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“Arrependei-vos e crede no evangelho” (Marcos 1.15).

Nosso Senhor Jesus Cristo começou seu ministério anunciando suas


principais ordens. Ungido recentemente, Ele saiu do deserto, como o noivo
sai de sua câmara. As suas notas de amor são arrependimento e fé. Ele
surge completamente preparado para exercer seu ofício, depois de
permanecer no deserto e ser “tentado em todas as coisas, à nossa
semelhança, mas sem pecado” (Hb 4.15)... Escutai, ó céus, e dá ouvidos, ó
terra, porque o Messias fala na grandeza de seu poder. Ele clama aos filhos
dos homens: “Arrependei-vos e crede no evangelho”. Atentemos a essas
palavras, que, como o seu Autor, estão cheias de graça e verdade. Diante
de nós, temos o resumo e a essência de todo o ensino de Cristo, o alfa e o
ômega de todo o seu ministério. Procedentes de lábios de tal Pessoa,
naquele momento, com poder especial, devemos dar-lhes a mais sincera
atenção. Que Deus nos ajude a obedecer a essas palavras, em nosso
coração.

Devo começar observando que o evangelho pregado por Cristo era


claramente uma ordem: “Arrependei-vos e crede no evangelho”. Nosso
Senhor condescendeu em arrazoar. Às vezes, em seu ministério, Ele
representou graciosamente o antigo texto: “Vinde, pois, e arrazoemos, diz o
Senhor; ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se
tornarão brancos como a neve” (Is 1.18). Ele persuade os homens por meio
de sua mensagem e de argumentos poderosos, que os levam a buscar a
salvação de sua alma. O Senhor Jesus chama os homens. Oh! quão
amavelmente Ele os convida a serem sábios! “Vinde a mim, todos os que
estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mt 11.28). O Senhor
Jesus roga aos homens; Ele condescende em tornar-se, por assim dizer, um
pedinte às suas criaturas pecaminosas, implorando-as a vir. De fato, o
Senhor Jesus faz disso a incumbência de seus ministros — “Somos
embaixadores em nome de Cristo, como se Deus exortasse por nosso
intermédio. Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com
Deus” (2 Co 5.20).

No entanto, vocês devem lembrar que, embora Ele tenha condescendido


em arrazoar, persuadir, chamar e rogar, o evangelho tem, em si mesmo, a
força e a dignidade de uma ordem. Se queremos pregar hoje como Cristo
pregou, temos de proclamar o evangelho como uma ordem de Deus,
acompanhada de sanção divina, que não deve ser negligenciada, exceto ao
risco infinito da alma... “Arrependei-vos” é uma ordem de Deus, tal como o
mandamento de “não roubarás” (Ex 20.15). “Crê no Senhor Jesus” possui
tanta autoridade divina como “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu
coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu
entendimento” (Lc 10.27).

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Ó homens, não pensem que o evangelho é algo deixado a escolherem ou
não, conforme acharem! Ó pecadores, não imaginem que podem desprezar
uma Palavra do céu e não incorrer em culpa! Não pensem que podem
negligenciar o evangelho, e nenhuma conseqüência má lhes sobrevirá. Essa
negligência e desprezo aumenta a medida da iniqüidade de vocês. É a
respeito disso que clamamos: “Como escaparemos nós, se negligenciarmos
tão grande salvação?” (Hb 2.3). Deus ordena que vocês se arrependam! O
mesmo Deus diante de quem o Sinai se abalou e foi tomado por escuridão
— esse mesmo Deus, que proclamou a Lei, com som de trombeta, com
raios e trovões, falou-nos de modo mais gentil, porém divino, mediante seu
Filho unigênito, quando disse: “Arrependei-vos e crede no evangelho”.

