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time ramen a atte —— eco conaititiee eos em ane Ccomssio rorromiat tr ass Peso ‘i nde Ale Fm oti Pa ae ais swsision Semel -Rs Emilia Freitas A Rainha do Ignoto Romance pricolégicg Atualizagao do texto, introdugao e notas Consténcia Lima Duarte Mulheres & EDUNISC 2003 (© 2003, Editors Mulhares; EDUNISC Coordenag editorial “abi Lapinncet Mazar Atuaiagdo do eto ecto com pimeita eid, itroduo € Consténcia Lima Duarte Revisio Conseinela Lime Duarte ‘Zahid Lapinsces Muzare Etro Rite Mata Xavier Machado Copa. Lise Lesa Sobee Calendario Zedaco (189697) de Alphonse Mucha. Dado Intenachnas de Catalogueto oa Publingso — CIP Tony Helena Brunel CRB 10142 Foes Felton Enilla ‘A rains do tenor / Eala Feta; atualiagto do texto, ‘auougio enous de Conant Lima Dut "rethade Alene CGrrlette = 3-ed.~Florndpol: Ed Muthees, Santa Cas Jo Suh EDUNISC, 2003. (Gang Rl 5031 5804070 Feianpoli. SC “TelefonaFax 45) 259 2164 sreeditoramulieres.com.be Observagées sobre a presente edi¢ao ©) romance A rainha do ignoto teve até lOmomento duas edicées, A primeira, ainda ‘em vida da autora etalves com sua supervisto, surgi pela ‘Typosraphia Universal de Fortaleza, em 1899, com 456 pfginas. A segunda, bem posterior fol uma iniciativa da ‘Secretaria de Cultura e Desporto da Imprensa Oficial do oars, e veio a piblico em 1980, com 363 piginas. Ores- ponsfvel por esta edico fio professor Oraciio Cares, da UFSC, um pioneiro na pesquisa em tomno da escrivora cearense, que brinda os leitores com preciosas informa: es a tespeito da regio onde se pass o romance, ¢ tam. bém com outras de natureza biogdficas até eno desco- nhecidas. Para a organizagdo desta terceira edigho foi reali sada uma cuidadosa leitura comparando as edigées ante- lores, © que nos permis identificar no apenas errs t- pogéflcos existences nas duas edigdes, mas principalmen- ‘te indimeros problemas na edgf de 1980, alguns bem sé rose comprometedores leitura do romanee, tas como a ‘auséncia de palavras, de expresses © mesmo de parr fos intecos; a substicuigho de um adjetivo por outro; © a alterago substancial na pontuacéo, cal oniimero de vit- ‘gulas e ponto-e-virgulas que foram af introdusidos. Todos «estes problemas foram corrigides, tendo sempre por base 0 texto tal como se encontra na edicio da autora, Da mes- ‘ma forma, conservames o emprego que cla faz de letras maideculas e minésculas, inclusive depois de pontos de cexclamagio e de interrogagio. Os estrangetismos conti- ‘nuaram grafados em italic, bem como as frases e expres- ses originalmente escritas em lingua estrangeira,frencés ‘outings, que apenas foram tradusidas no rodapé da pag Mas, lamentavelmente, o Gnico exemplar da pri meira ediglo que nos foi possve localiza, e que se encon- tana Biblioteca Rio-grandense (em Rio Grande/RS),en- ‘contra-se incompleto e dé o romance por terminado no capitulo LX, quando na verdade ele ainda se prolonga até © capitulo LXXI. Por isso, a partir do capitulo LX até 0 final, como nfo foi porsve realizar a comparagio das duas cedigdes, prevaleceu o texto tal como se encontra na se- sgunda edigio A organizadora A Rainha do Ignoto ou a impossibilidade da utopia Constneia Lina Duarte N aseida em Aracati, interior do Cea 1 em LI de janeiro de 1855, Emilia Freitas era filha do Tenente Coronel AntOnio José de Freitas e de Maia de Jesus Freitas. Com ofalecimento do pi em 1869, a famflia se ransferiu para Fortaleza, onde ela pide estu- dr francs, ingles, histéra, geograiae aitmética, numa cconceituada escola particulate, mais tarde, cursar a Esco- la Normal, Ena Freitas fi, sem dtvida, uma das prinipais cescttoras de seu tempo, 20 lado de Francisca Clotilde e Ursula Garcia. A partir de 1873, aos desoito anos, come- ou a patticipar ativamente da vida culeural da cidade, através da publicagio de textos em prosae de poemas,em jornais como O Libertador, O Caarenso, OLyrioe A Brisa ‘Anos mais tarde, ainda em Forealeza,paricipou com ou- tras mulheres da "Sociedade das Cearenses Libertadoras", de cardver abolcionista, destacando-se na defesa dos es- ‘ravos. Na sesso solene de instalagao dessa Sociedade, {nelusive,em janeiro de 1883, Emilia Freitas ocupou a Ti- ‘buna e pronunciou um vibrante discurso sendo muito aplaudida, conforme noticias da imprensa local. B,apesar 2 ‘A Rainha do lgnota de ser uma excrtora conhecida na cidade, ela iniciou 0 discurso se desculpando pela ousadia de falar em pblico, ‘que nos permite pensar, que no seu caso e no de outras intelectuais da época, esta devia ser uma especie de for smalidede parajustificar 0 rompimento dos padres decom- portamento da mulher. Vejamos um pequeno treo: ‘Antes de manifestar as minhas ida, peso desculpa a lustre Sociedade Cearense Libertadora para aquela que, sem tfulos ou conhecimentos que @ secomendet, vem felicié-la pela primeira vitgria aleangada na ditosa vila do Acarapé, Depoisimploro ainda permissfo para, 2 sombra de sua imortal bandeira, aliar os ‘meus esforgos aos desses distintas € Ihumanieétias senhoras, oferecendo thes com sincerdade os Gneos meios de que disponbo: os meus servigos e minha pena ue, sem ser habi, &em compensagao gulada pelo poder da vontade. [...-] As flores de nossos prados querem expul- sarde seu solo esse monstto detestével [a ceseravidio] que em nossa patria querida {nfamava e enegrecia 35 rsonhas cenas da rnatureza [] ‘Sejao prémio de nossosesforgos vermos «em breve 0s nosss caro patrcios volea- em do campo da ago, coroados de Ena Frits louros, agitando triunfantes o pendo da Liberdade! Na mesma semana, 0 jomal O Libertador registra, assim, esta participag: DDeclarada aberta a sesso e inaugurada solenemente a Sociedade des Cearenses Libertadoras, a misica do 15° Batalhio de Infantariatocou o hino nacional, sendo depois levantados viva entusisticos 8 sana causa do abolicionismo. ‘Ocupou depois @teibuna a Exma. Sra. D. Emia Freitas, vantajosamente conhecida por suas produgSes lierdrias, ¢ por seu adiantado espiito abolicionista, a talentosa jovem em estrofes sublimes de sentimento ar- rancou do imenso auditriofrensticos aplausos. Fortale- +72, 08/01/1883) Em 1691, Envfla Freitas reuniu suas poesia no vo- lume intitulado Cangees do lar. A. guisa de insrock ‘publicou um curoso texto digo “Aas censores",em que, a0 invés dos frequentes peddos de desculpas pla ‘incapa cidade intelectual’, ou pela ‘mediocridade’ do texto, ‘comumente encontrados nos livres de autora feminina, a autora ‘suplica’ 2s letores'orespeitodevido! aos seus ‘qua ‘ros de familia’, que chama ainda fragmentos de minha ‘alma! e ‘pariculas de minha triste vide, Neste texto ela revela nfo apenas a preocupagio com a censuraimplicita 08 escritosfemininos, mas também denuncia as Timica- 60s da vida das mulheres deseu tempo, Segundo racior inio de Emilia Freitas, nfo era possvelcabrar um deser- eno literdrio excepcional de alguém que “tem vivido 4 A Raina do leno cencerrada entre pazedes de uma estcita habitacSo, da sociedade cultae de todo 0 movimento literrio ‘Também encontram-se noticias nos dicionsios biobibliogéficas da publicagio de um outro romance da autora — O Renegado — mas que nio foi possivellocali- tar até o momento nenhum exemplas Noanoseguinte, ap6so falecimento da mae, Emalia Freitas rensferiu-se com um irmfo para Manaus, onde foi convidada alecionarno Instituto Benjamin Constant, uma importante instiuiglo de ensino destinada instrusao pri- ria e secundétia de meninos. E passou a colaborar em cliversos ora da regio norte como Amazonas Comerci- a de Manaus, Revel, de Belém do Paré. Em Manaus, ‘em 1900, ela se casa