida o direito de
pôr uma cidade em estado de sítio (Lei de 18 de Frutidor, no mesmo
ano)13. A história do estado de sítio revelará, a seguir, uma autonomização
crescente com relação à situação de guerra, passando a ser utilizada em
situações excepcionais para o controle policial de sedições internas.
O corolário do estado de exceção é, portanto, a guerra civil contra o
inimigo interno, ou o estado de guerra contra inimigo externo, com o
agravante de que, em geral, e sobretudo desde a institucionalização mo-
derna do estado de exceção (durante a Revolução Francesa, como vi-
mos), a topografia externo/interno tenha se tornado inoperante. A guerra
policial contra inimigos étnicos e/ou terrorismo, nos últimos anos, vem
mobilizando a promulgação de estados de sítio permanentes em Israel
(desde o início da Jihad palestina), nos Estados Unidos (o Patriot Act, na
seqüência dos ataques de 11 de setembro de 2001), na França (Nicolas

11
Wacquant, Punir os pobres, p. 30.
12
Derrida, Voyous, p. 52.
13
Agamben, Estado de exceção. Home Sacer, II, 1, pp. 15-6.
Estado de exceção 183

Sarkozy, recentemente eleito presidente, iniciou, já como Ministro do


Interior, uma política dura contra os imigrantes, sob o pretexto da alta
dos índices de crimes pretensamente associados à imigração), e na Rússia
(sob a ameaça de separatistas tchetchênios), para citar apenas alguns
casos mais flagrantes. Se ampliarmos, no entanto, um pouco o escopo do
nosso diagnóstico, constataremos que a delimitação recente do problema
não agüenta um questionamento mais profundo: Israel, por exemplo, des-
de o seu nascimento, encontra-se em estado de exceção, o que simples-
mente o torna um estado de fato “moderno”, desde a sua fundação, cuja
existência só é concebível enquanto estado de sítio permanente
(literalizado atualmente pela construção do muro que o separa da Auto-
ridade Palestina); os Estados Unidos mantém sob estado de exceção mais
ou menos declarado a sua população negra desde a guerra civil (1861-
1865), e poder-se-ia argumentar (muitos teóricos o fazem) que a Consti-
tuição Americana de 1787 configura na realidade um golpe de estado
que abafou o período democrático real, na seqüência da guerra de inde-
pendência14; as posições de Sarkozy, que podem agora ser transformadas
em programa de estado, vêm sendo aplicadas com maior ou menor rigor
há décadas pelo governo francês por meio de leis anti-imigração; a ame-
aça tchetchênia provoca apenas um retorno da linha dura da comuni-
dade de segurança, e da KGB da antiga União Soviética, agora
rebatizada Serviço Federal de Segurança (FSB), com a retomada de
um estado policial que controlou o país durante décadas15. Coloca-se
portanto o problema: como entender o estado do mundo atual sob o
estado de exceção?

Primeira formulação da questão


O problema surgiu para mim no correr do desenvolvimento de uma
pesquisa sobre a escrita carcerária no Brasil, e o “boom” de textos de
presos que surge na esteira do best-seller Estação Carandiru (1999), de

14
Cf. Arantes, “Estado de sítio”, p. 54: é a posição da chamada “escola progressista”, cujo maior
nome é Charles Beard, em An Economic Interpretation of the Constitution. Cf., em especial, a posição
de Antonio Negri, em O Poder constitutinte, p. 227.
15
Cf. Folha de São Paulo, 29/02/2004, “Sob Putin, Estado russo privilegia o medo”.
184 João Camillo Penna

Dráuzio Varella (assim como o filme de Hector Babenco)16. Minhas pes-


quisas demonstraram que a literatura carcerária em particular, e a antes
insipiente literatura de testemunho em geral, no Brasil, surge na seqüên-
cia da abertura do espaço de visibilidade que o problema carcerário obte-
ve a partir do massacre do Carandiru, ocorrido em 2 de outubro de 1992.
O nefando episódio da crônica paulistana, quando 111 presos, segundo
dados oficiais, foram executados em selvagem carnificina pela polícia
militar, com suas terríveis implicações de violência policial sistêmica,
demonstrou claramente que a população carcerária brasileira vive de fato
sob um estado de sítio permanente, completamente fora do regime regular
de cidadania que é seu direito constitucional. As costumeiras execuções
sumárias, a prática da tortura, a superlotação de celas, as condições de
vida e higiene absolutamente insalubres (falta de ar, luz, alimentação),
com disseminação epidêmica de HIV e tuberculose, a prisão ilegal por
tempo indeterminado em chefaturas de polícia, a falta de acesso à assis-
tência legal17 configuram um quadro de tal abuso de direitos humanos
que comprovam a trágica constatação de que o massacre de 1992 consti-
tuiu apenas a ponta do iceberg, e, de fato, a dupla virada da opinião
pública. Por um lado, foi o momento em que o público em geral deixou de
perceber esses seres humanos “invisíveis” à sociedade como algo que de-
veria permanecer como tal: invisível; e por outro, a articulação de uma
representação pública em torno dos temas fortes da segurança pública,
que resultou na fragorosa derrota mais do que tudo simbólica, do referen-

16
O corpus inclui, dentre outros, as canções dos Racionais MC’s, e suas crônicas do “Holocausto
urbano”, em especial a canção “Diário de um detento”, com letra de Jocenir (do CD Sobrevivendo no
Inferno, 1997), o documentário de Paulo Sacramento, Prisioneiro da grade de ferro (2004), e os livros:
Letras de Liberdade (2000), Memórias de um sobrevivente de Luiz Alberto Mendes (2001), Pavilhão 9.
Paixão e morte no Carandiru de Hosmany Ramos (2001), Diário de um detento: o livro, do próprio Jocenir
(2001), e Enjaulado. O amargo relato de um condenado pelo sistema penal de Pedro Paulo Negrini (2002),
Sobrevivente André du rap (Do massacre do Carandiru) organizado por Bruno Zeni (2002), Cela forte
mulher de Antonio Carlos Prado (2003). Não menciono aqui as publicações sem dúvida caudatárias
do massacre, mas já não inteiramente ligadas a ele. A partir dele, Hosmany Ramos sedimentou sua
carreira já então constituída de ficcionista, Luiz Carlos Mendes firmou-se como escritor, o jorna-
lista Bruno Zeni escreveu um romance... Há importantes estudos jornalísticos e sociológicos que
surgiram após o massacre e que devem sua existência em parte a ele.
17
Wacquant, As prisões da miséria, p. 11.
Estado de exceção 185

do das armas18. Explica-se assim o efeito inverso ao pretendido pelas fre-


qüentes rebeliões em estabelecimentos penitenciários: ao invés de cha-
mar a atenção para a calamidade que ocorre dentro das prisões, insufla a
justificativa de endurecimento, ou simplesmente o “respeito”, das regras
do sistema carcerário. Parece-me, no entanto, emblemático que os avan-
ços legais de fato ao direito dos presos ocorram vagarosamente, mas sem-
pre a reboque de rebeliões graves. Assim, a elementar realização de um
censo carcerário brasileiro, instrumento essencial para o controle de
penas, e para o conhecimento de fato da realidade carcerária brasilei-
ra, ocorreu apenas recentemente, e de forma ainda tímida e incompleta
(apenas os sistemas de São Paulo, Rio de Janeiro e Sergipe são incluí-
dos). Anunciada nos jornais de 19 de março de 2007, a iniciativa é sem
dúvida conseqüência das duas rebeliões organizadas pelo PCC em São

18
Não é ocioso lembrar que o corolário do estado de exceção para alguns e o de privilégios para
outros, o que inclui a virtual inexpugnabilidade judicial. Nesse sentido é exemplar a história do
Coronel Ubiratan Guimarães, comandante da operação do massacre, e até hoje a única pessoa
julgada por ele. Em 2001, portanto 9 anos após, foi acusado de homicídio e condenado a 632 anos por
102 das 111 mortes (seis anos por cada homicídio e vinte anos por cinco tentativas de homicídio).
No ano seguinte, durante o trâmite do recurso da sentença de sua condenação, foi eleito deputado
estadual por São Paulo, devido à celebridade obtida por sua atuação no massacre (cf. a escolha
lúgubre, embora por ele negada, do número 14.111, como número de legenda, em referência ao
número de mortos). Já como deputado, o recurso de sua sentença condenatória foi julgado pelo
Órgão Especial do Tribunal de Justiça, em 15 de fevereiro de 2006 (5 anos após o julgamento), que
reconheceu um “equívoco” na sentença, o que acabou fazendo com que o réu fosse absolvido. Em 9
de setembro de 2006, quando se candidatava à reeleição, foi assassinado em crime até hoje não
esclarecido. Como deputado, teve papel importante nas discussões sobre o “direito” à arma, durante
o referendo sobre o desarmamento em 2005, junto com o deputado federal Luiz Antônio Fleury
Filho, governador à época do massacre, e em última análise instância decisória da invasão da polícia
militar naquela ocasião – os dois integrando com outros deputados a chamada “bancada da bala”.
O fato judicial em si, corriqueiro de nossa crônica policial/jurídica, contém uma lição interessante:
o elemento constitutivo do massacre, no caso, de uma representação política militarizante, com
grande apelo de votos, e cujo mote notável é o fortalecimento do aparelho de segurança policial
como solução para todos os problemas brasileiros. O massacre do Carandiru não apenas subjetivizou
o preso, constituindo um espaço importante de reivindicação de direitos, instituindo, por exemplo,
o testemunho carcerário no Brasil; ele subjetivizou também a representação policial/política e um
espaço de lobismo forte do aparelho policial/militar de segurança; além, é preciso não esquecer, de
articular a formação do Primeiro Comando da Capital (PCC) (Souza, O sindicato do crime, passim).
186 João Camillo Penna

Paulo em 200619. O que confirma terrivelmente a eficácia tática desta


ONG do crime, cuja estratégia tem analogias com a das negociações
sindicais (em que pesem, é óbvio, as distinções evidentes entre os dois
tipos de organização).
Chamando as coisas pelos nomes devidos, as prisões brasileiras são
verdadeiros depósitos humanos, ou “campos de concentração para po-
bres”20. A comparação com os Lager nazistas, aliás, reaparece insistente-
mente nos relatos de presos, o que simplesmente confirma o dado histó-
rico: a fonte do projeto arquitetônico do complexo prisional de Bangu,
no Rio de Janeiro, por exemplo, é de fato os campos de concentração
nazistas. A população carcerária brasileira é de 401,2 mil presos (dados
de dezembro de 2006), sendo de 130,8 mil só em São Paulo e de 28,1 mil
no Rio de Janeiro, tendo sido registrado um aumento da ordem de 72%
do número total de presos, entre 2000 e 200621. Hoje em dia o déficit
consolidado do sistema penal brasileiro é de 100.000 vagas, e se incluir-
mos nesse número outros 100.000 que têm mandados de prisão, mas que
não estão presos, teremos um total de 200.000 carências de vagas22, taxa
que aumenta à ordem de 3.500 ao mês23. O que significa praticamente

19
O Sistema Integrado de População Carcerária (SIPC) foi criado mediante a Resolução n° 33, de
10 de abril de 2007, do Conselho Nacional de Justiça, presidido pela Ministra Ellen Gracie.
Conforme escreve Lílian Matsuura na Revista Consultor Jurídico, de 19 de março de 2007: “Nele
constam informações cruzadas entre o Judiciário e órgãos responsáveis pela administração peniten-
ciária dos estados de Sergipe, São Paulo e Rio de Janeiro. Através desse banco de dados, é possível
saber quais as reais condições de cada detento, como a condenação e a previsão para ser libertado.
O objetivo do trabalho é observar a preservação dos direitos de cada detento, reeducá-los, diminuir
a reincidência que hoje é de 60% e oferecer oportunidades para inserir os egressos no mercado de
trabalho. [...] No Sistema Integrado de População Carcerária constam dados do detento como: faixa
etária, sexo, cor, escolaridade, estado civil, naturalidade e nacionalidade, além da condenação e
previsão de saída. Além de audiências e benefícios a que tem direito. [...] As principais queixas vêm
de presos que ficam detidos por mais tempo do que previsto na sentença, de condenados que não
têm progressão de pena atualizada, daqueles que não têm qualificação profissional e dos egressos
que não conseguem entrar para o mercado de trabalho. A criação desse sistema também pretende
reunir dados para descobrir quais as principais motivações para rebeliões e motins”.
20
Wacquant, op. cit., loc. cit.
21
Paulo Sérgio Pinheiro e Marcelo Daher, Folha de São Paulo, 10 abr. 2007.
22
Segundo Luiz Flávio D’Urso, Folha de São Paulo, 26 nov. 2005.
23
Conforme Márcio Thomaz Bastos, Folha de São Paulo, 10 ago. 2004.
Estado de exceção 187

que a cada dois meses seria necessária uma nova prisão nacional do
tamanho da Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, desativado
em 2002, no aniversário de 10 anos do massacre e como conseqüência
deste. Diante de cifras espantosas como estas, que indicam, por um lado,
o aprisionamento maciço e crescente da população urbana pobre brasi-
leira, sem que isso modifique o quadro de criminalidade, e por outro, a
insuficiência da medida, inócua em termos quantitativos – é impressio-
nante o apoio generalizado na população brasileira à medida de redução
da maioridade penal.
O crescimento rápido da população carcerária brasileira confirma o
diagnóstico de uma penalização da pobreza em larga escala, em uma ver-
dadeira ditadura sobre os pobres 24. Trata-se de um esforço coordenado de
disciplinamento da miséria, para falar como Foucault, que integra o sis-
tema penitenciário em uma rede maior, da qual fazem parte as periferias,
bairros pobres das capitais, e favelas, e que inclui uma política de
encarceramento e extermínio das classes populares. Neste sentido soa
profundamente adequado o diagnóstico de Mike Davis, de que nos en-
contramos diante de um mundo gerido imperialmente em que megafavelas,
situadas mundialmente em cidades falidas, constituem zonas de “instabi-
lidade” do ponto de vista de nossos gestores, adjacentes ao grosso dos
recursos energéticos remanescentes do planeta25. Entende-se mal, por-
tanto, as queixas de que o remédio para o problema da desordem brasilei-
ra, o chamado “estado paralelo”, fruto de uma administração “frouxa”,
seja um recrudescimento do estado policial, ou o aumento da rigidez
penal, quando se sabe que, precisamente, a “penalização neoliberal”26 é
resultado de uma drástica diminuição da atuação do estado em termos
dos serviços que presta à sociedade. É neste contexto que devemos pen-
sar os relatos testemunhais de presos. Eles configuram, por um lado, um
instrumento de subjetivação da massa carcerária, constituindo como sujei-
to uma população antes anômica, que só passou existir a partir do acon-
tecimento prisional que lhe conferiu essa visibilidade equívoca. O mas-

24
Wacquant, op. cit., p. 10.
25
Davis, Planeta favela, passim; Arantes, Extinção, p. 300.
26
Wacquant, op. cit., p. 7.
188 João Camillo Penna

sacre tem nesse sentido uma função ontológica, constitutiva, de produzir


sujeitos. Por outro, os testemunhos indiciam uma substituição de gestores
do problema, que passa a não ser mais da alçada do estado, e sim de
precárias e descontínuas políticas identitárias segmentarizadas, a cargo
freqüentemente de Organizações Não-Governamentais que estão longe
de substituir a função do estado no “serviço” da pobreza urbana brasilei-
ra. E em terceiro lugar, configuram um quadro de vitimização por parte
da opinião pública que ressente o recuo de seu direito de ir e vir diante
do aumento de taxas de criminalidade, e considera o próprio conceito de
“direito humano”, ou de direito de presos, do qual o testemunho carcerário
seria uma expressão importante, um privilégio inadmissível, índice maior
da frouxidão de nossas leis, que atribuem direitos a presos e não à popula-
ção trabalhadora e legal.
No Brasil vive-se uma guerra civil não-declarada, com cifras de ho-
micídios superiores ao de muitas guerras (ONGs falam em de 45.000 a
50.000 mortos anuais no Brasil nos últimos anos)27. As guerras recorrentes
entre facções de narcotraficantes, no Rio de Janeiro, definem um novo
padrão rotineiro de guerra urbana, mas que de novo propriamente só tem
o fato de terem adquirido recentemente visibilidade midiática ao atingi-
rem ou respingarem nos bairros de classe média carioca. Quando as esta-
tísticas de homicídio são distribuídas por área fica evidente que as zonas
mais vitimizadas são justamente os bairros pobres de periferia e favelas,
em que as mortes atingem freqüentemente níveis epidêmicos28. Não por
acaso são estas as áreas mais carentes de serviços públicos básicos (esco-
las, centros culturais e desportivos, água encanada, eletricidade, policia-
mento), o que acaba produzindo “o virtual desaparecimento de espaços
públicos”, devido ao medo de “balas perdidas”29. O abandono do estado
determina a ocupação destas áreas pelo comércio ilegal de drogas, que
oferece um plano de carreira a uma juventude exterminável e rapida-
mente substituível, para quem os caminhos tradicionais de ascensão soci-

27
Relato da Relatora Especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, Asma
Jahandir (16 set. a 8 out. 2003).
28
Pinheiro, “Democratic governance, violence, and the (un) rule of law”, p. 123.
29
Id., p. 124.
Estado de exceção 189

al deixaram de ser uma opção atraente30. Uma justiça seletiva não lhe é
acessível, sendo prerrogativa de ricos, que moram em outros bairros. For-
mas agudas de apartheid social vêm sendo estudadas por pesquisadores,
demonstrando a existência de verdadeiras cidades muradas autônomas
de ricos (por ex., o condomínio Alphaville em São Paulo; o Morada do
Sol no Rio de Janeiro) no meio das capitais, com sistema de segurança
privatizado, comércio, escola, etc.31. Cálculos sobre o custo dos gastos
com segurança demonstram que se gasta em torno de 10% do PIB brasi-
leiro em serviços de segurança32. As análises sociológicas que especulam
sobre as causas destes fenômenos identificam um recrudescimento acen-
tuado de violência no período de redemocratização, que dá continuidade
e agrava quadros iniciados durante o período autoritário33. De fato, abso-
lutamente todas as práticas atuais que resulta(ra)m em abusos monstru-
osos de direitos humanos tiveram sua origem durante os 21 anos do regi-
me militar: a privatização do aparelho de segurança (que se inicia com a
contratação de seguranças para a proteção de bancos contra ataques ter-
roristas), a militarização da polícia, a prática regular da tortura que pas-
sou dos porões da polícia “política” da ditadura ao cotidiano das chefaturas
de polícia, os esquadrões da morte (apoiados pelas autoridades militares
durante a ditadura, que seqüestravam ou matavam dissidentes políticos
no Rio e em São Paulo), a prática dos justiceiros, e as execuções sumárias
de suspeitos. A Secretaria Especial de Direitos Humanos em pesquisa
realizada em seis estados (Pará, Bahia, Distrito Federal, Rio de Janeiro,
São Paulo e Rio Grande do Sul), nos anos de 2000 e 2001, reportou um
total de 3.017 civis mortos pela polícia militar e civil dentro e fora do
serviço34. E mais uma vez, no entanto, se examinarmos cuidadosamente

30
Zaluar, Condomínio do diabo e Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas; Lins, Cidade de Deus;
Cruz Neto, Moreira e Sucena, Nem soldados nem inocentes; Dowdney, Crianças do tráfico; Malaguti
Batista, Difíceis ganhos fáceis; Férrez, Manual prático do ódio.
31
Caldeira, Cidade de muros; “The paradox of police violence in democratic Brazil”.
32
Teixeira, A violência sem retoque, p. 76.
33
Peralva, Violência e democracia; Méndez, O’Donnell, Pinheiro, Democracia, violência e injustiça;
Pinheiro e Almeida, Violência urbana.
34
Relato da Relatora Especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, Asma
Jahandir (16 set. a 8 out. 2003).
190 João Camillo Penna

estes índices, veremos que eles se concentram de maneira impressionan-


te entre as classes populares. A análise dos homicídios demonstra: 1) pela
localização das feridas, que a polícia atira para matar e não para contro-
lar (são execuções de fato); 2) pela ausência de testemunhas e a falta de
laudo pericial sobre as armas, que a explicação universal dada pela polí-
cia de “resistência seguida de morte” é provavelmente falsa; 3) que o
fato de os supostos criminosos serem jovens negros, moradores de bairros
populares, sem antecedentes criminais, explica-se pelas vítimas obede-
cerem a um estereótipo do criminoso. Ou seja: a prática da execução su-
mária por parte de policiais freqüentemente fora do serviço (trabalhando
como seguranças) atinge suspeitos que têm aparência de criminosos, segun-
do estereótipos nos quais policiais, e os próprios suspeitos, acreditam35.
As tentativas recentes de reduzir a desmedida autonomia do aparelho
policial, instituída durante o regime militar (como a separação entre a
polícia civil, de investigação; e a militar, de patrulhamento), alterando a
legislação vigente que gere o aparelho de segurança vêm sendo malogra-
das. Ao contrário, a polícia tende a interpretar como estorvo e obstáculo
a justiça legal36, haja vista o termo irônico de “direitos humanos”, confe-
rido atualmente por policiais a instrumentos de tortura. A Constituição
de 1988 sacramenta a autonomia policial, e o lobby da polícia militar
conseguiu a aprovação pelo Congresso da Emenda Constitucional nº. 18,
que define a polícia militar como “forças militares dos estados”.
Teresa Caldeira analisa o apoio paradoxal da população pobre às prá-
ticas de extermínio, e a heroicização enfática de justiceiros37; ela que é
quem mais sofre com as práticas de extermínio, explicando o fenômeno
pela falta de confiança na justiça oficial, que funciona apenas para ri-
cos38. Neste aspecto as classes populares se comportam exatamente da
mesma maneira como a população em geral se comportara durante a di-
tadura militar, apoiando em larga escala de forma mais ou menos explíci-

35
Caldeira, “The paradox of police violence in democratic Brazil”, p. 246.
36
Pinheiro, “Democratic governance, violence, and the (un) rule of law”, p. 127.
37
Ver, a respeito, o maravilhoso filme de Marcelo Luna e Paulo Caldas, O rap do pequeno príncipe
contra as almas sebosas.
38
Ver a revisão de toda a bibliografia a respeito em Zaluar, Integração perversa: pobreza e tráfico de
drogas.
Estado de exceção 191

ta o regime autoritário, sob o pretexto de eficácia, e de supostas melhorias


sociais. Por outro lado, os diagnósticos simplistas de exclusão social não
se aplicam. Esta população não é de fato excluída ou pura e simplesmente
marginalizada. Trata-se, em sua grande maioria, de cidadãos respeitadores
da lei, que trabalham, que vêem as mesmas novelas da TV, e que têm
opiniões e ambições semelhantes, senão idênticas, a toda a população
brasileira39. O mundo globalizado constitui-se em um campo imanente
cada vez mais homogeneizado; é um mundo destituído de exterioridade,
pautado por valores universais, em que as especificidades locais deixam
de ser filtradas pelas usuais mediações nacionais, e passam a ser incluídas
no interior de uma ordem mundial. A penalização da pobreza corresponde
de fato a um quadro universal, ocidental, assim como o seu
disciplinamento ou panoptização com tons étnicos constitui um quadro
muito mais geral do que se quer crer. A demanda de uma polícia justicei-
ra, por exemplo, ou o apoio “conservador” maciço da população brasileira
ao golpe militar ecoam a nível local, as postulações sobre a guerra justa (o
bellum justum) que dominam hoje em dia a ordem imperial, e justificam as
intervenções policiais em países “vadios” (rogue states é a expressão cu-
nhada pela administração Clinton para designar as nações que suposta-
mente abrigavam terroristas)40. O quadro apresentado, portanto, não é
específico ao Brasil. Ele se enquadra em uma rede muito mais ampla que
configura o momento político atual como estado policial, dentro de um
estado de exceção declarado ou não. Como estabelecer um quadro que
pudesse dar conta do “paradoxo policial brasileiro”, inserindo-o em um
contexto mundial?