Devemos ressoar esse decreto de Deus a todas as nações da terra. Ó


homens, Jeová, que os criou, que lhes dá respiração, a quem vocês têm
ofendido, ordena-lhes que se arrependam hoje e creiam no evangelho...Sei
que alguns irmãos não gostam disso, mas não posso deixar de falar. Nunca
serei escravo de sistemas, pois o Senhor removeu esses grilhões de ferro
de meu pescoço. Agora sou um servo feliz da verdade que liberta. Quer
ofenda, quer agrade, à medida que Deus me ajude, pregarei cada verdade
como a aprendi da Palavra. Sei que, se há algo escrito na Bíblia, esta
verdade está escrita com bastante clareza: Deus ordena, em Cristo, que os
homens se arrependam e creiam no evangelho. Uma das provas mais
tristes da depravação completa do homem é o fato de que ele não
obedecerá esse mandamento; antes, rejeitará a Cristo e tornará a sua
condenação mais grave do que a de Sodoma e Gomorra...

O evangelho é um mandamento, é um mandamento que se explica em


duas ordens: “arrependei-vos e crede no evangelho”. Conheço alguns
irmãos bem excelentes — aprouvera a Deus que houvesse mais desses
irmãos — que, em seu zelo por pregar a fé simples em Cristo, têm sentido
um pouco de dificuldade no assunto do arrependimento. Conheço alguns
deles que tentaram remover a dificuldade abrandando a aparente
severidade da palavra arrependimento, expondo-a de acordo com o termo
grego equivalente e mais usual, um termo que ocorre no original grego de
meu versículo e significa “mudar a mente”. Aparentemente, eles
interpretam o arrependimento como algo mais brando do que o
concebemos, uma mudança simples na maneira de pensar. Ora, desejo
sugerir a esses queridos irmãos que o Espírito Santo nunca prega o
arrependimento como uma trivialidade. A mudança na maneira de pensar e
no entendimento, sobre a qual o evangelho fala, é uma obra mais profunda
e solene e não deve ser depreciada por motivo algum.

Além disso, há outra palavra também usada no original grego que significa
arrependimento; não é usada com freqüência, eu admito. Ela significa “uma
preocupação posterior”, aproximando-se mais do sentido de tristeza ou
ansiedade do que aquela que significa mudar a maneira de pensar. No
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verdadeiro arrependimento, deve haver tristeza e ódio para com o pecado;
do contrário, li a minha Bíblia sem qualquer propósito... O arrependimento
significa realmente uma mudança na maneira de pensar. Mas é uma
mudança completa do entendimento e de tudo que está na mente. Por isso,
inclui iluminação, a iluminação do Espírito Santo. Acho que inclui uma
descoberta da iniqüidade e ódio para com o pecado, sem os quais não pode
haver arrependimento autêntico. Penso que não devemos subestimar o
arrependimento. É uma graça bendita de Deus, o Espírito Santo; é uma
graça absolutamente necessária para a salvação.

A ordem explica-se a si mesma. Consideraremos, em primeiro lugar, o


arrependimento. É certo que, mesmo não levando em conta o significado
arrependimento neste versículo, ele é consistente com a fé. Portanto, de
sua conexão com a próxima ordem — “Crede no evangelho” — obtemos a
explicação quanto ao significado do arrependimento... Lembrem-se de que
nenhum arrependimento é digno desse nome, se não é perfeitamente
consistente com a fé em Cristo. Um antigo crente, em seu leito de
enfermidade, usou esta admirável expressão: “Senhor, em arrependimento
faze-me descer tão baixo como o inferno, mas” — eis a beleza de sua
expressão — “em fé, ergue-me tão alto como o céu”. Ora, o
arrependimento que faz um homem descer tão baixo como o inferno não
serve para nada, se não houver a fé que o ergue tão alto como o céu! Os
dois são perfeitamente coerentes. Um homem pode detestar e abominar a
si mesmo e, ao mesmo tempo, saber que Cristo é poderoso para salvar e o
salvou. De fato, é assim que os verdadeiros cristãos vivem. Eles se
arrependem tão amargamente de seu pecado como se soubessem que
deveriam ser condenados por causa do pecado cometido, mas se regozijam
tanto em Cristo como se o pecado não fosse nada.