com o jornlista Antnio Vieira, fu- ‘ro edator do Jomal de Fortaleza, retornando com ele para ‘0 Cearé, onde reside até seu falecimento alguns anos de- pois, Mas, em 18 de outubro de 1908, data de morte da ceseritora, vamos encontré-la novamente residindo em Manaus, para onde teria recomnade. E foina primeira temporada na capical do Amazo- nas, residindo as margens do Rio Negro, que Emfia Freicas escreveu seu principal livio — A rainha do ignexo —, pu bhicado em 1899, a que deu o cutioso substulo de “ro- ‘mance psicol6gico”. Tiata-se de uma trama novelesca ab- solutamente inusitada, reunindo lendas, mitos,his6tias regionals, conhecimentos sobre a hipnose, espriismo.e ‘ parapsicologia, que deve ser considerada uma das pric rmeltas do nero fancstico no Brasil ‘Antecedendo A narrativado romance propriamente dito, encanteam-se dois textos. No primeiro, com acenti- ado tom iinico, a autora dirige-se “Ans génios de todos Emilia Freitas 15 03 paies em particul oferecer seu liveo,nestes termos fos escritores brasleiros” para Vs, que brithais como estrelas de prime- ra grandeza no firmamento alteroso da Ciencia, da Literatura e das Arcs, podereis estranhar o meu oferecimento, © chamé-lo de ousadia, e no reflexionares, {que © mais poderoso monarea pode sem Jhumithago acetar um ramalhete de flores silvestre, das mfos grosseiras dura ccamponesa, que para oferecé-o curve 0 joctho e incline a cabeca em sinal de espeto, estima e admiracio, ‘Minha oferta no vos deslustra, Eula deslapidada como um diamante arranea- do do seio da terra eoferecido por mo selvagem. © texto que se segue, dirigido a0 Leitor, pode ser lide quase como uma 'proiso de fe de modemnidade para a época, tal a sua hucidez. Contém ainda indicagées ‘da opinifo da autora acerca de escrtores contemporaine ‘sede sua conscincia a tespeito da originalidade de seu trabalho. Meu liv néo tem padrinho, assim como no reve molde, Tem a feigi0 que Ihe € ‘pia, sem atavios emprestados do nedanismo chatlatBo, Nao é, tampouco, conjunto das impresses recebidas nos sales, nos jardins, nos teattos enas ras cas grandes cidades, porque fi escrito na solido absoluta das margens do Rio 16 ‘A Rainha do Ignoto Negro, entre paredes desguamecidas dduma escola de subsinbio.E, antes, a cogitacfo intima de um espirico observa ore concentrado que (dentro dos limites e sua ignoréneia) procurow numa 0 de fatoseiviaisestudar a alma da sempre sensvele multas wezes ull fantasiosa. [ol Resumidamente, a narrativa contém a historia da sedugio do Dr. Edmundo, um jover formado na Escola do Recife, por Funesta, um dos nomes pelo qual era co- nhecide uma mulher, figura meio lendiria ds Amazénia, _que vivi em meio 8 mata eas gruta,liderando um grupo de mulheres, sas paladinas’. A 'Rainha do Ignoto’,como também eta chamadla, parece rer pacto com as fadas © com co deméinio, euilisavariadas formas de magias, assim como do hipnotismo eda parapsicologia, a fim de realizar as ta- refas que se impSe: guertear a injustiga, proteger fraco ‘contra force, entrar em cérceres para curar os enfermos, salvar vtimas de incéndios. Olivro torna-se mais interes- sante & medida que apresenta dislogos ¢ cantigas em ou- sas linguas, como o inglés, o francés e o portugues com sotaque de Portugal, e também quando se faz porta vor do mod de falar de pessoas mais humildes, como os eriados © fs eseravos, em comparagio com a fala da buxguesia 3s- cendente. Dr Edmundo disfarga-se ce mulher para poder circular nos doménias da Raina, na centativa ce desven- dar aquele mundo estranho e misterioso, que nfo € outro, 1a fim ¢ 80 cabo, que o mundo feminine. Ao final, ele desistee casa-se com Carltinha, uma moya ingen, pre- visivel, virtuosae prendads, em tudo oposta 4 Rainha do Iigoto.. nila Freitas " Enilia Freitas consegue com habildade acomodar © fantistico num plano de regionalidade e fas em seu ro. ‘mance ora uma incurséo pelo imaginéri, do palpével a0 mais surpreendente e inverossimil, ora descreve com de talhes a vida sertaneja, com suas fests, costumes, ctendl ces. Utlzando-se de técnices narrativas bem moderns, 0 cima fantéstico ¢ instaurado com naturalidade no enre- do. assume o predomfnio da atmosfera, ora com ingredi- entes de um fantistico medievo, ora lembrando narrati- vas inglesas de terror, transportando magicamente oleitor ‘caleitora de um para o outro extremo, até o final, surpre- cendente. A autora aproveita também para eriticarasoci- cedade da época, que valorizavao dote, o nome de familia, aeducagdo superficial para as mogas, eo danjuanismo para os rapazes. ‘Mas, apesar de tudo isso, edo ineditismo desta nat- rativa, Emilia Freitas nfo €citada em nosss histérias lite- ‘ris mais conhecids, e sua fortuna eritica permanece injustamente redurida. Em 1980, 0 romance foi redescaberto por Orzctio Colates, professor da Univers dade Federal do Cears, que preparou uma segunda edicao ‘com notassubstanciosas eum extenso preficio, Nel, de- fende a autora das eriticas que um outro conterréneo, Abelardo Montenegro, havia feito ao romance em 1953, ‘ao consideré-o ‘um deamalho’, sem ‘veracidade’ nem “nae tualidade dos dilogos”, Para Colares, além de apresentar alguns aspectos inusitadlos do gético, romance inceressante e por vezes inteligenssimo repositrio de costumes cearenses, ov, melhor dizendo nordestinos, mas foge[v] 0 vero naturalists pelo qual uma ertica spressada em clasificar ha procurado 8 A Raina do incluir toda a ficgo que no Cearé,e de resto em todo o Bras se excreveu, entre asltimas décadas do século XIX e os primeira anos deste séeulo que se aproxi- ma do epilogo. (FREITAS: 1980, 9-10) (Outro extudioso do romance de Emilia Freitas, Luis Filipe Ribeiro, também apontou para o carter incigance dolivro, coneluindo que tal propasta para o Brasil da ép0- ca, ena tadigo do romance entre n6s, era de uma dia inéditaes6 poderia ter aldo no vazio enum completo ostracism, como de fato ocorreu.”. S40 suas palavras: ‘Ao construir eu romance sobre as bases de uma “nova cienificidade” — o espiti- tismo e as experigncias de hipnose — Enis Freitas facia, por outras trilhas, um percutso simétrico ao do Naturalismo, Este apoiado no cientilicsmo posiivista, aguela optando pelos eaminhos mais seducores de um certo espirtualismo em busca das rizes da subjeividade. (RIBEI RO: 1989, 135) Mais recentemente, em 2001, A rainha do {goto fol motivo de uma dissertagio de mestrado apresen tada por Sonia Cristina Bernardino Ribeiro, AUniversida- de Federal do Rio de Janciro, © trabalho resgata a narra ‘va de autoria feminina do século XIX através da andlise de dois romances: Lésia, de Maria Benedita Bormann, ¢ ‘Arrainka do ignoto, de Emilia Feit. Com competéncia, ‘evela a alana ence o patrarcadoe a sociedade burgue- sa que confinow a mulher ao lr, e como, no Brasil, este prisionamento esteve fndamentalo em dias posiivstas Eni Fics 9 eno idedrio romantica. A douttina positvists, que pre ga vaa valorizagio do papel social da mulher e predomi nancia do alruismo sobre oegotsmo,esté presente no 10. ‘mance de Emilia Freitas através da personagem principal ede seu grupo de paladinas. Da mesma forma, os tragos omdincicos que exaltam a eastidade feminina, a nobreza dos sentimentos,o casamento¢ felicidace conjugal. Na anise dos romances, hi o destaque para a composigto das personagens femininas e para anovidade de se tratar da 6tica de autoras sobre o papel da mulher, suas Iutas © possibilidades de mudanga. Dentre os aspectos comuns, ‘chama a atengio para o surgimento de uma consciéneia feminina, os homens geralmente vies. desleais, em opo- sigosinceridade efdelidade