39
Pinheiro, “Democratic governance, violence, and the (un) rule of law”, p. 124.
40
Sobre “rogue states” ver Derrida, Voyous. A respeito do diagnóstico de uma espécie de desejo
autoritário no Brasil e na América Latina, que as pesquisas da ciência política brasileira propunham
(por exemplo, Santos, Razões da desordem), observe-se o estudo do PNUD (Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento), baseado em pesquisa de opinião feita em 18 países da América
Latina (18.643 pessoas entrevistadas), demonstrando que 55% dos latino-americanos apoiariam a
um governo autoritário se ele pudesse resolver os problemas econômicos da região. A pesquisa do
datafolha divulgada em 10 de abril de 2007 pela Folha de São Paulo, portanto mais ou menos dois
meses após a morte do menino João Hélio Fernandes, mostra que 55% da população brasileira
apoiaria a instituição da pena morte no Brasil.
192 João Camillo Penna

Campos teóricos
Trata-se, portanto, de estabelecer alguns parâmetros teóricos que
possam nos ajudar a balizar o problema. Para tal, me parece, cinco cam-
pos filosófico-políticos distintos podem ser delineados:
Em primeiro lugar, as obras polêmicas de Antonio Negri e Michael Hardt,
Império e Multidão. Lançado em 2000, o best-seller cult, Império, acabou
tornando-se o emblema da geração alternativa do Primeiro Fórum Mundi-
al de Porto Alegre. O modelo para o livro, dizem os autores, são duas obras
interdisciplinares: O Capital, de Marx e Engels, e Mil Platôs, de Deleuze e
Guattari. Nele os autores definem um novo paradigma da política: a ordem
imperial. Ela se configura na transição entre modernidade e pós-
modernidade, entre o fordismo e o pós-fordismo, na esteira, por um lado, da
ordem do direito internacional, que legislava sobre as relações entre esta-
dos-nações por meio de tratados e pactos (do qual a ONU é a expressão
máxima), e do imperialismo, por outro, que descreve o momento
expansionista do poder imperial, sempre confrontado aos seus limites exter-
nos, e absorvendo-os em seu interior. O império, no entanto, se constitui
no momento em que a soberania e a competição entre estados individuais
cedem lugar a um novo poder supranacional inconteste, único,
autolegitimado, que exerce sobre os estados-nações uma norma efetiva e,
quando necessário, coerciva, configurando uma ordem de controle imanente
sobre a totalidade da superfície global. Negri e Hardt levam a sério a
globalização do capital, e consideram toda e qualquer estratégia, progressi-
va ou reacionária, que não leve isso em conta, e esforce-se por retornar ou
restituir as fronteiras nacionais, uma estratégia nostálgica idealista, fadada
ao fracasso. Nesse sentido, a operação levada a cabo por eles é decidida-
mente materialista e pós-moderna, devendo muito a Marx (que enfatiza
desde sempre a internacionalização do capital), e a Nietzsche (que traba-
lha com a potencialidade afirmativa do devir). O império é basicamente a
“constituição política do presente”, e veio para ficar; é preciso explorar-lhe
as potencialidades afirmativas. Ele é simplesmente o momento em que a
soberania se confunde com a totalidade do globo, em relação à qual nada é
exterior, um imenso território organizado em rede, e subordinado a um
único centro disseminado e integrado de poder.
O domínio imperial funciona a partir do monopólio ético-moral identifi-
cado à integridade territorial de suas fronteiras, que se confundem com o
Estado de exceção 193

mundo. Renovando o conceito medieval de guerra justa (bellum justum),


autorizada automaticamente a partir da mais simples suspeita de agressão,
definida pelos próprios parâmetros imperiais, banaliza-se a guerra, que ad-
quire status de ação policial na gestão interna das fronteiras, e legitimada a
priori pela absolutização do Inimigo – os bárbaros da idade Média, ou os
terroristas de hoje em dia. O poder imperial se exerce de maneira absoluta-
mente fluída, definindo-se novamente e a cada vez pela capacidade de con-
trolar situações sempre cambiantes. O que explicita a dupla base do direito
de exceção: a capacidade de intervir (ele é essencialmente poder de inter-
venção), de quantas e variadas maneiras for necessário para dominar as múl-
tiplas situações que possam surgir, e por outro lado, a sua capacidade preven-
tiva, de guerra virtual e real, total, contínua e sem trégua. O que configura
uma figura paradoxal, o direito de polícia, e não deixa de colocar um problema:
como chamar de direito um estado de exceção permanente, e um
ordenamento jurídico que se resume à ação policial, e concebe o direito
unicamente como eficácia interventiva? Ao contrário do que muitos crêem,
o império não se encontra em decadência, ou propriamente em crise, sim-
plesmente por que ele sempre esteve, desde o início, em crise, e constitui a
crise, e o estado de exceção, como seu modo habitual de funcionamento41.
Transformar a exceção em regra, identificar o ordenamento ao que escapa à
ordem é talvez a maior originalidade do funcionamento do império.
Isso nos leva diretamente ao nosso segundo campo: Carl Schmitt. O
jurista nazista alemão Carl Schmitt é o pensador que levou mais a fundo a
essencialidade da exceção no exercício da soberania, ao identificá-la ao
próprio momento constitutivo, propriamente ontológico, da política (a natura
naturans por oposição à natura naturata de Spinoza42). Ao assunto ele dedi-
cou, dentre outras, duas obras absolutamente essenciais ao delineamento
do problema que nos concerne: Ditadura (1921), e Teológico político: quatro

41
Hardt e Negri, Império, p. 34.
42
"A relação entre poder constituinte e poder constituido encontra a sua perfeita analogia sistemática e
metodológica na relação entre natura naturans e natura naturata, e mesmo se esta noção é tomada ao
sistema racionalista de Spinoza, isso prova precisamente que este sistema não é apenas racionalista.
A teoria do poder constitutinte é sempre ininteligível como racionalismo puramente mecanicista. O
povo, a nação, a força originária de todo o ser do Estado, constituem sem cessar novos órgãos”.
Schmitt, Dictature, p. 147.
194 João Camillo Penna

capítulos sobre o conceito de soberania (1922). É de Schmitt a fórmula canônica


da soberania: “Soberano é aquele que decide sobre a exceção”43. Ou seja,
a soberania estatal não se manifesta, paradoxalmente, no domínio da nor-
ma, ou do ordenamento do direito, mas na situação de exceção, e no mo-
nopólio da decisão. O ordenamento necessita do estabelecimento de uma
ordem normal, mas cabe ao soberano decidir onde e quando encontramo-
nos na situação de vigência da norma. Ele se encontra, portanto, clara-
mente fora do ordenamento, já que é ele quem define as condições de
normalidade, circunscrevendo a decisão como sua prerrogativa própria – a
possibilidade de, em caso de emergência, decretar o estado de exceção – e
relegando a norma a uma “tranqüila superficialidade”44 que caracteriza os
estados de direito. Mas ao mesmo tempo, a norma, para poder funcionar,
precisa interiorizar a exceção soberana, como seu limite externo, excluin-
do-a como condição do funcionamento da norma. O estado de direito, no
qual vive a norma, exclui a exceção para poder funcionar, mas só pode fazer
isso interiorizando-a como exterioridade (“capturada fora”, ex-capere,
etimologia de “exceção”), como limite intransponível sem o qual todo o
direito e todo o ordenamento não faz sentido nenhum. É o paradoxo
topológico que será exaustivamente trabalhado por Giorgio Agamben em
Homo Sacer: poder soberano e a vida nua45, e que se encontra em Schmitt: “o
soberano está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico”46.
É também Carl Schmitt quem fornecerá elementos para entendermos a
função da guerra na política, e sua relação com o estado de sítio, que
prepara sob muitos aspectos a inversão do paradoxo de Clausewitz, operada

43
Schmitt, Political theology: four chapters on the concept of sovereignty, p. 5.
44
Agamben, O poder soberano e a vida nua I, p. 24.
45
Agamben, Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I, p. 23.
46
Schmitt: “Embora ele [o soberano] permaneça fora do sistema legal normalmente válido, ele no
entanto pertence a ele, pois é ele quem deve decidir se a constituição precisa ser suspensa na sua
totalidade” (Schmitt, Political theology: four chapters on the concept of sovereignty, p. 7). O que define
o movimento de dupla exclusão e dupla inclusão política, central para o funcionamento da sobera-
nia: a soberania se subtrai à norma, constituindo-a, ao mesmo tempo que, constituída, a norma se
subtrai à soberania, abandonando-a como estado-limite; a soberania inclui a norma como exterior
a si mesma ao fundá-la, ao decidir onde começa a norma e a anormalidade, ao mesmo tempo que a
norma inclui a exceção soberana ao mantê-la sempre como limite, e condição exterior interna para
Estado de exceção 195

por Foucault47. “A distinção especificamente política, escreve Schmitt, a


qual os atos e motivos políticos podem ser reduzidos é a entre o amigo e o
inimigo”48. O inimigo, explica ele, não é um adversário particular, mas um
adversário coletivo que se confronta a outra coletividade. Hostis, e não
inimicus, em latim; pólemos e não ekhthrós, em grego49. É dele também a
postulação clássica de que “todos os conceitos significativos da moderna
teoria do estado são conceitos teológicos secularizados”50, de forma que o
estado de exceção, e a decisão soberana, são análogos à categoria do mila-
gre em teologia. Baniu-se a exceção do moderno estado constitucional, da
mesma forma como a teologia e a metafísica baniram o milagre com o
deísmo51;52. É assim que a intervenção moral como obra essencial da gestão
imperial se configurará a partir do terreno do teológico-político, onde o
mal se encarna em uma “produção simbólica do Inimigo”, e o bem, na
operação sempre ameaçada da gestão do estado de sítio permanente52;53.
Em terceiro lugar: Michel Foucault. Foucault constrói basicamente
duas ontologias políticas do controle social: uma ontologia produtiva, a

seu funcionamento. Os estados de exceção são aqueles em que o banimento recíproco da exceção
no estado de direito (a decisão é banida da norma, excluindo-a, e a norma bane a decisão
interiorizando-a) é substituído pela identificação absoluta da anormalidade à norma, da violência
ao estado de “tranqüilidade superficial” das nossas democracias parlamentares, de forma que
cheguemos ao oxímoro tipicamente moderno de uma violência tranqüila, de uma guerra na paz, de
uma desordem na ordem, e assim por diante.
47
A inversão da famosa frase de Clausewitz, “a guerra não é mais do que a continuação da política por
outros meios”, é estudada por Foucault, como a transformação da guerra em novo paradigma do poder.
É a política que constitui a guerra sob outras formas. Foucault, Em defesa da sociedade, pp. 22-3.
48
Schmitt, The concept of the political, p. 26.
49
Id., p. 28.
50
Schmitt, Political theology: four chapters on the concept of sovereignty, p. 36.
51
Id., ibid.
52
Hardt e Negri, Império, p. 65.
53
Em seu discurso ao Estado da União, em janeiro de 2003, justificando o adiamento sine die do Patriot
Act, promulgado após o 11 de setembro, ficou famosa a proposição de George Bush segundo a qual
“a liberdade que tanto apreciamos não é o presente dos Estados Unidos, mas o presente de Deus
para os homens”. Por outro lado, na esfera local carioca, o edital sancionado em 2004 pela ex-
governadora evangélica do Rio de Janeiro, Rosinha Garotinho, estabelecendo concurso de 500
professores de ensino religioso confessional nas escolas públicas, onde há um déficit de 25.000
professores, sobretudo nas áreas de física, química e matemática, constitui um outro grande
exemplo da disseminação massiva do teológico-político na política atual.
196 João Camillo Penna

sociedade disciplinar (o panoptismo), que ocupa a totalidade do corpo


social com dispositivos particularizantes fechados, geométricos e quanti-
tativos, que regulam os costumes, os hábitos e as práticas produtivas,
esquadrinhando o espaço social54; e uma ontologia vital, o biopoder, que
consiste na transformação da totalidade da vida em objeto de
gerenciamento pelo estado, a chamada “estatização do biológico”55, ma-
nifestada pela emergência de categorias como raça, natalidade,
degenerescência e sexualidade, e de disciplinas como a demografia, a
saúde pública e a psicanálise56. Por outro lado, afirma Foucault, o poder
sobre a vida não ocorre sem um eqüidistante poder sobre a morte (veja-se
a máxima do biopoder: “fazer viver e deixar morrer”, por oposição à do
direito soberano, “fazer morrer e deixar viver”57. É a transformação da
biopolítica, isto é, o gerenciamento da vida, em tánato-política, ou admi-
nistração da morte, como quer Foucault, que define o racismo como “meio
de introduzir [...] nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um
corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer”58. A politização
da vida levada a cabo pelo biopoder estabelece, no interior do contínuo
maciço da vida, cesuras, distinções e hierarquia entre as raças, mas admi-
nistra-as como superfície total imanente, onde as dicotomias são todas
internas ao todo unificado do bíos, o patrimônio biopolítico da nação.
Para Negri e Hardt, estas duas ontologias do controle configuram, res-
pectivamente o período da indústria fordista, amplamente estudado por
Marx; enquanto que o biopoder, ao operar sobre um espaço total contí-
nuo, imanente, corresponde à passagem do fordismo ao pós-fordismo, ao
novo paradigma do poder imperial, batizado por eles, a partir de Deleuze,
de “sociedade de controle”.
Daí o quarto campo teórico a ser investigado: Karl Marx. Negri dedi-
cou (em 1991) ao Grundrisse todo um volume de estudos, e é exatamente
esta obra de Marx, mais do que O Capital, que interessa a ele e a Hardt

54
Hardt e Negri, op. cit., pp. 42-3; Foucault, Vigiar e punir, pp. 173-99.
55
Foucault, Em defesa da sociedade, p. 286.
56
Ver, a respeito, a aula de 17 de março de 1976, em Em defesa da sociedade, e o capítulo “Direito de
morte e poder sobre a vida”, em História da sexualidade I. A vontade de saber.
57
Foucault, Em defesa da sociedade, p. 287.
58
Id., p. 304.
Estado de exceção 197

em Império. Basicamente eles exploram o famoso “fragmento das máqui-


nas”59, em que Marx formula laconicamente o que seriam as condições
do trabalho, no que consiste a terceira revolução capitalista: após os mo-
dos da produção manufatureira, e industrial, seria a vez do trabalho
imaterial, ou abstrato. A partir do surgimento do trabalho imaterial, Marx
formula duas hipóteses: uma utópica, fourierista, de que, com a mudança
do estatuto do trabalho, agora que a parte material da produção ficaria
principalmente a cargo das máquinas, a jornada de trabalho se reduziria,
e os homens se emancipariam da escravidão do trabalho, tornando-se
supervisores de máquinas. A segunda, mais realista, e verdadeiramente
profética, que se coaduna perfeitamente à hipótese foucaultiana do
biopoder, é que, com o trabalho imaterial, ocorreria uma “coincidência
entre tempo de vida e tempo de trabalho”60. Na idade do “capitalismo
cognitivo”, a produção não mais dependerá da dialética do instrumento,
já que são as próprias atividades intelectuais do sujeito que vão
incrementar a produção. “[Cada] aumento de produção nasce da expres-
são de atividades intelectuais, da força produtiva da descoberta científi-
ca e sobretudo da estreita aplicação da ciência e da tecnologia à elabora-
ção da atividade de transformação da matéria”61. Exatamente como o
biopoder de Foucault, que se confunde com a totalidade da vida, tam-
bém o trabalho imaterial de Marx se identifica com a própria vida produ-
tiva. Ou como Marx escreve, a respeito da potência do “intelecto geral”:
“As máquinas são órgãos do cérebro humano, criados pela mão humana”,
são o poder objetivado do saber. “À medida em que os poderes da produ-
ção social forem produzidos, não apenas sob a forma de conhecimento,
mas também como órgãos imediatos de prática social, do processo de vida
real”62. É neste ponto, elaborando sobre o biopoder foucaultiano, e sob o
trabalho imaterial de Marx, que Negri e Hardt vêem a possibilidade de
reverter a ontologia do controle social imperial, em produção ontológica
da liberdade coletiva63. É o lado fulgurante, quase visionário do pensa-

59
Marx, Grundrisse: introduction to the critique of political economy, pp. 703-6.
60
Negri, 5 lições sobre Império, p. 93.
61
Id., pp. 92-3.
62
Marx, op. cit., p. 706.
63
Cf. Lazzarato e Negri, Trabalho imaterial; Cocco e Hopstein, As multidões e o império.
198 João Camillo Penna

mento dos dois: é bem verdade que tanto o biopoder quanto o trabalho
imaterial se referem a um momento em que a opção de um fora, nem que
seja marginal, deixou de existir, já que o exercício do poder se confunde
com a própria superfície da vida como um todo, e nada é exterior à vida
ocupada pelo exercício produtivo imperial. No entanto, é aqui que po-
dem se armar as forças afirmativas de resistência: o trabalho imaterial
produz não só mercadorias, mas sujeitos; a biopolítica não apenas contro-
la a vida, mas pode libertá-la64.
Um quinto campo ainda se faz necessário, aparentemente distante
dos quatro primeiros, mas na verdade não: iniciar um levantamento das
questões e problemas formulados pela crítica brasileira sobre o golpe de
1964 no Brasil. Nos últimos dez anos, uma leva de estudos sobre o regime
militar vem conseguindo acumular uma reflexão importante sobre o perí-
odo autoritário que tomou o Brasil por 21 anos. O aniversário de 40 anos
do golpe de 64, em 2004, reabriu a mal cicatrizada ferida dos nossos anos
de chumbo, ensejando uma série de publicações que apontam para uma
revisão crítica em profundidade dos fatos, revisitando análises conheci-
das, e expondo mais uma vez uma clássica e perene divisão das visões e
interpretações do golpe. Dentre outros, as obras já consagradas, redigidas
e organizadas por Maria Celina D’Araujo e Celso Castro65. Ou ainda, os
quatro volumes da longa pesquisa de Elio Gaspari sobre a ditadura mili-
tar, As ilusões armadas. Cito estas referências por serem exemplares, mas
há muitas outras. Não nos enganemos: é no período militar que encontra-
mos a gênese das práticas policiais, e do direito policial-militar, que se
estabelecem como ordem fora da ordem, e confundindo-se com o
ordenamento jurídico, ao qual os dirigentes, e os juristas do regime pro-

64
O que Foucault coloca de maneira clara no final de História da sexualidade I. A vontade de Saber:
“E contra esse poder ainda novo no século XIX [o bio-poder], as forças que resistem se apoiaram
exatamente naquilo sobre que ele investe – isto é, na vida e no homem enquanto ser vivo. [...] [O]
que é reivindicado e serve de objetivo é a vida, entendida como as necessidades fundamentais, a
essência concreta do homem, a realização de suas virtualidades, a plenitude do possível. [...] [A]
vida como objeto político foi de algum modo tomada ao pé da letra e voltada contra o sistema que
tentava controlá-la” (Foucault, História da sexualidade I: vontade de saber, p. 136).
65
Refiro-me pincipalmente a Visões do golpe (1994), Os anos de chumbo (1994), A volta aos quartéis
(1995), e Democracia e forças armadas no cone sul (2000).
Estado de exceção 199

curaram dar uma vestimenta legal66. O fato de estas práticas terem recru-
descido de maneira tão espantosa a partir da transição democrática, não
nos deve fazer concluir que elas sejam intrínsecas à democracia, como
querem alguns. É no período autoritário que se funda o direito da exce-
ção policial, a penalização da população, a prática da tortura, e a
militarização da sociedade; é aqui que ele toma pé na sociedade brasilei-
ra, como vimos acima. Entender como se dá o processo poderia contribuir
para conceitualizar a “contribuição” brasileira à configuração imperial
contemporânea. Seria importante fazer a genealogia das práticas do medo
institucional, a “produção simbólica do Inimigo”67, a partir de uma análi-
se da doutrina da segurança nacional, utilizando o paradigma teórico
mobilizado pela pesquisa. Senão, vejamos: o regime militar funda-se a si
próprio (é ditadura “soberana”, e não “de comissário”, segundo a classifi-
cação de Schmitt68), no Ato Institucional (sem número, mas o primeiro),
como “poder constituinte”, ou seja potência revolucionária, representan-
do um “movimento”, que lhe auto-confere a legitimidade de determinar
os poderes constituídos, e desta forma formalizar-se como nova constitui-
ção. A constituição de 1967 já está inteira em germe no primeiro Ato
Institucional, obra magistral de Francisco Campos, o Chico Ciência69. O
furto terminológico do pouvoir constituant de Sieyès, e das revoluções do
século XVIII70, não é um feito menor do escriba da Constituição do Esta-
do Novo de Getúlio. A demanda por uma contratualidade transcenden-
te de tipo hobbesiano inscreve-se de parte a parte na configuração mili-
tar de um regime nacional xenófobo, assombrado pelo espectro comunis-
ta (uma espécie de nómos da terra, como dirá Schmitt), alinhado ao bloco
norte-americano, aparelhado tecnologicamente, e vigiado pelo dispositi-
vo de segurança policial-militar. Não espanta que o medo, órgão que
motiva o contrato social hobbesiano do Leviatã, reapareça explicitamen-
te na pena do maior teórico do regime militar, Golbery do Couto e Silva,
na primeira página de seu Geopolítica do Brasil (1967):

66
Pinheiro, “Autoritarismo e transição”, passim.
67
Hardt e Negri, Império, p. 55.
68
Schmitt, Dictature, passim.
69
Gaspari, As ilusões armadas: a ditadura envergonhada, p. 123.
70
Negri, O poder constitutinte, passim.
200 João Camillo Penna

Daquele modo, porém, foi que, repudiando de frente a Aristóteles [...], e se inspirando,
sobretudo em Euclides, Thomas Hobbes descobriu e apontou à adoração reverente e
temerosa dos povos o novo Leviatã, esse deus portentoso, embora mortal, da soberania
e do poderio absoluto. [...] O estado-soberano, surgido das fontes profundas do Medo
para prover a segurança individual e coletiva na terra, passaria a afirmar sua vontade
onipotente sobre os destinos de todos os súditos que o haviam criado, assim mesmo,
inigualável e autárquico, mas, já agora, pela própria necessidade de um raciocínio
lógico, escorreito e severo, que o justificaria, de uma vez para sempre, contra todas as
críticas e contra quaisquer argumentações71.

Golbery é o geômetra brasileiro do estado de exceção, o arquiteto do


aparelho de informações do regime militar, e da doutrina da segurança
nacional. A hipótese analítica de Alfred Stepan de que o poder militar é a
encarnação do poder moderador do imperador72 revela o arcabouço trans-
cendente, o caráter monárquico, absoluto, que a teoria do contrato vai
tomar no regime militar, como roupagem formal para o direito de interven-
ção da máquina policial militar do regime autoritário (“autárquico”, escre-
ve Golbery) de 21 anos. Dos depoimentos colhidos por Gaspari, a honesti-
dade intelectual duvidosa da confissão do aprendiz de feiticeiro de que
criara um “monstro” (o SNI) dá o toque “emotivo” e sincero (como se
pudesse se tratar de simples decepção), ao fato de que o estado de exceção
nunca simplesmente “foge ao controle”, mas é essencialmente controle,
decisão arbitrária, descontrolada, lei sem lei, mas que produzirá longos fru-
tos na história política brasileira.

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Recebido em maio de 2007.


Aprovado em junho de 2007.

João Camillo Penna – “Estado de exceção: um novo paradigma da política?”. Estudos de Literatura
Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 179-204.
Walter Benjamin: o estado de e x ceção
ex
entre o político e o estético
Márcio Seligmann-Silva

Data de 1921 o famoso ensaio de Walter Benjamin “Zur Kritik der


Gewalt”, que, como muitos outros trabalhos do pensador berlinense, ti-
nha um título intraduzível1. Em português, visando dar conta da ambi-
güidade do termo Gewalt, encontramos uma tradução duplicadora: “Crí-
tica da violência – Crítica do poder”. A “indecidibilidade” que está no
coração do termo alemão Gewalt, que significa tanto poder como violência
(e afirma que um não existe sem o outro), já contém in nuce o centro da
argumentação benjaminiana. Esse texto de Benjamin nasceu a partir de
uma reflexão sobre a situação política que a Europa vivia no pós-guerra,
em meio a uma profunda crise das instituições políticas. Mas ele também
desdobra determinados topoi de outros trabalhos seus, como a busca de
uma esfera “pura” do relacionamento entre os homens (e deles com o
mundo), bem como uma busca de “meios” independentes do serviço a
determinados “fins”. Reconhecemos também o uso de “teologemas”, ar-
gumentos derivados do Antigo Testamento que são aplicados à esfera do
profano. Politicamente, Benjamin mais uma vez revela uma postura que o
aproxima do anarquismo. Desta feita ele se vincula programaticamente a
Georges Sorel e à sua teoria da greve geral revolucionária.
Neste texto, gostaria de, após apresentar as teses centrais do ensaio de
1921, retomar o percurso da leitura deste ensaio de Benjamin da parte de
Carl Schmitt, bem como o diálogo entre estes dois intelectuais, tal como,
entre outros, Horst Bredekamp e G. Agamben o apontaram, para em segui-
da indicar como questões centrais do ensaio de 1921 são retomadas no livro
sobre o Trauerspiel (o drama barroco alemão) de 1925 e nos textos escritos
no contexto do Passagen-werk (Trabalho das passagens), com destaque para
o “Sobre o conceito da história”, de 1940. A idéia é apresentar a figura da
exceção, pensada tanto em termos políticos como no âmbito teórico-
1
Uma primeira versão deste ensaio foi publicada em Outra Travessia. Revista de Literatura, nº. 5, 2º.
semestre de 2005. Curso de Pós-Graduação em Literatura. Centro de Comunicação e Expressão.
UFSC, pp. 25-38.
206 Márcio Seligmann-Silva

metodológico, como um conceito central que atravessa o pensamento de


Benjamin. Aqui não pretendemos mais do que lançar esta hipótese e pro-
por alguns meios de prová-la. A apresentação detalhada do ensaio sobre a
Gewalt de 1921, em uma tentativa como que didática de close reading, é
essencial para o que tento aqui. Para os que conhecem esse texto de Ben-
jamin em detalhes, peço um pouco de paciência. A idéia é extrair do co-
mentário do “teor material” deste texto algum pólen para a crítica.

Crítica da Gewalt
O ponto central do argumento de Benjamin em seu ensaio sobre a
Gewalt é apresentado logo de saída em seu texto:

A tarefa de uma crítica da violência pode ser definida como a apresentação de suas
relações com o direito [Recht] e a justiça [Gerechtigkeit]. Pois, qualquer que seja o
efeito de uma determinada causa, ela só se transforma em violência, no sentido forte da
palavra, quando interfere em relações éticas (160; 179)2.