Oh! quão bendito é saber onde estas duas linhas se encontram, o despir do
arrependimento e o vestir da fé. O arrependimento que despeja o pecado
como um inquilino maligno e a fé que recebe a Cristo para ser um único
Senhor do coração; o arrependimento que limpa a alma de obras mortas e a
fé que enche a alma com obras vivas; o arrependimento que destrói e a fé
que a edifica; o arrependimento que espalha pedras e a fé que ajunta
pedras; o arrependimento que ordena um tempo de chorar e a fé que dá
um tempo de saltar de alegria — essas duas coisas juntas constituem a
obra da graça no íntimo pela qual a alma do homem é salva. Mas deve ficar
estabelecido como grande verdade, escrita com bastante clareza em nosso
versículo, o fato de que o arrependimento que devemos pregar está
vinculado à fé. Assim, temos de pregar o arrependimento e a fé juntos, sem
qualquer dificuldade...

Isso me traz à segunda metade do mandamento: “Crede no evangelho”. A


fé significa confiança em Cristo. Ora, devo observar novamente que alguns
têm pregado esta confiança em Cristo tão bem e de modo tão completo,
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que não posso senão admirar sua fidelidade e bendizer a Deus por eles.
Contudo, há uma dificuldade e um perigo. Talvez, ao pregarem a simples
confiança em Cristo como o meio de salvação, eles deixam de lembrar ao
pecador que nenhuma fé é genuína se não é consistente com o
arrependimento de pecados passados. O meu versículo parece dizer isso
nos seguintes termos: nenhum arrependimento é verdadeiro, senão aquele
que se harmoniza com a fé; nenhuma fé é verdadeira, senão aquela que
está conectada com um arrependimento sincero e profundo de pecados
passados.

Então, queridos amigos, aqueles que têm uma fé que lhes permite pensar
levianamente sobre os pecados passados, esses têm uma fé dos demônios
e não a fé dos eleitos de Deus... Têm uma fé que lhes permite viver de
modo leviano, no presente. Eles dizem: “Bem, eu sou salvo por uma fé
simples” e, em seguida, assentam-se na mesa de cerveja, com os bêbados,
ou permanecem no bar com os ébrios, ou seguem companhias mundanas e
desfrutam de prazeres carnais e da concupiscência da carne — eles são
mentirosos. Não têm a fé que salva a alma. Têm uma hipocrisia enganosa;
não têm a fé que os levaria ao céu.

Há outras pessoas que têm uma fé que não as leva ao ódio pelo pecado.
Não sentem qualquer vergonha quando vêem o pecado dos outros. É
verdade que não se comportariam como os outros se comportam, mas se
alegram com o que eles fazem. Acham prazer nos erros dos outros, sorriem
de suas atitudes profanas e de sua linguagem imprópria. Não fogem do
pecado como se este fosse uma serpente, nem o detestam como o
assassino de seu melhor amigo. Não. Elas flertam com o pecado. Cometem
em privacidade o que condenam em público. Chamam as ofensas graves de
erros leves e pequenas falhas. Nos negócios, elas fingem não ver
afastamentos da retidão e consideram-nos apenas coisas do comércio. O
fato, porém, é que elas têm uma fé que se assenta lado a lado com o
pecado, come e bebe à mesma mesa com a injustiça. Oh! se vocês têm
esse tipo de fé, peço a Deus que a retire de seu coração. Não lhes serve de
modo algum! Quanto mais rápido se livrarem dela, tanto melhor será para
vocês; pois, quando este fundamento de areia for removido, talvez
comecem a edificar sobre a Rocha.

Meus queridos amigos, quero ser bastante fiel para com sua alma e atingir
o seu coração. Qual é o seu arrependimento? Vocês têm o arrependimento
que os faz olhar para fora de si mesmos, para Cristo, tão-somente para
Cristo? Por outro lado, têm aquela fé que os leva ao verdadeiro
arrependimento? Que os leva a odiar até o pensamento de pecado, de
modo que desejam remover do trono o seu ídolo mais querido, não importa
qual seja, para que adorem a Cristo, apenas a Cristo? Assegurem-se disto:
nada aquém desse arrependimento lhes será proveitoso, no final. Um
arrependimento e uma fé de outro tipo podes lhe agradar agora, como as
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crianças agradam-se com ilusões. Mas, quando chegarem ao leito de morte
e perceberem a realidade das coisas, serão compelidos a dizer que seu
arrependimento e sua fé eram uma falsidade e um refúgio de mentiras.
Descobrirão que enganavam-se a si mesmos. Diziam a si mesmos: “Paz,
paz”, quando não havia paz.