fenininas, eo sucidio, no desenlace das duas narrativas, como uma forma de insubmisséo das herosnas Mas, apesar da pertinéncia destas Teicuras, acred- to que sinda hi muito mais no romance de Emilia Freitas ‘ser considerado. Vejamos. A criagfio de uma sociedade formada apenas de mulheres, que dominam @ narureza,a técnica e a cigncia, que ocupam cargos e fungdes com invulgar competéncia — cas coma de general, comandan- te, maestra, cientists, médica ov advogada — no sugere ‘uma comunidade urdpica, egida por leis fersininas, femi- nista ava aenre, que quer se diferencatprincipalmente dda realidade patviaresl, a prance responsével pela opres- slo das mulheres? E a TIha do Ignoto,representago por lexceléncia de um espago idealizado e escondido dos olha- res, onde apenas as mulheres reinavam, nfo pode ser ido como © ni-lugar, ou como o nico espa possivel para a fealizagdo femininal Em oucras palavras: como uma ten- tativa da autora paraa superacéo da doxa patsarcal? Ali 4, nflo apenas na tha, mas tarabém na grita ¢ na mata, 2» A Rainha do note onde a rainha e suas paladinas circulam, imperam a ibe. dade ea criatividade femininas CConsideso sinceramente fascinante a leitura desta (quase) fiegiocientfca, em que as mulheres podiam ape Jarindistineamente para diferentes recursos — como ahip- nose, 0 espirtsmo, aineligéncia ea esperueza—, quando queriam alcangar seus propésites de fazer 0 bem, resta belecer justia, salvar os condenados...Aliés, Emilia Freitas utiliza procedimentos da literatura ferinina con: ‘temporinea (lembro por exemplo de Angela Carter, ¢ de sa Paisdo da nova Eva), ao apelar para o fantéstico © ficglo cientifica na proposigio de um novo mundo, em que a mulher no € oprimida e es live para realizar seu potencial crativo. Eo suicidio da protagonist, diferente de representar apenas sua insubmissio, podetia talves in- dicar a consciéncia autoral da incompatiblidade entre © ‘mundo real eo mundo sonhado.. [Enfim, estas sho algumas das questBes que o texto de Emilia Freitas me provocou. Cabe-me, agora, convidar ‘0s letores¢ leicoras para penetrarem nese mundo so- tnhado € utépico de uma eseritora que viveu no final do s6eulo XIX, para buscarem nele no as tespostas, mas as indagagées que com certeza surgi. opra: CCangées do lar. Poesia, Fortaleza: Tpografia Rio Branco, 1891. 310 p. A rainka do igmoto, Romance psicol6gico. Fortaleza ‘Tipografia Universal, 1699. 456 p. (O renegade. Romance. Fortaleza: [sn]. PUBLICAGAO POSTUMA: ‘Acrainha do ignoto. Romance psicoligice, 2 ed. Pesquiss, iia rita 2 organizarSo, atualizacio ortogrifica, apresentagio critica €enotas por Otactio Colares. Frcaleza: Secretaria de Cul- tura e Desporto, imprensa Oficial do Ceard, 1980. 363 p. SOBRE A AUTORA: CAVALCANTE, Alilene. Emilia Freitas: uma escritora na ‘periferia do Império’. Reva lnerdias, vol. 22, Programa de Pés-Graduncéo em Estudos Literéris da UNESP/Araraquara, SP 2003. No prelo. COLARES, Otacilio, Apresentagio critica e notas. In FREITAS, Emilia. A rainha do igoto. Romance psico lopico. 2 ed. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Des- porto Imprensa Oficial do Cearé, 1980 — Lembrados e exquecidos, IL, Fortaleza: Imprensa Universtitia do Cears, 1977. CUNHIA, Maryse Weine. Emilia de Freitas, In Mulheres do Brasil Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1986. Vol 3. p.281-316. DUARTE, ConscAincia Lima. "Emilia Freitas", In MUZART, Zahidlé Lupinacci (Org) Bseronas Bras. as do Séeulo XIX. Florianépolis: Editora Mulheres; Santa Crus do Sul: EDUNISC, 1999. MONTENEGRO, Abelardo F O romance cearese.Forta- leas: [6 1953, RIBEIRO, Luis Filipe. A modernidade e fantastico em ‘uma romancista do século XIX. In Caderes. ITT Semi- nirio Nacional Mulher & Literatura, Flosiandpolis; Universidade Federal de Flriandpolis, x 1, 1989. p, 135-40. RIBEIRO, Stnia Cristina Bernardino. ‘A narrativa de au ‘oria feminina do século XIX em resgate: uma leitura e Lésbiae A Raina dolce’, Dissertagao de Mestrdo ‘em Literatura Comparada. Rio de Janeiro: Universi- dade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 2001. 98 p. 2 ‘A Rainha do lgnara CRONOLOGIA Aleilene Cavaleante 1855. Emilia de Freitas nasceu em 11 de janeito, em Passagem das Pedras e Unio —distito de Aracati/ CE. 1869 — com a morte do pai, cransferiu-se para Fortaleza. 1875 — é data do poema intiulado Conforo, publicado em Cangoes do Lar 1877 — adata do poema A mae escrava, que € indicio de sua sensibilidade em relagdo & causa abolicionisa. 1881-1882 — recta poemas no Colégio de Santa Cectia, ‘em Fortaleza () 1883 ~ recita poema no clube Cearense; data de vétios ‘poemas reunidos em Cangées do Lat. 1883 ~ em 06 de janeiro discursa e recta poemas na ‘ocasifo da fundagio da Sociedade das Cearenses Libertadoras. 1883 — publica o texto intitulado Florina (concos raravieses) que, embora nao assinado, parece ser um rmicrotexto de A Rainha do lmoto ~ Libenader,n® 171/2, 8 de agosto. 1885 — Escola Normal de Fortaleza: estudo de linguas francesa © inglesa e geografia (parece que obteve essa formagio ainda em Aracati) Ena rots B 1885 — 23 de marco, falecimento de sua mie Maria de Jesus Freitas 1890 ~€ a data indicativa de publicagio de © Renegado 1891 — publica Cangaes do Lar 1892 ~ Mudou-se para Manaus com o irmio Alfredo ou ‘Afonso de Freitas. em Manaus, foi professora no Instituto Benjamin Constant 1699 — publica a Rainha do ignoo: romance pscolico 1900 —Retornou ao Cearé como maride Arthunio Vieira (ornalisea~redator do Jomal de Fortaleza 1900/1901 - &co-fundadora do grupo esptta “Verdade e Luz" de Maranguape/CE 1901 ~ publica com o marido jornal esptica Luxe Fe 2 -Woltou para Manaus 1908 - 18 de agosto, faleceu em Manaus, A Rainha do Ignoto % ‘Acs gnios de todas os paises e, em. particular aos Esritores Basleiros ‘5, que brithais como estrelas de pri ‘mei grondeza no firmament deroso da Ci- “cia, da Liceracurae das Artes, poderes estranharomex ofe- ‘eciment, e chami-lo de ous, se ndoreflxionares que © ‘mais poderoso monarca bode sem huihaga acta wn 1a- rmalheede floes stesres das mos gosenas de na camo esa, qu para ofeece-lo carve o jolha einclneacabesa em sinal de respeio, estima eadmiagto, ‘Minha oferta no wos delustra. Eva dilapidad como tum diamante arncado do seio da tera eoferecido for mo selvager, A autora a oi AOLEITOR Meat ee como ndo teve molde. Tem a figlo que te € propria sem ataviesempresades do pedantismo chavatto. Nao 6 tampouco, 0 conjunto das impresses reebida nos sales, nos jardin, nos teatro eas ras das grandes cidade: poraue foiesrito na sldaoabzolta das marges do Rio Negro entre as paredes desguamecidas de wa escola de subirbio;é anes ‘cogitagdo fruima de wm expr obseruador e concentrado, que (devo dos inte de sua ignorncia)procurou, mama colegio de faos rvs eeudar aca da muds, sere sen fuel muias wees fantasiosa. Teno a ceeeya de que alguns ox quae todos os que leram ext loo ao de achat sua protagonist demasiadamen- teextravagnte, Mas, sconsiderarem nos ios, queso ver daira aberagées da natura, ja desvio para sumo ber. ‘ox suo mal, vero quea Raia do lgeto nd éna realidad tem genio mpessive,ésmplesmence genio impassibicado ‘qe, pasando para o campo da ig do encontrou os meios de realizar 0 caprchos de sua magia rarisima eda propen- sto bondosa de seu extaondindriocoragdo. ( feto de Jana DA & ue fo que passou para 0 omni dahséra. Mas no res parece ele wna end? oj, 30 A Rail do note com mais raxdo podemos nos apaderar do inerostnil pois estamos na época do Espirtisma e das sugesves hipdticas, has quaisfndamenteio max romance. ‘Naomeassusa aera sincera dos que, em even Fes malévolas, awadas pla justga, me ficerem ensergr de- {eto eas que minha ignordncia, ou meu descuido, nao pide ver: mas, embora reeie a ualdade inprdpia das almas gran es, do verdadero talent, no recuse. De ousids ceraos, seguie desas-sombrada na dificulaso camino da Literatura Pésra rl Freitas q § ay AFUNESTA, s habitantes das povoagses ou aldeias dor ‘mem cedo, por iso na Passagem das Pedeas! 