No campo do direito, Benjamin recorda, poderíamos criticar os meios em


função dos fins, se justos ou não. Por outro lado, ele busca uma crítica mais
radical, que permita refletir sobre a violência em si, ou seja, analisar se ela é
ética mesmo servindo a fins justos. Para responder a esta questão, o autor
propõe adotarmos provisoriamente o ponto de vista do direito natural, que
“não vê problema nenhum no uso de meios violentos para fins justos” (160;
180). Assim, o terrorismo justificaria o uso da violência em função de certos
fins (considerados) justos. A violência é vista aí como algo natural. Como é
conhecido, segundo esta teoria abrimos mão de nosso poder via um contrato
social, por vermos no Estado um protetor. Benjamin estende esta teoria até o
darwinismo social e sua defesa da violência como meio de cumprimento dos
fins naturais. Aqui a violência aparece como meio adequado.
Oposta a esta perspectiva encontramos a tese do direito positivo (ou
positivado), que, ao invés de justificar os meios pelos fins, julga o direito
pelos meios: “Se a justiça é o critério dos fins”, escreve Benjamin, “a legiti-
midade é o critério dos meios” (161; 180). Mas ambas as perspectivas ficam

2
Nas citações do ensaio de Benjamin, de 1921, remeto primeiro ao número das páginas da edição
brasileira e em seguida ao número correspondente da edição alemã da Suhrkamp. Cf. bibliografia.
Walter Benjamin: o estado de exceção... 207

presas à idéia segundo a qual existe uma adequação entre meios e fins, já
que se meios justos devem gerar fins justos, estes são obtidos por aqueles. A
lógica a que esta equação remonta reduz a justiça ora a legitimadora dos
meios (no caso do direito natural), ora a algo garantido pelos meios legíti-
mos (no caso do direito positivo). O passo seguinte de Benjamin consiste
em deixar em suspenso a determinação da justiça e voltar-se para a ques-
tão da legitimidade dos meios. Neste ponto é importante lembrar a crítica
benjaminiana da linguagem “decaída”, apenas comunicativa e pensada como
simples meio, que ele desenvolveu em mais de uma ocasião (lembremos
aqui apenas de seu ensaio de 1916 “Sobre a linguagem em geral e sobre a
linguagem dos homens”, do ensaio sobre a tarefa do tradutor, de 1923, e do
seu texto “Problemas da sociologia da linguagem”, de 1935). Para pensar
aquela legitimidade dos meios, Benjamin inicialmente aceita a tese do
direito positivo, uma vez que este permite a distinção entre “sanktionierten
und der nicht sanktionierten Gewalt” (“poder sancionado e o não-sancio-
nado”, 161; 181). A análise dos fins do poder não é suficiente para avaliá-
lo: precisamos abordar o poder em sua origem histórica. Isto remete em
Benjamin não apenas a uma “genealogia” (nietzschiana) das leis (dos mo-
res), mas à sua “origem histórica” (162; 182).
Neste sentido ele se debruça sobre a cena política européia da sua época.
Nela ele detecta uma antinomia entre a esfera jurídica, que quer integrar
toda a sociedade em um sistema de fins jurídicos, e os fins naturais dos indi-
víduos. Estes não têm direito a recorrer à violência para concretizar seus fins.
Por outro lado, o sistema jurídico, com seu monopólio da Gewalt/violência,
parece querer apenas perpetuar a si mesmo. Neste ponto de sua argumenta-
ção Benjamin introduz pela primeira vez a figura do “‘grande’ bandido”. Ape-
sar de Benjamin não classificar deste modo, ele já representa uma aparição
de um “estado de exceção” dentro da aparente normalidade do estado de
direito. Para Benjamin, este “grande bandido” gera tanta admiração da parte
do povo, justamente porque ele ostenta a violência/poder que lhes é proibido
manifestar. O simples fato de este bandido ter acesso à violência é sentido
como uma ameaça por parte da Gewalt/poder, independentemente de seus
fins. A admiração do povo também não considera estes fins. O poder jurídico
identifica neste desafio uma ameaça. E hoje sabemos até que ponto este sen-
tir-se ameaçado (ou melhor, este apresentar-se como ameaçado) pode levar
os detentores do poder a utilizar uma carga de violência inimaginável.
208 Márcio Seligmann-Silva

A segunda figura benjaminiana em seu texto de 1921, que nos remete à


questão do “estado de exceção”, surge quando ele discute os limites que o
Estado-poder impõe ao direito de greve. Esta é aceita como uma manifesta-
ção do operariado como sujeito jurídico que obteria uma permissão para
exercer um poder limitado. Este poder é não-violento (nos termos de Benja-
min: um meio puro), na medida em que implica uma espécie de não-ação.
Este poder é concedido aos trabalhadores para se evitar ações mais violentas
(168; 192). Mas se a greve assume as proporções de uma greve geral revolu-
cionária, o Estado a classifica como abuso (Missbrauch, ou seja, como uma
ameaça ao estado de direito) e apelará para decretos especiais,
“Sonderverfügungen” (163; 184). A greve geral revolucionária é vista como
um uso inadequado do poder e direito atribuído aos trabalhadores. Benja-
min fala do “caso limite”, Ernstfall, deste tipo de greve que realiza uma pas-
sagem do uso legítimo de um direito, para a tentativa de se desestabilizar a
própria ordem jurídica. Aqui o direito torna-se violência. Se o Estado res-
ponde com mais violência, isto não significa uma contradição ou o uso de
uma simples “violência assaltante”, raubende Gewalt, mas antes que a Gewalt,
no caso da greve geral revolucionária, pode estabelecer novas relações jurí-
dicas. Benjamin aprofunda esta tese a partir da análise da violência de guer-
ra na sua dialética com o direito de guerra. Esta violência é caracterizada
justamente como “violência assaltante”. Ela revela que toda “paz”, não é
nada mais do que uma sanção de uma vitória e o estabelecimento de uma
nova ordem jurídica3. Segundo o autor, é exatamente esta violência de guer-
ra que deve servir de modelo para compreendermos qualquer violência. Da
recente guerra européia, ele deduz que o militarismo revela uma dupla face
da violência: enquanto uma compulsão (Zwang) para seu uso generalizado
como meio para fins de Estado, ou seja, como meio para fins jurídicos, ela se
revela tanto como “instituidora de direito” como também, por outro lado,
como “mantenedora de direito” (165; 187). Deste modo Benjamin atinge o
cerne da questão da Gewalt enquanto composição indissociável de violência

3
Neste sentido, lembrando que Benjamin escreve após a Primeira Guerra Mundial, é importante
confrontar este texto com o também famoso ensaio de Karl Jaspers sobre o problema da culpa (Die
Schuldfrage) na Alemanha do pós-guerra, que ele escreveu em 1945-46. Aí o autor tenta refletir
sobre a construção de uma nova ordem jurídica a partir da situação da derrota (e dos complexos
sentimentos nos alemães, derivados desta derrota).
Walter Benjamin: o estado de exceção... 209

e poder (jurídico). Sua crítica da Gewalt visa estas suas duas faces. Mesmo a
máxima bem-intencionada de Kant, “aja de tal modo que você use a huma-
nidade, tanto em nome da tua pessoa como na de qualquer outro, sempre
como fim, nunca apenas como meio...”, é vista como insuficiente e ingênua
para se fazer uma crítica da Gewalt. Ela não é suficiente para dissociar o
núcleo da Gewalt (além de afirmar uma “antropologia” limitada que parece
desconhecer, eu acrescentaria, conceitos como o de trágico, o de sublime e o
de medo, que marcam não só a história da Estética, mas sobretudo, explici-
tamente ao menos desde Maquiavel e Hobbes, a teoria política).
O direito positivo, nota ainda Benjamin, vê em cada indivíduo um repre-
sentante do interesse da humanidade e de uma “ordem de destino”. Esta
submissão do indivíduo a esta ordem implica também a construção de um
discurso que apenas reitera o status quo. A ordem do direito carece de um
poder ameaçador (“Die rechterhaltende Gewalt ist eine drohende”, 165;
188). Esta idéia nos faz lembrar de uma passagem da tragédia Eumênides de
Ésquilo, quando a juíza, chefe do tribunal, Palas Atena, define a nova ordem
jurídica que estava sendo instaurada a partir do julgamento de Orestes:

Prestai atenção ao que instauro aqui, atenienses, convocados por mim mesma para
julgar pela primeira vez um homem, autor de um crime em que foi derramado sangue.
A partir deste dia e para todo o sempre o povo que já teve como rei Egeu terá a
incumbência de manter intactas as normas adotadas neste tribunal na colina de Ares
[...] Sobre esta elevação digo que a Reverência e o Temor, seu irmão, seja durante o dia,
seja de noite, evitarão que os cidadãos cometam crimes, a não ser que eles prefiram
aniquilar as leis feitas para seu bem (quem poluir com lodo ou com eflúvios turvos as
fontes claras, não terá onde beber). Nem opressão, nem anarquia: eis o lema que os
cidadãos devem seguir e respeitar. Não lhes convém tampouco expulsar da cidade todo
o Temor; se nada tiver a temer, que homem cumprirá aqui seus deveres?4.

Esta aproximação com o universo mítico da tragédia que faço aqui


corrobora a interpretação de Benjamin da lei e da esfera do poder na sua
relação com a do jurídico. Pois ele mesmo escreve: “A lei se mostra ame-
açadora como o destino, do qual depende se o criminoso lhe sucumbe”.
O direito é visto como descendente do conceito de destino: neste senti-

4
Ésquilo, “Eumênides”, pp. 681-99.
210 Márcio Seligmann-Silva

do as punições revelam este aspecto mítico da lei. A crítica da pena de


morte atingiria o poder na sua relação com a violência e o destino, a
saber, atacaria o poder máximo que atua sobre o direito de vida e de morte.
O direito se alimenta e se fortalece deste poder decisório sobre a vida e a
morte. Aqui Benjamin detecta “um elemento de podridão dentro do di-
reito” (“etwas morsches im Recht”, 166; 188).
A mesma ambigüidade da Gewalt que percebemos na punição via pena
de morte é detectada em outra instituição estatal: a polícia. Esta ambigüi-
dade deriva do fato de ela ser ao mesmo tempo um órgão, melhor dizendo,
uma Gewalt, do sistema jurídico e também estabelecer de certo modo seus
próprios fins jurídicos por meio de decretos. Ela é, portanto, poder
mantenedor e instituidor do direito. A polícia funciona como um instru-
mento do Estado que intervém onde o sistema jurídico esbarra no seu limi-
te. Alegando “questões de segurança” o Estado pode assim controlar seus
cidadãos. Benjamin fala de uma “vida regulamentada por decretos” (algo
próximo do que veremos mais adiante, quando observarmos o que ele es-
creveu sobre a normalidade do estado de exceção). A polícia aparece como
um poder gestaltlos, amorfo, em comparação com o direito que ainda fazia
referência a uma “decisão”, “Entscheidung” que valia como uma categoria
metafísica que a abria à crítica. Neste sentido, Benjamin observa, não sem
ironia, que o espírito policialesco, que parece ser tão compatível com a
monarquia soberana, onde ele “representa o poder do soberano”, reunindo
suas funções legislativas e executivas, já nas democracias dá provas da
“maior degenerescência imaginável do poder [Gewalt]” (167; 190). Esta
idéia é essencial para destacar que todo poder também é meio do direito:
seja para instituí-lo ou para mantê-lo. Não se pode criticar o poder sem se
criticar o direito. Este recebe, a partir da reflexão sobre sua relação como
que simbiótica com a Gewalt, uma luz ética ambígua.
Assim como Benjamin em seus textos sobre a linguagem procurava uma
outra esfera, não comunicativa da mesma, aqui no texto de 1921 ele per-
gunta-se se não podemos encontrar uma esfera para a regulamentação de
nossos interesses que pudesse dispensar este meio violento. Ele busca meios
não-violentos, para além dos contratos jurídicos que sempre remetem a
alguma violência. Visa a uma esfera pura, independente também dos “com-
promissos” apenas aparentemente não-violentos dos parlamentares da Re-
pública de Weimar (e de tantas outras repúblicas). O parlamentarismo só
Walter Benjamin: o estado de exceção... 211

pode existir dentro do seu compromisso com a Gewalt, conclui Benjamin. A


questão, poderíamos acrescentar, é o que colocar em seu lugar: ou talvez se
trate de se imaginar e criar um lugar totalmente outro.
Os exemplos positivos de Benjamin neste ponto não são muito animado-
res. Ele encontra meios não-violentos, puros, na “cultura do coração” (168;
191). Elogia a “atenção do coração, a simpatia, o amor pela paz”. Outro
exemplo, que poderia lembrar a ética dialógica da ação comunicativa de
Habermas, é a conversa (Unterredung), onde impera, para Benjamin, a im-
punidade da mentira. Este conceito não deixa de lembrar a valorização pri-
meiro-romântica da conversa (lembremos do famoso texto de Friedrich
Schlegel, Conversa sobre a poesia), que Benjamin conhecia tão bem, já que
dois anos antes de escrever este texto defendera seu doutorado sobre o con-
ceito de crítica daquele círculo de pensadores. Na linguagem e no entendi-
mento que ela permite, Benjamin encontra este meio puro, não-violento.
Daí também seu elogio da linguagem da diplomacia (170; 195). Mas o exem-
plo central dele retoma a questão do direito de greve. A partir das Réflexions
sur la violence de Georges Sorel, Benjamin estabelece uma distinção entre a
greve geral política e a greve geral proletária. A primeira está totalmente com-
prometida com o poder enquanto sistema que se reproduz. No máximo ela
pode levar à construção de uma nova ordem jurídica, que fatalmente repro-
duzirá a violência da ordem anterior. Neste caso, os privilegiados apenas
trocam de nome. Já a greve geral proletária visa aniquilar o poder do Estado,
visa superá-lo. Apenas esta greve, Benjamin propõe então, é verdadeiramen-
te não-violenta, já que no seu horizonte não se encontra a volta ao trabalho,
mas sim a sua transformação absoluta. Esta greve anarquista não é violenta,
apesar de suas “conseqüências catastróficas” (170; 194)5, já que uma ação
deve ser julgada em função de seus meios e não de suas conseqüências.
A conclusão de Benjamin deste balanço da relação da Gewalt com o
direito condena o poder orientado, seja segundo o direito natural, com seu
culto dos fins e desprezo pela ética dos meios, seja segundo o direito positivo,
que também é parte da lógica de sustentação do poder pelo meio jurídico,
por mais que ele pareça legítimo. Assim como antes Benjamin se perguntara

5
Com relação ao triplo significado do conceito de catástrofe na obra de Walter Benjamin – que ora
indica uma catástrofe contínua, ora uma catástrofe destruidora, ora uma catástrofe ao mesmo
tempo aniquiladora e redentora –, cf. o meu artigo de 2003.
212 Márcio Seligmann-Silva

se existem meios não-violentos, ele busca neste passo outras modalidades de


poder, para além das que a teoria do direito apresenta. Mas esta busca ocorre
justamente por meio da crítica do direito. A indecibilidade que assombra o
campo jurídico – “é impossível ‘decidir’ qualquer problema jurídico” (171;
196) – é apresentada com o exemplo lingüístico que afirma a impossibilidade
de se decidir o que é “certo” e o que é “errado” em línguas vivas em transfor-
mação. Este exemplo é tanto mais importante, na medida em que aponta
para a origem da aporia do sistema jurídico: ele depende da impossível ade-
quação entre fins universais e situações particulares. Este sistema, podería-
mos dizer, contém em si seu próprio “estado de exceção”. Como já se disse,
todo ato de linguagem é em certa medida um “golpe de estado” com relação
às regras da linguagem. Do mesmo modo, o direito só existe dentro deste
espaço (negado e temível) entre a lei e sua realização. Ele sempre depende,
em última instância, do poder decisório dos que dominam o aparelho jurídi-
co. Ele é sempre, portanto, poder instituinte e mantenedor.
Benjamin encontra uma função não mediativa da violência na ira,
enquanto pura manifestação sem fim. A Gewalt mítica também assume
este caráter de manifestação, como no caso, segundo o autor, da lenda de
Níobe. A violência que desaba sobre ela teria a ver com o destino. Não é
punição. Sua hybris – achar-se digna de honras divinas e mais feliz que
Leto, mãe de Artemisa e Apolo – levou à morte de seus quatorze filhos.
No mito Benjamin destaca justamente este enfrentamento do destino,
sobretudo na figura de Prometeu, que encarnaria para ele a Gewalt jurí-
dica. Prometeu se aproxima deste modo da figura do “grande bandido”.
Esta aproximação é importante, se levarmos em conta que este mito
prometeico tem um status absolutamente fundamental e “fundante” na
nossa cultura. Prometeu que traz a “luz” aos homens, as técnicas, o saber,
o direito. Ele desafia o novo poder, instaurado e representado por Zeus,
para criar uma nova linhagem de poder: humana. Na tragédia de Ésquilo,
Zeus aparece como o lado violento do poder e Prometeu como sua face
jurídica. A imagem do poder jurídico submetido à força instituidora de
um novo poder soberano é paradigmática aí. Por outro lado, o próprio
Benjamin estabelece uma ponte entre o poder imediato que se manifesta
no mito e o poder instituinte do direito. “A institucionalização do direito
é institucionalização do poder [Macht] e, nesse sentido, um ato de mani-
festação imediata da violência. A justiça é o princípio de toda instituição
Walter Benjamin: o estado de exceção... 213

divina de fins, o poder (Macht) é o princípio de toda institucionalização


mítica do direito” (172; 198). Justiça e direito se excluem. Uma liga-se,
em Benjamin, ao divino, a outra ao mítico e à Gewalt.
Assim Benjamin retoma a discussão da instituição do tratado de paz
para mostrar que os limites estabelecidos pelo tratado, de maneira “demo-
níaca e ambígua”, valem igualmente para os vencedores e os vencidos.
Esta ambigüidade Benjamin denomina de mítica. Trata-se de uma ambi-
güidade perversa, na medida em que a proibição vale tanto para
dominadores como para dominados, mas seu elemento coercitivo aplica-
se, antes de mais nada, ao segundo grupo. Com Sorel ele recorda que
todo o direito, Recht, é privilégio, Vorrecht, dos reis e dos eminentes, ou
seja, dos poderosos, Mächtigen (172; 198). E conclui: “E assim será, mutatis
mutandis, enquanto existir o direito. Pois, da perspectiva da violência
[Gewalt], a única a poder garantir o direito, não existe igualdade, mas,
na melhor das hipóteses, existem poderes [Gewalten] do mesmo tama-
nho” (Id.). Mas a Gewalt em seu relacionamento com o sistema jurídico
nunca abandona o espaço mítico. Pois, se a passagem da penitência (Sühne)
para o castigo (Strafe) foi determinada pela passagem da lei oral para a
escrita, por outro lado aquele que ignora esta é tratado pelo direito não
como vítima do acaso (Zufall), mas sim do destino (Schicksal), com sua
“ambigüidade proposital” (172; 199). Esta duplicidade está na origem de
uma lógica de retroalimentação do direito/poder que possui uma forma
que recorda a circularidade (mítica). Afinal, as premonições míticas (e
trágicas) sempre trazem em si a futura transgressão e o castigo. Com
Hermann Cohen, Benjamin recorda que nestes casos “‘é sua própria or-
dem que parece provocar sua transgressão, esse desrespeito’” (Id.).
Desdobrando sua crítica, Benjamin deduz da identidade entre a Gewalt
mítica e a do sistema jurídico a tarefa, Aufgabe, da sua aniquilação. Esta só
pode se dar via oposição da Gewalt mítica por parte de uma outra, com um
caráter inteiramente outro, que barre a simples reprodução desta força.
Trata-se de encontrar uma Gewalt pura e imediata. Assim Benjamin opõe o
poder mítico ao divino. Este último é o oposto do primeiro e permite aniqui-
lar o direito. Aquele é rechtsetzende, instituidor de direito, este é
rechtvernichtende, aniquilador de direito, se um estabelece limites, o outro é
sem-limites, se um instaura a culpa e a penitência, o outro liberta da culpa,
se um ameaça, o outro resolve de um golpe, se um é sangrento, o outro é
214 Márcio Seligmann-Silva

letal, mas não-sangrento. Nesta passagem, das mais controversas do ensaio


de 1921, Benjamin confronta o mito de Níobe à lenda bíblica da destruição
da corja de Corah (Números 16). Para ele, a aniquilação de um só golpe e
não sangrenta realizada por Deus liberta da culpa. Este ser sem-sangue é
central: pois “o sangue é símbolo da vida pura”, escreve Benjamin. A Gewalt
mítica, por sua vez, remonta à culpabilização da vida pura natural que leva
os inocentes à penitência e, no limite, destrói o próprio direito. Aquilo a
que Benjamin denomina de “vida pura” indica também o limite do direito
sobre os viventes. Aqui ressurge a diferença entre uma política dos meios e
a dos fins puros: “O poder [Gewalt] mítico é poder [Gewalt] sangrento
sobre a vida pura e por ela mesma, ao passo que o poder [Gewalt] divino o
é sobre toda a vida tendo em vista os viventes” (173; 200, tradução modifi-
cada). O primeiro exige sacrifícios, ou seja, alimenta-se da vida pura, des-
truindo-a, o segundo, escreve Benjamin (de modo enigmático), simples-
mente aceita estes sacrifícios. O poder divino é puro.
O penúltimo passo do ensaio benjaminiano desdobra esta reflexão so-
bre a relação entre poder/direito mítico e o sacrifício da vida pura e, por
outro lado, o poder divino como golpeador e não-jurídico. Se este último
poderia dar a entender que a capacidade letal poderia ser estendida aos
homens, isto não ocorre, pois o mandamento “Não matarás” impede a
realização do ato. No entanto, este mandamento não deve estar nem na
origem da contenção diante do ato, nem do seu eventual julgamento.
Este ponto é essencial para se demarcar a esfera do direito mítico e a do
poder divino. “O mandamento não existe como medida de julgamento, e
sim como diretriz” (173; 200). E, mais ainda, não se deve deduzir dele a
tese errônea do caráter sagrado da vida, seja ela vegetal, animal ou huma-
na6. Para Benjamin é falso que a existência estaria acima da existência
justa, na medida em que existir signifique apenas a “vida pura”. Mas
“vida”, para este autor, assim como a palavra “paz” que vimos acima, deve
ser considerada como uma linha entre duas esferas, o que a torna emi-
nentemente ambígua. Se considerarmos o existir como o estado agregado
inabalável da “pessoa”, podemos aceitar que o não-ser desta possa ser
6
Neste sentido é importante recordar um fragmento deste mesmo período do espólio de Benjamin,
onde lemos: “[...] a exigência de total ausência de Gewalt não pode ser determinada de modo exato
(onde acaba a Gewalt?), não apenas [é] absurda na sua conseqüência, que nega a vida e até o
suicídio, mas sobretudo não se pode fundamentá-la” (GS VII, p. 791).
Walter Benjamin: o estado de exceção... 215

mais terrível que o mero ainda não-ser da pessoa justa. Mas não se trata
de sacralizar a vida, o corpo humano, Leib, em função do elemento sagra-
do da pessoa. O autor se pergunta sobre a diferença entre as pessoas e os
animais e plantas, para afirmar que estes últimos não teriam um caráter
sagrado devido à pura vida. O programa de pesquisa que ele propõe en-
tão foi seguido à risca por Agamben: “Sem dúvida, valeria a pena inves-
tigar o dogma do caráter sagrado da vida” (174; 202). Para Benjamin,
este dogma deve ser recente e considerado um equívoco da tradição
ocidental enfraquecida, que busca o sagrado perdido no impenetrável
cosmológico. Ele arremata seu raciocínio com um teorema (como que
kafkiano): ele se espanta diante do fato de que se atribua o caráter de
sagrado justamente à vida pura, ou seja, àquilo que o pensamento mítico
considera como o que porta a culpa. Assim ele fecha o círculo de seu
estudo: o poder-direito mítico exige o sacrifício da vida sacra. Apenas a
crítica da Gewalt pode nos instrumentalizar contra este círculo onde a
lei, o sagrado e a culpa se alimentam eternamente.
Esta crítica não é apresentada como genealogia, mas sim como uma
“filosofia” da sua história. A mise en perspective derivada deste ponto de
vista traça um ponto arquimediano fora da esfera do poder-violência que
permite este olhar crítico. Assim, Benjamin propõe, no seu último passo, a
possibilidade de ruptura na cadeia de embates históricos e míticos entre
poderes mantenedores e poderes instituintes. A nova era histórica é anun-
ciada, como aquela sem um poder do Estado. O poder puro, revolucionário
e humano que Benjamin evoca, é posto em paralelo com o poder divino,
que dispõe daquilo que o mito reduziu ao direito. Mas novamente Benja-
min é infeliz na escolha de seus exemplos de tal poder puro: ele o vê tanto
na “verdadeira guerra” como no “juízo divino da multidão sobre o crimino-
so”. Em contrapondo ao “poder que o homem põe”, schaltende Gewalt, que
não abandona o mito e depende do direito, assim como ao poder mantenedor,
administrado, verwaltete Gewalt, ele propõe o poder divino, que nunca é
meio e pode ser chamado de “poder que dispõe”, waltende Gewalt. Se recor-
darmos que em alemão se diz “schalten und walten”, no sentido de “pôr e
dispor”, mandar, e das expressões walt’s Gott, em nome de Deus!, ou das
walte Gott, assim seja!, podemos compreender melhor este jogo de palavras
de Benjamin com o termo Gewalt. Em português dizemos também que “o
homem põe e Deus dispõe”. Aqui se trata de uma equação simples: o direi-
216 Márcio Seligmann-Silva

to instituído, humano, é ligado ao que mantém o status quo e ambos são


contrapostos ao poder divino que dispõe segundo a sua vontade.