Digo, novamente, nas palavras de Cristo: “Arrependei-vos e crede no


evangelho”. Confiem em Cristo para salvá-los, lamentem que ainda
precisam ser salvos e que esta necessidade expôs o Senhor a vergonha
pública, a sofrimentos pavorosos e a morte terrível.

que o amor de Cristo nos constrange." — 2 Corintios 5:14

De todos os aspectos do caráter do apóstolo Paulo, a sua atividade


incansável era a mais marcante. Com base na sua história inicial, que nos
conta acerca de seus esforços pessoais como assolador da Igreja Primitiva,
quando ele era um injurioso blasfemador e perseguidor, fica muito claro que
essa era a característica proeminente de sua mente natural. Mas quando
agradou ao Senhor Jesus Cristo manifestar nele toda a Sua longanimidade e
fazer dele um padrão para aqueles que depois haveriam de crer n'Ele, é
belo e muito instrutivo ver como as características naturais deste homem,
atrevidamente mau, tornaram-se não somente santificadas, como também
revigoradas e aumentadas. Verdadeiramente todo aquele que está em Cristo
é uma nova criação, "as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez
novo". "Em tudo somos atribulados, porém, não angustiados; perplexos, po-
rém não desanimados; perseguidos, porém não desamparados; abatidos,
porém não destruídos", Tal era a figura fiel de Paulo depois de convertido.
Conhecendo os terrores do Senhor e a temível situação de todos os que
estavam ainda em seus pecados, o alvo de sua vida era persuadir os
homens. Ele lutava para que, se possível, recomendasse a verdade para as
suas consciências. "Porque, se enlouquecemos é para Deus; e, se
conservamos o juízo, é para vós", (versículo 13).

Não importa se o mundo nos considera sábios ou loucos, a causa de Deus e


das almas humanas é aquela na qual estamos pondo todas as nossas ener-
gias. Quem, então, não estaria disposto a perguntar acerca da motivação de
todos esses labores sobrenaturais? Quem não desejaria ter escutado dos pró-
prios lábios de Paulo o princípio poderoso que o impelia através de tantas
labutas e perigos Que fórmula mágica apossou-se dessa mente poderosa,
ou que influência astrológica imperceptível, com poder incessante,

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encorajou-o a avançar através de todos os desalentos, fazendo-o indiferente
tanto ao riso sarcástico do mundo como ao temor do homem; igualmente
indiferente ao sorriso do cético ateniense, da carranca do luxurioso coríntio e
da fúria do judeu de mente fechada? Que diz o próprio apóstolo? Temos sua
explicação do mistério nas palavras seguintes: "O amor de Cristo nos
constrange".
CONSTRANGEDOR AMOR DE CRISTO

Desde que a morte de Cristo é apontada por todos como o exemplo de Seu
amor, torna-se óbvio pela explicação seguinte que aqui se trata do Seu amor
para com o homem e não do nosso amor para com Ele. (Veja 2 Coríntios
5:15). Foi a visão da extraordinária compaixão do Salvador, movendo-o a
morrer pelos Seus inimigos, a sofrer tremendamente por todos os pecados
deles e provar a morte por todos os homens, que deu a Paulo o impulso em
cada combate, que tornou qualquer sofrimento leve para ele e fez com que
nenhum mandamento lhe fosse pesado. Ele correu com paciência a carreira
que lhe estava proposta. Por que? Porque -olhando para Jesus ele viveu
como um homem "crucificado para o mundo e o mundo crucificado para
ele". De que forma? Olhando para a cruz de Cristo.