1 pouco mais das der horas da noite, s6 se via brilhar uma lus, euja claridade safa da janela do oitéo da casa do fim ddarua. Tudo maisera treva,e silénci sob aimensidade do céuestrelado. Do peitoril da mesma janela debrugava-se un ‘ogo, chegado hi pouco da cidade, a conversar com um rapazinho, que estava assentado & borda da calgads, edi- siathe —Osono se esqueceu de ti, Valentim. Sr. Doutor nao me conhece, responiieu o meni- ‘no com vivacidade, estou acostumado a tudo! Terho via- jado com meu pai por codo este mundo de meu Deus! Matas vezes caminhamos com a tua até a meia noite ou uma hora da madrugade, — Tu que tens viajado muito, disse o mogo grace- Jando, diz- me o que é aquilo ali, na linha do horizonee, pparao lado do nascente? All, St Edmundo? apontou Valenti, é a serra as Ans — £ féreil aquela serra? tornou ele. — Assim, assim, volveu o camplinis fem roga- dos nas quebradas, eplantam algumna cana mas coisa pou- 3 A Rainha do loco — Aqui deste outro lado, vejo outra serra muito ska disse o Dr. Edmundo, — Qual? Aquele serrote? Parece alto porque est mais perto, volveu 0 menino; aquela éa serra do Areré; ‘mas, &encantada, ninguém vai li —Ninguém! Porque? disse Edmundo com espan- -— Porque se for nfo voltard mais; dizem que tem ‘uma gruta, onde mora uma moga encantada numa cobra, que A noite sai pelos aredores a fave dstrbios. — E acreditas nessa bruxatias, Valentim? — Ora se acredit minha avs também nao scredi- tava, assim como o senhor, mas agora esta certa e mais aque certa da verdade. Uma noite destas, vu, ela mesma, escer da sera epassar cantando pela estrada uma moca bonita, vestia de branco. Eo senhor quer saber? Ia segui- a pelo diabo, um moleque preto de olhos de fogo, com ‘uma cauda comprida, que arastava no cho! — Isto € sétio, Valencim? = Orase 6, cla razia também um cachorropreto, ‘que dava onda &claidade da lua! Minha avé quase mor- ‘re de medo; chamou meu pai, eele também viu. Conta 2 {quem quiser ouvir; e todos saber que meu pai no é ho- mem de mentiras —Tefasia mais inteligente, Valentim! Nao vésque ‘sto 6 uma hiseria de bruxa sem fandamento, inventada pela supersticfo do pova? Quem disse a0 Se De. que é histéria de bruxa?! disse o menino com exaltagao. Aredia, porque eu mes- ‘mo jd vi. Em ume tarde destas, ia eu com minha irmi [Ritiaha pastorear umas cabras, li para as falas do Arecé., [io we tia, St Dr, olhe que eu vi no estou mentindo. aula Feit 3 cla estava em pé sobxe © monte, tinha um livro aberto na ‘io; mas nfo lia, olhava para 6 eéu como aquela Nossa Senhora da Penha, que est pintada num quadeo da igreja do Nos Senhor do Bonin — Quem estava de pé no monte? perguntou Edmundo, sindo, — A moca encantada,respondew Valentim. (© De. Edmundo ficou pensativo. Muitas vezest- ‘nha zombado da credulidade do povo, eno podia tomar asério aquelas hstéras incoerentes; mas, procurava o fio. da realidade perdido naquele labirinto de idéias extrava- antes fantésticas, ‘Averiguarofato seria uma distragao para a mono- ‘onia de seus dias, para 0 aborrecimenco de sua vida can- sada das bifhantes misérias das grandes cidades; por isso fAngiu acrediar nas ingénuas palavras do eamponés e dis- se-lhe: — Pois bem, Valentim, se ficar aqui mais alguns las ie contigo 8 gruta para ver amoga encantada, Se for bonita caso-me com ela, —Néo graceje, St Dr... Ela cem pacto com Sata- fal Disem que, onde eparece, 6 desgraga eerta. Cha. ‘mam-na A Funesta — Deus me live de encontté-l Boa noite, jf € tard, e a vov6 zanga-se quando me demoro, Sal sempre de madrugada? A que horas quer os cavalos? — As quatro; nto flte —Nio, St, disse Valentim, e desapareceu corren- do pela encosta, (OJaguaribe corsa em frente da janela, onde 0 Dr. ‘Edmundo ficou ainda a cismar; mas sua vista errance pa- rou sobre a Iva erguendo-se no frmamento azul, como ‘uma héstia de ouro, 4 A Rains do ynoto Emilia Freizs 35 ‘A solidio era completa, o sinc era profund! ‘Nem o vento movia os ramos das érvores. Blas se levantavam do meio da sombra projtada pela copa, como spectros cismadores De repente, soou ao Tonge uma vor doce e erste centoando uma cango frances, era to saudesa, tbo cheia cde melancolia que as propras pedras da margem pareciam comover se, escucando: “Te souvent tu Marie? De norte enfance aux champs [Notre jouet a prairie, Tavais alors quinze ans. ‘Avoreera de mulher e vina se aproximande, Ji se distinguia 0 som de uma harpa com que ela se acompa- aahava. Deslisando mansamente pelo rio, vinha de longe tum pequeno bote; era dele que patia 0 som melancélico dda harpa eas extrofes saudosas da cancéo, ue prosseguia Te souviens tu méme Denes transports blancs, ‘Quand je te ds je aime. Javais alors quinze ans. Le bruit de cote féte Retourdens mon coeur Letemps que je regrets (Cees lecemps de bonheur Au présentje supe. ‘Mes yeux sont baisss, Us ont eraine de me dire ‘Mes beaux jours sont passé Ma bouche em vain répce De regrets superlus! Les temps que fe regret Cesc le cemps que nest plus? ‘Quando a pequena embarcacto passou por defronte dda janela, Edmundo péde contemplar& vontade a formo- sabateleira, Ela vestia de Branco, tinha oscabelossoltos € ‘a cabeca cingida por uma grinalda de rosas. De pé no meio do bote, encostava a harpa ao pel- ‘to,e tocava com maestria divinal Oluardavadlhe em cheio nas faces esmaecidas plo sereno da madvugada, eos olhos extremamente bes estavam smoreecids por uma expres- ‘lo magoada de tristeza indefinfvel. Algumas gotas de pran- to umedeciam-the as pélpebras, e tremulavam ainda nas gras pestanas, Vinha, alt também assentado no banco da proa, sustentando o remo e movendo- com periea, una figura negtae peluda,feia de meter medo. E, para mais confrmar a sua parecenga com o rei das trevas, tal moleque tinha uma cauda que, achando pouca acomodago no hanco, se tina estendido pela bor- dda do bore, parecia brincar na superficie das guns. De espaco em espaco, a enorme cabeca de um cio ‘or de azeviche aparecia e tornava a ocultar-se aos pés da Oote passou deftonte da janela; a vos foi se per- ddendo a0 longo do rio, até sumir-se. (silencio restabeleceu-s. (Oe Edmundo eraque no safado pasmo em que © tinha deixado aguela estranha aparigéo! Julgava-se 36 ‘A Rains do Ignore slucinado! Duvidava do testemunho de seus préprios clhos, ¢ para certifiear-se de que nio sonhava, beliscou com forga as mios, esentiu-se acordado, Fechow ajanela, foi deitar-se; mas nfo podia do ‘mir; asedutora imagem o perseguia com afer. (© Dr. Edmundo havia visjade muito, estivera em Paris, onde gastou quase uma fortuna; mas nunca fora tio singulaemente impressionado. ‘Quem seria aquela mulher? pensava ele. Donde ‘nha? Para onde i? Seria oanjo da saudade, perdido nas solidees da noice? As melancélicas notas daquele canto tradusiriam o poema de um amor infinito sepultado nas cinzas do coragao? Por que capricho aquela cracura formosa, oman ‘ica e ideal misturava o belo com o hortvel? Por que se acompanhava com figura to issérias? — Mistério! le concordou logo que Valentim tinha um pouco de razio, pois estava fora de divida que por aquelas para- ‘gens evista a verdadeira causa que dava origem & renga cdo povo; mas, em que sitio morava essa rica senor, que