Benjamin leitor de Carl Schmitt e vice-versa


A história da recepção mais intensa deste ensaio de Benjamin de 1921
normalmente é contada apenas a partir do famoso texto de Derrida Force
de loi, publicado em 1994 e escrito no final dos anos 1980 e início da década
seguinte. Mas na verdade esta recepção deu-se de modo imediato, já que
Carl Schmitt deve ser contado como um dos leitores de primeira hora do
ensaio de Benjamin. Este, por sua vez, reconheceria no livro de Schmitt
Politische Theologie uma série de idéias que lhe ajudaram na construção de
seu ensaio sobre o drama barroco alemão. É justamente esta proximidade
de interesses entre Benjamin e Schmitt que está na origem da crítica
avassaladora que Derrida fez a este texto7. Crítica que me parece injusta e
precipitada. Talvez apenas uma espécie de “pequena” tentativa, da parte
de Derrida, de matar o “pai”, ou um de seus pais intelectuais.
Mas é verdade que Carl Schmitt foi não só um eminente membro do
partido nazista, como existem várias passagens anti-semitas em sua obra.
Ele foi o autor de textos como “Der Führer schützt das Recht” (“O Führer
protege o direito”, 1934) e “Die deutsche Rechtswissenschaft im Kampf
gegen den jüdischen Geist” (“A ciência jurídica alemã em luta contra o
espírito judaico”, 1936)8. O ensaio de Derrida, assim como o de Benja-
min, parte da aporia jurídica, ou seja, de sua relação estrutural com a
violência. Derrida escreve sobre a relação entre a lei e sua aplicabilidade,
enforceability, que depende da “força”9. Se o direito pode ser desconstruído,
como Benjamin o demonstrou, a justiça não o pode ser10. Partindo do
ensaio de Benjamin, Derrida também analisa a relação entre direito e sa-
crifício11; com Lévinas, ele escreve sobre a relação dialógica com o outro
como possível fundamento de uma justiça12, entre outros temas que não

7
Derrida, Force de Loi. Le “Fondement mystique de l’autorité”, p. 69.
8
Weber, “Taking Exception to Decision: Walter Benjamin and Carl Schmitt”, p. 5.
9
Derrida, op. cit., p. 18.
10
Id., p. 35.
11
Id., p. 43.
12
Id., pp. 48s.
Walter Benjamin: o estado de exceção... 217

caberia recordar aqui. O importante é que a partir de uma grande identi-


ficação de temas da desconstrução com o texto (e a obra) de Benjamin,
Derrida parte, na segunda metade de seu ensaio, para um ataque a “este
texto inquietante, enigmático, terrivelmente equivocado, [...] assombrado
pelo tema da destruição radical, da exterminação, da aniquilação total
[...]”13. Derrida interpreta a idéia de justiça divina, violenta, de um golpe
e não-sangrenta, como uma espécie de assombração do extermínio judaico
que pairaria sobre o ensaio benjaminiano. Mas não é só de uma assombra-
ção e de uma premonição que se trata. Para Derrida é como se Benjamin
estivesse não apenas prevendo, mas justificando as câmaras de gás14. Falar
de uma cumplicidade entre o ensaio de Benjamin e a “solução final” é de
um teleologismo absurdo que me parece “inquietante, enigmático, terri-
velmente equivocado”. Se Derrida tem toda a razão em constatar certas
proximidades (perigosas) entre Benjamin e algumas passagens de Schmitt
e Heidegger, entre, por exemplo, a hostilidade deles ao parlamentarismo
democrático, daí a deduzir esta interpretação do texto de 1921, parece-me
precipitado15. Mas com isso não quero negar a necessidade de desconstrução
do texto benjaminiano. Quando Derrida afirma que a polaridade entre
greve geral política e proletária deve ser desconstruída, é difícil não con-
cordar16; tampouco se pode negar o elemento enigmático e, hoje, pouco
produtivo, da idéia de violência divina, assim como os traços conservado-
res da crítica benjaminiana da degenerescência (Entartung, 175; 202) do
poder e da decadência (Verfall, 167; 190) das instituições jurídicas17. Não é
de admirar que Derrida tenha se sentido um tanto chocado com estes
conceitos. Mas isto não justifica seu teleologismo.
Mas o que importa aqui não são os detalhes desta leitura derridiana
do “Zur Kritikder Gewalt” (um tema muito importante para um estudo
da obra do próprio Derrida), mas sim a teoria do “estado de exceção” de
Benjamin e como esta pode ser mais bem compreendida se levarmos em

13
Id., p. 67.
14
Id., pp. 71, 145.
15
Chega a ser caricata a interpretação do conceito de waltende Gewalt como uma alusão a Walter do
nome de Benjamin. Derrida, Force de Loi: Le “Fondement mystique de l’autorité”, pp. 74-7.
16
Derrida, op. cit., p. 93.
17
Id., pp. 111s.
218 Márcio Seligmann-Silva

conta este diálogo com Carl Schmitt. A relação entre Benjamin e Schmitt
está documentada em poucas passagens. Além da citação do livro Politische
Theologie no seu ensaio sobre o drama barroco alemão, que logo veremos,
devemos nos lembrar de uma carta a Richard Weissbach de 23.03.1923,
da carta que Benjamin enviou a C. Schmitt em 9.12.1930, onde avisa
que ele em breve receberá seu ensaio sobre o Trauerspiel, e de uma passa-
gem de um curriculum vitae de 1928.
Na carta a Weissbach, Benjamin escreve: “Quando da minha última
visita eu esqueci o Politische Theologie do Schmitt com o senhor. O senhor
poderia, por favor, gentilmente enviá-lo a mim. Ele é importante para o
meu trabalho atual sobre o Trauerspiel”18. Já o curriculum de 1928 revela
pistas preciosas para a compreensão da obra de Benjamin daquele período:

Assim como Benedetto Croce com a destruição da doutrina das formas artísticas
[Kunstformen] abriu o caminho para a obra única concreta, assim os meus ensaios até
agora têm se esforçado em abrir o caminho para a obra de arte através da destruição da
doutrina do caráter disciplinar da arte. Seu objetivo programático comum é o processo
de integração da ciência que mais e mais deita ao chão as paredes divisórias entre as
disciplinas, tal como o conceito de ciência do século passado as caracterizavam, com
base no fomento de uma análise da obra de arte que reconheça nela uma expressão
integral, sem delimitar em um campo restrito, das tendências religiosas, metafísicas,
políticas e econômicas de uma época. Este ensaio, que eu levei a cabo em uma escala
ampla no mencionado Origem do drama barroco alemão, conecta-se, por um lado, com
as idéias de Alois Riegl e sua doutrina do Kunstwollen, por outro lado, com as tentati-
vas atuais de Carl Schmitt, que realiza na sua análise das configurações políticas uma
tentativa análoga de integração dos fenômenos, que apenas na aparência são separados
segundo os campos. Sobretudo, no entanto, uma tal observação parece-me condição
para toda compreensão fisionômica profunda da obra de arte no ponto em que elas são
incomparáveis e únicas. Neste sentido, ela se aproxima mais da observação eidética dos
fenômenos do que da sua observação histórica (GS VI, pp. 218s.).

Benjamin buscava tanto modelos capazes de superar as


compartimentações entre as disciplinas, como também reconheceu na

18
Benjamin, Gesammete Briefe. Band II. 1919-1924, p. 327. Cf. também uma menção rápida ao estudo
da teoria da soberania no século XVII em uma carta a Gottfried Salomon-Delatour Id., p. 400.
Walter Benjamin: o estado de exceção... 219

obra de Schmitt um método para salvar o elemento único, incomparável,


das obras. Aqui encontramos, portanto, um tema central de sua introdu-
ção ao livro sobre o Trauerspiel.
A carta a Schmitt é formal e indica o desejo de continuar um diálogo
intelectual com o então eminente teórico do direito, crítico literário e
escritor surrealista. Como se trata da única carta de Benjamin a Schmitt
de que temos conhecimento e, por outro lado, como encontramos nela
algumas afirmações reveladoras, também vale a pena citá-la19:

Prezado Professor,
Por estes dias o senhor receberá da editora o meu livro Ursprung des deutschen Trauerspiels
[Origem do drama barroco alemão]. Com estas linhas eu gostaria não apenas de anunciá-lo,
mas também de expressar-lhe minha alegria quanto ao fato de que pude enviá-lo graças ao
senhor Albert Salomon. O senhor irá notar muito rapidamente quanto o livro deve a sua
apresentação da doutrina da soberania no século XVII [Cf. Politische Theologie, 1922].
Talvez eu deva, além disso, já dizer que derivei de suas obras posteriores, particularmente
de Diktatur, uma confirmação dos meus métodos de pesquisa em filosofia da arte das suas
sobre filosofia do estado. Se a sua leitura do meu livro tornar compreensível este senti-
mento, o propósito do meu envio terá se cumprido.
Com a expressão de uma particular admiração,
Atenciosamente,
Walter Benjamin20.

Novamente Benjamin destaca este encontro metodológico entre sua


obra e a do teórico do direito. Por outro lado, como vimos, não podemos
perder de vista que o próprio Schmitt foi um leitor de Benjamin. Está
praticamente provada a sua leitura do ensaio de Benjamin sobre a Gewalt
de 1921, publicado no Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik (nú-
mero 47 de 1920-21), revista da qual Schmitt era leitor habitual, como
apontou G. Agamben21. Além disso, no pós-guerra Schmitt voltou a lidar

19
Segundo Jacob Taubes, esta carta “é uma mina que simplesmente faz explodir as nossas idéias
sobre a história cultural da era de Weimar. A carta provém não dos inícios da época de Weimar, mas
da época de sua crise: dezembro 1930”. Taubes, Ad Carl Schmitt: Gegenstrebige Fügung, p. 27.
20
Benjamin, Gesammete Briefe. Band III. 1925-1930, p. 558.
21
Agamben, Estado de exceção, p. 84.
220 Márcio Seligmann-Silva

de modo intenso com a obra de Benjamin a partir de sua discussão da


tragédia em seu livro Hamlet oder Hecuba. Die Einbruch der Zeit in das
Spiel (Hamlet ou Écuba. A irrupção do tempo no drama), de 1956. Como
recorda Horst Bredekamp, Carl Schmitt escreve, em uma série de cartas
de 1973, que durante os anos 1930 ele se ocupou de Benjamin. A apre-
sentação deste relacionamento ultrapassa a troca intelectual. Schmitt
enfatizou que tinha contatos diários com amigos em comum dele e de
Benjamin. Estes contatos não estariam documentados por escrito justa-
mente porque eram cotidianos e pessoais. Schmitt apresenta também
seu estudo sobre o Leviathan e Hobbes de 1938 como uma resposta ao
livro de Benjamin sobre o drama barroco e à sua incapacidade de lidar
com este tema da filosofia política. Bredekamp também parece ter razão
ao apontar esta reconstrução autobiográfica de Schmitt nos anos 1970
como uma tentativa de se libertar da culpa de seu passado nazista via
esta aproximação com o então já amplamente reconhecido intelectual
de esquerda, “entronizado” por 1968, que era Benjamin. Independente-
mente desta política da memória, no entanto, ele considera que faz muito
sentido pensar no estudo schmittiano da figura do Leviathan como uma
resposta ao ensaio de Benjamin. Contra a tese benjaminiana do período
barroco como uma era instável e imprópria para a autoridade absoluta
do soberano (que se aproximaria do conceito hobbesiano de estado de
natureza), Schmitt mostra que havia sim espaço para aquela figura do
poder centralizado22.
É importante destacar, portanto, que neste diálogo intelectual predo-
mina uma admiração distanciada. Apesar da aproximação possível entre
determinados pontos de vista políticos (a crítica ao parlamentarismo e ao
liberalismo de então), apesar da atração pela teoria da soberania no sécu-
lo XVII e da paixão metodológica pelo estudo dos fenômenos extremos, a
leitura recíproca sempre valeu como inspiração, mas também como toma-
da de distanciamento crítico. Normalmente um autor revertia o teorema
lido no outro: isto se passa tanto na questão da teoria da soberania como
na do estado de exceção. A famosa definição schmittiana da soberania,

22
Bredekamp, “From Walter Benjamin to Carl Schmitt, via Thomas Hobbes”, pp. 261s.
Walter Benjamin: o estado de exceção... 221

“Souverän ist, wer über den Ausnahmezustand entscheidet”23 (“Sobera-


no é aquele que decide sobre o estado de exceção”24), pode refletir em
parte as idéias do ensaio de Benjamin sobre a violência, mas não corresponderá
à própria descrição benjaminiana da figura do soberano no século XVII. A
este conceito de soberania corresponde ainda, em Schmitt, a idéia de de-
creto de urgência, Notverordnung, ou de estado de sítio, Belagerungzustand.
Estes conceitos da teoria política reaparecem em termos de uma reflexão
epistemológica e de filosofia da história. Assim, a idéia contida na frase
seguinte de Schmitt, após esta definição de soberania em Politische Theologie,
também reaparece no livro sobre o Trauerspiel, desta feita sem a reversão.
Aqui se trata justamente de um preceito teórico-metodológico e não de um
teorema político. Citemos Schmitt: “Diese Definition kann dem Begriff der
Souveränität als einem Grenzbegriff allein gerecht werden” (“Apenas esta
definição será compatível com o conceito de soberania enquanto um con-
ceito-limite”25). Também Benjamin considerará seu conceito de Trauerspiel
um conceito-limite. Segundo ele, apenas nestas aparições extremas podem-
se determinar os conceitos da teoria estética.
Por sua vez, Carl Schmitt, no seu ensaio sobre o Hamlet, ao invés de
fazer uma teoria da origem como Ursprung, ou seja, como uma espécie de
fenômeno que rompe com a linearidade do histórico, onde a pré- e pós-
história do conceito estudado se encontram – como Benjamin propusera

23
Nietzsche, na sua Genealogia da Moral, também pensou a soberania como um conceito-limite. Para
ele o todo poderoso (Mächtigsten) é o único capaz de decretar o perdão (Nietzsche, “Jenseits von Gut
und Böse, Zur Genealogie der Moral. Eine Streitschrift”, p. 309). Neste ato altruísta ele exerce e
impõe seu poder, salvando a vida matável. Este fato aponta para o ser-excepcional do Estado de
Direito, ou seja, para a verdade de que o Estado de Exceção habita o interior do estado de Direito e
não lhe é estranho. Mais adiante, na mesma obra, Nietzsche formula: “É preciso mesmo admitir algo
ainda mais grave: que, do mais alto ponto de vista biológico, os estados de direito não podem senão ser
estados de exceção [Ausnahme-Zustände], enquanto restrições parciais da vontade de vida que visa o
poder, a cujos fins gerais se subordinam enquanto meios particulares: a saber, como meios para criar
maiores unidades de poder” (Nietzsche, Jenseits von Gut und Böse, Zur Genealogie der Moral. Eine
Streitschrift, p. 65, correspondendo a Nietzsche, Genealogia da Moral: uma polêmica, pp. 312s.). Nova-
mente encontramos aqui explicitada a lógica do direito natural que justifica os meios em função do
poder e de sua unidade.
24
Schmitt, Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität, p. 13.
25
Id., p. 13.
222 Márcio Seligmann-Silva

na famosa introdução crítico-epistemológica de seu ensaio sobre o barro-


co, propõe a noção quase que oposta de Einbruch, ou seja, de irrupção do
elemento histórico na obra trágica. Nesse brilhante ensaio – sem dúvida
uma das teorias mais fortes do drama e do trágico da segunda metade do
século XX – ele critica tanto a leitura que Benjamin faz de Hamlet (Schmitt
descarta a sua cristianização de Shakespeare) como a sua análise do con-
ceito de soberania (que não teria levado em conta as diferenças entre o
continente europeu e a situação insular da Inglaterra)26. Mas, por outro
lado, também é verdade que Schmitt se apóia amplamente em Benjamin
e no seu livro sobre o Trauerspiel. Se levarmos em conta que em Benjamin
também encontramos uma forte teoria da literatura e das artes como tes-
temunho de sua época, fica claro que a diferença entre estes dois autores
derivada a partir dos conceitos benjaminiano de origem e schmittiano de
irrupção, é mais superficial do que decisiva. Tentemos apontar de modo
mais detalhado alguns momentos do diálogo entre Schmitt e Benjamin,
enfatizando a obra deste último e sem perder de vista a centralidade da
questão do estado de exceção nestes dois autores.

O ensaio sobre o Trauerspiel


Antes de apresentarmos a questão da exceção no livro de Benjamin
sobre o barroco, vale a pena recordar a resposta schmittiana à teoria da
Gewalt pura de Benjamin. Neste ponto as análises de Agamben são precio-
sas. Esse autor vê o ensaio Politische Theologie como uma “resposta precisa”
ao texto benjaminiano “Zur Kritik der Gewalt”27. Citemos as suas palavras:

Enquanto a estratégia da ‘Crítica da violência’ [sic] visava a assegurar a existência de uma


violência pura e anômica, para Schmitt trata-se, ao contrário, de trazer tal violência para
um contexto jurídico. O estado de exceção é o espaço em que ele procura capturar a idéia
benjaminiana de uma violência pura e inscrever a anomia no corpo mesmo do nomos28.

Segundo Agamben, o que está em jogo na resposta de Schmitt é a


idéia de uma violência pura fora da esfera do direito: isto não pode existir

26
Schmitt, Hamlet o Hecuba. La irrupcion del tiempo em el drama, p. 53.
27
Agamben, Estado de exceção, p. 85.
28
Id., pp. 85s.
Walter Benjamin: o estado de exceção... 223

para ele, pois o estado de exceção justamente inclui a violência no direi-


to no mesmo momento em que suspende este. A noção de decisão de
Schmitt também supera a polaridade entre poder constituinte e constitu-
ído. O poder soberano em Schmitt está além desta polaridade, ele sim-
plesmente suspende o direito. Também a indecidibilidade das questões
jurídicas, afirma Agamben, é superada por Schmitt em Politische Theologie,
graças à figura do soberano como quem é capaz de decisão. É esta decisão
que permite se estabelecer uma ponte entre a anomia e o sistema jurídi-
co29. Visto isto, passemos à resposta benjaminiana ao Politische Theologie.
Benjamin, no item de seu livro de 1925 sobre o Trauerspiel dedicado à
“Teoria da soberania”, recorre ao Politische Theologie para apresentar a
nova ordem política do século XVII.

O conceito moderno de soberania tende para um poder executivo assumido pelo prínci-
pe, o Barroco desenvolveu-se a partir da discussão do estado de exceção [Ausnahmezustand],
considerando que a mais importante função do príncipe é impedi-lo. Aquele que exerce
o poder está predestinado de antemão a ser detentor de um poder ditatorial em situações
de exceção provocadas por guerras, revoltas ou outras catástrofes30.

Mais importante no nosso contexto, é a explicação filosófico-histórica


de Benjamin para este estado político excepcional:

O barroco contrapõe frontalmente ao ideal histórico da Restauração a idéia de catás-


trofe. E a teoria do estado de exceção constrói-se sobre esta antítese. Por isso, não basta
invocar a maior estabilidade das condições políticas do século XVIII para se explicar de
que modo se perde neste século “a consciência da importância do estado de exceção,
dominante no direito natural do século XVII”. [C. Schmitt] [...] O homem religioso do
Barroco prende-se tão fortemente ao mundo porque sente que com ele é arrastado para
uma queda de água. Existe uma escatologia barroca31; por isso o que existe é um

29
Id., ibid.
30
Benjamin, Origem do drama trágico alemão, pp. 57s., correspondendo a GS I, pp. 245s.
31
Na edição da Suhrkamp consta “Es gibt keine barocke Eschatologie” (“Não existe uma escatologia
barroca”, GS I, p. 246), mas Agamben constatou no manuscrito (ou na primeira edição) que em
Benjamin constava “Es gibt eine barocke Eschatologie”, ou seja, “Existe uma escatologia barroca”.
Mas ele mesmo nota que a “correção” realizada pelos editores não violenta o sentido do pensamento
benjaminiano, já que esta escatologia está de fato esvaziada: permanece o fim, mas acaba a sua
transcendência e a possibilidade de redenção. Cf. Agamben, op. cit., pp. 88s.
224 Márcio Seligmann-Silva

mecanismo que acumula e exalta tudo o que é terreno antes de entregar à morte. O
além é esvaziado de tudo aquilo que possa conter o mínimo sopro mundano, e o
Barroco extrai dele uma panóplia de coisas que até aí se furtavam a qualquer configu-
ração artística, trazendo-as, na fase do seu apogeu, violentamente à luz do dia para
esvaziar um derradeiro céu que, nessa sua vacuidade, será capaz de um dia destruir a
terra com a violência de uma catástrofe32.

Ou seja, ao invés de uma teoria do soberano e de sua legitimação via


estado de exceção, Benjamin dá a esta situação excepcional uma dimen-
são tão radical que destrói o reino sobre o qual este soberano poderia
reinar. Impera não o soberano, mas sim a catástrofe. Melhor dizendo, as
catástrofes do presente que serão triunfalmente finalizadas com uma ca-
tástrofe futura33. O que resta aos viventes nesta situação sem redenção
de anomia é o jogo-lutuoso (literalmente: Trauer-spiel) com as ruínas do
mundo. Daí a centralidade, neste ensaio de Benjamin, dos conceitos de
melancolia e de alegoria. O alegorista é o colecionador de escombros,
que, resignificando-os, salva-os. Em outro item do mesmo capítulo sobre
o “Drama Trágico [Trauerspiel] e a Tragédia”, Benjamin destaca a “Inca-
pacidade de decisão” do soberano. Nada menos caro à teoria da sobera-
nia de Schmitt:

A antítese entre o poder do soberano e a sua efetiva capacidade de governar levou, no


drama trágico, a uma característica muito própria, que só aparentemente é um traço de
gênero, e que só pode ser explicada à luz da teoria da soberania. Trata-se da incapacidade
de decisão do tirano. O príncipe, cuja pessoa é depositária da decisão do estado de
exceção, demonstra logo na primeira oportunidade que é incapaz de tomar uma decisão34.

Benjamin nota que existe por detrás do drama de tirano barroco ele-
mentos da tragédia de mártires. O soberano barroco, para ele, oscila entre
a figura do tirano e a do mártir. Benjamin nota que, por outro lado, também

32
Benjamin, Origem do drama trágico alemão, pp. 58s.; correspondendo a GS I, p. 246. Tradução
modificada.
33
Cf. Seligmann-Silva, “Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin e Chris Marker: a
escritura da memória”.
34
Benjamin, Origem do drama trágico alemão, p. 66; correspondendo a GS I, p. 250.
Walter Benjamin: o estado de exceção... 225

nas histórias de mártires do Barroco pode-se perceber o drama do tirano. O


monarca é aquele que passa por uma prova, assim como o mártir:

A função do tirano é a restauração da ordem na situação de exceção: uma ditadura cuja


utopia será sempre a de colocar as leis férreas da natureza no lugar do instável acontecer
histórico. Mas também a técnica estóica visa um objetivo parecido: controlar, com o
domínio dos afetos, o que pode ser visto como estado de exceção da alma
[Ausnahmezustand der Seele]35.

Aqui Benjamin transpõe um fenômeno descoberto no campo da teoria


política para o campo da teoria do pathos do drama barroco. De tirano a
indeciso, de ditador a soberano em luta com suas paixões sob um céu não-
transcendente, nestas transposições dos conceitos de Schmitt, Benjamin atri-
bui cores totalmente distintas e próprias à sua teoria do estado de exceção.
Por outro lado, em termos epistemológicos assim como em termos de
uma atração por uma temporalidade “de exceção”, podemos sim detectar
continuidades flagrantes entre estes dois pensadores. Na sua teoria das
idéias apresentada na introdução do livro sobre o drama barroco, Benja-
min afirma que as idéias devem ser atingidas pela contemplação dos fe-
nômenos únicos. Nelas, estes fenômenos são reunidos e são salvos. Entre
o fenômeno e a idéia, Benjamin descreve o trabalho dos conceitos:

aqueles elementos, que os conceitos têm por tarefa destacar dos fenômenos, são mais
claramente visíveis nos extremos da constelação. A idéia é definível como a configuração
daquele nexo em que o único e extremo se encontra com o que lhe é semelhante. [...] O
universal é a idéia. Já o empírico será tanto mais profundamente apreendido quanto mais
claramente for visto como algo extremo. O conceito procede de algo extremo36.

Portanto, os conceitos poetológicos não devem ser pensados como


“médias” ou sumas dos fenômenos. Benjamin trata o Trauerspiel como
uma idéia. Isto o opõe à tradição da composição da história das idéias.
Ele valoriza uma aparição marginal nestas histórias, o drama barroco ale-
mão. É aí que Benjamin encontra toda a carga explosiva do Trauerspiel.

35
Id., p. 68; correspondendo a GS I, p. 253.
36
Id., p. 21; correspondendo a GS I, p. 215.
226 Márcio Seligmann-Silva

Nestas aparições extremas pode-se, para ele, perceber melhor os traços


do gênero, do que nas suas manifestações mais perfeitas, como se pôde
ver na Inglaterra e sobretudo na Espanha37.
Benjamin visa a uma “verdadeira contemplação”, como vimos, ele quer
salvar as obras na sua concretude e singularidade, sem abandonar a no-
ção de idéia e rejeitando o método dedutivo. Daí o seu conceito de ori-
gem, como algo oposto à noção de gênese, Entstehung.
Origem não designa o processo de devir de algo que se originou
[Entsprungenen], mas antes aquilo que emerge [Entspringende] do proces-
so de devir e desaparecer. A origem insere-se no fluxo do devir como um
redemoinho que arrasta no seu movimento o material produzido no pro-
cesso de gênese [Entstehungsmaterial]38.
Este “emergir” é justamente uma metáfora do procedimento
benjaminiano de romper com o modo de pensar linear e ascendente tra-
dicional. Trata-se da idéia de Ursprung, como salto, Sprung, para fora des-
ta linearidade, destruindo os falsos nexos e contextos. Assim Benjamin
pretendia não abandonar o histórico, mas sim salvá-lo do único modo que
lhe parecia possível, sem ocultar suas rupturas e tensões.

“Sobre o conceito da história”, choque e


reprodutibilidade como rupturas na tradição
Do mesmo modo que no barroco Benjamin detectou uma visão da
história como um contínuo de catástrofes, nas suas reflexões históricas
dos anos 1930 esta idéia tornou-se cada vez mais central. Agora se trata-
va não mais de um estudo do século XVII (por mais que Benjamin tenha
deixado claro que estudou o barroco visando compreender e iluminar seu
presente), mas sim da análise de uma situação concreta: a Alemanha

37
“Para a filosofia da arte”, escreve Benjamin, “só os extremos são necessários, o processo historio é
virtual. Por seu lado, o extremo de uma forma ou de um gênero é a idéia, que, enquanto tal, não entra
na história literária. O drama trágico como conceito poderia inserir-se sem problemas nas classificações
conceituais da estética. Ma a idéia relaciona-se de modo diferente com as classificações, na medida em
que não determina uma classe e não contém em si aquela universalidade sobre a qual assenta, no
sistema de classificações, cada um dos graus do conceito, a universalidade da média estatística”
(Origem do drama trágico alemão, pp. 24s.; correspondendo a GS I, p. 218. Tradução alterada.
38
Id., p. 32; correspondendo a GS I, p. 226. Tradução modificada.
Walter Benjamin: o estado de exceção... 227

nazista existiu por seus doze anos sob o signo de um estado de exceção
declarado. As reflexões contidas no seu último texto, o “Sobre o conceito
da história”, em parte reúnem idéias que já haviam sido avançadas ao
longo da década anterior pelo próprio Benjamin. A teoria do choque,
que ele desenvolveu a partir de suas leituras de Freud, de Baudelaire, de
Poe, entre outras figuras-chave, também indica a presença desta modali-
dade do tempo que irrompe para estancar a continuidade da vida “nor-
mal”. O conhecido poema de Baudelaire sobre a perda da aureola apenas
indica uma das modalidades do choque que penetrou a vida moderna e
impede, para Benjamin, a construção da Erfahrung, experiência autênti-
ca, capaz de articular a tradição e o passado ao presente. Já a teoria da
reprodutibilidade técnica e a teoria da passagem para o registro pós-
aurático no campo das artes também devem ser lidas no seu momento de
filosofia da história, na medida em que Benjamin fala no seu artigo de
1936 de um “abalo violento da tradição” causado por esta
reprodutibilidade39. Benjamin deduz do estado de onipresença dos cho-
ques na sociedade moderna a necessidade de um método de pesquisa e
de um trabalho de Darstellung, apresentação, desta pesquisa, condizentes
com esta nova realidade. Este é, de certo modo, o seu “salto tigrino” no
céu da teoria. Daí a centralidade do conceito de “montagem” no seu
trabalho sobre as passagens de Paris. O tempo-do-agora, que marca sua
nova teoria da escritura histórica, é o que resta ao homem submetido à
fragmentação da tradição. Benjamin desenvolveu um método de traba-
lho à altura da humanidade na era do estado de exceção. Justamente as
reflexões epistemológicas contidas nas fichas do Trabalho das passagens
também indicam um aprofundamento tanto do método benjaminiano de
trabalhar com os extremos, como de seu projeto de se manter próximo aos
fenômenos e não dissolvê-los na média ou mediocridade dos conceitos
tradicionais. O conceito de colecionador que ele desenvolveu então,
desdobra a noção de alegorista, do livro sobre o Trauerspiel, como aquele
que, como vimos, recolhe e salva as ruínas do histórico.
Para finalizar esta apresentação da questão do estado de exceção em
Benjamin, não podemos deixar de citar algumas das suas teses de 1940.