Como o sol natural exerce uma poderosa e incessante atração sobre os


planetas que giram ao seu redor, assim também fez o Sol da justiça, que de
fato nascera no apóstolo Paulo, com um brilho superior ao do sol meridiano,
exercendo sobre sua mente uma contínua e toda-poderosa energia,
constrangendo-o a viver dali para frente não mais para si mesmo, e sim
para Aquele que morrera e ressurgira por ele. Outrossim, observe que isso
não foi uma atração temporária ou intermitente que se exerceu sobre seu
coração e vida, mas uma contínua e permanente atração. Ele não diz que o
amor de Cristo uma vez o constrangeu ou que o constrangeria, nem que nos
momentos de emoção, de oração ou de devoção especial o amor de Cristo
costumava constrangê-lo. O apóstolo disse simplesmente que o amor de
Cristo o constrange. Ê o sempre presente, sempre permanente, sempre
ativador poder que forma o motivo principal de todo o seu trabalho; de tal
forma que, retirado isso, suas energias se vão embora e Paulo se torna fraco
como os outros homens.

Lendo essas palavras, porventura haveria um coração desejoso de possuir


tal princípio-mestre? Não haveria alguém que tenha chegado àquele estágio
mais interessante da experiência cristã, no qual esteja suspirando por um
poder para tornar-se novo? Você já entrou pela porta estreita da fé. Você já
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viu que não há paz para o não justificado e portanto tens te revestido de
Cristo como tua justiça e já sentes algo do gozo e paz do crente. Você pode
olhar para tua vida do passado, sem Deus no mundo, sem Cristo no mundo
e sem o Espírito no mundo; pode ver a ti mesmo como um condenado
rechaçado e então diz: "Mesmo que lavasse minhas mãos em água de neve,
ainda assim minhas próprias roupas me aborreceriam". É verdade que você
pode fazer tudo isso com vergonha e auto-reprovação, porém, sem
desânimo e desespero, pois teus olhos têm sido erguidos com fé para Aquele
que foi feito pecado por nós e você está persuadido de que, como agradou a
Deus lançar todas as tuas iniquidades na conta do Salvador, assim Ele deseja
e tem sempre desejado, atribuir toda a justiça do Salvador a você. Sem
desespero, disse eu? Mais ainda, com gozo e cântico; pois, se na realidade
crês de todo o coração, então chegaste à bem-aventurança daquele a quem
Deus imputa justiça sem obras; o qual Davi descreve, dizendo: "Bem-
aventurado é aquele cuja transgressão é perdoada, cujo pecado é coberto.
Bem-aventurado é o homem a quem o Senhor não imputa iniqüidade".
(Salmo 32:1-2).

Esta é a paz do homem justificado. Mas esta paz é um estado de perfeita


bem-aventurança? Não há mais nada a desejar? Eu apelo àqueles que
sabem o que é ser justificado pela fé. Que é que ainda turva o semblante,
que reprime a exultação do espírito? Por que nem sempre podemos
participar na canção de ações de graças, "Bendiz o Senhor, ó minha alma e
não te esqueças de nenhum de seus benefícios. É ele que perdoa todas as
tuas iniquidades"? Se já recebemos o perdão dos nossos pecados, por que
seria necessário argumentarmos como o salmista que clama: "Por que estás
abatida ó minha alma e por que te perturbas em mim"? Meus amigos, entre
vocês não existe um crente verdadeiro que tenha deixado de sentir este
inquietante sentimento do qual estou falando. Pode haver alguns que o
tenham sentido de maneira tão dolorosa que, como uma nuvem negra, tem
obscurecído a doce luz da paz do evangelho e o brilho do rosto da pessoa
reconciliada. O pensamento é este: "Sou um homem justificado, mas ai de
mim! não sou um homem santificado, Posso olhar para minha vida passada
sem desespero, mas como poderei olhar para frente, àquilo que está no
futuro"?

Não há um panorama moral mais pitoresco em todo o universo do que o


apresentado. por essa alma. Perdoadas todas as transgressões passadas, o
olhar volta-se para o interior com uma clareza e imparcialidade
desconhecidas anteriormente, e aí contempla suas afeições voltadas para o
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pecado as quais, como rios correntosos, já cavaram um canal profundo no
coração. Também vê suas crises periódicas de paixão, outrora irresistível e
sobrepujante como as marés do oceano junto com suas perversidades de
temperamento e hábito, pervertidos e obstinados, como os ramos retorcidos
de um carvalho impedido de crescer. Que cena temos aqui! que antecipação
do futuro! que pressentimentos de uma luta em vão contra a tirania da
concupiscência! contra a velha maneira de agir, de falar e de pensar! Não
fosse a esperança da glória de Deus, que é um dos benefícios concedidos ao
homem justificado, quem ficaria surpreso se esta visão de terror levasse o
homem de volta, como um cachorro ao seu vômito, ou como a porca que foi
lavada a mergulhar novamente no lamaçal?