se comprazia em missificar os simples habitantes daquela povoago com seus caprchos romanescos? (© Dr. Edmundo voltava-se ne leita, fenético de Jmpaciéncia, porque no podia achar uma explicagio ra- sofvel para. que acabava de ver. Querendo imaginar que a moga fosse uma harpistae cantora de esquina que por ali aparecesse, rejeitou aida, porque the pareceu inad- _miisfvel que uma dessus infelies pudesse se trajarcom tan to luxo; pois nha visto bem, ao claro da lua, bilhay, no ded da mo que ela passava nas cordas da harpa, um lin- do anel de brilhances Fugindo com aidéia para campo das ecordasoes, ‘© mogo pensou em Venera, nas gSndols, nas serenatas 20 aula Freitas 7 lat Depois igurou-se na Alemanha, vu seus easels feu dais: uns pendurados as verdes encostas das margens do Reno, outros no gosto da arquitetura normando-g6tica, due floresceu no século XI, ¢levando is nuvens suas tor res orgulhosas. Passavam-the na vista as belas muralhas, as pontes levadias, os fosos, as amelas, os mirantes, as reads, 0s jardins cercados de rochas eas fontes murms- ‘antes! Anda the apareceu 8 mente o rosto formoso de uma fada,e The embalaram os ouvidos as notas saudosas do canto melaneslico com que dizem que ela sedus os vi- ajantes nas margens daquele rio. Assim, adormeceu enle- vada. u AFADA SEDUZIU O VIAJANTE 4 0s galos amiudavam o canto ¢ as nuvens do alvorecet do din se espalhavam no céu, deixan- do ver fia enue claridade, (© Dr: Edmundo adormecide ha pouco tempo so- hava aindacom.acantora do bote, a ndiade do Jaguaribe, ‘quando duas fortes pancadas na porta do quarto ofizeram despercar sobressaltado: — Quem bate? O que quer? perguntou enfadado. =O dia a ver rompendo, S« Doutor, disse ocxi- ado, Valentim jest af com 0s cavalos — Vaite dail Deixa-me dormir ndo me aborresas! = Acorde, St. Doutor sto horas. —Horas de que, marmanjo? —De partirmos, senhor —Para onde? —Valha-me Deus, disiaopachorrentocriado,con- tinuando abater devagatinho, jéémuio tarde; 0 Valentin. ‘lo quer mais esperar — Dirthe que vatembora ‘Adriano, assim se chamava o criado, esranhow a ccontracordem mas obedeceu, ¢esperou que 0 amo se le~ -vantasse das oito para as nove horas do dia. Enquanto passava o tempo, foi Adriano sentar-se ao hatente do portio e observar os costumes matinals daguela aldeia Alguos camponeses passavam de enxada a0 om: bro seguindo para seus rsticos trabalhos; uma mulher vi- ‘nha entrando na povoagao trazendo Acabega uma grande cui de beius de goma, alvos como jasmins; um pescador vinha mais atrés trazendo a tracolo um uru de peixes, ‘outros os levavam em cambadas presas a um pau que ta ziama a0 ombro,e assim os ofereciam pela potas Valentta apesar da hore adtantad do dia expera- ‘va ainda porta, tendo um cavalo selado peso a mio pe- las eambas do freio,e outros pelos eabrestos. Edmundo tendo-selevantado, chegouajancla para langar uma vista aos lugares da visio da noite, e vendo ainda o pacienterapaz a esperar pela dlkima decisto,dis- sethe: —Leva, Valentim, diza teu pai que trate da minha cavalgadura; no pretendo sar j, quando decidi-me te ‘© menino afastou-se com os trés cavalos, © Edmundo foi entender-se com o erado: —E preciso, Adriano, procurar-me uma cozinhei- sae arranjar-me alguns méveis mais indispenséveis ‘Adriano saiu em busca do necessirio, pasmo de admiragio daquelaresolugéo repentina do amo. (© Doutor Edmundo tera vinte e quate a vinte © cinco anos. Seu pai fra um rico negociante da Fortaleza; {i ness bea cidade do norte que ele pasou os seus pr- meiros anos, onde fer os preparatias, e donde manda ramno para a Academia de Direito do Reeife lt fe ele sempre um dos mais brilhantes papéis, apesar de no ser stnio nem um talento de primeira plana. Mas, bem apessoado e tinico herdeiro de uma boa fortuna, era 0 eldorado das mosas,eaté dos préprios pais. * A Rainha da loro Nao havia bil, jatar batizado ou casamento para ‘© qual nio tivesse um convite formal, além de receber ‘muitos recadinhos particulars e fatimos. Nessas ocasides apresentava-se sempre como um figurino da cima moda. Além dso, tocava faut, can- tava érias © duetos, recitava a0 piano versos préprios ou dos poetas de maior nomeada; contava anedotas, danga va admiravelmente e ninguém o vencia no galanteio! Em matéria de amor nfo admicia a verdade, zom- bava de meta dia de coracées, verdadeiros resouros de sentimen-t0, onde tinha feito despertar 0 mais sincero & puro afeto¢, depois a escreverfolhetins, nos rodapés dos jotnais dos estu-dantes, contra ainconsténcia ¢ levianda- Ge das mulheres, rin-do-se 20 mesmo tempo com os ami ‘gos de ter feito no mesma jornl, com diversos pseudéni- ‘mos, quatto ou cinco sonetos: a Marta, Laura, Beatriz, Leonor e lita, Mas isto no privava que o académico gozasse da or consideracio dos pais esimpatia das ih... Era tio five. to elegantee delicado. Quem poderia lexar de cestimé-lo? Depois,ndo eram aquelas ax qualidades mais pré- prias para atrairna sociedade? CO nosso herdi aos vintee dts anos defendeu tesee recebeu a carta de doutor,formado em Direito pela Aca emia do Recife. Porese tempo perdeu o pai. nocinha me, por tanta recolhew # heranga que lhe competia eft viajat DDois anos depois voltou ao Rio de Janeiro quase pobre. Vinha do estangeto farto de divertimentas co sos; sentindo fasta e aborrecimenco das grandes cidades, entio lembrou-se de ir visitar uma fazenda que possufa Ena Frit 4 nos sertbes do Ceard, para os campos do Jaguaribe: eis af Porque o encontramas pernoitando na povoagdo da Pas- sagem das Pedras, onde ficou fascinado pela vor da fada encantada da gruta do Areré M1 DOIS TIPOS DECRIADOS clas de horas do da, entrou Adriano satse- {o,tinha arranjado tudo inclusive a coinhei- ‘a, uma mulata de quarentae tantos anos, asseada, bisbi- Ihoteia e alegre Entros desembaragads, © comegou brigando a ar: rumar a corinae a especular ao criado pela vida do Dr. Edmundo ____Adkianorespondia-the com chascos eburlas que a Gru, assim se chamava ela, tolerou 20 prinefpio; mas foram tas a5 gaices que ela perdeu a paignciae, de zando osbifesqueestavatemperando,empertigou-se toda «es pondo as més nas lhargas disse: — Bu te arrenego pé-de-pato; pensas, endemoninhado, qu cds aqui so matutos Ea também. f/andei elas outrascerras, jf cozinhei para muitos se- horas esenhoras de bem! ‘Aaiiano respondia-lhe com outrasgragasepirue- tas. —Vaiete para ld marot! dia a ia Ursula meio séria, final nao teve outoremédio seniors; pos nin- szuém podia zangar-se com aquee tipo de ria rato El também como o amo tinha seus predcados suit apeciveis para os de sual além dso, era fel habilidoso, com jeito para tudo, giato, € um pouco lia ectae 2 entremetido dentro dos limites do respeito, falta esta que Edmundo tolerava em atencéo is suas outras qualidades necessrias. Bram quase da mesma idade, 0 servia desde a infincia,vsjou com ee, portano o estiavs quanto er possve eimar umn serve de misitos anos ‘Com poucas horas de convvénca com criado do dovtor a gorducha coziheira econheceu que o su s ni fel The quadrava perfeltamente,evirando-se 3+ boas, com ares de santa que no critica de mad, enquan- to prepara o almago contavethe a vida da maior parte dos habitants do lige acsbando por der: — Anda agora a pouco, a Carlota me pergzn- touseosenhor Dr é casa ousolteio, «eu dss caso sim, afrmou Adriano —Deixate de pros, queen sei gue nfo &.. — Bpor que nto de & moga oq sabia? — Porque ela € um anjo, eno quero gue vse engragar dos enfuados da ida, para depots fear cho- ‘and saudade,enquanto eles epg ao largo — Quem éexa Carlota, da Ural perguntow Aciano ~ Calas: dine a ta Cle, pond 0 