39
Cf. Seligmann-Silva, “Após o ‘Violento Abalo’. Notas sobre a arte – relendo Walter Benjamin”.
228 Márcio Seligmann-Silva

Aqui ele levou às últimas conseqüências tanto o seu método como a sua
concepção da história. Na sexta tese lemos com relação ao procedimento
do historiador: “Articular o passado historicamente não significa
reconhecê-lo ‘como ele de fato aconteceu’. Significa apropriar-se de uma
recordação como ela relampeja no momento do perigo”40. Benjamin exige
do historiador presença de espírito para este ato tanto epistemológico
como político. O “momento do reconhecimento” de que a tese cinco
fala, é o momento do conhecimento no qual devemos conseguir reconhe-
cer uma imagem do passado que passa diante de nós rapidamente41. Ao
estado de exceção onipresente corresponde uma ação excepcional visan-
do à libertação. O historicismo correspondia a uma visão da história etapista
e progressista: seu adepto era o burguês satisfeito com o trajeto histórico.
Benjamin apresenta o ponto de vista não propriamente oposto, mas total-
mente outro, já que explode com aquela estrutura de pensamento.
Para tanto, ele utiliza novamente uma metaforologia teológica. Revo-
lucionar muitas vezes pode significar resgatar o “passado”. Este é sempre
o caso em Walter Benjamin. Ele fala na tese seis de um Messias que vem
não como salvador, mas sim como vencedor do Anticristo. Novamente
poderíamos pensar em Schmitt e em sua teoria (maniqueísta) do político
como um estado de luta entre inimigos. Como Jacob Taubes destacou:
“Na luta contra o Historismo Carl Schmitt concordava com Walter Ben-
jamin, ou, mais exatamente: Walter Benjamin concordava com Carl

40
Benjamin, Gesammelte Schriften I, p. 695.
41
Cf. ainda a tese de número quatorze: “A história é objeto de uma construção cujo local não é o
tempo homogêneo e vazio, mas sim o preenchido pelo tempo de agora [Jetztzeit]” (GS I, p.701). Nesta
mesma tese Benjamin faz uma reflexão sobre a moda como modo de citação do passado, que ela
concilia com o faro para o atual. Neste sentido ela seria um “salto tigrino [Tigersprung] no passado”.
O problema é que a moda se dá sob a regência das classes dominantes. Seu movimento, no entanto,
corresponde, na história, à citação, nas revoluções, de momentos anteriores. Para Benjamin, a
revolução postulada por Marx promoveria um tal salto, Sprung, no “céu da história”. Também a tese
seguinte trata da ruptura. Ela introduz uma importante reflexão sobre o calendário e os dias de
festa: temas privilegiados da teoria do Estado de Exceção. A tese se inicia com as palavras: “A
consciência de arrebentar [aufzusprengen] o continuum da história é própria das classes revoluci-
onárias no momento da sua ação. A Grande Revolução introduziu um novo calendário. O dia em
que um calendário se inicia funciona como um acelerador histórico. E, no fundo, ele é o mesmo dia
que sempre volta sob a figura dos feriados, que são dias de comemoração” (Id.).
Walter Benjamin: o estado de exceção... 229

Schmitt”42. Mas é na oitava tese43, que o conceito de estado de exceção


aparece com todo o seu significado:

A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘Estado de Exceção’, no qual nós vivemos,
é a regra. Precisamos atingir um conceito de história que corresponda a isto. Então
teremos diante de nós como nossa tarefa provocar o efetivo Estado de Exceção; e deste
modo melhorará a nossa posição na luta contra o fascismo. A sorte deste depende não
em última instância, que seus opositores lutem contra ele em nome do progresso como
uma norma histórica. – A admiração de que as coisas que nós vivenciamos “ainda” são
possíveis no século XX, não é filosófica. Ela não está no início de um conhecimento, a
não ser de que a idéia de história, de onde ela provém, não pode mais ser sustentada44.

Já a famosa tese 9 sobre o anjo da história apresenta novamente o histó-


rico como um inesgotável acumular de destroços de uma mesma e eterna
catástrofe-tempestade a que denominamos “progresso”. Podemos imaginar
o anjo desta tese como o Deus detentor da violência pura do ensaio de
1921. Mas este Deus está agora impotente: não pode intervir no processo
histórico, estancá-lo e colher os destroços. Ao estado de exceção como
norma, Benjamin opõe uma sociedade inteiramente outra, assim como no
ensaio de 1921 ele tinha em vista uma sociedade livre do poder mítico da
esfera jurídica. Olhando suas idéias hoje, mais de meio século depois, só
podemos constatar consternados o quanto ele estava certo em sua descri-
ção da nossa sociedade – e também em seus sonhos de libertação.

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Suhrkamp, vol. II: Aufsätze, Essays, Vorträge, 1974. pp. 179-203.

42
Taubes, Ad Carl Schmitt: Gegenstrebige Fügung, p. 26.
43
Taubes, comentando a oitava tese, escreveu: “Os vocábulos fundamentais de Carl Schmitt são
introduzidos por Walter Benjamin, recebidos e revertidos no seu oposto”. Mas em seguida ele introduz
outra importante aproximação entre as esferas de pensamento destes dois autores: “O ‘Tempo-de-agora’
[Jetztzeit], uma monstruosa abreviação do tempo messiânico, determina tanto a experiência da história
de Walter Benjamin como a de Carl Schmitt, ambas contêm uma concepção mística da história, cujo
ensinamento essencial consiste na relação da ordem sacra com a ordem profana. Id., p. 28.
44
Benjamin, Gesammelte Schriften I, p. 697.
230 Márcio Seligmann-Silva

. “Crítica da Violência. Crítica do Poder”, em BENJAMIN, Walter.


Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie. Trad. e org. de Willi
Bolle. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1986. pp. 160-75.
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Recebido em maio de 2007.


Aprovado em junho de 2007.

Márcio Seligmann-Silva – “Walter Benjamin: o estado de exceção entre o político e o estético”.


Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 205-230.
Estranhos estrangeiros: poética
da alteridade na narrativa
contemporânea brasileira
Rita Olivieri-Godet

A gente só enxerga o que está preparado para ver.


Bernardo Carvalho, Mongólia

Il n’y a pas de solution à l’Etrangeté. Elle est éternelle et radicale.


Ce n’est même pas le problème de vouloir qu’elle le soit. Elle l’est.
C’est ça l’Exotisme radical. C’est la règle du Monde.
Jean Baudrillard, La transparence du mal

A partir da leitura de O enigma de Qaf (2004) de Alberto Mussa,


Mongólia (2002) de Bernardo Carvalho e Budapeste (2003) de Chico
Buarque, discutiremos o que identificamos como uma das modalidades
da ficção contemporânea brasileira – a poética da alteridade –, interrogan-
do o confronto com o lugar do estranho como processo de ampliação do
espaço imaginário nacional além de suas íntimas fronteiras. A experiên-
cia da alteridade como ponto de partida do processo de criação inaugura
uma dupla perspectiva entre o intra e o supranacional, cruzando olhares
entre a cultura brasileira e a estrangeira em foco, colocando-as em rela-
ção, questionando as armadilhas do etnocentrismo. A ficção se constrói
labirinticamente em busca do Outro, exibe seus artifícios e inscreve a
diferença nas suas escolhas formais, transformando o escritor em persona-
gem, multiplicando os níveis narrativos e os pontos de vista e intensifi-
cando o caráter lúdico da experiência abissal da linguagem através da
materialidade dos signos opacos da língua estrangeira. Estranhamento,
deslocamento de referências identitárias e culturais, jogo entre o verda-
deiro, o falso e o verossímil, transgressão de fronteiras entre o real e o
imaginário, não raro essas narrativas mergulham numa atmosfera onírica
de inquietante estranheza, para tentar captar talvez o não assimilável do
234 Rita Olivieri-Godet

Outro, o que Lévi-Strauss chama de “o ponto cego da diferença” ou, no


sentido contrário, o próprio ponto de onde o sujeito olha.
Explicitando as fontes que me levaram a pensar a poética da alteridade,
além de Freud, Lévi-Strauss, Bakhtin, Kristeva, Todorov, cujos escritos
embasam a concepção da identidade como um fenômeno relacional, parto
das reflexões do escritor bretão-francês Victor Segalen sobre o exotismo, o
diverso, a diferença1, e dos trabalhos recentes de autoria de Francis Affergan2
e Jean-Marc Moura3 sobre a literatura exótica, assim como da releitura da
obra de Segalen feita por Marc Gontard. O que aproxima esses autores é o
objetivo de libertar o termo exotismo de sua ideologia colonial e/ou turística,
para resgatar o sentido etimológico do prefixo “exo”, como assinala Marc Gontard
no seu ensaio sobre Segalen: “a noção de Exotismo designa a experiência da
alteridade no sentido mais geral do termo”4. O Exotismo é, para Segalen, o
sentimento do Diverso. Para Jean-Marc Moura, “a literatura exótica cultiva o
que Aristóteles chamava de o possível extraordinário”5; ele concebe o exotismo
como a exploração das virtualidades da linguagem provocada pelo encontro
de uma outra cultura, de uma outra sociedade, de uma realidade estrangei-
ra6. Mas enquanto Moura situa sua pesquisa no âmbito da imagologia questi-
onando a representação do estrangeiro a partir do imaginário europeu, a refle-
xão de Segalen situa-se num nível mais geral e conceitual, relacionando o
Exotismo com a noção de alteridade e com a percepção do diverso:

L’Exotisme n’est donc pas une adaptation; n’est donc pas la compréhension parfaite d’un
hors-soi-même qu’on étreindrait en soi, mais la perception aiguë et immédiate d’une
incompréhensibilité éternelle. Partons donc de cet aveu d’impénétrabilité. Ne nous flattons
d’assimiler les mœurs, les races, les nations, les autres; mais au contraire réjouissons-nous
de ne pouvoir jamais; nous réservant ainsi la perdurabilité du plaisir de sentir le Divers7.

1
Ver em Segalen, Essai sur l’exotisme.
2
Cf. Affergan, Exotisme et altérité.
3
Moura, La littérature des lointains: Histoire de l’exotisme européen au XXe siècle e Exotisme et lettres
francophones.
4
Gontard, Victor Segale: une esthétique de la différence, p. 13: “[...] la notion d’Exotisme désigne
l’expérience de l’altérité au sens le plus général du terme”.
5
Moura, op. cit., p. 12.
6
Id., p. 19.
7
Segalen, op. cit., p. 35.
Estranhos estrangeiros 235

Esta visão reabilitadora do exotismo enquanto alteridade irredutível


fornece pistas esclarecedoras sobre os processos de figuração do estran-
geiro nos três romances em questão, como veremos mais adiante. O que
surpreende é a atualidade do pensamento de Segalen, nessas notas escri-
tas entre 1904 e 1918, sobretudo se tivermos em mente o contexto
etnocentrista e a ideologia imperialista reinante na Europa do início do
século XX. Essa questão da alteridade irredutível repercute nos traba-
lhos de pensadores atuais da segunda metade do século, como Roland
Barthes que, ao tratar as modalidades de figuração do estrangeiro, iden-
tifica como uma das formas possíveis, a figuração “paradoxal” que remete
a uma diferença ativa, a um encontro com o desconhecido que nos ajuda
a descobrir nossa própria extranéité8. Jean Baudrillard, por sua vez, retoma
a idéia do exotismo radical, da estranheza e da irredutibilidade eternas,
apontando assim para a irredutível singularidade do Outro. Por outro
lado, os ensaios de Moura são fundamentais para pensar “o uso literário”
do estrangeiro na literatura européia, mas não somente. Eles delineiam
uma tipologia da literatura exótica na confluência da história cultural,
das estruturas do imaginário e das orientações narrativas, constituindo-
se numa contribuição indispensável para os estudos que se dedicam à
representação do estrangeiro e às complexas relações interculturais.
A produção romanesca brasileira não tem por tradição a travessia das
fronteiras nacionais. Pelo contrário, apresenta-se autocentrada, voltada para
o questionamento da formação histórica da nação, expondo as relações de
força que determinam a construção de projetos identitários diversos e an-
tagônicos. Mesmo quando uma parte significativa da produção recente
desloca o espaço nacional, evitando a “grande narrativa”, baseada na ins-
crição de um referencial histórico para interrogar a formação e o destino da
nação, preferindo fixar-se no espaço da cidade cosmopolita e nos fenôme-
nos de sociedade do tempo presente, o olhar continua sendo posto na terra
brasileira. Até mesmo quando a ação do romance está situada em terras
estrangeiras, o objetivo primeiro desse olhar cruzado continua sendo as
imagens de uma realidade brasileira que se revela através do contato com
o Outro, através do olhar do Outro. Esta constatação também é válida

8
Ver o comenário de Moura sobre o assunto, em La littérature des lointains... (op. cit.), p. 20.
236 Rita Olivieri-Godet

quando se trata de uma outra vertente importante da atual produção ro-


manesca brasileira, as narrativas que tematizam a imigração e colocam em
diálogo, no espaço nacional, códigos culturais diversos. É possível identifi-
car nessas duas últimas vertentes evocadas, uma estratégia de
questionamento identitário especular, apoiada no confronto com o Outro,
nas relações entre identidade e alteridade. Os três romances sobre os quais
nos debruçamos têm em comum o fato de radicalizarem essa estratégia,
deslocando o foco do questionamento em direção ao estranhamento pro-
vocado pelo confronto com o Outro, embora em graus diferentes, podendo
variar de um paralelismo relativamente equilibrado (Budapeste) entre o
aqui (referente nacional) e o alhures (referente estrangeiro), passando por
uma predominância explícita do alhures (Mongólia), embora o confronto
com o aqui permaneça, até atingir o quase total apagamento da referência
explícita ao aqui (O enigma de Qaf). A travessia das fronteiras nacionais se
dá por caminhos tortuosos e labirínticos em busca de referentes de uma
geografia imaginária da diferença cultural, sondando o enigma do estra-
nho estrangeiro. A poética da alteridade privilegia a diferença cultural, a
encenação da outridade, a representação de formas de alteridade irreconci-
liáveis. Nesse sentido, ela exibe uma das funções da literatura, ou um dos
seus limites, segundo Jean Bessière, o de dizer o indizível do Outro, o de
anunciar a presença do Outro invisível, a simbolização da espera do Outro:

Par quoi la leçon, qui s’apprend de la littérature, est patente: toute frontière est une
transparence à cause de l’obscurité même qu’elle désigne et qu’elle impose, tout
effacement – éventuellement symbolique comme l’indique la textualisation que note
l’ethnologie – des frontières est, à raison de la transparence alors établie, la certitude de
l’obscurité, de la frontière, et de l’autre9.

A poética da alteridade, ao encenar a travessia das fronteiras culturais,


possibilita uma subjetivização dessas fronteiras, aderindo, assim, à pers-
pectiva psicanalítica que considera a alteridade como parte integrante
do mesmo. Freud, no seu célébre artigo “L’inquiétante étrangeté”10 de-

9
Bessière, “Y a-t-il des limites de la littérature? La littérature contemporaine et le destin paradoxal
des frontières”, p. 221.
10
Freud, “L’inquiétante étrangeté”, pp.163-210.
Estranhos estrangeiros 237

fende a tese da imanência do estranho no familiar, o que leva Julia Kristeva


a afirmar, na sua releitura do ensaio freudiano, que o “estrangeiro nos
habita”: “Inquiétante, l’étrangeté est en nous: nous sommes nos propres
étrangers – nous sommes divises”11. As narrativas que abraçam a poética
da alteridade se articulam em torno da possibilidade de nos reconhecer-
mos no Outro, de descobrirmos, ao sermos confrontados a modos de
alteridade perturbadores, os limites do irreconciliável que está em nós. A
experiência da alteridade não é a assimilação do Outro, mas a experiên-
cia da diferença que contribui para o conhecimento do ser, “o poder de se
conceber outro”12. A problemática identitária torna-se mais densa e mais
complexa nessas narrativas que ultrapassam a dimensão sócio-histórica,
característica do questionamento identitário do espaço nacional, para se
abrirem a uma interrogação existencial e metafísica projetada na busca
de si e de um lugar para si, num tempo presente que acena para o indiví-
duo com a redução ao mesmo – sua dissolução na massa uniforme da
homogeneização – ou o condena a se refugiar na sua diferença – sua de-
sesperada solidão ou sua assimilação aos guetos. A leitura dos três roman-
ces colocará em evidência esses e outros elementos característicos da
singularidade de cada uma das obras no seu processo de construção de
uma poética da alteridade.

O enigma de Qaf: a arqueologia literária do ser


Dos três romances, O enigma de Qaf é o que explora de maneira mais
radical a irredutível singularidade do Outro. A narrativa impõe ao leitor
brasileiro um triplo deslocamento: espacial (o Oriente Médio); temporal
(o período pré-islâmico) e estético (a incorporação de códigos literários
estrangeiros). A assimilação de uma tradição artística estrangeira reforça
a sensação de estranhamento de um sistema simbólico muito distante dos
referentes da cultura brasileira. Essa escolha corresponde ao que Jean-
Marc Moura identifica como uma das formas do exotismo contemporâ-
neo, o “exotisme ekphrastique”. Apoiando-se no conceito retórico de
“ekphrasis”, o autor define a “ekphrasis exotique” como a “descrição lite-

11
Kristeva, Etrangers à nous-mêmes, p. 268.
12
Segalen, op. cit
238 Rita Olivieri-Godet

rária de uma obra de arte (real ou imaginária) pertencente às tradições


estéticas de uma outra cultura, descrição que freqüentemente dá origem
a uma incorporação”13.
É essa incorporação de elementos temáticos e estruturais pertencen-
tes a uma certa tradição literária oriental que observamos em O enigma
de Qaf. A ficção está centrada na reconstituição de uma tradição literá-
ria milenar e legendária, a dos sete Poemas suspensos da era pré-islâmica,
“período áureo dos poetas do deserto”. Poemas que pela extraordinária
beleza “foram riscados em peles de camela e mereceram ser suspensos da
grande Pedra Preta que ainda existe em Meca, para ali penderem até se
eternizarem na memória dos beduínos” (EQ14, p. 12). Tradutor dos Poe-
mas suspensos, o escritor-personagem elabora sua própria versão da vida
legendária dos poetas que estava traduzindo. A ficção transita pelas refe-
rências arcaicas da cultura árabe, estabelecendo pontes entre o passado
e o presente, o Oriente e o Ocidente, entre um espaço estrangeiro e
longínquo e o espaço afetivo e íntimo da infância do narrador-persona-
gem, entre o real e o imaginário. Espaço intervalar portanto, no qual as
verdades são relativizadas por múltiplas versões de múltiplas histórias. A
vida, num processo infinito, se gastando em se contar. Narrativa que se
quer como uma travessia de fronteiras, proporcionada por uma viagem
retrospectiva através da memória afetiva da infância do narrador que
guarda histórias de tempos imemoriais da humanidade, em busca da de-
cifração do eterno enigma do existir. Viagem imaginária na qual vida e
escrita se confundem num mesmo mistério: “Os versos da Qafiya eram
compostos à medida que al-Gatash vivia o enredo narrado no poema”.
Em O enigma de Qaf, um narrador-personagem, duplo do escritor, es-
pecialista apaixonado pela cultura árabe pré-islâmica, tenta provar, con-
trariando a tradição canônica, a existência de um oitavo “Poema suspenso”,
Qafiya al Qaf – que teria sido escrito por um grande poeta, Al-Ghatash.
O poema, assim como a vida do poeta Al-Ghatash, foi-lhe transmitido
pelo seu avô Nagib, libanês que imigrou para o Brasil e que sabia de cor
os versos da Qafiya al-Qaf, título que se pode traduzir por “poema, cuja

13
Moura, op. cit., p. 11.
14
A sigla EQ indicará as referências à obra O enigma de Qaf, de Alberto Mussa.
Estranhos estrangeiros 239

rima é a letra qaf, que trata da montanha chamada Qaf.” As lacunas da


memória do avô são preenchidas pelo esforço do narrador-personagem em
reconstituir os versos e a vida do poeta através de suas pesquisas e pere-
grinações no Oriente Médio, colhendo lendas e dados históricos que lhe
permitam construir a versão original do poema, o qual ele vai expondo no
texto labiríntico com o qual o leitor se defronta. Inserção num universo
cultural que revela mitos, costumes e sensibilidades distantes e diversas,
interrogando o que de humano persiste para além das fronteiras culturais
heterogêneas. Arqueologia da literatura que se desdobra em arqueologia
literária do ser e do estar no mundo, escavando a dimensão arcaica do
humano através dos símbolos enigmáticos da escrita. Símbolos que se
tornam ainda mais ilegíveis pela escolha em manter uma certa opacidade
linguística, utilizando-se de letras do alfabeto árabe, e pelo gosto em
cultivar jogos de palavras e adivinhações, ampliando, dessa forma, o jogo
para decifrar o texto do enigma.
A estrutura da obra é perfeitamente geométrica. Ela é também frag-
mentada e propõe uma variada ordem espacial na medida em que permi-
te a leitura dos capítulos em ordem diversa, as várias combinações virtu-
ais multiplicando as possibilidades de significações. A principal história
está organizada em 28 capítulos, número de letras do alfabeto árabe, com
capítulos intermediários intercalados e alternados, intitulados Excursos
(“narrativas mais ou menos relacionadas à intriga dominante” – EQ, p.
9) e Parâmetros (“lendas de heróis árabes comparáveis ao protagonista e
poetas como ele” – EQ, p. 10), o todo precedido por uma Advertência e
seguido por um Post scriptum do autor textual. A narração da história
principal é assumida tanto pelo personagem do escritor especialista em
literatura pré-islâmica, como pelo poeta Al-Ghatash, protagonista da his-
tória, explorando “os efeitos de coalisão de temporalidades (tempo pre-
sente/tempo passado/tempo de ficção)”15, recurso característico, segundo
Jean-Marc Moura, das narrativas contemporâneas que se constroem em
torno de uma viagem retrospectiva, relatando um encontro com a
alteridade. A estrutura polifônica, móvel e labiríntica, seguindo a trilha

15
Ver Moura, Exotisme et lettres francophones, p. 34.
240 Rita Olivieri-Godet

de uma tradição mallarmaica de busca obsessiva do Livro perfeito, sempre


inacessível, retomada por grandes autores latino-americanos como Borges
e Cortázar, introduz a autoreflexividade como característica fundadora
dessa ficção, reforçada pela presença do escritor-personagem no universo
romanesco. Este reflete sobre a construção de sua obra, a partir do
agenciamento de elementos que pertencem a uma tradição literária es-
trangeira, fazendo da experiência da alteridade o ponto de partida do seu
processo de criação.
O enigma de Qaf se quer uma aventura da linguagem, mise en abyme
de múltiplas histórias, narrativa nômade como os beduínos do deserto,
repetindo um gesto milenar: contar histórias para driblar o tempo e a
morte, como nas Mil e uma noites, “a primeira tentativa humana para
representar o infinito” (EQ, p. 22). Interrogar a vida da humanidade,
resgatar a poesia da vida, as paixões humanas, através do gesto ancestral
da escrita: “Tout au monde existe pour aboutir à un livre” (“Tudo no
mundo existe para terminar num livro”), escreveu Mallarmé. A poesia da
prosa de Alberto Mussa está na capacidade de nos colocar diante da
estranha beleza do desconhecido. Essa experiência nos faz vislumbrar a
consciência da linguagem, que emana da obra, enquanto potencialidade
e limite do humano. Nesse sentido, várias passagens do romance são
dedicadas ao enigma da escrita árabe, refletindo sobre as relações entre o
signo linguístico e seu significado, entre o sistema fonético e o gráfico,
entre os sentidos literal e metafórico das palavras. Preocupações plena-
mente justificadas ao nível da intriga do romance, que apresenta o escri-
tor-personagem Mussa (EQ, p. 65) como estudioso e tradutor dos Poemas
suspensos, o que coincide com um dado do real, pois se sabe que o escritor
Alberto Mussa escreve O enigma de Qaf enquanto traduz os Poemas
suspensos. O ato de escrever surge assim como um ato de tradução no
sentido amplo da palavra, tradução de culturas e de sensibilidades diver-
sas. Colocando em cena o escritor em situação de produção da escrita, a
ficção abre-se para uma verdadeira arqueologia da escrita, interrogando
sua origem e sua relação com a passagem do tempo: a escrita como mímese
dos acontecimentos, como arte de fixar o passado de maneira irreversível
ou de prever o futuro, máquina do tempo e fábrica de mitos; o enigma
não tem solução, mas a busca persiste, num movimento circular e infini-
to. O enigma de Qaf diz da perenidade dessa busca:
Estranhos estrangeiros 241

– segundo a crença dos antigos beduínos – a Terra era concebida como um plano
circular, à feição daqueles pães. E que Qaf era uma enorme montanha mítica, que
circundava, delimitava e mantinha a Terra em equilíbrio (EQ, p. 118).

Desde a primeira vez me fascinou aquela história de um poeta que cruzava o deserto em
busca de uma mulher desconhecida, de um enigma relacionado a uma fabulosa monta-
nha circular, de um gênio caolho e cego que podia viajar no tempo (EQ, p. 20).