É para o homem que está exatamente nessa situação, clamando dia e


noite: como poderei me tornar novo? Que bem faz a mim o perdão dos
pecados passados se não sou libertado do amor ao pecado? — é para esse
homem que vamos agora, com todo o zelo e afeição indicar o exemplo de
Paulo e o poder interior que operou nele. "O amor de Cristo" (diz Paulo)
"nos constrange". Nós também somos homens que temos as mesmas
paixões que vocês; aquela mesma visão que vocês vêem com desânimo den-
tro de si, foi revelada da mesma maneira para nós em todo o seu poder
desencorajante. Contínua e repetidamente a mesma visão horrível de nossos
próprios corações se nos descortina. Mas temos um encorajamento que
nunca falha. O amor do Salvador crucificado nos constrange. O Espírito é
dado àqueles que crêem, e sendo Ele um agente todo-poderoso, tem um
argumento que nos comove continuamente — o amor de Cristo.

Meu objetivo presente é mostrar como esse argumento, nas mãos do


Espírito, realmente impulsiona o crente a viver para Deus; como a verdade
simples do amor de Cristo para com o homem, de contínuo apresentado à
mente pelo Espírito Santo, deveria habilitar qualquer homem a viver uma
vida santa. Se existe algum homem entre vocês cuja grande interrogação é:
"Como serei salvo do meu pecado ou de que maneira andarei como um filho
de Deus?" estou ansioso para atrair seu ouvido e coração mais que a todos
os outros.

Você é cristão? Essa é a pergunta que estou fazendo e solicitando que


pense a respeito. Quero que você pergunte a si mesmo como pode ter
certeza que Jesus Cristo é seu Salvador, e que a misericórdia de Deus já lhe
alcançou. Nos capítulos anteriores eu disse que podemos saber estas coisas

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- e examinamos as diferentes formas em que Deus age para trazer as
pessoas a Si.
Agora quero apresentar alguns sinais ainda mais evidentes que mostram
que uma pessoa é cristã autêntica. A fé é um desses sinais, pois a fé é
necessária para que sejamos salvos do pecado. Como Paulo e Silas disseram
ao carcereiro em Filipos, "Crê no Senhor Jesus Cristo, e serás salvo" (Atos
16:31).
Apesar disso, às vezes as pessoas pensam que a fé é misteriosa - tão
estranha e misteriosa que jamais a podem atingir. Para elas eu diria: a fé
não é tão difícil como muitos pensam. Sim - a fé é dádiva de Deus, e não
podemos produzida. Mas, "Se com a tua boca confessares ao Senhor Jesus, e
em teu coração creres que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo"
(Rom. 10:9). Leia a passagem inteira em Romanos, capítulo 10, versículos 5
a 13, e verá que Paulo está dizendo que a fé não é coisa difícil. De fato é uma
questão da vontade e do coração. Significa chegar-se a Jesus Cristo,
descansar e confiar nEle, apoiar-se nEle e achar nosso tesouro nEle. Fé é
questão de querer a Jesus Cristo, e procurá-1o para salvação do pecado.
Significa receber a Jesus desse modo. João diz: "a todos quantos o
receberam, deu lhes o poder de serem feitos filhos de Deus" (João 1:12). Fé
significa vir a Cristo, buscando-O com anseio. "Tudo o que o Pai me dá virá a
mim", diz Jesus, e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora" (João
6:37). Fé significa buscar a Jesus e querer a Sua salvação -"Olhai para mim,
e sereis salvos, vós todos os termos da terra" (Is. 45:22).
Assim a fé, do modo que estou falando no momento, não é algo difícil;
não significa ter o entendimento de coisas difíceis sobre Deus. Inicialmente,
fé não implica em crer que Deus me escolheu, ou que Deus me ama, ou que
Cristo morreu por mim. Essas coisas são, de fato, difíceis. Mas a fé que traz a
todos nós para as bênçãos de Deus não é assim; a fé que nos traz à salvação
é questão de querer a Cristo, ser levado a Ele, apoiar-se e ter confiança
nEle.
Mesmo assim, para alguns, essa fé salvadora é reivindicação excessiva.
Dizem-nos que é excesso de confiança dizer que foram levados a Jesus
Cristo. Entretanto, se devemos ser salvos, temos que ter aquela fé que nos
conduz a Jesus Cristo e não nos deixa afastar dEle. Sem essa fé confiante,
nada mais será suficiente. A não ser que creiamos, ainda estamos
condenados por Deus. "Quem não crê já está condenado; porquanto não crê
no nome do unigênito Filho de Deus" (João 3:18). Assim, ter fé salvadora não e
nada demais para reivindicar. Se não podemos reivindicá-la, não temos
esperança nenhuma.