indiador soto bios pra ferer seni. £ lade D. Raquela rofesoraaqu da csavcinha, hoje avi jane das — Abt Jé sei, € uma moga loura, bonita. disse ‘Adriano, — Sim senor! bonita e boa! a primeira cA da ter- +2. O pai € arranjado, tem uma boa fasenda na mata, ¢ depois a mie também tem seu ordenado, tr a menina ‘que é um gosto vé-la. Quando aparece uma moda € a pri- ‘meiraaboté-la. Eaqui para nés, 6 malseitosa; as cutras so umas empanturradas, que Ihes nfo acho sal Ea couinheia facia trejeitos, artemedando as mo- a8 do luge “4 ‘A Rainha do gpa Adriano aplaudia a comédia e instigava a tia Ursula a continuar nels; mas de epente perguntou: — Mas que diabo & ert Funests, de quem ougo falar por toda parte? Ainda pela mania, quando fut ds compras na taverna do Vit, oui dizer que & uma maga encantada que vive na gruta do Areré. sto 6 verdade? — Ail quem dera que foste mental. ise a da ‘Ursula comicamente triste. Ainda ext noite pla madtu- sada andou ela por ed a fazer iabeuras! Onde aparece deixa o sinal Olke, para o amanbecer de hoje, furtaram os porcos do Zé Perera! Num samba que houve al pra ‘aizo, pau roncou! E quem fou com as cacetads fo 0 pobre do Chico Timbats, ‘© Adriano deu uma gargabada — Forte adniragio, cia Ursula; em toda parte io se fart, no se brigal Ora esl —Jévvem odesavergonhado com as estirdias dee, disse a cornheiradesconfiada. Bem sei que em toda par te fare ese brig mas sto aqui nunce se dava; depois ‘que atal de Funestacomecoua sie da geutaea pasea de noite pelo povoado...olhaIé fart! Ola barulho! disse cla ainda aregalando os olhos € movendo a cabega em sinal afizmativo. — Ole! que pov tolo!exelamou Adriano. — Tolossto vocésé da cidade, que siounsinexéus! (© De Edmundo, que andavaparsesndo da sala acé ‘varand, outa conversa da cozinheira com Adtiano,¢ durante o rst do dia, no pensou em outea cosa sen ‘na apatigio da noite. O sou maior desejo era vistara gau- Vv AVISITA A GRUTA esos es eee pois de cer brilhado no frmamento azul, mer- ‘gla nas néseasnuvens do ocaso,parecendo dizer um eter no € saudoso adeus a0 dia que vai desaparecer para sem- ‘re no manto escuro do passado. Saltando, cabecesndo sobre as rochas, vinha um bbando de cabras acompanhadas por uma rapariguinha de ppouco mais de treze anos, ela trajava vestido de chitaroxa com ramagens encarnedas, traia um fichd a tracolo, e calgava tamancos de marroquim verde. ‘A cabreira era morena e quase feia; mas sua fisionomia franca e alegre inspirava conflanga e simpatia; acompanhando em zigue-zague o giro de suas cabras, ela ‘repava de rocha em rocha com a mesma slegria ¢com a ‘mesma aglidade de seu rebanho! Quedou-se de repente « seguit: pausadamente olhando a furto um elegante cavaleiro que vinha se apra. ximando; este parou, edise familiarmente — Por que andas ainda aqui a esta hora, Ritinha? ‘no tens medo da Funesta? — Cada vez tenho mais, senhor Edmundo, respon- eu ela, vou por aqui As carers; mas © que fazer? nfo pude voltar mais cedo... as maldias das eabras 56 me fal- taram por doida; erepa aqui, trea all, era um nunca aca- bar 4 ‘A Rainha do lgnata — Bonde estava o Valentim que nio velo ajudar- 1? disse Edmundo, — Ele foi com meu pai cortar um pouco de rama e ainda ndo voltou, respondeu Ritinha, com desembaraco; ‘mas, 0 Dr. Edmundo também aqui a esta hora... nfo tem smedo da Funesea? —Tenho, menins; mas, ando doido por encontré- ta — Deus o defends, Senor Doutoe Ela seria ca pet de o fae car do caval equebrat 0 pescogo! eae iremes cect cicho devia, — Ora se €, disse a menina, ¢ afastou-se correndo auris ds cabras Ber, Rink gritos Edmundo, Ensina-me eaminho ds gut. Vai porat mesa, volte ele apontou,che- aera ea — Obrigado, aré logo. Seiroeveye Dein raga no vi cr cm tm encanto! duno part cravand a sports no caval 0 Teale ese nea erraien estalavam-the nos cascos; mas ele de cabega quase a tocar ater, buscavasempre dean cpsta dag he davao aoe E que os brutos, que nds chamamos irracionais, eém inns exam conecinenm do perign, «saber telor I arse dele que mais abla sbio! Cerrmente, um envelo, uma eabra, ow um gro tebe melhor camino que lhe conve bord do preci peo que over mais ineligene do mundo! ogi eens ners Tipe eee rime Eula Frits a 8 gruta, Enquanto subia o monte, ia [endo em todas as pedras do caminho a palavra ‘Solitrio'. Era bem mereci do o nome, se era ele dado dquele lugar desertoe triste como a prépria mégos, ‘Chegado ao cimo da ladita, Edmundo avistou uma arande pedra a poucos passos; subia-se para ela por de- sgraus naturals que chegavam a0 assento daquele rstico ‘wono trabalhado caprichosamente pela mo da natureza, Edmundo estava amarrando o eavalo ao tronco de uma érvore, quando vin assomar no alto da peda a cabe- ‘ca negra e felpuda do Terra-Nova, que ele tinh visto no bow, na noite da serena, ‘Subiu um monterinho de terra vermelha esrelado de malacacheta ou mica, e escondlido por tris de uns at- busts, esperou, Pouco depois apareceu outro personagem do bore; ‘era um enorme efelo orangotango vestide a marujoetra- endo, pendente do cinturdo de couro de lustro, uma pis ‘ola — 0 orangotango & um mono sem eauda, disse Edmundo consigo; mas o que foi aquila que vi rastejando ' borda do bote para a digua do ria? Provavelmente algu- ‘ma corda atirada a0 acaso; estou certo que @ medo... 04.2 prevendo faz ver 0 que ni existe Era tal o esptito de curiosidade que dominava {que nem ousava mexer-e, tina os olhos ftos na arma de ogo que 0 mono afagava de vezem quando, ¢ Ihe parecia ver cada instante bilhar um relémpago, seu cavalo cait Mas, cal nfo sucedeu, pois © suposto marinero contentou-se em dar um salto acrobsticoecaitescanchado nase! 8 A Rainha do Ignoto (© animal, sob © peso do estranho cavaleiro,relin- chow, Imediatamente surgi, no alto da escada de peda, co valto majestoso da cantora do bote, da fada do Ateré. — King! exclamou ela com vor melodiosa e doce. (© orangotango foi sentar-se a seus pés no cltimo degrau, obediente como um rafeio. la continuava de pé com os olhosfces na exten- so dos campos vzinhos, Era uma estéeua de mérmore: ‘rajava veludo corde pirpura ou flor de amaranto, trasia ao peito,preso por uma roseta de bilhantes, um samo de saudades, Despregou-o e comecau a desfolhar uma a uma 2s belas flores, ftando triscemence as pecalazinhas perdidas ‘em redemoinho pelos aes. King tirou do boso um cachimbo a fumar sossegadamente Edmundo estavasuspenso} no pia formula uma 6 ida sobre tio extraordindriae misteriosaeriatural ‘As tristes sombras da noite iam se estendendo cada vee mais, As avezinhas da serra chilreando pelos ramos se ‘aproximavam dos ninhos, eos insecos zumbindo procura vvam as cavernas; mas ela continuava aolhar os campos © ‘azul do.céu. Tinha a vista embebida nascolunas de ouro {que osol desenhava nas nuvens, mergulhando por tris de ‘um monte escarpado. ‘Onossohersicuricso tendo necessidade de volar antes que as trevas Ie aleangassem em caminlos que mal comhecia,resolveu ser do esconderijoe parecer, fosse qual fosse 0 resultado. ‘A faa assustou-se, desceu precipitadamente os degraus de pedra e desaparecew no sopé do monte, segui- da por King eo Terra-Nova. iano, ese pos Edmundo acompanhou-lhe os passos ¢ descobriy entrada da gruta; mas tudo ali protestava contra a pas- sagem de um ser humana! Era impossivel penetrar naquela caverna escurfssima, onde esvoagavam em chusma repugnantes morcegoe. Ble partiu 8 desfiada para a povoagio,¢ chegou 2s sere horas da noice, cada vee mais atratdo para a fada do ‘Areré, chamada pelo povo — a Funesta v ACURIOSIDADE DA ALDEIA Peco ee surando conhecer o mistério da ruta do Azeré, o-eriado dava