O fascínio pelo desconhecido impulsiona a viagem do personagem-


escritor, num gesto que imita, na sua essência, a busca perpretada por Al-
Ghatash, nas suas travessias do deserto. No seu percurso, o poema e o
poeta se constituem em objetos do desejo do escritor-personagem, assim
como o era a mulher velada Layla para Al-Ghatash. A tentativa de
reconstituição dos versos da Qafiya e da vida heróica e legendária de Al-
Ghatash emergem como alteridade desejante do eu, fascinado pelo enig-
ma do diverso. O texto adere àquilo que Victor Segalen considera como
uma “estética do diverso”, perscrutando a essência do Outro, exaltando
a diferença como fonte de beleza. A adesão à viagem imaginária dilui as
fronteiras entre o real e o imaginário e é também uma forma de o escritor-
personagem cifrar suas mensagens, criar sua versão da história, construir-
se e existir pela originalidade do seu Verbo, se confrontar com o Outro e
correr o risco de se descobrir, estrangeiro a si mesmo: “Tenho medo de
conhecer uma versão diferente da Qafiya. Tenho medo de conhecer ou-
tra versão de mim” (EQ, p. 266).
Ao final da narrativa, criador e criatura se confundem, a experiência
literária surge como elemento redefinidor e amplificador dos possíveis
destinos do eu, levando o escritor-personagem a confessar seu medo do
inquietante estrangeiro que o habita.

Mongólia: o ponto cego da diferença


Com Mongólia, Bernardo Carvalho tece uma rede de imagens e de
símbolos sobre culturas da Ásia Oriental, a China e particularmente “os
confins da Mongólia”, que se inscreve nessa modalidade de representar
as relações com o Outro que identifico como poética da alteridade. Num
processo semelhante ao que ocorre no romance de Alberto Mussa, a cons-
trução do texto de Mongólia alimenta-se da experiência da alteridade. O
242 Rita Olivieri-Godet

texto atualiza o gênero da narrativa de viagem, questionando o olhar


etnocêntrico a partir da relação do homem ocidental com culturas dis-
tantes da sua. No cruzamento de olhares entre Ocidente e Oriente, o
sujeito ocidental é também o objeto do olhar do Outro. O privilégio da
descrição ótica está relacionado com o questionamento sobre as formas
de percepção e de representação do real, servindo-se de referentes es-
trangeiros para interrogar o abismo entre as palavras e as coisas, o eu e o
Outro, a dificuldade de dizer o Outro, de traduzir culturas: “A realidade
é mais complexa do que parece. Não compreendemos nada do que vemos
na China” (M16, p. 23), afirma o narrador principal. O papel temático
fundamental exercido pelo personagem do fotógrafo tem a ver com esse
questionamento que a ficção desenvolve sobre a “tradução” do real, so-
bre a relação entre o referente e a imagem que a linguagem (re)produz.
Para além dessa reflexão sobre os limites inerentes à própria natureza
da linguagem, o texto exibe um dos paradoxos do tempo presente, o fato
de vivermos numa sociedade marcada pelo consumo das imagens e ao
mesmo tempo, por essa mesma razão, pela invisibilidade do Outro: o olhar,
circunscrito à superfície das coisas, olha, mas não vê. Como observa Roland
Barthes, a imagem generalizada “desrealiza completamente o mundo hu-
mano dos conflitos e dos desejos, sob pretexto de ilustrá-lo”17. Daí as ima-
gens estereotipadas que são projetadas sobre o Oriente e sobre o Brasil.
Por um lado, a ficção interroga o diverso a partir de uma figuração do
estrangeiro determinada pela doxa para evidenciar a imagem deformada
da realidade resultante do olhar etnocêntrico; por outro lado, ela explora
a radicalidade do diverso, o “possível extraordinário” cuja diferença am-
plia o potencial do ser.
A trama intrincada do romance é conduzida por um narrador-perso-
nagem que, num processo radical de mise en abyme, mimetiza os dois atos
fundadores do literário: a escrita e a leitura. Ex-embaixador brasileiro na
China, aposentado, ele tem em mãos os diários de um fotógrafo profissio-
nal que desaparecera nos Montes Altai, oeste da Mongólia, diários que

16
As referências à obra Mongólia, de Bernardo Carvalho, serão feitas doravante pela sigla M,
seguida do número de página.
17
Barthes, A câmara clara, p. 174.
Estranhos estrangeiros 243

lhe foram entregues por um diplomata, que ele havia encarregado de


investigar o desaparecimento do rapaz. Possui também as anotações de
viagem do Ocidental, cognome dado ao diplomata pelos mongóis, que
reproduz seu itinerário de busca do brasileiro desaparecido. O narrador
confessa seu antigo projeto de se tornar escritor, que só se realiza quando
ele toma conhecimento da morte do Ocidental, assassinado no Rio de
Janeiro, pelos sequestradores de seu filho, no momento em que ia pagar o
resgate. Este é o fato que o leva a ler os diários, de cuja existência ele
havia esquecido, e a escrever “em sete dias”, a contar do dia seguinte do
enterro do Ocidental, o texto que ele apresenta como simples resultado
da leitura dos diários: “A bem dizer, não fiz mais do que transcrever e
parafrasear os diários, e a eles acrescentar a minha opinião” (M, p. 182).
Mais uma vez, como observamos em relação a O enigma de Qaf, estamos
diante de uma narrativa fragmentada, labiríntica, que multiplica os ní-
veis narrativos e os pontos de vista e projeta o escritor como personagem
no universo da ficção para melhor exibir os processos de decodificação da
leitura e de codificação da escrita, convidando o leitor a participar in-
tensamente da experiência abissal da linguagem, juntando as peças do
puzlle para decifrar enigmas como: as relações entre os três personagens,
o desaparecimento do fotógrafo, o universo geográfico e cultural radical-
mente distintos do brasileiro. Texto polifônico que faz dialogar versões e
visões diferentes das terras e costumes orientais, marcando a voz de cada
narrador com caracteres tipográficos específicos, Mongólia é também um
texto palimpsesto.
Palimpsesto porque existe um processo de superposição de textos na
construção do romance. O texto primitivo corresponde aos diários do
fotógrafo profissional que “tinha sido contratado por uma revista de turis-
mo no Brasil para atravessar a Mongólia de norte a sul” (M, p. 33). O
fotógrafo, apelidado de Buruu nomton, “aquele que não segue os costu-
mes e não cumpre as regras, o que vocês chamam de desajustado no
Ocidente” (M, p. 61), relata seu itinerário, evocando suas impressões de
viagem sobre paisagens, costumes, encontros. A ficção sublinha sua brus-
ca mudança de comportamento quando, depois de ter cumprido sua mis-
são, descobre o culto à deusa Narkhagid e a história de um velho lama,
resolvendo permanecer na Mongólia e voltar aos Montes Altai para des-
vendar o enigma religioso: “Estava obcecado pela idéia de descobrir e
244 Rita Olivieri-Godet

fotografar o lugar exato em que o velho lama teria visto o Antibuda [na
forma de Narkhajid], em 1937, enquanto tentava fugir dos comunistas”
(M, p. 96).
O diário do Ocidental rasura e reescreve o texto anterior ao interpre-
tar e comentar as impressões do fotógrafo: “O Ocidental ficava cada vez
mais intrigado com a história que ia montando aos poucos, com os dois
diários, como um quebra-cabeça. Pulava de um para o outro” (M, p. 69).
Registra assim sua própria visão das paisagens e das pessoas que encon-
tra, ao seguir os passos do fotógrafo. Como o fotógrafo, ele passa a perse-
guir a revelação do enigma, os elementos que ligam a história do velho
lama e a lenda da deusa Narkhajid. O Ocidental, rejeitado pelo pai, é
irmão do fotógrafo e essa é a razão pela qual ele tenta recusar a missão
que o narrador, embaixador da China, lhe tinha confiado. É o seu misté-
rio. Enfim, o texto do narrador-escritor coloca em diálogo os textos ante-
riores e apresenta igualmente sua versão da história e sua visão sobre a
China, só compreendendo no final o porquê da recusa do Ocidental.
O questionamento da figuração do estrangeiro segundo a doxa se faz
preferencialmente através do uso do estrangeiro pela indústria do turis-
mo. O personagem do fotógrafo profissional remete aos novos significados
que a viagem adquire num mundo cada vez mais uniformizado, onde as
fronteiras culturais se dissolvem e evoluem para uma massificação. As-
sim, nesse mundo ávido de novidades, os circuitos massivos da indústria
do turismo abrem-se para o exotismo das paisagens e povos longínquos (o
“turismo étnico”), de preferência em extinção, que cultivam tradições
milenares como os nômades do oeste da Mongólia, com a experiência do
diverso restringindo-se às imagens rígidas e aos simulacros que desfigu-
ram sua essência:

Há apenas catorze famílias nesta região, o equivalente a cerca de cinquënta pessoas. Os


tsaatan estão desaparecendo. Há mais uns sessenta do outro lado de Tsaagannur, na
região chamada taiga oriental, que é mais accessível e onde há até uma família que fatura
em cima dos eventuais turistas, posando como modelo de exotismo para não decepci-
onar a expectativa de olhares ocidentais (M, p. 43).

A obra incorpora a tensão entre o sentido comum do exótico enquan-


to espetáculo e o que aponta para uma alteridade radical, que não se
Estranhos estrangeiros 245

rende. A citação acima denuncia ironicamente a falsa busca do Outro


que diferencia a viagem do turista do percurso do “exote” (Segalen)18.
Não há mais espaços a descobrir, na medida em que o novo não cessa de
ser exibido em sua superficialidade: o desconhecido torna-se lugar-co-
mum através das imagens que o exploram. Nada escapa à lógica do mer-
cado, nem os povos em extinção que vivem em regiões longínquas; estes
estão inseridos num mundo em transformação e compreendem os valores
que guiam os atores da globalização, procurando tirar proveito, venden-
do sua imagem de estrangeiro. A imagem fotográfica fixa o Outro para
sempre na sua estrangeiridade exótica, o olhar esbarra na aparente
materialidade, o Outro oferecendo-se em espetáculo, expropriado da sua
essência. Como assinala Roland Barthes, a fotografia tem o poder de imo-
bilizar o referente, isolando-o do movimento do mundo19. O que se recu-
pera dessas paisagens e de seus habitantes são os clichês: “A Mongólia é o
país da fotografia” (M, p. 42), constata Ganbold, o guia mongol. O país
que só pode ser captado através dos clichês fotográficos que duplicam o
real, mas não desvelam sua singularidade. A ficção insiste na figuração
de uma alteridade impossível de compreender: Mongólia, China, países
de um Oriente invisível, impossível de traduzir:

Seus argumentos podiam até ser interessantes, como hipótese, para um estrangeiro
que nunca tivesse posto os pés na China, mas eram de uma arrogância, de um
etnocentrismo e de uma ignorância constrangedores até para um sujeito como eu,
que também não sabia grande coisa mas pelo menos não me atrevia a tamanhos vôos
cegos. Eram argumentos que só expunham o seu desespero de saber que nunca
poderia compreender aquela cultura, que havia todo um mundo do qual ele nunca
poderia participar, por mais que se esforçasse, por mais que batesse o pé (M, p. 25).

18
Marc Gontard, refletindo sobre a dialética entre identidade e alteridade a partir de Paul Ricoeur
(Soi-même comme un autre), propõe uma semiótica do mesmo e do outro identificando dois programas
narrativos básicos: o programa-narrativo-tipo do olhar turístico, sensível à estranheza sob a moda-
lidade superficial do pitoresco e um segundo programa narrativo que opõe ao idem o outro, sob sua
forma absoluta, vê reforçado seu ipse neste distanciamento exótico do desejo, em que se reconhece
o exote. Mongólia explora o cruzamento desses olhares, expondo o parodoxo entre esses programas
narrativos. Ver Gontard, “O desejo do outro: por uma semiótica do olhar exótico”, p. 176.
19
Ver Barthes, op. cit., p. 15.
246 Rita Olivieri-Godet

O ponto cego da diferença, os elementos da cultura do Outro que nos


escapam porque não estamos preparados para vê-los, pode levar a produ-
ções de imagens etnocêntricas, reduzindo o Outro ao mesmo no afã de
traduzi-lo: “Muito do que ele dizia da China, sem nenhum conhecimento
de causa, era uma posição distorcida do que conhecia do Brasil” (M, p.
32). Do mesmo modo, o Ocidental (o apelido exacerba a diferença) é
também vítima desse olhar cego; estrangeiro sempre, “devorado” pelo olhar
do outro, brasileiro às vezes; no entanto, os mongóis que ele encontra
nada conhecem do Brasil além do futebol e da violência, muitos ignoram
até a existência desse país. O Ocidental, apesar da consciência que tem
da sua incapacidade de compreender a cultura chinesa, está sempre jul-
gando, avaliando sua evolução histórica, sua produção artística, suas di-
ferentes etnias e culturas. Assim, o romance inscreve descrições da natu-
reza, informações sobre povos ancestrais e crenças religiosas, alusões a
conflitos históricos passados e recentes como a dissolução do partido co-
munista mongol, a queda do regime e a abertura para o Ocidente, mer-
gulhando o leitor num universo que lhe é apresentado pelo viés de pers-
pectivas diversas. A superposição de pontos de vista intensifica a comple-
xidade do ato de narrar: sair de si para se abrir ao Outro supõe caminhos
tortuosos, solitários. Para se achar, é preciso interiorizar a viagem, inau-
gurar um percurso próprio, sem guias, perseguindo a irremediável dife-
rença do Outro.
É dessa forma que leio o segundo itinerário do fotógrafo. Seu fascínio
não é pelas paisagens grandiosas, esplêndidas que ele captou para a revista
de turismo, cumprindo uma missão profissional, mas pelo que ele não con-
seguiu compreender, pela linguagem do mito que escapa à sua compreen-
são, mas fala à sua subjetividade. A segunda viagem do fotógrafo é uma
viagem que persegue a foto única, a foto de um certo lugar cuja existência
ele projeta na sua imaginação a partir do relato mítico. Uma viagem em
busca de um objeto inacessível, impulsionada por uma “iluminação », um
desejo arrebatador, inexplicável. Somente um Buruu nomton, um desajustado,
“aquele que não segue os costumes e não cumpre as regras” é capaz de
partir em busca do Outro invisível, perseguindo “o prazer de sentir o Diver-
so” (Segalen), “a vertigem do mais diferente que o diferente” (Jean
Baudrillard). No percalço do fotógrafo, refazendo esse itinerário radical, o
Ocidental compreende, no final, o significado da viagem:
Estranhos estrangeiros 247

Todos os olhos estão voltados para fora, e quando me viro, também vejo o seu vulto na
soleira da porta. É uma sensação estranha. Não era o que eu esperava. Não era o que
tinha imaginado. Não era assim que eu o via. Estou há dias sem me ver, há dias sem me
olhar no espelho, e, de repente, é como se me visse sujo, magro, barbado, com o cabelo
comprido, esfarrapado. Sou eu na porta fora de mim. É o meu rosto em outro corpo,
que se assusta ao nos ver (M, p. 176).

A viagem conduz à emergência de uma alteridade: entre identificação


e estranhamento, o Ocidental vislumbra a face oculta do estrangeiro.

Budapeste: a literatura, uma alter-identidade


Na sua perspicaz resenha crítica sobre Budapeste de Chico Buarque,
José Miguel Wisnik identifica a obra como um romance do duplo, centrado
na identidade do sujeito como problema e enigma20, comentando os vári-
os motivos do duplo e chamando a atenção para o fato de que na criação
literária “o escritor é o duplo de si mesmo, por excelência e por definição,
aquele que se inventa como outro e que escreve, por um outro, a própria
obra”. E acrescenta: “Literatura é uma alteração da identidade, uma
questão de outridade”21. Esta afirmação coaduna-se com a perspectiva
de uma poética da alteridade cujos indícios, que venho tentando identifi-
car neste trabalho como característicos de um tipo de narrativa contem-
porânea, apontam recorrentemente para as relações identitárias entre as
instâncias do eu e do outro. O que para mim constitui o engenho maior
desse romance de Chico Buarque, no seu processo vertiginoso de
autoreflexividade, vem a ser o questionamento sobre a identidade da voz
autoral: quem fala na ficção? Quem é esse Outro a um só tempo familiar
e estranho? Quem é esse estrangeiro que habita o autor? Que tipo de
relações se estabelecem entre o eu do discurso e o eu empírico? Budapeste
cria o personagem do ghost writer, o autor anônimo de textos sob enco-
menda, para dramatizar ao extremo essas questões e projetar a figuração
da voz autoral como ficção de palavras. O romance transita dessa forma
entre a problematização de elementos que dizem respeito à natureza da

20
Wisnik, “O autor do livro (não) sou eu”, disponível em: http://www.ig.br/paginas/hotsites/
chicobuarque/ wisnik.html.
21
Id.
248 Rita Olivieri-Godet

literatura e o questionamento do seu papel social, interrogando o lugar


do escritor e da literatura, nas atuais sociedades de mercado.
Em um outro trabalho que discute a ficcionalização da voz autoral22,
assinalo a tendência à auto-reflexividade das narrativas contemporâne-
as, relacionando-a com a consciência da impossibilidade de escrever de
maneira “inocente”. Decorre daí, a problemática do autor projetada no
universo da ficção. É possível constatar, na produção contemporânea, uma
espécie de inflação da figura do autor, remetendo a todo tipo de máscaras
do escritor. Na perspectiva das convenções literárias, todo autor é
ficcionalizado; todo autor escreve como se fosse um outro, isso é próprio
da natureza do trabalho do escritor, a tensão entre o eu oculto e o eu
revelado. Budapeste atualiza o tema da identidade autoral e da represen-
tação ficcional, discutindo as fronteiras entre o autêntico e o falso, o real
e o imaginário, a partir da diáspora do sujeito na busca de um lugar para
si. Máscara ou face verdadeira, onde se situa a identidade da voz auto-
ral? Qual o estatuto do sujeito de enunciação literário? Como situar o
enunciado literário na medida em que este não é fundamentado na vera-
cidade do objeto de enunciação?
A estrutura do romance é especular e está exposta desde a capa do
livro. Nesta, o título Budapeste e o nome do autor Chico Buarque con-
trastam com a contracapa, onde aparece o título Budapest em letras góti-
cas e o nome do falso autor Zsoze Kósta, com as frases escritas de trás para
frente. Narrativa que interroga o processo de construção da identidade
de um sujeito cindido entre duas línguas, o português e o húngaro, duas
mulheres, Vanda e Kriska, duas cidades, Rio e Budapeste, irremediavel-
mente perdido nesse jogo especular entre José Costa/Zsoze Kósta. Em
Budapeste, José Costa, sócio-proprietário da Cunha e Costa Agência Cul-
tural, autor anônimo de textos sob encomenda, vive no Rio, é casado
com uma apresentadora de telejornal com quem tem um filho. A autobi-
ografia O ginógrafo, que escreve para um alemão que vive no Brasil, tor-
na-se um best-seller. Numa escala em Budapeste, quando voltava de um
congresso de escritores anônimos, apaixona-se pelo mistério da língua
húngara, pelos seus sons ininteligíveis. Decide então fazer uma viagem

22
Olivieri-Godet, “La fictionnalisation de la voix auctoriale dans A casa dos budas ditosos”, pp. 143-57.
Estranhos estrangeiros 249

de férias a Budapeste, que se prolonga quando conhece e se apaixona por


uma professora de húngaro que lhe revela aos poucos o mistério da lín-
gua. A partir de então, sua vida divide-se entre o Rio de Janeiro e Buda-
peste, entre Vanda e Kriska. Obcecado pelo aprendizado da língua hún-
gara de forma que pudesse dominá-la totalmente, sem guardar nenhum
vestígio de sotaque estrangeiro, podendo igualar-se na expressão escrita
aos escritores húngaros, e até superá-los, consegue tornar-se também um
ghost writer na Hungria. O best-seller em húngaro é um livro de poemas,
Tercetos secretos, que Zsoze Kósta escreve para um poeta húngaro, mas
que é para ele o seu livro, o que ele escreve à sua maneira, sem dissimu-
lar, e não à sua “maneira de escrever pelos outros”. O volume de poesia é
para Costa/Kósta a afirmação de sua capacidade de se apropriar do mun-
do numa língua estrangeira, a prova de ter sido bem sucedido na sua
busca de inserir-se numa outra cultura. Kriska, no entanto, ao comentar
que o poema tem um certo exotismo, que não parece húngaro, que “é
como se fosse escrito com acento estrangeiro” (B23, p. 141) aponta para o
limite da experiência do Outro, a irremediável diferença que o constitui,
sua impenetrabilidade. Enquanto sujeito empírico, o ponto de partida da
experiência da alteridade de José Costa é falso porque ele se fundamenta
num processo de aculturação, de negação de sua própria língua e cultura
para simular um outro. De volta ao Brasil, sente-se também estranho, es-
trangeiro, distante de sua cultura, esquecido de todos, excluído das rela-
ções familiares e sociais. O final do romance o projeta novamente em Bu-
dapeste, falso autor malgré lui de uma autobiografia, Budapest, que virou
best-seller, escrita pelo ex-marido de Kriska, ghost writer como o narrador-
protagonista. Mise en abyme, vertigem de narrativas encastradas, texto que
projeta o desejo impossível de abolir o abismo entre a linguagem e a reali-
dade, desejo de uma escrita mimética, presente no universo de O enigma
de Qaf, capaz de fazer coincidir enunciado literário e experiência real do
sujeito, relato e vivência: “E no instante seguinte se encabulou, porque eu
lia o livro ao mesmo tempo que o livro acontecia” (B, p. 174).

23
Quando se fizer referência ao romance Budapeste, de Chico Buarque, utilizar-se-á a sigla B,
seguindo-se o número de página.
250 Rita Olivieri-Godet

O eixo do confronto cultural entre o aqui e o alhures não está nos


cenários urbanos de Budapeste e do Rio. Apesar de assinalar as marcas
topográficas que lhes são próprias, não é na exterioridade da paisagem
que o sujeito faz a experiência do estranhamento de uma cultura distan-
te da sua. Para José Costa, o exótico, no sentido positivo que Segalen
atribui a esse termo e que tem a ver com a atração pelo Diverso, pela
diferença enquanto fonte de beleza criativa, está no enigma da língua
húngara. Essa é a estratégia adotada visando chamar a atenção para a
opacidade dos signos lingüísticos, inclusive os da língua portuguesa, le-
vando o sujeito a fazer a experiência do estrangeiro naquilo que ele tem
de mais familiar, sua própria língua: “E, dentro da loja de sucos eu fazia a
mais extensa das minhas viagens, pois havia anos e anos de distância
entre a minha língua, como a recordava, e aquela que agora ouvia, entre
aflito e embevecido” (B, p. 155).
A ficção incorpora aqui uma das modalidades atuais da viagem literá-
ria, segundo Jean-Marc Moura, a inversão do olhar etnográfico24, através
da qual o viajante reinventa o olhar distanciado nos espaços que lhe são
mais familiares, desautomatizando assim a percepção da rotina do quoti-
diano. É na relação entre sujeito e língua que o romance centra seu
questionamento sobre a identidade, colocando em evidência o fato de
que a construção e a representação da realidade passam pela linguagem
que apreende, ordena e imprime significação ao mundo. Na ânsia de
ultrapassar a fronteira entre dizer o Outro e ser o Outro, ser Outro, num
vai-e-vem que duplica deslocamento espacial e deslocamento existenci-
al, José Costa perde suas referências: sujeito deslocado, descentrado, ator
assumindo várias identidades, José Costa encarna a identidade indefini-
da do escritor, o eu do discurso, aquele que finge ser Outro, que faz a
viagem na estrangeiridade do Outro. O paradoxo do narrador-protago-
nista do romance remete à ambiguïdade do ato ficcional, como comenta
Sônia L. Ramalho de Farias na sua exaustiva leitura de Budapeste: “Expe-
rimentando-se como um outro para que assim possa revelar aquilo que se
oculta, o ghost writer constitui o próprio ‘sinal ficcional’ do como se”25.

24
Ver Moura, op. cit., p. 58.
25
Farias, “Budapeste: as fraturas identitárias da ficção”, p. 393.
Estranhos estrangeiros 251

Estrangeiro: visão e limites


Ao delinear as características de uma poética da alteridade como uma
das vertentes atuais da literatura contemporânea brasileira, analisando suas
estratégias em três romances publicados após a virada do século, o que me
interessa sobretudo é observar os novos caminhos que se abrem à literatura
para dizer a alteridade – interrogando a identidade de suas formas narrati-
vas, os procedimentos de uma retórica da alteridade – e para figurar o
estrangeiro – examinando os contornos da problemática identitária. Do
que foi visto, fica claro o interesse desses escritores em situar a ação em
espaços pouco conhecidos, terras ignotas, além das fronteiras nacionais.
Mesmo quando permanece, em parte, no interior dessas fronteiras, o efeito
de distanciamento está presente. Talvez o que essas narrativas denotem,
exacerbando o confronto com a alteridade, seja num primeiro momento, o
interesse em interrogar as relações interculturais, chamando a atenção para
as múltiplas formas de ser e de estar no mundo, para as fronteiras culturais
fluidas, num mundo em pleno processo de hibridação, no sentido que Néstor
Canclini atribui ao termo26. Num segundo momento, fica patente que os
elementos da poética da alteridade induzem a uma arquelogia não só de
culturas e de povos, mas da linguagem enquanto elemento que constitui o
ser. Isso justifica suas estruturas vertiginosas, refazendo percursos circula-
res, projetando, no universo ficcional, a figura do escritor e sua busca ob-
sessiva da decifração de um enigma. Viagem, portanto, que toma o estran-
geiro e sua irredutível diferença para significar o indizível, conduzindo a
narrativa para o limite do irrepresentável. Assim procedendo, exibe
concomitantemente os limites e o poder da literatura, este se revelando no
seu caráter visionário em conceber uma viagem original, em conduzir à
surpresa do inesperado, interrogando o enigma insondável da vida.

Referências bibliográficas
AFFERGAN, Francis. Exotisme et altérité. Paris: Presses Universitaires de
France, 1987.
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

26
Cf. Canclini, Culturas híbridas, p. III: “entiendo por hibridación procesos socioculturales en los
que estructuras o prácticas discretas, que existían en forma separada, se combinan para generar
nuevas estructuras, objetos y prácticas”.
252 Rita Olivieri-Godet

B ESSIÈRE , Jean. “Y a-t-il des limites de la littérature? La littérature


contemporaine et le destin paradoxal des frontières”, em CÔTÉ, Jean-
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WISNIK, José Miguel “O autor do livro (não) sou eu”. Disponível em http:/
/www.ig.br/paginas/hotsites/chicobuarque/ wisnik.html.