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Ainda assim, as pessoas dizem que não podemos ter certeza de possuirmos
fé. O apóstolo João, no entanto, nos diz em sua Primeira Epístola que aquele
que crê tem um testemunho em si mesmo (1 João 5:10). Noutras
palavras,podemos saber que estamos confiando em Cristo. Como podemos
saber disso? Bem, no último capítulo expliquei que muitas vezes
descobrimos que Deus nos predispôs para a fé. Ficamos convencidos de
que estamos perdidos; percebemos que não podemos nos salvar do pecado,
e que somente Cristo é capaz de nos salvar completamente. Sabemos que
essa é a única coisa boa que podemos fazer. Esse tipo de predisposição
ocorre muitas vezes antes da vinda da fé verdadeira.
Outras coisas vêm com essa fé verdadeira. Se estamos confiando em
Cristo, vamos querer que Ele controle as nossas vidas; aprenderemos do Seu
ensino; vamos querer nos entregar completamente e sem reserva a Ele.
Todas estas coisas, e outras mais, acompanham a fé autêntica; mas embora
sejam evidências para nós, devo dizer ainda que, à parte delas, podemos
saber em nós mesmos, pela ajuda costumeira do Espírito Santo, se
realmente temos fé no Senhor Jesus Cristo -ou se não a temos.
Talvez ajude se eu disser um pouco mais sobre a natureza desta fé. A Bíblia a
descreve de vários modos -pois a fé é uma experiência diferente para
pessoas diferentes. Às vezes é descrita como querer se unir a Deus e à Sua
paz. Isaías chama isso de "olhar para Deus": "Olhai para mim, e sereis
salvos, vós, todos os termos da terra" (Is. 45:22). Olhar pode parecer um ato
de fé muito fraco, pois podemos olhar àquilo que não devemos aproximar
nem tocar; podemos olhar a alguém a quem não temos coragem de falar.
Contudo, Deus prometeu que aqueles que olharem para Ele com fé serão
salvos do pecado. Isso é simplesmente evidenciado como olhar para Deus,
querer ser unido a Deus. É dessa fé que a Bíblia fala ao se referir como
"querer": "Quem quiser, tome de graça da água de vida" (Apoc. 22:17). Essa
fé que olha para Deus também é descrita como ter "fome e sede de justiça"
(Mat. 5:6).
Às vezes a fé é descrita com "dependendo do Senhor", ou "descansando"
em Jesus Cristo. É colocada também como "confiando em Deus". Isaías nos
diz que Deus conservará em paz perfeita aqueles cujas mentes estão fixas
nEle, porque confiam nEle (Is. 26:3).
A fé também é descrita como "esperando por Deus". Deus prometeu: "os
que confiam em mim não serão confundidos" (Is. 49:23). De fato, a Bíblia nos
mostra claramente que Cristo pode fazer o bem aos pecadores segundo a
necessidade deles. A fé nos leva a Cristo nos modos como Ele é descrito:
quando ouvimos sobre Cristo como o pão da vida, a fé tem fome dEle; quando