azo seu genio tagarelae faceta na venda do Vial. ‘All, dentre os quatro ou cinco freqlientadores da vvenda, era Adriano o mais letrado, por isso ele passeava ‘em frente do baleo, com as mos cruzadas nas costas € ‘com ares de imporcincia, a dar opiniso sobre rudo. — Que vem fazer aqui este doutor? perguntou um que chamavam Bento da Tapers. — Vem, disse outro, fazer a eleicSo, arranjar votos para.a chapa do governo, Ele engana-se! O povo daqui é ddurinhos no vira a casaca com dus rsadas! — Bu sei espondeu, outro, que omeu voto, ©0 de toda « minha parentel, & do partido do viginio — Qual! exclamou Adriano, todo apavonado, 0 Dr Edmundo nfo fez politica, ele em outras vistas. — Disseram-me, acudiu otavemeito, pesando um ‘quilograma de café, que ele 6 engenkeito da comissio de acudes, vem estudar os terrenos —Nada disto,senhores, disse Adriano satisiito por mostrar eonhecimento, oD. Edmundo €alquimista Que diabo vem a ser alquimista? perguntou um sujeico que acabava de esgocar um copo de aguardente. Enulia Feics st —Algquimisa é aquele que exerce a Alquimia Rebentou uma gargalhada geal, ¢ disse uma vor: — Fala portugués, homem! Ninguém aqui é “inguils’ nem intaliano para enten. Sim, meus senhores,falou Adriano com vor ar- rogante, a Alquimia & a arte de eransformat ot metais em — Bravo! gritouo Bento da Tapera, otewamo deve ser muito rico, visto saber fetigaria! Rico como um Nababo, afrmou Adriano, ean- tendo © tiso € fugindo apressado para a tua, pois tinha visto Edmundo apeat-se& porta de cas, O vendilhio ficou dizendo: — Este Adriano sabe de coisas! (Os outros continuaram a comentar a chegada do doutor Nos lugares pequencs, nas aldeias,asnovidades sio poucas ou antes nenhumas, quando pass ali um viajante, se traz a sobrecesaca aboroada. 6 faltam desatacé-la para verse ocolete cem botdes! Se le tz consigo mulher im’ ‘ou filha, a primeira coisa que notam é se ela usa brincos, s©.05 no usa, serve isto de assunto para uma semana de conversagio na visinhanga, Logo a chegada, os garotas tomam posse das portas «ejanelas e 0 pobre viajante no pode mais dar um passo ‘que nfo seja sob 2s vistas dessasincémodas sentinels. las passam revista na bagagem, © correm Acasa a evar as novas as mies ou amas que fcaram & janela, de ppescoco estirado, procurando também ver alguma coisa Conhecemas uma professora (e nfo era professor de aldeia, ensinava em uma coldnia de emigrantes cearenses no substbio de uma capital do norte do Brasil), ififazia mais de um ano que ela ali estava, ainda todos os 2 A Raia do grote homens, todas as mulheres e todos 6s meninos e meninas {que Ihe passavam pela porta diam em tom de novidades — Aqui é a escola! La esta professoral ‘Muitas wezes estes mesmosrapazes ou rapatigas t= pavam no peitori da janelae ali passavam tardes inteiras ‘com os olhos ftosnela, observando-a em todos os movi ‘mentos! Se viam um gato deitado no corredor, pergunta ‘vam mas a OUTS — Aquele gato é dela? ‘A prineipio, logo na chegada era uma verdadeira perseguigdo! Em uma tarde estavaa triste desterrada cos- turando, e asustou-se vendo duas mulheres que, acom- ppanhads de seus pequenotes,abriam ferrolho da meia porta, entravam, e-vinham postarem:-se silenciosas e ad tniradas por tris da cadeira onde ela costurava; a0 mesmo tempo, os pequencs trepavam nas carteras, derribavanm as eadeirase derramavam tint. ise, entio, a professor: — As senhorastém algum negécio a ratar comi- pot —Nio dona, estamos vendo vosmic# costurar. Eetiraram-xe como se fossem uns espectros! De ouera vee em uma mani entraram outras di endo: — Queremos ver o que a senhora esté fazendo Is eno. — Estava arrumando a despensa, disse ela; ma j acabei,¢ visto ser ahora da aula, pecolicenca para mudar de vest e arranja-me. — Pois nds queremos vé-la vestirse Isto parece incrivel, mas € um fato. A professora centrou para a aleova com cara de 16, enttetanto elas no Emilia Frets 3 renunciaram 20 propésito (ou antes despropésito),enfi ram de porta adentro, comaram conta do quarto, do lito, dos cabides até dosbats, nfo ficando objeto de roucedor ‘ou peca de vesturio a que nfo passassom uma revista em ‘Sto estes 0s costumes, nfo digo de toda, mas da maior parte das gentes das aldeias. ‘Edmundo, formado, mogo bem parecide, e apre- sentando-se no lugar sem uma recomendacio, sem dizer a {que vinha, era um acontecimento, ui caso estranho! Durante « primeira semana no falaram de outra coisa Se ele passa por uma clcada onde havia uma roda de homens a conversa, estes diam de unsparaas outros, —Eotal doutorsinho! = Que bisca ser esta? perguntava um. —E que vir fazer? perguntava outro. —Tomar ares, respondia o terceiro. — Aces ia-s o primeiro, parece vender sai Mais adiante, das janelase da porta, as rnulheres colhavem-no curiosas,¢ uma velha beat fera-lhe cruzes pelas costas,¢ exclamava indignada: — Bu te arrenego, mazon! eu te desconjuro pro- testantel Néo filha minha, que casasse contigo. Esté ou- vind vizinha? Ele ainda nao foi A igrejal epassa pela san to Cruzeiro com o chapéu na cabega como um ineréu!.. * Mas, enquanto os homens murmurava, as velhas beatas se bensiam, as mocas ocultas porbaixo das etulas? ‘estremeciam de enleo,e cochichavam entre i Como é bonita! —Nem se parece com os matutos dagui, dic uma ‘com pretensées a civilizada, st A Raina da gnoto — Credo! Naninha, seo Cazuza soubesse nunca ‘mais olhava para ti —Que me importa? Eu nfo gosto dele. vou dizer he, —Corre, inh, vai dizer 9 Cazuza Melo, que ev, Naninha Azevedo disse: © doutor Edmundo Lemos é o ‘moo mais bonito © mais simpstico que jé pisou as mar- gens do Jaguaribe! — Nilo vi, Sinhé, ponderava uma mais sensata, {sto se passa aqui entre nds, € um gracejo. asmogas acabavam emisadas econfidéncis ale- res. ‘Assim ia Edmundo fazendo a preocupasio daque- la temporada eampestre VI UM CONHECIMENTO ANTIGO ‘aio, o belo més das flores jf ia ema meio, & na suas tatdes serenas etépidas, as andori- ‘ohas, estas mensageiras do fim do inverno cortavam os ates € chilreando procuravam os ninhos nos velhos mu- os, nas janelasecimalhas das casas. ‘Edmundo, acompanhando com a vista os recorta ‘dos vdos dessas aves de pascagem ou atibagio, sentou-se junco a janela aberta, ¢repassava pela mente o que tinha visto na tarde ancriar sobre o monte Solitrio da serra do Areré. De repente ouviu uma var de pessoa muito sue conhecida que falava na calgada da easa viinha, e, sur- preendido, escutou =D. Raquel, nfo me dio que tema Carlotinha, ‘que ndo vai mais a nossa casa? — Oh! D, Matilde, 66 fix uma semana que deixei de ii, dssera de dentro uma var infant, — Bela mesma, disse Edmundo consi, j4 um pouco alvorogado por encontrar na aldeia um conheci- ‘mento antigo, da cidade . Matilde continuow com as quetxas: —Unma semana, para quem a todos dias, €mui- to tempo, vale uma zanga! 56 A Rainha do ignoeo — & verdade, D. Matilde, disse a professora visi- tha de Edmundo, esta menina deu em um nerves. 