Recebido em fevereiro de 2007.


Aprovado em maio de 2007.

Rita Olivieri Godet – “Estranhos estrangeiros: poética da alteridade na narrativa contemporânea brasi-
leira”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 233-252.
Cultura de massa: o caso José Agustín
Helena Bonito Couto Pereira

Sin duda la literatura mexicana contemporanea es en verdad


revolucionaria, en la medida en que niega el orden establecido, el
léxico que quisieron imponer y, le opone a su vez, el lenguaje de la
renovación, el desorden y el humor.

Joong Kim Lee

A narrativa literária moderna conduz-se por princípios estabelecidos


por autores que são considerados seus pilares, como James Joyce, Marcel
Proust, T. S. Eliot, Franz Kafka, que efetivaram o rompimento com as
estéticas decimonônicas, atreladas ainda à busca de alguma ordem den-
tro de um mundo caótico. Os movimentos de vanguarda do início do
século passado também contribuíram de modo fundamental para confi-
gurar a narrativa contemporânea. Em linhas gerais, o emprego de ironia e
paródia, o experimentalismo formal, por meio da ruptura com a sintaxe
tradicional, em textos fragmentários com múltiplos sentidos, o gosto pela
transgressão são algumas das marcas do texto moderno. Vale o mesmo
para componentes temáticos como a problematização do real a partir de
anti-heróis ora em confronto aberto contra um mundo hostil, ora exer-
cendo diferentes possibilidades de reação, como, por exemplo, o mergu-
lho na vida psíquica, na memória, na interioridade.
A partir dos anos 1960, o modernismo como corrente estética deu mar-
gem a uma controvérsia, ainda em curso, sobre dois possíveis caminhos – na
narrativa, como na literatura, na arte e, mais amplamente, na sociedade
contemporânea – quando entraram em voga termos como “pós-modernis-
mo” e “pós-modernidade”. Neste estudo referimo-nos unicamente ao pri-
meiro, porque seu emprego se consagrou no campo das artes e da literatura.
Uma das dificuldades conceituais para definir a passagem do moder-
no ao pós-moderno reside no dimensionamento possivelmente exagerado
que alguns teóricos fazem do modernismo, cuja durabilidade, por isso
mesmo, parece inesgotável. No dizer de Marshal Berman,
254 Helena Bonito Couto Pereira

ser moderno é experimentar a existência pessoal e social como um torvelinho, ver o mundo
e a si próprio em perpétua desintegração e renovação, agitação e angústia, ambigüidade e
contradição: é ser parte de um universo em que tudo o que é sólido desmancha no ar. Ser
um modernista é sentir-se de alguma forma em casa em meio ao redemoinho, fazer seu o
ritmo dele, movimentar-se entre suas correntes em busca de novas formas de realidade,
beleza, liberdade, justiça, permitidas pelo seu fluxo ardoroso e arriscado1.

Ao atribuir ao modernismo componentes como desintegração e renova-


ção, agitação e angústia, ambigüidade e contradição, Berman revela, tal-
vez involuntariamente, um desejo de perenidade para o modernismo que, a
crer em suas palavras, perderia os vínculos que tem, por se tratar de um
movimento estético, com o processo histórico. Além disso, o pós-modernis-
mo defronta-se com a má-vontade de numerosos teóricos que, em uma
concepção reducionista, tendem a defini-lo equivocadamente apenas como
face cultural e artística da sociedade globalizada e massificada.
Para que a controvérsia seja compatível com as dimensões deste estu-
do, recorremos às ponderações de Huyssen:

Registra-se, em importante setor de nossa cultura, uma notável mudança nas formações de
sensibilidade das práticas e de discurso que torna um conjunto pós-moderno de posições,
experiências e propostas distinguível do que marcava um período precedente. O que
precisa ser mais amplamente esclarecido é se essa transformação tem gerado verdadeira-
mente novas formas estéticas nas artes ou se ela predominantemente recicla técnicas e
estratégias do próprio modernismo, reinscrevendo-as num contexto cultural modificado.2

Sem ter a pretensão de dar a última palavra em questão tão complexa,


posicionamo-nos claramente em favor da definição de pós-modernismo como
atitude estética que, com base na reutilização ou reciclagem de técnicas e
estratégias do modernismo, não só as reinscreve em um contexto cultural
modificado, como aponta Huyssen, mas também as intensifica e radicaliza.
Em nosso entender, o emprego renovado e subversivo de técnicas ampla-
mente utilizadas desde os movimentos de vanguarda, e sua inserção crítica
nesse novo contexto, o da sociedade massificada, basta como justificativa
para caracterizar uma corrente pós-moderna na ficção.

1
Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar, p. 328.
2
Huyssen, “Mapeando o pós-moderno”, p. 20.
Cultura de massa 255

No caso específico da literatura latino-americana, devem-se levar em


conta as diferentes condições do surgimento do pós-modernismo em rela-
ção a seus congêneres nos Estados Unidos e na Europa. De todo modo,
nos romances latino-americanos observa-se, como afirma Coutinho,

a presença mais intensa da mídia extraliterária, a acentuação da fragmentação do texto e da


polifonia de vozes narrativas, a presença freqüente do pastiche, substituindo muitas vezes
a paródia da narrativa anterior, a consciência hiperbólica do texto enquanto tal, e (...) a
ênfase sobre o ecletismo estilístico, a retomada de textos do passado, a intertextualidade
acentuada, o tratamento parodístico e o exercício constante da metalinguagem3.

Embora Coutinho aponte a ocorrência efetiva de manifestações pós-mo-


dernas a partir da década de 1970 e particularmente na seguinte, inúmeros
estudos consideram os anos 1960 o verdadeiro período de “desbravamento”,
como afirma Raymond L. Williams. Esse renomado pesquisador apresenta
José Agustín como um autor que contribuiu para o advento do pós-modernis-
mo no México, situando De perfil no conjunto das obras de transição entre
moderno e pós-moderno, juntamente com Farabeuf, de Salvador Elizondo, e
Gazapo, de Gustavo Sainz. Nesse sentido deve ser compreendido o presente
estudo sobre De perfil, publicado por José Agustín em 1966. Devo esclarecer,
antes de mais nada, que comecei a estudar as narrativas de Agustín mais
detalhadamente ao perceber o quanto seus procedimentos narrativos e suas
inovações formais têm em comum com o que se encontra em determinadas
narrativas brasileiras do mesmo período, como, por exemplo, Rubem Fonseca,
Ignácio de Loyola Brandão, Caio Fernando Abreu ou João Gilberto Noll.
Os primeiros romances de Agustín, entre eles De perfil, contribuíram
de maneira decisiva para marcar o lugar da literatura em “la Onda”,
movimento em que se reuniu espontaneamente boa parte da juventude
mexicana dos anos 1960, expressando suas atitudes de rebeldia como fi-
zeram milhões de jovens no mundo todo. Joong Kim Lee, estudioso de sua
obra, aponta ironicamente que, segundo determinados críticos, “la Onda”
resultou da norteamericanização cultural, da devoção pelo rock e do gosto
geracional pela marijuana4.

3
Coutinho, “O pós-modernismo e a literatura latino-americana”.
4
Lee, Cultura y sociedad de México en la obra de José Agustín, p. 15.
256 Helena Bonito Couto Pereira

A literatura desse período foi radicalmente inovadora porque os ro-


mancistas trouxeram para o interior do texto as associações lingüísticas
de seus contemporâneos, mantendo o registro humorístico ou lúdico que
as caracterizava. A linguagem constitui um componente fundamental, e
é desse ponto de vista que os críticos analisam os textos criados no âmbito
de “la Onda”, sobretudo porque a literatura reproduz a linguagem que as
pessoas de diversas classes sociais empregam em situações informais de
seu cotidiano. É oportuno ressaltar que se trata de um movimento literá-
rio que possui outros elementos integradores de igual importância, visto
que, por abrigar numerosas vozes, o texto pode expressar, ainda que indi-
retamente, uma visão crítica da sociedade mexicana de seu tempo.
Nesta reflexão considero, de acordo com o que afirmam Williams e
Rodríguez em La narrativa posmoderna en Mexico (2002), que Agustín é
um dos escritores mais originais e criativos de “la Onda”. Seu romance
De perfil constitui um dos marcos do advento do pós-modernismo na lite-
ratura mexicana. Sem negar o valor lingüístico e a capacidade criadora
de Agustín, deve-se reconhecer a existência de antecedentes, já que
uma renovação se manifestava nessa literatura desde o início dos anos
1960, em romances de autores consagrados como Carlos Fuentes e José
Emilio Pacheco. Esses dois escritores foram pioneiros na introdução de
temas e formas que se renovam de um modo mais radical, distanciando-
se do boom. A partir de “la Onda”, surgiram reações contra o modernis-
mo, manifestadas em textos ficcionais de jovens escritores irreverentes
como Agustín, Elizondo e Gustavo Sainz. Com seus romances – respecti-
vamente De perfil, Farabeuf e Gazapo, é possível fixar uma passagem do
moderno ao pós-moderno. Quanto à referida narrativa de Agustín, afir-
mam Williams e Rodríguez que

nació en el ascenso de varias manifestaciones juveniles sobre la cultura popular (el gusto
por el rock, el cine, el melodrama televisivo y las tiras cómicas) y del cuestionamiento de
las estructuras sociales y políticas del país, que tendría como año de crisis a 1968. Como
se aprecía, la juventud, que antes no contaba con voz ni expresión propias, emerge desde
su marginación social, política y estética para ocupar un espacio ya irrenunciable5.

5
Williams e Rodríguez, La narrativa posmoderna en Mexico, p. 34.
Cultura de massa 257

Essas narrativas relacionam-se diretamente com a cultura de massa e o


contexto da juventude de um período crítico, que teria em 1968 o seu ponto
culminante. Antes de comentar como Agustín trabalha com componentes
da cultura de massa em De perfil, faz-se necessária uma breve conceituação
sobre esse fenômeno que marca as sociedades contemporâneas.

Cultura de massa
Sem que seja necessário o retorno direto às teorias de Adorno e
Walter Benjamin, podemos considerar a cultura de massa como um fe-
nômeno mercadológico pelo qual os produtos culturais são expostos a
um enorme contingente de possíveis consumidores. Umberto Eco ten-
tou sistematizar essa questão, primeiramente situando a cultura de massa
no banco dos réus e apresentando, a seguir, uma série de argumentos
que poderiam justificá-la. Entre suas acusações, destaca-se o papel dos
meios de comunicação de massa junto a um público “incônscio de si
mesmo como grupo social caracterizado”6, que, por isso mesmo, não pode
manifestar exigências. Além disso, Eco os inclui num circuito comerci-
al em que

sujeitos à “lei da oferta e da procura”, dão ao público somente o que ele quer, ou, o que
é pior, seguindo as leis de uma economia baseada no consumo e sustentada pela ação
persuasiva da publicidade, sugerem ao público o que este deve desejar. (...) encorajam
uma visão passiva e acrítica do mundo (...), entorpecem toda consciência histórica (...)
e assumem os modos exteriores de uma cultura popular mas, ao invés de crescerem
espontaneamente de baixo, são impostos de cima7.

Ao optar pela defesa da cultura de massa, o crítico italiano ressalta


que muitos a consideram válida porque a homogeneização do gosto con-
tribuiria para “eliminar diferenças de casta e unificar as sensibilidades
nacionais”. Desse ponto de vista, a cultura de massa “não é estilística e
culturalmente conservadora, pois introduz novos modos de falar”, levan-
do a uma renovação. Dessa forma, as obras culturais poderiam tornar-se
disponíveis a preços acessíveis a um público mais amplo.

6
Eco, Apocalípticos e integrados, p. 40.
7
Id., ibid.
258 Helena Bonito Couto Pereira

Embora expresse o desejo de superar as duas posições conflitivas, Eco


discute o problema da cultura de massa nestes termos:

ela é hoje manobrada por “grupos econômicos” que miram fins lucrativos, e realizada
por “executores especializados” em fornecer ao cliente o que julgam mais vendável, sem
que se verifique uma intervenção maciça dos homens de cultura na produção8.

É nesse último sentido que compreendemos a presença da cultura de


massa na América Latina, que tem um imenso mercado exposto a uma
produção cultural heterogênea, de baixa qualidade e sem controle.
Muitas das narrativas escritas nos últimos decênios na América Lati-
na recriam, ficcionalmente, situações do cotidiano nas metrópoles. O
espaço urbano tornou-se o principal cenário para as narrativas literárias,
entre outras razões, porque o século passado testemunhou a diminuição
da população rural e o inchaço, na proporção inversa, das cidades. Talvez
nunca na história da humanidade tenham ocorrido êxodos e migrações
internas como nesse período.
Nas grandes concentrações urbanas pontifica a classe média. Como se
sabe, em diversos países latino-americanos esse segmento sócio-econô-
mico cresceu numericamente como resultado do desenvolvimento
tecnológico, da expansão industrial – que se pode definir, às vezes, como
modernização forçada pela ação de governos autoritários – e pelo incre-
mento da burocracia.
O mundo urbano contemporâneo é o local mais propício para a cultu-
ra de massa. A industrialização que se consolidou nos anos 1950 trouxe
consigo o acesso aos bens que constituíam o sonho de consumo da classe
média, em especial a televisão, que passou a criar e veicular novos produ-
tos culturais. Ao contrário do que as aparências indicam, não houve uma
efetiva democratização, pois a modernização promovida por diversos go-
vernos não conseguiu ir além da mera massificação. Em lugar do que
poderia ter sido o acesso a bens culturais de qualidade, instalou-se uma
indústria cultural de entretenimento, sem o menor compromisso com a
educação ou o aprimoramento do público. Aumentou significativamente
o número de pessoas que consomem bens culturais, porém a qualidade

8
Id., p. 51.
Cultura de massa 259

desses bens decai na mesma proporção, pois o único objetivo é baratear os


custos da produção para aumentar o lucro. Como os controladores da
mídia não sofrem qualquer controle por parte da sociedade, não são elei-
tos e dependem apenas das benesses dos governantes para manterem seus
empreendimentos, resulta

o comprometimento, principal e a qualquer custo, desse grande aparato de produção,


reprodução e difusão de informações auditivas e visuais primeiramente com a rentabi-
lidade de seu negócio e, em segundo lugar, com a manutenção do sistema econômico e
do regime político que lhe possibilita garantir também no futuro a manutenção de seus
lucros e de seu enorme poder. Sob o aspecto da lucratividade do empreendimento, esse
aparato dissemina produtos de baixíssima qualidade, cujo custo é reduzido (...) sob a
alegação de que o grande público deseja apenas entretenimento e diversão9.

Dessa forma, é forçoso reconhecer a gravidade da predominância, na


América Latina, de uma indústria cultural que deveria trazer benefícios à
maioria, mas que, na prática, apenas garante privilégios para uns poucos.
Os romances dos anos 1960 incorporaram os componentes da sociedade
de consumo e em particular dos meios massivos de comunicação, mencio-
nando-os freqüentemente, como se comenta adiante. Afirma Lee que deles
(do rádio e da televisão) “se nutre la narrativa de “la Onda”, estableciéndose
una estrecha conexión entre la realidad concreta y la realidad literaria de
la novela”10. O aspecto mais interessante da presença da cultura de massa
em De perfil reside no aparente conflito entre a adesão a diversas formas de
consumo, em especial a música e o cinema, e, em sentido oposto, a crítica
que se pode inferir com respeito a esse mesmo mundo da massificação.

De perfil
O narrador autodiegético em De perfil é um estudante de classe média,
na fase preparatória para a entrada na universidade. Ele contracena, na
maior parte do tempo, com personagens de sua família e também com jo-
vens da sua própria e de outras classes sociais, sejam mais ricos, como Queta
Johnson, que corresponde aproximadamente a uma protagonista feminina,

9
Duarte, Teoria crítica da indústria cultural, p. 8.
10
Lee, op. cit., p. 102.
260 Helena Bonito Couto Pereira

sejam mais pobres, como o amigo com o qual o narrador-protagonista pas-


seia sem rumo, a pé ou de bicicleta, em meio ao movimento de uma grande
cidade. Seus dias são desperdiçados em festas com música e bebida ou em
passeios por diferentes bairros, porém tais atividades não são suficientes
para preencher o vazio de seu cotidiano nesse período de transição. O
enredo se constrói com recursos narrativos que, apesar de um tom pessimis-
ta, destinam-se, paradoxalmente, a provocar efeitos humorísticos.
Como romance de caráter essencialmente urbano, De perfil está
saturado de elementos da sociedade de consumo, dentre os quais comen-
taremos mais de perto os que se referem à cultura de massa. Apresentam-
se com suas próprias denominações publicitárias alguns dos produtos mais
desejados pelos jovens da época. Assim, há personagens que se exibem
em seus automóveis, como os que acompanham Queta Johnson em uma
espécie de séquito: “la seguían los pretendientes, pero sólo de opel para
arriba, mustangs en su mayoría...” (DP, p. 46)11, como afirma esse narrador,
com despeito, pois ele é muito jovem e ainda não tem carro. Outros fu-
mam “cigarros ráleigh” (DP, p. 17). Em mais de um ambiente se sente um
perfume, que pode associar-se às classes menos favorecidas, já que o quarto
da empregada “olía a perfume avon” (DP, p. 20).
As personagens podem ser identificadas por meio das bebidas que con-
somem, como descreve o narrador a propósito de uma reunião de família:
“Ah, los mayores llevaban desventaja. Eran: Humberto, Violeta (coñac),
mis tíos Luis e Ignacia (whisky), don Gordochistoso (vodka tónic), ge-
rente administrativo de Hoola y Burlón; y mi tía Gustava (campari)” (DP,
p. 156). A maneira irônica destina-se também às músicas preferidas do
narrador: a que ele se propõe a cantar em sua classe de inglês é anunci-
ada por ele como “Güer mai rin araun yur nec”, e devidamente corrigida
pelo professor para “Where my ring aound your neck...” (DP, p. 113).
Quando essas personagens vão ao cinema, nem sempre assimilam intei-
ramente as referências, como se observa em um diálogo entre o protagonista
– que, por circunstâncias de família, revela-se mais culto que a média dos
jovens com os quais convive – e, entre outros, com Queta Johnson. Esta
nem mesmo se dá conta de que, atuando de modo premeditado, corresponde

11
As referências à obra De perfil serão doravante indicadas pela sigla DP, seguidas do número da
página em que se encontram.
Cultura de massa 261

a uma versão fake de uma atriz hollywoodiana, quando diz: “Hace tiempo
he visto una película, no recuerdo como se llama, una mujer fumaba puros y
desde entonces juré que cuando pudiera, lo haría” (DP, p. 45).
A música ocupa um lugar à parte em De perfil, a começar pela própria
Queta, mostrada por um viés irônico (e às vezes cruel) como uma jovem
cantora que se julga, no mínimo, esplêndida. No primeiro dia, o protago-
nista vai com seu primo Octavio a uma festa que, embora ele ainda não
saiba, ocorre na casa de Queta, com quem ele terá uma aventura amoro-
sa. Nessa festa estão grupos de músicos (ou pseudomúsicos), que são re-
feridos pelo narrador por meio de paródia a conhecidos grupos de rock:

Un cuate, con cara de qué-fiesta-tan-fabulosa, me hizo plática y así me enteré de que el


conjunto à go-go los Suásticos había grabado su primer LP, y para festejarlo, invitaron a
sus amigos los Stinkin’ Suckers, los Bicles, los Descuajirongos y los Jalomarilús, que aún
no habian tenido esa suerte pero eran devotos refriteadores de los Beaceps (DP, p. 40).

Sobre esse cuate interlocutor haverá novas referências irônicas, nas


páginas seguintes, em que o encontramos como Hacedor de Plática, Hacedor
de Cháchara, Hacedor de Bemboreces, Hacedor Didioteces, Hacedor
Sandécico... Desse modo, os nomes próprios, de pessoas, locais e, no caso,
de conjuntos musicais, também participam do processo de subversão das
criações com que o mundo do consumo camufla seus propósitos essenci-
almente financeiros. Os nomes das bandas parodiam o que costuma ser
intencionalmente original e criativo, pois os conjuntos de música popular
quase sempre escolhem denominações que fazem referência a outros gru-
pos, seja para homenageá-los, seja para aproveitar-se de seu sucesso.
Alguns críticos observam que Agustín não foi criador, mas apenas usuá-
rio, da maior parte das inovações estilísticas que se encontram em seus ro-
mances. Ele as reproduz, aproveitando o que lhe proporcionam seus próprios
conhecimentos e os de seus companheiros de geração. É necessário ressaltar,
todavia, que ele intensifica o emprego dessa linguagem previamente existen-
te, acrescentando-lhe um modo irônico de referir-se a determinadas perso-
nagens e uma maneira fragmentária ou inesperada de apresentar suas refle-
xões, compatíveis com a pouca idade do protagonista, nesse caso. Em suma, é
indiscutível a originalidade de seus recursos narrativos. Ao lado da paródia
dos nomes próprios, por meio da adulteração irônica já demonstrada com o
262 Helena Bonito Couto Pereira

aborrecidíssimo Hacedor de Plática na primeira festa, o narrador inclui outros


procedimentos para a subversão do texto, como, por exemplo, a onomatopéia
paródica em relação a ritmos ou modismos. Não falta sequer o tom agressivo
referente à temática sexual, que é dominante no que tange a Queta:

Debo comprender que soy un arrinconado-retraído-pusilánime (y monigote y mudo)


aunque ande faroleando, queriendo apantallarlo porque tengo cita con la mancornadora
Queta Johnson; estoy demasiado chico, no comprendo las altibajas del Mundo Difícil y
Traicionero en que vivo. Pero no, ahi ando muy sabroso, muy farolón porque voy a
cafetear con Nalgas Johnson, hija de ricos que de pura leche ha podido grabar cantar
solista y hacer creer que canta cuando sólo berrea bastante horrible por cierto. Queta
Johnson no tiene idea de lo ques el arteeeee, no sabe cuanto trabajo les cuesta ser geniales
a los Beaceps, o a T.W.A. Debonair, o a Paty Flesh, cuya calidad innegable ha revolucio-
nado la música, el slop, el frug, el monkey, el grup, el flop, el sock, el jerk, el pricky y el beat
no sólo en los Estados Unidos, sino en el mundo entero (...). Queteja no hace más que
copiarlos, y mal. Por eso, del cocol me irá si sigo frecuentando a los Cretinos Suásticos,
quentre otras cosas, son comunistas feos, mochocomunistas y nazis y judíos (DP, p. 105).

A ironia final do fragmento acima demonstra como o narrador mescla


os componentes do consumo das camadas cultas e os das camadas
massificadas. Isso se expõe exatamente na hipérbole de sua discordância
face aos preconceitos de todo tipo, seja contra os comunistas, os nazistas
ou os judeus, como se os Cretinos suásticos (nem é preciso comentar, pela
obviedade, o alvo dessa ironia) pudessem ser tudo isso ao mesmo tempo,
ou se ser tudo ao mesmo tempo, como nas duas últimas linhas do exem-
plo, teria algum sentido...
Em outra cena, na festa em que conhece Queta, o protagonista apro-
veita um breve diálogo para expor sua diferença cultural em relação ao já
mencionado Hacedor de Plática, que se apresenta como músico:

Yo toco la batería, pero no he podido formar mi conjunto. Ahorita soy suplente del baterista
de los Suásticos, pero el maldito Rudolf no se ha enfermado ni una vez (...) ¿Tú que tocas?
– Nada – respondí.
Hacedor de Plática (...) deveras quería formar su conjunto para demostrar que los
tambores pueden ser el instrumento más suave de la música.
– Los congoleses deben pensar lo mismo – dije, recordando un disco de tamborazos
africanos (...)
Cultura de massa 263

– ¿Quiénes?
– Los congoleses.
No conozco ese conjunto (DP, p. 40).

Inicialmente, ao entrar em contato com Octavio, sobrinho de seus vizi-


nhos, o protagonista descreve desse modo um disco que o jovem lhe mostra:

El disco tenía escrito lo siguiente en la funda [ou seja, alguém havia escrito a mão –
conferir se é isso mesmo]
LET´S DO THE TEUTONIC BEAT!
THE BEACEPS SING IN GERMAN!
Y luego, con letras más pequeñas:
Twang Over Beethoven!
The Coral Craze!
Lyrics by Schiller!
Music by Beethoven!
Arr, by Lehmon-MacCarthy (DP, p. 25).

São intencionais as mesclas de referências, reiteradas por erros evidentes.


Alguém que teria escrito tudo isso sabe quem foram Beethoven e Schiller,
portanto, em princípio, saberia escrever corretamente Lennon –MacCartney.
A mistura de referências entre a cultura alta e a baixa faz parte da proposta
pós-moderna, e aqui também Agustín deixa evidente que sua intenção é
misturar, proporcionando uma visão irônica dos indivíduos pretensiosos.
Ainda quanto à música, é inegável a distância que o narrador faz
questão de estabelecer, marcando sua posição de um jovem que, apesar
de todas as transgressões, recebeu uma cultura geral própria das elites,
inclusive com conhecimentos de música clássica, o que não se pode afir-
mar, com certeza, ser o caso de outros pretensos músicos e até da protago-
nista feminina. A referência à ópera introduz a recriação paródica de um
jingle comercial, com o sentido totalmente subvertido e no qual se encon-
tra, mais uma vez, a associação entre as atitudes falsamente espontâneas
de Queta e uma representação cinematográfica previamente “ensaiada”:

Estoy hundido en el sofá beige. Aparece, por el comedor, Queta con una sonrisa
profesional, pasos lentos y medidos (música de fondo: marcha quemada de Aída),
camina hasta mí y dice:
264 Helena Bonito Couto Pereira

– Jaliscience tequila Aqualung sobre todos más profundo más sabor más buqué calidad
comprobada de empersamiento inemediato – de un sólo tirón.
O si no:
– Es Aqualung el tequila/que tomaban Mario y Sila/tiene un pegue inigualable/que se
hunde como sable/Aqualung tan sólo tome/hasta que usted desplome (DP, p. 130).