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ouvimos sobre Cristo levantado da morte, a fé crê que Deus O levantou. A fé
crê no nome de Jesus, conforme todos os modos em que Jesus é descrito.
Deixem-me repetir, entretanto, que nem todos experimentam a fé do
mesmo modo ou com o mesmo ímpeto. No Novo Testamento Jesus fala de
certas pessoas que tinham uma grande fé. Um caso desses é o centurião
(Mat. 8:10). Dessas falas de Jesus podemos perceber que enquanto outros
tinham a fé autêntica, nem todos tinham uma grande fé. Assim, não imaginem
que a fé tenha que se mostrarem todas as formas que descrevi, a fim de ser
real.
Lembrem-se também, que a fé varia em vigor, até na mesma pessoa. As
vezes a fé de alguém está forte e pode ser facilmente percebida; depois pode
se tornar fraca e a incredulidade se torna mais forte.
Então, a fé se evidencia de muitos modos; mas o que está no âmago da fé
verdadeira é o seguinte: estar contente e satisfeito com o plano da salvação
de Deus, através de Jesus Cristo. Quando alguém está agradecido pela
morte de Cristo no lugar dos pecadores (o que significa que Deus pode, em
justiça, perdoar pecadores), então aquela pessoa tem a fé que salva
pecadores. A fé salvadora significa desistir totalmente de pensar em conseguir
o favor de Deus por meio das obras, e em lugar disso, descansar no que
Cristo fez para tomar sobre Si o castigo devido ao pecador. Essa fé está em
todos os que nasceram de novo - em todo o verdadeiro cristão -mesmo que
não seja evidenciada por todas as maneiras sobre as quais falei.
Assim, o que devemos perguntar a nós mesmos é simplesmente o
seguinte: estou satisfeito com o Senhor Jesus Cristo? Ele é aquele a quem
dou mais valor do que a qualquer outra coisa? É precioso para mim, por ser o
único caminho para Deus? Estar satisfeito com Jesus Cristo como aquele que
carregou os nossos pecados e é o nosso único Salvador, é fé autêntica. Isso
é crer com o coração. É estar satisfeito com o caminho de Deus para a
salvação de pecadores através de Cristo; é concordar com o caminho de
Deus para a salvação, e recebê-lo com alegria, através de Jesus Cristo.
Deixem-me repetir, podemos saber se temos fé assim, pois não podemos ter
dúvidas sobre isso se estamos descansando inteiramente em Jesus Cristo
para nos levar a Deus, e se valorizamos o Senhor Jesus Cristo acima de todos
e de tudo o mais. Aquele que crê desse modo não perecerá, mas terá "a vida
eterna" (João 3:16).
Todavia, seria possível existir uma fé falsa que seja como a verdadeira e
tão parecida que não podemos perceber a diferença? Ora, muitos admiram
Jesus hoje, assim como muitos creram nEle quando viram os milagres que fez.
Como poderemos distinguir essa falsa fé, fé simulada, da fé genuína,
verdadeira?
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Primeiro, a fé falsa nunca desiste totalmente da idéia de que podemos
ajudar, ao menos um pouco, em nossa própria salvação do pecado. Fé falsa
faz com que as pessoas perguntem, como o homem em Lucas 10:25: "que
farei para herdar a vida eterna?" A falsa fé também quer apegar-se a outras
coisas além de Cristo. Assim, a falsa fé nunca confia completamente em
Cristo, e somente em Cristo.
Em segundo lugar, pessoas com falsa fé não querem que Cristo as dirija,
ou faça a paz entre elas e Deus em todos os tempos, ou ensine-as e as guie.
A falsa fé de fato não recebe a Cristo como rei, sacerdote e profeta.
Em terceiro lugar, a falsa fé não está pronta a seguir a Cristo pelas
agruras, perdas e sofrimentos. A fé verdadeira quer somente a Cristo, não
importa o que custe.
Explicarei depois outras diferenças entre a fé autêntica e a falsa. Por
exemplo, somente a fé autêntica tem o efeito de purificar a vida interna da
pessoa (Atos 15:9). Onde houver fé autêntica, sempre haverá também todas
as virtudes espirituais (Gal. 5:22-23).

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