880 {quer snr, vai até emagrecendo. Isto € do croché, D. Raquel, os médicos disem aque fac muito mal este trabalho, — Eu sei disco D. Matilde; mas as mogas de hoje ‘no querem fazer outra coisa, porque nao The dé ugar a starem A jancl... Em nosso tempo os trabalhos eram ou — Eu ja vou desconfiando, disse D. Matilde, que anda mouro na costa. }6 hé mais de uma semana que velo morar, para estes lados, um dourorzinho de quem se fala muico na terra, —Baixo! mame, baixo! Mi estéclena janela, disse uma moga morena que estava ao lado de D. Matilde. — Gentes! que vejo?.. fo Dr Edmundo... excla- mou ela voltando-se pata o lado da janela — Um seu criado, D. Matilde, vi que no esque- e os antigosconhecimentos, respondeu ele depois de uma cortesia alive — Muito bem, mas o senor esquece, pois chegou 5h uma semana, e ainda nfo fo ¥ nossa casa. Nilo sabia que estava aqui, disse ee saindo para acalgada,cenquento apercavaa mio de D. Matilde, clhava estranho para as duas mogas que estavam 2 seu lado, —Nio conhece, dautor! Estaé Henriqueta, cesta 6 Malvina. O senor as viu ainda pequenas; jf esto cres- cidas, ums mocas.. “= Bonieas! dise ele familiarmence — Néo sejalisonjeiro, Doutor; veja que estamos na Toga, aqui nfo se usam os galanteios de sal. — Aqui o que niio se usam sfo 08 fingimentos de Is, disse a profesora oferecendo cadeiras aos crcunstan Emin Frits 3 — Muito bem, minha senhora, confirmou Edmundo sencando-se,dispost a palestar ‘Tados fleram o mesmo com exceglo do dono da ‘asa que mandou vir uma espreguigadeirae acomodou-se rela o methor que péde. © Senhor Martins, assim se cha ‘ava ele, era um obeso bonachio, sempre pronto para rt (Chamow a filha que tinha feado na sal: Que fazes af Carlorinhia? Queres que techamem E porque estou endefluxada, disse a menina, © sereno me faz mal —Deixa da colice, disse Henriques, vem sentar te ao pé de mim. A moga sengou-seente as outs © co smegou a fla em vor baa com eas, . Matilde contin: —Entio, Doutor, vei vsar amin cerca? Sus, D, Matilde Sempre juli que a senhora fossepernambuean —Nio; morei 4 vinte anos, minhasfilhas sio permambucanas asin como o pai; mas eu sou filha mes- ro deste lugareo e enho gosto nso; fio aco a minha certs pornenhume outa — Apoindo! D. Mace; exclamou o Se. Mastins, sapere esta fo. cprocuravaerguerseadespito do gran- de abdémen —E minha pati, de Edmundo, também sou czarense, nas na Fortales. —A mamae também € de i lembrou Carlotisha timidamente. —E Vossa Exceléncit perguntou Edmund — Bu sou dag, espondeu a menina baisando os clos 58 A Relat da ignoto — Que tem? disse maliciosamente Henriqueta, a CCarlocinha sence um desgosto de ser matutal —Se ela acudiu a mie, nfo tem para onde fugit — Mamie também, dsse a menina tistemente Edmundo veio em seu socorro —Niio importa, D. Carlotinha, valea pena ser uma flor silvestre quand se pode rvalizar com as rosas dos jar- ins Ob! Doutor exclamou D. Matilde, pelo amor de Deus perca este cortume... Osenhor pensa estar ainda nos saies de Paris = Se D. Matilde fosse moga, Doutos observou o senhor Martins, havia de querer lisonjeiros até na rosa, Edmundo aplaudiu 0 dito do pai de Carlotinha, , Maclde iu-se contrafeita De repente ele perguntou: —Sabe o que é feito de Gustavo? — Qual? perguntou D. Matilde, 60 Gustavo Men dest Nao, flo naguele que foi meu companheiro de replica, 0 Gustavo Brags — Ah! meu Deus! Este € meu genro, casou com a ‘minha Alice e est muito pert, éjuiz de dieito do Aracati —Bureparei aauséncia de D- Alice, dise ele, mas ‘nfo perguntei por ela, porque supus que tinhafleado em — Hoje x o Senhor a vir nfo conhece disse D. ‘Matilde: ests gorda como uma abadessal Tem dois ilhos tum menino que vale um trovSo! e uma menina que € um. relampago! Mas ela fica cada ver mais moca! 0 marido é tum pateta com ela, fz-lhe todas as vontades! — Sempre pense, observou Edmundo timidamen- te, que Gustavo easase com D. Virginia, falava-me dela nui Frets 3 com um tal entusasmo que eu ojulgava verdairamente apaixonado — Coitadal Doutor A pobre de minha sbrina est ea. fs pea, 6 tem a pele pegads os oso! Mas, paseo aseverar que ela deve nquela molésa a0 genio. ‘Quero-he muito em, pore acre dee pequena como fa. entetnto sé eu sei quem et al — Tilver me tenha enganao,volveu Edmundo; sas me pareceu sempre multosesatae dei —Erasim,confimouD. Matilde; masde uns anos para cé; midou tanto, que néo parece « mesma! © Dr sabe quanto elacranimiga de estas psscios seu prin- cipal enteteniment eram:o piano, x costura eos Hivos, ‘no evvamos toa ma porque, apes de ado, ea ale- ae afivel para com zodos...Deois, passava uma semae ‘ae mais qe ning em cas he ouvia os! Mas, era falas cm um bile em umn expetcu- Jo, cla eraa mais empenhada em ir dase Heniqueta. As ‘ete a mania ou amamie no esavam dispo alguma festa para que haviam ido convite cela tanto me instigava a pedicthes qu foster, qu final else = Também era 6 quand se via Gina alegre, cobservou Malvina = Uma coisa era ver © out dss, tomou D. Mail, minha sobrinha dangava até ca xa, em forgas! Nunca vasou em outeo tempo, fi aparece be a rola. vabava., valbava até nao poder mast = Mas, em una ocasio {othe fatal a loucural disse Henriqueta; depois de dangar assim, arquejante de cansao caiu sobre uma cada quasedesmaiada. Levou o lego boa, eiou-0 manchado de sangue! = Que agonia para todos ns! exelamo D. Mati, o Dr Clementino Penha estava presente, audi o ‘A Rainha do lgnota de pronto; mas ela rejeitou os seus servigos dizendo que no era nada, que passva logo. Fui com meu genro pedit- The que se re-ticasse do baile. Saber o que me respondeu: “Deixe-me, tia Matilde, estou aqui muito bers Jase viu. — Ora, disse Henriqueta, cinco minutos depois 0 Eduardo Gama levou-a parao piano ela cantou uma dria! — Serviu de admiracio, lembrow Malvina; houve senhoras que choraram. —E outras se indignaram, menina, torou D. ‘Matilde, Vejam s6 se isto nfo forga de genio. Nao vejo pelo mesmo prism, D. Matilde, repli- cou Edmundo, abstendo-se de patentear 0 seu juizo sabre —Ninguém meconvence, Doutor, Aquila erabit- +; pois Virginia j muito doente,rossndo, ia a um espeti- culo itico (bem contra minba vontade) , quando voltiva- ‘mos uma ou duas horas da macirugada, ela sentava-se 20 plano e tocava quase até de manh! Era preciso quecu me Tevantase, efosse obrigé-laadeitar-se hanhada em suc. desfalecidal No outro dia nfo se levantava da cama! Pobre mogal exclamou Edmundo com tristeza, —Nio pense o senor que minha sobrinha é mal- ‘atada; io é tenho feito por ela o que fria por minhas filhas. —Deseulpe-me, D, Matilde, nto me refro a iss, disse Edmundo, levantando-se para retira-se. — Vamos, minhas filha, disse D. Matilde, também levantando-se; a noite est escura e nossa casa fa um pouca lone. — Onde fica? perguntou o doutor — Junto ireja, sabe? Una casa de frente amare la com vulas verdes Enis Fre a Sei, disse ee, se permite que as acompanhe, es- tow is ordens. Sim, agradego-Ihe muito fineza.. A ruajéesté ‘quase toda fechads... Meu Deus, que povo para dormir ced! —Por causa da Funesta, disse Edmundo gracojan- do, — Asé.o senhor que chegou bem dizer ontem, jé couviu falar nesta patranba, observou o St. Martins. —Talvez mais do que 0 senhor, respondew Edmundo jem caminbo. Ble deixou as tagarelas& porta de sua residénciae prometeu-thes em breve voltar al. Vit AMBOS PENSAVAM, MAS COM ALVOS DIFERENTES ee Som | Botatemermneer eens a ee Cee eee co ee ee os Souiees peace So aera eee ne aa eee ao earn ccee pote eee ee eee eer ete eens dl eta Se wears eng See eure neor mio ce = Fla ia fazer dezesseis anos, além dos liveos de es tudo e de sew manual de missa s6 havia lido o Flos Sanetoram, que Ihe emprestara o seu padsinho, vigirio da feguesia. Emilia Frets 5 Com as meninas de sua ide tatava somente s0- ‘bre modas e erabalhos de agulha ou entdo sobre 0s novos ‘nticos religiosos que sua mie estava ensaiando pera 8 préxima festividade, Mas coda esta inocncia preparatéria no obstou. que a filha da professora, na tarde em que viu o Dr. Edmundo apear-se& porta da casa visinha sentisse os pr ‘meiros re-ates do amor. Ena ingenuidade de seu pensa- ‘mento, puro como de um anjo, satisfaia-se com os enle- vos do nova sentimento, enéo desejava que ele fosse des-

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