No exemplo acima, o entretecer de linguagens revela-se em sua riqueza:


ao lado da linguagem cinematográfica e da propaganda, o narrador ironiza o
sabor (“más sabor, más buqué, más calidad”) por meio de uma alusão ao
império romano (“tequila/que tomaban Mario y Sila”). Ocorre uma subver-
são das qualidades do produto de consumo (Aqualung), equiparado aqui ao
veneno que, segundo relatos históricos, era utilizado por poderosos para eli-
minar seus inimigos. Tudo isso demonstra, em nosso entender, que De perfil
contém, além de uma representação da linguagem contestadora dos jovens
de “la Onda”, uma crítica aos costumes, à sociedade mexicana dessa época
e ao mundo do consumo então em franca expansão.
Como é habitual entre jovens, o narrador cria jingles para os produtos,
sempre invertendo o sentido indicado pela propaganda. No primeiro exemplo
a seguir, o efeito é satírico, adotando-se aqui, para não entrar em uma con-
trovérsia conceitual, a sátira como recurso em que o alvo ridicularizado se
encontra no contexto, ou seja, fora do texto. É o caso de um creme embelezador,
cuja propaganda se pretende séria, pois uma leitura satírica jamais estaria nas
intenções dos publicitários que escreveram a mensagem. Esta, porém pode
ser lida de modo crítico, como faz o protagonista, que subverte seu sentido:

Ya en el camión, maldije por no haber traído un cuento o algo: me sé de memoria los


anuncios del camión. La Crema Tal satisface como la sal le limpia aquí y allá con toda
comodidad. Hay una mujer, com pretensiones de superbella, embarrándose Crema Tal
con una sonrisa que parece decir: ¡Vean qué fenomenal, ya estoy salada! Hasta se me
ocurrieron unos versuchos: Esta tarde en el camión – la mujer con Crema Tal – lucía
fenomenal – con esa crema brutal (DP, p. 10).

A hipérbole é o recurso pelo qual a subversão do texto ultrapassa o


jogo adolescente e comum de recriar mensagens divulgadas em rádio,
tevê e outdoors, como essa. No exemplo abaixo, no entanto, da sátira
passa-se ao grotesco. O narrador se apropria de uma mensagem comerci-
Cultura de massa 265

al que não pretendia, evidentemente, ser grotesca, ressaltando esse as-


pecto de tal maneira que o grotesco se hiperboliza. Com o emprego de
recursos usuais nos textos literários de modo hiperbólico, pode-se obser-
var como a narrativa pós-moderna se distingue da moderna:

Leí primero los pedazos de periódico que envolvían la cartera y luego reparé en un
anuncio que nunca había visto.

Siéntese y Siéntase a Gusto/SAPOL/ungüento o supositorio/para las molestias de/


ALMORRANAS/En caso de sangre consulte a su médico/De venta en algunas farmacias (...)

Pero seguía zumbando el anuncio de Sapol. (Siéntese y siéntase, al gusto, siéntese, aviéntese,
aliénese, consiéntase, furtiéntase, tiéntese, miéntese, briéntase, siéntase, no le saque) (...)
Se me ocurrió un poema, para no variar: El camión en las mañanas – llenito va de
almorranas – que se quitan con Sapol – ese ungüento del cocol (DP, pp. 70-1).

Possuidor de um fantástico arsenal de recursos narrativos, sempre des-


tinados a ampliar os efeitos humorísticos e satíricos, Agustín trabalha
com a cultura de massa “pelo avesso”. Desse modo consegue expressar
seu gosto pelo rock, sua inserção na geração contestadora de “la Onda” e
ao mesmo tempo desvendar parte do que se oculta aos consumidores.
Não há uma mensagem convidando os leitores ao consumismo nem ao
anticonsumismo: o romance apresenta situações e, por meio de um texto
irônico, satírico e fragmentário, aproveita para desconstruir seu sentido
original. Embora, na época, o escritor, ainda bastante jovem, talvez não se
desse conta do alcance de sua própria sátira, tendo escrito sob a impulsão
de um inconformismo ou rebeldia juvenis, ainda assim, o fato é que a
organização textual convida o leitor a exercer seu espírito crítico.
Esses relatos ficcionais, permeados de referências à cultura de massa e ao
mundo do consumo, estão bem longe de reproduzir uma visão ingênua ou
falsa, segundo a qual os bens de consumo contribuiriam para a felicidade de
todos. Ao contrário, a ironia e os demais recursos narrativos com que se
constroem levam seus leitores a ultrapassar a obviedade, reconhecendo ne-
les uma visão desencantada deste mundo de consumo e massificação. Pode-
se ler De perfil como um romance de relativo sucesso, resultante de uma
rebeldia juvenil, em uma linguagem que incorpora diversas vozes que repre-
266 Helena Bonito Couto Pereira

sentam diversos segmentos sociais. Não se pode, todavia, restringir o alcance


dessa obra a seu tempo, pois seu caráter pós-moderno se revela como
antecipador do que aconteceria na literatura mexicana nas décadas seguin-
tes. Tudo isso, que se manifesta muitas vezes em fragmentos desconstruídos e
caóticos, culminou, em anos recentes, com outras expressões romanescas em
que se multiplica a perda de referências e de identidade de indivíduos ex-
postos de tal forma ao bombardeio dos meios de comunicação de massa que
os valores estéticos, éticos ou espirituais não têm mais significado algum.

Referências bibliográficas
AGUSTÍN, José. De perfil. México (DF): Editorial Planeta, 1999.
BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1986.
COELHO, Marcelo. Crítica cultural: teoria e prática. São Paulo: Publifolha,
2006.
COUTINHO, Eduardo. “O pós-modernismo e a literatura latino-americana
contemporânea”, em . Literatura comparada na América Lati-
na. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2003.
DUARTE, Rodrigo. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva,
2001.
HUTCHEON, Linda. Teoria da paródia. Lisboa: Edições 70, 1996.
HUYSSEN, Andreas. “Mapeando o pós-moderno”, em et al. Pós-
modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
LEE, Joong Kim. Cultura y sociedad de México en la obra de José Agustín.
Guadalajara: Universidad de Guadalajara, 2000.
LIMA, Luiz Costa. Demanda dispersa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.
WILLIAMS, Raymond L. The postmodern novel in Latin America. New York:
St Martin’s Press, 1996.
e RODRÍGUEZ, Blanca. La narrativa posmoderna en Mexico. Xalapa
(México): Universidad Veracruzana, 2002.

Recebido em fevereiro de 2007.


Aprovado em abril de 2007.

Helena Bonito Couto Pereira – “Cultura de massa: o caso José Agustín”. Estudos de Literatura
Brasileira Contemporânea, nº. 29. Brasília, janeiro-junho de 2007, pp. 253-266.
Michel Laub – O segundo tempo
São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Igor Ximenes Graciano

Após a leitura do mais recente romance de Michel Laub, O segundo


tempo, uma pergunta se faz possível: o que há de contemporâneo na lite-
ratura contemporânea? Por mais simplista que esse tipo de questionamento
pareça, nele se revela (ou pelo menos se pretende revelar) a angústia da
crítica frente aos novos produtos literários, aos autores que despontam.
Na falta de um programa, ou de uma vanguarda auto-explicativa – como
no Brasil se viu desde a primeira geração romântica até o concretismo,
passando pelos modernistas de São Paulo – o novo surge como quem nada
quer, pelas beiradas, oferecendo-se sem estardalhaço. Daí vêm as outras
perguntas: o que há de “novo” na literatura contemporânea? Quais seus
“expoentes”? A tese inicial, diante de O segundo tempo, é que já são
velhas estas perguntas, e suas respostas, insignificantes. A literatura, ao
que parece, está para além do “novo”, ou, melhor, o novo nem sempre se
quer “inovador”.
Não se pretende propagar, com isso, que o conceito (o estado de espí-
rito?) de vanguarda envelheceu, porque isso todo mundo já sabe. Muito
menos se pretende refutar a ambição inovadora, uma vez que tal ambição
é o próprio motor (o combustível?) que move qualquer produção artísti-
ca. O que de fato envelheceu foi a pretensão de dizer o “que nunca foi
dito” por meio da forma “jamais imaginada”. O que está definitivamente
datado é a idéia do gênio criador concebendo a obra ímpar em sua bele-
za, mas que diz de todos os homens em todos os tempos: uma fábula do
romantismo e que perdura ainda em dias pós-modernos. Michel Laub, em
O segundo tempo, a despeito de uma estética contemporânea ancorada
na fragmentação desbragada, na escatologia, na superficialidade mili-
tante e autocrítica, enfim, a estética do novo que se diz novo, comete o
desplante de simplesmente contar uma história trivial, uma história (o
que é mais grave) composta de personagens descaradamente “humanas”,
livres de estereótipos e alegorias.
A partir de um referencial histórico, o “Gre-Nal do Século”, e uma
data bem delimitada, 12 de fevereiro de 1989, o enredo de O segundo
270 resenhas

tempo é contado por um narrador situado no presente e que narra tendo


por base o maior clássico da cidade de Porto Alegre, ocorrido na semifinal
do campeonato brasileiro daquele ano, entre os times Internacional e
Grêmio. A partida de futebol é crucial, assim como crucial é o momento
vivido pelo narrador, um garoto de 15 anos na iminência de assumir a
maturidade por carregar um segredo e por ter de revelá-lo ao seu irmão
caçula, Bruno. O segredo, aliás, é o mote do romance: o segredo familiar.
Saber da verdade sobre o pai, compreender as razões da mãe e, diante
disso tudo, proteger o irmão caçula, afinal “uma família não é mais do
que isso, um cuidar do outro, não deixar o outro sofrer, não abandonar o
outro, não trair, não pisar em cima” (p. 30), revelam a aproximação de
Laub da tradição do Bildungsroman, o romance de formação, pelo menos
em suas características básicas. Saber de um segredo e ter de lidar com
suas implicações constituem o caminho e o estágio final da trajetória do
protagonista, da criança ao adulto em que ele veio a se transformar:
A consciência emerge como espanto, depois perplexidade, depois num
incômodo que se transforma num impulso sem volta, então pela primeira
vez decido fazer as coisas à minha maneira, eu não preciso dar explica-
ções a ninguém. Naquele dia eu deixei de obedecer ao pai. E, por não
obedecer, contraditoriamente, comecei a me tornar igual a ele (p. 73).
Justamente por estar em um período de transição, um entre-lugar,
trata-se o protagonista de um narrador comprometido. Ele está entre o
irmão caçula e o pai, entre a infância e a idade adulta. É a posição dúbia
que lhe dá o privilégio de todos os ângulos da narrativa, pois ele vê e é
visto como criança em sua pretensa inocência diante das situações “adul-
tas”, porém compreende as implicações do que vê, justamente por já não
compartilhar do alheamento de seu irmão. O entre-lugar, a adolescên-
cia, traz suas escolhas. É nesse “segundo tempo” da narrativa (que não à
toa estrutura-se em duas partes, divididas por um breve intervalo, como
numa partida de futebol), momento em que as cartas estão na mesa, que
o narrador deve optar entre a família e a fuga que seria patrocinada pelo
dinheiro que o pai lhe havia dado para quitar as contas do mês. A ques-
tão ética, portanto, torna-se cada vez mais premente até o desfecho dos
acontecimentos, sua conclusão quanto ao destino final do protagonista, o
estágio último do processo que se desencadeia no romance e que o justi-
fica: a transformação da personagem.
resenhas 271

A partida de futebol, entremeada com os questionamentos do narrador,


transforma-se no momento chave da narrativa: “Foi por isso que não dei
a notícia do pai antes do Gre-Nal do Século? Eu sabia que a semana era
como um rito, nós teríamos que passar por ela. Eu ficava pensando como
seria dali para a frente, para mim faltavam poucos anos para conseguir
autonomia, com sorte uma faculdade e um emprego de meio turno, mas
Bruno ainda tinha muito tempo” (p. 22). A semana que antecede o jogo
– com as reportagens preliminares, a expectativa – e o jogo em si servem
não só como uma espécie de alegoria, pelo seu caráter decisivo, por ser
uma semi-final do campeonato brasileiro, mas como episódio que contará
diretamente na decisão a ser tomada pelo protagonista.
O futebol, para os três homens de O segundo tempo – o pai e seus dois
filhos – serve como uma espécie de termômetro para a vida, na medida
em que diz da relação de cada um com as suas próprias mudanças. O pai
já não se interessa como antes, talvez na melhor fase do casamento, quando
“os domingos eram passados no Olímpico” (p. 15), onde levava invaria-
velmente os filhos para assistir aos jogos do Grêmio. O narrador, por seu
turno, escrevendo no presente, ao rememorar sua história, demonstra essa
relação de forma categórica logo no início de seu relato: “Hoje o futebol
está morto, e duvido que alguém ainda chore por ele, mas não era assim
no dia 12 de fevereiro de 1989” (p. 11). O Gre-Nal do Século, portanto,
serve como linha divisória ao narrador quando no ato de trazer para o
presente seu momento crucial, e que em grande medida resultou no ho-
mem que é hoje, e que narra sua história. Bruno, pela sua posição e
responsabilidade (ou falta dela) no curso dos acontecimentos, é quem
ainda mais se detém aos fatos do futebol.
Assim, a narrativa de O segundo tempo se desenvolve como uma histó-
ria comum, familiar, contada com simplicidade (o que não significa dizer
que não seja de maneira sofisticada, porque é). Literatura, enfim, legiti-
mamente contemporânea, e corajosamente despojada das intempéries pós-
modernas, que por vezes se ressentem da prática literária, por desconfiar
sempre dos discursos inventivos e de suas representações sociais. Obvia-
mente que não se quer aqui fazer uma crítica a essa postura, nem tampouco
desprestigiar as teorias pós-modernas, pelo contrário. É justamente pela
defesa da diferença que se afirma a importância da diversidade na ex-
pressão literária, por vezes sufocada pelas patrulhas do “novo”, do “efeti-
272 resenhas

vamente contemporâneo”. Ao se propor contar uma história sem se preo-


cupar, a cada vírgula, com a legitimidade da expressão ficcional, seja por
meio do entrave na narrativa, seja pela violência pura e simples como
desmascaramento dos discursos “deturpadores”, Michel Laub diz indire-
tamente da importância da literatura e da grande falácia (às vezes elitista
e afetada) dos que dizem renegá-la sem dela abrir mão.

Roberto Gomes – Todas as casas


Curitiba: Criar Edições, 2004.

Adelaide Calhman de Miranda

É verdade que as formas que vivem no espaço


e na matéria também vivem no espírito.
Henri Focillon

A mãe, o pai, a casa: são esses os primeiros registros na consciência de


uma criança, e é daí que o escritor Roberto Gomes tira a matéria para seu
romance. Todas as casas é composto das memórias de infância do autor/
narrador, que são estruturadas a partir da seqüência de residências onde
ele habitou: “Todas as casas. Com tudo o que há nelas, dentro e fora.
Espaço aberto e óbvio, fechado e improvável, banal e raro, origem, abrigo,
refúgio, encontro de memórias, prisão e liberdade” (p. 7).
A casa não é somente um espaço inerte, sede das atividades humanas,
mas o seu interlocutor: interage com seus habitantes, permitindo ou ex-
pandindo as suas experiências corporais, mas também as restringindo,
delimitando-as. De fato, a arquitetura se exerce “no espaço medido pelos
nossos passos e ocupado pela nossa atividade física”1. Como explica Henri
Focillon, é na criação da “massa interna”, de uma “espécie de reverso do
espaço”2 e não no seu invólucro, que essa arte implementa a sua origina-
lidade. É essa dimensão, mais do que a lembrança de suas fachadas, que
permite ao habitante distingui-la de outras edificações. Palco de estímu-

1
FOCILLON, Henri. A vida das formas. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 36.
2
Id., p. 39.
272 resenhas

vamente contemporâneo”. Ao se propor contar uma história sem se preo-


cupar, a cada vírgula, com a legitimidade da expressão ficcional, seja por
meio do entrave na narrativa, seja pela violência pura e simples como
desmascaramento dos discursos “deturpadores”, Michel Laub diz indire-
tamente da importância da literatura e da grande falácia (às vezes elitista
e afetada) dos que dizem renegá-la sem dela abrir mão.

Roberto Gomes – Todas as casas


Curitiba: Criar Edições, 2004.

Adelaide Calhman de Miranda

É verdade que as formas que vivem no espaço


e na matéria também vivem no espírito.
Henri Focillon

A mãe, o pai, a casa: são esses os primeiros registros na consciência de


uma criança, e é daí que o escritor Roberto Gomes tira a matéria para seu
romance. Todas as casas é composto das memórias de infância do autor/
narrador, que são estruturadas a partir da seqüência de residências onde
ele habitou: “Todas as casas. Com tudo o que há nelas, dentro e fora.
Espaço aberto e óbvio, fechado e improvável, banal e raro, origem, abrigo,
refúgio, encontro de memórias, prisão e liberdade” (p. 7).
A casa não é somente um espaço inerte, sede das atividades humanas,
mas o seu interlocutor: interage com seus habitantes, permitindo ou ex-
pandindo as suas experiências corporais, mas também as restringindo,
delimitando-as. De fato, a arquitetura se exerce “no espaço medido pelos
nossos passos e ocupado pela nossa atividade física”1. Como explica Henri
Focillon, é na criação da “massa interna”, de uma “espécie de reverso do
espaço”2 e não no seu invólucro, que essa arte implementa a sua origina-
lidade. É essa dimensão, mais do que a lembrança de suas fachadas, que
permite ao habitante distingui-la de outras edificações. Palco de estímu-

1
FOCILLON, Henri. A vida das formas. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 36.
2
Id., p. 39.
resenhas 273

los sensoriais, a casa permanece embutida na memória, consciente ou


não, através dos seus cheiros, dos jogos de luz e sombra, das texturas dos
tecidos, dos sabores doces ou acres da sua (in)felicidade.
Pois é também na materialidade que a casa se ergue, ligando o seu
formato “ao peso, à densidade, à luz e à cor”3. A matéria, assim, impõe
a sua forma, como a própria pessoa que constrói a casa e a que vive
nela, alterando os espaços de acordo com as suas necessidades. Seres
humanos e materiais de construção são sujeitos à ação do tempo, o que
explica a descrição da casa como um ser vivo que envelhece e morre:
“As casas acabam muito antes de suas paredes ruírem, das goteiras
invadirem os telhados, da umidade apodrecer suas paredes, dos ranco-
res destruírem seus alicerces. Acabam antes mesmo de sairmos delas,
quando ainda alimentamos alguma esperança de que possam ser eter-
nas” (p. 156).
O tempo é, portanto, um dos personagens do romance de Roberto
Gomes. Por um lado, através da memória, a casa parece escapar à ação do
tempo: “Geografia afetiva cujo alcance não se submete à arquitetura de
que são feitas – livres do tempo e do espaço, estão disponíveis tanto hoje
quanto ontem, sempre que um perfume, palavra ou gesto as recupere...”
(p. 7). Por outro, justamente pela passagem do tempo e pela mudança
que lhe é intrínseca, a casa finda, mesmo que na memória ainda lhe reste
algum resquício: “Não havia mais casa alguma, eis a verdade. Elas esta-
vam dispersas ao longo de um tempo irrecuperável, escondidas
deliberadamente em espaços obscuros da memória, brotando do passado,
movidas pelo acaso, pela dor, por certos cheiros ou sabores casuais ou
palavra extraviada em alguma conversa” (p. 157).
Mas se a casa forja a sua marca permanentemente nos espíritos, estes
também impõem a ela os seus registros, “por debaixo de sucessivas refor-
mas, inquilinos bárbaros, pinturas de gosto duvidoso, uma porta a mais,
um puxado nos fundos, um muro agressivo repleto de lanças assassinas,
grades de prisão onde antes havia liberdade e sonho” (p. 7). Assim a casa
se transfigura pela ação do tempo, marcada pela história de seus habitan-
tes e dos acontecimentos que sediou:

3
Id., p. 55.
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Festas, brigas, comentários maldosos, inveja, um ombro amigo, o sexo debaixo das
escadas, nos porões e sótãos, nos quartos e corredores, uma casa inteira para dançar-
mos, meu amor, nesta noite que ficará para sempre nesta sala, nesta varanda, neste
quarto, eu não sabia que teu corpo brilhava no escuro. Ninguém suspeita que os
amantes ali permanecem, amando-se para sempre... (p. 10).

O tempo determina também a ordem cronológica que organiza a nar-


rativa e evidencia o crescimento do narrador. Nos primeiros capítulos,
correspondentes aos primeiros anos de sua vida, a maioria dos aconteci-
mentos ocorre dentro de casa ou, ao menos, ao redor dela, no terreno. À
medida que cresce, o narrador começa a andar pelas ruas da cidade e por
outras edificações: a escola, as casas dos amigos, os bares, os locais de
trabalho. Perde-se um pouco a linguagem poética dos primeiros capítu-
los, criada pela relação de uma criança com o espaço físico onde habita.
A nomeação dos últimos capítulos, de acordo com a casa onde mora o
narrador, passa a ser mais uma questão de organização da narrativa. A
força das impressões causadas pelas primeiras casas é substituída pela
maior variedade de experiências e por uma maior amplitude de possibili-
dades oferecidas ao jovem. A substituição gradativa do espaço privado
pelo público corresponde ao crescimento do narrador: ele conhece outras
pessoas, relaciona-se com amigos, professores, amantes. Ao final, ele não
se encontra em casa alguma: “Eu não morava em nenhuma delas: não
havia para onde retornar. Eu morava no mundo e estava só. O deserto
estava agora dentro e fora de mim, conteúdo e continente, prisão e an-
gústia. (...) Eu precisava partir” (pp. 157-8).
A sua necessidade de ir embora pode ser explicada pela simbologia da
casa como Centro do Mundo. De acordo com Mircea Eliade, a habitação
humana é identificada como Centro do Universo, assim como o são todas
as casas, os templos, os palácios, as cidades4. A contradição aparente é
compreendida como “o desejo de se encontrar sempre e sem esforço no
Centro do Mundo, no coração da realidade, e enfim, de ultrapassar de uma
maneira natural a condição humana e de reencontrar a condição divina”5.

4
ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 50. Esta referência à casa
como centro do universo já aparece na epígrafe do livro, uma citação de G. K. Chesterton.
5
Idem, p. 51.
resenhas 275

Por isso, o universo do narrador parece gravitar em volta de suas casas. E


quando não há mais centro, nada mais o prende ali; está na hora de partir.
A idéia da casa como Centro do Mundo também explica a estruturação da
narrativa a partir da perspectiva do narrador. Além disso, a sua busca pelo
centro do seu universo passa pela presença ou ausência do seu pai:

Aqui, na varanda, onde eu brincava com um carrinho, meu pai se sentava a um canto
e tocava violão. (...) Meu pai está emoldurado pelas grades da varanda, tendo ao fundo
as árvores e o rio. Só. Não trocamos palavras, não nos olhamos, apenas sentimos a
presença um do outro. A música é sempre a mesma, embora não se repita em minha
memória. Como se houvesse se transformado em algo fora e acima do tempo. Não é
som. Ou melhor, é som que se converteu em espaço: imagem (pp. 25-7).

Este retrato de felicidade, este pequeno fragmento da memória, dá


uma pista da busca infindável do narrador, que pinta incontáveis quadros
de um homem tocando violão, que procura a casa do seu pai depois da
separação da sua mãe, que tenta entender esta ausência que implicava
na presença em outro lugar, em “uma espécie de outra casa, de não-casa,
de alguma coisa etérea, volátil, mutável, imprecisa como meu pai” (pp.
99-100). A estas residências desconhecidas e abstratas de seu pai, o
narrador contrapõe as experiências concretas e reais experimentadas nas
casas onde ele viveu. As tentativas de reconciliação entre a mãe e o pai
são constantemente objetos de sua narrativa. A biografia de um homem
pelo ponto de vista das residências que marcaram a sua história é como a
tentativa de mapear essa perda, a sua separação do pai, o outro centro do
seu mundo. No final ele confessa, apesar da cordialidade, a frustração
que lhe traz esta relação:

Era com o mesmo desconforto e esperança que eu o encontrava em um lugar qualquer


do mundo, sempre ao acaso. Trocávamos muitas palavras, gestos, abraços, comentários
espirituosos e piadas de circunstância – éramos muito hábeis nisso. Mas o fracasso era
permanente: no fundo, não sabíamos mais o que fazer, o que dizer, o que esperar, como
se houvesse um permanente compromisso mais urgente a nos espreitar da próxima
esquina. As casas que acumulávamos em nossas memórias agora nos sufocavam e era
preciso aguardar (p. 157).
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Todas as casas é a (auto)biografia de um homem, mas também o relato


de uma busca pela infância perdida. A sensação de completude e prote-
ção desse pequeno mundo vai se perdendo à medida em que o seu uni-
verso se amplia. A tristeza e a amargura de sua mãe, a ausência incom-
preensível do pai, a mudança constante de residência, a perda do primei-
ro grande amor, todos esses fatores contribuem para que o narrador deixe
de ver em sua casa o centro do seu mundo. A sua incursão no meio
literário, ilustrada pela leitura até altas horas da madrugada e pela reda-
ção e publicação das primeiras crônicas, possivelmente oferecia a ele um
caminho:

Não sabia o que iria fazer ou encontrar, mas, de alguma forma e apesar do medo, iria em
frente movido pelos mesmos desejos, embora agora mais obstinados e duros. Como um
mapa: o contorno externo de uma esperança. Como aqueles textos que escrevia e lia ao
adormecer como a cara enfiada num livro (p. 158).

O romance de Roberto Gomes narra com sensibilidade e sutileza a


trajetória percorrida por um homem; a sua história é contada através da
sucessão de casas onde habita. No título, na divisão dos capítulos e no
tom memorialista, o autor deixa entrever uma tentativa de dar unidade a
pequenos fragmentos de sua vida. Tal qual um quebra-cabeça que o
narrador monta e remonta, percebe-se um desejo de unidade, como se o
conjunto das peças, organizada de forma correta, pudesse dizer algo de
sua vida. Talvez por esse motivo, ao final do livro sente-se um resíduo de
frustração; afinal, qual é a vida que revela um sentido ou um significado,
mesmo em sua melhor composição? No entanto, é justamente no frag-
mento de cada instante vivido que se pode encontrar alguma significa-
ção. Todas as casas atinge uma harmonia, não na composição das casas,
no conjunto das experiências, na totalidade da vida, mas em cada mo-
mento narrado, em cada casa descrita, na singularidade das peças que
podem ou não ser agrupadas.

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